O Épico e o Trágico
O Épico e o Trágico
O Épico e o Trágico
O épico e o trágico
na história do Haiti
JACOB GORENDER
momento, em que
N
ESTE PRECISO
escrevo a resenha de um livro notável
sobre o Haiti, o país caribenho esteve
assolado por uma rebelião sangrenta, que
obrigou o presidente Jean Bertrand Aristide
a abandonar o cargo e se refugiar no exterior.
Em dois séculos de história, no entanto,
Aristide foi o primeiro governante haitiano
a exercer o poder após conquistá-lo pela via
eleitoral, em 1994. Encontrava-se no se-
gundo mandato, que não conseguiu comple-
tar, acusado de corrupção, de arbitrariedades
e de violências.
No início do século XIX, o Haiti era a
colônia mais produtiva das Américas e a
primeira a conquistar a Independência nacio-
nal, em 1804. Como explicar então que não
tenha tido uma trajetória progressista, mas, ao contrário, se tornasse o país mais
pobre do continente, talvez um dos mais pobres do mundo?
Além de produzir café, anil, cacau, algodão e outros gêneros, o Haiti pro-
duzia sobretudo o açúcar, em condições mais competitivas do que as outras co-
lônias da época. Nessa produção, empenhavam-se meio milhão de escravos, a
maioria africanos, na proporção de dois terços.
O autor da obra aqui resenhada nos dá informação minuciosa, de leitura
fluente, sobre as características da escravidão haitiana e sobre a guerra da Inde-
pendência, ajudando-nos a encontrar a chave da indigência subseqüente do país.
“O Haiti é aqui”, escreveu Caetano Veloso, na letra de uma de suas canções. Seria
o mesmo que escrevesse “a miséria é aqui”, referindo-se, desta vez, ao Brasil.
Cyril Lionel Robert James (que costuma assinar suas obras como C.L.R.
James) nasceu na ilha de Trinidad em 1901, onde veio a falecer em 1989. Teve
oportunidade de receber educação acima da média dos conterrâneos, praticou o
jornalismo, jogou críquete e escreveu sobre este esporte não só reportagens como
também um livro (Beyond a Boundary), em 1963.
Abade Raynal fez uma descrição realista da situação nas colônias européias
do Caribe, mostrando que a massa de escravos submetidos ao regime mais
desumano de exploração se encontrava num ponto crítico, próximo de explosiva
rebelião. A par com a condenação moral do regime escravista, afirmava que, para
a rebelião ter início, faltava apenas uma liderança, o surgimento de um homem
capaz de chefiar os escravos no caminho da revolta. “Onde está este homem?” –
perguntava o Abade. E respondia confiante: “ele, com certeza, surgirá”6.
Também teve influência marcante em Toussaint o livro de Júlio César acerca
da guerra contra os gauleses. Os comentários sobre as operações militares, na
Roma da Antigüidade, forneceram ao futuro líder de tropas negras a concepção
do que significavam as manobras militares em um confronto armado7.
Quando resolveu mergulhar na batalha, em 1794, três anos depois de inicia-
da, Toussaint já contava com 45 anos, idade avançada para a época. Era baixote
e feio, mas forte, e excepcionalmente habilidoso na arte de cavalgar. Casara com
uma mulher que já tinha um filho e teve com ela um filho próprio. Ocupava-se
com a criação do gado e com o herbário da propriedade, o que lhe propiciou o
aprendizado prático dos problemas de administração.
Dotado de instrução bem acima dos ex-escravos, Toussaint não encontrou
grandes obstáculos para ganhar ascendência entre eles e aglutinar um exército de
combatentes sob o seu comando. Com uma tropa disciplinada e organizada, derro-
tou os exércitos dos franceses, dos espanhóis, que pretendiam apossar-se da parte
francesa da ilha, e dos ingleses, preocupados com a contaminação que o exemplo
da possessão francesa poderia produzir nas suas próprias possessões antilhanas.
Companheiros de Toussaint, destacaram-se na luta outros ex-escravos, como
Dessalines, Henri Christophe, Maurepas, Pétion e Moïse, um jovem sobrinho
adotivo de Toussaint. Este último é considerado por James como a mais bem
dotada figura da história mundial do período 1789-1815, com a exceção apenas
de Bonaparte8.
Já vitorioso, Toussaint seguiu duas linhas de ação, que teriam conseqüências
funestas para a sua liderança e para seu destino pessoal.
Em primeiro lugar, preocupou-se insistentemente em ganhar a confiança
de Bonaparte, àquela altura primeiro cônsul do governo parisiense. Através de
franceses aliados, enviou repetidas mensagens ao general chefe do consulado,
insistindo na fidelidade à França e na concretização de uma aliança entre a Revo-
lução Antilhana e a Revolução Francesa. Bonaparte sequer tomou conhecimento
desses bons propósitos, não somente porque se achava demasiado ocupado com
as conquistas na Europa, como principalmente porque tinha planos opostos aos
dos ex-escravos no referente ao regime colonial.
Toussaint não conseguiu perceber que, da Convenção de 1789 ao consulado
bonapartista, a Revolução Francesa infletiu para a direita, mudando as caracterís-
ticas do regime político no País, como também afastando-se da posição inicial
com relação à escravidão nas colônias.
Toussaint e Leclerc
Em 1801, Bonaparte interveio praticamente nos problemas concernentes
à colônia francesa do Caribe. Não só pretendia debelar o levante dos negros,
como restabelecer a escravidão. Este último objetivo deveria ser mantido em
segredo, até o momento favorável à sua implementação.
A intervenção se concretizou com o envio a São Domingos de uma
expedição de 25 mil soldados sob o comando do próprio cunhado de Bonaparte,
o general Leclerc, que viajou acompanhado da esposa Pauline, de músicos e
fâmulos, como se tivesse em vista um evento festivo.
Mas, ao contrário de suas expectativas, defrontou-se com uma guerra sem
tréguas. Toussaint reuniu as forças disponíveis e foi à luta. Nesta se destacou
principalmente Dessalines. Ex-escravo, analfabeto, revelou maestria de grande
chefe militar. Não só maestria, como ferocidade. Diante da decisão do comandante
francês Rochambeau de executar quinhentos negros, mandando enterrá-los num
grande buraco, enquanto esperavam a execução, Dessalines não vacilou e enforcou
quinhentos brancos, para que o vissem Rochambeau e os brancos de Le Cap
(hoje, Cabo Haitiano). Em conseqüência, o País sofreu tremenda devastação,
reduzido a cinzas pelos incêndios ateados pelos combatentes do dois lados.
Contando com uma tropa numerosa e bem equipada, Leclerc obteve êxitos
iniciais. Diante da valentia dos negros, excedeu-se na prática de crueldades.
Conseguiu aprisionar Toussaint, em agosto de 1802. Levado à França, não subme-
teram o líder negro a julgamento algum. Bonaparte decidiu livrar-se dele por
meio do rigor do tratamento carcerário. No entanto, apesar de prisioneiro e mal-
tratado, Toussaint ainda se declarava fiel à França e confiante em Bonaparte.
Estava certo de que a escravidão nunca seria restaurada em S. Domingos. Mal
alimentado, numa cela fria e sem aquecimento, sem tratamento médico, não re-
sistiu à dureza do cárcere e, aos 57 anos, se extinguiu no dia 7 de abril de 1803 11.
Mas o afastamento de Toussaint não trouxe a vitória para Leclerc. Além
das perdas em combate, seu exército sofria baixas numerosas em conseqüência
de doenças tropicais e, principalmente, da febre amarela. A metrópole francesa
se viu obrigada a enviar um total de 34 mil soldados e, apesar disso, perdeu a
colônia. O próprio Leclerc veio a falecer, em 1802, vítima da febre amarela.
Dessalines, Christophe, Clairveaux, Maurepas, Pétion e outros líderes negros
prosseguiram o combate e conseguiram derrotar e expulsar o exército francês.
No processo da luta, massacraram a maioria dos brancos, que antes dominavam
a colônia. Bonaparte conseguiu restabelecer a escravidão em outras possessões
francesas, não, porém, na pátria de Toussaint.
A Independência e seus problemas
Enquanto, em Paris, a guilhotina decepava as cabeças do jacobinos, em São
Domingos Dessalines e seus companheiros continuavam a defender, de armas na
mão, o ideal jacobino da liberdade e igualdade de todos os homens. Eles, os jaco-
binos negros, permaneciam fiéis ao espírito revolucionário da Convenção de 1789.
A 29 de novembro de 1803, os revolucionários negros divulgaram uma
declaração preliminar de Independência. A 31 de dezembro, foi lida a Declaração
de Independência definitiva. O novo Estado recebeu, no batismo, a denominação
indígena de Haiti.
Dessalines se tornou o primeiro chefe de Estado haitiano, sendo coroado
imperador em outubro de 1804. Mercadores de Filadélfia o presentearam com
uma coroa e um manto imperial trazido de Londres. Começou a governar com
as bençãos dos capitalistas ingleses e americanos, como escreve James12.
Os ex-escravos, por sua vez, viram-se definitivamente livres do trabalho
compulsório nas plantações de cana e nos engenhos de açúcar. Sob as presidências
de Pétion e Boyer, passaram a se dedicar à tradição herdada da África, ou seja, à
agricultura de subsistência. O Haiti saiu do mercado mundial do açúcar e eliminou
a possibilidade de progredir em direção a um nível econômico superior. De colônia
mais produtiva das Américas passou a país independente pauperizado e fora de
um intercâmbio favorável na economia internacional.
O autor de Os jacobinos negros acrescentou, em data não especificada, um
apêndice intitulado De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro. Compendiou aí a
Notas
1 A primeira edição é de 1938. A edição inglesa, que tenho em mãos, é de 1994 e foi
inicialmente publicada em 1980, na Grã-Bretanha, por Allison & Busby.