Girando Entre Princesas
Girando Entre Princesas
Girando Entre Princesas
(Verso corrigida)
SO PAULO
2012
_______________________________
Profa. Dra. Heloisa Buarque de Almeida
(Orientadora)
(Verso corrigida)
SO PAULO
2012
Banca examinadora
___________________________________________________
Profa. Dra. Heloisa Buarque de Almeida FFLCH/USP
___________________________________________________
Profa. Dra. Maria Filomena Gregori IFCH/UNICAMP
___________________________________________________
Prof. Dr. Julio Assis Simes FFLCH/USP
Agradecimentos
pelos
desenhos,
pela
companhia,
pelas
flores,
pela
na
Bio
naquelas
saudosas
quintas-feiras
de
disciplinas
Resumo
Olha tia, eu rodo que nem a Princesa era o que dizia uma menininha anos
atrs enquanto girava sobre seu prprio eixo at que sua saia atingisse o ar.
Cinderela era a referncia por ela destacada para construir uma corporalidade
dita de princesa e daquela cena surgiu o desenho desta pesquisa. H mais de
meio sculo Cinderela vem encantando geraes de crianas e, hoje, ao lado
tambm de Branca de Neve, Aurora, Bela, Ariel, Jasmin, Mulan e Tiana formam
famoso time Princesas Disney. Inspirando produtos mundialmente consumidos,
as Princesas entram no cotidiano infantil e se tornam presentes entre os
referenciais para a construo da feminilidade entre as crianas. Buscando
entender a forma pela qual as Princesas so lidas e significadas entre as
crianas, durante um ano convivi com crianas de trs escolas no interior do
estado de So Paulo. A partir de uma etnografia comparativa, entre crianas de
diferentes camadas econmicas, busquei as nuances entre as narrativas das
personagens Disney e as possibilidades de leituras oferecidas por sua
audincia. Iniciando pela diviso proposta pela Disney entre princesas
clssicas e rebeldes, selecionamos Cinderela e Mulan como representantes
destes dois perfis de princesas e levantamos uma anlise em dois nveis:
primeiro o nvel textual e, em seguida, o da recepo. A centralidade do
sucesso conjugal e do amor romntico na qual as narrativas se assentam para
a constituio comum de uma princesa ecoou tambm nas leituras
produzidas pelas crianas. Entretanto, para alm do encontro com um prncipe
encantado, as crianas, durante a recepo, apontavam para um outro e mais
importante critrio para a constituio de uma princesa: o esttico. Mais do que
um prncipe ao seu lado, para as crianas, a princesa precisava era de um belo
vestido, uma coroa e de muita elegncia. Assim, se podemos dizer que as
Princesas so uma importante fonte para o repertrio de gnero entre as
crianas, justamente pela associao entre beleza e glamour que elas se
constituem enquanto cones da feminilidade. Contudo, a interao das crianas
com as famosas personagens da mdia no se limitava posio enquanto
audincia. De espectadoras a consumidoras, as crianas levavam ao cotidiano
escolar uma imensa variedade de objetos estampados com as personagens
conhecidas da TV e do cinema, faziam deles instrumentos para demarcao de
suas identificaes e colocavam as personagens em ao tambm no
parquinho. Entre mochilas, etiquetas, ovos de pscoa, gira-giras, gangorras e
tanques de areias, as personagens miditicas eram inseridas no dia-a-dia das
turmas e ao mesmo tempo em que evidenciavam as fronteiras entre as
meninas e meninos, fornecia tambm brechas para construes e
ressignificaes dos contornos entre masculinidade e feminilidade,
evidenciando, neste texto, a dimenso do gnero que, afinal, se aprende
tambm brincando.
Palavras-chave: Antropologia. Gnero. Crianas. Princesas.
Abstract
Look, I can spin like the Princess said the little girl, years before, when she
spun around her own axis until her long skirt floated in the air. Cinderella was
the reference used by her to build a princess like corporeity, and from that
scene this research was born. For more than half a century Cinderella has been
enchanting generations of children and, today, along with Snow White, Aurora,
Bella, Ariel, Jasmin, Mulan and Tiana, they form the famous Disneys
Princesses team. Inspiring worldwide-consumed products, the Princesses enter
childrens everyday life and become present as a referential for a femininity
construction among children. Seeking to understand the way by which the
Princesses are read and meaning among them, for a year I have lived with
children from three different schools in the state of So Paulo. Using the
comparative ethnography as method, I sought to capture the nuances between
the different Disney characters narratives and the diverse possibility of
interpretation by children of different social backgrounds. Starting by the division
proposed by Disney between the classic princesses and the rebel, we have
chosen Cinderella and Mulan as representatives of two profiles of princesses
and undertook an analysis in two levels: first, a textual one, and, later, one
concerning its reception. The central role of marital success and romantic love
in which the narratives are based on for the construction of a princess type
has found its echo also on the interpretation carried out by the children.
However, beyond the encounter with an enchanted prince, they pointed to
another and more important aspect to the construction of a princess: the
aesthetics. More than a prince by their side, the princess needed a pretty dress,
a crown and lots of charm. Therefore, if we can say that the Princesses are an
important source for a gender repertoire among children, it is precisely by the
nexus between beauty and glamour that they stand as icons of femininity.
However, the interaction of children with the famous characters of the media
was not limited to the position while audience. From spectators to consumers,
the children carried to the daily school a huge variety of objects stamped with
the characters familiar from TV and cinema, made them instruments to
demarcate their identifications and put the characters in action also in the
playground. Among backpacks, stickers, Easter eggs, merry-go-round, seesaws
and sandbox, the media characters were inserted into the day-to-day of classes
and at the same time evidencing the boundaries between girls and boys, also
provided openings for construction of outlines and resignifications between
masculinity and femininity, showing, in this text, the extent of the genre which is
learned also playing.
Sumrio
Introduo .................................................................................................................. 11
Captulo 1
A construo de um caminho. .................................................................................... 16
L em Marlia .............................................................................................................. 21
Aqui em Jundia, na particular. .................................................................................... 28
Aqui em Jundia, na pblica. ........................................................................................ 36
Captulo 2
De Borralheira Guerreira: contornos de feminilidades entre as Princesas Disney ... 43
Princesas e a negociao de feminilidades .................................................................. 47
Princesas, performances e tecnologias de gnero ....................................................... 57
Captulo 3
Do lado da audincia .................................................................................................. 62
Calando o Sapatinho de Cristal com Cinderela. .......................................................... 64
Indo guerra com Mulan ............................................................................................ 87
Captulo 4
Entre coisas e corpos ................................................................................................ 109
Concluso ................................................................................................................. 147
Bibliografia. .............................................................................................................. 156
Introduo
Pode ser que a convivncia com uma me pedagoga que tenha me
trazido o encantamento com o universo da pr-escola. Suas histrias de
crianas espertas, curiosas, carinhosas e por vezes at tristonhas fizeram
sempre parte da minha prpria histria e passaram a compor o meu leque de
interesses. Quando j nas Cincias Sociais me encontrei com esse campo
genericamente chamado estudos de gnero e saa das discusses dos
grupos de pesquisas maravilhada com a ideia de que, afinal, as desigualdades
entre os homens e as mulheres provinham de um esforo social, constitudo e
reproduzido por mecanismos culturais de diferenciao, veio logo a pergunta:
mas como, ento, aprendemos essa diferena?
Da pergunta surgiram meus primeiros investimentos de pesquisa e, em
busca por entender como o gnero era ensinado e aprendido entre as crianas,
no demorou muito para que eu entrasse pela primeira vez em uma escola de
Educao Infantil. O primeiro contato com o campo logo me fez perceber que,
apesar de to pequenas, aos cinco anos as crianas j sabiam muito bem o
que era ser uma menina ou um menino e que as diferenciaes de gnero no
estavam apenas j apreendidas, como, inclusive, eram pelas crianas
articuladas, cobradas e vigiadas no cotidiano escolar.
Entretanto, a presena marcada de uma personagem que fora to
comum na minha infncia e permanecia entre aquelas crianas mesmo duas
dcadas depois de que eu deixara de ser criana virou um motivo de
inquietao: por que Cinderela, a personagem do filme Disney produzido nos
anos de 1950, continuava ali to presente nas vidas e imaginrio das crianas
pequenas? O que fazia de Cinderela uma personagem to interessante a ponto
de sua imagem transcorrer geraes e, ainda, que modelo de feminilidade
Cinderela poderia estar incentivando entre as crianas e qual era o papel da
mdia na aprendizagem do gnero?
Da inquietao surgiu o primeiro contorno desta pesquisa. A ideia
delineada na Iniciao Cientfica, durante minha graduao na UNESP de
Marlia, era compor uma investigao sobre o porqu de Cinderela, um filme
com mais de 60 anos, continuar sendo to familiar s crianas pequenas e
como a personagem servia de referencial para a construo de feminilidades.
11
12
contextos
diferentes de
interao,
os
quais
sero
detidamente
Nesta dissertao apresento anlises de dados referentes tanto pesquisa realizada durante
o Mestrado quanto durante a Iniciao Cientfica. A iniciao cientfica foi realizada durante o
curso de graduao em Cincias Sociais na UNESP de Marlia no ano de 2009, contou com
apoio da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, foi orientada pela Profa.
Dra. Heloisa Buarque de Almeida e culminou no Trabalho de Concluso de Curso intitulado
Cinderela de menina!:mdia, consumo, tcnicas e performances corporais na construo do
gnero na infncia.
13
14
15
Captulo 1
A construo de um caminho.
Em 2005 Clarice Cohn publicava o livro que seria um dos marcos para o
reconhecimento da rea de estudos com crianas enquanto um campo legtimo
nas Cincias Sociais brasileiras. O livro, intitulado Antropologia da criana
compunha uma coleo didtica que tinha por objetivo fornecer os primeiros
passos para as Cincias Sociais e ganhava notoriedade no campo editorial
das Cincias Humanas. Naquele mesmo ano de 2005, eu era uma aluna
ingressante do curso de Cincias Sociais no interior do estado de So Paulo
que encontrava o livro de Cohn em uma dessas prateleiras de Sociologia em
uma livraria de Shopping Center.
Fosse pela curiosidade inicial devotada para todo o campo das Cincias
Sociais, ou fosse pela aparente praticidade didtica da publicao, o livro logo
ganhou minha ateno e naquele mesmo ano as questes gerais desta
pesquisa comeavam a se delinear. Tempos depois, j no grupo de estudos
Cultura e gnero coordenado pela professora Ldia Possas na UNESP de
Marlia, meu interesse pelas pesquisas com crianas somou-se ao interesse
pela intensa produo acadmica dos estudos de gnero e, desde ento,
entender as relaes entre feminilidades e masculinidades entre crianas
tornou-se meu mote investigativo.
Enquanto, por um lado, os estudos de gnero se apresentavam como
um campo interdisciplinar bastante consolidado, por outro lado, a antropologia
da criana, tal como Clarice Cohn concebia, se mostrava imersa em meio ao
processo de reconhecimento terico e metodolgico nas Cincias Sociais.
Apesar de Philippe Aris (1981) destacar que uma noo especfica de
criana construda a partir o sculo XVI tendo como base a noo de um
sentimento da infncia requerida para a solidificao tambm da noo de
famlia nuclear, no Brasil recente o reconhecimento da criana2 enquanto,
2
16
17
preciso ainda ressaltar que o trabalho de Cohn busca congregar as duas modalidades de
pesquisa (com e sobre) crianas, no se restringindo a uma delas.
18
O termo crianas bem pequenas por ela utilizado se refere s crianas de 0 a 6 anos de
idade, expresso que corresponde tambm ao recorte de crianas ainda no alfabetizadas.
19
Os filmes Cinderela de 1950 e Mulan de 1998 foram os filmes escolhidos para compor a
anlise da pesquisa. Trataremos deles mais a frente, quando discutiremos a relao das
crianas com as Princesas Disney.
20
L em Marlia
Em 2009, a mais de 400km de distncia de So Paulo, essa pesquisa
comeava. Era o meu ltimo ano da graduao em Cincias Sociais e ao
mesmo tempo minha iniciao no trabalho etnogrfico. Embora eu tivesse em
mos um bom planejamento das etapas da pesquisa e levasse na minha
bagagem terica uma considervel proporo da discusso sobre etnografias
com crianas, a dimenso do impondervel, to discutida na antropologia, se
mostrou logo na minha tentativa de entrada no campo.
Em Dezembro de 2008, antes do trmino do perodo letivo e a partir de
uma colega graduanda em Pedagogia, consegui fazer um contato na EMEI em
que esperava realizar a pesquisa. Naquele momento, fui atendida pela vicediretora da Unidade Escolar que, sem demonstrar muito interesse, recomendou
que eu voltasse somente em Maro de 2009 depois do recesso, uma vez que
assuntos assim, segundo ela, no poderiam ser resolvidos com tanta
antecedncia.
Seguindo sua orientao, j na primeira semana de Maro do ano
seguinte retornei a escola. Planejei me apresentar, apresentar a pesquisa e
logo saber quando poderia iniciar o trabalho de campo, mas, para minha
frustrao, o planejamento no funcionou. Aps me apresentar para Silvia 6, a
coordenadora da escola, fui logo informada que no poderia iniciar a pesquisa
naquele ms. Tendo sido naquela poca aprovada a lei do estgio 7 em
mbito federal, as prefeituras estavam ainda adaptando-se s novas medidas
e, por isso, Silvia seguia as orientaes da Secretaria Municipal de Educao
de Marlia de aceitar o incio das atividades de estgio na escola somente
depois que tudo estivesse regulamentado e acertado.
De nada adiantava argumentar que eu no estava procura de um
estgio, ao contrrio, que eu queria me vincular escola enquanto uma
6
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22
23
24
25
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interage com elas, seja brincando, seja conversando, seja discutindo. (PIRES,
2007, p. 234). Ser a Tia Michele no era ser como as outras tias, era ser
diferente, era assumir uma posio de quem estava ali para aprender com elas,
e no ensin-las.
Ainda que todos meus primeiros encontros tivessem sido marcados por
explicaes sobre meus objetivos de pesquisa e os meus meios de
investigao, tanto em relao s educadoras como com as crianas no
primeiro dia de aula, por raros momentos eu sentia que minha posio ali
dentro da instituio era de pesquisadora. Por um lado, eu era reconhecida
pelas crianas como uma tia meio diferente, que brincava com elas, que no
brigava quando via alguma travessura e no cobrava atividades escolares. Por
outro lado, entre as educadoras, a despeito de minhas intenes de pesquisa,
eu era reconhecidamente a estagiria da escola. Fosse pela minha aparncia,
feminina e jovem relacionada ao trato com as crianas das estudantes de
pedagogia, fosse pelo excesso de ajuda que a professora me solicitava, de
organizaes de pastas a colar diariamente as tarefas nos cadernos das
crianas, ou fosse at por materiais de orientao pedaggica guardados para
mim depois de reunies de coordenao com bilhetes indicando para a
estagiria Michele, minha posio como pesquisadora ficava sempre em
segundo plano para elas.
Certa vez, quando acompanhava Joana na entrada para a salinha fui
por ela informada, descontraidamente, que eu havia sido emprestada para
Ftima, a professora da turma de quatro anos. Sem dar muitas explicaes, me
dizia apenas que a outra professora estava precisando de ajuda e que, por
isso, ela tinha aberto mo de mim naquele dia. Confusa fui ao encontro de
Ftima. A professora me recebeu feliz, com um sorriso de alvio no rosto e me
agradecendo pela ajuda. Naquele dia, passei todo o perodo com as crianas
de sua turma no parque, enquanto a professora, aproveitando a ajuda da
estagiria, organizava os materiais de avaliao das crianas.
Alis, neste processo de pesquisa/trabalho, no qual eram exigidas
atividades extra-classe de mim, durante o horrio de aula eu pouco ficava perto
das crianas da turma da Tia Joana. Entretanto, essa mesma posio informal
de estagiria me possibilitava, em contrapartida, ficar com as crianas durante
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casas
noturnas,
lojas
de
roupas,
supermercados
e,
29
Amarelinha uma brincadeira muito conhecida das crianas que se baseia na habilidade da
criana pular quadros marcados no cho (eles prprios chamados tambm de amarelinha)
com apenas um p e, sem se desequilibrar ou apoiar-se com outro membro, resgatar algum
objeto deixado em um desses quadros.
9
Disponvel em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/eduinfpolit2006.pdf
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de
certo
perodo
de
atividades
era
hora
do
lanche:
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10
Projeto afirmado aos pais durante a apresentao artstica do final do ano letivo.
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suas falas. Tiago achou estranha minha pergunta sobre quem tinha escolhido a
mochila dele do Ben 1012 no momento da compra e acrescentou: eu, n? Eu
que vou usar!. Kau, durante uma dentre as inmeras atividades de ingls que
simulavam um mercado onde algumas crianas dispunham de produtos para
vender e outras de dinheiro para os comprar, assustou-me a vociferar dentre os
colegas: dlar! Quero mais dlar! Quero mais dlar!. Ou ainda Nina que, na
sala de brinquedos, ao preparar doces da mini-cozinha de plstico dizia
entusiasmada Isadora: vou vender tudo e ficar rica!.
Como iremos discutir mais adiante, na escola particular o verbo ter era
pouco acionado pelas crianas para a criao de indicadores de diferena:
todas
elas
tinham
coisas
parecidas,
mochilas
semelhantes,
lanches
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L a figura da vizinha se faziam muito presente, compondo o quadro de pessoas que, alm
dos familiares, buscavam as crianas na escola.
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principal:
ainda
que
horas
antes
do
horrio
normalmente
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Captulo 2
De Borralheira Guerreira: contornos de
feminilidades entre as Princesas Disney
A presena de uma estranha em uma sala de Educao Infantil
sempre motivo de muita curiosidade e impulso para criao de performances
de crianas buscando a ateno desconhecida. Dentre passes de mgica de
um e histrias sobre os animais de estimao de outro, Julia gritava pelo meu
nome enquanto rodopiava sobre seu prprio eixo e fazia com que sua saia
god levantasse com as ondas de vento criadas ao seu redor. Olha tia
Michele! Eu rodo que nem a princesa! Olha tia! Eu t rodando que nem a
princesa Cinderela!.
A cena se desenhava em uma manh de 2007 quando, na ocasio de
uma visita turma de crianas de cinco anos de uma escola municipal de
Jundia, no interior do estado de So Paulo, eu buscava compreender os
aparatos de diferenciao de gnero operados na infncia. De l para c, a
princesa tornou-se uma das figuras centrais nesta pesquisa que, hoje, busca
compreender nas esferas textuais e de recepo quais os referenciais de
feminilidades que Cinderela e suas companheiras da Disney, enquanto
tecnologias de gnero (DE LAURETIS, 1994), suscitam.
Cinderela, Branca de Neve, Aurora, Bela, Ariel, Jasmin, Mulan e, mais
recentemente, Tiana, alm de protagonistas das verses hollywoodianas de
histrias romnticas de grande sucesso entre as crianas so agora tambm
personagens principais em decoraes de festas infantis, roupas, calados,
materiais escolares, ventiladores de teto, computadores, aparelhos televisores
e outra infinidade de produtos no cotidiano das crianas14.
Sob a marca comercial Princesas, a linha de negcios criada pela
Disney em 2000, em poucos anos conseguiu bater a marca de 1,3 bilhes de
dlares em vendas no varejo 15 e se consolidou como uma das mais
importantes marcas de produtos disponveis no mercado para crianas. Por
14
Nos EUA, onde a marca foi criada, recentemente produtos Princess voltados ao pblico
adulto comearam a circular. Em sites de compras como o http://www.amazon.com, por
exemplo, no difcil encontrar taas de vinhos, martinis e shots sendo vendidas com a rubrica
das princesas. Essa tambm uma questo levantada pela reportagem da Newsweek
(SETOODEH, 2007).
15
Segundo dados apresentados pela revista Forbes (POMERANTZ, 2010).
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44
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deve estar presente nas narrativas para que, com uma dose de realismo ao
melodrama, a trama se torne ainda mais sedutora e agradvel audincia.
Neste sentido, quando localizadas temporalmente, no surpreendente
que essas Princesas Rebeldes, personagens produzidas pela Disney j no
entremeio da dcada de 1990, momento aps trs dcadas de maturao dos
ideais feministas nos EUA, tragam em suas narrativas elementos de uma
feminilidade discrepantes daqueles trazidos pelas Princesas Clssicas da
dcada de 1930 ou 195016. Deste modo, ainda que possam conservar traos
clssicos nas suas narrativas, uma vez que tais elementos ajudam a garantir
a legitimidade de tais filmes por meio de sua correlao com aqueles de
dcadas anteriores que garantiram vida-longa aos estdios Disney, a
contemporaneidade, entretanto, est marcada na rebeldia das protagonistas
que, apesar de desobedientes, no deixam de ser Princesas.
neste jogo de negociaes entre as feminilidades possveis e
scio/historicamente dispostas que, portanto, a contraposio entre as noes
de clssicas e rebeldes entre as Princesas emerge como um interessante
mote para a pesquisa, e elegemos, ento, dois filmes, um representante de
cada modo de ser princesa, como ponto de partida para as discusses de
como tais feminilidades so apresentadas e promovidas pela Disney.
Cinderela como uma princesa clssica e Mulan17 como uma exemplar das
rebeldes emergiram como fonte para entendemos as nuances e similaridades
entre aquilo que se convencionou ver difundido entre as crianas como As
Princesas18.
16
importante ressaltar aqui que, por mais que as anlises sobre as dataes originais das
verses de contos e romances nos quais os filmes foram inspirados seja algo indispensvel
para o levantamento de algumas questes, o foco aqui recai, contudo, nos perodos nos quais
estas histrias ganham suas verses cinematogrficas e sob a atmosfera hollywoodiana so
distribudas pelo mundo, nos momentos em que os estdios Disney direcionam seus esforos
para torn-las produtos de uma grande plateia de cinema.
17
A escolha dos dois filmes se deu por conta de Cinderela j ter sido fonte de discusso entre
as crianas da pesquisa precedente a esta (pesquisa de Iniciao Cientfica realizada em
Marlia/SP durante a graduao em Cincias Sociais na UNESP e que contou com o apoio da
FAPESP e com a orientao da Profa. Dra. Heloisa Buarque de Almeida), o que nos permitia a
comparao a um amplo material etnogrfico j de antemo, e Mulan foi escolhida por conter
um conflito de gnero como chave temtica de sua narrativa, nos parecendo rentvel para a
pesquisa.
18
Cabe destacar que esses dois filmes (Cinderela e Mulan), alm de impulsionarem a anlise
que aqui se segue, so ainda os dois filmes escolhidos para serem discutidos entre as crianas
da pesquisa na fase de anlise da audincia dentro do trabalho de campo etnogrfico e, por
isso, so centrais para esta pesquisa.
46
Figura 1
A moa empreende todos seus esforos para que a condio seja cumprida e
possa ir ao baile e, j sada de casa, a Madrasta e suas filhas surpreendemse ao ver Cinderela ali: com todo servio feito, assim como combinado, e
19
Primeiro longa metragem de animao que rendeu uma homenagem da Academia de Artes
e Cincias Cinematogrficas dos EUA materializada na figura de oito estatuetas de Oscar, uma
do mesmo tamanho que o homenageado acompanhada de outras sete em miniaturas.
47
Figura 2
Mal ela chega ao baile e o olhar do prncipe volta-se para sua beleza
esplendorosa. Ela a escolhida para com ele danar a valsa (figura 3) e j
aps a primeira dana, o primeiro beijo do amor verdadeiro trocado. O
momento mgico, contudo, bruscamente interrompido com o soar do relgio,
fazendo com que Cinderela desvencilhe-se dos braos de seu prncipe e saia
correndo antes que o feitio da fada se acabe. Mas em meio a toda correria,
Cinderela deixa para trs um de seus sapatinhos de cristal que, no dia
seguinte, ser experimentado nos ps das moas solteiras at que sua
verdadeira dona seja encontrada. Depois de ser salva do crcere onde a
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Figura 3
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sua perseverana no tinha sido em vo. Das lgrimas surge a fada madrinha
que promove sua grande transformao: com a carruagem a postos e o
esperado vestido reluzente em seu corpo, Cinderela agradece como um
sonho, um sonho que se realiza! muito mais do que eu jamais sonhei!,
retomando sua f.
E a realizao do sonho de Cinderela estava apenas por comear. Se
at ento as qualidades de Cinderela eram ressaltadas a partir da
contraposio com a Madrasta entre crueldade e bondade, na cena do baile
outro elemento destacado: Cinderela , alm de tudo, encantadoramente
bela e elegante. Enquanto as irms so mostradas como feias, desengonadas
e esbarram-se entre si a todo instante, Cinderela parece flutuar pelo salo do
palcio. Sem nenhum esforo, com gestos contidos e imensa discrio, ela
chama toda a ateno para si e faz com que o prncipe entediado com todas
aquelas apresentaes de moas casveis levante-se de seu trono e tire-a
para danar. Na primeira dana, seguida pelo primeiro beijo e da fuga da
herona, j dada audincia a informao que dali, o desfecho ser o
casamento: o corao lhe diz que ela a jovem destinada a ser sua noiva
narra o Gro-Duque ao rei ansioso pelos netinhos.
O triunfo do amor romntico, de um jovem que se apaixona por uma
moa primeira vista e de uma jovem que se apaixona por um moo
ingenuamente sem nem saber ao certo que era ele o Prncipe do palcio
ento ilustrado na cena final, de encerramento do filme, na qual Cinderela e
seu noivo saem casados em uma linda carruagem enquanto o coro ao fundo
repete a cano: seu dia feliz, um dia vai chegar; no importa o mal que te
atormenta se o sonho te contenta e pode se realizar.
Quase cinquenta anos depois de Cinderela realizar seus sonhos e se
casar com seu prncipe encantado, os estdios Disney nos apresenta Mulan.
Ambientado na China imperial, o filme, em verso a um antigo poema chins,
traz uma jovem guerreira como herona. Mulan (figura 4), uma moa j em
tempo de se casar, toma a deciso de fugir de casa e lutar na guerra no lugar
de seu pai, que fora convocado logo aps ela ter sido humilhada pela
casamenteira de sua vila. Tendo desonrado sua famlia por no possuir as
qualidades esperadas de uma noiva, Mulan corta os cabelos (figura 5), vestese de soldado e no calar da madrugada, deixa sua casa.
51
Figura 4
Figura 5
To logo a fuga por sua famlia descoberta, seus ancestrais, sob forma
de espritos, enviam-lhe um drago protetor para que a traga para casa e para
que sua farsa no seja descoberta, salvando sua vida da acusao de traio
ao imperador. Mas Mulan no quer voltar e, tornando-se a partir de um duro
52
treino o melhor soldado de seu peloto (figura 6), embrenha-se na guerra. Mas
antes mesmo que o inimigo fosse derrotado, Mulan ferida e, sem a roupa
masculina seu travestimento descoberto. Sentenciada morte, Mulan
poupada da decapitao por seu chefe, o Capito Lee, a quem ela tinha pouco
antes salvo a vida e, ainda, percebido que por ele se apaixonara.
Figura 6
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58
precisa, afinal, ser repetido e reiterado num processo sem fim de construo e
reconstruo dos atos corporais. Em seus termos:
O gnero no deve ser construdo como uma identidade estvel ou
um locus de ao do qual decorrem vrios atos; em vez disso, o
gnero uma identidade tenuemente constituda no tempo, institudo
num espao externo por meio de uma repetio estilizada de atos. O
efeito do gnero se produz pela estilizao do corpo e deve ser
entendido, consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os
gestos, movimentos e estilos corporais de vrios tipos constituem a
iluso de um eu permanente marcado pelo gnero. Essa formulao
tira a concepo do gnero do solo de um modelo substancial da
identidade, deslocando-a para um outro que requer conceb-lo como
uma temporalidade social constituda. Significativamente, se o gnero
institudo mediante atos internamente descontnuos, ento a
aparncia de substncia precisamente isso, uma identidade
construda, uma realizao performativa em que a platia social
mundana, incluindo os prprios atores, passa a acreditar, exercendoa sob a forma de uma crena. (Butler, 2003, p.200)
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Captulo 3
Do lado da audincia
Quando em 2009 iniciei a pesquisa de campo em uma Escola Municipal
de Educao Infantil de Marlia, no podia prever que aqueles meses seriam
cruciais para os outros dois anos que se seguiriam. A extenso das questes
sobre o filme Cinderela de Walt Disney s Princesas, marca de
licenciamento de produtos ramificada do estdio cinematogrfico, significou
tambm a extenso de um rico material produzido a partir das leituras e
sentidos dos filmes entre as mais diferentes crianas.
Era logo cedo quando Joana, a professora da EMEI, em Marlia, passou
em casa para pegar a mim e aos aparelhos eletrnicos. A execuo da
segunda fase da pesquisa, as conversas com as crianas aps a exibio do
filme Cinderela, necessitava, antes de tudo, de uma complicada logstica para
exibir o filme s crianas. Com recursos materiais limitados, a escola dispunha
apenas de um aparelho televisor e um aparelho de DVD, usado para exibir os
filmes. Porm, desde que a sala de vdeo fora emprestada para uma turma da
Escola de Ensino Fundamental (EMEF) vizinha e transformada em sala de
aula, o acesso aos aparelhos de comunicao ficou restrito s disputas
espaciais no interior da creche.
Joana recusava-se a pedir para a direo da escola o remanejamento da
turma da EMEF. Julgava que se assim procedesse, abriria brechas para
exigirem favores dela em contrapartida e, desse modo, teria que submeter-se
s ordens e comandos evitveis. O conflito, latente no ambiente escolar entre
professoras, coordenadoras e administradoras da EMEI, deveria ser evitado e,
por essa razo, decidimos levar, ns mesmas, o que quer que fosse necessrio
para exibir o filme s crianas: com um televisor, um aparelho de DVD,
extenses eltricas e alguns controles remotos em punhos fomos para a
creche.
Conforme iam chegando sala, a euforia das crianas crescia ao ver os
aparelhos j instalados. Seguiu-se repetidamente a pergunta o que a gente vai
ver?
entre
as manifestaes de
62
63
64
por fim, pedi para que cada criana falasse sobre o seu desenho. No est em
nosso escopo analisar os desenhos estritamente pelo seu contedo ou por seu
valor artstico, mas, ao invs disso, os desenhos serviram como um recurso
metodolgico para incentivar a fala das crianas sobre o tema e da retirar
nossas impresses. Por isso, mais importante que o desenho em si, so as
falas produzidas a partir deles, algumas delas ditas para toda a sala por
solicitao da professora e outras ditas apenas para mim, enquanto as crianas
me indicavam nos desenhos o que tinham ali ilustrado.
Pelos desenhos e na fala sobre eles as crianas exprimiam aquilo que
havia mais chamado a ateno no filme e suas impresses sobre a histria.
Dentre os desenhos da escola particular, sete deles apresentavam cenas
protagonizadas pelos animais amigos de Cinderela, cenas como da
transformao deles pela fada madrinha, ou da disputa entre os ratinhos com o
gato de estimao da madrasta, ou a cena em que os ratinhos sobem a escada
com a chave. As crianas produtoras desses desenhos, cinco meninos e duas
meninas, quando citavam o nome de Cinderela, era para localizar a cena que
elas preferiam no contexto geral do filme, mas nunca atribuindo-lhe o
protagonismo na cena que mais gostaram.
Os outros vinte e seis desenhos foram produzidos a partir de Cinderela e
das cenas por elas protagonizadas. Alguns temas por elas falados remetiam s
cenas em que a protagonista estava em situaes dramticas ou de muita
realizao. Alguns deles, os mais dramticos, apesar de representar a minoria
dos desenhos, traziam uma variedade de cenas onde Cinderela era posta em
conflito: ou com as irms malvadas quando destruam seu primeiro vestido de
baile, quando tambm, depois disso, ela chorava no jardim (o que ocasiona a
apario da fada) ou ainda quando depois de liberta do quartinho e pronta para
calar o sapatinho de cristal trazido pelo representante oficial do prncipe, v o
calado se estilhaando no cho depois de uma trapaa da madrasta.
Por outro lado, as cenas de realizao pessoal da protagonista eram as
mais evidenciadas pelas crianas. A grande maioria dos desenhos e das falas
se debruava sobre essas imagens e ilustravam o fascnio que o felizes para
sempre parecia suscitar entre o pblico dos contos de fadas. Contudo, apesar
do maior nmero de crianas terem escolhido cenas de realizao, o nmero
de cenas no variava tanto assim: concentrando-se em trs categorias pelas
65
crianas destacadas, os desenhos eram compostos pela parte que eles tavam
danando, a parte do casamento e o vestido.
Um encantamento particular foi provocado pela cena em que Cinderela e
o prncipe danam no baile. Esta foi a cena favorita de muitas crianas e a
maioria delas justificou com o simples fato que eles danam, como, por
exemplo, Guido (desenho 1) e Mariana (desenho 2). Las (desenho 3)
justificava sua escolha porque os dois to junto. Renata e Cntia se atentaram
ainda a outros detalhes da cena. Renata (desenho 4) enfatizava o destaque
dado Cinderela na cena e falava sobre o momento em que o prncipe a v:
Ela no tinha fazido como as outras damas, da ele foi l junto com ela. A
menina no s mostrava que a sua cena preferida era a da dana como ainda
indicava, em seu desenho, bales de pensamentos saindo da cabea de
Cinderela e de seu prncipe: ela quer danar com ele e ele quer beijar ela.
Desenho 1
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Desenho 2
Desenho 3
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Desenho 4
Cntia (desenho 5 e 6), por sua vez, fez dois desenhos ao invs de um.
No primeiro deles, ela destacava o mesmo instante de fascinao do prncipe
em relao Cinderela ao qual se referia tambm Renata, em que o prncipe
conhece ela e a parte que eles vo danar, e, segundo justificava, por
causa que eles danam. J no outro lado da folha, Cntia se deteve na cena
seguinte dana no baile, quando eles saem de vista das outras pessoas ali
presentes e, em privacidade, eles se beijam na escada, como ela dizia. Era o
primeiro beijo dado pelo casal no filme e, segundo a menina, essa cena era
importante por causa que romntico.
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Desenho 5
Desenho 6
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Desenho 7
Desenho 8
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Desenho 9
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Desenho 10
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Desenho 11
Desenho 12
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Desenho 13
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Desenho 14
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Desenho 15
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Desenho 16
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Desenho 17
Desenho 18
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Desenho 19
Wagner, por sua vez disse ter mais gostado daquela parte que o
prncipe tava com a Cinderela dentro da carroa, me mostrou seu desenho de
quando eles foram felizes para sempre e argumentava sua preferncia
porque um sorri um pro outro (desenho 20).
Desenho 20
80
Carros, dirigido por John Lasseter, 2006. Produzido pela Pixar e distribudo
internacionalmente pela Walt Disney Pictures, Carros uma animao em computao grfica
que narra a histria de Relmpago McQueen, um famoso e egocntrico carro de corrida que
depois de perder-se numa cidadezinha do interior e encontrar carros muito diferentes dele,
levado a questionar seus valores e condutas.
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Desenho 21
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Desenho 22
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Desenho 23
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Desenho 24
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Desenho 25
Desenho 26
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Desenho 27
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Desenho 28
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Desenho 29
Desenho 30
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Desenho 31
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Desenho 32
Desenho 33
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Desenho 34
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Desenho 36
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Desenho 37
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Desenho 38
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melodrama
criam uma
empatia
da
audincia
que,
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de uma pessoa faziam parte tambm da noo que Bruna denominava como
elegante. Para a menina, Mulan era uma princesa, pois, assim como todas as
outras, era elegante, ou seja, porque elas falam bem com as pessoas 22.
Nesta noo, parecia estar envolvido um critrio sobre como Mulan mostrava
ser para o mundo, no necessariamente em sua relao com outras
personagens especficas, mas no sentido de uma apresentao de si para o
mundo ao seu redor, ou, como dizia Denise, por causa do jeito que ela age, de
se comportar e fazer coisas boas pras pessoas.
Fbio no considerava Mulan uma princesa e fazia careta enquanto dizia
que ela precisa tirar a maquiagem branca [maquiagem que lembra a de uma
gueixa], porque tava muito feio, e precisa passar batom e Marcela, assim
como muitas crianas das turmas, dizia que por causa que ela linda j
bastava para ser uma princesa. Deste modo, pelas falas produzidas pelas
crianas a partir de seus desenhos, essa dimenso esttica compreendida a
partir de uma forma de ser parecia balizar alguns dos critrios do que constitua
uma princesa para as crianas.
Fosse pela ideia de elegncia ou pela noo de beleza, o contorno das
aes e da aparncia de uma princesa era controlada e esperada. Neste
sentido, foi notvel o desenho feito por Lia: destacando a parte que ela tava
tirando o lacinho, a menina da escola particular, trouxe ilustrada uma Mulan de
cabelos amarelados, loira (desenho 39).
22
Aqui algumas conexes podem ser feitas com o que Norbert Elias chamou de Processo
Civilizador (1990), a partir do qual um determinado comportamento delineado tendo em vista
um ethos francs de civilidade historicamente construdo e difundido.
105
Desenho 39
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23
Aqui pode-se ainda questionar a utilizao do termo cor de pele para se referir aos tons de
bege e cor-de-rosa dos lpis de colorir das crianas, exemplo de mais uma forma com a qual
os fentipos brancos so tomados no apenas como superiores mas, ainda, como universais.
107
108
Captulo 4
Entre coisas e corpos
Passando mais da metade do horrio letivo na salinha, concentradas
ou no em suas atividades, as crianas da EMEI em Marlia pouco
encontravam momentos de descontrao e brincadeira, uma vez que estavam
submetidas ao olhar atento da professora e deviam obedecer as regras
disciplinares que o ambiente exigia. Contudo havia sempre a hora do parque:
o momento de maior euforia das crianas, e, tambm, quando eu realmente
podia estar com elas, para alm da condio de Tia e ajudante. Ainda que,
para a professora, eu estivesse dando uma ajuda nas atividades escolares ao
observar as crianas, foi no parquinho que eu pude, efetivamente, aproximarme e compreender melhor as interaes entre as crianas. Foi entre gira-giras,
gangorras, tanques de areia e balanos aos ps das rvores que a pesquisa
mostrou seu outro lado: era no parque, longe dos olhares e broncas das
adultas, que as crianas tinham mais margem para serem quem quisessem.
Depois de algumas horas na salinha e uma refeio servida no recreio,
as crianas corriam apressadas para o parque. Muitas vezes sem mesmo
limparem as mos ou as bocas ainda sujas pela comida servida pelas
merendeiras, como em uma competio de agilidade as crianas debandavam:
do refeitrio passavam pelo ptio principal arremessando blusas, sandlias,
tnis e bolsas na caixa de pertences da turma e, descalas, mergulhavam no
parquinho. Entre os brinquedos coloridos e dispostos nos tanques de areia, os
dois gira-giras, as quatro gangorras, o trepa-trepa, as duas estruturas metlicas
que suspendiam os balanos e o quiosque central, os meninos e as meninas
organizavam-se no espao do parque. Embora a correria inicial em direo ao
parquinho indicasse um descontrole das crianas, aos poucos, durante a
observao, as regras e organizaes que estavam subjacentes apropriao
daquele espao foram surgindo: as brincadeiras ali executadas eram
ordenadas, controladas e regradas.
Enquanto um ato orientado por normas, as brincadeiras acionadas no
parquinho eram rigorosamente diferenciadas pelos marcadores de gerao e
de gnero e podiam ser classificadas entre brincadeiras de criana, de
meninas e de meninos. Para alm das brincadeiras de menina e de menino,
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Figura 7
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Figura 8
De relgios nos punhos os meninos saam pelo parque: eles eram o Ben
10. Correndo de cantos a cantos, os meninos simulavam cenas de combate e
fuga, nas quais o Ben 10 da rodada era sempre escolhido a partir de quem
tivesse mais objetos do menino caa-aliengenas. Quem no possusse o
relgio, ou uma camiseta ou nem mesmo a sandlia estampada com o
personagem do desenho estava, no limite, em um status inferior na brincadeira:
poderia at brincar com o Ben 10 escolhido, contudo, como seu ajudante
improvisado ou at mesmo como o inimigo, jamais como protagonista.
Personificado nos corpos daqueles meninos, os heris da televiso, de Ben
aos Rangers, materializavam-se nos tanques de areia.
Desde o incio do trabalho de campo, ainda em Marlia, meu olhar se
colocava sempre procura de vestgios dos referenciais da mdia que
poderiam operar em uma espcie de educao da feminilidade e da
masculinidade. Tomando os produtos miditicos como ponto de partida desta
investigao, no precisei de muito esforo para encontrar as personagens dos
filmes e da TV entre as crianas. Em meio s pastas de plstico padronizadas
da EMEI de Marlia logo reconheci Cinderela dentre as Princesas do mundo
115
24
Hot Wheels uma marca de carros de brinquedo, introduzida pela indstria de brinquedos
estado-unidense Mattel em 1968, que, atualmente, alm das miniaturas de carros de corrida
colecionveis, produz filmes, desenhos e uma grande diversidade de bens voltados ao pblico
infantil.
116
Um produto vendido com a marca Princesas, ou de outros personagens famosos com apelo
infantil, tende a ser mais caro do que outro similar sem personagens ou com personagens
menos populares entre as crianas. Esse foi o caso tambm dos Ovos de Pscoa que sero
adiante discutidos.
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professora
da
EMEI
sofriam
bastante
influncia
das
datas
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Inclusive, para efeitos ilustrativos, a tarefa se tratava de uma atividade sobre o Dia do ndio
e pedia para as crianas escreverem mandioca entre os dizeres o que o ndio come e a
imagem de uma criana com penas sob a cabea. Para uma discusso aprofundada sobre
como a populao indgena representada nos bancos escolares, ver: ROCHA, 1984.
28
Barbie uma famosa boneca criada em 1959 e produzida pela Mattel que, por dcadas, tm
encantado crianas de todo o mundo e espelhado a criao de novas bonecas, como, por
120
nacional, enquanto outras tinham ovos da Top Cau ou ovos sem marca que
traziam nas embalagens apenas os dizeres Feliz Pscoa.
Eu estava com o caderno do Alex aberto, vendo seu Kinder Ovo
quando, ao meu lado, o menino reconheceu o seu ovo e exclamou: o meu
tia!. No mesmo instante, Luan, sentado na fileira ao lado, retrucou: ele achou
no cho, tia. Alex, constrangido, tentou se defender. Disse que no havia
encontrado no cho, como Luan o acusava, mas que tinha ganhado de
presente de seu pai no dia da pscoa. Eu, no meio da discusso, virei a pgina
do caderno com o intuito de mudar o foco das atenes e os meninos pararam
de brigar.
O que estava em discusso entre aqueles dois meninos era o poder, ou
no, de consumir um Kinder Ovo, um produto com alto valor de mercado,
considerado caro em relao aos outros ovos de chocolates. Luan, partiu do
pressuposto que quem pega algo do cho no paga para t-lo e atacava Alex
pela desqualificao de sua possibilidade de consumo. Do outro lado, ofendido,
Alex se preocupava em me convencer que aquele Kinder Ovo realmente era
dele: o que estava em jogo ali era a prpria posio do garoto dentro de um
sistema de consumo.
Adiante nas tarefas, deparei-me com a embalagem de um ovo do High
School Musical 330 colada no caderno do Cssio. Afora a deturpao do
propsito alfabetizador da atividade, uma vez que a grande maioria das marcas
dos ovos transcrita pelas crianas estava na lngua inglesa (j que se tratavam
de produtos internacionalizados), chamou-me ateno um bilhete, escrito a
mo e assinado pela me do menino, ao lado da tarefa. No recado, destinado
professora, a me dizia que Cssio ganhara um ovo de pscoa do Hot Wheels,
exemplo, a Polly, tambm produzida pela Mattel a partir de 1999, diferenciada pelo menor
custo e tamanho.
29
Os ovos com personagens trazidos pelas crianas eram produzidos em sua maioria pelas
empresas Lacta e Garoto.
30
High School Musical , tambm conhecido como HSM (2006, Dir. Kenny Ortega) um
musical voltado para o pblico adolescente produzido originalmente para para a TV pelo
Disney Channel Original Movie. O filme narra a histria de dois adolescentes que se conhecem
na escola e descobrem uma paixo em comum pela msica. Pode ser considerado um dos
maiores fenmenos atuais da Disney Channel e emplacou mais de 8 milhes de discos de sua
primeira trilha sonora. A terceira verso do filme, lanada em 2008, foi a primeira da srie a ser
levada s salas de cinema enquanto as outras estreiaram pela rede Disney Channel e,
assim como as demais produes miditicas acima citadas, serviu de base para a criao de
diversos produtos vendidos ao pblico infanto-juvenil.
121
mas como j tinha o comido e descartado a embalagem, ele teve que colocar
o do High School Musical ganho pela irm mais velha.
Aparentemente comum, o bilhete demonstrava uma preocupao da
diferenciao de gnero orientada pelo consumo. Enquanto marcas mais
populares, de custo mais acessvel s famlias de baixo poder aquisitivo, no
fundamentavam uma distino de gnero entre os produtos aparentando
estarem voltados um mercado consumidor unissex , as marcas mais
valorizadas (com exceo do Kinder Ovo) faziam uma clara distino entre
ovos de meninas e ovos de meninos.
Apegados s personagens j bastante conhecidas das crianas, esses
ovos generificam o ato de consumir e direcionam s meninas o consumo de
ovos da Polly e da Barbie (ou do High School Musical para meninas um pouco
mais velhas) com embalagens predominantemente cor-de-rosa e ilustradas
pelos desenhos das bonecas e aos meninos o consumo de Hot Wheels e
Ben 10 de embalagens escuras, predominantemente pretas com detalhes em
azuis ou verdes, e personagens agressivos, ora carros e ora meninos
aventureiros.
Extrapolando o pragmatismo intrnseco s noes econmicas das
determinaes de demandas de consumo a partir da produo de mercadorias,
Marshall Sahlins (2007, p. 180), em La Pense Bourgeoise, coloca o consumo
no plano de uma organizao social das coisas. Enquanto o materialismo
histrico teria delimitado a organizao produtiva da sociedade como um
sistema de satisfao de necessidades objetivadas no valor de uso das
mercadorias, Sahlins insiste no carter arbitrrio e, portanto no-objetivo
dessas necessidades.
Se, por um lado, o abrigo ou o alimento so condies objetivas para a
sobrevivncia humana, abrigos ou alimentos especficos so, por outro lado,
culturalmente selecionados para satisfazer a necessidade de sobrevivncia.
Em seus termos, os homens no fazem apenas sobreviver: eles sobrevivem
de maneira especfica (SAHLINS, 2007, p. 181) e, deste modo, constroem um
sistema simblico de classificao de abrigos ou alimentos desejveis,
permitidos ou restritos: no apenas como organismos biolgicos em busca da
sobrevivncia da espcie, os humanos buscam, contudo, satisfazer suas
necessidades a partir de um sistema socialmente definido de valores de usos.
122
quando
comer.
Partindo
das
distines
alimentares
dos
no
qual
ces
esto
para
humanidade
portanto,
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125
126
Pais de Ben 10 falam do heri que virou fenmeno. Folha de So Paulo, 10 de outubro de
2010.
32
Ben 10: O segredo de Omnitrix (2007), Ben 10: Corrida contra o tempo (2007) e Ben 10:
Invaso aliengena (2009).
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Neste contexto, Miguel Vale de Almeida (1996) uma importante referncia para pensarmos
em masculinidades que so postas em relao e em disputa, principalmente quando o ser mais
ou menos masculino encontra ressonncia tambm em diferenciaes articuladas ainda pelo
marcador de classe social, como parecia ser o caso dos meninos que criavam seus
argumentos por meio de disputas sobre quem tinha, ali, o maior poder de consumo daqueles
produtos.
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135
Durante o texto, Princesas (no maisculo e itlico) se refere marca Disney que rene as
heronas de seus filmes, j princesas (no minsculo e fonte normal) faz referncia noo
articulada entre as crianas de certo conceito sobre o que ser uma princesa.
37
Em uma busca pela internet, foi possvel encontrar (no site http://pt.wikipedia.org/wiki/Barbie)
a seguinte lista de filmes trazendo Barbie como protagonista: Barbie e os Roqueiros (1987);
Barbie em O Quebra Nozes (2001); Barbie como Rapunzel (2002); Barbie em O Lago dos
Cisnes (2003); Barbie em A Princesa e a Plebia (2004); Barbie Fairytopia (2005); Barbie em A
Magia de Aladus (2005); O Dirio da Barbie (2006); Barbie Fairytopia Mermadia (2006); Barbie
em As 12 Princesas Bailarinas (2006); Barbie Fairytopia A Magia do Arco-ris (2007); Barbie em
A Princesa da Ilha (2007); Barbie Butterfly (2008); Barbie e o Castelo de Diamante (2008);
Barbie em A Cano de Natal (2008); Barbie Apresenta a Pequena Polegar (2009); Barbie em
As Trs Mosqueteiras (2009); Barbie em Vida de Sereia (2010); Barbie Moda e Magia (2010);
Barbie e o Segredo das Fadas (2011); Barbie em Escola de Princesas (2011).
38
Barbie e o Castelo de Diamante e Barbie Moda e Magia eram os outros filmes mais
comentados.
136
em perigo. A luta das garotas salva o Prncipe e garante para todas elas o ttulo
de Reais Mosqueteiras.
Figura 9
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139
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pudesse ser uma representante heroica, que tambm luta e salva o mundo, a
escolha da Barbie para salvar o mundo na brincadeira parecia reforar a nfase
no ideal esttico de uma princesa e sua importncia entre as crianas, uma vez
que, em As trs mosqueteiras, a construo da imagem da Barbie em pouco
ou quase nada se diferencia das clssicas Princesas Disney (Figura 10).
Das vezes que acompanhei as crianas na brinquedoteca, apenas uma vez elas quiseram
assistir TV. Dentre os DVDs de filmes disponveis na sala, elas colocaram um que reunia
diversos episdios do desenho Pica-Pau, agregando uma parte das crianas diante da tela.
141
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143
produtos rotuladas como Princesas. Assim, por estas situaes parecia que, de
todo modo, brincar de qualquer coisa que pudesse ser de todo modo referido
como brincadeira de menina estava, ento, intrinsecamente relacionado
dimenso esttica, na qual vestidos, cabelos lisos, maquiagens e o cor-de-rosa
eram a referncias indiscutveis da feminilidade.
Tomando a imitao como bases de muitas de suas brincadeiras, fosse
como modelos, Ben 10, Barbies, Princesas, Power Rangers, mames ou
bichos, as crianas acionavam, antes de tudo, uma habilidade em observar e
dramatizar tcnicas corporais socialmente reconhecidas em suas brincadeiras.
Partindo da noo de Tcnica Corporal de Marcel Mauss (2003), o corpo
pode ser entendido como um instrumento no qual e pelo qual os dados
culturais se inscrevem. Marcados por meio de mecanismos de educao
continuamente realizados, o treino corporal faz da matria fisiolgica humana a
expresso de uma sociedade e gerao. Como nos prope Mauss, o corpo ,
antes de tudo, a base na qual um conjunto de tcnicas acionado e, por meio
da aprendizagem, instrumentalizado. Esse processo de ensino/aprendizado
sobre o corpo treina e adestra nossos gestos, movimentos e posturas para
adequ-los em um campo de significao cultural e, assim,
essa adaptao constante a um objeto fsico, mecnico, qumico (por
exemplo, quando bebemos) efetuada numa srie de atos montados
no indivduo no simplesmente por ele prprio, mas por toda a sua
educao, por toda sociedade da qual faz parte, conforme o lugar que
nela ocupa. (MAUSS, 2003, p. 408).
144
145
40
Por mais que no houvesse uma restrio das meninas brincarem de Power Rangers, foram
raras as vezes em que vi elas deixarem de brincar de casinha para brincar com o meninos.
Contudo, quando isso ocorreu, elas eram sempre as Rangers rosas.
146
Concluso
Nem um pouco confortvel seria a tarefa de dar por concludo um
trabalho. No ao menos no sentido estrito do termo, naquele em que o
entendimento sobre algo se pe enquanto definitivo no ato de finalizao ltima
de um processo. Ao contrrio, minhas pretenses aqui recaem apenas em criar
um momento de suspenso, de pausa, para que as ideias possam se arejar
antes de seguir caminho.
Neste percurso de 2009, quando o primeiro trabalho de campo se
iniciou, at aqui, aps dois anos de mestrado, por vezes as possibilidades
todas de compreenso sobre a relao entre crianas e Princesas jogaram-me
para as mais diferentes bibliografias, dilogos e interpretaes. O que veio aqui
exposto foi apenas um fragmento dentro de um trabalho longe de ser esgotado
ou, afinal, concludo.
O interesse em perceber como as relaes de gnero se configuravam
no cotidiano de crianas bem pequenas me levou s escolas de Educao
Infantil e ao universo de personagens miditicas to presentes nesses
espaos. Cinderelas, Ben 10, Barbies e Power Rangers foram emergindo
diante de meus olhos como importantes personagens referenciais para o
aprendizado e a comunicao das formas de gnero. Meu esforo moveu-se
em direo a essa profuso de cones de feminilidades e masculinidades entre
as crianas e detive, neste momento, minha ateno queles nos quais o
princpio geral marcava especialmente a forma como feminilidades eram postas
em circulao.
As Princesas Disney permearam as pginas que aqui se seguiram e
protagonizaram no apenas os longas-metragens conhecidos e admirados por
inmeras crianas como, tambm, se tornaram protagonistas neste dilogo
mediado por falas, corpos e objetos que estabeleci com as crianas das trs
diferentes escolas. A sugesto de diviso entre clssicas e rebeldes
proposta pela Disney foi tomada como um mote inicial e, assim, Cinderela e
Mulan, personagens de filmes homnimos, foram destacadas dentre as
Princesas.
Dentre os doze meses de trabalho de campo, as negociaes entre os
referenciais trazidos pela mdia e aqueles dispostos pelas prprias crianas
147
evidenciadas,
sem
que
se
caia
na
aparncia
da
Princesas
tende
conter,
ainda,
elementos
minimamente
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gnero que poderiam ser apreendidos a partir das Princesas faziam parte do
nosso mote investigativo, por outro lado, foi preciso notar que, antes disso, o
prprio gnero j era um elemento orientador da forma como as crianas se
posicionavam enquanto audincia dos filmes.
E os referenciais trazidos pelas crianas para o ato de assistir os filmes
em muito determinava suas leituras sobre as narrativas. Se como diziam os
meninos de Marlia, filmes que no so de meninas, como Carros ou Power
Rangers, so aqueles em que disputas e lutas conferem o clima de ao das
cenas, quando as crianas em Jundia assistiram Mulan pareceu que essas
fronteiras entre masculinidade e feminilidade se tornaram mais embaadas. A
personagem guerreira, que se traveste de homem e vai guerra em lugar de
seu pai, baguna as fronteiras entre o feminino e o masculino ao sair da
conveno de gnero. Ao mesmo tempo em que apresenta referenciais
apreendidos como femininos, como a bondade e a delicadeza, ao se
transformar em um soldado, Mulan oferece ao pblico a mesma coragem e o
mesmo orgulho que as personagens dos filmes de luta e ao to apreciados
pelos meninos apresentam.
Mulan borra os limites do gnero e torna a conveno mais explcita ao
plantar a dvida entre as leituras da audincia. Em nenhum momento as
crianas questionaram o herosmo de Mulan, contudo, no hesitaram em
levantar uma grande dvida: ela uma princesa? Ela de luta dizia Gabriel
da escola particular para argumentar que Mulan no era uma princesa,
enquanto outras crianas lembravam-se das cenas da protagonista com seu
pai, dela arrumada para ir casamenteira e da sugesto final de enlace
amoroso para defender a posio contrria. Mulan trouxe para a roda de
conversas de modo mais evidente as marcaes entre feminilidade e
masculinidade, fez com que as convenes fossem explicitadas e, ainda,
trouxe para o centro da discusso os critrios que so, para as crianas,
constituidores de uma princesa.
A potencialidade de realizao do amor romntico que foi destacada
como um elemento comum s narrativas Disney das Princesas ecoou entre as
crianas que diziam terem mais gostado das cenas em que os pares
romnticos so evidenciados. Os momentos em que Cinderela era retratada
danando, beijando ou casando-se com o prncipe, por exemplo, aliada ainda
151
152
153
para que
154
155
Bibliografia.
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