Girando Entre Princesas

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

MICHELE ESCOURA BUENO

Girando entre Princesas: performances e contornos de gnero


em uma etnografia com crianas.

(Verso corrigida)
SO PAULO
2012

MICHELE ESCOURA BUENO

Girando entre Princesas: performances e contornos de gnero


em uma etnografia com crianas.

Dissertao apresentada ao Programa


de Ps-Graduao em Antropologia
Social do Departamento de Antropologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de
So Paulo para a obteno do ttulo de
Mestre em Antropologia Social. Esta
uma verso corrigida, o exemplar
original encontra-se disponvel no
CAPH da FFLCH.
De acordo:

_______________________________
Profa. Dra. Heloisa Buarque de Almeida
(Orientadora)

(Verso corrigida)
SO PAULO
2012

MICHELE ESCOURA BUENO

Girando entre Princesas: performances e contornos de gnero


em uma etnografia com crianas.
(Verso corrigida)

Banca examinadora

___________________________________________________
Profa. Dra. Heloisa Buarque de Almeida FFLCH/USP

___________________________________________________
Profa. Dra. Maria Filomena Gregori IFCH/UNICAMP

___________________________________________________
Prof. Dr. Julio Assis Simes FFLCH/USP

Cicera Escoura, pela vida


e Marina Ravazzi, pela coragem de viver.

Agradecimentos

Agradeo, em primeiro lugar, Fundao de Amparo Pesquisa do


Estado de So Paulo, a FAPESP, que desde a Iniciao Cientfica apoiou esta
pesquisa e garantiu sua realizao.
Agradeo ao Daniel e Marina pela preciosa ajuda em estabelecer os
primeiros contatos com as escolas nas quais mantive o trabalho de campo. Do
mesmo modo, agradeo s diretoras, coordenadoras, professoras, funcionrias
e funcionrios das trs escolas aqui destacadas por me receberem em suas
instituies e pela confiana em mim depositada.
Muito especialmente, agradeo s crianas pela interlocuo, pelas
brincadeiras,

pelos

desenhos,

pela

companhia,

pelas

flores,

pela

disponibilidade, pelos sorrisos e pelos lanches compartilhados. s crianas


devo cada linha aqui escrita e serei sempre grata pela ajuda e o interesse delas
em construir comigo este trabalho de escola.
Agradeo s professoras e professores pelas contribuies em minha
formao e neste trabalho. Agradeo Lcia Morales, Ldia Possas, Andreas
Hofbauer e Srgio Domingues da UNESP de Marlia que tanto contriburam
durante minha graduao e, no mestrado, agradeo ao Julio Simes e
Regina Facchini pela ajuda e pelos apontamentos precisos durante o exame de
qualificao, Bibia Gregori pela disposio em participar da banca de defesa
e, muito especialmente, Heloisa Buarque de Almeida que em todos esses
anos tem orientado muito mais do que apenas este trabalho.
s amigas e amigos dos grupos de pesquisas e discusses de gnero
que esto j h tanto tempo compartilhando questes, leituras e inquietaes.
Ao Gustavo Saggese, Bruno Barbosa e Marisol Marini pela parceria no Ncleo
de Pesquisas sobre os Marcadores Sociais da Diferena, o NUMAS; s
companheiras de orientao Renata Mouro, Ane Talita e Marcella Betti; ao
querido Jos Miguel Olivar e Isadora Frana do Pagu; ao Bruno Puccinelli da
UNIFESP; e, ainda, agradeo Anna Paula Vencato pela enorme
generosidade.
Agradeo aos coraes da Rua General Jardim, 660, queridas e
queridos da Ao Educativa que to bem me receberam e me proveram a
lucidez necessria para os meses finais de escrita e insegurana. Agradeo,

principalmente, Famlia 61: Agnes, Dylan, Bianca, Luis, Roberto, Bruna,


Marcel, Claudia, Paulinho, Lena, Leila, Tata, Marilse e Renatinho por tornarem
minhas semanas to mais entusiasmadas.
Agradeo quelas e aqueles que de lugares s vezes to distantes se
aproximaram e tomaram partes de mim, preencheram espaos que
ultrapassaram as barreiras da academia e cujas presenas em mim serviu de
fonte de inspirao para a vida. Agradeo principalmente Angela Alves,
Sandra, Carol Parreiras e Rodrigo Bulamah por deixarem Campinas com uma
cara de lar; ao Robin Rodriguez e Bia DAntona por me fazerem acreditar que
companheirismo pode existir ainda que um pas ou uma floresta tropical nos
separe; e ao Lucas Petroni pela singeleza, tal qual aquela que encontramos
nos sorrisos poticos da Billie Holiday.
s queridas e aos queridos do PPGAS, em especial a turma de 2010
com a qual tive o prazer de compartilhar as mesmas salas, as mesmas aulas,
quartos de hotis, os mesmos prazos esgotados e a criao do cantinho da
Antropologia

na

Bio

naquelas

saudosas

quintas-feiras

de

disciplinas

obrigatrias. Agradeo Marina Barbosa, Lo Bertolossi, Rapha Sabaini,


Natacha Leal, ris Arajo, Jacqueline Teixeira, Juliana Blasi, Ana Flvia Bdue
e caula May Martins. Meus agradecimentos mais carinhosos Milena
Estorniolo e Diana Mateus pelo pouso semanal na capital; Julia Goyat e Nati
Fazzioni pelos melhores puxes de orelha e pelos mais generosos conselhos;
Ana Fiori pelos tantos socorros de leituras e tradues, mas tambm pela
companhia para comentar as novelas; ao Bernardo Machado e Denise
Pimenta pela fora vital, pelo achar de almas, pelo compartilhar de lgrimas e
pelos mais carinhosos abraos; ao Carlos Aquino por aceitar ser meu irmo em
uma noite quente da Amaznia e por nunca mais ter abandonado este projeto
de fraternidade; e ao Jos Agnello pela brecha de vida encontrada, mas pela
desencontrada tambm.
Agradeo muito ao Felipe Bier pela intensa companhia, por ter me
aberto no s as portas da casa, mas tambm seu dia-a-dia comigo, obrigada
pela serenidade, pela perspiccia, pelas msicas e por cada caf tomado sob o
amanhecer da metrpole. Agradeo minha famlia, a cada integrante da
denominao Escoura e Bueno, bem como agregadas e agregados, pela
ansiedade em ver este trabalho pronto e por toda pacincia nesses anos em

que as festas de finais de ano coincidiram sempre com as leituras e escritas de


finais de semestres letivos.
Ao meu pai Waldir por apoiar meus planos mesmo parecendo to
obscuro esse universo todo de tanto estudo e Melissa, minha irm, que
suportou todas as crises de mau-humor e desespero quando os prazos se
esgotavam e que dividiu mais uma vez o quarto com uma irm cheia de livros
empoeirados. Agradeo minha me, Cicera, por tudo aquilo que no se
precisa nominar para saber que preciso agradecer: para ela, todo o meu
amor.
Por fim, agradeo ao Kulando pela coragem de vida com elas e eles
encontrada. Ao despretensioso momento no qual nos reunimos e decidimos
no mais nos separar. Ao Julian, Rodrigo, Chico, Luana, Llia, Du, Thabada,
Serginho e Bris minha gratido descompensada, meu amor incondicional e
minha lealdade neurtica. Obrigada pelas risadas, pela empatia, pela
segurana, pelas conversas na madrugada, pelas mais longas chamadas do
Skype, pelas receitas experimentadas, pelas mesas redondas a cada encontro,
pelos montinhos, pelo abrao no vale de Marlia e por estarem ao meu lado na
dor de perdermos nossa estrela Marina. O corao bate forte? me perguntava
ela em seu ltimo e-mail e mal sabendo que sim, que com ela aprendemos que
sempre devemos ter coragem para o corao bater forte e que no podemos
tolerar nenhuma economia para o eu te amo. Amiguis, obrigada por estarem
comigo nesta empreitada que viver e, principalmente, por transformarem meu
eu em ns.

Laerte Coutinho, 21/03/2009.

Resumo
Olha tia, eu rodo que nem a Princesa era o que dizia uma menininha anos
atrs enquanto girava sobre seu prprio eixo at que sua saia atingisse o ar.
Cinderela era a referncia por ela destacada para construir uma corporalidade
dita de princesa e daquela cena surgiu o desenho desta pesquisa. H mais de
meio sculo Cinderela vem encantando geraes de crianas e, hoje, ao lado
tambm de Branca de Neve, Aurora, Bela, Ariel, Jasmin, Mulan e Tiana formam
famoso time Princesas Disney. Inspirando produtos mundialmente consumidos,
as Princesas entram no cotidiano infantil e se tornam presentes entre os
referenciais para a construo da feminilidade entre as crianas. Buscando
entender a forma pela qual as Princesas so lidas e significadas entre as
crianas, durante um ano convivi com crianas de trs escolas no interior do
estado de So Paulo. A partir de uma etnografia comparativa, entre crianas de
diferentes camadas econmicas, busquei as nuances entre as narrativas das
personagens Disney e as possibilidades de leituras oferecidas por sua
audincia. Iniciando pela diviso proposta pela Disney entre princesas
clssicas e rebeldes, selecionamos Cinderela e Mulan como representantes
destes dois perfis de princesas e levantamos uma anlise em dois nveis:
primeiro o nvel textual e, em seguida, o da recepo. A centralidade do
sucesso conjugal e do amor romntico na qual as narrativas se assentam para
a constituio comum de uma princesa ecoou tambm nas leituras
produzidas pelas crianas. Entretanto, para alm do encontro com um prncipe
encantado, as crianas, durante a recepo, apontavam para um outro e mais
importante critrio para a constituio de uma princesa: o esttico. Mais do que
um prncipe ao seu lado, para as crianas, a princesa precisava era de um belo
vestido, uma coroa e de muita elegncia. Assim, se podemos dizer que as
Princesas so uma importante fonte para o repertrio de gnero entre as
crianas, justamente pela associao entre beleza e glamour que elas se
constituem enquanto cones da feminilidade. Contudo, a interao das crianas
com as famosas personagens da mdia no se limitava posio enquanto
audincia. De espectadoras a consumidoras, as crianas levavam ao cotidiano
escolar uma imensa variedade de objetos estampados com as personagens
conhecidas da TV e do cinema, faziam deles instrumentos para demarcao de
suas identificaes e colocavam as personagens em ao tambm no
parquinho. Entre mochilas, etiquetas, ovos de pscoa, gira-giras, gangorras e
tanques de areias, as personagens miditicas eram inseridas no dia-a-dia das
turmas e ao mesmo tempo em que evidenciavam as fronteiras entre as
meninas e meninos, fornecia tambm brechas para construes e
ressignificaes dos contornos entre masculinidade e feminilidade,
evidenciando, neste texto, a dimenso do gnero que, afinal, se aprende
tambm brincando.
Palavras-chave: Antropologia. Gnero. Crianas. Princesas.

Abstract
Look, I can spin like the Princess said the little girl, years before, when she
spun around her own axis until her long skirt floated in the air. Cinderella was
the reference used by her to build a princess like corporeity, and from that
scene this research was born. For more than half a century Cinderella has been
enchanting generations of children and, today, along with Snow White, Aurora,
Bella, Ariel, Jasmin, Mulan and Tiana, they form the famous Disneys
Princesses team. Inspiring worldwide-consumed products, the Princesses enter
childrens everyday life and become present as a referential for a femininity
construction among children. Seeking to understand the way by which the
Princesses are read and meaning among them, for a year I have lived with
children from three different schools in the state of So Paulo. Using the
comparative ethnography as method, I sought to capture the nuances between
the different Disney characters narratives and the diverse possibility of
interpretation by children of different social backgrounds. Starting by the division
proposed by Disney between the classic princesses and the rebel, we have
chosen Cinderella and Mulan as representatives of two profiles of princesses
and undertook an analysis in two levels: first, a textual one, and, later, one
concerning its reception. The central role of marital success and romantic love
in which the narratives are based on for the construction of a princess type
has found its echo also on the interpretation carried out by the children.
However, beyond the encounter with an enchanted prince, they pointed to
another and more important aspect to the construction of a princess: the
aesthetics. More than a prince by their side, the princess needed a pretty dress,
a crown and lots of charm. Therefore, if we can say that the Princesses are an
important source for a gender repertoire among children, it is precisely by the
nexus between beauty and glamour that they stand as icons of femininity.
However, the interaction of children with the famous characters of the media
was not limited to the position while audience. From spectators to consumers,
the children carried to the daily school a huge variety of objects stamped with
the characters familiar from TV and cinema, made them instruments to
demarcate their identifications and put the characters in action also in the
playground. Among backpacks, stickers, Easter eggs, merry-go-round, seesaws
and sandbox, the media characters were inserted into the day-to-day of classes
and at the same time evidencing the boundaries between girls and boys, also
provided openings for construction of outlines and resignifications between
masculinity and femininity, showing, in this text, the extent of the genre which is
learned also playing.

Keywords: Anthropology. Gender. Children. Princesses.

Sumrio
Introduo .................................................................................................................. 11
Captulo 1
A construo de um caminho. .................................................................................... 16
L em Marlia .............................................................................................................. 21
Aqui em Jundia, na particular. .................................................................................... 28
Aqui em Jundia, na pblica. ........................................................................................ 36
Captulo 2
De Borralheira Guerreira: contornos de feminilidades entre as Princesas Disney ... 43
Princesas e a negociao de feminilidades .................................................................. 47
Princesas, performances e tecnologias de gnero ....................................................... 57
Captulo 3
Do lado da audincia .................................................................................................. 62
Calando o Sapatinho de Cristal com Cinderela. .......................................................... 64
Indo guerra com Mulan ............................................................................................ 87
Captulo 4
Entre coisas e corpos ................................................................................................ 109
Concluso ................................................................................................................. 147
Bibliografia. .............................................................................................................. 156

Introduo
Pode ser que a convivncia com uma me pedagoga que tenha me
trazido o encantamento com o universo da pr-escola. Suas histrias de
crianas espertas, curiosas, carinhosas e por vezes at tristonhas fizeram
sempre parte da minha prpria histria e passaram a compor o meu leque de
interesses. Quando j nas Cincias Sociais me encontrei com esse campo
genericamente chamado estudos de gnero e saa das discusses dos
grupos de pesquisas maravilhada com a ideia de que, afinal, as desigualdades
entre os homens e as mulheres provinham de um esforo social, constitudo e
reproduzido por mecanismos culturais de diferenciao, veio logo a pergunta:
mas como, ento, aprendemos essa diferena?
Da pergunta surgiram meus primeiros investimentos de pesquisa e, em
busca por entender como o gnero era ensinado e aprendido entre as crianas,
no demorou muito para que eu entrasse pela primeira vez em uma escola de
Educao Infantil. O primeiro contato com o campo logo me fez perceber que,
apesar de to pequenas, aos cinco anos as crianas j sabiam muito bem o
que era ser uma menina ou um menino e que as diferenciaes de gnero no
estavam apenas j apreendidas, como, inclusive, eram pelas crianas
articuladas, cobradas e vigiadas no cotidiano escolar.
Entretanto, a presena marcada de uma personagem que fora to
comum na minha infncia e permanecia entre aquelas crianas mesmo duas
dcadas depois de que eu deixara de ser criana virou um motivo de
inquietao: por que Cinderela, a personagem do filme Disney produzido nos
anos de 1950, continuava ali to presente nas vidas e imaginrio das crianas
pequenas? O que fazia de Cinderela uma personagem to interessante a ponto
de sua imagem transcorrer geraes e, ainda, que modelo de feminilidade
Cinderela poderia estar incentivando entre as crianas e qual era o papel da
mdia na aprendizagem do gnero?
Da inquietao surgiu o primeiro contorno desta pesquisa. A ideia
delineada na Iniciao Cientfica, durante minha graduao na UNESP de
Marlia, era compor uma investigao sobre o porqu de Cinderela, um filme
com mais de 60 anos, continuar sendo to familiar s crianas pequenas e
como a personagem servia de referencial para a construo de feminilidades.

11

Fui parar em uma escola de Educao Infantil em Marlia, no interior do estado


de So Paulo e tive que lidar com a tarefa nem to simples de reaprender a me
sujar nos tanques de areia, conhecer tambm os Power Rangers e incentivar
crianas de cinco anos a falarem mais sobre seus prprios desenhos. L
percebi que Cinderela se constitua como uma figura presente no cotidiano e
conhecida justamente porque, como ela, outras personagens familiares do
cinema de Hollywood estampavam a mais variada quantidade de objetos sob a
forma de Princesas Disney.
No mestrado a proposta se ampliou. Percebendo que muitas das
crianas conheciam primeiro as personagens Disney pelos produtos por elas
consumidos para depois se interessarem pelos filmes das quais eram
originrias, a dinmica que fazia das crianas consumidoras a espectadoras e
sendo espectadoras reforavam o consumo se tornou um outro grande foco
investigativo. Para tanto, a busca em entender como Cinderela representava
um importante referencial aos contornos de gnero se estendeu para as
Princesas e, com a marca, para a comparao entre crianas com diferentes
nveis de acesso ao mercado de consumo.
A forma como contornos de feminilidade so construdos, aprendidos,
ensinados e deslocados foi a questo que guiou esta pesquisa. As crianas
surgiram como interlocutoras ainda pouco privilegiadas dentro dos estudos de
gnero, em especial na antropologia, e, por isso, o movimento aqui proposto foi
o de aproximao aos referenciais to comuns entre aqueles/as de pouca
idade para se apontar o que compreendido como o feminino.
Dessa aproximao Cinderela e as Princesas despontaram como
protagonistas dentro de um terreno predominantemente cor-de-rosa, no qual a
expresso do gnero feminino socialmente legitimada e compartilhada.
Assim, tomando esses referenciais como ponto de partida, buscamos entender
quais os tipos de relaes podiam dentre essas personagens da mdia e as
crianas surgir e, ainda, quais marcaes de gnero eram operadas no
cotidiano da pr-escola.
Se, por um lado, a predominncia da marca Princesas parecia conter
uma importante causa para a manuteno da popularidade de personagens
miditicas e, por outro lado, crianas de diferentes classes sociais tinham
acesso desigual ao consumo dos produtos dessa marca, foi ento nessa

12

relao que estruturamos nosso campo emprico. Quatro meses de trabalho de


campo em uma escola da rede pblica e outros quatro meses em uma escola
da rede privada de Educao Infantil foi o ponto de partida para essa etnografia
que, aqui, soma-se ainda com mais os outros quatro meses em que a pesquisa
dava seus primeiros passos em Marlia, na Iniciao Cientfica.
Neste texto apresento crianas, cenas, histrias e falas produzidas em
trs

contextos

diferentes de

interao,

os

quais

sero

detidamente

apresentados logo ao primeiro captulo1. Para tentar garantir o mnimo de


anonimato das pessoas e instituies aqui envolvidas, a escola municipal de
Marlia onde a pesquisa se iniciou ser referida apenas como EMEI e,
mantendo a ordem temporal de trabalho de campo em Jundia (SP), a
instituio privada se torna a partir daqui a escola particular e a municipal
denominada como EMEB.
Ao lado da inspirao etnogrfica, em que o cotidiano das crianas foi
tomado enquanto matria prima para nossa anlise, os filmes das Princesas
que, afinal, motivaram em um primeiro momento minhas idas ao campo, foram
tambm trazidos para a roda de conversa. Assim, nas trs escolas um perodo
do trabalho de campo foi reservado para a exibio e a discusso de dois
filmes das Princesas: Cinderela (1950, Dir. Clyde Geronimi, Hamilton Luske e
Wilfred Jackson) e Mulan (1998, Dir. Tony Brancroff e Barry Cook), a primeira
considerada clssica e a outra rebelde segundo as classificaes da Disney
e princesas que alm de protagonistas de filmes homnimos, se tornaram aqui
protagonistas tambm de conversas e desenhos produzidos pelas crianas.
Durante esses doze meses de trabalho de campo que so trazidos em
pinceladas por este texto, fui rodeada por brincadeiras, pinturas, msicas,
contos encantados e carinhos. O cotidiano na pr-escola, apesar de por vezes
se tornar um tanto repetitivo pelas constantes atividades de alfabetizao,
fundamentalmente colorido e divertido. Por isso, alm de uma constante
preocupao em uma escrita coerente e interessante do ponto de vista
1

Nesta dissertao apresento anlises de dados referentes tanto pesquisa realizada durante
o Mestrado quanto durante a Iniciao Cientfica. A iniciao cientfica foi realizada durante o
curso de graduao em Cincias Sociais na UNESP de Marlia no ano de 2009, contou com
apoio da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, foi orientada pela Profa.
Dra. Heloisa Buarque de Almeida e culminou no Trabalho de Concluso de Curso intitulado
Cinderela de menina!:mdia, consumo, tcnicas e performances corporais na construo do
gnero na infncia.

13

intelectual, dediquei-me tarefa nem sempre fcil de construo de um texto


acima de tudo tambm colorido e divertido, no qual as minhas sensaes em
campo pudessem, de algum modo, estar expressas nas linhas que se seguem.
Do mesmo modo, minha preocupao com a forma na qual as ideias
seriam aqui expressas me leva a mesclar as formas pronominais durante o
texto. Por vez o eu e o ns se misturam e alternam para que,
propositadamente, todos os outros que tantas vezes me acompanharam
nesta investigao possam ser tambm contemplados. Se em momentos
textuais o eu assume a responsabilidade autoral deste trabalho, por vezes
somente pelo ns que as outras vozes podem ecoar por detrs dos
caracteres impressos: crianas, autoras, autores e colegas de trabalho esto
sempre subsidiando as ideias que aqui aparentam to individuais e, por isso,
muitos dos ns se fazem necessrios.
A abertura dessa dissertao se d, no primeiro captulo, com uma
apresentao etnogrfica. Nele retomo as questes que delinearam a escolha
do campo de pesquisa com crianas, aponto as principais inspiraes
metodolgicas deste trabalho e introduzo, ainda, as trs escolas que serviram
de palco para esta etnografia. Neste primeiro captulo, busco mapear o
contexto geral da pesquisa e situar o cotidiano das crianas com quem convivi
pelos doze meses de trabalho de campo.
Em seguida, o captulo dois fruto da proposta inicial de entender as
negociaes de sentidos na esfera textual das Princesas Disney. Nele, a
articulao entre Princesas Clssicas e Princesas Rebeldes tomada como
ponto de partida para a anlise das duas narrativas neste trabalho destacadas:
Cinderela e Mulan. As produes cinematogrficas de 1950 e 1998,
respectivamente, servem de subsdio para levantarmos as hipteses sobre
quais os referenciais de feminilidades estariam dispostos a partir de suas
personagens e protagonistas. Se, por um lado, uma diferena mnima
suposta pela prpria dicotomizao entre clssica e rebelde operada pela
Disney, por outro lado, as continuidades requeridas para que ambas estejam,
contudo, sob a mesma rubrica de Princesas so tambm buscadas. Neste
sentido, a potencialidade de sucesso do amor conjugal emerge como um eixo
destacvel para entendermos o campo no qual a forma de feminilidade mais
geralmente entendida como princesa est inserida.

14

No terceiro captulo os contornos das Princesas so buscados entre as


turmas de crianas. Levado para o nvel da audincia, o texto se recheia de
falas e desenhos produzidos a partir dos filmes Cinderela e Mulan. O
movimento do captulo se faz pela busca dos referenciais de feminilidades que
so pelas crianas destacados a partir das personagens Disney e,
principalmente, procurando entender como os significados trazidos pelos filmes
so lidos, apropriados e modificados pelas crianas. Se pelas narrativas dos
filmes a potencialidade do amor conjugal poderia ser destacada como um eixo
central em que a noo de princesa est assentada, pelas leituras das crianas
outro ponto destacado e, ao lado dos referenciais romnticos e relacionais, o
referencial esttico ganha notoriedade.
J no quarto e ltimo captulo os doze meses de trabalho de campo so
trazidos em cenas do cotidiano das crianas que nos ajudam a pensar a
relao entre elas e os produtos da mdia. O consumo dos objetos e as
brincadeiras inspiradas nas personagens do cinema e da TV se apresentam
enquanto fontes referenciais a partir das quais o gnero colocado em prtica.
Por meio de objetos e performances as crianas vo comunicando e
experimentando as possibilidades de ser a partir de uma matriz de gnero.
Novamente as Princesas entram em cena e, a partir do consumo e das
brincadeiras, se juntam s outras personagens trazidas pelas crianas no
cotidiano escolar para evidenciarem o quanto podem servir de fontes para um
gnero que se aprende brincando.

15

Captulo 1
A construo de um caminho.
Em 2005 Clarice Cohn publicava o livro que seria um dos marcos para o
reconhecimento da rea de estudos com crianas enquanto um campo legtimo
nas Cincias Sociais brasileiras. O livro, intitulado Antropologia da criana
compunha uma coleo didtica que tinha por objetivo fornecer os primeiros
passos para as Cincias Sociais e ganhava notoriedade no campo editorial
das Cincias Humanas. Naquele mesmo ano de 2005, eu era uma aluna
ingressante do curso de Cincias Sociais no interior do estado de So Paulo
que encontrava o livro de Cohn em uma dessas prateleiras de Sociologia em
uma livraria de Shopping Center.
Fosse pela curiosidade inicial devotada para todo o campo das Cincias
Sociais, ou fosse pela aparente praticidade didtica da publicao, o livro logo
ganhou minha ateno e naquele mesmo ano as questes gerais desta
pesquisa comeavam a se delinear. Tempos depois, j no grupo de estudos
Cultura e gnero coordenado pela professora Ldia Possas na UNESP de
Marlia, meu interesse pelas pesquisas com crianas somou-se ao interesse
pela intensa produo acadmica dos estudos de gnero e, desde ento,
entender as relaes entre feminilidades e masculinidades entre crianas
tornou-se meu mote investigativo.
Enquanto, por um lado, os estudos de gnero se apresentavam como
um campo interdisciplinar bastante consolidado, por outro lado, a antropologia
da criana, tal como Clarice Cohn concebia, se mostrava imersa em meio ao
processo de reconhecimento terico e metodolgico nas Cincias Sociais.
Apesar de Philippe Aris (1981) destacar que uma noo especfica de
criana construda a partir o sculo XVI tendo como base a noo de um
sentimento da infncia requerida para a solidificao tambm da noo de
famlia nuclear, no Brasil recente o reconhecimento da criana2 enquanto,
2

Segundo os termos do Estatuto da Criana e do Adolescente, a categoria criana definida


como uma categoria de idade, na qual se incluem indivduos de 0 a 12 anos. A classificao
dos indivduos baseada em uma noo de ciclo de vida e dividida por categorias etrias
rgidas discutida e problematizada mais detidamente por DESTRO DE OLIVEIRA, G. e
PRADO, T., 2010. (DESTRO DE OLIVEIRA, Glaucia S. ; CASTRO, T. P. . Por uma
Antropologia do curso da vida. In: 27 Reunio Brasileira de antropologia, 2010, Belm (PA). site
do evento, 2010.)

16

de fato, um indivduo de direito: apenas com a promulgao do Estatuto da


Criana e do Adolescente em 1990 foi estabelecido o reconhecimento da
criana como sujeito de direitos.
Como argumenta Cohn, to recente quanto o reconhecimento jurdico,
tambm recente o reconhecimento das crianas enquanto sujeitos de ao
social. Na antropologia, o interesse pelo cotidiano de crianas e pela
construo de categorias sociais sobre elas referidas datam ao menos das
pesquisas de Margaret Mead (1932) em Samoa e na Papua Nova Guin nas
dcadas de 1920 e 30. O interesse de Mead em comparar categorias etrias
entre populaes distintas estadunidense e relativizar as noes de infncia e
adolescncia forneceram, ao mesmo tempo, uma centelha metodolgica para
pesquisas com crianas.
Tendo estas pesquisas como uma fonte de inspirao, a Antropologia
da Criana de Clarice Cohn busca se firmar como um campo especfico de
pesquisas que, articulando questes fundamentais da disciplina antropolgica,
tal como a construo da noo de pessoa em contextos culturais distintos,
traz a criana como objeto de anlise.
O que ser criana, como elas vivem, pensam e so pensadas em um
contexto social especfico so questes centrais para Cohn que, ainda que
buscando desvencilhar-se de uma ciso entre um universo adulto e um
universo infantil, ala as diferentes e possveis significaes de infncia como
foco de anlise. Em suas pesquisas, as crianas so assumidas como
interlocutoras no processo criativo de cultura e conhecimento. Cohn empenhase em demonstrar as crianas no apenas como reprodutoras dos sistemas
simblicos nos quais esto inseridas, mas, principalmente, como produtoras de
relaes e significados culturais.
Entender a infncia ou o que ser criana no so questes levadas a
cabo nesta pesquisa. No assumimos um compromisso com as questes
tericas levantadas pela antropologia da criana e tampouco buscamos
destacar elementos que dem s crianas um estatuto diferenciado diante de
outros atores sociais. Como destacado por Christina Toren (2010), partimos do
pressuposto de que as crianas esto, como qualquer pessoa, envolvidas em
um universo simblico, no qual e a partir do qual aprendem, criam e recriam
sentidos e relaes.

17

Deste modo, no defendemos a ideia de que haveria algo de especfico


como uma cultura ou culturas particulares s crianas, mas, ao contrrio,
entendemos que, como qualquer outro sujeito social, as crianas participam do
empenho geral e cotidiano de produzir e reproduzir os significados culturais
compartilhados por uma sociedade. Assim, o intento aqui assumido investigar
os modos como significados sociais relativos s distines de gnero so
criados e operacionalizados, e no como as categorias infncia ou criana
so socialmente construdas. a partir da perspectiva de diferentes crianas
de diferentes classes sociais que buscamos entender como referenciais de
feminilidades e masculinidades entram em suas vidas e como elas, a partir
deles e com eles, estabelecem suas relaes cotidianas.
No tomamos as crianas como objetos de nossa anlise, mas elas so
interlocutoras da investigao aqui proposta. Nesse sentido, a forma como este
trabalho se edificou deve muito mais a trabalhos etnogrficos com crianas
que, assim como o de Maria Filomena Gregori (2000), buscam responder
questes sociais mais gerais a partir das relaes estabelecidas com e entre
crianas. Por este motivo mesmo, se faz to presente nesta pesquisa as
relaes construdas entre as crianas nos contextos de socializao, no
apenas no cotidiano escolar da sala de aula mas tambm, e principalmente, no
espao dos parques e nos momentos de brincadeiras.
Contudo, apesar de nos restringirmos a uma pesquisa com crianas e
no incluirmos uma anlise sobre crianas, as pistas metodolgicas fornecidas
por Cohn3 deram o pontap inicial de todo o trabalho que se segue. Partimos
da ideia de que as crianas tambm so produtoras de cultura e, portanto,
interlocutoras legtimas no processo de construo do conhecimento (COHN,
2005).
A voz privilegiada nesta pesquisa foi a voz das crianas e, assim como
destaca Zeila Demartini (2002), seus relatos so analiticamente validados
como seria com qualquer outra interlocuo antropolgica. Ainda que no
compartilhemos a sugesto de que mtodos e tcnicas especficas necessitem
ser inventadas para pesquisas com crianas, entendemos que assim como em
qualquer trabalho de campo as melhores estratgias para a aproximao com
3

preciso ainda ressaltar que o trabalho de Cohn busca congregar as duas modalidades de
pesquisa (com e sobre) crianas, no se restringindo a uma delas.

18

nosso campo emprico e para a construo de um material de pesquisa so


aquelas nas quais as atividades cotidianas das/os nossas/os interlocutoras/es
sejam privilegiadas.
Deste modo, alm da observao participante, das conversas informais
e dos relatos das crianas, os desenhos (to comuns na pr-escola) foram
utilizados na composio do material de anlise. O uso de desenhos em
pesquisas com crianas no em si uma novidade metodolgica. Margaret
Mead (1932) em seu trabalho com crianas na Nova Guin j fazia dos
desenhos uns dos principais instrumentos de pesquisa em 1928.
Dentre as pesquisas recentes, Flvia Pires (2007) fez dos desenhos um
importante instrumento para complementar a observao participante e, assim,
tanto desenhos livres como desenhos produzidos a partir de temas por ela
sugeridos entraram na composio da anlise. Entretanto, como destaca a
autora, a formao antropolgica no nos fornece mtodos para analisar os
traos desenhados, como talvez aconteceria entre as anlises mais
psicolgicas. Por isso, mais importante que a produo de desenhos a
produo de falas a partir deles, as quais, essas sim, podem ser por cientistas
sociais tomadas como objetos de anlise.
Mrcia Gobbi (1997; 2002) tambm faz apropriaes de desenhos em
suas pesquisas com crianas bem pequenas 4 e, assim como Pires, destaca
os desenhos comentados como um objeto de anlise. Para Gobbi, a
conjugao entre desenho e oralidade pode ser tratada como um documento
de pesquisa que muito tem a dizer sobre um contexto histrico e social, ou, em
outras palavras, que os desenhos comentados so, afinal, textos que podem
ser lidos, olhados e sentidos.
Seguindo essas pistas metodolgicas, delimitamos ento o trabalho de
campo com crianas de diferentes instituies de ensino. Como o currculo
nacional de educao confere um apreo aos contedos escolares a partir do
Ensino Fundamental, supomos que com crianas menores haveria mais
espao para a observao em momentos fora das aulas e, assim,
concentramos nossos esforos de pesquisa em trs diferentes Escolas de
Educao Infantil.
4

O termo crianas bem pequenas por ela utilizado se refere s crianas de 0 a 6 anos de
idade, expresso que corresponde tambm ao recorte de crianas ainda no alfabetizadas.

19

Mantendo um planejamento iniciado em 2009, ainda durante a Iniciao


Cientfica, estive por quatro meses em cada uma das trs escolas, convivendo
em uma mdia de trs dias por semana com uma turma de crianas do grupo
de cinco anos, o ltimo grupo etrio de cada instituio. Durante cada perodo
de pesquisa mantive a observao participante como principal metodologia de
investigao, procurando construir e manter uma relao de proximidade com
as crianas e me inserindo no cotidiano delas.
A cada dia de trabalho de campo eu chegava s escolas no mesmo
horrio que as crianas. Encontrava com elas j nas filas e corredores que
depois nos levariam s salas de aulas. Compartilhava a rotina escolar e, assim,
dividia os mesmos espaos de circulao das turmas que acompanhei durante
esse um ano: ptios, halls, salas, parques, refeitrios e brinquedotecas se
tornaram ambientes familiares durante os meses que se passaram. Assisti s
aulas, brinquei nos tanques de areia, comi bolos imaginrios e comi as
merendas de verdade tambm. Na rotina diria da Educao Infantil fui aos
poucos me familiarizando e buscando as brechas nas quais encontrava a
liberdade para conversar com as crianas sem atrapalhar as atividades
propostas pelas professoras das turmas.
Somada observao, realizei ainda um perodo de discusso sobre
dois filmes5 das Princesas, quando, depois de lhes assistirmos, as crianas
criaram desenhos comentados sobre eles e compartilharam suas percepes
sobre as histrias e as personagens Disney. Partindo da noo de que um
texto miditico, como um filme, no completamente fechado, ou seja, que
pode estar sempre sujeito a diferentes leituras e interpretaes (HALL, 2003),
foi em busca dos significados produzidos pela audincia das Princesas que nos
deslocamos e, assim, procuramos entender como se dava a relao entre os
referenciais de gnero presentes em filmes como Cinderela e Mulan e as
interpretaes das crianas.
De uma Escola Municipal de Educao Infantil (EMEI) de Marlia, onde a
pesquisa se iniciou, a uma Escola Municipal e outra da rede privada de ensino
de Jundia, onde a pesquisa tomou corpo de um mestrado, o material de

Os filmes Cinderela de 1950 e Mulan de 1998 foram os filmes escolhidos para compor a
anlise da pesquisa. Trataremos deles mais a frente, quando discutiremos a relao das
crianas com as Princesas Disney.

20

campo produzido nesses doze meses de pesquisa se divide entre relatos e


descries registradas em trs cadernos de campo e em 179 desenhos
produzidos e comentados pelas crianas.

L em Marlia
Em 2009, a mais de 400km de distncia de So Paulo, essa pesquisa
comeava. Era o meu ltimo ano da graduao em Cincias Sociais e ao
mesmo tempo minha iniciao no trabalho etnogrfico. Embora eu tivesse em
mos um bom planejamento das etapas da pesquisa e levasse na minha
bagagem terica uma considervel proporo da discusso sobre etnografias
com crianas, a dimenso do impondervel, to discutida na antropologia, se
mostrou logo na minha tentativa de entrada no campo.
Em Dezembro de 2008, antes do trmino do perodo letivo e a partir de
uma colega graduanda em Pedagogia, consegui fazer um contato na EMEI em
que esperava realizar a pesquisa. Naquele momento, fui atendida pela vicediretora da Unidade Escolar que, sem demonstrar muito interesse, recomendou
que eu voltasse somente em Maro de 2009 depois do recesso, uma vez que
assuntos assim, segundo ela, no poderiam ser resolvidos com tanta
antecedncia.
Seguindo sua orientao, j na primeira semana de Maro do ano
seguinte retornei a escola. Planejei me apresentar, apresentar a pesquisa e
logo saber quando poderia iniciar o trabalho de campo, mas, para minha
frustrao, o planejamento no funcionou. Aps me apresentar para Silvia 6, a
coordenadora da escola, fui logo informada que no poderia iniciar a pesquisa
naquele ms. Tendo sido naquela poca aprovada a lei do estgio 7 em
mbito federal, as prefeituras estavam ainda adaptando-se s novas medidas
e, por isso, Silvia seguia as orientaes da Secretaria Municipal de Educao
de Marlia de aceitar o incio das atividades de estgio na escola somente
depois que tudo estivesse regulamentado e acertado.
De nada adiantava argumentar que eu no estava procura de um
estgio, ao contrrio, que eu queria me vincular escola enquanto uma
6

Os nomes dos sujeitos da pesquisa foram trocados por pseudnimos escolhidos


aleatoriamente.
7
LEI N 11.788, DE 25 DE SETEMBRO DE 2008

21

pesquisadora e que, inclusive, me disponibilizava ao servio voluntrio ali


dentro. S a partir de abril, insistia Silvia. No sei ao certo definir se este
primeiro encontro com Silvia fora marcado por uma sensao de indisposio
ou por um temor em desobedecer as resolues hierarquicamente impostas
sobre a escola. De todo modo, aliada a essas questes estava ainda minha
fcil associao com a figura das estagirias, to comuns em uma cidade com
dois cursos de graduao em Pedagogia, e, por isso, voltei naquele dia para
casa com minhas expectativas de iniciar o trabalho de campo completamente
frustradas.
Este episdio foi crucial para que eu pudesse compreender que fazer
pesquisa em instituies exige um tipo de esforo diferente daquele em
contextos mais informais. Baseada na diviso hierrquica, a instituio escolar
responde a uma lgica de funcionamento burocrtico na qual as decises
dificilmente so tomadas individualmente ou ao menos por pessoas que no
estejam em posies de comando na hierarquia. Assim, no deveria ter sido
uma surpresa que a autorizao para minha permanncia dentro da escola
tivesse alguns entraves.
Valendo-me ento dos mesmos mecanismos do funcionamento
institucional, procurei pela via burocrtica conseguir a autorizao para realizar
a pesquisa. Com a orientao e ajuda de um amigo que participava do grupo
Cultura e Gnero da UNESP e era tambm funcionrio da prefeitura de
Marlia, consegui uma autorizao da Secretaria Municipal de Educao para
realizar a pesquisa, que, ao mesmo tempo, me exclua dos trmites da lei do
estgio e dava coordenadora da EMEI a segurana institucional para me
aceitar.
Com a autorizao em mos e novo encontro marcado, parti novamente
para a escola procura de Silvia. Desta vez nada mais lembrava a conversa
manca que tinha ali se estabelecido semanas antes. Silvia queria ouvir sobre a
pesquisa, j tinha recebido uma notificao sobre a autorizao da Secretaria
e, muito mais tranquila, estabelecia comigo as manhs que eu poderia
acompanhar a turma do grupo de cinco anos. Dois dias depois, era dia, enfim,
de trabalho.
A apreenso por no saber como eu seria recebida, foi logo dissipada
com a reao da diretora, da vice-diretora e da coordenadora. Muito receptivas,

22

todas queriam saber sobre a pesquisa, qual o curso eu fazia e de onde eu


vinha, queriam se certificar de que eu era uma boa menina e no
representaria um empecilho nem um perigo para a administrao e para as
crianas da escola. No pareciam incomodadas com a minha presena e
minha disposio em ajudar se tornou um grande atrativo, principalmente em
tempos de falta de estagirias.
O meu posicionamento como pesquisadora-ajudante logo se tornou um
importante instrumento de troca, fazendo-me ser acolhida nos espaos da
escola por meio da ideia de que eu estava l para ajudar: eu poderia
pesquisar, desde que, em troca, desse uma mozinha. Assim, era como se
esse sistema de trocas recprocas me permitisse a criao de alianas dentro
da escola e laos de confiana com as educadoras, caso bastante notvel em
relao Joana, a professora da turma.
No momento em que fomos apresentadas, no primeiro dia do trabalho
de campo, Joana, diferentemente das outras educadoras da escola,
demonstrou pouca satisfao em me ver. Andando em direo ao ptio
enquanto eu explicava os objetivos da pesquisa, a professora no dava sinais
de estar interessada no que eu tinha para dizer. Insegura com a situao,
continuei falando sobre o projeto, sobre a Cinderela e sobre o quanto eu estava
interessada em observar as crianas. Foi ento que, parada diante das
crianas no ptio, ela finalmente retrucou: mas voc no vai mudar a minha
aula, n?.
Nesse instante percebi o teor daquele aparente impasse. O receio de
Joana era que eu, assim como faziam algumas das estagirias, interviesse em
suas aulas e no trato cotidiano com as crianas. Uma vez mais o meu lugar em
campo se deslocava para a figura da estagiria e uma vez mais, tambm, eu
tinha que concentrar meus esforos para desfazer a ambiguidade. Em todos os
primeiros encontros com as professoras das turmas das outras escolas
dediquei-me em explicitar que o foco da pesquisa estava na relao com as
crianas, delas entre si, delas comigo e delas com as Princesas e que, por
isso, questes sobre metodologias de ensino ou sobre desempenho
pedaggico fugiam ao escopo desta investigao.
Entrar em uma escola desarmada de qualquer crtica prvia sobre o
ensino formal ou sobre as teorias que o sustentam mostrou ser um

23

posicionamento imprescindvel para minha aceitao e as generosas relaes


estabelecidas com as educadoras. Estando, afinal, em uma instituio cuja
organizao est baseada no poder e responsabilizao das pessoas adultas
sobre as crianas, qualquer indisposio com as educadoras poderia colocar
em risco minhas tentativas de aproximao com as crianas. Deste modo,
finalmente, deixar claro que o principal objetivo da minha presena naquele
ambiente era poder me relacionar com as crianas e observar tambm como
elas relacionavam-se entre si tornou-se uma ao fundamental em campo.
Ressalva feita, Joana mudava at o tom de voz em nossa conversa.
Acrescentada ainda minha disponibilidade para a ajuda no cotidiano da escola,
a professora transformou sua postura comigo e, logo em seguida, me
apresentava como a tia Michele para a sua turma. Daquele momento em
diante, era hora de conhecer as crianas do pr.
Entre o centro e a rea universitria de Marlia, a escola estava
localizada em um bairro residencial que tinha como via de acesso uma das
principais avenidas da cidade, onde clnicas mdicas, bares e restaurantes,
condomnios de prdios de alto padro, academias, agncias bancrias e um
dos maiores clubes recreativos de Marlia formavam a paisagem. Ao mesmo
tempo, do lado oposto grande avenida, a rea em declive do bairro escondia
uma grande quantidade de ruas residenciais de onde vinham as crianas da
EMEI.
Casas pequenas, simples e feitas de madeiras compunham a rea mais
popular do bairro. De onde as crianas vinham os carros se tornavam poucos
perto da quantidade de bicicletas e pedestres; os pontos comerciais se dividiam
entre os sacoles de hortalias, padarias e os botecos sempre muito
frequentados; ao entardecer as ruas eram tomadas por vizinhas que se
reuniam nas caladas portando suas cadeiras de varanda e a noite eram os
trailers de lanches feitos na chapa que se tornavam o ponto de encontro e
sociabilidade.
Fosse por suas roupinhas surradas, desbotadas e aparentemente de
segunda mo, ou fosse pelos chinelinhos de plstico e pelo material escolar
modesto, a maioria das crianas da Tia Joana demonstrava vir de famlias com
pouco poder aquisitivo e, consequentemente, de consumo. De filhas de
manicures, filhos de operrios da indstria alimentcia local ou netos de

24

catadores de materiais reciclveis, a turma da creche pouco acesso tinha aos


produtos to popularizados pela mdia, como discutiremos frente.
Mas se um dado comum ali na EMEI era o baixo poder de consumo das
crianas, por outro lado, as crianas da creche compunham um heterogneo
leque de cores e fisionomias. Com crianas e tonalidades de peles muito
diferentes, a princpio no parecia que a cor pudesse sugerir delimitaes de
diferenas entre as crianas, ao contrrio, essa no parecia ser uma questo
para elas quando se reuniam todas para correr e brincar.
Depois de levadas at o porto da escola por familiares mais velhos, as
crianas se dirigiam todas para o ptio central. Dentre aquelas ainda
sonolentas com o horrio matinal e aquelas que tratavam j de estabelecer os
primeiros corredores de pega-pega do dia, as crianas se concentravam sob a
grande cobertura da escola. Amontoadas em grupos referentes s turmas as
quais pertenciam, as crianas esperavam suas professoras virem busc-las.
Na primeira vez em que eu as vi me assustei em perceber o quo
pequenininhas eram as crianas da EMEI. Fiquei em um canto, tentando me
esconder e, ao mesmo tempo, entender toda aquela agitao.
Sem saber muito bem para onde ir e o que fazer, fui para perto de Joana
tentando memorizar os rostinhos que se aglomeravam ao seu redor. Minha
presena, por essas alturas, j provocava a curiosidade das crianas fazendo
surgir, por vezes ou outras, um oi tia! vindo do ptio. A presena da
professora parecia indicar que era hora de parar de correr, pois bastou ela se
aproximar para as crianas tomarem o seu rumo e organizarem-se em filas:
uma de menino e outra de menina. Ao lado, eu j podia reconhecer outras
trs professoras, vestidas com camisetas com o emblema da prefeitura,
formando suas respectivas filas.
Depois de contarem de um a dez, orarem para o Papai do cu e
rezarem o Pai Nosso em coro, as crianas seguiram a professora para a sala
de aula. Apertada e pouco ventilada, a salinha revezada por duas
professoras durante o perodo da manh: Joana fica com as crianas do Infantil
II, de cinco anos, at a hora do lanche e Ftima com as crianas do Infantil I,
de quatro anos, depois da refeio. No revezamento, enquanto as turmas no
estavam na sala de estudo, estavam no parque: o ambiente preferido das
crianas.

25

De modo geral, a rotina das crianas permanecia sempre a mesma:


chegavam, organizavam filas, rezavam, faziam as atividades na salinha,
lanchavam e brincavam. Por motivos externos, a rotina s vezes era alterada
devido a datas comemorativas ou eventos especiais, quando as atividades das
crianas eram modificadas para comportarem ensaios de dana, de recitao
de poema ou de desfiles.
Muito rapidamente as crianas se aproximaram de mim. Apesar de me
reconhecerem enquanto uma autoridade perto delas, no sei se devido a eu
ser maior que elas, ou devido posio de tia que Joana me institua, ainda
assim eu procurava no ser associada como uma Tia normal: eu brincava
com elas, ficava sabendo das travessuras e no brigava, no dava bronca e
no colocava de castigo como a Tia Joana fazia. Em poucos dias de trabalho
de campo, comecei a receber flores colhidas no caminho escola, abraos
calorosos na sala de aula e oi Tia quando caminhava pela rua: era o que
Flvia Pires (2007), em sua pesquisa com crianas em Catingueiras, na
Paraba, chamou de relao de cumplicidade e confiana.
Para a autora, uma das grandes dificuldades na realizao da pesquisa
antropolgica com crianas reside na distncia entre o estatuto da criana e o
estatuto do adulto: uma ciso geracional que estabelece comportamentos
esperados diferentes entre uma criana e um adulto. Enquanto, por exemplo,
de uma criana espera-se que ela mantenha-se comportada e respeitosa frente
autoridade do adulto, de um adulto espera-se que ele no deixe as crianas
fazerem muita algazarra ou que, pelo menos, coloque ordem na baguna
quando for preciso. (PIRES, 2007, p. 231). Assim, ser adulta e pesquisar com
criana, de certo modo, foi assumir o desafio de cambalear entre esses dois
estatutos, procurando, todavia, no acion-los.
Quando a pesquisa, por sua vez, transcorre dentro de uma escola, a
conquista da relao de cumplicidade e confiana entre uma pesquisadora
adulta e as crianas ainda mais difcil de ser alcanada, pois uma das
particularidades do ambiente escolar justamente a institucionalizao da
autoridade adulta. Alternativa aos possveis impasses dessas relaes adultocriana, como destaca a autora, surge a Tia diferente. Em seus termos,
imprescindvel ressaltar que meu intento no era tornar-me nativa mas, sim,
ser assimilada pelas crianas como uma adulta diferente. Uma adulta que

26

interage com elas, seja brincando, seja conversando, seja discutindo. (PIRES,
2007, p. 234). Ser a Tia Michele no era ser como as outras tias, era ser
diferente, era assumir uma posio de quem estava ali para aprender com elas,
e no ensin-las.
Ainda que todos meus primeiros encontros tivessem sido marcados por
explicaes sobre meus objetivos de pesquisa e os meus meios de
investigao, tanto em relao s educadoras como com as crianas no
primeiro dia de aula, por raros momentos eu sentia que minha posio ali
dentro da instituio era de pesquisadora. Por um lado, eu era reconhecida
pelas crianas como uma tia meio diferente, que brincava com elas, que no
brigava quando via alguma travessura e no cobrava atividades escolares. Por
outro lado, entre as educadoras, a despeito de minhas intenes de pesquisa,
eu era reconhecidamente a estagiria da escola. Fosse pela minha aparncia,
feminina e jovem relacionada ao trato com as crianas das estudantes de
pedagogia, fosse pelo excesso de ajuda que a professora me solicitava, de
organizaes de pastas a colar diariamente as tarefas nos cadernos das
crianas, ou fosse at por materiais de orientao pedaggica guardados para
mim depois de reunies de coordenao com bilhetes indicando para a
estagiria Michele, minha posio como pesquisadora ficava sempre em
segundo plano para elas.
Certa vez, quando acompanhava Joana na entrada para a salinha fui
por ela informada, descontraidamente, que eu havia sido emprestada para
Ftima, a professora da turma de quatro anos. Sem dar muitas explicaes, me
dizia apenas que a outra professora estava precisando de ajuda e que, por
isso, ela tinha aberto mo de mim naquele dia. Confusa fui ao encontro de
Ftima. A professora me recebeu feliz, com um sorriso de alvio no rosto e me
agradecendo pela ajuda. Naquele dia, passei todo o perodo com as crianas
de sua turma no parque, enquanto a professora, aproveitando a ajuda da
estagiria, organizava os materiais de avaliao das crianas.
Alis, neste processo de pesquisa/trabalho, no qual eram exigidas
atividades extra-classe de mim, durante o horrio de aula eu pouco ficava perto
das crianas da turma da Tia Joana. Entretanto, essa mesma posio informal
de estagiria me possibilitava, em contrapartida, ficar com as crianas durante

27

todo o tempo de parque enquanto eu ajudava a professora olhando as


crianas um pouquinho.
Naqueles metros quadrados cheios de areia as crianas estavam longe
das broncas adultas e soltas para organizarem-se segundo suas prprias
regras. Com os ps cheios de areia e muita energia dispensada, as crianas
faziam do parque mais um espao em que o gnero era acionado. As divises
entre as brincadeiras de meninas e as brincadeiras de meninos, sempre
mantidas com muito empenho das crianas, emergiu como uma importante
dimenso para as diferenciaes de gnero no cotidiano escolar e, por isso,
somaram-se s questes principais desta pesquisa. Foi entre gira-giras,
gangorras, tanques de areia e balanos aos ps das rvores que a pesquisa
mostrou sua riqueza: era no parque, longe dos olhares e broncas das adultas
educadoras, que a pesquisa revelou uma maior amplitude e muitas mais
pginas de caderno de campo.

Aqui em Jundia, na particular.


A dificuldade burocrtica para o incio da pesquisa de campo em Marlia
foi o principal motivo para que o trabalho de campo desta pesquisa durante o
mestrado ocorresse em Jundia, cidade a 50km de So Paulo. O receio de que
novamente eu encontrasse complicaes para a entrada em campo fez com
que eu elegesse a minha cidade de residncia como lcus das investigaes.
De famlia residente em Jundia h mais de uma dcada e filha de pedagoga
da rede municipal de educao, eu buscava encontrar na cidade a segurana
que minha rede de contatos podia me proporcionar para entrar em campo. E
funcionou.
Foi a partir da indicao de uma amiga, jundiaiense e frequentadora dos
mesmos nibus fretados que me levavam semanalmente USP, que consegui
o acesso segunda escola desta pesquisa. Autorizada pela diretora, tia de
minha amiga, segui, na escola privada, a mesma estrutura j antes
experimentada de trs incurses semanais durante quatro meses de trabalho
de campo com as crianas de cinco anos, a chamada turma do pr. Contudo,
entrando em campo, as dinmicas internas das turmas me levaram ainda a
estend-lo tambm para a turma vespertina do grupo de cinco anos, o que,

28

ento, ocasionou uma rotatividade das incurses a campo entre os dois


perodos de aulas.
As segundas, quintas e sextas-feiras meu destino era a escola.
Localizada em uma rea nobre da cidade de Jundia, em uma rua central de
alto valor imobilirio, onde se localizam tambm faculdades, diversos
restaurantes,

casas

noturnas,

lojas

de

roupas,

supermercados

e,

principalmente, muitos condomnios residenciais, a escola destaca-se por


atender essencialmente crianas moradoras dessa mesma regio central.
Todas as manhs o mesmo burburinho se repetia. Dos carros parados
nas caladas da rua desciam as crianas. Outras tantas vinham de mos
dadas com mes, pais, avs e avs. Uniformizadas de camisetas brancas e
shorts, calas e agasalhos verdes, as crianas iam se apinhando no hall da
escola. O hall era um dos poucos espaos da escola que podiam ser vistos da
rua. Era o ambiente de apresentao da instituio, fosse porque era o
primeiro a ser adentrado, como tambm por ser aquele que introduzia a
marca da escola: a quantidade de objetos com o emblema da escola
espalhados pelas salas da administrao e da direo geral, ali localizadas,
no deixava dvidas de que mais do que uma instituio de ensino, a escola
era tambm uma empresa, com um nome e uma imagem a zelar no mercado.
Por detrs da fachada tambm verde e das reluzentes portas de vidro as
turmas do infantil se reuniam. Estrategicamente, elas no se encontravam
com as crianas e adolescentes do Ensino Fundamental, nem to mais velhas,
mas notadamente muito maiores que elas, que com uma hora de antecedncia,
j haviam comeado as atividades na escola. Depois de recepcionadas por
uma funcionria da escola sempre com um grande sorriso e um bom dia
seguido por seus primeiros nomes, as crianas eram levadas para a rea da
Educao Infantil por suas professoras.
Das mais variadas cores e modelos, as mochilas de rodinhas deslizavam
pelas rampas, capotavam pelas escadas e se trombavam enquanto as crianas
desciam at a ltima parte do terreno declive da escola. L embaixo, depois do
primeiro prdio que abrigava a administrao, a sala de informtica e as salas
de aulas do fundamental, depois da lanchonete, da quadra e do parque, o
prdio da Educao Infantil abria-se quase que como um universo paralelo e
isolado dentro da escola, onde at mesmo as paredes parecem evocar a

29

proteo daquelas crianas, afastadas dos possveis perigos da adolescncia


residente no prdio ao lado.
A primeira sala que se via no prdio do infantil era a da coordenadora
pedaggica, aquela responsvel por toda a orientao, acompanhamento e
avaliao dos mtodos de ensino, das atividades propostas e do desempenho
das crianas. Em seguida um ptio era formado pelo entorno de cinco salas de
aulas, uma sala de recreao e vdeo, um banheiro para as adultas e outros
dois banheiros infantis, divididos entre feminino e masculino e encobertos
por uma parede cuja base servia de bebedouro coletivo com vrias torneiras.
Apesar de ao centro deste ptio estar inscrita no cho uma grande e colorida
amarelinha8, pouqussimas vezes presenciei as crianas dela se utilizarem em
suas brincadeiras. Ao contrrio, o ptio no era muito requisitado para as
brincadeiras que, na maior parte das vezes, eram realizadas dentro das salas
ou dentro das grades do parque.
Mas brincar tambm no era o foco principal da escola, ao menos no
para o pr. Dentro da rotina escolar da turma, apenas meia hora, das quatro
horas que as crianas ali permaneciam, era dedicada s brincadeiras. No que
no houvesse outros momentos de descontrao entre as crianas, mas
quando eles ocorriam era fora do perodo de aula, ou tinham algum intuito
pedaggico, como nas brincadeiras orientadas pelas professoras de ingls e
espanhol, ou em momentos que as crianas roubavam para si um tempinho
entre uma e outra atividade e brincavam enquanto no chamavam a ateno
da professora.
Apesar do termo Educao Infantil pressupor, segundo as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educao Infantil 9, um perodo para o
desenvolvimento ldico das crianas, deixando para o Ensino Fundamental o
papel alfabetizador e de propagador dos contedos curriculares, havia, ali, uma
supervalorizao do ensino e, com ele, um grande empenho de alfabetizao
despendido sobre as crianas. No era de se espantar, j ao incio do segundo

Amarelinha uma brincadeira muito conhecida das crianas que se baseia na habilidade da
criana pular quadros marcados no cho (eles prprios chamados tambm de amarelinha)
com apenas um p e, sem se desequilibrar ou apoiar-se com outro membro, resgatar algum
objeto deixado em um desses quadros.
9
Disponvel em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/eduinfpolit2006.pdf

30

semestre do pr, crianas lendo e escrevendo inclusive em letra cursiva,


considerada ainda mais difcil sem muitas dificuldades.
De modo geral, a escola exigia uma disciplina bastante rgida das
crianas. Somente no momento da recreao que elas estavam livres para
brincar e conversar o quanto e como quisessem. No mais, nem na hora do
lanche elas ficavam soltas. Diariamente cumpriam a mesma rotina disciplinar:
depois que chegavam, retiravam da mochila a pasta com a tarefa de casa
diria e a agenda, colocavam-nas sobre a mesa da professora, acomodavam a
mochila em um canto da sala, pegavam o estojo do armrio, aquelas que
comprariam o lanche da cantina encomendavam e pagavam os pedidos,
sentavam-se nos lugares pr-determinados pela professora e esperavam a/o
ajudante do dia (determinada/o pela rotatividade da lista de nomes das
crianas da turma, por ordem alfabtica) entregar o livro didtico para iniciar as
atividades propostas pela professora.
Depois

de

certo

perodo

de

atividades

era

hora

do

lanche:

entusiasmadas, as crianas guardavam os livros e os estojos, resgatavam suas


lancheiras do meio bagunado de bolsas, estendiam toalhinhas sobre suas
mesas de estudo e ajeitavam os lanches, os trazidos de casa e os
encomendados na lanchonete da escola. Quando tudo parecia ajeitado, a
professora, ou a auxiliar que normalmente a substitua no intervalo da hora do
lanche, iniciava a msica e a prece que autorizava o incio da merenda: Bless
you lord, bless you lord, our food, our food. Make me strong, make me good,
amen. Papai do cu, muito obrigado pelo lanchinho que vamos comer. D igual
a quem no tem. Cada um com seu lanchinho, boquinha fechada e papel no
lixo, amm. E assim como entoavam na msica diria, cada um/a comia seu
lanche, sem reparties ou trocas com as/os colegas e evitava conversas mais
entusiasmadas, aquelas que poderiam abalar a reivindicao constante de
silncio vindo das adultas.
Terminado o lanche, a sujeira de comida retirada, a sala varrida e os
dentes escovados, era ento a aguardada hora da teacher. De segunda a
quinta-feira, sempre aps o horrio do lanche, as crianas tinham aulas de
ingls, com professoras distintas: uma na turma da manh e outra na turma da
tarde. s sextas-feiras, no entanto, o horrio era preenchido pela aula de
espanhol, a mais esperada pelas crianas. Com a proposta de oferecer um

31

nvel intermedirio em ingls e espanhol para suas/seus alunas/os at o fim do


Ensino Fundamental10, a escola mantinha um projeto de ensino dirio das
lnguas estrangeiras.
Baseada sempre em jogos e acompanhadas por diversas msicas
animadas, as aulas de ingls e espanhol eram as menos silenciosas. As
crianas cantavam, danavam e brincavam enquanto faziam as atividades
orientadas pelas professoras. A diverso das aulas de lnguas estrangeiras era
ento estendida, em seguida, hora do parque, momento de recreao livre
das crianas.
Era no parque que as crianas podiam brincar como quisessem, sem
interveno da professora. Estruturado sobre um terreno coberto de areia e
fechado por uma grade de ferro em sua volta, o parque abrigava alguns
brinquedos coloridos de plstico (escorregadores, casinhas e gangorras),
balanos e dois suntuosos eucaliptos, que deixavam sempre uma agradvel
sombra para o momento de recreao das crianas. Contudo, em dias frios ou
chuvosos o destino era a salinha, uma sala no prdio da Educao Infantil
dedicada recreao: cheia de brinquedos, almofadas e uma grande televiso
de tela plana para assistir a filmes. A salinha no causava tanto entusiasmo
quanto o parque entre as crianas, mas ainda assim, era muito esperada e
reivindicada naqueles dias em que o parque no estava disponvel.
Findada a meia hora de diverso, era tempo ento de retornar sala de
aula e realizar a ltima atividade do dia antes de ir embora. Normalmente mais
leve, com menos exigncias pedaggicas das crianas, a atividade final era
realizada num clima de maior descontrao, sendo permitido, muitas das
vezes, certo nvel de conversa e andanas pela sala de aula. Ao final,
apinhadas no canto da sala, as crianas se espremiam em busca de suas
mochilas e lancheiras. Com livros e estojos guardados no armrio da sala e
agenda e pastas de tarefas em mos, era hora de enfiar tudo como desse nas
mochilas e partir para casa. Em duas filas, uma de meninas e outra de
meninos, o trajeto de rampas e escadas era refeito at o hall de entrada da
escola, onde as crianas eram devolvidas no porto s mes, pais, avs e avs
que, repetindo a cena da chegada, tomavam as caladas da rua.

10

Projeto afirmado aos pais durante a apresentao artstica do final do ano letivo.

32

A maioria das crianas ali tinha um grande poder de consumo, quando


comparadas s crianas de escolas municipais, por exemplo. Ou chegavam
escola de carro com familiares, ou vinham andando de algum lugar prximo da
redondeza, ou seja, de um bairro com alto valor imobilirio da cidade. Certa
vez, vi um bilhete com os valores de mensalidade para o prximo ano letivo,
onde constava: Maternal, Jardim I e Jardim II por R$466,00 e Pr por
R$550,00, valor este alto para um custo de vida interiorano, como da
populao de Jundia e, inclusive, maior que de alguns cursos de graduao
universitria da mesma cidade11.
As crianas tambm no recorriam a materiais escolares de baixo custo,
como aqueles sem marcas e sem estampas de personagens, ao contrrio, tudo
ali era muito elaborado, colorido e conhecido, produtos trazendo diversas
personagens famosas e queridas pelas crianas, o que os tornam tambm
mais caros. Outro indcio para o status econmico das crianas e de suas
famlias era traduzido nas viagens que elas diziam ter feito.
s vsperas da reunio bimestral de pais e mes a aula da turma do
pr foi voltada organizao das pastas. A professora separava a atividades
desenvolvidas naqueles meses e em seguida montava uma espcie de equipe
de distribuio das atividades. Enquanto recebiam suas atividades, as crianas
iam arquivando uma a uma em suas pastas. Foi ento que ao receber sua
atividade sobre a viagem que mais gostou, Renata mostrou-me seu desenho
sobre a Itlia e a Alemanha, pases que visitou com seus pais. Ao mesmo
tempo, Bianca comentava sobre Paris, na Frana, com sua amiga ao lado
enquanto prendia o desenho na pasta. Outro exemplo, neste mesmo sentido,
foi quando Gabriel, ao procurar palavras com nh em uma revista para a
atividade proposta pela professora, comentou com o colega que estava ao
lado: eu j andei neste navio! enquanto mostrava a foto de um cruzeiro
martimo.
Dinheiro e consumo, apesar da pouca idade das crianas, eram
assuntos a elas bastante familiares, fosse pela operao cotidiana de muitas
delas no manejo de dinheiro nas compras do lanche da merenda ou fosse por
11

Como, por exemplo, o curso de graduao em Administrao oferecida pela UNIP


(Universidade Paulista), uma rede nacional de universidade privada, por R$338,40 no perodo
matutino e R$423,00 no perodo noturno, segundo consta no site da instituio
http://www.unip.br.

33

suas falas. Tiago achou estranha minha pergunta sobre quem tinha escolhido a
mochila dele do Ben 1012 no momento da compra e acrescentou: eu, n? Eu
que vou usar!. Kau, durante uma dentre as inmeras atividades de ingls que
simulavam um mercado onde algumas crianas dispunham de produtos para
vender e outras de dinheiro para os comprar, assustou-me a vociferar dentre os
colegas: dlar! Quero mais dlar! Quero mais dlar!. Ou ainda Nina que, na
sala de brinquedos, ao preparar doces da mini-cozinha de plstico dizia
entusiasmada Isadora: vou vender tudo e ficar rica!.
Como iremos discutir mais adiante, na escola particular o verbo ter era
pouco acionado pelas crianas para a criao de indicadores de diferena:
todas

elas

tinham

coisas

parecidas,

mochilas

semelhantes,

lanches

semelhantes, sapatos semelhantes, assim como elas mesmas eram tambm


semelhantes entre si. No tem nenhuma criana negra no infantil, me
confirmara a professora das turmas certa vez. A nica criana com a cor da
pele mais escura que eu vi naquele prdio era um desenho de uma menininha
com cabelos cacheados colado na parede, nada mais. E este tambm no era
um assunto comentado pelas crianas: quando um dia percebi um grupo de
meninas falando sobre o filme A Princesa e o sapo (2004, Dir. Ron Clements
e John Musker), o assunto da roda por elas destacado era a transformao
inusitada da protagonista em sapo durante o filme, sem qualquer indicao
sobre o fato de Tiana ter sido aclamada como a primeira princesa negra da
Disney.
Com a turma da escola particular, pude tambm experimentar novas
formas de insero a campo. Depois de meu projeto apresentado e autorizada
minha entrada na escola pela diretora da instituio, estabeleci uma relao de
bastante cumplicidade com a professora da turma do pr. J nas primeiras
semanas de pesquisa foi a partir de uma indicao dela que estendi tambm o
trabalho de campo para o perodo vespertino, uma vez que, assim como ela me
informou, na turma do pr da tarde o nmero de meninas era bem maior do

12

Ben 10 a personagem de uma animao estadunidense baseada em animes japoneses


onde Ben, um garoto de 10 anos, aps encontrar um relgio que guarda o DNA de 10 espcies
aliengenas diferentes, passa a ajudar as pessoas e a combater o mal e os seres aliengenas
que decidem atacar a Terra. O desenho produzido pelos estdios de Cartoon Network desde
2005 e alm de ser exibido pela rede de televiso paga, era tambm veiculdado pelo canal
SBT da TV aberta durante o perodo que estive em campo.

34

que o de meninos, ao inverso do que ocorria na turma da manh e, assim, eu


poderia ter ali um bom material para a comparao entre as duas turmas.
O lugar que eu ocupei durante todo o perodo em campo foi
exclusivamente de pesquisadora. Funcionrias, professoras e crianas sabiam
que eu estava ali para pesquisar e no insistiram em me colocar em outra
categoria. Como na escola havia diversas funcionrias responsveis em
auxiliar a professora nas tarefas rotineiras, pouqussimas vezes minha ajuda foi
requisitada e, assim, meu lugar como pesquisadora, e no como ajudante, foi
mantido. Tanto essa posio se manteve que, certo dia, quando a turma estava
sob o comando de uma das auxiliares na hora do lanche, a pr, como eram
chamadas todas as adultas da escola em uma espcie de diminutivo de
professora, pediu para que eu concordasse com uma orientao que dava s
crianas dizendo um no , pr?. To logo ela falou, e Marcos retrucou: no
pr, Michele!.
No sendo posta em uma posio de autoridade pelas crianas, como
poderia acontecer, caso fosse tambm classificada como mais uma pr, pude
manter uma relao diferente com elas. Por mais que a disciplina escolar
exigisse um comportamento bastante atento e silencioso por parte das crianas
tornando raros os momentos que podamos conversar livremente, uma relao
de empatia logo se estabeleceu e demonstraes de afeio foram feitas,
como quando Guido, um dos meninos da turma da manh, apresentou-me a
sua irm mais velha como Michele, minha amiga e me convidou para jogar
vdeo game em sua casa.
Uma outra experincia que me rendeu uma tima alternativa de
pesquisa foi levar um caderninho de anotaes para as aulas das crianas.
Como elas sabiam que eu estava ali para fazer uma pesquisa da escola,
como costumavam dizer, me ver fazendo anotaes foi um timo recurso para
a interlocuo. Assim que as crianas falavam ou faziam algo que me
despertava o interesse eu logo tomava nota e, to logo tambm, as crianas
me perguntavam o que eu tinha escrito. Toda vez que a pergunta o que voc
escreveu era feita, eu lia as minhas anotaes e, com isso, trazia,
imediatamente, aquelas crianas para a interlocuo com a pesquisa. Muitas
vezes elas me corrigiam, repetiam as frases ditas para que eu pudesse anotar
com maior preciso e tentavam colaborar com a pesquisa, falando mais sobre

35

o assunto e criando pausas em suas falas para que eu anotasse as novas


informaes.
Foi a partir de uma situao como essa que Renata, aps eu pedir a
autorizao dela para anotar o que ela havia me dito e dela me ditar
pausadamente sua fala para que eu anotasse, resolveu se incumbir tambm do
trabalho de pesquisa e, construindo a pesquisa comigo, saiu fazendo a mesma
pergunta que eu havia feito a ela para todas as outras meninas da sala.
Durante os quatro meses que estive com elas na escola, as crianas se
mostraram sempre solcitas e empolgadas em colaborar. Se j no dia-a-dia
durante as conversas eu j no encontrava dificuldades em estabelecer uma
interlocuo com as meninas e os meninos do pr, quando ento partimos para
o momento de discusso dos filmes ento, no faltou empenho das crianas
para me ajudar no meu trabalho da escola.

Aqui em Jundia, na pblica.


Com algum tempo de antecedncia para o incio das aulas cheguei
escola. Entrei pelo porto lateral que dava acesso ao estacionamento, o nico
j aberto naquela hora to cedo. Sentei no banco em formato de um conjunto
de lpis de cor em frente secretaria da escola ainda vazia. Ao lado do balco
de informaes da secretaria um quadro trazia a lei estadual que tornara crime
o desacato a funcionrios pblicos. Cenas de desacordos comeavam a se
formar na minha imaginao at que Laura entrou pela mesma porta que h
minutos antes eu entrara e veio conversar comigo.
Prxima de minha me, com quem trabalhara por alguns anos atrs,
Laura era a atual coordenadora pedaggica da Escola Municipal de Educao
Bsica (EMEB) de um bairro bastante afastado do centro de Jundia. A partir
dessa relao de proximidade entre as duas consegui marcar um encontro com
Laura que se dispunha a me apresentar Telma, diretora da Unidade Escolar,
e a conversar sobre a pesquisa. De encontro marcado, expliquei a ela quais
eram os objetivos gerais da pesquisa enquanto aguardvamos a diretora
chegar.
Minutos depois era a vez de Telma. A diretora me convidou para entrar
na sala da administrao. Dentre as portas que dividiam a secretaria das salas
da coordenao e da direo, uma grande mesa rodeada por cadeiras cumpria

36

a funo de sala das/os professoras/es e l nos acomodamos. Em nenhum


momento houve algum tipo de preocupao com autorizaes em outras
instncias para minha permanncia na escola e a realizao da pesquisa ali.
Ao contrrio do que havia ocorrido tempos antes em Marlia, as educadoras da
EMEB dispunham, ou ao menos mostravam dispor, de total autonomia frente a
secretaria municipal de educao, bastando elas mesmas decidirem os rumos
da pesquisa.
Campo autorizado, era ento hora de conhecer Andria, a professora da
turma de cinco anos indicada pela diretora. Enquanto pela terceira vez
explicava a pesquisa, ao fundo j podia perceber a movimentao das crianas
entrando pelo ptio da escola. Distribudas em uma longa mesa azul no ptio
principal, elas terminavam o caf da manh enquanto me olhavam com ares de
curiosidade. Pouco tempo depois, obedeceram prontamente o comando da
professora de se encaminharem para a sala e em duas filas, uma de meninas e
outra de meninos, rumaram ao corredor que antes engolira todas as outras
turmas.
A sala de aula era bastante clara e arejada. Do lado oposto porta que
dava acesso ao corredor, outra porta, de vidro transparente, se abria para uma
grande varanda ao cu aberto. Na sala oito mesinhas pequenas com quatro
cadeiras abrigavam o material escolar das crianas que, aps a entrada, se
sentavam no cho formando um crculo no meio do ambiente.
"Pessoal, essa a Michele e ela agora vai ficar uns meses com a gente
pra fazer um trabalho da escola dela, vamos falar oi?", me apresentava
Andria para a turma. Depois de cumprimentos formais feitos, foi hora ento de
falar com a turma toda sobre a pesquisa. Expliquei o trabalho da escola que
eu precisava fazer comentando sobre meu interesse em entender aquilo que
elas gostavam de fazer, de brincar, de falar e de assistir na TV, e que, por isso,
a partir de ento, iria sempre na escola pra ficar e conversar com elas. Mal
havia terminado de me explicar e Ellen j se prontificava: eu gosto do PicaPau!.
Gostar do Pica-Pau era uma novidade entre as crianas da pesquisa em
Jundia. Enquanto que na escola particular a maior parte das personagens que
as crianas se referiam eram aquelas divulgadas pelos canais de televiso
estritamente infantis da rede fechada e paga, Pica-Pau era uma personagem

37

bastante popular entre as crianas com acesso apenas rede aberta de


televiso, o que me dava, j de incio, indicadores de diferenciaes
econmicas entre as crianas.
Localizada a mais de dez quilmetros do centro da cidade, era comum
ouvir as crianas da EMEB dizendo que iam para Jundia quando se referiam
ao centro comercial e mais antigo da cidade. O bairro onde a escola se
localizava e de onde vinha a maioria das crianas se caracterizava por ter sido
produto de um dos maiores programas habitacionais do Estado de So Paulo
das ltimas dcadas, formado por casas populares e em um terreno
suficientemente afastado das reas imobilirias mais nobres.
Assim como na escola pblica de Marlia, no havia ali uma
predominncia de cor entre as crianas. As diferentes cores e propores de
seus corpos no pareciam compor um marcador de distino entre as crianas,
mas a origem territorial, ao contrrio, era uma importante marcao de
desigualdade que elas acionavam.
A grande maioria das crianas da escola chegava a p ou de bicicleta,
acompanhada por pessoas maiores que elas13. Algumas poucas chegavam de
carro e outra parte das crianas vinha de peruas escolares. Conforme iam
chegando, elas se apinhavam na frente do porto de principal acesso escola,
mas sem se misturarem. Estranhei a forma como os grupos se mantinham
separados e como as crianas que chegavam dali do bairro, a p ou de
bicicletas, estabeleciam uma distncia daquelas que vinham juntas de outros
lugares at que, s sete e meia da manh, o porto se abriam e todas elas se
misturavam, enfim, no ptio da escola.
A perua escolar que trazia as crianas, segundo me disse Andria, era
contratada pelas famlias das prprias crianas por uma mdia de sessenta a
cem reais mensais, dependendo da distncia percorrida. Por volta de vinte
minutos antes dos portes se abrirem, a perua chegava e deixava as crianas
aos cuidados de Marli, uma senhora vizinha da escola que, contratada pelo
dono da perua, todas as manhs cumpria a funo de zelar pelas crianas ali
na calada da rua. Marli, apesar de funcionria do proprietrio da perua, mais
se parecia com uma das educadoras da EMEB: com olhares fixos e
13

L a figura da vizinha se faziam muito presente, compondo o quadro de pessoas que, alm
dos familiares, buscavam as crianas na escola.

38

entonaes rgidas da voz procurava manter as crianas todas sentadas e em


silncio enquanto era por elas responsvel.
Mas Marli parecia no se incomodar com a diviso que era estabelecida
na calada entre as crianas moradoras do bairro e as vindas de mais longe.
Certa vez, quando resolvi esperar o incio das aulas sentada com as crianas
da perua na rua, algumas sutilezas apareceram. Gabriela e Ellen chegavam
todas as manhs transportada pela perua. Como eu j havia encontrado uma
vez Gabriela caminhando perto de minha casa com seu av e sua me, sabia
que ela morava no mesmo bairro de classe mdia onde eu residia, por isso,
quando encontrei as duas sentadas na calada, perguntei se Ellen tambm
morava l por perto.
Ellen nem tempo teve de responder: no, ela mora no Varjo adiantava
Gabriela. Nesse momento ento me lembrei que Ellen, semanas antes j havia
me falado sobre o bairro onde morava. Estvamos no ptio central terminando
de comer a merenda da manh quando a menina chegou ao p de meu ouvido
e tampando a boca com as mos sussurrou: eu moro no Varjo trs, mas
segredo.
Aproveitando que naquele momento vrias das crianas ao meu redor
prestavam ateno na conversa, perguntei para outras delas onde moravam,
mas apenas obtive respostas como perto do posto, na casa com cachorro
ou no prdio. Varjo era o nico nome de bairro conhecido e destacado
pelas crianas que ali estavam.
O teor de segredo que Ellen havia dado ao nome de seu bairro, assim
como o nome ser o nico conhecido das crianas e a pronta afirmao de
Gabriela do lugar de origem da amiga indicavam que alguma especificidade era
construda em torno do Varjo. No precisei de muito tempo para perceber
que o bairro que as crianas se referiam era um dos bairros mais afastados de
Jundia, uma antiga rea de ocupao irregular, carente de infraestrutura
bsica e margem da estao de captao de esgoto da cidade. Dizer que se
mora no Varjo era como marcar uma posio econmica em relao s
outras crianas e elas pareciam j saber disso.
Em compensao, a estrutura escolar pblica de Jundia parecia pouco
contribuir com a diferenciao econmica das crianas. Depois do porto
aberto e as crianas reunidas no ptio, a camiseta branca com o emblema da

39

escola iniciava a uniformizao das alunas e alunos da EMEB. Assim como a


EMEI de Marlia, as refeies dirias eram sempre oferecidas pela prpria
escola. Sem ter uma lanchonete que vendesse alimentos durante o perodo
letivo, algumas crianas levavam biscoitos ou pes amanteigados para o
horrio da merenda, mas o que mais satisfazia a maioria delas todas era a
comida produzida pelas prprias merendeiras.
Diariamente era oferecido um caf da manh antes das aulas. Leites,
chs, biscoitos e pes entravam no cardpio matinal para garantir que todas as
crianas comeassem o dia alimentadas. Mais tarde, sempre por volta das
nove da manh, as crianas da turma da Andria eram esperadas para a
merenda

principal:

ainda

que

horas

antes

do

horrio

normalmente

compreendido para o almoo, macarronadas, saladas, tortas, bolos, arroz


acompanhados de carnes cozidas e frutas eram servidos s crianas e s
adultas da escola.
Alm das refeies servidas pela prpria escola, o material didtico
padronizado e distribudo gratuitamente em toda rede municipal de ensino
contribuia para diminuir os espaos de diferenciao entre as crianas: com
cadernos, livro de atividades, pastas, lpis de cores, lpis e borrachas
fornecidas pela prefeitura, poucas foram as vezes que vi circular pela sala
materiais marcados por personagens miditicos conhecidos pelas crianas.
A rotina escolar comeava sempre no ptio central da EMEB. Somente
depois de caf da manh tomado e filas por gnero organizadas que as
crianas se dirigiam para a sala de aula. L dentro as atividades se alternavam
em eixos disciplinares, nos quais o portugus, a matemtica e as artes
ganhavam destaque. Orientada pelo material didtico padronizado pelo
municpio, a professora seguia a ordem de atividades proposta pelas apostilas
e encaixava, entre as atividades, o horrio da merenda e das brincadeiras
dirias.
A escola dispunha de mais de uma opo para a recreao das crianas
e, por isso, uma programao previamente firmada entre as professoras
organizava qual espao cada turma ocuparia em cada dia da semana. Apesar
de ter sido nos dois parques com brinquedos de ferro montados e tanques de
areia com potinhos e pazinhas que eu mais via as crianas se espalharem, s
teras-feiras, elas contavam, tambm, com a brinquedoteca: uma sala frente

40

da sala da secretaria com carrinhos, foges, panelinhas, mesinhas, brinquedos


de montar, bonecas, fantasias e um cantinho com um DVD e televiso para a
transmisso de filmes.
Ao contrrio do que havia experimentado metodologicamente na escola
particular, levar um caderno e anotar o que as crianas me diziam durante o
trabalho de campo no foi uma ao muito produtiva. Minha primeira tentativa
de anotao simultnea causou tamanho alvoroo entre as crianas que, de
pouco em pouco e a cada o que voc escreveu somaram-se ao menos uma
dzia de crianas ao redor de minha cadeira e olhares repreensivos de uma
professora descontente com o barulho em sala de aula. Assustei-me e acabei
desistindo da tcnica, voltando novamente s tradicionais anotaes dirias e
compulsivas quando retornava para casa.
Em comparao com a escola pblica de Marlia, na EMEB minha
posio enquanto pesquisadora no foi alterada. Por algumas vezes Andria
me pediu ajuda e em outras eu mesma a ofereci, deixando o trabalho
etnogrfico em segundo plano para auxiliar nas atividades rotineiras da turma.
Mas em nenhum momento eu fui ali reconhecida como uma estagiria ou
ajudante. Fato curioso neste sentido foi quando, ainda nos primeiros dias de
trabalho de campo, dividi o banco do parquinho com Andria e Cia, professora
da outra turma de pr, e fui requisitada a dar algo como um diagnstico sobre
um aluno.
Na sombra, perto das crianas que mexiam a terra elas queriam me
consultar sobre um aluno de Cia. Explicaram-me que o menino entrara na
escola havia pouco tempo, muito depois que as demais crianas, que no
falava muito, no obedecia aos comandos na sala de aula e ainda que lhe
faltava o hbito de correr ao banheiro quando precisava, sendo comum, quase
diariamente, que ele tivesse que tomar banho na escola aps acidentes
fisiolgicos. Cia dizia que mesmo depois de conversas, no tinha respaldo da
famlia e que a me do menino pouco fizera para ajudar na situao.
Terminada a explicao, Andria, compadecida com o caso do aluno da
amiga me perguntou ento: "qual o problema dele?". Ao final da conversa
percebia que elas esperavam um diagnstico meu sobre o menino, que eu, j
que estava ali para "observar", que o observasse e dissesse "qual o problema"
que ele devia ter. Constrangida, expliquei que no tinha conhecimento para

41

isso. Que esses tipos de diagnsticos sobre o comportamento de crianas


especficas s eram dados por pessoas com formao ao menos em
psicologia, o que no era o meu caso.
Esse reconhecimento por parte da professora da minha posio ali
dentro da escola como um observadora se estendia tambm para as crianas
que no insistiam em me chamar de tia, como faziam com as outras adultas
da instituio. A exceo neste caso era Lusa, que apesar de sempre me
chamar de Michele enquanto conversvamos e brincvamos, era por tia que
me reconhecia quando precisava amarrar seu tnis.
De todo modo, minha relao na EMEB com as crianas se
particularizou pela grande afetividade, quando comparada escola particular
que eu frequentara meses antes. O comedimento no comportamento das
crianas do colgio particular em nada lembrava as acaloradas recepes na
escola pblica. Era frequente eu no conseguir me locomover com facilidade
pelos corredores da escola, uma vez que sempre havia ao menos cinco
crianas, na maioria das vezes meninas, disputando minhas mos e pernas
para agarrarem-se.
Nem mesmo quando estabeleci um limite de toques por conta de uma
forte gripe tive sucesso para circular sozinha pela escola: eu tambm to
gripada, Michele! Eu posso! me dizia Gabriela simulando uma coceira no nariz
e correndo para segurar minha mo. Ademais, dentre os abraos, beijos e
declaraes de saudade ditas quando eu ficava alguns dias sem poder ir a
campo, a relao com as crianas se intensificou durante os quatro meses que
estive com elas e no encontrei restries, nem por parte delas e nem por
parte das educadoras, para l consolidar todo o trabalho de campo que, em
seguida, tentaremos elucidar.

42

Captulo 2
De Borralheira Guerreira: contornos de
feminilidades entre as Princesas Disney
A presena de uma estranha em uma sala de Educao Infantil
sempre motivo de muita curiosidade e impulso para criao de performances
de crianas buscando a ateno desconhecida. Dentre passes de mgica de
um e histrias sobre os animais de estimao de outro, Julia gritava pelo meu
nome enquanto rodopiava sobre seu prprio eixo e fazia com que sua saia
god levantasse com as ondas de vento criadas ao seu redor. Olha tia
Michele! Eu rodo que nem a princesa! Olha tia! Eu t rodando que nem a
princesa Cinderela!.
A cena se desenhava em uma manh de 2007 quando, na ocasio de
uma visita turma de crianas de cinco anos de uma escola municipal de
Jundia, no interior do estado de So Paulo, eu buscava compreender os
aparatos de diferenciao de gnero operados na infncia. De l para c, a
princesa tornou-se uma das figuras centrais nesta pesquisa que, hoje, busca
compreender nas esferas textuais e de recepo quais os referenciais de
feminilidades que Cinderela e suas companheiras da Disney, enquanto
tecnologias de gnero (DE LAURETIS, 1994), suscitam.
Cinderela, Branca de Neve, Aurora, Bela, Ariel, Jasmin, Mulan e, mais
recentemente, Tiana, alm de protagonistas das verses hollywoodianas de
histrias romnticas de grande sucesso entre as crianas so agora tambm
personagens principais em decoraes de festas infantis, roupas, calados,
materiais escolares, ventiladores de teto, computadores, aparelhos televisores
e outra infinidade de produtos no cotidiano das crianas14.
Sob a marca comercial Princesas, a linha de negcios criada pela
Disney em 2000, em poucos anos conseguiu bater a marca de 1,3 bilhes de
dlares em vendas no varejo 15 e se consolidou como uma das mais
importantes marcas de produtos disponveis no mercado para crianas. Por
14

Nos EUA, onde a marca foi criada, recentemente produtos Princess voltados ao pblico
adulto comearam a circular. Em sites de compras como o http://www.amazon.com, por
exemplo, no difcil encontrar taas de vinhos, martinis e shots sendo vendidas com a rubrica
das princesas. Essa tambm uma questo levantada pela reportagem da Newsweek
(SETOODEH, 2007).
15
Segundo dados apresentados pela revista Forbes (POMERANTZ, 2010).

43

onde quer que andemos, muito comum encontrar meninas carregando


consigo ou em si, produtos estampados com as imagens das famosas
personagens do cinema.
Ganhando cada vez mais espao no cotidiano das crianas, os produtos
Princesas criam um espao de familiaridade entre as crianas e as imagens
das protagonistas Disney abrindo as portas, tambm, para suas narrativas
cinematogrficas.
Neste sentido, a importncia das Princesas enquanto uma marca de
consumo inspirada nas personagens do cinema e que abre acesso s prprias
verses cinematogrficas daquelas histrias se torna aqui preponderante. De
consumidoras a espectadoras e de espectadoras a consumidoras, a relao
que as crianas estabelecem entre as Princesas nos parece instigante para
pensar ainda a relao entre mdia e consumo e, como prope tambm Heloisa
Buarque de Almeida (2003 e 2007), os marcadores de gnero nessa relao
implicados.
Quando olhadas de perto, as personagens da marca Princesas Disney
revelam nuances nem sempre possveis de serem notadas apenas pelo
achatamento de diferentes personagens sob o rtulo comercial. H algo em
comum entre todas aquelas personagens que as une na mesma imagem
preponderantemente cor-de-rosa da marca e faz delas Princesas, porm,
quando olhamos tambm o site eletrnico das Princesas e nos deparamos com
a distino l feita entre Princesas Clssicas e Princesas Rebeldes, os relevos
entre as personagens comeam a aparecer.

44

Imagem de apresentao do site brasileiro das Princesas em 2010.

Se de um lado a Disney colocava as protagonistas de Branca de Neve e


os sete anes (1937), Cinderela (1950), A Bela adormecida (1959) e A Bela e a
fera (1991) como representantes daquilo que chamou de Princesas Clssicas,
no outro lado, como Rebeldes estavam identificadas Ariel, de A Pequena
Sereia (1989) e Mulan, de seu filme homnimo (1998). Ariel, a sereia, aquela
que briga com seu pai e abdica do reino marinho para poder ficar junto de seu
amor e Mulan, a guerreira chinesa, aquela que se traveste de soldado, vai
para a guerra no lugar de seu pai e l conhece o homem por quem vir a se
apaixonar.
Saindo do mar ou saindo de casa, Ariel e Mulan so ambas heronas
desobedientes, que vo contra as ordens de seus pais, saem da proteo do
convvio familiar e partem em busca de suas prprias realizaes. Ao contrrio,
do que acontece em Cinderela, a realizao dos sonhos de Ariel e Mulan passa
bem longe da ajuda da fada madrinha com sua varinha de condo. Quando
contextualizadas no perodo em que foram realizadas, suas produes
parecem apresentar aquilo que Christine Gledhill (1988) sugere como
negociaes de significados: para um produto miditico manter sua dimenso
prazerosa ao pblico que o consome, um nvel mnimo de contemporaneidade

45

deve estar presente nas narrativas para que, com uma dose de realismo ao
melodrama, a trama se torne ainda mais sedutora e agradvel audincia.
Neste sentido, quando localizadas temporalmente, no surpreendente
que essas Princesas Rebeldes, personagens produzidas pela Disney j no
entremeio da dcada de 1990, momento aps trs dcadas de maturao dos
ideais feministas nos EUA, tragam em suas narrativas elementos de uma
feminilidade discrepantes daqueles trazidos pelas Princesas Clssicas da
dcada de 1930 ou 195016. Deste modo, ainda que possam conservar traos
clssicos nas suas narrativas, uma vez que tais elementos ajudam a garantir
a legitimidade de tais filmes por meio de sua correlao com aqueles de
dcadas anteriores que garantiram vida-longa aos estdios Disney, a
contemporaneidade, entretanto, est marcada na rebeldia das protagonistas
que, apesar de desobedientes, no deixam de ser Princesas.
neste jogo de negociaes entre as feminilidades possveis e
scio/historicamente dispostas que, portanto, a contraposio entre as noes
de clssicas e rebeldes entre as Princesas emerge como um interessante
mote para a pesquisa, e elegemos, ento, dois filmes, um representante de
cada modo de ser princesa, como ponto de partida para as discusses de
como tais feminilidades so apresentadas e promovidas pela Disney.
Cinderela como uma princesa clssica e Mulan17 como uma exemplar das
rebeldes emergiram como fonte para entendemos as nuances e similaridades
entre aquilo que se convencionou ver difundido entre as crianas como As
Princesas18.

16

importante ressaltar aqui que, por mais que as anlises sobre as dataes originais das
verses de contos e romances nos quais os filmes foram inspirados seja algo indispensvel
para o levantamento de algumas questes, o foco aqui recai, contudo, nos perodos nos quais
estas histrias ganham suas verses cinematogrficas e sob a atmosfera hollywoodiana so
distribudas pelo mundo, nos momentos em que os estdios Disney direcionam seus esforos
para torn-las produtos de uma grande plateia de cinema.
17
A escolha dos dois filmes se deu por conta de Cinderela j ter sido fonte de discusso entre
as crianas da pesquisa precedente a esta (pesquisa de Iniciao Cientfica realizada em
Marlia/SP durante a graduao em Cincias Sociais na UNESP e que contou com o apoio da
FAPESP e com a orientao da Profa. Dra. Heloisa Buarque de Almeida), o que nos permitia a
comparao a um amplo material etnogrfico j de antemo, e Mulan foi escolhida por conter
um conflito de gnero como chave temtica de sua narrativa, nos parecendo rentvel para a
pesquisa.
18
Cabe destacar que esses dois filmes (Cinderela e Mulan), alm de impulsionarem a anlise
que aqui se segue, so ainda os dois filmes escolhidos para serem discutidos entre as crianas
da pesquisa na fase de anlise da audincia dentro do trabalho de campo etnogrfico e, por
isso, so centrais para esta pesquisa.

46

Princesas e a negociao de feminilidades


Lanado em 1950, Cinderela foi a grande aposta dos estdios Disney.
Seu criador, Walt Disney, j tendo provado as glrias do sucesso depois do
lanamento de Branca de Neve e os Sete Anes19 e amargado com o gosto da
crise econmica aps a segunda guerra mundial, conseguiu com o lanamento
de Cinderela, inspirado na verso francesa palaciana de Charles Perrault,
reanimar as finanas de sua empresa, garantindo vida-longa aos seus estdios
(WATTS, 1997).
Na verso de Hollywood, Cinderela uma moa rf de pai e me que
sofre nas mos de sua Madrasta. Tendo toda a riqueza de sua famlia
usurpada aps a morte de seu pai, a menina fica merc dos caprichos da
Madrasta e suas duas filhas, sendo, inclusive posta na condio de servial
(figura 1) de sua prpria casa. Mas a histria toda muda a partir do convite real
para um baile que eleger a moa a se casar com o prncipe do reino.
Cinderela tambm quer ir ao baile e a condio imposta pela Madrasta que,
primeiro, ela termine todo o servio domstico.

Figura 1

A moa empreende todos seus esforos para que a condio seja cumprida e
possa ir ao baile e, j sada de casa, a Madrasta e suas filhas surpreendemse ao ver Cinderela ali: com todo servio feito, assim como combinado, e
19

Primeiro longa metragem de animao que rendeu uma homenagem da Academia de Artes
e Cincias Cinematogrficas dos EUA materializada na figura de oito estatuetas de Oscar, uma
do mesmo tamanho que o homenageado acompanhada de outras sete em miniaturas.

47

maravilhosamente vestida com a roupa criada por seus amiguinhos animais.


No entanto, a moa v sua reivindicao de participar do baile se esvair depois
de ser agredida pelas meio-irms e ter toda sua roupa por elas destruda.
Cinderela no diz sequer uma palavra. Deixada aos farrapos, se reduz s
lgrimas. Porm, o que ela no sabia era que suas lgrimas eram o chamado
para sua fada madrinha: com a varinha de condo a postos, a fada transforma
animais e objetos ao seu redor e d Cinderela uma linda carruagem e um
lindo vestido (figura 2) para usar no baile at o badalar das doze horas.

Figura 2

Mal ela chega ao baile e o olhar do prncipe volta-se para sua beleza
esplendorosa. Ela a escolhida para com ele danar a valsa (figura 3) e j
aps a primeira dana, o primeiro beijo do amor verdadeiro trocado. O
momento mgico, contudo, bruscamente interrompido com o soar do relgio,
fazendo com que Cinderela desvencilhe-se dos braos de seu prncipe e saia
correndo antes que o feitio da fada se acabe. Mas em meio a toda correria,
Cinderela deixa para trs um de seus sapatinhos de cristal que, no dia
seguinte, ser experimentado nos ps das moas solteiras at que sua
verdadeira dona seja encontrada. Depois de ser salva do crcere onde a

48

Madrasta a colocara ao perceber que era ela a escolhida, Cinderela repe o


sapatinho de cristal quebrado pela Madrasta invejosa e finalmente casa-se com
o Prncipe, ganhando, enfim, o seu felizes para sempre.

Figura 3

Cinderela apresentada na narrativa como uma moa que, apesar da


pouca sorte inicial ao ficar rf, persevera com f em seus sonhos. Ainda muito
cedo, perdera antes a me e depois de alguns anos tambm seu pai, ficando
aos cuidados de sua segunda esposa, a Madrasta, que logo aps a morte de
seu marido, revela-se uma mulher atormentada pela maldade e inveja de
Cinderela, tirando tudo que seria por direito da moa e dando s suas duas
filhas, Drizella e Anastcia. J nas primeiras cenas, narradas por uma voz
feminina que aparece resumindo uma histria de livro, a Madrasta logo
caracterizada como a grande vil da trama, aquela que inveja a beleza e o
encanto de Cinderela enquanto a moa continua sendo a mesma desde a
infncia: uma menina gentil e bondosa.
Alis, beleza, gentileza e bondade so qualidades de Cinderela (e de
todas as princesas clssicas) destacadas a todo o tempo pelas imagens
trazidas no filme. Ela gentil com os pssaros que a ajudam no banho matinal,
bondosa ao resgatar o ratinho da ratoeira e no ousa ser rude e nem
responder sequer com suas algozes. exatamente por suas atitudes ali
expostas como belas e encantadoras que Cinderela vai se desenhando

49

como uma representante de uma feminilidade contraposta feminilidade da


Madrasta e de suas meio-irms: uma mulher fria, cruel, invejosa, hipcrita,
como resume a narradora, e que esbanjou a fortuna do pai de Cinderela
agradando suas filhas vaidosas e egostas.
A vaidade e o egosmo das irms feias, somados frieza, crueldade,
inveja e hipocrisia da Madrasta, destacados e demonstrados pelas cenas do
filme, so os elementos que evidenciam ainda mais as qualidades de Cinderela
postas em contraste. A perversidade da Madrasta em manipular as situaes,
como quando ela induz suas filhas a destrurem o primeiro vestido de baile de
Cinderela ou quando propositadamente destri o sapatinho de cristal prestes a
ser calado pela moa, serve para o reconhecimento do mal em sua figura,
compondo assim a oposio necessria para potencializar ainda mais os
elementos da bondade de Cinderela. A moa, gentil e bondosa, o alvo da
crueldade da Madrasta e tendo a eles resistido, por fim recompensada.
Cinderela cria e mantm um mundo encantado, cheio de cores, msicas
e harmonia entremeado ardilosa convivncia com a Madrasta e suas filhas.
Sua interao com as outras mulheres de sua casa se resume s cenas nas
quais por elas agredida, moral e fisicamente, deixando s relaes com os
animais da casa, seus amigos, o espao de sociabilidade no qual ela mostra
sua bondade.
Tenha f em seu sonho e um dia, teu lindo dia ir chegar; no importa o
mal que lhe atormenta, se o sonho te contenta e pode se realizar canta
Cinderela e repetindo para si mesma que ningum me impedir de sonhar,
meu sonho lindo e pode se realizar. A moa resiste s crueldades sobre ela
impostas por meio da manuteno da f em seus sonhos e na possibilidade
deles se realizarem. Cinderela trabalha exausto e no revida as crueldades
da Madrasta espera de um sonho que no para ns, espectadores, de
incio revelado: um sonho um desejo, no conto, seno no realiza,
responde ao pssaro curioso.
Contudo, sua f abalada quando est pronta para ir ao baile com o
vestido de sua me reformado pelos ratinhos e passarinhos amigos seus e,
pela artimanha da Madrasta, as duas meio-irms o destroem, deixando a moa
gentil e bondosa rasgada entre trapos e lgrimas. Cinderela neste momento
oscila: tudo acabou, perdi a f, no posso acreditar em mais nada agora. Mas

50

sua perseverana no tinha sido em vo. Das lgrimas surge a fada madrinha
que promove sua grande transformao: com a carruagem a postos e o
esperado vestido reluzente em seu corpo, Cinderela agradece como um
sonho, um sonho que se realiza! muito mais do que eu jamais sonhei!,
retomando sua f.
E a realizao do sonho de Cinderela estava apenas por comear. Se
at ento as qualidades de Cinderela eram ressaltadas a partir da
contraposio com a Madrasta entre crueldade e bondade, na cena do baile
outro elemento destacado: Cinderela , alm de tudo, encantadoramente
bela e elegante. Enquanto as irms so mostradas como feias, desengonadas
e esbarram-se entre si a todo instante, Cinderela parece flutuar pelo salo do
palcio. Sem nenhum esforo, com gestos contidos e imensa discrio, ela
chama toda a ateno para si e faz com que o prncipe entediado com todas
aquelas apresentaes de moas casveis levante-se de seu trono e tire-a
para danar. Na primeira dana, seguida pelo primeiro beijo e da fuga da
herona, j dada audincia a informao que dali, o desfecho ser o
casamento: o corao lhe diz que ela a jovem destinada a ser sua noiva
narra o Gro-Duque ao rei ansioso pelos netinhos.
O triunfo do amor romntico, de um jovem que se apaixona por uma
moa primeira vista e de uma jovem que se apaixona por um moo
ingenuamente sem nem saber ao certo que era ele o Prncipe do palcio
ento ilustrado na cena final, de encerramento do filme, na qual Cinderela e
seu noivo saem casados em uma linda carruagem enquanto o coro ao fundo
repete a cano: seu dia feliz, um dia vai chegar; no importa o mal que te
atormenta se o sonho te contenta e pode se realizar.
Quase cinquenta anos depois de Cinderela realizar seus sonhos e se
casar com seu prncipe encantado, os estdios Disney nos apresenta Mulan.
Ambientado na China imperial, o filme, em verso a um antigo poema chins,
traz uma jovem guerreira como herona. Mulan (figura 4), uma moa j em
tempo de se casar, toma a deciso de fugir de casa e lutar na guerra no lugar
de seu pai, que fora convocado logo aps ela ter sido humilhada pela
casamenteira de sua vila. Tendo desonrado sua famlia por no possuir as
qualidades esperadas de uma noiva, Mulan corta os cabelos (figura 5), vestese de soldado e no calar da madrugada, deixa sua casa.

51

Figura 4

Figura 5

To logo a fuga por sua famlia descoberta, seus ancestrais, sob forma
de espritos, enviam-lhe um drago protetor para que a traga para casa e para
que sua farsa no seja descoberta, salvando sua vida da acusao de traio
ao imperador. Mas Mulan no quer voltar e, tornando-se a partir de um duro

52

treino o melhor soldado de seu peloto (figura 6), embrenha-se na guerra. Mas
antes mesmo que o inimigo fosse derrotado, Mulan ferida e, sem a roupa
masculina seu travestimento descoberto. Sentenciada morte, Mulan
poupada da decapitao por seu chefe, o Capito Lee, a quem ela tinha pouco
antes salvo a vida e, ainda, percebido que por ele se apaixonara.

Figura 6

Abandonada por seu peloto, Mulan descobre as estratgias dos


inimigos Hunos de invadir a cidade imperial e, corajosamente, parte sozinha
para a defesa do Imperador. Depois de reunir-se aos outros soldados que a
acompanhavam e ao capito por quem tinha se apaixonado, Mulan derrota de
uma vez por todas seus inimigos de guerra. Salvando a China e sendo
reverenciada por toda a populao e pelo prprio Imperador, Mulan ento volta
vitoriosa para casa, levando consigo a honra da Famlia Fa e, ainda, um
capito por ela tambm apaixonado.
Coragem, honra e triunfo o lema de Mulan trazido pela propagada
feita pela Disney no lanamento do filme em DVD. J nas primeiras imagens de
Mulan, uma jovem insegura com as provas da casamenteira mostrada:
calma, reservada, graciosa, educada, delicada, refinada, equilibrada, pontual
so adjetivos de uma boa esposa que ela tenta decorar antes de ser avaliada.
Em seguida, seu pai leva-a aos tmulos dos ancestrais e reivindica que a
jovem apreensiva impressione a casamenteira, para honrar a nossa famlia.

53

Mas a dificuldade de Mulan em decorar todas aquelas prerrogativas de


uma boa esposa j antecipava o fiasco que seria sua avaliao. Apesar dos
seus esforos empreendidos sobre os adjetivos de uma noiva exemplar e de
toda sua montagem como uma bela moa, com um vestido especial, colar de
prolas, maquiagem e um ornamento de flores no cabelo, aps uma srie de
atos desastrados, Mulan expulsa da casa da casamenteira sob as acusaes
de que pode parecer uma noiva, mas voc nunca trar, sua famlia, honra!.
A srie de deslizes cometidos que acabam por arruinar seu encontro
com a casamenteira e a possibilidade de arranjarem-lhe um noivo, o impulso
para que Mulan, sentindo-se ultrajada e ultrajante, tome a deciso de
responder ao chamado de guerra no lugar de seu pai, j com a sade
debilitada. No sendo capaz de adequar-se a um ideal de feminilidade que era
dela cobrado, Mulan decide se transformar partindo, ento, em busca de
conformao a um papel social tido como masculino, o guerreiro, e tentando
colocar sobre seu corpo uma nova corporeidade, posta em oposio
feminilidade no alcanada, que ela vai em busca da honra perdida.
Mulan no consegue ser a noiva exemplar, mas aos poucos se
transforma no soldado exemplar capaz, inclusive, de salvar seu imprio. Neste
sentido, o filme vai apresentando uma sequncia de situaes nas quais Mulan
percorre um longo caminho de uma educao corporal onde trejeitos, gestos,
atitudes e performances consideradas masculinas vo se materializando sobre
seu corpo, at tornar a experincia de travestimento, inicialmente posta na
chave de comdia, no modo natural da personagem.
No caso de Mulan, toda aquela feminilidade que era dela esperada e a
qual a herona no conseguia incorporar, quando ela se traveste de soldado
deve a todo custo ser evitada. Tudo porque a outra resolveu dar uma de
soldado macho esbravejava o drago protetor ao saber que teria que traz-la
de volta para casa, ao mesmo tempo em que ele, por fim seu fiel escudeiro,
alertava-a sobre seus eventuais deslize femininos em meio guerra: so
homens, e voc vai ter que ser igual a eles.
Quando Mulan deixa na cabeceira da cama de seu pai o ornamento de
flores de cabelo no lugar da convocao do exrcito, a troca de gnero (ainda
que temporria) feita pela personagem est enunciada. pela construo de
um estilo corporal que a masculinidade construda por Mulan: materializando

54

em seu corpo a fora e disciplina aladas como requisitos de um bom


soldado, a herona conquista sua legitimidade enquanto pessoa frente ao
imprio e sua famlia.
A boa performance de gnero, ainda que no aquele esperado dela, o
que a torna especial e lhe concede a honra to buscada. Que homem! Quer
dizer, quase brinca o drago quando Mulan consegue salvar seu batalho do
exrcito inteiro de Hunos prontos para liquid-los. Transitando entre as
categorias de moa jovem e soldado guerreiro, Mulan joga com os referenciais
de gnero a cada troca de roupa e o seu triunfo final se d quando essas duas
categorizaes se tornam inteligveis pela noo de herona a ela atribuda
pelo seu par conjugal.
J ouvi muito a seu respeito, Fa Mulan. Roubou a armadura de seu pai,
fugiu de casa, fingiu ser um soldado, enganou seu oficial comandante,
desonrou nosso exrcito, destruiu o meu palcio... e salvou a vida de todos,
era o que dizia o Imperador ao final da grande guerra e antes que todo o povo
reverenciasse a mais nova herona da China. E justamente por salvar a vida
de todos que Mulan reconquista a confiana e admirao do Capito, por
quem se apaixonara, e com ele reconcilia-se.
Ao chegar em casa, portando a espada imperial que atestava o seu
herosmo e simbolizava a honra conquistada pela guerra, a av de Mulan, que
a tinha levado casamenteira resmunga: ela traz para casa uma espada,
devia ter trazido um homem mara... quando ento sua fala interrompida pela
chegada do Capito Lee procura de Mulan. O capito olha para Mulan, sorri,
e, logo aps, aceita o convite para jantar, deixando sugerido, na cena final do
filme, que o amor romntico entre os dois era, ali, triunfante, apesar de no
haver nenhuma cena explicitando tal enlace.
Por mais que, no desenrolar de toda a trama de Mulan, a no
adequao da protagonista a um ideal de feminilidade pautvel na
casabilidade (uma qualidade atribuda a algum em ser ou no casvel) seja
o conflito gerador do enredo, parece-nos que ao final, depois de ela ter
implicado sobre si mesma a experimentao de uma nova forma de gnero,
esta mesma casabilidade volta em questo: se Mulan antes no conseguiria
um marido por no ser calma, reservada, graciosa, educada, delicada,

55

refinada, equilibrada, pontual, a sugesto dada no final do filme de que como


uma herona ela conseguiria.
Mas dentre o que foi aqui levantado, o interessante notar que o grande
tema entremeado nas duas narrativas parece estar sempre atrelado ao
casamento enquanto uma realizao pessoal. Apesar de por um lado Cinderela
ser aquela que representa em si mesma um modelo de feminilidade
perpassado pela bondade, passividade, delicadeza e generosidade levada s
ltimas consequncias, e Mulan, por outro lado, cinquenta anos depois, estar
postas sob termos de uma rebeldia que faz dela uma herona de guerra, em
ambas a concluso de suas histrias est atrelada realizao do amor
romntico e conjugal.
Por mais que o toque de desordem, no sentido de contra regras, seja
bastante evidente em Mulan e seu enredo de conflitos por ela mesma criados,
a rebeldia da personagem parece, afinal, ser a chave que d a ela a
realizao de seu objetivo inicial: a potencialidade do casamento. Cinderela
discreta, obediente e resignada, nem mesmo nos momentos em que vtima
de agresses cruis ela esboa alguma vontade de contra-ataque, atacada, ela
senta e chora, sendo salva de seu martrio por uma recompensa mgica de ter
permanecido por tanto tempo fiel aos seus sonhos.
Em contrapartida, Mulan tem uma coragem de exposio ameaadora:
ora pe em risco a honra de sua famlia e ora pe em risco sua prpria cabea.
Mas se h em Mulan o conflito evidente entre a China e os Hunos, o mal no
est somente nos outros que na guerra ela deve combater, Mulan , ela
mesma sua prpria inimiga. O conflito de toda a trama pessoal da personagem
est nela mesma e em sua dificuldade em aceitar e cumprir as etiquetas dela
esperadas. Mulan uma desobediente: primeiro desobedece aos ideais de
feminilidade que dela so reivindicados, depois desobedece seu pai e vai
guerra, desobedece seu amado quando no aceita voltar para casa depois de
sua farsa revelada e, por fim, desobedece ainda os preceitos de uma boa
esposa tornado, ela mesma, desobediente e encrenqueira, uma mulher
casvel.
Contudo, se por um lado as nuances na construo de feminilidades
representadas por Cinderela e Mulan tornam bastante claro o porqu da
distino entre elas, pela Disney denominada clssicas e rebeldes, o

56

casamento como elemento que as assemelha, sugere-nos ser, ainda, o


elemento a partir do qual ambas podem, ento, ser chamadas de princesas.

Princesas, performances e tecnologias de gnero


O que parece estar em jogo entre as Princesas a performatividade do
gnero: menos do que quais os contedos que formam aquilo que ou no
considerado louvvel como atributo de gnero, o que aqui nos parece
importante a forma pela qual tais atributos so performatizados pelas
personagens, ou seja, em que medida o sucesso ou o fracasso na
materializao de uma esttica de gnero determina a realizao de seus
sonhos e desejos.
Assim como proposto por Judith Butler (2003), o gnero um efeito
esttico criado pelos corpos em relao aos referenciais de feminilidade e
masculinidade. O fluxo constante de relaes e aes entre as pessoas
operam, para Butler, a partir de um dispositivo que produz uma imagem de
substncia de gnero, ou, de uma identidade de gnero: uma forma coerente
que as pessoas buscam compor sobre si mesmas em suas relaes mas que
so, no fundo, um processo contnuo de reiterao dos significantes que
marcam um corpo como feminino ou masculino. O gnero, em si, nada
significa. Seu poder est enquanto um operador de diferenas posto em prtica
pelas pessoas em seus atos cotidianos: atos que, reiterados infinitas vezes,
tem o poder de se materializarem em formas substanciais e essenciais,
produzindo uma estabilizao entre o corpo que os produzem e a imagem
daquilo que se espera desse corpo, por exemplo, de um corpo feminino
espera-se uma identidade feminina e, ainda, um desejo sexual voltado ao nofeminino. Isto o que a autora chamou de matriz heterossexual, uma matriz
de inteligibilidade que fornece as significaes de gnero entre corpos,
performances e desejos.
Neste sentido, o processo de identificao de gnero, quando bem
sucedido, sempre um processo de essencializao, um processo que
transforma atos isolados em substncia pela reiterao. A materializao do
corpo nunca est completa, sempre um processo sem fim de tentativas de
adequao matriz heterossexual a partir da prtica cotidiana. Enquanto um
projeto esttico, o gnero se apoia sobre uma forma especfica que

57

requisitada e esperada de todas as pessoas. E essa forma esttica


produzida, pelas pessoas, atravs do conjunto de atos performativos
desempenhados em seus corpos ao longo de suas relaes.
Constitudo performativamente pelo corpo, o gnero bem como todos
seus constrangimentos matriz heterossexual faz com que atos se
cristalizem em essncia. O uso do corpo a partir de modelos de
constrangimentos a fonte para a construo do gnero: gnero aqui no est
relacionado com o que a pessoa , mas sim com que a pessoa faz de si: com
aquilo que ela produz sobre seu corpo em suas relaes sociais. Assim,
enquanto um conjunto de atos montados sobre os corpos, o gnero vai se
produzindo diariamente a cada gesto, a cada passo e a cada fala
performatizada pela pessoa.
Produzido em um processo contnuo de identificao, o gnero a
operacionalizao de uma srie de aprendizados de atos corporais
transformados em uma fico regulatria e coerente. Neste sentido, a partir da
fico regulatria da matriz heterossexual, o gnero se mostra a partir dessa
introjeo performtica de atos corporais.
Entretanto, compartilhar essa noo de que o gnero se produz a partir
da corporificao de atos performatizados , em certa medida, assumir
tambm, seu carter intencional e elaborado. No que as pessoas usem seus
corpos a partir de uma racionalizao extrema de causas e consequncias, que
performatizem o gnero de maneira completamente consciente, mas que,
afinal, enquanto um conjunto de atos que so colados a um corpo especfico, a
fico regulatria do gnero s pode ser eficaz a partir de um esforo contnuo
daquela/e que o performatiza: assim, o gnero no apenas um produto de
uma matriz regulatria, mas tambm produto de um corpo especfico, um
corpo que o produz com a inteno de que ele se mostre coerente e, para que
ele se mostre coerente, preciso seu contnuo esforo de reiterao.
Deste modo, para alm de uma performance isolada que busca
transformar um ato especfico em marco temporal e espacial, o processo cuja
nfase est posta na obra de Butler o da performatividade: no um ato
isolado, mas um conjunto de atos que s atingem seus efeitos regulatrios a
partir da reiterao e repetio. O gnero no existe sem a repetio. Um ato
que comea e termina no garante a eficcia da forma de substncia, ele

58

precisa, afinal, ser repetido e reiterado num processo sem fim de construo e
reconstruo dos atos corporais. Em seus termos:
O gnero no deve ser construdo como uma identidade estvel ou
um locus de ao do qual decorrem vrios atos; em vez disso, o
gnero uma identidade tenuemente constituda no tempo, institudo
num espao externo por meio de uma repetio estilizada de atos. O
efeito do gnero se produz pela estilizao do corpo e deve ser
entendido, consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os
gestos, movimentos e estilos corporais de vrios tipos constituem a
iluso de um eu permanente marcado pelo gnero. Essa formulao
tira a concepo do gnero do solo de um modelo substancial da
identidade, deslocando-a para um outro que requer conceb-lo como
uma temporalidade social constituda. Significativamente, se o gnero
institudo mediante atos internamente descontnuos, ento a
aparncia de substncia precisamente isso, uma identidade
construda, uma realizao performativa em que a platia social
mundana, incluindo os prprios atores, passa a acreditar, exercendoa sob a forma de uma crena. (Butler, 2003, p.200)

A estilizao do corpo qual Butler se refere como constitutiva desse


gnero que materializado vai ao encontro do que Cinderela e Mulan nos
sugerem. Mais importante do que entender a partir de quais adjetivos que
Cinderela ou Mulan tem seus reconhecimentos enquanto mulheres admirveis,
entender o quanto este tornar-se mulheres admirveis est intrinsecamente
relacionado com uma materializao de gnero coerente e bem executada
sobre seus corpos. Uma estilstica de gnero aperfeioada, um conjunto de
atos dentro de um sistema de significao a partir da diferenciao de gnero
bem executados o que garante que no s seus sonhos e honras sejam
conquistados, mas que, inclusive, suas existncias enquanto pessoas sejam
socialmente tornadas inteligveis.
Enquanto complacentes ou heroicas essas Princesas se firmam como
exemplos de feminilidades possveis de serem performatizadas nas relaes.
E se, como diria Butler, o gnero a primeira forma de dar significado a uma
pessoa, pelo domnio do conjunto de atos estilizados que materializam uma
forma de gnero que, ento, so inteligveis no sistema de significao de
pessoas.
Neste sentido, uma outra referncia faz-se aqui importante. Enquanto
Butler apresenta a matriz heterossexual como um dispositivo regulatrio que
opera a partir da distino de gnero, Teresa de Lauretis, tambm com forte

59

inspirao na obra de Michel Foucault, coloca em funcionamento a noo de


dispositivo para poder pensar o prprio cinema. De Lauretis (1994), partindo
da viso terica foucaultiana que, ao ver a sexualidade como uma tecnologia
sexual, ou seja, nas palavras de Foucault, o conjunto de efeitos produzidos
em corpos, comportamentos e relaes sociais por meio do desdobramento de
uma complexa tecnologia poltica (FOUCAULT, 2005 apud DE LAURETIS,
1994, p. 208), aponta para a constituio de saberes e mecanismos capazes
de implantar representaes de gnero entre os indivduos: o que ela chamou
de tecnologias de gnero.
Para ela, o cinema seria um desses mecanismos. Um dispositivo que
tem o poder de controlar o campo simblico de criao e reproduo de
significados atribudos quilo que se entende por gnero. Todavia, entendendo
que, assim como para Foucault (2005a) o poder no apenas repressivo, mas
tambm produtivo e criador de significados, pensar o cinema enquanto um
dispositivo abre-nos a possibilidade de investigarmos no apenas as formas
em que o gnero assume em suas narrativas, mas ainda, e aqui
principalmente, como estas formas so por sua audincia entendidas e
recriadas.
Neste sentido, se Cinderela e Mulan, em seus textos narrativos, indicam
que a feminilidade de uma Princesa pode estar referendada a partir de atos
benevolentes ou heroicos, para sua audincia, tais referenciais podem estar
indicados por sentidos diversos queles propostos pela narrativa. Sempre
sujeitos a possibilidades de negociao, os sentidos de um texto, como
destaca Gledhill (1988), podem produzir deslocamentos inesperados e mostrar
novas possibilidades de leituras.
A exemplo disso, se era a Princesa Cinderela a personagem evocada
por Julia ao rodar at que seu vestido ganhasse o ar, a performance da menina
do pr mostrava que algum nvel de dilogo havia entre os referenciais por ela
compreendidos como princesa e o ato de girar que era por ela construdo em
seu corpo. Deste modo, avanando ainda em relao ao que foi aqui
apresentado, pensar no cinema enquanto um mecanismo de veiculao de um
repertrio de gnero pens-lo tambm como uma fonte para a produo do
prprio gnero e, assim, cabe pesquisa emprica com a sua audincia,

60

buscar compreender os efeitos que tal dispositivo pode produzir na constituio


de sentidos de gnero.

61

Captulo 3
Do lado da audincia
Quando em 2009 iniciei a pesquisa de campo em uma Escola Municipal
de Educao Infantil de Marlia, no podia prever que aqueles meses seriam
cruciais para os outros dois anos que se seguiriam. A extenso das questes
sobre o filme Cinderela de Walt Disney s Princesas, marca de
licenciamento de produtos ramificada do estdio cinematogrfico, significou
tambm a extenso de um rico material produzido a partir das leituras e
sentidos dos filmes entre as mais diferentes crianas.
Era logo cedo quando Joana, a professora da EMEI, em Marlia, passou
em casa para pegar a mim e aos aparelhos eletrnicos. A execuo da
segunda fase da pesquisa, as conversas com as crianas aps a exibio do
filme Cinderela, necessitava, antes de tudo, de uma complicada logstica para
exibir o filme s crianas. Com recursos materiais limitados, a escola dispunha
apenas de um aparelho televisor e um aparelho de DVD, usado para exibir os
filmes. Porm, desde que a sala de vdeo fora emprestada para uma turma da
Escola de Ensino Fundamental (EMEF) vizinha e transformada em sala de
aula, o acesso aos aparelhos de comunicao ficou restrito s disputas
espaciais no interior da creche.
Joana recusava-se a pedir para a direo da escola o remanejamento da
turma da EMEF. Julgava que se assim procedesse, abriria brechas para
exigirem favores dela em contrapartida e, desse modo, teria que submeter-se
s ordens e comandos evitveis. O conflito, latente no ambiente escolar entre
professoras, coordenadoras e administradoras da EMEI, deveria ser evitado e,
por essa razo, decidimos levar, ns mesmas, o que quer que fosse necessrio
para exibir o filme s crianas: com um televisor, um aparelho de DVD,
extenses eltricas e alguns controles remotos em punhos fomos para a
creche.
Conforme iam chegando sala, a euforia das crianas crescia ao ver os
aparelhos j instalados. Seguiu-se repetidamente a pergunta o que a gente vai
ver?

entre

as/os espectadoras/es aflitas/os e

as manifestaes de

comemorao ao ouvirem a resposta a Cinderela. Rapidamente as crianas


acomodaram-se pela salinha e a alegria se conteve na expectativa de ver o

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filme. Sob o play do controle remoto, um silncio pairou sobre a turma.


Vidradas na televiso, as crianas assistiram, atentas, todo o filme.
J na EMEB, em Jundia, nenhuma peripcia precisou ser construda
para que os filmes pudessem ser discutidos. Tendo cada sala de aula seus
prprios equipamentos, uma televiso e um aparelho de DVD, tudo ocorreu de
modo mais rpido e prtico. Contudo, a dificuldade na recepo dos filmes
ficou por conta da conciliao entre as minhas demandas de pesquisa e o
rgido cronograma semestral da professora.
Uma vez que a escola seguia um material didtico comum a toda rede
municipal de ensino, a professora preferiu que os filmes fossem discutidos
apenas quando todo o contedo semestral j tivesse sido aplicado nas aulas e,
por isso, o perodo de recepo ficou restrito s ltimas aulas antes das frias
de meio de ano. A negociao feita com a professora, ainda que tenha me
garantido um perodo de conversa mais livre com as crianas, restringiu, em
contrapartida, a recepo dos filmes aos dias de baixo qurum nas aulas:
antecipando o clima de frias, foi com bem menos crianas em sala de aula
que pude realizar as atividades inicialmente planejadas de discusso sobre
Cinderela e Mulan.
Mas no faltou criana na escola particular em Jundia. Levando os
filmes conforme meu planejamento inicial e s duas turmas de crianas na
mesma unidade escolar, l tive a liberdade para conduzir todo o perodo de
conversas e desenhos sobre os filmes. Passada mais da metade do perodo de
trabalho de campo, dois meses portanto, reservamos dois dias para a exibio
e discusso dos dois filmes dentre os das Princesas entre as crianas. Como
de costume, qualquer atividade feita fora da sala de estudos j era, em
princpio, motivo de alegria e entusiasmo entre as turmas. Antes de dizer quais
filmes assistiramos, a professora explicou que seria uma atividade importante,
pois assistiramos aos filmes devido meu dever de casa, tarefa da minha
escola que, tal qual os deveres dali, necessitava de dedicao. Deste modo,
quando amos para a salinha de brinquedos, onde ficava o aparelho de
televiso e de DVD para a reproduo dos filmes, a trupe de crianas ia com o
sobreaviso de que apesar de estar no ambiente de recreao, aquela seria
uma atividade que exigiria ateno delas. Ateno esta, inclusive, cobrada

63

pela professora a cada alterao maior de barulho vinda do meio de crianas


apinhadas no tapete da salinha.

Calando o Sapatinho de Cristal com Cinderela.


O suspense em torno do ttulo do primeiro filme no demorou muito para
ser desfeito na escola particular quando as imagens iniciais comearam
aparecer na tela: a Cinderela! gritavam na salinha de brinquedos da escola
particular. E no demorou tambm para que as demonstraes de eu tenho
esse e eu j vi esse filme surgissem. Meninas e meninos queriam mostrar
uns para os outros que conheciam a histria, fosse porque tinham o DVD em
casa ou porque assistiram pela televiso. E no economizavam nos
comentrios tambm. Geovani fazia questo de apresentar as personagens
conforme elas iam entrando em cena. Isadora, Marcela e Samantha
disputavam quem era a Cinderela. Daniel e Marcos estranhavam o vestido
que Cinderela cor-de-rosa feito pelos ratinhos e argumentavam com um no
azul?. E, em seguida-se, Kau, ao ver o vestido azul to comum nas imagens
das Princesas, disse aliviado: agora virou Cinderela.
Enquanto assistia ao filme com as crianas, percebia as nuances de
interesses provocadas pela narrativa. Algumas cenas, como na qual o Rei
discute com seu servial a convocao do baile, no despertavam muito
interesse das crianas, abrindo espao para comentrios alheios ao que
ocorria na tela da TV. Contudo, outras cenas eram unnimes em prender a
ateno: as transformaes mgicas de Cinderela, tanto quando ganhava o
novo vestido da fada madrinha como quando ao dcimo segundo badalar do
relgio o feitio se desfazia deixando-a com a aparncia anterior ao baile, a
cena em que o prncipe a v e em seguida eles danam no salo do baile, ou
ainda a dramtica cena do final do filme, na qual os ratinhos tm que subir um
enorme lance de escadas levando a chave que abre o quarto onde Cinderela
est trancada e, assim, livr-la em tempo de experimentar o sapatinho de
cristal para se casar com o prncipe, eram os principais momentos em que as
crianas voltavam toda a ateno ao filme.
Em seguida, era hora de desenhar. Depois do filme exibido para as duas
turmas do pr durante o perodo de aula pedi para que as crianas
desenhassem em uma folha em branco a parte do filme que mais gostou e,

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por fim, pedi para que cada criana falasse sobre o seu desenho. No est em
nosso escopo analisar os desenhos estritamente pelo seu contedo ou por seu
valor artstico, mas, ao invs disso, os desenhos serviram como um recurso
metodolgico para incentivar a fala das crianas sobre o tema e da retirar
nossas impresses. Por isso, mais importante que o desenho em si, so as
falas produzidas a partir deles, algumas delas ditas para toda a sala por
solicitao da professora e outras ditas apenas para mim, enquanto as crianas
me indicavam nos desenhos o que tinham ali ilustrado.
Pelos desenhos e na fala sobre eles as crianas exprimiam aquilo que
havia mais chamado a ateno no filme e suas impresses sobre a histria.
Dentre os desenhos da escola particular, sete deles apresentavam cenas
protagonizadas pelos animais amigos de Cinderela, cenas como da
transformao deles pela fada madrinha, ou da disputa entre os ratinhos com o
gato de estimao da madrasta, ou a cena em que os ratinhos sobem a escada
com a chave. As crianas produtoras desses desenhos, cinco meninos e duas
meninas, quando citavam o nome de Cinderela, era para localizar a cena que
elas preferiam no contexto geral do filme, mas nunca atribuindo-lhe o
protagonismo na cena que mais gostaram.
Os outros vinte e seis desenhos foram produzidos a partir de Cinderela e
das cenas por elas protagonizadas. Alguns temas por elas falados remetiam s
cenas em que a protagonista estava em situaes dramticas ou de muita
realizao. Alguns deles, os mais dramticos, apesar de representar a minoria
dos desenhos, traziam uma variedade de cenas onde Cinderela era posta em
conflito: ou com as irms malvadas quando destruam seu primeiro vestido de
baile, quando tambm, depois disso, ela chorava no jardim (o que ocasiona a
apario da fada) ou ainda quando depois de liberta do quartinho e pronta para
calar o sapatinho de cristal trazido pelo representante oficial do prncipe, v o
calado se estilhaando no cho depois de uma trapaa da madrasta.
Por outro lado, as cenas de realizao pessoal da protagonista eram as
mais evidenciadas pelas crianas. A grande maioria dos desenhos e das falas
se debruava sobre essas imagens e ilustravam o fascnio que o felizes para
sempre parecia suscitar entre o pblico dos contos de fadas. Contudo, apesar
do maior nmero de crianas terem escolhido cenas de realizao, o nmero
de cenas no variava tanto assim: concentrando-se em trs categorias pelas

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crianas destacadas, os desenhos eram compostos pela parte que eles tavam
danando, a parte do casamento e o vestido.
Um encantamento particular foi provocado pela cena em que Cinderela e
o prncipe danam no baile. Esta foi a cena favorita de muitas crianas e a
maioria delas justificou com o simples fato que eles danam, como, por
exemplo, Guido (desenho 1) e Mariana (desenho 2). Las (desenho 3)
justificava sua escolha porque os dois to junto. Renata e Cntia se atentaram
ainda a outros detalhes da cena. Renata (desenho 4) enfatizava o destaque
dado Cinderela na cena e falava sobre o momento em que o prncipe a v:
Ela no tinha fazido como as outras damas, da ele foi l junto com ela. A
menina no s mostrava que a sua cena preferida era a da dana como ainda
indicava, em seu desenho, bales de pensamentos saindo da cabea de
Cinderela e de seu prncipe: ela quer danar com ele e ele quer beijar ela.

Desenho 1

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Desenho 2

Desenho 3

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Desenho 4

Cntia (desenho 5 e 6), por sua vez, fez dois desenhos ao invs de um.
No primeiro deles, ela destacava o mesmo instante de fascinao do prncipe
em relao Cinderela ao qual se referia tambm Renata, em que o prncipe
conhece ela e a parte que eles vo danar, e, segundo justificava, por
causa que eles danam. J no outro lado da folha, Cntia se deteve na cena
seguinte dana no baile, quando eles saem de vista das outras pessoas ali
presentes e, em privacidade, eles se beijam na escada, como ela dizia. Era o
primeiro beijo dado pelo casal no filme e, segundo a menina, essa cena era
importante por causa que romntico.

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Desenho 5

Desenho 6

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Romntica tambm era a cena do casamento de Cinderela com o


prncipe, onde o to esperado desfecho de felizes para sempre do filme era
dado. Na verso cinematogrfica da Disney, imediatamente aps a
protagonista experimentar o sapatinho de cristal (o segundo, j que o primeiro
fora quebrado pela madrasta) e provar que era ela a moa que havia
despertado todo encanto do prncipe, os sinos de uma igreja apresentam a
cena em que Cinderela e seu esposo saem felizes do casamento e entram
numa suntuosa carruagem, de onde acenam para as pessoas ao seu redor.
Nos desenhos produzidos pelas crianas que disseram ser a parte do
casamento a favorita, muitos desses elementos foram evidenciados. Milena
(desenho 7) destacou no apenas Cinderela e o prncipe, como tambm o Rei,
cujas aparies estavam diretamente vinculadas realizao do baile, no qual
o par romntico formado, e a casa da madrasta. Segundo ela, a parte do
casamento era a que mais tinha gostado porque ficou muito bonito a
paisagem do casamento, porque gostei deles casando. Jssica (desenho 8)
compartilhava a opinio e desenhando uma carruagem cor-de-rosa com um
prncipe e uma princesa dentro se beijando, dizia que gostava da paisagem,
das pessoas saindo do casamento, deles se beijando, eu achei a carruagem
linda.
J Alexandre (desenho 9) me mostrava a carruagem em seu desenho,
dizendo que eles to dentro e justificando a preferncia pela cena do
casamento porque da ela no foi mais naquela casa, se referindo casa da
madrasta, onde era maltratada. Jos (desenho 10), por sua vez, na mesma
folha em que desenhou a Cinderela casando com o prncipe, desenhou
tambm os ratinhos que virou cavalo e dizia ter escolhido a cena do
casamento como sua preferida, porque era de paixo.

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Desenho 7

Desenho 8

71

Desenho 9

Isadora (desenho 11) fez um desenho bastante elaborado. Mostrou-me a


princesa, o prncipe e os ratinhos jogando ptalas de flores sobre os noivos
casando. Era tambm a parte do casamento que ela tinha mais gostado e,
para ela, essa era a parte mais interessante porque o vestido da princesa era
lindo. Alis, o foco dado ao vestido de Cinderela no foi exclusividade de
Isadora. Denise (desenho 12) desenhou justamente ela [Cinderela] indo ao
castelo (...) por causa do vestido, da tiara, do sapato e dela como ela tava. O
vestido era o grande destaque de seu desenho, assim como no de Marcela
(desenho 13), que desenhou um vestido todo colorido e com laos para
representar a cena de quando Cinderela ps o vestido que os bichinhos dela
fizeram, antes de ser destrudos por suas irms.

72

Desenho 10

73

Desenho 11

Desenho 12

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Desenho 13

Na EMEB, tambm em Jundia, a diviso espacial das crianas j


comeava a sugerir uma demarcao de gnero. Chamadas pela professora
ao centro da sala, as crianas montaram uma plateia com suas cadeirinhas no
centro da sala, de frente ao aparelho televisor. Mas a plateia por elas composta
parecia estabelecer uma fronteira entre as nove meninas sentadas nas duas
fileiras da frente e os oito meninos sentados nas fileiras de trs.
L no demorou muito para que as crianas tambm reconhecessem
Cinderela e se afeioassem pela histria da personagem. Mais uma vez eram
as mesmas cenas as que causavam mais entusiasmo: Ellen se chocou com a
cena em que Cinderela agredida pelas irms e deixada aos farrapos, seu
corpo exprimia tenso olhando para a televiso e com um rosto de
preocupao me perguntava se a personagem no ia ao baile. Em
contrapartida, a transformao dos animais pela fada madrinha causou furor
em toda a turma e tapando a boca aberta em um enorme sorriso, Amlia
esboava surpresa quando o prncipe tirava Cinderela para danar.
Quando ento as preferncias foram passadas ao papel, o gnero
demarcou tambm os dois principais temas justificados nos desenhos.
Destacando diferentes cenas, as crianas elegeram dois argumentos para

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terem desenhado-as: ou o esforo nos desenhos indicavam uma preferncia


esttica ou uma preferncia romntica.
Predominante entre as meninas, o argumento esttico destacava o quo
bela era Cinderela e seu vestido. Ellen desenhou a cena quando eles tavam
danando, mas justificou a escolha porque a Cinderela ficou com um vestido
bonito (Desenho 14).

Desenho 14

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O vestido foi o destaque tambm para o desenho de Luana: dizendo ter


desenhado a parte em que os ratinhos fez o vestido, era porque o vestido
dela ficou lindo, mas as irms rasgaram, mas a fada madrinha fez outro lindo
que ela dizia ter feito a ilustrao (Desenho 15). E Mariana, por sua vez, em
seu desenho que trazia Cinderela dando comidinha, alm de um corao
desenhado sobre a personagem, argumentou que gostou porque eu achei ela
bonita, que bonita porque o prncipe gosta dela (desenho 16).

Desenho 15

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Desenho 16

Alis, o prncipe gostar dela estabelecia a relao com o outro grupo


de crianas que destacavam o romance como argumento para justificarem
suas preferncias de cenas no filme. Juliana foi a nica menina dentre quase
todos os meninos da turma a destacarem essa justificativa. Desenhando a
parte do casamento (desenho, inclusive, com os elementos iguais aos de
Luana), ela dizia que porque eles casam, a eles moram num castelo e
vivem felizes para sempre que a cena tinha lhe agradado (desenho 17).

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Desenho 17

O romance tambm foi o tema do desenho de Breno que destacou


quando ela foi no castelo danar com o prncipe justificando porque ela fez a
Cinderela se apaixonar (desenho 18).

Desenho 18

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Depois de danarem no palcio, Cinderela e o Prncipe do, enfim, seu


primeiro beijo, tema do desenho de Julian que, ilustrando a princesa no
castelo e a parte que o rei beijou a princesa (Desenho 19).

Desenho 19

Wagner, por sua vez disse ter mais gostado daquela parte que o
prncipe tava com a Cinderela dentro da carroa, me mostrou seu desenho de
quando eles foram felizes para sempre e argumentava sua preferncia
porque um sorri um pro outro (desenho 20).

Desenho 20

80

A centralidade na figura de Cinderela, comum maioria dos desenhos


feitos nas duas escolas em Jundia destoaram, em contrapartida dos desenhos
feitos em Marlia. Na EMEI, assim como na EMEB, a diviso de gnero entre
as crianas marcou tambm uma diviso temtica entre os desenhos, contudo,
em Marlia, foi exatamente pela pouca ateno dada Cinderela que os
meninos empreenderam seus esforos ilustrativos e demarcaram a diferena.
Nos setenta e quatro minutos em que Cinderela foi exibida na EMEI em
Marlia, as mais diversas reaes surgiram. Paralisadas nas cenas da
madrasta e eufricas nas cenas de perseguio entre os animais, as crianas
pouco a pouco reagiam ao filme. Luisa era a mais falante de todas.
Insistentemente, a menina narrava todas as cenas do filme contando aos
demais o desenrolar da histria que assistiam e, insistentemente tambm,
levava broncas e queixas das crianas ao seu redor que eram impedidas de
ouvir as falas das prprias personagens enquanto ela mostrava que, afinal,
sabia o filme.
A ateno e a comoo generalizada eram facilmente percebidas pelo
silncio e pelas gargalhadas da/os espectadoras/es nos arranjos narrativos.
Quando a madrasta aparecia, todas/os se calavam num temor explcito
personagem, mas quando eram as perseguies entre ratinhos-gato-cachorro
ou, ainda, a interao entre Cinderela e os animais que ocupavam a cena, a
agitao tomava conta do pblico. Oscilando entre o suspense e a comdia, o
filme prendeu os olhares das crianas e preencheu aquela manh.
J ao final da histria, nas cenas em que Cinderela dana
apaixonadamente com o prncipe no baile, Tales, enfim, fez a primeira
reclamao ao filme: de menina a Cinderela, tia! Eu queria o do Relmpago
McQueen!. Feita a reclamao, Tales era pego novamente pelas cenas finais
de suspense de Cinderela e no deixava de se envolver com a cena em que os
animais, muito dramaticamente, a salvam de seu crcere.
A reivindicao por um filme de menino, como diria Tales, tal como o
Carros20 em que Relmpago McQueen protagoniza uma histria de ao e
20

Carros, dirigido por John Lasseter, 2006. Produzido pela Pixar e distribudo
internacionalmente pela Walt Disney Pictures, Carros uma animao em computao grfica
que narra a histria de Relmpago McQueen, um famoso e egocntrico carro de corrida que
depois de perder-se numa cidadezinha do interior e encontrar carros muito diferentes dele,
levado a questionar seus valores e condutas.

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aventura, no obteve consenso entre as crianas enquanto assistiam ao filme.


Tales foi o primeiro e o ltimo a questionar o filme enquanto ele era transmitido
e mesmo depois, quando conversamos sobre o filme, ele era uma das crianas
que mais sabia descrever as cenas do longa metragem, mostrando que,
mesmo contragosto, havia se atentado ao filme.
Mas se por um lado Tales fora o nico menino a se incomodar com
Cinderela enquanto era exibido, no foi o nico, porm, a evidenciar as
barreiras de gnero quando os desenhos e comentrios comearam a surgir.
Ao trmino do filme, tendo Cinderela finalmente calado o sapatinho de cristal e
o pblico aplaudido com empolgao o desfecho cinematogrfico, perguntei
para as crianas qual parte do filme mais haviam gostado e as respostas que
surgiram evidenciaram as diferenciaes de gnero na recepo.
As meninas, unanimemente, disseram ter mais gostado das cenas em
que a protagonista, Cinderela, era evidenciada: insistindo em associar a cena
do baile com a ideia de casamento, as meninas destacavam os momentos
quando Cinderela vestiu o vestido de noiva brilhante, o do baile, quando ela
calou o sapatinho de cristal e, com a maior incidncia de comentrios, quando
foi beijada pelo prncipe. J os meninos, por outro lado, sequer citaram o nome
da protagonista do filme. Para eles, o melhor de Cinderela era a aventura e os
perigos que corriam os animais. As atrapalhadas dos ratinhos, a disputa entre
Bruno (o co amigo de Cinderela) e Lcifer (o gato malvado das irms
invejosas), o cavalo e, principalmente, a cena que exprimia o clmax da tenso
na qual os ratinhos desesperadamente levam a chave que soltar Cinderela do
quartinho foram os elementos que mais encantaram a audincia masculina.
Essa preferncia pelas partes do filme em que Cinderela saa de cena
foi evidenciada pelos desenhos produzidos no dia seguinte pelas crianas.
Tanto era notvel o nmero de desenhos que destacavam as cenas
protagonizadas pelos animais, como, ainda, em trs desenhos os meninos
trouxeram elementos externos ao universo do filme ali discutido. Tales,
transpondo para o papel sua reivindicao por um filme de menino, fez
questo de desenhar o Relmpago McQueen, do filme Carros, ao lado de
Cinderela. Destacou ainda os ratinhos da narrativa e, talvez para deixar o
desenho mais parecido com aquilo que ele entende por de menino, desenhou

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tambm dois Hot Wheels, carrinhos em miniatura colecionveis e que


estampam diversos produtos consumidos pelos meninos (Desenho 21).

Desenho 21

Lucas e Pedro, por sua vez, radicalizaram ainda mais a oposio.


Cinderela vinha escrito no desenho de Pedro, assim como a professora havia
pedido para copiar da lousa, contudo, era o Megazord que ele me mostrava
em seu desenho (Desenho 22). Lucas tambm trouxe como referncia o

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Megazord, grande rob formado pela conjuno de carros dos Power


Rangers e usado para combater o mal na srie televisiva de grande sucesso na
Televiso aberta, colocando-o, ainda, ao lado de uma moto e de outros Hot
Wheels (Desenho 23).

Desenho 22

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Desenho 23

A recusa dos meninos em desenhar elementos do filme da Princesa ao


mesmo tempo em que traziam personagens tidas como prioritariamente
masculinas (marcadas por elementos ligados tecnologia das mquinas e
robs, exposio de lutas ou personagens animais) parecia compor um esforo
de demarcao de gnero em relao s outras crianas e em relao s
minhas expectativas. Retomando as contribuies de Stuart Hall (2003) aos
estudos culturais, vale ressaltar que as leituras produzidas de um texto

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miditico no dependem apenas dos referenciais nele contidos, mas tambm


dos significados acionados no momento da recepo pela audincia. Nesse
sentido, as leituras da Cinderela produzidas pelas crianas elucidam os
sentidos apropriados e significados a partir das experincias e do arcabouo
referencial trazidos por elas mesmas na recepo.
Enquanto um texto que no completamente fechado e controlado, a
narrativa de um filme no fornece uma leitura nica a priori, mas sim,
metaforicamente, fornece as margens pelas quais os significados podem ser
apreendidos e criados pela audincia. Durante a exibio de Cinderela, s
crianas se abria a possibilidade de relacionar os referenciais trazidos pelo
filme com aqueles trazidos por elas prprias, a partir das experincias e
vivncias acumuladas durante suas vidas.
O olhar generificado das crianas conduziu o processo de significao
do filme e, assim, meninas e meninos, leram Cinderela no apenas por uma
linguagem comum de imagens, sons e falas necessrias ao ato de assistir
um filme , mas, tambm, a partir de certa posio no sistema de
classificaes de gnero. A concentrao dos temas de interesse das crianas
em determinadas cenas ou personagens de acordo com as identificaes entre
meninas e meninos no era fruto de um acaso, mas antes, de uma estrutura
classificatria na qual crianas se transformam em meninas e meninos.
Inseridas desde cedo no processo de diferenciao de gnero, as
crianas no assistiam a Cinderela de um ponto neutro, isento de pr-leituras,
mas a partir de um arcabouo referencial que posiciona tudo e todas/os a partir
das diferenciaes simblicas entre o feminino e o masculino. O filme no foi
considerado de menina o suficiente para causar recusa entre os meninos,
contudo, no gerou leituras iguais entre as crianas que ao mesmo tempo e em
um mesmo lugar assistiram-no, mas provocou reaes diversas em um pblico
pelo gnero marcado e orientado.
Quando assistiam ao filme meninas e meninos no encontravam as
mesmas razes para assim faz-lo: elas queriam ver a Princesa, o
sapatinho ou o beijo com o Prncipe, enquanto eles ansiavam pelas brigas
dos bichinhos, pelos cavalos transformados em cocheiros ou at mesmo em
Relmpagos McQueens ausentes na narrativa. As cenas com os bichos em
Cinderela pareciam apresentar um lugar de interesse comum do pblico a partir

86

de uma identificao com os elementos que, ao fundo, podem ser entendidos


como de criana, operados a partir da marcao geracional e no de gnero.
Apesar da aura de Princesas estar de modo geral mais associada aos
interesses do pblico feminino, a humanizao de personagens no-humanas,
comum linguagem das fbulas e presente em muitos dos filmes Disney, era
um dos elementos narrativos que podiam classificar Cinderela no s como um
filme de menina, mas tambm como um filme de criana e foi justamente
nestes elementos que os meninos concentraram suas atenes e demarcaram
seus interesses.

Indo guerra com Mulan


Aps a ampliao da pesquisa de Cinderela na Iniciao Cientfica para
as Princesas no mestrado, partimos da oposio entre clssicas e rebeldes
sugerida pela Disney para buscar compreender diferentes noes sobre
feminilidades negociadas entre as personagens da marca. Por isso, alm de
Cinderela, durante a pesquisa de campo realizada nas duas escolas de
educao infantil de Jundia, buscamos os sentidos e leituras produzidas pelas
crianas tambm acerca de Mulan, filme que traz uma protagonista rebelde
em sua narrativa.
O filme Mulan parecia ser menos conhecido do que Cinderela entre as
crianas da Escola particular. Apesar de algumas crianas fazerem os
costumeiros comentrios nas cenas iniciais mostrando que j conheciam o
filme, a maioria delas encarou a histria com muito mais curiosidade do que a
anterior havia recebido. Enquanto as cenas de conflito tomavam a tela da
televiso, a turma se silenciava diante dos embates de guerra e a tenso
tomava a sala.
As demarcaes de fronteira entre o bem e o mal se fizeram mais
evidentes para as crianas, e impulsionou grande parte dos comentrios feitos
a partir do filme. Em muitas das ilustraes feitas depois da exibio do longametragem, a justificativa de uma preferncia s cenas em que o bem venceu o
mal, como dizia Murilo, se multiplicaram, revelando o impacto que cenas de
conflito direto entre as personagens provocaram entre as crianas: eu no
gosto das pessoas do mal, enfatizava Guido (desenho 24).

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Desenho 24

Perpassados por este tema maniquesta de o bem que vence o mal, os


desenhos e as falas produzidas aps a exibio do filme da Mulan, dividiram-se
em dois grandes eixos: primeiro, a interao da protagonista com os seres nohumanos, fossem com os seus animais de estimao ou seres mgicos
(drages) por ela combatidos ou enviados para sua proteo; e, em seguida,
as aes dela em funo da guerra, desde o momento em que deixa seu pai
desolado depois de fugir de casa para lutar em seu lugar, passando pelas
situaes em que ela posta em combate, at o reconhecimento de seu
herosmo pelo imperador, j ao final da histria.
Dentre as cenas mais faladas, aquela em que Mulan alimenta seus
animais, no harmonioso clima pr-guerra, se destacou principalmente entre as
meninas. Foram elas as autoras de todos os desenhos que ilustravam a cena e
que pronunciavam falas justificando suas escolhas por ter sido, tal cena, uma
situao engraada ou porque achavam o cachorro bonitinho, como dizia
Vnia (desenho 25). Bianca (desenho 26) tambm fez seu desenho baseado
em uma cena que achou engraado, mas preferiu aquelas protagonizadas
pelos animais do mal, ao invs dos amigos de Mulan.

88

Desenho 25

Desenho 26

Os drages e a atmosfera mgica que os cercavam caram no gosto das


crianas e, por mais que estivessem ali como os representantes do mal, o
interesse por estas criaturas foi ilustrado por muitas delas, como Jos (desenho
27), um dos meninos a colocar os drages como protagonistas da ilustrao.

89

Desenho 27

A relao de Mulan com os seres no-humanos, animais de estimao


ou seres mgicos, davam a tnica de comdia ao filme e, talvez por isso,
fossem to lembrados pelas crianas em seus desenhos. Personagens de uma
narrativa marcadamente tensa devido s sequncias de conflitos na guerra

90

contra os Hunos, o filme Mulan reservava aos seres no-humanos os


momentos de maior descontrao. Tal estratgia narrativa parecia assemelharse ainda com as cenas trazidas por Cinderela: era pela relao da protagonista
clssica com seus animais de estimao que o contexto de sofrimento vivido
pela personagem se dissolvia e mais leveza era atribuda ao filme.
Ao contrrio do que havia se contornado na escola municipal de Marlia,
na escola particular de Jundia decidir se referir mais aos animais e seres
mgicos nos desenhos no parecia ter necessariamente uma orientao de
gnero. Se por um lado, em Marlia, referir-se aos animais ao invs de
Cinderela parecia um demarcador de masculinidade entre as crianas, em
Jundia por outro lado, muitos meninos e meninas conferiam s personagens
no-humanas o protagonismo de seus desenhos.
Carregados de uma carga cmica, os seres no-humanos de ambos os
filmes quebravam a linha dramtica das histrias e, ao mesmo tempo,
enriqueciam a dimenso ldica dos filmes. Fosse por animais falantes ou por
seres magicamente encantados, as personagens no-humanas ressaltavam a
ficcionalidade das narrativas e, acionando ainda a linguagem comum s
fbulas, ressaltavam a dimenso ldica to apreciada (e conhecida) pelas
crianas.
No outro eixo temtico de desenhos sobre o filme, estavam aqueles que
o destaque era dado protagonista da histria: Mulan. Apesar de a cena em
que ela corta os cabelos e se traveste de homem antes de ir guerra ter
provocado grande surpresa entre as crianas durante a exibio do filme,
Alexandre foi o nico a falar sobre o ocorrido a partir de seu desenho. Na
ilustrao do menino, havia tanto a cena em que a espada do imperador era
roubada, momento em que a guerra atingia o territrio do castelo, como
diziam as crianas, como a cena anterior, na qual Mulan corria a cavalo at a
residncia imperial e cuja importncia, segundo Alexandre, se dava porque
finge que um homem (desenho 28).

91

Desenho 28

As principais cenas protagonizadas por Mulan que as crianas se


referiam eram aquelas localizadas logo no incio do filme, durante a
apresentao das personagens, e as ltimas, quando a histria chegava ao
seu clmax e resoluo. Bonito era o adjetivo dado s cenas iniciais, tanto as
que mostraram o pai de Mulan colocando a flor na cabea dela, uma espcie
de presilha de cabelo decorada com flores, como tambm aquelas nas quais
Mulan saa escondida de casa para ir guerra como nos desenhos de
Mnica (desenho 29) e Nina (desenho 30). Havia algo nas cenas como estas
que fazia com que a preferncia por elas se restringisse apenas s meninas,
assim como as cenas finais, as de resoluo da histria.

92

Desenho 29

Desenho 30

93

J os desenhos produzidos na EMEB de Jundia tambm foram quase


todos sobre a relao de Mulan e sua famlia. Apesar da pouca quantidade de
crianas em sala no dia de exibio do filme e, consequentemente, de poucos
desenhos, o nmero reduzido de interlocutores me permitiu mais tempo e
calma para conversar sobre o filme. Dos oito desenhos criados pelas crianas,
seis deles traziam Mulan e seu Pai na composio: Isabela desenhou os dois
juntos a uma casa e a uma flor (desenho 31), assim como Renan, que dizia
ainda ter gostado do filme por causa do cavalo (desenho 32). E Ins disse ter
gostado tanto da parte que o prncipe dela queria cortar a barriga dela, mas
no cortou referindo-se cena em que o travestimento de Mulan descoberto,
como desenhou tambm a parte aqui que o pai dela segurou as flores, e que a
filha abraou o rei, trazendo em seu desenho Mulan ao lado de seu pai e sua
me (desenho 33).

Desenho 31

94

Desenho 32

Desenho 33

Entretanto, as cenas de batalha e reconhecimento de Mulan como uma


grande herona de guerra tambm entraram no conjunto de cenas mais
comentadas pelas crianas. Na EMEB, Paulo destacou a cena de batalha em

95

que Mulan estrategicamente derruba uma montanha de neve sobre seus


inimigos (desenho 34) e Jorge destaca a parte que as pessoas l e a menina
matou o capito e os amigos dele trazendo em seu desenho as pessoas que
abaixaram em reverncia ao herosmo de Mulan (desenho 35).

Desenho 34

Desenho 35

96

J na escola particular, a cena em que Mulan reconhecida como


herona pelo imperador mostrada por Jssica (desenho 36) como
emocionante e lindo, assim como dita importante por Lcia. A cena em que
ovacionada como herona e sai luta em proteo ao imperador citada por
Samantha (desenho 37) no desenho onde ela me mostra a menina e os
fogos de artifcio. Esta seria sua cena preferida, segundo ela, por causa que
eu achei ela muito legal, porque ela cortou o cabelo e muito bonita e, ainda,
colocando Mulan em comparao com Branca de Neve, outra personagem que
compe a marca Princesas da Disney, completava: porque o cabelo igual o
dela [curto, como o de Branca de Neve].

Desenho 36

97

Desenho 37

A parte que a Mulan salva as pessoas a que Cntia (desenho 38)


mais gosta e da mesma forma que mais gostou da cena em que Cinderela e o
prncipe se beijam no primeiro filme, a justificativa por que romntico, pois,
segundo ela, aqui, as pessoas ficam vivas. Porm, quando eu perguntei o que
era ser romntico para ela, a resposta mostrou mais de um sentido
empregado pela menina: ser romntico no era apenas a felicidade de um
desfecho onde todos, apesar das batalhas, permanecem vivos, mas tambm
romntico que eles ficam juntos, romntico as pessoas se casarem.

98

Desenho 38

Ao contrrio de Cinderela, Mulan no mostra um casamento ao final do


filme, terminando apenas com a sugesto de que Mulan e o general por quem
ela se apaixona viriam a ficar juntos. Mas se por um lado a dimenso do
romntico no era expressa pela imagem propriamente do enlace
matrimonial, como o da princesa clssica, o fato de que Mulan salva as
pessoas a pea fundamental na narrativa para que o general perdoe a farsa
mantida pela herona travestida durante o filme e junte-se a ela em uma
reconciliao amorosa.
O desfecho comum de um final feliz para ambas protagonistas
despontou como um dos principais temas para os desenhos das crianas. O
romantismo de Cinderela e o herosmo de Mulan pareciam envolver a maior
parte das crianas e, por isso, ilustrar a enorme quantidade de desenhos.
Assim como aponta Ien Ang (1996), pela ligao afetiva que o melodrama
est baseado. O enredo melodramtico, segundo a autora, fornece um espao
para a relao ntima entre as personagens e a audincia: destacando sempre
cenrios e situaes da vida pessoal das personagens, os conflitos ntimos
trazidos pelas narrativas propiciam um maior elo de empatia entre elas e o seu
pblico.

99

Segundo Ang, as situaes carregadas por um sofrimento cotidiano das


protagonistas do

melodrama

criam uma

empatia

da

audincia

que,

sensibilizada, se envolve emocionalmente com os dramas da narrativa. Uma


relao de afetuosidade , neste sentido, estabelecida entre as protagonistas e
sua audincia. Esta parecia ser a relao entre as protagonistas das Princesas
e as turmas de crianas.
O romantismo de Cinderela e o herosmo de Mulan despontaram como
temas centrais nos desenhos das crianas, independentemente da escola onde
estavam. Se em Cinderela o baile, o beijo e o casamento eram os grandes
temas desenhados, em Mulan a centralidade temtica estava nas vitrias da
protagonista, fossem aquelas na guerra ou fossem aquelas decorrentes da
vitria da guerra: a reconciliao com sua famlia e seu par romntico.
Cntia (desenho 6), da escola particular, ressaltava o baile como o
momento mais especial de Cinderela, uma vez que romntico, argumento
parecido com o de Wagner (desenho 20), da EMEB que, desenhando a parte
que o prncipe tava com a Cinderela dentro da carroa, dava ateno ao fato
de que eles foram felizes para sempre (...), um sorri um pro outro e Alexandre
(desenho 9), por sua vez, que desenhava a carruagem da cena final sob a
justificativa que da ela no foi mais naquela casa, referindo-se a casa da
madrasta m.
No ir mais para a casa da madrasta e se eximir de todas as relaes
que causavam o sofrimento cotidiano de Cinderela parecia ser a grande
superao da protagonista. Operando por uma lgica compensatria, era como
se, para aquelas crianas, o sucesso da relao romntica com o prncipe,
registrado pelo prprio casamento, representasse a grande recompensa ao
sofrimento vivido pela personagem ao longo de sua narrativa. O romantismo do
enlace matrimonial representava, ali, o sopro de alvio de uma audincia
sensibilizada pelas dores da gata borralheira.
Paralelamente, a vitria de Mulan em sua saga guerreira era a merecida
recompensa do sofrimento por ela vivido. Se a rejeio em sua famlia e,
posteriormente, a rejeio em seu batalho criavam os momentos de tenso e
compadecimento do pblico, sua heroica vitria sobre os Hunos os
recompensavam. Cntia (desenho 38), da escola particular de Jundia,
ressaltava a parte que a Mulan salva as pessoas como o clmax da histria

100

justificando, inclusive que era romntico e que romntico as pessoas se


casarem, atrelando o sucesso na guerra com o sugerido sucesso na relao
com o general, par romntico da protagonista. Jorge da EMEB (desenho 35),
do mesmo modo, escolheu a parte que as pessoas l e a menina matou o
capito e os amigos dele realando as pessoas que abaixaram em seu
desenho.
A ligao estabelecida entre as crianas e as protagonistas, neste
sentido, parecia se constituir por uma relao de envolvimento emocional, no
qual a compensao do sofrimento de Cinderela e Mulan ganhava grande
notoriedade. Alm disso, realar as pessoas que abaixaram para reverenciar
Mulan aps seu herosmo na China ou, como destacou Renata (desenho 4),
realar que Cinderela no tinha fazido como as outras damas, da ele
[Prncipe] foi junto com ela revelam ainda como tais protagonistas ganharam
um carter de especialidade para as crianas. Mais do que personagens
emocionalmente envolventes que tm seus sofrimentos recompensados, essa
recompensa , ainda, acompanhada de um reconhecimento pblico: Cinderela
e Mulan so, afinal, especiais e reverenciveis, seja como princesas de reinos
ou como heronas de guerra.
E as comparaes entre Cinderela e Mulan no param por aqui. Foi
justamente pelo exerccio de aproximao das duas personagens que a
questo sobre o que ser princesa pde ser colocada e seus
desdobramentos notados. Aproveitando a comparao suscitada por Cntia
entre ambos os filmes serem romnticos, pedi para que as crianas me
dissessem se achavam que Mulan era princesa, se Cinderela tambm o era e
o porqu.
A questo gerou uma enorme controvrsia entre as crianas. Para elas,
no havia o que ser discutido em relao integridade de Cinderela enquanto
uma princesa, mas Mulan, ao contrrio, estava em suspeio. Conforme eu
perguntava se Mulan era ou no uma princesa, as divergncias iam
aparecendo entre as crianas e grupos opositores se formando. Contudo, mais
importante ainda do que registrar quem colocava Mulan dentro ou fora da
categoria princesas, foi ouvir das prprias crianas quais eram os critrios
para essa classificao: logo aps o sim ou no se Mulan era tambm uma

101

princesa, vinham as justificativas sobre as respostas e, consequentemente, o


o que era preciso algum ter, ser ou fazer para entrar nesta classificao.
Pra ser princesa precisa de um prncipe, era o que me dizia Vnia para
justificar o porqu de Mulan no ser uma princesa enquanto Samantha
complementava: porque ela no casou, e tem que casar. O casamento
parecia compor um dos principais critrios para a formao de uma princesa:
pra ser princesa tem que casar, n?, dizia Renata, porque princesa solteira
no existe, seno no vai ser princesa, vai ser solteira.
A reivindicao de que tem que casar se repetiu entre as respostas das
crianas, no apenas entre aquelas que no achavam Mulan uma princesa,
mas tambm entre aquelas que concordavam com o rtulo da Disney.
Enquanto a necessidade de casamento era remetida na fala das crianas que
diziam Mulan no ser uma princesa, uma vez que em seu filme no h nada
alm de uma sugesto de que a protagonista teria conquistado seu par
conjugal, em contrapartida, essa sugesto j bastava para que o casamento
fosse pressuposto por outras delas. Adriana percebia a insinuao do filme e,
assim como Cntia que em seu desenho falava o quanto era romntico o
casal se manter unido ao final da histria, ela dava sim o ttulo de princesa
Mulan, porque ele queria casar com ela e ir no castelo.
Neste sentido, assim como o casamento parecia ser um dos elementos
centrais para a formao deste conjunto de personagens reunidas na marca
Disney (discusso proposta ao captulo anterior, a partir da anlise dos filmes
que compe a trupe de heronas da marca Princesas), ele se configurava como
um critrio fundamental tambm para a definio do que ser uma princesa
entre as crianas.
Contudo, assim como expressa a ideia do romntico elucidada por
Cntia, no era preciso, necessariamente, que uma cerimnia de casamento
ocorresse para que Mulan pudesse ser considerada uma princesa nesta chave
de pensamento. O fato de que na cena final era sugerida a reconciliao do
casal protagonista e que, ento, um casamento poderia ser dali imaginado, j
bastava para que os critrios de construo de uma princesa fossem
atendidos: subentendido no final feliz romntico estava a ideia de que, afinal,
para ser uma princesa, preciso haver ao menos a potencialidade de
realizao do amor conjugal.

102

Como diria Renata, princesa precisa casar, porque minha me disse


que importante se casar, pra ter um companheiro. Tendo cena de
casamento ou no, Princesa que princesa no solteira, mais cedo ou mais
tarde encontra um grande amor e com ele fatura um felizes para sempre.
Colocados nesses termos da necessidade da realizao do amor conjugal e
deste amor tornado pblico, pelo casamento ou por sinais mais sutis de que o
casal se manter, o elemento para que algum seja reconhecido como uma
princesa est, portanto, alocado em uma dimenso relacional: para existir uma
princesa , enfim, necessrio que haja um prncipe e com ele o
estabelecimento de uma relao.
Neste ponto meu argumento ressoa ecos da lgica estabelecida por
Marilyn Strathern para discutir o parentesco euro-americana em seu texto
Necessidade de pais, necessidade de mes (1995). Quando colocada em
termos comparativos ao sistema de organizao do parentesco melansio, a
polmica criada no Reino Unido com a procura de mulheres por mtodos
reprodutivos que se esquivassem ao intercurso sexual e os termos de
parentesco reivindicados naquela ocasio, as relaes de parentesco euroamericanas puderam ser explicitadas.
Segundo o argumento da autora, a legitimidade da maternidade dada a
uma me no dependia apenas do estabelecimento de uma relao entre me
e filha/o, mas, ainda, dependia de outra relao: a relao conjugal. Era
somente a partir de um pai, o terceiro termo da relao representado pelo
intercurso sexual, que uma pessoa poderia ser legitimamente reconhecida
como uma me. Assim, excluir o intercurso sexual do processo reprodutivo,
segundo o argumento da autora, equivaleria a excluir a representao da
relao da me com um pai e, por isso, todo o sistema de parentesco se
desestabilizaria.
De acordo com este argumento, o terror causado pela excluso do
intercurso sexual no processo reprodutivo equivaleria ao terror de uma possvel
excluso das relaes pressupostas como fundamentais para a prpria
maternidade. Neste sentido, o intercurso sexual cumpriria a importante funo
simblica (p. 313) de responder s necessidades sociais: ele assinala o
compromisso do casal e o aponta como ideal (p. 314). Deste modo,

103

parafraseando a prpria autora, em que medida as necessidades de princesas


estariam tambm acomodadas necessidade de prncipes?
Se pensarmos nas princesas enquanto uma representao de uma
forma de ser a partir do marcador de gnero e, ainda, pensarmos o gnero
como uma forma de dar significado prpria noo de pessoa, quais so as
implicaes de se estabelecer o triunfo do amor conjugal como elemento
constituinte dessa forma particular de existncia? Ou, em outros termos, o que
equivale dizer que uma princesa s princesa quando ela tem seu prncipe?
No mnimo, pensemos que para ser princesa ou, ainda, para ser essa pessoa
reconhecida enquanto tal necessrio, pois, estar em relao.
Entretanto, se por um lado as falas das crianas que associavam o
prncipe e o casar-se com ele s necessidades para se ser uma princesa, nos
remete a uma dimenso relacional desta constituio, por outro lado, outros
elementos foram evidenciados pela turma do pr. A centralidade do vestido, da
coroa21, da beleza e elegncia daquela que cogita o posto de princesa ganhou
notoriedade entre o maior nmero de crianas. Fosse para desclassificar Mulan
como tal pela falta de algum item ou para coloc-la como uma representante
daquilo que poderia ser chamado de princesa, esses eram elementos
constituintes de uma espcie de esttica do ter e do ser.
Uma forma delineada sobre como algum deve ser era um dos critrios
definidores de uma princesa. Ela de luta, argumentava Gabriel, da escola
particular, contra a ideia de Mulan ser uma princesa. Ela no tem coroa, e toda
princesa tem coroa; ela precisa dos vestidos l e pegar uma coroa, porque ela
no tem nada disso, e no princesa porque ela ficou batendo naquele
homem, a outra [Cinderela] no faz nada, complementava. J Jssica achava
que a personagem no tem jeito de princesa, tem jeito de adolescente e
Alexandre que princesa tem que falar a verdade, o que a destituiria do posto
uma vez que passa boa parte do filme sob disfarce de soldado. Tanto pelos
atributos de passividade, maturidade ou sinceridade, que segundo as crianas
das falas acima teriam o poder de desclassific-la como uma princesa, tais
avaliaes sobre determinadas aes que acabam por definir o comportamento
21

Acessando a pgina inicial das Princesas Disney dos EUA (http://disney.go.com/princess/),


logo aps ouvirmos a saudao Bem vindo ao mundo mgico das Princesas Disney, abre-se
a possibilidade de adentrar o site especfico de cada princesa escolha e, dentre os jogos
disponveis, experimentar diversos modelos de vestidos, coroas e colares em cada uma delas.

104

de uma pessoa faziam parte tambm da noo que Bruna denominava como
elegante. Para a menina, Mulan era uma princesa, pois, assim como todas as
outras, era elegante, ou seja, porque elas falam bem com as pessoas 22.
Nesta noo, parecia estar envolvido um critrio sobre como Mulan mostrava
ser para o mundo, no necessariamente em sua relao com outras
personagens especficas, mas no sentido de uma apresentao de si para o
mundo ao seu redor, ou, como dizia Denise, por causa do jeito que ela age, de
se comportar e fazer coisas boas pras pessoas.
Fbio no considerava Mulan uma princesa e fazia careta enquanto dizia
que ela precisa tirar a maquiagem branca [maquiagem que lembra a de uma
gueixa], porque tava muito feio, e precisa passar batom e Marcela, assim
como muitas crianas das turmas, dizia que por causa que ela linda j
bastava para ser uma princesa. Deste modo, pelas falas produzidas pelas
crianas a partir de seus desenhos, essa dimenso esttica compreendida a
partir de uma forma de ser parecia balizar alguns dos critrios do que constitua
uma princesa para as crianas.
Fosse pela ideia de elegncia ou pela noo de beleza, o contorno das
aes e da aparncia de uma princesa era controlada e esperada. Neste
sentido, foi notvel o desenho feito por Lia: destacando a parte que ela tava
tirando o lacinho, a menina da escola particular, trouxe ilustrada uma Mulan de
cabelos amarelados, loira (desenho 39).

22

Aqui algumas conexes podem ser feitas com o que Norbert Elias chamou de Processo
Civilizador (1990), a partir do qual um determinado comportamento delineado tendo em vista
um ethos francs de civilidade historicamente construdo e difundido.

105

Desenho 39

Se no bastasse um determinado comportamento a ser assumido para


ser referida enquanto uma princesa, estar ainda dentro de um padro esttico
especfico aparecia como um outro importante critrio. Deste modo, pudemos
notar que se as crianas se referiam s princesas enquanto pessoas
essencialmente lindas, os parmetros por elas utilizados de beleza, como
evidenciado no desenho de Lia, parecia conter referenciais bastante difundidos
de uma beleza, no mnimo, branca e, alm disso, jovem, tendo em vista a
recorrente referncia s personagens a partir do termo menina.
Nilma Lino Gomes (2003), em trabalho sobre manifestaes de racismo
na educao ressalta exatamente a questo do corpo, do cabelo e dos critrios
estticos de beleza para mostrar como, na escola, o racismo tambm est
expresso. Ressaltando o status inferior que o cabelo crespo, por exemplo,
adquire frente ideia mais hegemnica de beleza, a autora aponta os
processos pelos quais diferenas corporais so transformadas em marcas de
desigualdade.
Lia parecia j compartilhar dos referenciais sociais que estabelecem
prioridade aos fentipos brancos para definir o que belo em uma pessoa. A
caracterizao marcadamente oriental da personagem no filme no foi

106

suficiente para direcionar a leitura que a menina faria da prpria imagem da


personagem: de cabelos amarelos e rosto cor-de-rosa claro23 Lia afirmava que,
afinal, Mulan era princesa por causa que ela bonita.
Ademais, se por um lado uma princesa tinha que cumprir alguns
requisitos em uma ordem de ser, por outro lado, ela precisava, tambm, ter.
Princesa precisa de coroa, ser bonita e usar vestido. Ela princesa porque
tem a coroa de florzinha e a pessoa mais bonita da China, salientava Bruna.
E comparar a presilha ornamentada com flores que Mulan ganhara de seu pai
com uma coroa, era um procedimento comum entre as crianas.
no uso de um vestido lindo, como disse Mariana, acompanhado da
coroa como um acessrio principal (e outros tantos como colares e sapatos de
salto) que uma princesa pode ser produzida. Uma coroa, ou um acessrio de
cabelo tornado equivalente, e um vestido (mas que no era um vestido
qualquer) eram requisitos bsicos para uma princesa ter.
Apoiada em um leque de coisas possveis de se ter, essa outra
dimenso na constituio da ideia de princesa em muito ressoava a
representao manifesta nos manuais de marketing por Heloisa Buarque de
Almeida (2003) destacados: a feminilidade est, em geral, marcada pelo
consumo. Para ser princesa, nesse sentido, era preciso ter, consumir uma
srie de objetos tornados signos para a representao desta forma especfica
de feminilidade.
Neste sentido, articulados todos ao mesmo tempo, esses elementos
sobre aquilo que se tem e aquilo que se criam um efeito esttico que era
apresentado, pelas crianas, como critrio daquilo que constitui uma princesa.
Desse modo, se por um lado, como discutamos anteriormente, a dimenso
relacional do casar-se evidencia a relao conjugal enquanto um dos critrios
sobre o que ser uma princesa, por outro lado, o casamento, o exato instante
do casar-se, despontou como o pice desta realizao esttica na constituio
de uma princesa, como indicava Samantha: ela pe vestido, pe brinco,
pulseira, anel, arruma o cabelo e vai casar.

23

Aqui pode-se ainda questionar a utilizao do termo cor de pele para se referir aos tons de
bege e cor-de-rosa dos lpis de colorir das crianas, exemplo de mais uma forma com a qual
os fentipos brancos so tomados no apenas como superiores mas, ainda, como universais.

107

O casamento configurava, assim, o momento no apenas em que a


necessidade de uma realizao conjugal para a construo de uma princesa
era atendida atravs do enlace com o prncipe, mas, ainda, um momento
especial no qual algum poderia vestir um lindo vestido, usar uma coroa e
mostrar ao mundo como se tornou bonita e elegante. A recorrncia com que o
casar-se aparecia nas falas, aliada s falas que indicavam a necessidade de
um prncipe, demonstraram por um lado a centralidade da realizao do amor
conjugal no esforo de se tornar uma princesa, mas tambm, por outro lado, a
centralidade do casamento para a realizao dos efeitos estticos apontados
pelas crianas como essenciais uma princesa, aproximando a figura da
princesa com a imagem da noiva: de vestido invejvel e coroa na cabea,
pronta para casar-se. De princesas a noivas, o que parecia estar em questo
entre as crianas era, afinal, uma dimenso na qual, em ltima instncia, o que
se tem compe o que se ou o que se pode ser.

108

Captulo 4
Entre coisas e corpos
Passando mais da metade do horrio letivo na salinha, concentradas
ou no em suas atividades, as crianas da EMEI em Marlia pouco
encontravam momentos de descontrao e brincadeira, uma vez que estavam
submetidas ao olhar atento da professora e deviam obedecer as regras
disciplinares que o ambiente exigia. Contudo havia sempre a hora do parque:
o momento de maior euforia das crianas, e, tambm, quando eu realmente
podia estar com elas, para alm da condio de Tia e ajudante. Ainda que,
para a professora, eu estivesse dando uma ajuda nas atividades escolares ao
observar as crianas, foi no parquinho que eu pude, efetivamente, aproximarme e compreender melhor as interaes entre as crianas. Foi entre gira-giras,
gangorras, tanques de areia e balanos aos ps das rvores que a pesquisa
mostrou seu outro lado: era no parque, longe dos olhares e broncas das
adultas, que as crianas tinham mais margem para serem quem quisessem.
Depois de algumas horas na salinha e uma refeio servida no recreio,
as crianas corriam apressadas para o parque. Muitas vezes sem mesmo
limparem as mos ou as bocas ainda sujas pela comida servida pelas
merendeiras, como em uma competio de agilidade as crianas debandavam:
do refeitrio passavam pelo ptio principal arremessando blusas, sandlias,
tnis e bolsas na caixa de pertences da turma e, descalas, mergulhavam no
parquinho. Entre os brinquedos coloridos e dispostos nos tanques de areia, os
dois gira-giras, as quatro gangorras, o trepa-trepa, as duas estruturas metlicas
que suspendiam os balanos e o quiosque central, os meninos e as meninas
organizavam-se no espao do parque. Embora a correria inicial em direo ao
parquinho indicasse um descontrole das crianas, aos poucos, durante a
observao, as regras e organizaes que estavam subjacentes apropriao
daquele espao foram surgindo: as brincadeiras ali executadas eram
ordenadas, controladas e regradas.
Enquanto um ato orientado por normas, as brincadeiras acionadas no
parquinho eram rigorosamente diferenciadas pelos marcadores de gerao e
de gnero e podiam ser classificadas entre brincadeiras de criana, de
meninas e de meninos. Para alm das brincadeiras de menina e de menino,

109

marcadas pelas diferenciaes de gnero e mais facilmente identificveis na


diviso espacial do parque (das quais trataremos em seguida), a brincadeira
de criana era aquela em que o marcador geracional era acentuado.
Indistintamente meninas e meninos subiam e desciam do trepa-trepa,
balanavam, suspendiam-se nas gangorras e gira-giravam: a diverso se fazia
pelas altas velocidades e grandes alturas atingidas nas estruturas metlicas
dispostas no parque. Indistintamente meninas e meninos brincavam nos
instrumentos que categorizavam aquele ambiente enquanto um parque,
espao direcionado s brincadeiras das crianas. L elas tinham livrecirculao. Observadas de longe pelo olhar adulto, que pouco ousava adentrar
o solo fofo de areia e arriscar-se nas vias de vai-e-vem de corredores mirins
aflitos, as crianas e somente elas eram esperadas no parque.
Tal distino geracional, na qual a apropriao do espao, dos
brinquedos e das brincadeiras feita tanto pelas crianas quando dirigida a elas
foi revelada quando eu, em um dia que tentava encontrar maneiras de driblar o
frio que fazia na cidade, resolvi subir e descer no trepa-trepa e gira-girar nos
brinquedos. Meu ato de brincar como elas nos brinquedos delas causou um
tumulto antes no-imaginado: de todos os lados crianas surgiam exclamando
a tia t no trepa-trepa, a tia t no trepa-trepa e encaixavam-se na armao de
ferro na qual eu estava.
Apinhadas no brinquedo, a reao de surpresa e de espanto das
crianas demonstrava uma realocao de sentidos naquele ato: o tumulto
causado por uma adulta que brincava num brinquedo de criana, enquanto
uma subverso das normas implicitamente fixadas, pde revelar as fronteiras
geracionais que normatizavam aquele espao e evidenciar, afinal, que havia ali
muitas regras acionadas e subentendidas.
Contudo, essa era apenas uma das diferenciaes expressas pelas
brincadeiras. A distino mais fortemente marcada pelas crianas, entretanto,
era a de gnero. Enquanto uma minoria quantitativa da turma concentrava-se
nos brinquedos e brincadeiras de criana, a maioria delas dividia-se entre
brincadeiras de menina e brincadeiras de menino: sob um espao
dicotomicamente demarcado e separado, meninos espalhavam-se pelos
tanques de areia e meninas iam para o quiosque central.

110

Reunidas sob o quiosque do parque uma estrutura arredondada,


coberta por um telhado de zinco, que abrigava alguns bancos de madeira , as
meninas repetiam diariamente a mesma brincadeira. Juntavam todos os
potinhos e pazinhas que podiam, distribuam-nos pelos bancos, ou seja, pela
casa, e, depois de decidirem quem seria mame e quem seria filhinha,
iniciavam um cozimento sem fim de papinhas, bolos, feijes, arroz-doce e
pudins feitos a partir sempre do mesmo ingrediente: a areia do parquinho.
Invariavelmente a brincadeira requeria duas decises bsicas: a de quem seria
cada um dos potinhos e pazinhas num primeiro momento e, em seguida, em
uma ardente discusso, a de quem seria a mame.
Ser a mame significava assumir a posio de poder e prestgio dentro
da brincadeira, significava, como consequncia, ter direito aos melhores
potinhos e utenslios domsticos e significava tambm comandar as atividades
ali desempenhadas. Todas as funes realizadas dependiam do aval da
mame, estavam todas as demais meninas subordinadas s suas decises e
relacionadas ao seu papel na casinha: eram suas filhas, irms ou vizinhas.
Era somente da deciso de quem seria a mame normalmente personagem
essa desempenhada sempre pelas mesmas meninas, aquelas com maior
poder de convencimento sobre as demais que a brincadeira efetivamente se
iniciava.
Certo dia, chegando ao parque depois das crianas, me surpreendi ao
ver Miguel no quiosque brincando com as meninas. Era a primeira vez que via
um menino brincando de casinha com elas e, por isso, apressei-me em ver
como elas estavam se organizando. Como de praxe, perguntei sobre o que
elas e ele estavam brincando e Francine, mais do que depressa me respondeu:
de casinha. Explicou-me que ela era a mame, que a Juliana era a outra
mame ambas sempre brigavam muito para decidirem quem seria a mame
na brincadeira e, vezes ou outras, acabavam optando pela opo de duas
mes na brincadeira que a Mnica era a filhinha mais velha, a Ellen era a
beb e o Miguel era o cachorro.
Contraditoriamente s expectativas acerca da concepo tradicional de
um ncleo familiar, que esperava-se estar representado pelo brincar de
casinha, o menino, nico na brincadeira, no era o papai, mas sim o Rex
que, de quatro no cho, a todo tempo latia e relutava aos comandos de sair da

111

cozinha. As mames cozinhavam nos potinhos, as filhinhas dormiam ou


choravam em seus beros e Rex fazia a vez de bichinho da casa. Os dias
foram se passando e a cena se repetindo. Meninas de um lado pegando e
organizando potinhos, meninos brincando do outro lado do parque e Miguel,
intermediando essa separao, de Rex na casinha.
A minha inquietao sobre a figura de Miguel como o cachorro da
casinha perdurou por dias at, finalmente, que uma discusso travada entre
duas meninas da turma, semanas depois, pareceu indicar os sentidos dados s
brincadeiras pelas crianas. Sentadas na fila do ptio, antes de iniciarem as
atividades, percebi que Juliana e Isabela discutiam. Fiquei observando a
discusso e tentando identificar qual era o problema entre as duas quando
Juliana, percebendo a minha ateno, logo exclamou: tia, a Isabela brinca
que nem menino, no ?. Assustada com a questo, pedi explicaes e a
menina respondeu-me: porque quando a gente t no parque, ela no brinca de
casinha com as meninas, ela brinca de bicho que nem menino!.
Naquele momento as fronteiras de gnero entre brincadeiras, que at
ento pareciam ser corrompidas pela presena do Miguel entre as meninas na
casinha, se reconstituram. O menino ao brincar na casinha no se comportava
como as meninas: alm de no fazer as comidinhas com elas, ele no
compartilhava das posies humanas que elas representavam, mas estava ali
como o cachorro, o bicho de que Juliana referia-se. O estatuto distintivo
entre brincadeiras de meninas e brincadeiras de meninos, elucidado por
Juliana, mantinha-se intacto naquelas situaes: apesar de estarem num
mesmo lugar e numa mesma brincadeira, as meninas continuavam a brincar
de casinha e os meninos, Miguel nesse caso, continuavam a brincar de
bicho.
Tempos depois foi a vez de Bruno e Caio reforarem a diviso.
Sozinhos, no cantinho do parque os meninos brincavam com os mesmos
potinhos e pazinhas que as meninas, debaixo do quiosque, cozinhavam.
Cheguei perto para conferir e perguntei: vocs esto brincando de casinha?;
Bruno, inconformado com a pergunta, respondeu: no, n tia, tamo fazendo
bolo. A partir de ento o fazer bolo que para mim parecia equivaler-se a
brincar de casinha apresentou uma nova nuance. Bruno e Caio fizeram
praticamente todas as etapas da brincadeira que as meninas tambm faziam:

112

eles juntaram os potinhos e as pazinhas de plstico, distriburam e


organizaram-nos pela arquibancada do parquinho, assim como as meninas
faziam no quiosque. Contudo, para comear o cozimento dos bolos, eles no
fizeram algo que era crucial para elas: no estabeleceram nenhuma relao de
parentesco.
Quando Bruno respondeu-me dizendo que estava fazendo bolo, ele
queria distinguir-se das meninas que estavam brincando de casinha, alm de
fazerem bolo. Nesse sentido, parecia que brincar de casinha no se
delimitava na representao e repetio dos afazeres domsticos que as
crianas, provavelmente, viam em suas casas, mas se constitua a partir da
atribuio das relaes de parentesco e dos papis sociais institudos no
ncleo familiar: o brincar de casinha comeava quando, afinal, se iniciava a
discusso sobre quem seria a mame e quem seria a filhinha na
brincadeira, processo no qual os meninos recusavam-se a participar. Tanto
Miguel, o cachorro, quanto Bruno, o fazedor de bolos, compartilhavam os
mesmos espaos ou os instrumentos da casinha usados pelas meninas,
porm, esquivando-se de qualquer representao de laos familiares, para
eles, em nenhum momento o que faziam era brincar de casinha.
Correr e chutar eram as principais atividades masculinas no parquinho.
Normalmente dispersos em grupos de quatro ou cinco, os meninos faziam de
suas brincadeiras, assim como as meninas, uma sequncia de imitaes
repetidas cotidianamente. Quando no estavam brincando de bicho, cuja
organizao consistia na fuga desenfreada do grupo perseguido por um
monstro ou animal malvado imitado por algum deles, os meninos estavam
brincando de imitar algum personagem por eles apreciado. Power Rangers e
Ben 10, de longe, foram os mais invocados durante esta pesquisa.
Entre os meses de maro a julho de 2009, os Power Rangers Fora
Mstica (Figura 7), 14 temporada da srie produzida no incio pela Saban
Entertainment e, posteriormente, pela Disney, trazia um grupo de cinco jovens
(trs homens e duas mulheres), responsveis pela preservao do planeta
constantemente atacado por viles robs, vampiros e aliengenas e era
veiculado diariamente pela Rede Globo de Televiso no programa infantil
matinal TV Globinho.

113

Quando estavam em combate, os cinco jovens se transformavam ou,


nos termos utilizados pela srie e reproduzidos pelas crianas, eles morfavam
- em Power Rangers: trocavam suas roupas comuns por uma espcie de
uniforme de combate em tecido brilhante e diferenciados por cores, onde
amarelo, vermelho e verde eram vestidos pelos homens e azul claro e cor-derosa pelas mulheres. Morfados, iniciavam as lutas e acionavam seus
respectivos Zords, robs altamente poderosos e sofisticados que, a partir de
uma incorporao da personalidade de seus donos e donas, eram sempre
decisivos nas batalhas contra o mal.

Figura 7

J Ben 10 (Figura 8), apesar de tambm combater o mal e defender o


planeta, contrariamente aos Power Rangers, luta sozinho. A animao,
produzida pelos estdios Cartoon Network desde 2005 traz Ben como um
pequeno heri. Aps encontrar um relgio contendo o DNA de 10 diferentes
aliengenas, o menino passa a ajudar as pessoas e a combater a invaso de
seres aliengenas que vm em busca do dispositivo. Alm de exibido pelo canal
de sua produtora na rede paga de televiso, Ben 10 era diariamente veiculado
pelo SBT (Sistema Brasileiro de Televiso) na rede aberta e, durante o perodo
de pesquisa, obteve um crescimento observvel de pblico e produtos para o
consumo infantil.

114

Figura 8

De relgios nos punhos os meninos saam pelo parque: eles eram o Ben
10. Correndo de cantos a cantos, os meninos simulavam cenas de combate e
fuga, nas quais o Ben 10 da rodada era sempre escolhido a partir de quem
tivesse mais objetos do menino caa-aliengenas. Quem no possusse o
relgio, ou uma camiseta ou nem mesmo a sandlia estampada com o
personagem do desenho estava, no limite, em um status inferior na brincadeira:
poderia at brincar com o Ben 10 escolhido, contudo, como seu ajudante
improvisado ou at mesmo como o inimigo, jamais como protagonista.
Personificado nos corpos daqueles meninos, os heris da televiso, de Ben
aos Rangers, materializavam-se nos tanques de areia.
Desde o incio do trabalho de campo, ainda em Marlia, meu olhar se
colocava sempre procura de vestgios dos referenciais da mdia que
poderiam operar em uma espcie de educao da feminilidade e da
masculinidade. Tomando os produtos miditicos como ponto de partida desta
investigao, no precisei de muito esforo para encontrar as personagens dos
filmes e da TV entre as crianas. Em meio s pastas de plstico padronizadas
da EMEI de Marlia logo reconheci Cinderela dentre as Princesas do mundo

115

Disney em uma pequena etiqueta adesiva. Na pasta vermelha de Juliana um


enorme adesivo colorido trazia Cinderela, Bela Adormecida, Branca de Neve,
Bela e Ariel alegremente reunidas.
Na creche em Marlia, as pastas escolares utilizadas pelas crianas
eram todas padronizadas. Ainda que diferenciadas por cores, quatro ou cinco
misturam-se entre as pastas vermelhas, as azuis, as verdes ou as amarelas,
indistinguveis entre si, a no ser pelas etiquetas. Ao contrrio da maioria das
crianas, que tinham suas pastas identificadas por meio de uma discreta
etiqueta branca colada no rodap do seu material, Juliana tinha um adesivo
enorme das Princesas colado na frente de sua pasta e, por isso, a cada vez
que ela aparecia dentre as demais pastas na hora de serem distribudas, a
turma toda sabia rapidamente a quem aquele material deveria ser destinado.
Facilitando o trabalho da professora ao distribuir as pastas para a turma
de crianas alvoroadas, as etiquetas se tornaram um importante instrumento
de distino entre as crianas. Coloridas, desenhadas, detalhadas ou
simplesmente brancas, o adesivo alm de cumprir com sua funo de
identificao, acabou cumprindo tambm a funo de diferenciao entre as
crianas: ter um adesivo melhor que o outro parecia fazer da/o dona/o da
pasta mais especial.
Sentado ao meu lado pela primeira vez, Alex ficou satisfeito em ver sua
pasta sob minha mesa. O menino tinha acabado de ouvir-me perguntando
Juliana qual das princesas em sua pasta ela mais gostava (e ela ter respondido
que gostava mais de todas) quando, puxando minha camiseta para chamarme a ateno, disse: olha tia, a minha do Hot Wheels24!. A borda espessa, a
ilustrao de dois carros de corridas soltando fascas de seus pneus e a
inscrio Hot Wheels parecia fazer daquela etiqueta muito mais que um
instrumento de identificao. O esforo do menino para que eu me atentasse
ao seu adesivo e ao detalhe de que ele era, afinal, do Hot Wheels parecia
indicar que, para ele, uma etiqueta podia representar tambm aquilo que ele
desejava mostrar sobre si mesmo.

24

Hot Wheels uma marca de carros de brinquedo, introduzida pela indstria de brinquedos
estado-unidense Mattel em 1968, que, atualmente, alm das miniaturas de carros de corrida
colecionveis, produz filmes, desenhos e uma grande diversidade de bens voltados ao pblico
infantil.

116

As imagens do Hot Wheels estampadas nas pastas e cadernos de Alex


personalizavam o material escolar do garoto, colocando-o em correlao e
distino aos materiais escolares dos demais: ter uma etiqueta de um famoso
desenho ou ter uma etiqueta simples, branca e sem qualquer referncia a
personagens infantis, demarcava uma posio dentre os referenciais sociais
daquelas crianas entre elas mesmas. Em se tratando de crianas de camadas
populares, os produtos por elas consumidos tendiam a ser aqueles com
menores custos como, por exemplo, pastas de plstico de uma s cor, sem
desenhos estampados e mais baratas que aquelas contendo o desenho de
suas personagens favoritas. Contudo, a padronizao das pastas que, ali,
haviam sido distribudas pela prpria prefeitura municipal, no garantia a
indiferenciao: um adesivo das Princesas ou do Hot Wheels colado na pasta
mostrava que aquela criana tinha algo de especial e incomum em relao s
outras crianas25.
Estabelecendo demarcaes econmicas entre as crianas e o
significado de estar entre o limite de ter e no ter os bens consumidos em
sala de aula, ainda que sutilmente, revelaram classificaes e diferenciaes
que eram, ali, operadas. No bojo desse sistema, mais um marcador da
diferena emergia: o gnero. Enquanto as etiquetas simples, sem desenhos,
demarcavam por um lado o baixo poder de consumo de quem as detinha, as
etiquetas personalizadas alm de representarem uma forma de diferenciao
econmica, eram ainda expresso da diferenciao de gnero entre as
crianas: meninos consumiam etiquetas do Hot Wheels ou do Homem Aranha
e meninas consumiam das Princesas ou da Barbie.
Marcados pela diferena de gnero, as etiquetas estampadas com
personagens familiares das crianas expressavam o lugar entre a feminilidade
e a masculinidade que as crianas estavam posicionadas e, ainda, no contexto
social daquela turma, marcava ainda a posio delas mesmas em um sistema
de diferentes posies de acesso ao consumo: ao menos classe e gnero eram
acionados para determinar de onde aquelas crianas se posicionavam em
relao todas as outras.
25

Um produto vendido com a marca Princesas, ou de outros personagens famosos com apelo
infantil, tende a ser mais caro do que outro similar sem personagens ou com personagens
menos populares entre as crianas. Esse foi o caso tambm dos Ovos de Pscoa que sero
adiante discutidos.

117

Entretanto, essa ntima relao entre mdia, gnero e consumo, na qual


a mdia oferece produtos generificados para o consumo entre sua audincia
foi tema j destacado por Heloisa Buarque de Almeida (2003 e 2007). Segundo
a autora, para alm da promoo de imagens, narrativas ou personagens, a
mdia tem o poder de promover tambm o consumo. A partir de um estudo
realizado em Montes Claros, MG, durante a exibio da novela O Rei do
Gado entre junho de 1996 e fevereiro de 1997, a autora buscou elucidar a
relao entre novela, consumo e gnero identificando a promoo do consumo
pela influncia da mdia entre seu pblico. Em suas palavras:
A televiso vista pelo meio profissional de marketing e publicidade
como parte integrante do desenvolvimento do pas, transformando a
populao em mercado consumidor ativo, criando uma disposio ao
consumo nos termos dos prprios profissionais do meio publicitrio
ou televisivo. Pode-se afirmar que se trata de constituir os
espectadores em consumidores, e para a complexidade desse
processo e para o papel ativo da novela na constituio de seus
receptores em consumidores que quero chamar ateno. (ALMEIDA,
2007, p. 179).

A autora, debruando-se na correlao entre televiso e publicidade,


localiza a telenovela em dois polos de sustentao do consumo: o consumo
cotidiano da prpria narrativa melodramtica da novela, de suas personagens e
estrutura folhetinesca, exige do pblico um domnio sobre a linguagem na qual
a narrativa se desenrola comumente assentada sob referenciais simblicos
de grandes centros urbanos e de consumo do pas, como So Paulo e Rio de
Janeiro, onde as tramas se desenrolam o que, por sua vez, faz da telenovela
uma grande vitrine de novos produtos, valores e costumes e acaba por
promover tambm o consumo (ALMEIDA, 2003).
Em se tratando de Cinderela, materiais escolares, mochilas, decoraes
de festas infantis, fantasias, roupas estampadas, calados, roupas de cama e
banho, brinquedos e adesivos (dentre tantas outras coisas) sob a rubrica
Disney de As Princesas, faz com que A Princesa como era identificada
entre algumas crianas seja consumida, alm de seu filme.
Seja por suas roupas desbotadas e aparentemente de segunda mo, ou
seja pelos chinelinhos de plstico e pelo material escolar modesto, a maioria
das crianas da Tia Joana demonstravam vir de famlias com pouco poder
aquisitivo e, consequentemente de consumo. De filhas de manicures, filhos de

118

operrios da indstria alimentcia local ou netos de catadores de materiais


reciclveis, a turma da creche pouco acesso tinha aos produtos disponveis
pela sociedade de consumo. Contudo, apesar das limitaes econmicas, os
bens de consumo especialmente voltado ao pblico infantil (como os produtos
das Princesas) estavam presentes mesmo entre as crianas provindas das
camadas populares.
A enorme diversidade de produtos disponveis no mercado, enquanto
promovem a intensificao do consumo a partir da sobre-exposio das
personagens nas vitrines e propagandas publicitrias, conseguem, ao mesmo
tempo, atingir crianas de todas as classes sociais: ao invs de uma mochila
da Cinderela, que custa por volta de 139,90 a 169,0026 reais, uma criana de
baixo poder aquisitivo pode consumir, por exemplo, uma etiqueta adesiva,
estampada com a mesma princesa e vendida por um baixo custo em qualquer
loja de material escolar.
Diferenciaes eram em todos os instantes acionadas entre as crianas.
Por meio de brincadeiras de meninas e meninos, chinelos novos do Homem
Aranha, ou por personagens favoritos da TV, ou ter o ltimo DVD dos Power
Rangers, as classificaes e distines de gnero interseccionadas com as
noes de se ter ou no alguma coisa eram constantemente operadas. Certa
vez, foi a prpria atividade escolar que impulsionou tal diferenciao.
Sendo a nica das trs escolas que no seguia um material com
contedo apostilado e fixo, habitualmente as atividades propostas s crianas
pela

professora

da

EMEI

sofriam

bastante

influncia

das

datas

comemorativas e eventos ocorridos no decorrer do ano. Assim como havia


tarefas sobre as frias, o aniversrio da cidade, dia do ndio, dia das mes e
dos pais, natal e etc., havia tambm sobre a pscoa, a qual pude presenciar. A
semana que precedeu as comemoraes da Pscoa voltou-se quase que
exclusivamente ao tema: msica do Coelhinho da Pscoa, recorte-cola de
desenhos de cenouras e exerccio de escrita da palavra COELHO, tomaram
aqueles dias. Como finalizao das atividades, a professora pediu para que as
crianas, no caderno de tarefas do final de semana, colassem as embalagens
dos Ovos de Pscoa que ganhassem e depois escrevessem embaixo o nome

26

Segundo o site de comparaes de preos http://www.buscape.com.br em 05/05/2009.

119

da marca do ovo. Com pastas de tarefas entre as mos, as crianas partiram


para o feriado prolongado de pscoa.
Na semana seguinte, como j era de costume eu auxiliar a professora de
Marlia, fui colar nos cadernos das crianas a tarefa do prximo final de
semana27 e aproveitei para olhar como elas haviam se sado na tarefa anterior.
Provavelmente, o objetivo da atividade residia no incentivo alfabetizao, em
as crianas deterem-se na escrita de palavras que esto cotidianamente em
seu vocabulrio, como marcas de produtos. Contudo, a princpio, trs questes
podem ser levantadas a partir da tarefa: 1) em nenhum momento previu-se a
possibilidade de alguma criana no ganhar um ovo de pscoa; 2) no se
pensou sobre o possvel estmulo ao consumo ao atentarem-se sobre marcas e
produtos; 3) e, por fim, que a atividade pudesse ser utilizada como base a
classificaes e discriminaes entre as crianas.
Em primeiro lugar, a atividade proposta partia do pressuposto de que
todas as crianas receberiam ao menos um ovo de pscoa para colar a
embalagem na tarefa, independentemente das condies financeiras impostas
ao consumo ou da disposio das famlias para a comemorao que, no fundo,
religiosa. Se uma criana provinda de uma famlia com restritas condies ao
consumo de ovos de pscoa ou de uma religio no-judaico-crist, por
exemplo, no ganhasse o presente, ela estaria excluda da tarefa daquele final
de semana.
Em seguida, a propsito da alfabetizao, a atividade exigia a ateno
das crianas e daqueles que as auxiliam na tarefa para a diferenciao dos
produtos ofertados ao consumo no mercado, o que, consequentemente, abre
as portas para a diferenciao entre os consumidores.
Discriminaes de classe e gnero foram postas em ao durante a
tarefa. Enquanto via as embalagens dos ovos, percebia a ntida diferenciao
econmica das crianas ali presentes: umas tinham ovos da Barbie, da Polly,
do Hot Wheels e do Ben 1028, de grandes marcas disponveis no mercado 29

27

Inclusive, para efeitos ilustrativos, a tarefa se tratava de uma atividade sobre o Dia do ndio
e pedia para as crianas escreverem mandioca entre os dizeres o que o ndio come e a
imagem de uma criana com penas sob a cabea. Para uma discusso aprofundada sobre
como a populao indgena representada nos bancos escolares, ver: ROCHA, 1984.
28
Barbie uma famosa boneca criada em 1959 e produzida pela Mattel que, por dcadas, tm
encantado crianas de todo o mundo e espelhado a criao de novas bonecas, como, por

120

nacional, enquanto outras tinham ovos da Top Cau ou ovos sem marca que
traziam nas embalagens apenas os dizeres Feliz Pscoa.
Eu estava com o caderno do Alex aberto, vendo seu Kinder Ovo
quando, ao meu lado, o menino reconheceu o seu ovo e exclamou: o meu
tia!. No mesmo instante, Luan, sentado na fileira ao lado, retrucou: ele achou
no cho, tia. Alex, constrangido, tentou se defender. Disse que no havia
encontrado no cho, como Luan o acusava, mas que tinha ganhado de
presente de seu pai no dia da pscoa. Eu, no meio da discusso, virei a pgina
do caderno com o intuito de mudar o foco das atenes e os meninos pararam
de brigar.
O que estava em discusso entre aqueles dois meninos era o poder, ou
no, de consumir um Kinder Ovo, um produto com alto valor de mercado,
considerado caro em relao aos outros ovos de chocolates. Luan, partiu do
pressuposto que quem pega algo do cho no paga para t-lo e atacava Alex
pela desqualificao de sua possibilidade de consumo. Do outro lado, ofendido,
Alex se preocupava em me convencer que aquele Kinder Ovo realmente era
dele: o que estava em jogo ali era a prpria posio do garoto dentro de um
sistema de consumo.
Adiante nas tarefas, deparei-me com a embalagem de um ovo do High
School Musical 330 colada no caderno do Cssio. Afora a deturpao do
propsito alfabetizador da atividade, uma vez que a grande maioria das marcas
dos ovos transcrita pelas crianas estava na lngua inglesa (j que se tratavam
de produtos internacionalizados), chamou-me ateno um bilhete, escrito a
mo e assinado pela me do menino, ao lado da tarefa. No recado, destinado
professora, a me dizia que Cssio ganhara um ovo de pscoa do Hot Wheels,

exemplo, a Polly, tambm produzida pela Mattel a partir de 1999, diferenciada pelo menor
custo e tamanho.
29
Os ovos com personagens trazidos pelas crianas eram produzidos em sua maioria pelas
empresas Lacta e Garoto.
30
High School Musical , tambm conhecido como HSM (2006, Dir. Kenny Ortega) um
musical voltado para o pblico adolescente produzido originalmente para para a TV pelo
Disney Channel Original Movie. O filme narra a histria de dois adolescentes que se conhecem
na escola e descobrem uma paixo em comum pela msica. Pode ser considerado um dos
maiores fenmenos atuais da Disney Channel e emplacou mais de 8 milhes de discos de sua
primeira trilha sonora. A terceira verso do filme, lanada em 2008, foi a primeira da srie a ser
levada s salas de cinema enquanto as outras estreiaram pela rede Disney Channel e,
assim como as demais produes miditicas acima citadas, serviu de base para a criao de
diversos produtos vendidos ao pblico infanto-juvenil.

121

mas como j tinha o comido e descartado a embalagem, ele teve que colocar
o do High School Musical ganho pela irm mais velha.
Aparentemente comum, o bilhete demonstrava uma preocupao da
diferenciao de gnero orientada pelo consumo. Enquanto marcas mais
populares, de custo mais acessvel s famlias de baixo poder aquisitivo, no
fundamentavam uma distino de gnero entre os produtos aparentando
estarem voltados um mercado consumidor unissex , as marcas mais
valorizadas (com exceo do Kinder Ovo) faziam uma clara distino entre
ovos de meninas e ovos de meninos.
Apegados s personagens j bastante conhecidas das crianas, esses
ovos generificam o ato de consumir e direcionam s meninas o consumo de
ovos da Polly e da Barbie (ou do High School Musical para meninas um pouco
mais velhas) com embalagens predominantemente cor-de-rosa e ilustradas
pelos desenhos das bonecas e aos meninos o consumo de Hot Wheels e
Ben 10 de embalagens escuras, predominantemente pretas com detalhes em
azuis ou verdes, e personagens agressivos, ora carros e ora meninos
aventureiros.
Extrapolando o pragmatismo intrnseco s noes econmicas das
determinaes de demandas de consumo a partir da produo de mercadorias,
Marshall Sahlins (2007, p. 180), em La Pense Bourgeoise, coloca o consumo
no plano de uma organizao social das coisas. Enquanto o materialismo
histrico teria delimitado a organizao produtiva da sociedade como um
sistema de satisfao de necessidades objetivadas no valor de uso das
mercadorias, Sahlins insiste no carter arbitrrio e, portanto no-objetivo
dessas necessidades.
Se, por um lado, o abrigo ou o alimento so condies objetivas para a
sobrevivncia humana, abrigos ou alimentos especficos so, por outro lado,
culturalmente selecionados para satisfazer a necessidade de sobrevivncia.
Em seus termos, os homens no fazem apenas sobreviver: eles sobrevivem
de maneira especfica (SAHLINS, 2007, p. 181) e, deste modo, constroem um
sistema simblico de classificao de abrigos ou alimentos desejveis,
permitidos ou restritos: no apenas como organismos biolgicos em busca da
sobrevivncia da espcie, os humanos buscam, contudo, satisfazer suas
necessidades a partir de um sistema socialmente definido de valores de usos.

122

No basta-nos comer, mas temos, antes, que delimitar o que comer,


como

quando

comer.

Partindo

das

distines

alimentares

dos

estadunidenses sobre os diferentes tipos de carnes, Sahlins (2007) mostra que


para alm de uma lgica objetiva entre oferta e demanda, o consumo de carne,
, antes de tudo, pautado sobre uma lgica da comensalidade da carne: uma
definio entre os variados tipos de carnes dentro de um sistema simblico de
significaes humanas de canibalismo. Nesse sentido, para ele, se a carne dos
ces est excluda das carnes comestveis (em alguns pases do ocidente),
isso se deve menos a fatores intrnsecos constituio protica dos ces do
que da posio desses animais no sistema de classificao entre humanos e
animais,

no

qual

ces

esto

para

humanidade

portanto,

metaforicamente para o canibalismo assim como porcos ou bois esto para a


animalidade: ces so prottipos simblicos da humanidade e, portanto, nocomestveis.
Desse modo, no s uma contestao teoria econmica clssica por
Sahlins produzida, mas tambm e, aqui, principalmente um sistema de
correlaes e oposies simblicas entre humanos e objetos demonstrada. O
consumo, nesses termos, para alm de uma satisfao de necessidades
objetivas, seria, segundo o autor, um processo contnuo da vida social, no qual
os homens definem reciprocamente os objetos em termos deles mesmos e
definem a si mesmos em termos de objetos (SAHLINS, 2007, p. 183), ou seja,
um sistema cujo ponto de encontro est nos significados que os indivduos
assentam sobre os objetos e, consequentemente, naqueles em que indivduos
definem-se.
Se o consumo se d para a satisfao das necessidades humanas, tais
necessidades so, a princpio, perpassadas pela forma como essa humanidade
simbolicamente constri-as: no apenas procuramos abrigos, mas nos
abrigamos em casebres ou castelos. Por meio dos traos culturalmente
contornados, o consumo assenta-se, deste modo, nos sistemas classificatrios
culturais, orientado por contextos, sujeitos e usos scio-historicamente
especficos e definidos.
Enquanto diferenciaes dentro de um sistema classificatrio entre
objetos, os bens consumidos criam ou so criados por concomitantemente,

123

um sistema classificatrio entre consumidores. Assim como destaca Lvia


Barbosa e Colin Campbell, todo ato de consumo um ato cultural e, como tal,
Do ponto de vista emprico, toda e qualquer sociedade faz uso do
universo material a sua volta para se reproduzir fsica e socialmente.
Os mesmo objetos, bens e servios que matam nossa fome, nos
abrigam do tempo, saciam nossa sede, entre outras necessidades
fsicas e biolgicas, so consumidos no sentido de esgotamento, e
utilizados tambm para mediar nossas relaes sociais, nos conferir
status, construir identidades e estabelecer fronteiras entre grupos e
pessoas. Para alm desses aspectos, esses mesmos bens e servios
que utilizamos para nos reproduzir fsica e socialmente nos auxiliam
na descoberta ou na constituio de nossa subjetividade e
identidade. Mediante a oportunidade que nos oferecem de
expressarmos os nossos desejos e experimentarmos as suas mais
diversas materialidades, nossas reaes a elas so organizadas,
classificadas e memorizadas e nosso autoconhecimento ampliado.
(BARBOSA; CAMPBELL, 2006, p.22).

Nesse sentido, a mediao social dos bens entre as crianas elucida as


classificaes e hierarquias operadas no interior da sociedade. Enquanto ovos
de meninas ou ovos de meninos nada h de intrnseco constituio fsica
do chocolate consumido que comunique a qual espcie de gnero ou camada
econmica ele deve pertencer. O processo de homogeneizao do leite, do
cacau, do acar e qualquer outro ingrediente de sua composio no
determina quem poder compr-lo ou consumi-lo. A diferenciao entre ovos
de pscoa no se d por suas existncias objetivas, mas sim pela insero
desses produtos em um sistema de diferenciaes simblicas e de preos.
H uma lgica simblica que organiza ovos de pscoa dentro de um
sistema classificatrio. Ovos de meninas ou ovos de meninos inserem-se
num sistema mais amplo em que a experincia humana marcada pela
diferenciao de gnero. Apropriados por um universo simblico de
classificao entre feminino e masculino, entram no mercado no apenas como
produtos diferenciados, mas, tambm, como signos de diferenciao: depois de
ser materializado a partir dos referenciais de gnero, o prprio produto tornase, ele mesmo, mais um signo desses referenciais. Como afirma Sahlins (2007,
p.195) a produo a materializao de um esquema simblico, a
sedimentao de uma lgica socialmente compartilhada , ou seja, o objeto ,
neste sentido, a externalizao de conceitos humanos e, como tal, um meio

124

pelo qual as pessoas falam entre si: , ao fundo, um meio de comunicao


humana.
Enquanto objetos postos em circulao, os produtos de consumo esto
sempre carregados de significados compartilhados e, assim como proposto
pela antropologia do consumo de Mary Douglas e Baron Isherwood (2009),
para os dados culturais que so por esses objetos comunicados que devemos
voltar nossos olhares. Em seus termos,
O homem um ser social. Nunca poderemos explicar a
demanda olhando apenas para as propriedades fsicas dos bens. O
homem precisa de bens para comunicar-se com os outros e para
entender o que se passa sua volta. As duas necessidades so uma
s, pois a comunicao s pode ser construda em um sistema
estruturado de significados.(2009, p. 149)

socialmente estabelecido e aceito que meninas correlacionam-se com


objetos cor-de-rosa e considerados meigos, enquanto meninos com objetos em
tons de cores mais escuras, verdes e azuis principalmente, e smbolos de
agressividade. Esse sistema de classificao no posto em questo pelos
produtos destinados s/aos pequenas/os consumidoras/es, ao contrrio,
dado como pr-requisito para sua insero no mercado e transforma, por
exemplo, ovos de chocolate em objetos generificados. Consequentemente, o
produto marcado pelo gnero introduzido no mercado a partir da demanda de
consumidoras/es tambm pelo gnero marcada e, assim, do mesmo modo que
embalagens cor-de-rosa comunicam a quem so destinadas, o consumo
destes ovos cor-de-rosa comunica a identidade subjetiva de gnero entre as/os
consumidoras/es.
Enquanto totens de uma sociedade, as mercadorias no s demarcam
as fronteiras entre as pessoas como tambm so sistemas de comunicao de
suas identidades. Isto equivale a dizer que as mercadorias adquirem sentidos
especficos quando so postas em relao e, assim, quando correlacionados,
os pares de oposies entre gnero e cores ou personagens fornecem os
elementos simblicos para as diferenciaes entre as pessoas. Ou seja, a
oposio entre feminino e masculino correlaciona-se com a oposio entre
ovos do High School Musical e do Hot Wheels e, a partir de ento, demarca as

125

fronteiras entre meninas e meninos e, ainda, comunica a identidade relacional


de gnero daquela/e que consome ou um ou outro.
De Cssio supostamente esperava-se a agressividade encontrada no
Hot Wheels e ausente nas tramas romnticas e musicadas do High School
Musical, o que levou a me, preocupadamente, justificar tal ausncia. De uma
pessoa marcada como masculina esperava-se o consumo de signos
masculinos, de ovos de pscoa de meninos. Sua masculinidade estava posta
em risco. Sua identidade de gnero saa da coerncia do sistema de
classificaes sociais e necessitava, portanto, de uma justificativa para
autorizar sua ao de colar a embalagem de um ovo feminino no caderno
de tarefa e assegurar sua identidade de gnero masculina. O bilhete da me
foi o meio pelo qual a masculinidade de Cssio no poderia ser questionada.
Ali ela afirmava o consumo do produto masculino, certificava a posio do
menino no sistema de classificaes e garantia a coerncia identitria do filho:
Cssio, apesar dos incidentes, era um menino.
J na escola particular, em Jundia, certa vez ouvi uma discusso
acalorada entre Isadora e Marcos. Marcos afirmava que o Ben 10, no era
coisa de menina, por mais que a colega insistisse dizer para ele que gostava
da personagem com poderes sobre os aliengenas. Para insatisfao dela,
dizia que Isadora, ao contrrio dos meninos, no poderia ter nada do Ben 10,
nem mochila e nem estojo, pelo fato dela ser uma menina. Ela, inconformada
com a discusso, no se aquietou com os argumentos do colega e, antes de
virar para frente de sua mesa e se silenciar aos comandos da professora,
vociferou: mas eu posso assistir, t?.
No mesmo dia em que Rebeca se incumbiu de me ajudar na pesquisa e
perguntar para as outras meninas se elas gostavam ou no do Ben 10, ela
mesma, aps se assustar com a possibilidade de que a embalagem do bolinho
que trazia na lancheira pudesse ser o do Ben 10, disse que no gostava da
personagem, j que Ben 10 de menino, u. Quando pedi explicaes sobre
o porqu de ser de menino ela respondeu: Ben 10 de menino porque tem
aliengena e gente do mal e, ainda, que menino gosta, porque menino
menino, n?.
E no havia dvidas de que os meninos gostavam mesmo do Ben 10, e
muito. Recentemente, divulgou-se a informao que a marca de produtos

126

derivada da srie de desenhos animados atingiu, inclusive, o cobiado posto de


maior rentabilidade entre as crianas31. O menino que salva o mundo da
ameaa aliengena ganhou tambm trs longas-metragens32 alm de um
espao surpreendente na vida das crianas: por onde quer que se olhasse na
turma do pr, a imagem do Ben estava estampada.
Na turma de crianas do perodo matutino da escola particular, em um
contexto de crianas vindas de famlias com alto poder de consumo e com o
dobro da quantidade meninos em relao de meninas, Ben 10 era a grande
estrela: estava nas mochilas, nos calados, nos estojos, nos relgios, lpis,
apontadores, lancheiras, meias, toalhinhas de mos e ainda nas brincadeiras.
Onde houvesse um espao possvel a ele, l ele estava. Rafael fez questo de
desenh-lo na sua sacola de compras para a aula de ingls e Tiago, mais
exigente, preferia somente os produtos do Ben 10 mais velho, uma variao
feita da srie com a personagem aos 16 anos, j que, segundo o menino, ele
tem mais poder.
Objetos com outras personagens tambm circulavam entre os meninos,
principalmente aqueles estampados com os Carros e o Hot Wheels, mas o
verde e o preto, cores caractersticas do Ben 10 e seus produtos davam a
tonalidade predominante da sala, tendo em vista, ainda, que com um poder de
consumo bastante maior do que as crianas das escolas municipais, o
contraste proporcionado pela maior quantidade de produtos aumentava a
evidncia da personagem. Alm de ser muito mais evidente a quantidade de
produtos estampados com a personagem caa-aliengenas consumidos pelos
meninos, na escola particular a presena dessas personagens da mdia, como
o Ben 10, era muito mais marcada tambm nas interaes cotidianas entre as
prprias crianas, tais como nas brincadeiras.
Ultrapassando a grade de ferro que dava acesso ao parque, as crianas
entravam em seu domnio espacial: o lugar onde o olhar e a voz da professora
estavam longe demais para que todas as aes ocorridas ali pudessem ser
controladas, longe tanto quanto a estreita faixa de cimento junta grade que
protegia os ps da areia do parque e longe ainda da possibilidade humana de
31

Pais de Ben 10 falam do heri que virou fenmeno. Folha de So Paulo, 10 de outubro de
2010.
32
Ben 10: O segredo de Omnitrix (2007), Ben 10: Corrida contra o tempo (2007) e Ben 10:
Invaso aliengena (2009).

127

uma nica pessoa conseguir acompanhar com preciso todos os repentinos e


rpidos movimentos de outros mais de vinte seres humanos pequenos,
corredores e eufricos.
Ali era o espao da atividade a princpio no-orientada. Ao menos noorientada pela professora. O parque era o espao onde as crianas escolhiam
suas prprias dinmicas de diverso e interagiam conforme as regras
estabelecidas entre elas mesmas. Recorrentemente, por exemplo, meninas e
meninos no se juntavam nas brincadeiras. Quando o contrrio acontecia,
quando elas e eles se uniam para brincar, estavam juntos, mas, assim como
ocorria entre as crianas de Marlia, poucos eram os casos em que brincavam
a mesma brincadeira. Amantes das corridas, os meninos ziguezagueavam em
alta velocidade por cada cantinho do parque. O pega-pega dirio era coisa
levada bastante a srio: muito antes de subir ao espao de brincadeiras, ainda
no incio das atividades escolares dirias, era possvel ouvir os grupos de
meninos se formando e decidindo quem iria brincar com quem.
Com os sapatos do lado de fora da grade e os ps fincados na areia, os
grupos se formavam na mesma velocidade em que as pernas percorriam o
parque. Nem havia tempo para que muita coisa fosse ali negociada. Mal
entravam e j comeavam a correr se esquivando dos obstculos ao meio do
caminho. E corriam para todos os lados, no de forma aleatria, mas sempre
para os lados opostos ao qual o pegador, aquele incumbido de pegar os
outros durante a brincadeira, se enfiava. Nesses casos de formaes de
corredores de fuga entre as crianas, era possvel algumas vezes encontrar
algumas meninas tambm fugindo do pegador. Contudo, quando o pegador
deixava de ser simplesmente aquele que pegava as pessoas e se transformava
no Ben 10 pegando os aliengenas, tudo mudava de figura.
Inserido na brincadeira das crianas e usado como uma forma de dar
uma especificidade ao pega-pega, quando o Ben 10 entrava em cena, as
meninas saiam dela e a brincadeira era rapidamente transformada em uma
brincadeira de menino. Quando meninas e meninos brincavam juntos e
brincavam da mesma brincadeira, as demarcaes de gnero eram tornadas
opacas pela marcao de brincadeira de criana: o pega-pega, por exemplo,
no fazia distino alguma entre meninos e meninas. Havia uma recorrncia de
mais meninos brincarem a brincadeira, mas as meninas quando quisessem

128

tambm entravam na dinmica e saiam correndo pegando e sendo pegas. Mas


quando essas posies de pegar ou ser pego era preenchida pela figura de
uma personagem especfica, o Ben 10 ou mais ao final do ano, pelo
Bakugan, outro personagem de desenho que os meninos comearam a se
aproximar o pega-pega assumia uma nova forma e de brincadeira de
criana, passava brincadeira de menino.
Essa nova dimenso trazida brincadeira, operando a partir da conexo
de uma personagem reconhecida como de menino a uma forma de brincar
de criana, fazia com que no necessariamente a brincadeira se modificasse,
mas que uma nova brincadeira fosse criada: no estavam mais brincando de
pega-pega, mas, como me diziam os meninos, estavam brincando de Ben 10.
E a negociao interna sobre qual seria a diviso entre quem pega e quem
pego, nestes casos, ganhava a especificidade em se decidir quem seria(m) o(s)
Ben 10, responsvel por correr e capturar os aliengenas do grupo. O processo
de tomada de deciso sobre quem seria quem na brincadeira era muito rpido
e o critrio de maior possuidor de coisas do Ben 10 no parecia operar como
na EMEI, uma vez que tinham todos quantidades muito parecidas de coisas da
personagem. L, o que imperava era a lei do mais gil ou mais influente: afora
os casos de argumentao para ser o pegador-personagem da vez, na maioria
das vezes dependia apenas de algum se auto-intitular como Ben 10 e sair
correndo atrs dos outros para a brincadeira comear.
Kau foi um dos que vi decidindo se transformar no heri dos desenhos
animados na brincadeira. Ele e Nina estavam dentro da mesma casinha
quando eu perguntei sobre o que estavam brincando. Nina foi a primeira a
responder: de mame e detalhou: eu sou a me e ele (apontando para o
menino) o pai. Kau sorriu e, ento, me deu a resposta: e sou o Ben 10,
abrindo um sorriso ainda maior. Bastou a resposta dita e o menino se levantou,
saiu da casinha e seguiu em disparada na direo em que os outros meninos
estavam correndo tentando toc-los.
Mas esse episdio, protagonizado por Kau e Nina, no foi determinante
apenas na possibilidade de compreenso desse processo de auto-titulao que
estabelece as posies nas brincadeiras dos meninos, mas, importante ainda
para indicar, uma vez mais, a barreira invisvel que as crianas estabeleciam
entre brincadeiras de meninos e de meninas no espao do parque. Por mais

129

que estivessem juntos, debaixo do mesmo teto de plstico vermelho da


casinha, aquelas duas crianas no consideravam estar brincando a mesma
brincadeira, ao menos no apenas a mesma brincadeira. Muitas vezes via
meninas e meninos brincando juntos, mas nem sempre isto significava que
estavam brincando da mesma coisa.
E de Ben 10 no era uma rejeio resposta de Nina. Ao contrrio,
Kau era um dos poucos meninos que eu avistava brincando junto com as
meninas, fosse no mesmo cantinho ou da mesma brincadeira. Ele no
necessariamente exclua a possibilidade de estar tambm brincando de pai,
mas em relao a esta possibilidade, enfatizou uma outra: o brincar de Ben
10 e, assim, acionou, em sua resposta, o mesmo referencial interno que
produz os marcadores de diferenciao de gnero entre as brincadeiras das
crianas.
Se por um lado o brincar de Ben 10 era a maneira pelo qual o
marcador de gnero se sobressaltava e fazia daquelas aes que envolviam a
brincadeira aes de menino, por outro lado, era pela aparente evocao
tambm de uma imagem circulada pela mdia e comercializada em produtos
infantis que as meninas demarcavam algumas de suas brincadeiras: elas eram
Princesas. Sobre as estruturas plsticas que davam o suporte aos
escorregadores, as meninas se entranhavam e diziam estar brincando de
princesas.
Correlacionalmente ao brincar de Ben 10 como uma brincadeira de
menino, o brincar de Princesa era por excelncia a brincadeira de menina
realizada no parque da escola particular. Se enquanto faziam a recreao na
salinha de brinquedos, as crianas criavam as brincadeiras a partir dos
brinquedos ali disponveis carrinhos, minicozinhas, peas de encaixe e
bonecas-bebs , no parque os brinquedos l disponveis, as gangorras, os
escorregadores e balanos, eram nestes casos tomados como cenrio no qual
as crianas inventavam suas brincadeiras. E se pela turma da manh do pr j
era muito fcil encontrar as meninas ocupando os espaos fechados dos
brinquedos instalados do parque e transformando-os em castelos de suas
princesas, na turma da tarde, tomada pela ampla maioria feminina, tais
espaos ficavam ainda mais concorridos.

130

Entrar na sala de aula da turminha da pr Clia no perodo da tarde era


como adentrar um imprio do rosa. Para onde quer que se olhasse, o cor-derosa era a tonalidade predominante. Com o nmero de meninas muito superior
ao de meninos, todas as tardes, ao chocalhar das mochilas batendo contra das
escadarias de acesso ao prdio da Educao Infantil, o Ben 10 era uma
presena tmida entre a profuso de acessrios escolares cor-de-rosa das
Princesas, da Barbie, da Moranguinho ou da Jolie carregados pelas meninas.
E, em seguida, delas eram retirados tambm lancheiras, potinhos e estojos
com as mesmas caractersticas.
E o cor-de-rosa no estava apenas nesses acessrios escolares. Apesar
do destaque dado ao verde, cor emblemtica da escola, presente desde os
uniformes que as crianas vestiam at as cores das paredes do prdio, o corde-rosa estava sempre inscrito no corpo das meninas: lacinhos, presilhas,
colares, pulseiras e batons eram invariavelmente cor-de-rosa, bem como eram
tambm os calados por todas33 elas vestidos. Tudo o que rodeava o universo
daquelas meninas parecia ser, necessariamente, cor-de-rosa.
Ao contrrio do que ocorria entre os meninos e a utilizao que eles
pareciam fazer dos objetos, a nfase de uma masculinidade inscrita nas coisas
se dava muito mais pelos personagens do que pelas cores. Por mais que o
verde e o preto do Ben 10 se tornassem predominantes, o eram por conta da
predominncia do prprio personagem entre os meninos, e no exatamente
pelas suas cores, mesmo porque objetos em azul e vermelho, ainda que em
menor nmero, eram vistos entre aqueles que preferiam os produtos do Carros
e o Hot Wheels.
J entre as meninas, mais do que a exclusividade a uma personagem
especfica ou a um conjunto delas, como as Princesas era a cor-de-rosa
que denotava a marcao de gnero dos objetos. Neste sentido, as ideias
trazidas por Marilyn Strathern em O Gnero da Ddiva (2006) nos parecem
bastante sugestivas. Gnero, enquanto aquelas categorizaes de pessoas,
artefatos, eventos, sequncias etc. que se fundamentam em imagens sexuais
(Strathern, 2006, p.20) no teria um lcus intransitivo de existncia, mas, ao
33

Recorrentemente eu fazia um levantamento sobre os calados, j que era o item do


vesturio das crianas no qual no havia interferncia da padronizao institucional, e
recorrentemente tambm percebia que todas as meninas, sem exceo, calavam sapatilhas,
tnis e sandlias cuja cor predominante era cor-de-rosa.

131

contrrio, seria uma forma de categorizao operada a partir da chave de


oposio entre feminino e masculino e distribuda entre pessoas, corpos,
objetos e situaes. No pode ser considerado como um marco rgido de
definio de algum ou de algo independentemente do contexto em que esse
algum ou algo se insere, mas, antes, um operador de diferena posto em
funcionamento a partir das relaes.
Deste modo, o gnero no teria uma existncia per se, mas um
artifcio colocado em prtica em circunstncias determinadas. E esta
volatilidade do gnero reconhecida nos corpos pode ser tambm expandida
aos objetos. Da mesma forma que uma pessoa se constitui como feminina ou
masculina somente nas relaes e conforme aquilo que uma dessas relaes
espera dela, colocados em relaes, os objetos circulados entre as pessoas
carregam consigo essa potncia de en-gendramento. Uma bolsa rosa nada diz
per si, mas quando colocada em relao a um conjunto simblico de
significao que instituiu em algum momento que o rosa e a feminilidade so
equivalentes, a cor ganha um sentido especfico dentro do mercado de trocas
simblicas e passa, ela prpria, a existir como extenso de uma adjetivao de
gnero.
Quando postos em circulao entre as crianas e, concomitantemente,
entrando em relao nesse sistema simblico que define o que feminino e o
que masculino, esses objetos ganham marcaes prprias e uma existncia
dentro dos referenciais de gnero: uma bolsa do Ben 10, por exemplo, no
precisa ser a bolsa do Guido para ser considerada com uma bolsa de menino,
mas ela uma bolsa de menino pelo simples fato de nela conter o referencial
daquilo que atribudo como significante da masculinidade, o Ben 10.
Tal artifcio de atribuir a algo um sentido especfico de gnero no s
estava entre os objetos comprados pelas crianas, como tambm em usos e
situaes por elas criadas. Era, pois, a partir desta mesma operao, por
exemplo, que o tobog instalado no parque e usado por toda a turma do pr se
transformava em um brinquedo de menina quando as garotas instituam, em
determinadas circunstncias, que aquele era o tobog da Barbie, ou ento
quando o pega-pega se transformava em brincar de Ben 10 e exclua todas
as crianas identificadas pelo gnero oposto quele do brinquedo ou
brincadeira do ato de brincar.

132

Entretanto, se, por um lado, esses objetos entram em circulao dentro


do sistema referencial de gnero pela eleio de determinados elementos e se
tornam significantes para as demarcaes entre feminino e masculino cor ou
personagens, por exemplo , por outro lado, h tambm os efeitos (e quem
sabe no nos valeria tambm pensar nas causas) que esses objetos e seus
usos provocam nas relaes entre as pessoas. Bolsas e sapatos no circulam
sozinhos, mas so postos em relao com e entre as pessoas.
Uma anlise sobre as articulaes entre pessoas e objetos pode ser,
neste ponto, inferida. Quando massinhas coloridas de modelar eram
distribudas nos intervalos entre uma atividade e outra, era muito comum a
criana ajudante do dia, responsvel pela distribuio, se pegar em inflexes
como ah, no, rosa de menina, vou pegar outra quando se aproximava de
algum colega menino, ou ento quando calorosas discusses se delineavam
sobre quem tinha mais coisas do Ben 10 entre os meninos ou da Barbie entre
as meninas, a relao entre as crianas e os objetos que portavam entrava
sempre em evidncia.
Situaes como estas evocavam uma dimenso particular do uso dos
objetos enquanto formas de correlacionarem-se prpria noo de eu
produzida pelas crianas naquelas relaes. Do mesmo modo que aos objetos
era atribudo um lugar nas relaes marcadas pelo gnero, parecia existir uma
extenso desse gnero dos objetos aos corpos que os manuseavam: uma
espcie de linha de continuidade de um posicionamento de feminino ou
masculino entre o objeto e a criana que dele fazia posse, quase como se
obter a posse de um objeto rosa, feminino, fizesse da prpria pessoa dessa
posse to feminina quanto seu objeto.
A relao estabelecida a partir da massinha (que cor-de-rosa, portanto
de menina e que, portanto, est restrita aos meninos) evidencia esse
procedimento de fazer com que os atributos de gnero de um objeto sejam
transferidos pessoa, como, do mesmo modo, parecia se fazer na lgica do ter
mais de alguma coisa. Os objetos do Ben 10 enumerados em enormes listas
verbais declaradas entre os meninos quando disputavam quem tinha mais
coisas, faziam parte, neste sentido, de um jogo no qual a prpria

133

masculinidade parecia estar em competio 34 e a cada objeto somado lista,


mais um reforo sobre o que ser um menino era ganho.
A discusso sobre as relaes estabelecidas entre pessoas e objetos,
bem como sobre os seus mais diversos usos, encontra aqui alguns ecos.
Tomando como ponto de partida os escritos de Maria Filomena Gregori em sua
pesquisa sobre as articulaes entre prazer e perigo em algumas
manifestaes do erotismo contemporneo (2010, p. 3) a questo acerca dos
usos dos objetos e as relaes estabelecidas entre eles, pessoas e corpos se
coloca.
Seguindo seu argumento, determinados usos dos objetos podem ser
criados com propsitos de extenso do prprio corpo humano, a fim de
expandir seus limites. Assim, haveria um trnsito de sentidos e significados
entre objetos e pessoas que, no caso dos toys os acessrios erticos
podem at mesmo provocar deslocamentos nos significados produzidos a partir
de nossa relao com o corpo e o prazer. Esse poder (que dado no aos
objetos, mas criao humana sobre eles) de catalisar a produo de
significados a partir do uso das coisas parecia estar contido tambm nos
objetos que as crianas levavam junto ao corpo. Ou, dito de outro modo,
parecia que os objetos eram inseridos no processo de dar significado ao
prprio eu e, operados dentro do sistema referencial de gnero, se
adicionavam enquanto extenses corporais ao conjunto de elementos
considerados necessrios para dar a esse eu um lugar de gnero.
Neste sentido, somada aos casos de disputas pelo maior nmero de
objetos generificados, a cena de dois meninos que, logo aps de se
desentenderem partem para a agresso usando suas mochilas de rodinhas um
contra o outro pode nos ajudar a elucidar esse efeito expansivo. A guerra entre
mochilas, uma sendo jogada contra a outra para que seus eixos se
desequilibrassem enquanto olhares rancorosos eram trocados, servia como
ilustrao para esse procedimento de fazer dos objetos uma extenso do corpo

34

Neste contexto, Miguel Vale de Almeida (1996) uma importante referncia para pensarmos
em masculinidades que so postas em relao e em disputa, principalmente quando o ser mais
ou menos masculino encontra ressonncia tambm em diferenciaes articuladas ainda pelo
marcador de classe social, como parecia ser o caso dos meninos que criavam seus
argumentos por meio de disputas sobre quem tinha, ali, o maior poder de consumo daqueles
produtos.

134

de uma pessoa e, assim, agredir a mochila do outro era, naquele momento, o


mesmo que agredir o prprio inimigo.
Como itens de efeito dilatador dos limites dos corpos e ainda atribudos
de posies dentro sistema de diferenciao de gnero, o uso desses objetos
era realizado no interior de um processo de constituio da prpria noo de
pessoa. Fosse como prteses35 para o combate ou como signos de
comunicao de uma posio de gnero assumida, os objetos eram
agenciados de modo a corroborar com a criao de uma imagem de si em
relao aos outros. Desta perspectiva, os objetos e seus usos entravam na
prpria dinmica de um gnero tornado pblico e reconhecido para a edificao
de uma pessoa e, assim, o marcador de gnero era operado no apenas nos
objetos, mas tambm nos corpos aos quais eles estavam ligados.
De volta ao parque, pelas brincadeiras as crianas encontravam mais
uma forma de demarcar o gnero nos corpos: sendo Ben 10 e sendo
Princesas, meninas e meninos atribuam um sentido especfico a suas aes e
demarcavam entre si seus posicionamentos dentro do sistema de diferenciao
de gnero. A evocao da marcao de gnero a partir das personagens
conhecidas tanto pela televiso, pelos filmes ou pelos produtos consumidos
nas brincadeiras, se de um lado demonstrava o alcance e o poder de
encantamento que tais figuras miditicas tm sobre as crianas, por outro
lado, a articulao operada pelas crianas de trazer essas personagens para
suas vidas no apenas pelo consumo, mas ainda pela performatizao em
seus corpos neste jogo relacional de diferenciao, era um importante espao
de criao no qual cada criana podia produzir sua prpria leitura do que era
ser o Ben 10 ou ser uma Princesa.
Quando diziam brincar de princesa, as meninas subiam nos brinquedos
do parque e iniciavam uma narrativa sobre suas aes. A cada vez que
brincavam uma narrativa nova era criada e at mesmo, quando havia muitas
meninas brincando juntas, era possvel ter mais de uma narrativa acontecendo
simultaneamente. Na maioria das vezes, as histrias que eram por elas
compostas e encenadas giravam em torno de temas sobre relaes entre
irms, amigas e mames com filhinhas, e situaes nas quais elas cozinhavam
35

Estamos aqui nos referindo prteses expansivas, no necessariamente as substitutivas,


como alguns exemplos trazidos por Gregori (2010) denotam.

135

na areia, saiam em busca de objetos de cozinha (como de potinhos de areia


que eram transformados em panelas e assadeiras), escolhiam suas roupas,
brincavam com gatinhas (encenadas por outras meninas) ou brincavam de
pega-pega.
Mas apesar da diversidade de aes compostas no parque, quando
questionadas sobre o que estavam brincando, a resposta era de princesa.
primeira vista, imaginei que o brincar de princesa estava intrinsecamente
ligado s Princesas36 e s personagens que a marca estampava naqueles
tantos acessrios pelas meninas usados. Contudo, quando ento eu
perguntava qual princesa elas eram, a resposta nem sempre coincidia com
minha expectativa: as meninas em poucas vezes se diziam Princesas,
performatizando as personagens consagradas pela Disney, mas, como dizia
Isadora, a gente Barbie trs mosqueteiras. A menina, acompanhada ainda
por Las e Vnia acrescentou: a gente gosta porque tem um monte de
princesa, a rosa, a verde e a azul e a gente gosta porque a gente salva o
mundo. Vnia parou ainda de brincar para poder me mostrar o colar cor-derosa com um B da Barbie e realava que tinha tambm todos os filmes
protagonizados pela boneca37.
Datam dos ltimos cinco anos todos os filmes protagonizados pela
Barbie que as meninas se referiam38. Barbie e as trs Mosqueteiras (Figura 9)
que Isadora, Las e Vnia diziam estar brincando foi uma animao lanada em
2009 na qual Barbie, a protagonista, uma menina de dezessete anos que vai
Paris realizar seu sonho de ser uma Mosqueteira e proteger a famlia real. L
no palcio, ela vive sob tutela de trs lindas empregadas domsticas e as
quatro, juntas, desvendam artimanhas que colocariam o prncipe e sua famlia
36

Durante o texto, Princesas (no maisculo e itlico) se refere marca Disney que rene as
heronas de seus filmes, j princesas (no minsculo e fonte normal) faz referncia noo
articulada entre as crianas de certo conceito sobre o que ser uma princesa.
37
Em uma busca pela internet, foi possvel encontrar (no site http://pt.wikipedia.org/wiki/Barbie)
a seguinte lista de filmes trazendo Barbie como protagonista: Barbie e os Roqueiros (1987);
Barbie em O Quebra Nozes (2001); Barbie como Rapunzel (2002); Barbie em O Lago dos
Cisnes (2003); Barbie em A Princesa e a Plebia (2004); Barbie Fairytopia (2005); Barbie em A
Magia de Aladus (2005); O Dirio da Barbie (2006); Barbie Fairytopia Mermadia (2006); Barbie
em As 12 Princesas Bailarinas (2006); Barbie Fairytopia A Magia do Arco-ris (2007); Barbie em
A Princesa da Ilha (2007); Barbie Butterfly (2008); Barbie e o Castelo de Diamante (2008);
Barbie em A Cano de Natal (2008); Barbie Apresenta a Pequena Polegar (2009); Barbie em
As Trs Mosqueteiras (2009); Barbie em Vida de Sereia (2010); Barbie Moda e Magia (2010);
Barbie e o Segredo das Fadas (2011); Barbie em Escola de Princesas (2011).
38
Barbie e o Castelo de Diamante e Barbie Moda e Magia eram os outros filmes mais
comentados.

136

em perigo. A luta das garotas salva o Prncipe e garante para todas elas o ttulo
de Reais Mosqueteiras.

Figura 9

O ser princesa para aquelas meninas, no estava restrito relao


com aquilo que a Disney chamava de Princesas, no ao menos com uma
associao direta com quelas personagens lucrativas da empresa. No
perdendo de vista que, nascidas todas depois de 2000, ou seja, em um
contexto em que o nome Princesas j estava estritamente relacionado com a
patente Disney, as meninas, ali no parque, expandiam a noo promovida pela
mdia e seus produtos de consumo, ampliando a categoria princesas para
personagens fora do escopo previsto pela produtora de filmes, negociando nas
brincadeiras e a partir de diversas outras referncias de significados o que,
para elas, era ser uma princesa.
Neste sentido, era como se a negociao para a produo dos
significados dessas personagens e narrativas miditicas extrapolasse seu

137

prprio momento de recepo, quando aquelas crianas era a audincia direta


dos filmes e desenhos, e se prolongasse tambm para outros momentos da
vida delas. No parque, enquanto brincavam, as crianas estavam tambm
negociando com aqueles referenciais oferecidos pela mdia e com os seus
prprios. O brincar de Ben 10 ou de Princesas fazia parte do processo de
recepo daqueles produtos miditicos e, muitas das vezes, era onde o
processo de produo de significados a partir da negociao entre eles e os
referenciais das prprias crianas, vindos outras vezes tambm de outras
fontes miditicas, como os filmes da Barbie, se tornava mais evidente.
Pensar em negociaes de significados, como prope Christine
Gledhill (1988) pensar de uma maneira dinmica o processo de dar-e-receber
entre os produtos da mdia e sua audincia. Assim como ela destaca, um
caminho para a anlise sobre o cinema que seja alternativo s correntes
psicanalticas, que presumiriam certa passividade da audincia diante das
mensagens que chegam das narrativas, pode ser revelado a partir da
centralidade da ideia de negociao.
Para ela, em cada campo de domnio miditico so travados contnuos
embates pelo poder de significao e produo de sentidos. Ou seja, os
significados de um filme no so dados a priori, mas so produzidos a partir de
uma negociao constante entre os diversos referenciais simblicos e
posicionamentos polticos disponveis socialmente: mais do que ver a audincia
como um receptor das mensagens miditicas, Gledhill est preocupada em
entender como os produtos miditicos, as ideologias e as audincias esto se
relacionando.
Negociao implica sempre em relao e, por isso, implica em entender
a rede de significados produzidos entre os polos opostos entre dar e receber,
ou, como chamou Stuart Hall (2003), entre a codificao e a decodificao de
um texto miditico. Em outros termos, uma teoria baseada na ideia de
negociao uma teoria baseada nas relaes estabelecidas durante o
processo de produo e circulao dos textos miditicos: parte-se do princpio
que nenhuma mensagem est completamente fechada ou que nenhum
significado completamente controlado, mas que os significados so
produzidos a partir da interao entre os mais diferentes referenciais, tanto
aqueles operado pelo cinema, quanto aqueles operados pelo seu pblico.

138

A leitura produzida de um texto miditico por uma pessoa que se coloca


como espectadora depende no apenas do prprio texto, mas ainda, e aqui
principalmente, do olhar com o qual ela o l. Neste sentido, os significados
produzidos a partir de um filme no dependem apenas dos referenciais trazidos
por sua narrativa, mas das combinaes entre estes referenciais e aqueles
scio-historicamente acumulados pela audincia: a partir da experincia de
cada pessoa e de um olhar situado socialmente que o filme concretamente
assistido e seus sentidos produzidos.
A negociao no momento da recepo se faz, segundo Gledhill, por
meio da interface entre o texto e a posio social ocupada pela/o espectador/a:
a partir de onde a audincia est em termos de posies de gnero,
orientao sexual, cor, raa, classe social ou gerao, ou seja, a partir de
marcas que balizam a prpria existncia de uma pessoa dentro de um contexto
de relaes e experincias.
Deste modo, a diversidade social e a variao de possibilidades de vidas
e posies sociais do o tom variedade de leituras, sentidos e significados
possveis a um texto miditico. Isso no equivale a dizer que a produo de
significados totalmente livre ou aleatria, mas que a partir da negociao
entre os referenciais narrativos e os referenciais sociais operados pela
audincia, alguma brecha se abre para a possibilidade de diferentes
interpretaes.
Assim, quando evocavam a noo de princesas no contexto do parque,
as meninas operavam no apenas com os referenciais dados pelos filmes que
elas assistiam, quer fossem os das Princesas da Disney ou os longasmetragens baseados na Barbie, mas ainda pelos significados que elas mesmas
criavam a partir deles e de uma relao inesperada entre eles e as prprias
noes delas sobre o que era ser uma princesa.
Enquanto um recurso recorrentemente utilizado pelas crianas da escola
particular, a evocao da marcao de gnero nas brincadeiras a partir das
personagens conhecidas tanto pela televiso, pelos filmes ou pelos produtos
consumidos, de um lado demonstrava o encantamento que tais figuras
miditicas produzia sobre as crianas. Mas, por outro lado, a articulao
operada pelas crianas de trazer essas personagens para suas vidas no
apenas pelo consumo, mas ainda pela performatizao em seus corpos nesse

139

jogo relacional de diferenciao, era um importante espao de criao no qual


cada criana podia produzir sua prpria leitura do que era ser o Ben 10 ou ser
uma Princesa.
Alm de, como destacamos, as meninas realocarem a forma princesas
para personagens que no faziam parte do pacote comercial Princesas Disney
por elas consumido, elas ofereciam ainda um novo elemento constituio do
que era ser uma princesa e o porqu dela ser to atraente: a gente gosta
porque a gente salva o mundo dizia Vnia em meio a brincadeira.
Salvar o mundo a partir de ento deixava de ser privilgio exclusivo dos
meninos e seus relgios com DNA aliengenas e passava a ser tambm uma
possibilidade para as meninas. Salvar o mundo se tornava uma ao atrativa
tambm s princesas do parque enquanto se uniam sobre o palcio de plstico
e encenavam suas narrativas sobre a vida domstica. Salvar o mundo agora
era tambm tarefa delas e no somente deles.
Quando enunciada na prtica cotidiana das crianas, a noo de
princesa era aberta negociao. Ao mesmo tempo em que eram articulados
signos que compunham uma imagem em certa medida convencional do que
ser uma princesa, tais elementos, acionados pelas meninas, estavam tambm
sujeitos a construes de novos sentidos. Por esta perspectiva, ao serem
performatizados no parque, os elementos subjacentes noo de princesa
eram postos em articulao com outros elementos e, assim, tornava-se
possvel a elaborao de uma princesa que era, para as meninas, interessante
justamente porque salva o mundo.
Todavia, se o herosmo da Barbie em As trs mosqueteiras era
destacado pelas meninas nas brincadeiras e impulsionava o esgaramento da
noo de princesa, por outro lado, alguma dimenso de continuidade estava
posta para que, de todo modo, a prpria noo de princesa se mantivesse.
De longos e lisos cabelos loiros, um suntuoso vestido cor-de-rosa e coroa
sobre a cabea, Barbie era uma salvadora que, esteticamente, ressoava muitas
semelhanas entre as mais clssicas Princesas. Sua imagem, constituda a
partir dos mesmos elementos das personagens Disney garantia um lugar
comum para a ideia de princesa e, novamente, a dimenso esttica to
prezada pelas crianas em seus desenhos e falas sobre os filmes Cinderela e
Mulan voltava tona. Inclusive, vale ainda ressaltar que, por mais que Mulan

140

pudesse ser uma representante heroica, que tambm luta e salva o mundo, a
escolha da Barbie para salvar o mundo na brincadeira parecia reforar a nfase
no ideal esttico de uma princesa e sua importncia entre as crianas, uma vez
que, em As trs mosqueteiras, a construo da imagem da Barbie em pouco
ou quase nada se diferencia das clssicas Princesas Disney (Figura 10).

Figura 10: Capa do DVD de Barbie e as Trs Mosqueteiras e a personagem Aurora do


filme A Bela Adormecida da Disney.

Na EMEB, em Jundia, ao menos uma vez a cada semana as crianas


brincavam por meia hora na brinquedoteca. A sala que ficava frente da
secretaria da escola acomodava brinquedos dispostos a partir de certa ordem
temtica: direita da porta de entrada um tapete contornado por almofadas e
pufes delimitava a rea usada para assistirem TV, usada esporadicamente por
algumas crianas39. Em seguida, toda a lateral da sala acomodava prateleiras
recheadas de bonecas e ursos de pelcia dos mais variados tamanhos e tipos
e, no fundo, gaveteiros de madeira eram preenchidos por carrinhos, caminhes
e bonecos de plstico, panelinhas, xcaras e foges. Prximo aos utenslios de
cozinha, duas mesinhas eram usadas como apoio para os chs e comidas
feitos pelas meninas e, ao lado, o espao livre do cho era usado de caminho
para o trnsito de meninos-motoristas. No ltimo cantinho da sala, ao lado
39

Das vezes que acompanhei as crianas na brinquedoteca, apenas uma vez elas quiseram
assistir TV. Dentre os DVDs de filmes disponveis na sala, elas colocaram um que reunia
diversos episdios do desenho Pica-Pau, agregando uma parte das crianas diante da tela.

141

esquerdo da porta de entrada, que abrigava duas araras de roupas repletas de


fantasias em pequenos tamanhos, as meninas encurralaram a professora no
primeiro dia em que l entrei.
Cheias de pedidos insistentes, as meninas tentavam convencer a
professora deix-las usarem as fantasias ali disponveis e, desconfiada, ela
tentava esquivar-se argumentando que, sozinha, no iria conseguir arrumar
tudo na hora de ir embora. Bastou eu dizer que poderia ajuda-la para, em
seguida, as meninas se alvoroarem sobre as roupas coloridas e em pouco
tempo tirarem tudo dos cabides pendurados. Esbarrando-se umas contra as
outras, elas tentavam a todo custo alcanar as fantasias que tanto desejavam
e, em segundos, as mais rpidas vieram em minha direo pedindo ajuda com
os botes e zperes.
No precisei de muito tempo para perceber que as fantasias mais
rapidamente escolhidas e disputadas eram aquelas que mais continham os
referenciais estticos de uma princesa: o valor de uma fantasia parecia ser
proporcional ao volume de babados e tules. Os longos vestidos rodados e
bufantes foram os primeiros a serem vestidos, deixando para trs os collants
que compunham as fantasias de bichos e meninas desoladas pela perda da
fantasia desejada.
Em seguida, vestidas, as meninas partiam para as cozinhas no fundo da
sala. Dividindo-se entre cozinheiras e provadoras, uma parte delas preparava
as comidas e os chs que eram servidos s amigas sentadas mesa com suas
filhas e filhos de plstico e pelcia. A cena repetia-se durante praticamente
todo o tempo em que ficvamos na brinquedoteca, sendo ainda destacvel a
rotatividade na qual as posies se alternavam entre as meninas. Entretanto,
por vezes as panelinhas saiam de cena e davam lugar ao salo de
cabeleireiras.
Em um piscar de olhos as meninas mudavam a chave lgica da
brincadeira e abandonando o preparo de comidinhas imaginrias, passavam a
pentear com os dedos os cabelos das amigas sentadas nas cadeirinhas. Ellen
era a mais empolgada, escorria as mos entre os fios de cabelos de Juliana
enquanto dizia: vai ficar lindo!. Curiosa com a mudana repentina, perguntei o
que ela estava fazendo e rapidamente ela me respondeu: vou fazer uma
chapinha nela... e vou fazer luzes enquanto comprimia mais uma mecha de

142

fios. Sorri em retribuio resposta e rapidamente Luana interveio: passa a


mo no meu cabelo disse depressa. Peguei o cabelo dela e repeti o
movimento feito ao lado por Ellen. T macio, n? perguntou-me a menina.
T respondi reticente, e ela depressa: meu irmo fez chapinha ni mim. Mas
por qu? indaguei. E ela, sorridente finalizou: porque eu queria vim linda pra
escola.
Ir linda para a escola era tambm preocupao de meninas na escola
particular em Jundia. Mariana tinha acabado de reaver seu batom com a
professora que o confiscara durante a aula. A menina seguiu em direo ao
corredor da escola e reencontrou todas as outras crianas que esperavam, ao
trmino do perodo letivo, serem buscadas por seus familiares. Com as bolsas
agrupadas no canto do prdio, Renata e Isadora aguardavam a amiga voltar
com o batom. Mariana chegou, largou suas coisas no cho e com o objeto em
mos deslizou o contedo brilhante sobre os lbios enquanto as outras a
observavam.
Em seguida foi a vez do brilho ser deslizado nas bocas de Renata e
Isadora. Mariana fazia questo dela mesma passar o batom nas meninas
enquanto dizia abre mais, orientando o modo como a boca deveria estar
preparada. Com todas as bocas j brilhantes, Mariana ento afirmou: pronto,
agora vocs podem ser modelo. Levantaram as trs e sobre comando da
menina, saram pelo corredor andando com pernas tranadas e uma das mos
na cintura.
A postura firmada e o olhar longnquo a cada passo dado no corredor
mimetizava com exatido um desfile daqueles conhecidos do mercado da
moda internacional. Dando voltas no corredor, as meninas compunham sobre
si e para si uma conhecida e compartilhada performance corporal feminina
reconhecida e apreciada por seu valor esttico. Em situaes como essas, nas
quais as meninas traziam para as brincadeiras situaes cotidianas de um
salo de beleza ou de um desfile de moda, evidenciava-se a relao por elas
estabelecidas entre uma feminilidade imitvel e o tema mais geral da beleza e
a esttica. Assim como apesar de imitarem a Barbie em As trs mosqueteiras
no parque, porque ela salva o mundo, as meninas reivindicavam a rubrica
princesas para denominar o ato de brincar como algum que compartilha
daqueles referenciais estticos das personagens que so por uma marca de

143

produtos rotuladas como Princesas. Assim, por estas situaes parecia que, de
todo modo, brincar de qualquer coisa que pudesse ser de todo modo referido
como brincadeira de menina estava, ento, intrinsecamente relacionado
dimenso esttica, na qual vestidos, cabelos lisos, maquiagens e o cor-de-rosa
eram a referncias indiscutveis da feminilidade.
Tomando a imitao como bases de muitas de suas brincadeiras, fosse
como modelos, Ben 10, Barbies, Princesas, Power Rangers, mames ou
bichos, as crianas acionavam, antes de tudo, uma habilidade em observar e
dramatizar tcnicas corporais socialmente reconhecidas em suas brincadeiras.
Partindo da noo de Tcnica Corporal de Marcel Mauss (2003), o corpo
pode ser entendido como um instrumento no qual e pelo qual os dados
culturais se inscrevem. Marcados por meio de mecanismos de educao
continuamente realizados, o treino corporal faz da matria fisiolgica humana a
expresso de uma sociedade e gerao. Como nos prope Mauss, o corpo ,
antes de tudo, a base na qual um conjunto de tcnicas acionado e, por meio
da aprendizagem, instrumentalizado. Esse processo de ensino/aprendizado
sobre o corpo treina e adestra nossos gestos, movimentos e posturas para
adequ-los em um campo de significao cultural e, assim,
essa adaptao constante a um objeto fsico, mecnico, qumico (por
exemplo, quando bebemos) efetuada numa srie de atos montados
no indivduo no simplesmente por ele prprio, mas por toda a sua
educao, por toda sociedade da qual faz parte, conforme o lugar que
nela ocupa. (MAUSS, 2003, p. 408).

Dentre tais mecanismos de educao corporal, destaca-se, segundo o


autor, a imitao. Enquanto formas adquiridas, as tcnicas corporais so
transmitidas conforme a educao, as convenincias, as modas e os prestgios
convencionados por uma sociedade.

Neste caso, uma tcnica imitvel

desde que selecionada dentre aquelas prestigiadas e venerveis. Uma


imitao prestigiosa executada a partir das sries de atos socialmente
autorizados e possveis de verificar ao imitador a confiana e a legitimidade
daquele que imitado. Assim, como destaca Mauss, a criana, como o adulto,
imita atos bem-sucedidos que ela viu ser efetuados por pessoas nas quais
confia e que tem autoridade sobre ela. (MAUSS, 2003, p.405).

144

Quando decidem ser os Power Rangers, por exemplo, os meninos


decidem tomar para si, incrustar sobre suas peles, os atos corporais dos
personagens da TV. De modelos, Barbies, Power Rangers, Ben 10, mames e
filhinhas a imitao formulada pelas crianas produto, consequentemente, do
prestgio que tais personagens miditicos ou domsticos dentre elas exercido
e , por consequncia, a partir dessa imitao que diferentes corporalidades
podem ser pelas crianas vividas e experimentadas.
Neste sentido, se por um lado podemos entender que a escolha dessas
personagens (fictcias ou no) para a imitao entre as crianas devia-se ao
prestgio que tais figuras exerciam, por outro lado, o prprio prestgio destas
personagens estava precedido por uma coerncia de gnero que era pelas
crianas acionadas e legitimadas.
Tanto quando carregam e vestem os produtos dos personagens como
quando os imitam, os meninos mostravam a confiana e prestgio no Ben 10 e
nos Power Rangers depositados. Iniciando sempre pelo enfileiramento dos
Rangers de acordo com as cores por eles representadas, a dramatizao dos
meninos consistia em atos e movimentos de luta dirigidos ao inimigo
imaginrio. Suspendendo suas pernas ao alto em sequencias de chutes e
pontaps contra o ar, as lutas eram sempre coletivizadas entre os participantes
da brincadeira: cada um dos meninos com muito esforo combatia o inimigo
direto em um duelo de foras que, quando acabado, exigia subsequentemente
a ajuda com o inimigo do Ranger ao lado. Cada um tinha seu opositor
(invisvel) na brincadeira, mas o mal s poderia ser totalmente combatido num
empenho conjunto do grupo de meninos.
Foi observando continuamente essa srie de atos e movimentos pelos
meninos desempenhados que, certo dia em Marlia, me atrevi a brincar com
eles. Pedido feito, ideia aceita: tambm eu podia ser Ranger. L fomos ento
para a distribuio das cores os papis dos personagens. Rapidamente
os quatro meninos que estavam ao meu redor decidiram os personagens que
seriam, dizendo as cores que iriam representar. Dois deles eram os vermelhos,
outro era o amarelo e ltimo era o verde. Pressionada com a obrigao em
tambm decidir qual Ranger eu seria falei a ltima cor que veio em minha

145

mente: verde! Instantaneamente os quatro voltaram os olhares para mim e


exclamaram: no pode tia, o verde homem! 40.
Como assim o verde homem? perguntava-me. Insistentemente os
meninos continuavam: o verde homem. Voc no pode ser o verde, voc
mulher e me sugeriram a soluo: voc tem que ser a rosa, tia. Naquele
momento uma imitao, a construo de uma tcnica corporal, mostrava-se
no apenas pela seleo dos atos socialmente prestigiados e confiados, mas
tambm prestigiados e confiados segundo distines de gnero: se eram
personagens prestigiadas o bastante para que fossem insistentemente
imitadas, tais personagens eram, afinal, coerentes s distines de gnero
socialmente produzidas e legitimadas.
Deste ponto de vista, a relao entre as crianas e as personagens por
elas imitadas, tomando a mdia como mais uma fonte de referncia, se
estabelecia a partir do fundamento bsico de diferenciao entre a feminilidade
e a masculinidade, a todo tempo acionada e requerida. Assim, enquanto um
mecanismo para a educao corporal, tal como referia-se Mauss, a imitao
feita pelas crianas se mostrava tambm como um importante mecanismo para
a experimentao de uma corporalidade pelo gnero orientada.
Marcando limites e, ao mesmo tempo, produzindo possibilidades de
experimentao, as brincadeiras das crianas constituam um importante
espao para a apreenso do gnero em sua dimenso corprea. E se o gnero
, como sugere Judith Butler (2003), fundamentalmente formal, um efeito
esttico produzido por um conjunto de atos repetidos, ento aquelas
personagens ofereciam s crianas mais elementos referenciais para a
produo dessas formas femininas ou masculinas sobre seus corpos. Se tais
referenciais eram completamente aceitos ou intrinsecamente modificados,
muito dependia das relaes entre as crianas estabelecidas, se pretendiam
manter as barreiras entre o Power Ranger verde como masculino ou se
preferiam salvar o mundo, apesar de estarem com os longos vestidos rodados
e as coroas na cabea. O que parecia, afinal, estar l em jogo eram as
possibilidades de se aprender o gnero fosse consumindo ou brincando.

40

Por mais que no houvesse uma restrio das meninas brincarem de Power Rangers, foram
raras as vezes em que vi elas deixarem de brincar de casinha para brincar com o meninos.
Contudo, quando isso ocorreu, elas eram sempre as Rangers rosas.

146

Concluso
Nem um pouco confortvel seria a tarefa de dar por concludo um
trabalho. No ao menos no sentido estrito do termo, naquele em que o
entendimento sobre algo se pe enquanto definitivo no ato de finalizao ltima
de um processo. Ao contrrio, minhas pretenses aqui recaem apenas em criar
um momento de suspenso, de pausa, para que as ideias possam se arejar
antes de seguir caminho.
Neste percurso de 2009, quando o primeiro trabalho de campo se
iniciou, at aqui, aps dois anos de mestrado, por vezes as possibilidades
todas de compreenso sobre a relao entre crianas e Princesas jogaram-me
para as mais diferentes bibliografias, dilogos e interpretaes. O que veio aqui
exposto foi apenas um fragmento dentro de um trabalho longe de ser esgotado
ou, afinal, concludo.
O interesse em perceber como as relaes de gnero se configuravam
no cotidiano de crianas bem pequenas me levou s escolas de Educao
Infantil e ao universo de personagens miditicas to presentes nesses
espaos. Cinderelas, Ben 10, Barbies e Power Rangers foram emergindo
diante de meus olhos como importantes personagens referenciais para o
aprendizado e a comunicao das formas de gnero. Meu esforo moveu-se
em direo a essa profuso de cones de feminilidades e masculinidades entre
as crianas e detive, neste momento, minha ateno queles nos quais o
princpio geral marcava especialmente a forma como feminilidades eram postas
em circulao.
As Princesas Disney permearam as pginas que aqui se seguiram e
protagonizaram no apenas os longas-metragens conhecidos e admirados por
inmeras crianas como, tambm, se tornaram protagonistas neste dilogo
mediado por falas, corpos e objetos que estabeleci com as crianas das trs
diferentes escolas. A sugesto de diviso entre clssicas e rebeldes
proposta pela Disney foi tomada como um mote inicial e, assim, Cinderela e
Mulan, personagens de filmes homnimos, foram destacadas dentre as
Princesas.
Dentre os doze meses de trabalho de campo, as negociaes entre os
referenciais trazidos pela mdia e aqueles dispostos pelas prprias crianas

147

foram buscados e da, inclusive, a escolha de escolas de diferentes


configuraes econmicas para a composio desse campo. aqui confessa a
dificuldade de se produzir um texto em que as variaes sejam sempre
contempladas

evidenciadas,

sem

que

se

caia

na

aparncia

da

homogeneidade. A ideia de negociao esteve sempre subentendida neste


texto que, por vezes, pode denunciar minha limitao retrica em trazer tona
a dinamicidade das relaes cotidianas.
Em um primeiro momento procurei compreender as negociaes
internas s Princesas nesta dicotomizao entre clssicas e rebeldes. Fui
em busca das narrativas textuais de Cinderela e Mulan para destacar como a
composio das personagens apontam para feminilidades contrastantes,
apesar de no excludentes. Se por um lado a bondade e a resignao de
Cinderela eram os principais elementos de valorizao da feminilidade da
personagem, por outro lado, a coragem e a honra eram os principais valores
apresentados por Mulan.
Enquanto a nfase no romantismo de Cinderela se contrasta com o
herosmo de Mulan naquilo que pode ser entendido como uma construo de
uma forma feminina, uma sendo passiva frente s adversidades e outra criando
e resolvendo seus prprios conflitos, Cinderela e Mulan, em contrapartida,
esto ambas inseridas em um mesmo conjunto de personagens que sobre o
nome

Princesas

tende

conter,

ainda,

elementos

minimamente

compartilhados. Assim, ainda que clssica e rebelde, a dicotomia entre


estas personagens negociada a partir da potencialidade de realizao do
amor conjugal para que ambas sejam, afinal, Princesas.
Cinderela a jovem sonhadora que se resigna em sua esperana de
superar os dias de borralho. Chora quando v sua vida desmoronar e de seu
sofrimento nasce a salvadora. De sua determinao recebe ento como
recompensa o amor de um prncipe que, desposando-a, faz seu sonho se
tornar realidade. Mulan, por sua vez, se encrenca com a casamenteira e no
consegue arranjar um par pelas vias tradicionais. Com a honra de sua famlia
abalada e sua reputao comprometida, ela vai para a guerra no lugar de seu
pai e, travestida de homem, salva toda a China. De volta para casa como uma
grande herona, Mulan traz no apenas as honrarias imperiais como, tambm,
o capito de seu batalho por ela apaixonado.

148

Romntica ou heroica, Cinderela e Mulan encontram nessas formas de


feminilidades o elemento no qual se tornam casveis e, portanto, uma unidade
ainda que acidentada para o terreno das Princesas. Contudo, partindo do
pressuposto de que as mensagens de suas narrativas no so fechadas ou
totalmente controladas, procuramos entender como, por outro lado, as crianas
liam as Princesas e quais eram os referenciais por elas acionados a partir
daquelas narrativas.
Nas trs escolas os filmes serviram como temas para conversas. Apesar
de em Marlia, no primeiro momento da pesquisa, apenas Cinderela ser motivo
de discusso, em Jundia, na expanso da pesquisa para a escola particular e
a outra escola municipal, Mulan somou-se roda de anlise com as crianas.
Dentre os quatro meses que estive em cada uma das instituies, os perodos
de discusses sobre os filmes foram marcados sempre pelo entusiasmo das
turmas e pela profuso de desenhos e falas sobre as narrativas Disney.
Entretanto, as particularidades de cada um dos contextos nos quais a pesquisa
se realizou puderam tambm ser notadas a partir da recepo dos filmes.
O marcador de classe social apareceu com muita sutileza em relao s
leituras produzidas pelas crianas sobre os filmes. Se em Marlia, na escola
municipal, a cena do baile em que Cinderela conhece seu par romntico era
recorrentemente lida como o casamento das personagens, tal confuso
narrativa no esteve em nenhum momento presente entre as crianas da
escola particular, em Jundia. Em Marlia, o vestido azul reluzente produzido
pela fada madrinha para Cinderela ir ao baile foi chamado de vestido de noiva
brilhante e, do mesmo modo, o primeiro encontro com o prncipe e as
romnticas cenas que se seguiram foram entendidas como o casamento da
Princesa, sugerindo que em alguma medida aquelas crianas estavam menos
familiarizadas com a linguagem na qual o filme se assentava.
Neste sentido, a ausncia de confuso sobre as cenas do filme entre as
crianas da escola particular, com maior insero no mercado de consumo de
bens e filmes das Princesas, parecia evidenciar que tanto elas podiam
conhecer mais o filme, tendo o assistido mais vezes, como tambm, de um
modo geral, tinham um maior domnio da prpria linguagem visual do cinema,
ao contrrio das crianas com menor poder de consumo. No era preciso
muitas falas entre as personagens para que as crianas da escola particular j

149

soubessem o contexto da cena que se desenrolava, elas pareciam, de todo


modo, mais familiares com a linguagem dos filmes.
Entretanto, vale ainda ressaltar, a confuso de cenas que se deu entre
as crianas de Marlia tambm no pode ser entendida como um erro aleatrio.
Se as crianas, por pouca familiaridade ao filme ou linguagem
cinematogrfica, confundiram o baile com o casamento, essa confuso, de todo
modo, no fortuita tendo em vista a constituio visual das duas cenas em
questo: fosse pelos suntuosos vestidos da protagonista, o do baile ou do
casamento, ou fosse pelo semblante sempre feliz dela ao lado do prncipe, as
duas cenas compartilhavam referenciais visuais que, contudo, poderiam abrir
brechas para confuses.
De maneira correlata, quando comparamos as leituras das crianas da
escola particular e da EMEB em Jundia sobre Mulan, era muito mais comum
as crianas com o maior poder de consumo associarem a personagem marca
de produtos Princesas do que as crianas da escola municipal. Se as
personagens aqui trazidas compunham no apenas dois longas-metragens
populares, mas ainda uma marca de produtos que justamente contribui para a
manuteno da divulgao dos filmes e, principalmente, uma marca
amplamente difundida antes mesmo que estas crianas estivessem nascidas,
se fez notvel a familiaridade com a qual as personagens e suas posies
neste contexto comercial eram tratadas pelas turmas da escola particular.
Estando ambos os filmes assentados em representaes binrias
bastante marcadas, tanto entre o bem e o mal, como entre o feminino e o
masculino, o binarismo se fez presente tambm nas leituras produzidas pelas
crianas. Na escola municipal de Marlia os meninos procuraram evidenciar
que Cinderela de menina concentrando-se nas cenas protagonizadas pelos
bichinhos amigos da Princesa e desenhando elementos alheios ao filme, por
sua vez, mais condizentes quilo que entendiam ser prioritrio para eles:
Carros, Megazords e Hot Wheels.
J em Jundia, nas duas escolas a centralidade dos desenhos esteve
sobre as protagonistas dos filmes, apesar de, novamente na escola municipal,
os meninos privilegiarem, por exemplo, os elementos romnticos de Cinderela
enquanto que, para as meninas, o foco residia na coroa, no vestido e na
elegncia da personagem. Nesse sentido, se por um lado os referenciais de

150

gnero que poderiam ser apreendidos a partir das Princesas faziam parte do
nosso mote investigativo, por outro lado, foi preciso notar que, antes disso, o
prprio gnero j era um elemento orientador da forma como as crianas se
posicionavam enquanto audincia dos filmes.
E os referenciais trazidos pelas crianas para o ato de assistir os filmes
em muito determinava suas leituras sobre as narrativas. Se como diziam os
meninos de Marlia, filmes que no so de meninas, como Carros ou Power
Rangers, so aqueles em que disputas e lutas conferem o clima de ao das
cenas, quando as crianas em Jundia assistiram Mulan pareceu que essas
fronteiras entre masculinidade e feminilidade se tornaram mais embaadas. A
personagem guerreira, que se traveste de homem e vai guerra em lugar de
seu pai, baguna as fronteiras entre o feminino e o masculino ao sair da
conveno de gnero. Ao mesmo tempo em que apresenta referenciais
apreendidos como femininos, como a bondade e a delicadeza, ao se
transformar em um soldado, Mulan oferece ao pblico a mesma coragem e o
mesmo orgulho que as personagens dos filmes de luta e ao to apreciados
pelos meninos apresentam.
Mulan borra os limites do gnero e torna a conveno mais explcita ao
plantar a dvida entre as leituras da audincia. Em nenhum momento as
crianas questionaram o herosmo de Mulan, contudo, no hesitaram em
levantar uma grande dvida: ela uma princesa? Ela de luta dizia Gabriel
da escola particular para argumentar que Mulan no era uma princesa,
enquanto outras crianas lembravam-se das cenas da protagonista com seu
pai, dela arrumada para ir casamenteira e da sugesto final de enlace
amoroso para defender a posio contrria. Mulan trouxe para a roda de
conversas de modo mais evidente as marcaes entre feminilidade e
masculinidade, fez com que as convenes fossem explicitadas e, ainda,
trouxe para o centro da discusso os critrios que so, para as crianas,
constituidores de uma princesa.
A potencialidade de realizao do amor romntico que foi destacada
como um elemento comum s narrativas Disney das Princesas ecoou entre as
crianas que diziam terem mais gostado das cenas em que os pares
romnticos so evidenciados. Os momentos em que Cinderela era retratada
danando, beijando ou casando-se com o prncipe, por exemplo, aliada ainda

151

s falas que justificavam a posio da personagem enquanto princesa a partir


do argumento que pra ser princesa tem que casar, n?, como dizia Renata,
porque princesa solteira no existe, seno no vai ser princesa, vai ser
solteira, serviram de base para que a dimenso relacional na construo de
uma princesa fosse percebida como importante tambm pelas crianas.
Contudo, se, por um lado, a centralidade do casamento e da
concretizao do amor romntico despontava como o elemento que conferia
uma unidade entre as narrativas de Cinderela e Mulan e, portanto, em nvel
textual sugeria que este era um critrio para a constituio de uma princesa,
por outro lado, entre a audincia, esta centralidade no foi o nico critrio
encontrado. A nfase dada pelas crianas sobre o deslumbre com o vestido e a
coroa, bem como a ateno sobre a beleza e elegncia das personagens
indicavam que, entre aquela audincia, para ser princesa era preciso, antes,
atender a um referencial esttico bastante especfico.
A predominncia do referencial esttico como um critrio de definio de
uma princesa surgiu como o grande argumento operado pelas crianas. Mais
do que estar em uma marca de produtos chamada Princesas ou se casar com
um prncipe, para a maioria delas o que constitua uma princesa era, afinal, um
belo vestido, uma coroa e um comportamento destacvel, fosse pela bondade
ou fosse pela elegncia. Neste sentido, enquanto um critrio ligado forma
pela qual algum se apresenta, o referencial esttico apontado pelas crianas
indicava uma corporalidade requerida para a construo dessa feminilidade
entendida como princesa.
A centralidade de uma esttica corporal extrapolou a hiptese inicial da
dimenso relacional e despontou como um importante elemento para a
compreenso sobre os contornos de feminilidade que podem ser apreendidos a
partir das Princesas. Nos contornos estticos daquilo que as crianas
entendiam como uma princesa, referenciais de classe, de cor e gerao eram
acionados para a elaborao de um referencial de gnero: o destaque dado s
coroas, joias, vestidos suntuosos, beleza que se mostra branca e jovem e,
ainda, s performances corporais entendidas como elegantes, constituam os
critrios daquilo que uma pessoa precisa ter para poder ser.
No muito distantes dos referenciais comumente operados pelo cinema
de modo mais geral, o ideal de princesa despontou como um cone de

152

feminilidade essencialmente belo e glamouroso e que, ainda, apresentava ecos


de uma constituio esttica muito prxima da imagem de uma noiva: ela pe
vestido, pe brinco, pulseira, anel, arruma o cabelo e vai casar dizia Samantha
ao evidenciar que, se as crianas falavam do casamento como um elemento
para a constituio de uma princesa, essa associao entre casamentos e
princesas podia ser pensada no apenas a partir da dimenso relacional de
enlace amoroso mas, tambm, a partir da evocao de um apreo esttico do
casar-se com um belo vestido e uma coroa. Finalmente, ser princesa, para as
crianas parecia corresponder realizao de si a partir de um referencial no
qual ser feminina , afinal, ter glamour.
Quando o que emerge so ento as brincadeiras e os produtos
consumidos pelas crianas, ao ltimo captulo, parece que essa relao entre
as personagens da mdia e as crianas ganha materialidade sobre as coisas e
os corpos. Consumindo os produtos com as personagens da mdia as crianas
se posicionavam entre si a partir de objetos generificados e comunicavam as
feminilidades e as masculinidades, fazendo das coisas extenses de seus
prprios corpos.
Os exemplos trazidos de Marlia puderam ilustrar a relao estabelecida
entre as crianas e os objetos. A identificao de seus materiais escolares a
partir de pequenas etiquetas adesivas abriu a brecha para a diferenciao
econmica e de gnero entre as crianas da turma da EMEI. As poucas
crianas que tinham etiquetas diferentes daquelas brancas e simples marcando
seus nomes traziam adesivos elaborados, coloridos e inspirados nas
personagens da mdia.
Mais do que apenas identificar a quem pertencia cada um daqueles
materiais, as etiquetas representavam uma relao de identificao tambm
entre as personagens nelas marcadas e as crianas que delas faziam posse.
Os referenciais de agressividade e agilidade trazidos pelos carros de corrida do
Hot Wheels ao mesmo tempo que serviam de fonte de identificao para o
Alex, servia de fonte para que sua masculinidade fosse tambm comunicada
quando posta em relao com as etiquetas da Barbie ou das Princesas.
Marcados pela diviso entre feminino e masculino, os produtos
inspirados pelas personagens da mdia eram postos em relao pelas crianas
enquanto expanses de si mesmas, expanses daquilo que buscavam

153

materializar e comunicar sobre si. Ao mesmo tempo, tais personagens,


enquanto inspiravam estampas de produtos adensavam suas presenas no
cotidiano da escola e se estendiam, tambm, para as brincadeiras no parque.
A identificao com as personagens carregadas nos objetos era
ampliada dentro dos tanques de areia nos quais as crianas as traziam
tambm como referncias para o brincar. A relao entre as crianas e as
personagens dos bens de consumo no se limitava apenas materialidade dos
objetos, mas ser a princesa ou ser o Ben 10 era uma reivindicao recorrente
nos parquinhos das trs escolas e era o meio pelo qual as personagens eram
materializadas tambm sobre os corpos.
Neste contexto, as desigualdades de acesso aos bens de consumo
marcavam sua fronteira pela relao entre ter ou no ter os produtos de uma
personagem especfica como determinante de como as crianas eram vistas
entre si. Foi principalmente entre as crianas das classes populares, nas
escolas municipais, que acusaes de se ter ou no determinado objeto mais
apareceram, assim como foi l tambm que as crianas determinavam a
legitimidade de algum imitar uma personagem na brincadeira tomando como
critrio a escolha de quem tivesse mais produtos dessa mesma personagem.
Contudo, imitar uma personagem na brincadeira era uma ao
recorrente em todas as escolas, independentemente de maior ou menor
acesso aos bens de consumo. Servindo de referenciais para o estabelecimento
das fronteiras entre meninas e meninos, as personagens invadiam o espao do
tanque de areia e tomavam forma sobre os corpos das crianas. Posicionando
tudo e todas a partir das diferenciaes de gnero, as crianas exprimiam o
que era por elas entendido e valorizado como marcas de feminilidade e de
masculinidade nas aes cotidianas do brincar.
Se as brincadeiras eram recorrentemente divididas entre de meninas e
de meninos, quando as personagens entravam na roda, serviam no apenas
como um reforo s fronteiras entre os gneros como, tambm, serviam de
repertrio

para que

os contornos de gnero fossem delimitados e

experimentados. Enquanto brincavam de Ben 10 os meninos performatizavam


sobre seus corpos a agilidade e a coragem que caracterizavam a personagem
como masculina e, neste sentido, mais do que imitar as personagens, as

154

crianas experimentavam os elementos que as tornavam caracteristicamente


masculinas ou femininas a partir dos usos corporais.
Ademais, a possibilidade de interao entre as crianas e as
personagens evidenciavam as brechas nas quais as crianas podiam tambm
manipular, em alguma medida, as posies de gnero que eram oferecidas
pela mdia. Quando as meninas disseram estar brincando de princesas e
sobre a casinha de plstico do parque evocavam a Barbie em As Trs
mosqueteiras, elas reivindicavam a posio de salvadoras do mundo, ainda
que, por exemplo, salvar o mundo sendo loira e tendo um lindo vestido como
uma princesa parecesse mais interessante.
Assim, no deixando escapar-nos a cena da menina rodopiando e se
dizendo girar como a princesa, o que as crianas pareceram evidenciar durante
os meses de pesquisa foi, enfim, que se por um lado a mdia pode oferecer
elementos para que contornos de feminilidades e masculinidades sejam
delimitados, performaticamente que o gnero ganha materialidade, adensa
corpos e mostra a dimenso do masculino e do feminino que se aprende
tambm brincando.

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