Bosi - O Sujeito-Pedra
Bosi - O Sujeito-Pedra
Bosi - O Sujeito-Pedra
As epgrafes foram retiradas, respectivamente de: Ponge, F. O partido das coisas. trad.
I. A. Neis e M. Peterson. So Paulo: Iluminuras, 2000, e Weil, S. A condio operria e
outros estudos sobre a opresso. (sel. e apres. Ecla Bosi). Trad. T. G. G. Langlada. Rio
de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1979.
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Como iremos nos centrar no problema que ora nos ocupa, destaco-os de seu entorno.
Para tanto, retomo e desdobro comentrios analticos que fiz em textos anteriores, sem
me deter no exame especfico da obra dos poetas, de seu contexto ou fortuna crtica.
Desenvolvi comentrios mais extensos sobre a poesia de cada um em Rubens Rodrigues
Torres Filho: verso e avesso(Terceira Margem, ano VIII, n. 11. Rio de Janeiro:
UFRJ/Faculdade de Letras, 2004), As faces da musa em Francisco Alvim (Pedrosa, C.
e Camargo, M.L. de B., orgs. - Poticas do olhar e outras leituras de poesia. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2006) e As idias-dente de Sebastio Uchoa Leite (livro coletivo
ainda indito em homenagem ao poeta, a ser editado pela Casa de Rui Barbosa, Rio de
Janeiro).
autores, guisa de apresentao sumria, que adquiriram seu estilo maduro, que
os acompanha at a obra mais recente, quando da poesia publicada a partir do
final dos anos 60 e comeo dos anos 70, endossando certa tendncia de
reaparecimento da expresso subjetiva depois da ruptura extrema que o
concretismo havia lanado como repto poesia. Mas, neste caso, no se tratava de
um retorno puro e simples: afirmava-se outra forma de voz potica, mediada
fortemente pela desconfiana em sua centralidade ou organicidade.
Logo se percebeu que esta nova subjetividade lrica era traspassada pela
solido e por uma conscincia agnica da vulnerabilidade do indivduo em
face da paisagem humana, do meio social, do comrcio doloroso e imediato com
o nosso presente social, com o tempo agressivo do ethos urbano moderno. (p.
198-199), conforme analisa Merquior ao examinar a reintroduo do sujeito na
poesia de Francisco Alvim. 3
Por outro lado, ser que as propostas concretistas infiltraram-se como
desafio mesmo em poetas que as refutavam? Os que se diziam anti-formalistas,
leitores partidrios de Drummond e Bandeira, e crticos da interpretao de Cabral
disseminada na poca, ainda assim teriam incorporado a desconfiana em relao
a certa expresso do eu que no era mais possvel? After such knowledge, what
forgiveness? (Eliot)
Ou ainda, teriam acontecido tais alteraes na experincia do sujeito
contemporneo que, junto desconfiana acerca da formalizao da obra (quando
se abandonavam moldura e pedestal, rejeitados vigorosamente pelos artistas e
poetas mais radicais daquele momento) tambm a voz autoral entrava em crise
no para ser reprimida e asseptizada, mas para aparecer lanhada ou questionada,
em lascas e feridas?
Sebastio Uchoa Leite especialmente interessante, uma vez que se
identificou fortemente com o experimentalismo vanguardista e seu rigor
depurativo da linguagem, mas este foi por ele ruminado como conscincia irnica
e destrutiva. Embora suas solues como poeta sejam irredutveis a
generalizaes comparativas, no se pode deixar de notar que um certo tipo de
eu bastante auto-crtico tambm paira sobre parte considervel da poesia psconcreta.
Merquior, J.G. A astcia da mimese. Rio de Janeiro: Jos Olympio Ed., 1972.
Mello, H.F. de. O rito das caladas (Aspectos da poesia de Francisco Alvim). So
Paulo: FFLCH/USP (dissertao de mestrado), 2001.
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Conforme observou Roberto Schwarz: as vozes que falam atravs do poeta no so de
ningum em particular, o que no quer dizer que sejam de todo mundo... Annimas e
tpicas, nem individualizadas nem universais, elas tm a polivalncia do uso corrente,
sempre em via de expecificao, com encaixe estrutural em nosso processo coletivo, a
cujas posies cardeais respondem alternadamente e cujo padro de desigualdade
veiculam. (O pas do elefante. Caderno Mais! Folha de S. Paulo, 10/03/2002).
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Com a exceo de Sebastio Uchoa Leite, cuja vida encerrou-se em 2003.
contemporneo
no
advoga
para
si
nenhuma
possibilidade
de
correspondncia.
J a afinidade com o spleen baudelairiano se explicita no s na figurao
do cu baixo e opressivo como tambm pela comparao ambgua, inesperada,
com capa e sobretudo vestes que protegem da chuva, acrescentando um toque
de ironia ou de clemncia posio do sujeito-pedra. Assim, esta natureza que o
rodeia poderia estar ali para melhor realar a discrepncia intransigente entre sua
imobilidade melanclica, em contraste com o brilho, a leveza e a dana rtmica do
mar, da chuva, da ave e da estrela. Ou quem sabe estes elementos esto ali para
inutilmente consol-lo, posto que no podem dirimir sua irredutibilidade.
Tambm a identificao com um objeto inanimado apresenta-se
paradigmtica num dos poemas do Spleen, quando a voz lrica compara-se a
uma cmoda, um quarto velho, um cemitrio e afinal assevera: - Dsormais tu
nes plus, matire vivante!/Quun granit entour dune vague pouvante.
Tornar-se mineral afigura-se como atributo do poeta impermevel e mesmo
contrrio ao movimento agressivo do mundo, ao qual ele retribui com um tdio
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Leia-se o seu notvel estudo de 1948 A terra e os devaneios da vontade. Trad. Paulo
Neves da Silva. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 1991.
profundo.
A percepo de estar esvaziado de si e do outro se afigura dolorosa neste
outro poema, de Francisco Alvim:
Escolho
Parado
Na plataforma superior
Entre as pernas
no cho
as compras num plstico
Longe do verso perto da prosa
Sem nimo algum
para as sortidas sempre
enquanto duram
venturosas da paixo
Longe to longe
do humor da ironia
das polimorfas vozes
sibilinas
transtornadas no ouvido
da lngua
Ali onde o cho cho
as pernas, pernas
a coisa, coisa
e a palavra, nenhuma
Onde apenas se refrata
a idia
de um pensamento exaurido
de movimento
Entre dois trajetos
dois portos
(duas lagunas)
duas doenas
Sublimes virtudes do acaso
por que no me tomais
por dentro
e me protegeis do frio de fora
da incessante, intolervel, fuga do enredo?
da escolha? 9
O ttulo, j de antemo um trocadilho espelhado no ltimo verso (escolhoescolha), parece aludir concepo existencialista sartreana da obrigatoriedade da
liberdade individual: o sujeito inexoravelmente responsvel por seu destino. Mas,
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figurado.11
As polimorfas vozes/sibilinas que imaginamos variadas, intensas,
sbias aquelas que comporiam o universo potico transtornadas no ouvido da
lngua no apenas vertidas, entornadas, mas revirando-se entre audio e fala,
aqui mesclados so o oposto, em seus transtornos e transportes, a esse lugar de
coisas sem deslocamento algum.
Sinalize-se, nesses versos, a rima toante (de novo, cabralina) entre
ironia/sibilina/lngua e a obsesso aliterativa do /p/, intensificando a impresso de
dureza e paralisia, em especial nos dois primeiros versos, bem destacados em
frases isoladas. J na ltima estrofe, de estilo bastante diferente, a repetio do /f/
e do en/in se faz audvel, como possvel concretizao do destino fluido, que o eu
lrico quer evitar.
Quando finalmente manifesta-se a voz do sujeito, em atitude de apstrofe
invocando estranhas musas (Sublimes virtudes do acaso), ela surge para clamar
por sua auto-destruio. O poema conclui-se com um apelo, como uma prece,
num momento de anti-iluminao. Abandona-se a um tipo de providncia, no
mais divina, mas nesse instante de parada e exausto, considerada superior
conscincia finita e errada. como se estivssemos diante de um Ulisses (ou
Vasco da Gama) ao revs, queixando-se da falta de destino da viagem, da
indiferenciao entre homem e mundo, com um cansao que o reduz s
mercadorias. No temos mais aquele sentimento de indiviso pica entre interior e
exterior, nem o belo abandonar-se contemplao da paisagem ao ponto de nela
transfigurar-se para mais intimamente exprimi-la. Ocorre, pelo contrrio, uma
pardia extrema disso. Quem sabe como seria melhor alienar-se e deixar-se levar
pelo arbtrio do acaso, que transformaria o escolho do eu na escolha impessoal...
Numa outra possvel interpretao do poema, e particularmente desta
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I. Meszaros. Marx: a teoria da alienao. Trad. W. Dutra. Rio de Janeiro: Ed. Zahar:
1981.
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Em nosso tempo, a indstria de entretenimento vem criando objetos de distrao to
completos que evocam o almejado esvaziamento da conscincia testemunhado pelo
poema de Francisco Alvim. Numa propaganda de televiso atual, presenciamos a
seguinte estorieta: um rapaz entra num vago de metr no qual se sente deslocado por ser
o nico que no possui um determinado celular que os outros passageiros seguram,
obedecendo todos a um ritmo comandado pela pequena mquina, que simula jogos
diversos. Assim, cada feliz portador de um destes aparelhos est alheio ao ambiente do
trem, participando de uma competio individual com o seu celular, e fazendo
movimentos enigmticos para o recm chegado, como se fossem estranhos autistas
controlados por um ritmo invisvel. A cena se repete na rua, onde outros jovens se mexem
de modo incompreensvel para ele, enquanto olham fixamente para seus celulares.
Finalmente, algum lhe atira um celular igual ao que os outros possuem, e ento nosso
heri passa a fazer parte da confraria de zumbis. Os espectadores da propaganda podem
compartilhar de sua alegria ao tambm v-lo jogar, como os outros, numa quadra de tnis
ou numa mesa de bilhar virtuais que aparecem na telinha do aparelho. No h,
evidentemente, nenhuma angstia nesta abdicao da autoconscincia e mesmo de toda
alteridade sua volta em prol da distrao contnua semelhana da horrvel utopia de
Huxley, em Brave new world (1932) em que a TV onipresente at mesmo no momento
da morte, quando uma paciente terminal se distrai vendo um campeonato esportivo numa
tela ligada ininterruptamente na frente de sua cama no hospital. A escolha do jovem
protagonista da propaganda pela anulao de sua diferena e pela integrao total ao
controle maquinal um abandonar-se contente.
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como se olho, sol, vidro, fossem telas ou janelas virtuais, sem espessura ou
volume. Daqui de dentro e l fora deixam de ser opostos quando a
luminosidade do sol incsmico equaliza os espaos, como se todos voz que
fala e pedestres flutuassem no mesmo aqurio.
O prprio olho, sinal da alma, foi esvaziado de sua potncia singular de
expresso da interioridade. Sua aparncia lquida e brilhante associa-se, no
poema, ao vidro, vazio de singularidade, espelho ptreo refletindo uma rua
ptrea, de modo contraditoriamente impessoal: ao movimento adquirido pelo
que era ptreo os pedestres da rua ptrea corresponde petrificao do olhar
do eu que os via, reflete Luiz Costa Lima, 29 que se deteve sobre este poema, em
meio a vrios, com vistas tentativa de compreenso do tipo de eu lrico na obra
final de Sebastio Uchoa Leite. Dele observou que a oposio entre sujeito e
objeto se converte em uma transitividade ... intransitiva. (p. 234). Conclui ento,
tendo em vista igualmente outros poemas do livro A espreita: a ironia sustenta a
conscincia, ao mesmo tempo que ri zombeteira de ela se considerar o centro das
coisas. A separao entre o eu e o outro por certo no desaparece, mas tampouco
permanece intacta, ao impedir que o eu ainda se tenha por centro. (p. 236). No
h propriamente sujeito: tudo se d como se a voz que enuncia fosse uma coisa - o
olho ptreo espelhado que reflete outros, imagens passageiras, enquanto ele
permanece parado, de certa forma indiferente a tudo e sem possibilidade de
interlocutor. A contraposio entre ele e o mundo apresenta-se de modo diferente
neste poema, pois nos dois anteriores havia um sujeito-coisa que se ressentia de
sua imobilidade e isolamento. J aqui tudo equalizado na mesma apatia. No
parece haver o indivduo enfeixando um ncleo anmico que imagina e deseja:
passivamente, o olho desliza como se houvesse uma anulao da perspectiva
central a comprimir proximidades e distncias. 30
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www.iea.usp.br/iea/textos/pelbartdominacaobiopolitica.pdf, p. 10-11).
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Compare-se com o poema Descoberta, de Drummond, em Lio de coisas.
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Celan, P. Sete rosas mais tarde. Antologia potica. Sel., trad. e introd. Joo Barrento e
Y.K. Centeno. Lisboa: Ed. Cotovia, 1993.
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que furam como o mais fino dos fusos a dureza extrema. Esta clula do sujeito
que sobrevive, sensvel a um toque, tenta reverter a morte-em-vida.
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