III Encontro Anual AIM
III Encontro Anual AIM
III Encontro Anual AIM
Ttulo: Atas do III Encontro Anual da AIM, ed. Paulo Cunha e Srgio Dias
Branco
Editor: AIM Associao de Investigadores da Imagem em Movimento
Ano: 2014
Capa: www.blocod.pt
Paginao: Daniel Ribas
ISBN: 978-989-98215-1-4
www.aim.org.pt
NDICE
Introduo
Paulo Cunha e Srgio Dias Branco
AUTORES E TEORIAS
O ator no contexto da direo cinematogrfica: atuao como territrio de estranhamento
Rejane K. Arruda
Da criana que nos olha
Thais Botelho
Antnio Reis e o espao de um lugar - sintomatologias de Jaime
Ilda Teresa Castro
O fio de Ariadne: as narrativas labirnticas de Christopher Nolan
Ftima Chinita
Sobre dois filmes de Bla Tarr
Carlos Melo Ferreira
O retorno dos fantasmas: arriscar um pensamento desconstrutivo do cinema
Maria Continentino Freire
Dilogo entre a fotografia e o cinema de Agns Varda
Patrcia Nogueira
O ensaio enquanto gesto: Passion e Scenario du film "Passion", de Jean-Luc Godard
Rita Novas Miranda
Feminista no, eu sou feminina: Teorias da suposta sensibilidade de um olhar
minoritrio no cinema portugus
Ana Catarina Pereira
O experimental no cinema brasileiro: Omar, Ferreira e Bressane
Guiomar Ramos
O subterrneo contra a altura em Os Verdes Anos, de Paulo Rocha e em Sangue do Meu
Sangue, de Joo Canijo
Liliana Cristina Vidais Rosa
Paulo Rocha, Manoel de Oliveira e o Douro: dois realizadores e um rio s
Filipa Rosrio
ESCRITA E NARRATIVAS
A escrita de interveno de Jean-Claude Bernardet
Margarida Maria Adamatti
O cinema de poesia potencializado: o problema do cineasta-criador e do personagemcineasta em O homem urso
Marcelo Carvalho
A impossibilidade do cinema no narrativo
Joo Leal
Who needs a superhero? New trends in action and adventure movies
Joo de Mancelos
Universos pessoanos no imaginrio de Joo Csar Monteiro
Henrique Muga
Bertolucci e Bowles: Por uma autenticidade na submisso
Ana Claudia Rodrigues
A propagao de histrias na era da participao: A questo da autoria nas narrativas
transmediticas
Marta Noronha e Sousa
Prtica da escrita e exerccio da memria em ric Rohmer (1920-2010)
Marina Takami
Escrita e apologia em Francisco Luiz de Almeida Salles
Fbio Raddi Ucha
IMAGENS E SONS
Entre efeito de presena e de sentido: Experincias estticas do futebol no cinema brasileiro
contemporneo
Ana Maria Acker & Miriam de Souza Rossini
Freeze-body: Imobilidade e retardamento no cinema e no vdeo
Joana Bicacro
HISTRIA E NAO
Cinema, propaganda e imprio. O Romance do Luachimo Lunda, Terra de Diamantes
Cristina S Valentim & Lus Costa
Contornos da nao em cinejornais brasileiros (1956-1961)
Rodrigo Archangelo
A censura ao cinema contra o contgio das ideias
Leonor Areal
A problemtica receo de filmes antiguerra dos anos 60/70 em Portugal
Gerald Br
O filme como agente da e na Histria: o caso de O trabalho de um povo
Paulo Miguel Martins
Memrias, cinema e ditadura civil-militar: As disputas pela reformulao da memria
nacional
Danielle Parfentieff de Noronha
Introduo
Paulo Cunha e Srgio Dias Branco
AUTORES E TEORIAS
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pondo em cheque o que seria natural. De maneira que, quando se trata de uma
atuao realista, a prpria inscrio do ator na visualidade de um cotidiano
diegtico deve estranhar. Esta hiptese est em experimentao, ou seja, no
est plenamente desenvolvida. No entanto, espera-se que um possvel
amadurecimento abra perspectivas para uma crtica da atuao.
Estranhem o que no for estranho
Tomem por inexplicvel o habitual
Sintam-se perplexos ante o cotidiano
Faam sempre perguntas
Caso seja necessrio
Comecem por aquilo que mais comum
Para que nada seja considerado imutvel
Nada, absolutamente nada.
Nunca digam: isso natural (Brecht 1990, 129)
Rejane K. Arruda
estou de acordo com o que esta personagem faz, pois entendo que ela est
agindo por uma determinao social; com o meu gesto, eu digo isto a vocs; por
isto, olho diretamente para vocs; exagero os gestos e os construo de maneira a
no simplesmente mimetizar aes, mas tambm estranha-las, coloc-las em
questo, desitu-las, retira-las da diegese, desloc-las para um discurso que
meu.
Trata-se, classicamente, da oposio atuao naturalista quando esta
dada como registro de um real sem p-lo em questo (de um real "natural"), tal
como pode ser atribuda Stanislavski (com a sua crena na revelao de uma
essncia do homem) ou Antoine, quando este tenta fazer do teatro o
documento do mundo "tal como ", reverberando o projeto cientificista de
Zola. Ao contrrio, a obra teatral de Brecht est marcada "pelo niilismo
anrquico e pelo cinismo" (Montagnari 2010, 9)
Com o folclore, as aes populares, os corais, cenas justapostas ou a
estilizao do texto, Brecht procura evocar a visualidade de um olhar, de um
pensamento. Na atuao, o efeito de distanciamento implica que, enquanto o
ator inscreve as aes da personagem, outra cadeia lida pelo espectador. A
visualidade de uma representao aparece, enquanto que, em Stanislavski, esta
se encontra disfarada e escondida para que o ator evoque o "como se" fosse
o personagem. Para muitos, o projeto de Stanislavski de evocar, atravs da
atuao naturalista (ou realista), com a mimese de uma cotidianidade do corpo,
o "como se" fosse real, implicaria a diluio do olhar do espectador; um
colamento na diegese por empatia (identificao), reforando, assim, padres
burgueses. J a obra de Brecht seria "convite ao deboche (sexo, charuto, lccol,
pio) e um desafio moral burguesa" (Ibidem 9).
No entanto, podemos perceber que, no cinema, uma atuao realista pode
estar implicada em uma potica que sublinha a visualidade do olhar do
espectador atravs da mise-em-scene, enquadramento e movimento da cmera,
bem como dos cortes. No cinema, podemos perceber indcios da visualidade de
um contexto do ator inscrita na potica do filme. Por exemplo, em Viver a Vida
de Jean-Luc Godard, por mais cotidianidade que Anna Karina imprima atravs
do seu desenho corporal, olhar, respirao e gestos, h distanciamento e a
visualidade da presena do espectador evocada quando a atriz olha (ou quase
olha) para a cmera. Ou, para citar um exemplo brasileiro, quando, em Bang
Bang, de Andrea Tonacci (1971), Paulo Cesar Pereio repete um mesmo dilogo
por diversas vezes na mesa do bar, misturando a visualidade da representao a
um universo diegtico fragmentado, apesar da cotidianidade da construo
corporal da atriz, que se torna, ento, performativa.
- Oi.
- Oi. (...) T bom?
- Porque voc falou "t bom"? Eu s falei "oi"!2
13
Rejane K. Arruda
flmica.
Deparamo-nos
com
perspectiva
desta
espcie
de
deste tipo de atuao? Neste caso haveria tambm uma potica da atuao ou
quando o ator cumpre a mimese do habitual somente a potica do filme (a
qual esta serve) que se constitui?
Seria preciso aqui investigar um pouco o conceito de potico. Para
Jakobson, por exemplo, "toda mensagem potica como um discurso citado
que no oblitera a referncia, mas a torna ambgua". A ambiguidade tal como
"um corolrio obrigatrio da poesia", de maneira que esta "encontra
correspondncia num remetente cindido, num destinatrio e numa referncia
cindidos" (Jakobson 2010, 150). A noo de potica postulada por Jakobson
serve a nossa hiptese. Isto na medida em que a atuao realista implica
justamente a ambiguidade. Ela torna ambguo o corpo cotidiano inscrito na
diegese por ser do ator e tambm da personagem evocada: construda, efeito.
Ela torna ambgua uma suposta verdade das aes inscritas na atuao por
saber-se se tratar de construo que, no entanto, perde em visualidade para dar
lugar ao "como se". A forma mimtica, neste caso, em seu efeito de "natural",
implica tambm um efeito de fissura entre duas visualidades que se chocam (a
visualidade do contexto de produo da obra e o efeito diegtico que produz)
abrindo, ao espectador, espao para a sua produo na medida em que este
choque produz enigma. Assim, a potica da atuao naturalista colocaria em
cheque a clssica oposio "verdade e mentira" tanto quanto um poema de
Pessoa que diz: "O poeta um fingidor. Finge to completamente que chega a
fingir que dor a dor que deveras sente" (Pessoa 1972, 164). construo e
experincia; verdade e mentira ao mesmo tempo. Enquanto potica, trata-se
de uma construo para falar da verdade que no se pode dizer (para
parafrasear Lacan): "Digo sempre a verdade. No toda... pois, diz-la toda, no
se consegue... Diz-la toda impossvel, materialmente... faltam as palavras.
justamente por esse impossvel... que a verdade toca o Real." (Lacan 1973).
Assim, a performance do ator, ao evocar a cotidianidade de um corpo
"real", a coloca em cheque, fazendo "vacilar a referncia" como diz Jakobson e
constituindo um efeito de potica. E colocar este corpo em cheque seria um
projeto que se pode dizer com Brecht poltico por no tom-lo como natural,
por acus-lo como construo. Isto para alm do fato que temos este corpo
como objeto de enquadre e corte bem como a visualidade do olhar da cmera
(evidenciado no seu movimento, variaes, durao e angulaes) que garante
15
Rejane K. Arruda
Rejane K. Arruda
se
deslocar
apara
uma
diegese
ou
abrir
nela
fissuras
de
Referencias bibliogrficas
Aumont, Jacques & Michel, Marie. 2003. Dicionrio terico e critico de
cinema. Campinas: Ed. Papirus.
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teatrais contemporneas". Anais do VI Congresso de Pesquisa e Ps-graduao
em
Artes
Cnicas.
http://portalabrace.org/vicongresso/processos/
Fernanda%20 Bond%20-%20O%20Ator%20autor.pdf
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Fral, Josette. 2008. "Por uma potica da performatividade: o teatro
performativo". Sala Preta, Revista do Programa de Ps-Graduao em Artes
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Lacan, Jacques. Televiso. Emisso para o Servio de Pesquisa do ORTF,
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Pessoa, Fernando. 1972. Obra Potica. Rio de Janeiro: Cia. Jos Aguilar Ed.
Montagnari, Eduardo. 2010. Brecht: Estranhamento e Aprendizagem.
JIOP 1: 9-17.
Por meio da anlise de dois filmes, Alemanha Ano Zero (1947), de Roberto
Rossellini, e Ladres de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica, a proposta
identificar como se d a construo da imagem da criana no cinema,
considerando
dois
aspectos
particulares
desse
tipo
de
personagem.
Primeiramente, sua insero em uma situao de crise social, que, no caso dos
filmes escolhidos para a investigao, trata-se do fim da guerra e do imediato
ps-guerra, que faz com que a seleo conte com filmes produzidos na Itlia
aps 1945, tentando destacar como os sentidos so construdos no interior dos
filmes, considerando que no apenas a cmera, mas a msica, a presena
diegtica dos sons e do silncio, o jogo entre luz e sombra etc, tudo isso pode
significar e propor significados, cabendo cmera dar um significado
determinado.
Thais Botelho
Uso aqui a expresso movimento em decorrncia das inmeras discusses sobre o carter
do neorrealismo: se escola, movimento, esttica potica.
3
No original: ... proletari, contadini, donne chi si stanno dalla casa e soprattutto uma capacit di
abbracciare e includere nello sguardo ambienti e realt rimasti ai margini della scena, soggeti
sociali di ogni tipo.
20
em
filmes
nos
quais
os
personagens
principais,
Thais Botelho
criana. Conforme nos coloca Fabiana de Amorim Marcello (2004, 344), uma
imagem que (...) menos volume, detenha, e consequentemente, para nosso
desespero ou satisfao, mais vazios possua (Marcello 2008, 344), podendo
assim provocar uma reflexo. Se, afinal, as crianas dos filmes so diferentes
entre si, no apenas em virtude das abordagens particulares realizadas pelos
dois diretores (Rossellini e De Sica), como tambm entre os personagens
infantis construdos no interior de cada filme, no temos uma voz ou imagem
unvoca das crianas nos filmes selecionados. Em uma comparao entre ambos
os diretores, Zavattini atenta para a maneira com a qual os dois cineastas em
questo tratam da infncia. O tema interessa ao pblico e os protagonistas
causam empatia. Mas se Rossellini assume como postura colocar sua criana,
Edmund, como reflexo da destruio moral da Alemanha de sua poca, De Sica
segundo sua viso apela ao pieguismo em sua acusao esse mundo que os
permeia. O primeiro no pede uma opinio, uma tomada de posio, um
julgamento. No segundo, a comoo imediata, principalmente quando se trata
de Vtimas da Tormenta. A criana de Alemanha ano zero est sempre se
relacionando com adultos, mas de maneira mais dramtica.
No podemos dizer que esto abandonados prpria sorte j que Dentre
as imagens de criana previamente selecionadas, somente uma delas, Pasquale,
de Vtimas da Tormenta, no tem famlia. Ainda assim, possvel perceber que
so como vtimas de um contexto social especfico e de um ncleo social (a
famlia) desagregado, pois, normalmente, no est entre as preocupaes
infantis a administrao do lar, o trabalho, as compras, a moradia. Assim como
percebemos a quase completa ausncia de garotas nos filmes (salvo por
Alemanha Ano Zero, no qual uma garota aparece em meio a trama
rapidamente), percebemos que so os garotos que, independente da idade, se
sustentam, correm atrs de emprego e dinheiro, organizam suas finanas, e em
decorrncia, esto envolvidos nas preocupaes relacionadas com o mundo
adulto, a saber. De certa forma, no podemos afirmar que as crianas dos filmes
so semelhantes entre si, no apenas em virtude das abordagens particulares
realizadas pelos dois diretores (Rossellini e De Sica), que so distintas, como
tambm so diferentes os personagens infantis construdos no interior de cada
filme. No temos uma voz ou imagem unvoca das crianas nos filmes
selecionados, nem mesmo quando tratamos do mesmo diretor em obras
22
crianas, elas deixam de ser tratadas como tais e passam a ser tratadas como se
fossem adultas.
Tomamos como ponto de partida aquilo que Sorlin chama ateno quanto
questo da famlia, presente no somente em Ladres de Bicicleta, mas
tambm em alguns filmes rodados poca (como Obsesso, Europa 51 e Viagem
em Itlia). Podemos perceber a falta de coerncia entre estas famlias retratadas
pelo cinema e aquelas da realidade. Segundo Sorlin, o cinema italiano dos anos
50 no elimina a personagem da criana, j que seria impossvel, mas a coloca
margem, ou em ocasies de grupo (como em Roma, Cidade Aberta), ou como
23
Thais Botelho
filme
histrico
ou
que
aborde
questes
ligadas
aos
grandes
Thais Botelho
Referncias bibliogrficas
Bazin, Andr. 1991. O Cinema. Ensaios. So Paulo: Brasiliense.
Brunetta, Gian Piero. 1991. CentAnni di Cinema Italiano. Monicelli e
lepopea dei perdenti Bari: Editori Laterza.
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Paulo: Editora da Universidade de So Paulo/FAPESP.
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The Children's Culture Reader, editado por Henry Jenkins. Nova Iorque: New
York UP.
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Ins Assuno de Castro Teixeira, Jorge Larrosa e Jos de Sousa Miguel Lopes.
Belo Horizonte: Autntica.
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nos convoca imagem que nos afronta. Revista Brasileira de Educao 7:38:
343-356.
Sorlin, Pierre. 1985. Sociologa del cine. Cidade do Mxico: Fondo de
Cultura Econmica.
27
E testemunhe, obra que deixou a critica perplexa e que prefere documentar o modo de filmar
de Sophia, a filmar o documento humano Sophia, Pina 1986: 150.
5
Que ele, Alberto Seixas Santos, juntamente com Joo Csar Monteiro, Antnio Pedro
Vasconcelos e Antnio Escudeiro, comearam a fazer nos jornais portugueses.
29
(Jacques Lemire apud Baptista 2011, 381), tem diferente leitura em Areal, que
lhe faz corresponder o cinema portugus que surge na dcada de 60 e se
estende pelos anos 70, 80 e 90, a novas geraes de cineastas (Areal 2012, 109).
Num caso como no outro, as caractersticas cronolgicas e estticas da
obra de Reis, inscrevem-na (o) no novo cinema e na escola portuguesa, sendo
Jaime (1974), a sua primeira obra de referncia enquanto realizador, e estando
Reis ligado a todo o movimento de renovao do cinema portugus, desde as
suas colaboraes em Acto da Primavera (1962), de Oliveira e Mudar de Vida
(1966), de Rocha.
30
31
Sendo-o, uma obra totalmente inscrita no novo cinema portugus que, precisamente, se
caracteriza por estas qualidades, por contraponto com o cinema que o antecede, marcado pela
hegemonia das convenincias do regime.
9
O filme parte do hospital psiquitrico onde Jaime desenvolveu a sua obra e faleceu e,
mediante um raccord com os escritos em que Jaime as evoca9, passa para as paisagens naturais
onde cresceu e viveu antes de ser hospitalizado, regressando por fim, de novo, ao hospital,
onde o seu percurso termina e o filme termina tambm, fechando um dos seus muitos crculos.
10
Pina 1986: 212: Ana, que ganhou a Espiga de Ouro do Festival de Valhadolid e foi de novo
recebido com grande apreo pela melhor critica mundial, levou de novo Antnio Reis e
Margarida Cordeiro a Trs-os-Montes, outra vez revelado num cinema de clara inspirao
potica, em que a vida e a morte, o sangue e a terra, se unem na presena sagrada da majestosa
me Ana (me da realizadora na vida real) atravs de uma narrativa que pouco concede
palavra, com um ritmo lento, sedimentar, em que as imagens denotam a sua profunda
inspirao pictrica. A estreia realizou-se no Forum Picoas, em 16 de Maio de 1985.
34
onde Jaime poderia ser um objecto final lapidado mas onde todas as arestas e
contornos so bem visveis, evidenciando a solidez da sua matria bruta
(Castro 2012a, 61) e Rosa de Areia, um objecto flmico que deixa transparecer o
esmero do ourives mas esconde a lapidao.
Margarida Cordeiro refere que tudo o que est nos filmes aconteceu, que
nada foi inventado (...) s que aconteceu num espao e num tempo diferente.
Coisas minhas, do Antnio, da minha famlia. Depois aquilo foi tudo junto, de
modo a ser orgnico. (Margarida Cordeiro apud Moutinho & Lobo 1997, 17),
conclui num testemunho sobre a presena da memria nestes filmes.
36
Referncias bibliogrficas
Vrios. 1985. Cinema Novo Portugus 1960-74. Lisboa: Cinemateca
Portuguesa.
Areal, Leonor. 2011. Cinema Portugus Um Pas Imaginado. Vol I Antes
de 1974. Lisboa: Edies 70.
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definio. In Cinema Portugus IV Jornadas, organizado por Frederico Lopes,
97-130. Covilh: Livros LabCom.
Baptista, Tiago. 2008. A Inveno do Cinema Portugus. Lisboa: Tinta da
China.
Baptista, Tiago. 2011. A Corte do Fantasma: Melancolia e Identidade na
Escola Portuguesa de Cinema dos Anos Oitenta. In Arte e Melancolia,
organizado por Margarida Acciaiuoli e Maria Augusta Babo, . Lisboa: Instituto
de Histria da Arte/Estudos de Arte Contempornea Centro de Estudos de
Comunicao e Linguagens.
Castro, Ilda. 2000. Cineastas Portuguesas 1874-1956 [conversas com...].
Lisboa: Cmara Municipal de Lisboa.
37
38
Resumo: Christopher Nolan possui uma carreira breve mas marcante, pautada
por uma forte dimenso metacinematogrfica, onde pontuam obras como
Doodlebug, a sua curta-metragem de estreia (1997, UK) e The Prestige (2006,
EUA/UK), um filme que um autntico hino iluso espectacular. Interessa-se
sobretudo aquilo que podemos identificar como sendo uma trilogia, no
obstante o cineasta nunca ter designado estas obras nesses termos: Following
(1998, UK), Memento (2000, EUA) e Inception (2010, EUA/UK). Todos eles
so filmes sobre o cinema numa perspectiva eminentemente ficcional
(metanarrativa) e todos revelam os meandros de uma enunciao autoral sobre
o seu prprio mtier (alegorias da criao). Fazendo uso dos dispositivos de
mise en abyme e da alterao cronolgica, Nolan mergulha-nos num labirinto
flmico por camadas de onde s poderemos sair se compartilharmos do jogo de
descodificao metanarrativo. Apangio das narrativas ps-modernas, que
tornam o usurio cada vez mais parte da experincia, neste caso tambm
cinematogrfica (tal como entendida por certas correntes da psicanlise e
psicologia flmicas), a trilogia metanarrativa de Nolan exemplifica a preceito as
trs naturezas do ddalo: narrativa extradiegtica (Following), narrativa
intradiegtica (Inception), narrativa hbrida (Memento).
Palavras-chave: Metacienma, Metafio, Puzzle Film, Mise en abysme,
Enunciao autoral.
Contacto: [email protected]
Docente na ESTC - Escola Superior de Teatro e Cinema - desde 1995 e investigadora do CIAC
(Universidade do Algarve).Doutorada em Estudos Artsticos pela UL, mestre em Cincias da
Comunicao pela UNL, bacharel em Cinema pela ESTC e licenciada em Literatura pela UL.
Vive em Lisboa.
Chinita, Ftima. 2014. O fio de Ariadne: as narrativas labirnticas de Christopher Nolan. In
Atas do III Encontro Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Srgio Dias Branco, 39-47.
Coimbra: AIM. ISBN 978-989-98215-1-4.
Ftima Chinita
40
tambm pode contaminar a obra inteira e nunca chegar a ser resolvido. Muita
da ambiguidade narrativa resulta do esbatimento de fronteiras entre as
experincias conscientes e inconscientes das personagens ou da alterao da
ordem pela qual a informao revelada ao espetador. Como o prprio ttulo
da categoria indica (psychological puzzle film), Panek no consegue desligarse, apesar de tudo, de uma forte ligao histria, escolhendo situaes e
protagonistas cuja existncia ocorre j num intenso grau de irrealidade: em
vrios casos, inclusive, detentores de uma vida psquica de contornos
patolgicos5.
Outro terico que tambm adota o princpio do puzzle flmico assume a
ambiguidade de outra forma, estendendo-a a todas as prticas narrativas no
lineares, Thomas Elsaesser (2009, 13-41). As principais caratersticas do seu
conceito
de
mind-game
film
(filme
quebra
cabeas)
so:
fator
Como sucede em Memento (Christopher Nolan, 1999, EUA/ALE). Recorde-se que nesta obra
de Nolan o protagonista sofre de perda de memria imediata, pelo que no consegue reter
informao mnsica por mais do que alguns minutos, o que o torna num alvo fcil de
aproveitamento por parte de outras personagens.
6
Porque testemunha ou participa em acontecimentos que no percebe e cujas consequncias
no imagina; porque est verdadeiramente iludido sobre a realidade e/ou se recusa a abrir mo
dessa iluso; porque tem um amigo imaginrio; porque no sabe quem nem a que realidade
pertence; porque no distingue entre mundos diferentes, nem tem conhecimento de que
existem realidades paralelas.
7
Que se manifestam, de vrios modos, ao nvel da forma imediata da obra: suspenso da
causa/efeito; progresso linear truncada ou invertida; reviravoltas de enredo (twists
narrativos); finais enganosos (trick endings); informao no revelada ou revelada tardiamente;
existncia de um princpio, um meio e um fim, mas no necessariamente por essa ordem;
simultaneidade/sincronismo; narrativas circulares ou mltiplas, etc.
8
Como seja gerar pregas no tempo e dar origem a viagens na 4 dimenso.
41
Ftima Chinita
desta
prtica
mais
se
faz
sentir:
os
cronosignos
aquilo que melhor define estas situaes, visto que ambas apresentam
acontecimentos simultneos, facto s possvel porque o tempo no cronolgico
subjectivo e perpetuamente atualizado atravs de reminiscncias.
O segundo nvel de anlise temporal proposto por Deleuze, ao contemplar
o tempo como srie, adota-o como devir. Este cronosigno pressupe que nos
centremos nos eventos a partir de dentro, como se intervissemos
fisicamente neles, o que torna indistintas as fronteiras entre o real e o ficcional.
Na aceo de Deleuze, o vocbulo srie (suite empirique) uma cadeia de
acontecimentos em fluxo, passando dinamicamente atravs de cada um para o
seguinte. Na prtica, o antes e o depois so duas faces do mesmo devir. Ou
seja: o tempo uma transformao de momentos cronolgicos, o que no pode
deixar de resultar numa perptua transformao dos factos. Este raciocnio
tanto aplicvel s personagens, que so autnticas foras metamrficas em
ato, como ao cinema, que uma arte em permanente mudana.
Para uma reconstruo das coordenadas de Following:
Following (1998, GB) foi a primeira longa metragem do britnico
Christopher Nolan e assume-se logo como um filme quebra cabeas. A obra,
rodada a preto e branco com poucos recursos, marca o incio de uma carreira
marcada pela narrativa labirntica. A histria parece contradizer esta ideia, pois
o filme desenvolve-se em torno de praticamente trs personagens: um jovem
com pretenses a escritor, Bill, e que tem por hbito seguir pessoas na rua por
mera curiosidade; um ladro, Cobb, que aprecia entrar em casa de estranhos
para lhes baralhar a vida, mais do que para despoj-los de algo de valor; uma
mulher atraente, indicada no genrico de fim simplesmente como a loura.
Este bizarro tringulo, baseado em falsas premissas, vai revelar-se bem pouco
equiltero, adequando-se nesse aspecto estrutura da narrativa, notoriamente
no linear.
Bill, ao perseguir um dia Cobb, confrontado por aquele, que o introduz
numa vida de ilegalidades. Convencendo-se de que penetrar em domiclios
alheios para roubar ninharias uma forma de pesquisa, Bill depressa ganha
prazer nessa prtica furtiva. Ao conhecer a loura, que se apresenta como sendo
namorada de um mafioso, Bill envolve-se com ela e procura ajud-la. Acontece
que Cobb tambm conhece a loura, aparentando ter com ela uma relao
carnal. Aps uma desavena, em parte provocada pelos cimes que a loura
43
Ftima Chinita
Tal como, na mitologia grega, Teseu foi seguindo o fio do novelo que lhe entregara Ariadne,
afim de no se perder no labirinto aonde se deslocara com o propsito de matar o Minotauro.
10
A sua atividade de following ou shadowing, como ele a designa, motivada pelo excesso
de tempo livre que ele possui, merc de se encontrar desempregado.
11
Descobrir o assassino da mulher atravs de pistas, que vai tatuando no prprio corpo, junto
com mensagens pessoais de mera sobrevivncia.
44
descronolgica13,
intensifica
enigma
mltiplo
45
Ftima Chinita
introduo
crptica
que
contm
planos
dispersos
Referncias bibliogrficas
Chinita, Ftima. 2013. Metanarrativa cinematogrfica: a enunciao como
discurso autoral. In Atas do II Encontro Anual da AIM, editado por Tiago
Baptista e Adriana Martins, 40-54. Lisboa: AIM. http://aim.org.pt/atas/pdfsAtas-IIEncontroAnualAIM/Atas-IIEncontroAnualAIM-04.pdf
Deleuze, Gilles. 1985. Cinma 2 LImage-temps. Paris: ditions de
Minuit.
Eig, Jonathan. 2003. A Beautiful Mind(fuck): Hollywood Structures of
Identity. Jump Cut 46.
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Acedido em 11 de fevereiro de 2013.
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janeiro de 2013.
14
Estas sries no so verdadeiramente deleuzianas, pois no so alternativas entre si, mas sim
complementares (ao contrrio do que sucede nos trabalhos flmicos de Alain Robbe-Grillet).
Logo, Nolan apropria-se dos conceitos de Deleuze, mas usa-os de uma forma ligeiramente
diferente, provando que a metanarrativa ps moderna contm intuitos diferentes da
modernidade.
47
possam
ser
aqui
estabelecidas
diferentes
distines,
nomeadamente estilsticas, aquilo que em primeiro lugar nos vai interessar vai
ser justamente a assuno por Bla Tarr dessa rarefao da narrativa, que
assume nos seus filmes a forma de longos silncios, longos monlogos ou
longos dilogos estticos e reflexivos, que implicam uma enorme diferena em
relao aos usos iniciais e mesmo subsequentes do plano-sequncia com
50
53
familiar para sair dali, no final, para acender uma simples lamparina de
petrleo.
No sentido destas duas observaes vai tambm Prologue, os espantosos 5
minutos da curta que Bla Tarr fez para Vises da Europa/Visions of Europe
(2004), em que num nico plano-sequncia nos so dados primeiro, em
travelling lateral para a esquerda, os mendigos que esperam, at a cmara se
fixar na janela atravs da qual uma mulher distribui um saco e um copo a cada
um deles. Sem palavras, s com msica, ali est a dimenso materialista da
forma e a dimenso materialista da fico, assim como esto a humilhao e a
impotncia. Contudo, e paradoxalmente, esta curta-metragem poder permitir e
mesmo impor uma leitura realista do plano-sequncia, da profundidade de campo
e do prprio preto e branco, concomitante com a que aqui se prope e oposta a
ela, questo a que se regressar mais frente.
Mais: O Homem de Londres um filme que decorre em torno de um porto
e no qual se ouve o rumor do mar, enquanto O Cavalo de Turim um filme que
decorre num espao desrtico e em que apenas se ouve o assobiar do vento,
com prejuzo da msica que, muito presente nos outros filmes do cineasta, aqui
se torna muito rara. E em ambos os filmes o tratamento da iluminao e do preto
e branco em contraste de claro/escuro, luz/sombra, por vezes com nevoeiro,
apresenta traos expressionistas. Em termos comparativos O Homem de
Londres quase um filme de ao, uma ao mostrada mesmo assim distncia
ou que decorre fora-de-campo, enquanto em O Cavalo de Turim uma voz-off
narrativa que ocasionalmente mas de princpio a fim surge para dar
informaes suplementares e assim funcionar como personagem-testemunha.
Tpico cineasta ps-comunista, e o melhor que nos dado conhecer
nessas circunstncias, Bla Tarr um cineasta de enorme coragem e energia
criativa, que nos deu sobretudo nos seus ltimos cinco filmes obras inesperadas
de uma grande lucidez, que nos do de forma direta a noo precisa de que
alguma coisa acabou e para ela no h continuao, continuidade, no tempo
seguinte. Se nos quisermos dar a esse trabalho, os filmes a esto para os
vermos em toda a sua imensa beleza e exigncia, e para nos deixarmos olhar
pela sua terrvel verdade. Uma verdade que no parte do simples realismo,
embora sem o negar, para nos chegar sob a forma depurada de uma reflexo
indireta, estetizada e simblica na sua cristalizao temporal. Na linha do
54
Referncias bibliogrficas
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57
Resumo: Apesar de Jacques Derrida ter escrito e falado muito pouco sobre esta arte, o
texto pretende mostrar em que sentido poder-se-ia falar de um pensamento
desconstrutivo do cinema. A experincia cinematogrfica, tal como pensada pelo
filsofo, desnudaria a prpria desconstruo como pensamento. Veremos como a
experincia pessoal do filsofo com o cinema declarada em uma entrevista ao
Cahiers du cinma em 1998 revela outro tipo de cinefilia, uma cinefilia no ligada
memria e ao saber cinematogrficos, mas emoo, configurando, antes, uma espcie
de patologia do cinema. A experincia patolgica do cinema, para Derrida, projetaria a
importncia de outra relao com o saber e com a verdade. Alm disso, ela promoveria
uma certa liberao dos interditos. Liberao que expe uma espcie de
irresponsabilidade como condio de uma hiper-responsabilidade, tpica da tica
desconstrutiva.
Palavras-chave: Derrida, desconstruo, filosofia, cinema, espectro.
Contacto: [email protected]
Este texto foi produzido durante estgio de doutorado sanduche com uma bolsa de estudos da
agncia de fomento CAPES.
2
Maria Continentino Freire graduou-se em Comunicao Social pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), com habilitao em Rdio e Televiso, em 2003. Recebeu o ttulo de
Mestre em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em
2010, tendo defendido a dissertao em torno do pensamento de Jacques Derrida. Trabalha
com cinema nas reas de edio e de assistncia de direo desde 1997.
Freire, Maria Continentino. 2014. O retorno dos fantasmas: arriscar um pensamento
desconstrutivo do cinema. In Atas do III Encontro Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e
Srgio Dias Branco, 58-65. Coimbra: AIM. ISBN 978-989-98215-1-4.
59
que o cinema, aos olhos de Derrida, to bem encena e que diria respeito a uma
resistncia desconstrutiva a um certo dogmatismo filosfico. E nesse sentido
que a paixo de Derrida pelo cinema desnuda uma outra noo de experincia
para a qual preciso atentar. Para a desconstruo, toda experincia da
ordem do pathos, da paixo e, por isso, sempre sofrida, recebida do outro.
Assim, ao lado de sua dimenso ativa, ela possui uma dimenso passiva,
interrompendo e impossibilitando a ideia de experincia como pura atividade e
sabedoria. Mas voltaremos a essas questes mais adiante.
Contudo, por hora, j podemos afirmar que se no h uma grande
quantidade de textos ou um texto de importncia central em sua obra
especificamente sobre esse assunto, a experincia cinematogrfica no est
longe de Derrida. Suas breves declaraes em textos e entrevistas j nos
encorajam a falar de um pensamento derridiano do cinema. Por um vis, talvez,
ele tenha sido at um dos filsofos mais prximos dessa experincia, sendo
tema de, pelo menos, dois documentrios, um americano: Derrida - The movie3;
e um francs: D'ailleurs, Derrida4, a partir do qual surgiu um livro coescrito pelo
filsofo e pela diretora do filme, Safaa Fathy, chamado Tourner les mots, em
portugus: Rodar as palavras, em que os dois escrevem sobre a experincia da
filmagem. Alm disso, Derrida assumiu o papel de ator, no filme Ghost Dance5,
de Ken McMullen e gravou entrevistas para a televiso sobre as prprias
teletecnologias, que originou o livro chographies: de la television. Tendo,
portanto, participado dos dois lados da experincia cinematogrfica, Derrida
sublinha a necessidade desta experincia permanecer como um gozo infantil,
uma espcie de evaso inculta que, nas palavras de Fernanda Bernardo, faz do
ir ao cinema uma viagem ao mundo do tudo permitido, um tudo
permitido que, para Derrida, est ligado a uma irresponsabilidade aprendida
com as artes e associada a um desligamento da regulao do logos, limitador da
responsabilidade a uma ordem do calculvel. Esta irresponsabilidade aprendida
com a arte est ligada ao direito de tudo poder dizer, de uma impossibilidade de
regulao. E, por isso, na verdade, tal irresponsabilidade seria a condio de
possibilidade de uma responsabilidade para alm do horizonte do conhecido,
do regulvel, do programvel, isto , de uma hiper-responsabilidade que a
3
Derrida the movie, 2002, realizado por Amy Kofman e Dick Kirby.
Dailleurs, Derrida, 2000, realizado por Safaa Fathy.
5
Ghost Dance, 1984, realizado por Ken McMullen.
4
60
para
pensamento
metafsico,
espectralidade
para
A lgica do nem isso nem aquilo bem como a do e isso e aquilo, praticada pela desconstruo,
confunde e problematiza a lgica opositiva metafsica do ou isso ou aquilo .
61
"sim, agora eu acredito, sim". Com tal descrio, Derrida ressalta nossa ateno
para esse agora que o cinema desvia, repetindo-o em outro lugar,
evidenciando a prpria disjuno do tempo. Que agora esse que Derrida
escuta do espectro de Pascale? Anos mais tarde, no Texas, ele teve a sensao
angustiante do retorno dela, do espectro de seu espectro voltando para lhe
dizer: "agora...agora...agora, nessa sala escura em outro continente, em outro
mundo, aqui, agora, sim, acredite em mim, eu acredito nos fantasmas" (Derrida
2002, 119-120). O que importante perceber nesta narrativa que, para
Derrida, mesmo se a atriz no houvesse morrido no intervalo entre a filmagem
e a reproduo do filme anos mais tarde, o prprio registro e, por isso, a diviso
daquele presente singular, marca sua espectralidade e j nos coloca numa
relao de luto com os acontecimentos, pois o que se guarda em toda inscrio
justamente a perda de um aqui e agora nico, que s poder se repetir
diferentemente a cada projeo, ao mesmo tempo salvando e perdendo o que
se guarda. Por isso, todo registro est j em luto, em memria, do presente
perdido. E alm disso, ele ainda testamentrio, na medida em que promete
uma sobrevida, guardando a memria, nesse caso de Pascale Ogier ou de
Derrida, atestando que ele, o filme, pode sobreviver a suas mortes e mesmo se
os dois ainda estivessem vivos, estariam j a partir dali, transformados em
fantasmas.
Se esta possibilidade de reproduo do presente que o divide em vida e
sobrevida no exclusiva do cinema, e sim, comum a todo rastro, a todo
arquivo, para Derrida, o cinema o faz de forma especial. Nas palavras de
Fernanda Bernardo:
(...) escrito ou flmico, o rastro sempre espectral. Com
efeito, da mesma forma que o rastro (escrito) ao mesmo tempo
aquilo que se inscreve e se apaga, aquilo que s se escreve se
apagando , a imagem cinematogrfica, do ponto de vista de sua
captura, possui j sua runa originria, ela j o que aconteceu ali
melancolicamente em luto no filme [...]. O cinema assim um "luto
ampliado" ou seja impossvel ou infinito como para ele
[Derrida] o luto (que repensa a partir de Freud) E um luto
ampliado, o cinema no nada alm de um "simulacro absoluto da
sobrevivncia absoluta", na verdade uma "fantomaquia", pois no
nada alm da memria enlutada daquilo que assombra sem jamais
ter tido a forma da presena e sem jamais estar presente. O
cinema assim uma "memria espectral", seja do ponto de vista do
63
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Kofman, Amy; Kirby, Dick. 2002. Derrida, the movie.
McMullen, Ken. 1984. Ghost Dance.
65
dentro do Cinema das mais variadas formas, tanto do ponto de vista tcnico
como esttico. Varda compila as Fotografias nos filmes, como se se tratassem
de uma coleco pessoal de fotografias para as divagaes e reflexes da
documentarista.
A verdade que apesar do Cinema e a Fotografia partilharem o mesmo
suporte como base de trabalho, as duas expresses artsticas encontraram
caminhos diferentes para progredir. por isso que ambas subsistem. Alm
disso, Fotografia e Cinema defendem deias diferentes sobre a verdade das
imagens e a compreenso do Tempo e do Movimento.
Sobre esta relao de aproximao e afastamento, Agns Varda refere que
a Fotografia e o Cinema:
Ces deux saisies de la vie, lune immobile et muette, lautre
mouvante et parlante, ne sont pas ennemies mais diffrentes,
complmentaires mme. La photographie, cest le mouvement arrt
ou le mouvement intrieur immobilis. Le cinma, lui, propose une
srie de photographies successives dans une dure qui les anime.
(Varda 1994, 130)
67
Patrcia Nogueira
69
Patrcia Nogueira
70
71
Patrcia Nogueira
73
Patrcia Nogueira
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Varda, Agns. 2004. Ydessa, les ours et etc.
74
76
Joo Barrento no seu texto sobre o ensaio, concebo-o, seguindo a tradio adorniana, deste
modo: () a experincia do ensaio pede espao, quer ser deambulao (mas orientada), deriva
(mas sem perder o norte), labirinto (com um znite vista), centro que permanentemente
descentrado e a que sempre se regressa. Esse centro muitas vezes o no-dito do ensaio ()
(Barrento 2010, 19).
5
Nas palavras de Adorno: Dans son rapport la procdure scientifique et son fondement
philosophique en tant que mthode, lessai, conformment lide, tire la pleine consquence
de la critique du systme. () Lessai a t presque le seul raliser dans la dmarche mme de
la pense la mise en doute de son droit absolu. Sans mme lexprimer, il tient compte de la nonidentit de la conscience ; il est radical dans son non-radicalisme, dans sa manire de sabstenir
de toute rduction un principe, de mettre laccent sur le partiel face la totalit, dans son
caractre fragmentaire. () Lessai ne se plie pas la rgle du jeu de la science organise et de
la thorie, moins que, selon la phrase de Spinoza, lordre des choses ne soit le mme que celui
des ides. Parce que lordre sans faille des concepts nest pas identique ltant, lessayiste ne
vise pas une construction close, inductive ou dductive. () Cest pourquoi lessai remet en
cause le mpris envers ce qui est produit historiquement comme objet de la thorie. () Lui
reprocher, comme on le fait couramment, dtre fragmentaire et contingent, cest postuler que
la totalit est donne, mais aussi, du mme coup, lidentit du sujet et de lobjet, et faire comme
si on tait matre de tout cela. () Sa faiblesse tmoigne prcisment de la non-identit, quil a
pour tche dexprimer ; il tmoigne aussi du fait que lintention excde la chose, et donc de
cette utopie que repousse larticulation du monde en ternel et phmre. Dans lessai
emphatique, la pense se dbarrasse de lide traditionnelle de la vrit. // Du mme coup, il
abolit aussi le concept traditionnel de mthode (Adorno 1984, 12-15).
6
O filme-ensaio pode ser desdobrado em ensaio filmado, ensaio flmico, ensaio
cinematogrfico ou, ainda, em maior pormenor, como mostra Bamchade Pourvali, em ensaio
de fico (via Godard) e ensaio documental (via Marker) (Cf. Pourvali 2013).
77
argumento antes de o escrever, e vai a partir daqui pensar esta relao entre a
viso e o discurso: Est-ce quon peut voir la Loi? Est-ce que la Loi a dabord t
crite ou est-ce quelle a dabord t vue et puis ensuite Mose la crite sur sa
table? (Godard 1983, 05).
78
destines tablir les significations des concepts, ce que les choses qui vivent dans les concepts
ont dirritant et de dangereux (Adorno 1984, 16).
79
80
Alis, estas ltimas palavras poderiam ser ditas sobre o ensaio. Adorno
dir mesmo que lessai est plus ouvert, parce quil travaille de faon
emphatique la forme de la prsentation (Adorno 1984, 22), ou que ()
grce la tension entre la prsentation et la chose prsente, il est en mme
temps plus statique, en tant quensemble construit de juxtapositions. Cest
seulement l-dessus que repose son affinit avec limage () (Adorno 1984,
27).
Por outro lado, h uma questo verdadeiramente enunciada que no
cessa de ser repetida: qual a histria? Logo no incio, aquando da encenao
dA Ronda da noite, parecem esboar-se trs respostas questo nas vozes (em
off) de trs tcnicos: Sophie, Bonnel e Raoul Coutard. O que interessa
verdadeiramente assinalar a sua no-resposta, ou seja, elas respondem s
coordenadas da fico (Sophie e Bonnel) e a questes plsticas (Bonnel e
Coutard) a composio, o espao, a construo , no fundo, s coordenadas
da imagem: o que dito a luz, o movimento, o espao, a organizao do
quadro. Como se percebe na resposta de Coutard: Il ny a pas dhistoire, tout
81
Em Scnario du film Passion, Godard diz: Je commence voir, voir pas lhistoire mais deux
ou trois choses dans lhistoire, des endroits, des gens qui bougent, du mouvement et des
endroits o o ce mouvement prenne place, o le mouvement, le mouvement qui va dun
endroit lautre le travail, le premier endroit, la plage, la plage, la grve, du mouvement, il y
aurait un mouvement de grve (Godard 1983, 26).
82
83
O sistema tem o terror do aportico, o ensaio vive paredes meias com a aporia. Joga-se
sempre entre sinceridade e ironia, ou entre reflexo e fico. um romance sem nomes
prprios (Barthes), uma aventura do sentido. Desafia as leis da gravidade: da seriedade e do
peso dos gneros maiores. Faz-se, desfaz-se, refaz-se numa zona-limite de risco e de ameaa
(Barrento 2010, 27).
84
85
13
Seria interessante confrontar esta ideia com outro ensaio de Adorno, Parataxe, contudo, tal
foge ao escopo aqui desenvolvido.
14
Ser interessante, a este propsito, destacar a seguinte passagem do texto de Adorno: Ce qui
pourrait le mieux se comparer avec la manire dont lessai sapproprie les concepts, cest le
comportement de quelquun qui se trouverait en pays tranger, oblig de parler la langue de ce
pays, au lieu de se dbrouiller pour la reconstituer de manire scolaire partir dlments. Il va
lire sans dictionnaire. () Certes, tout comme cet apprentissage, lessai comme forme sexpose
lerreur (). Lessai nglige moins la certitude quil non renonce son idal (Adorno 1984,
17).
86
Referncias bibliogrficas
Adorno, Theodor W. 1984. Lessai comme forme. In Notes sur la
littrature, 5-29. Paris: Flammarion.
Barrento, Joo. 2010. O Gnero intranquilo: anatomia do ensaio e do
fragmento. Lisboa: Assrio & Alvim.
15
Ao contrrio de Lukcs que pensa o ensaio, em Nature et forme de lessai, como obra de
arte.
87
88
em
celuloide
com
inocncia
da
cmara:
tem
de
ser
Traduo da autora. Verso original: one of the projects of the movement is to construct
knowledge of the nature and causes of womens oppression in order to devise strategies for
social transformation.
3
Traduo da autora. Verso original: In other words, feminist film practice is determined by
the conjuncture of discursive, economic and political practices which produce subjects in
history.
91
vezes,
uma
presso
insustentvel.
desistncia
configura-se,
quase
masculinizado
dos
espectadores
(e
espectadoras,
pela
uma narrativa
entrecruzada, pela
sociologicamente instituda
produtividade
sensibilidade
versus
racionalidade,
associadas
Traduo da autora. Verso original: Feminine artistic production takes place by means of a
complicated process involving conquering and reclaiming, appropriating and formulating, as
well as forgetting and subverting.
5
Traduo da autora. Verso original: Can women just be women, reduced to some elemental
Being?
96
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Rutler, Monique. 1992. Solo de violino.
97
dimenso
do
experimental
na
produo
audiovisual
brasileira
Guiomar Ramos
100
Guiomar Ramos
travellings sobre
Nelsons, com Rock Hudson, 1952, ttulo que foi traduzido para exibio no
Brasil como A famlia do barulho. Inspirado pela Chanchada, Bressane carrega
no tom debochado, no embate dos atores com base no improviso. Algumas
marchinhas como "O trevo das quatro folhas", cantado por Joo Gilberto so
colocadas inteiras, acompanhadas da performance dos atores que param para
danar e usufruir a msica. Clichs de msica sinfnica como Berlioz, trazem
um falso clima de suspense. As cenas chanchadescas so articuladas junto
filmes de famlia (do prprio diretor) e a fotografias de momentos da poltica
brasileira. As fotos de material de arquivo ou dos filmes de famlia, apontam
para a presena sria do documentrio. Nessa relao o filme consegue um
efeito crtico agressivo e mordaz famlia burguesa e classe mdia brasileira.
Em O Anno de 1798, a pardia ao fazer flmico do tipo documental
evidente desde o incio. O prprio diretor considerava este filme, junto a
Congo, de 1972 e Triste trpico, de 1974, como um antidocumentrio. A pardia
ocorre na maneira pela qual Omar trabalha a imitao da voz over tradicional de
um
documentrio
padro,
representado
por
alguns
documentrios
103
Guiomar Ramos
Guiomar Ramos
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106
Resumo: Proponho-me fazer uma anlise dos filmes Os Verdes Anos (1963) e
Sangue do meu Sangue (2011) a partir de uma anlise formal que privilegia o
elemento arquitetnico dos filmes, ou seja, a partir da relao entre as
personagens e o dcor.
Em Os Verdes Anos, embora Ilda e Jlio partilhem da mesma raiz social, esto
apartados por uma arquitetura que se lhes impe, pelos espaos que habitam.
Jlio habita o nvel raso do espao urbano, enquanto Ilda habita o nvel mdio.
Se na cave da oficina de sapatos Jlio dominado por um espao que lhe
dificulta os movimentos e por uma () viso determinada pela esquadria
retangular e horizontal da janela que fica ao nvel da rua (Fonseca 2004, 270),
Ilda domina o espao urbano com ligeireza e vontade. Em Sangue do meu
Sangue, tambm Cludia e Alberto esto separados pelos espaos que habitam.
Se a Alberto est associado o conforto da sua ampla moradia e a frequncia de
hotis luxuosos, Cludia move-se pelas minsculas divises de uma pequena
casa situada no bairro Padre Cruz, em Lisboa. Em simultneo com os planos da
ao no interior da casa, o plano do som refora esta enclausura espacial atravs
dos dilogos em voz-off (que advm dos familiares de Cludia numa outra
diviso ou dos vizinhos no exterior da casa).
Palavras-chave: subterrneo, altura, cinema portugus.
Contacto: [email protected]
feita uma leitura de ambos os filmes de uma luta que o subterrneo trava contra
a altura e como que pode ser associado o subterrneo s personagens Jlio em
Os Verdes Anos e Cludia em Sangue do meu Sangue?
Antes de mais, importa salientar que para inscrever cinematograficamente
a relao entre as personagens e a cidade, Rocha recorre utilizao de planos
apertados (como por exemplo na sequncia da Cidade Universitria). Como
afirmou Joo Bnard da Costa a viso de Portugal, ou de Lisboa, como espao
claustrofbico, sem sadas, onde tudo se frustra e tudo se agoniza (numa morte
branda) pela primeira vez dada no filme de Rocha () (Costa apud Baptista
2005, 178).
Em termos de formulao esttica, Os Verdes Anos tambm revoluciona
pela nova forma de discurso repleto de subentendidos que escapam aos cortes
da censura. Embora este filme esteja assente na j conhecida sociedade
estratificada e hierarquizada, tal vista pelo lado dos serviais e como Areal
salienta () os invisveis do cinema, sempre presentes mas secundrios ()
(Areal 2011, 392). Por outras palavras, essa sociedade encarada sob o ponto
de vista dos novos protagonistas, uma criada de servir e um sapateiro que veem
da provncia para experienciarem a cidade (Ibidem). Esta mudana de eixo
uma novidade do filme, na medida em que estes novos protagonistas
determinam uma classe intermdia entre o campons e o burgus, constituda
por migrantes do campo que procuram referncias na cidade (Ibidem, 392-93).
Uma classe que no pertence ao mundo campons e nem ao mundo burgus,
mas que se situa numa zona de enormes transformaes sociais, onde as
identidades se diluem entre a absoro das referncias do espao citadino e o
enraizamento das referncias do espao de origem provinciano. Ainda no que
diz respeito ao espao citadino, este revelado pelos trajetos das personagens,
ou seja, um espao sempre habitado, mas que d a ver, como Baptista afirma
() uma cidade agora no apenas moderna mas
inevitavelmente modernista: como nos novos bairros residenciais da
zona oriental da cidade ou nos projetos de regime como a Cidade
Universitria. No entanto, e ao contrrio dos raros assomos da cidade
moderna/modernista nos filmes portugueses das dcadas anteriores,
a modernidade social e arquitetnico-urbanstica da cidade
encenada () como palco de um conflito social que se exprime
cinematograficamente pela segregao ostensiva dos protagonistas
dos espaos e das vivncias da cidade burguesa (Baptista 2005, 181).
108
No que diz respeito aos protagonistas, Ilda (Isabel Ruth) e Jlio (Rui
Gomes), apesar de partilharem da mesma raiz social, esto separados pela
arquitetura, ou seja, pelos espaos que habitam (Fonseca 2004, 270). Jlio
habita o nvel raso do espao urbano, enquanto Ilda habita o nvel mdio e,
como Fonseca observa Jlio est indissoluvelmente ligado s caves (a
sapataria) e a sua viso determinada pela esquadria retangular e horizontal da
janela que fica ao nvel da rua (Fonseca 2004, 270). Mas se na cave da oficina
de sapatos Jlio dominado por um espao que lhe dificulta os movimentos,
Ilda domina o espao urbano com ligeireza e vontade (Fonseca 2004, 270).
Enquanto Jlio se deixa engolir pela cidade, Ilda adapta-se completamente a
esta, pela forma como circula livremente.
ainda de salientar que o plano mdio em que Ilda habita tambm o
plano em que ela procura absorver as referncias que lhe aprazem, o plano
em que ela ensaia outra identidade (Ilda senta-se no sof da patroa e v desfiles
de moda na televiso; ela prpria desfila para Jlio com as roupas da patroa).
Apesar de todas as evidncias de uma mulher adaptada ao espao citadino e
com grandes expectativas relativamente s oportunidades que a cidade lhe
pode oferecer, por exemplo, como costureira (longe da sua madrinha para a
qual tinha de trabalhar de graa), a sequncia da Cidade Universitria revela
como Ilda tem conscincia da sua condio social que lhe impede, entre outras
coisas, de estudar ( o plano em que se v Ilda do lado de fora das portas de um
dos edifcios da Cidade Universitria). A conscincia de Ilda tambm o motor
que a faz recusar o pedido de casamento. Ilda o reflexo de uma mulher
emancipada que no encara o destino do casamento como a condio
primordial para alcanar o respeito e a honra dentro do contexto social. O
crime que advm dessa recusa revela no s a incapacidade de Jlio enfrentar
sozinho a cidade, mas tambm, a enorme resistncia e incompreenso face a
esta posio da mulher na sociedade moderna.
Como j foi dito anteriormente, Jlio est associado ao nvel raso pelo
facto de trabalhar numa oficina de sapatos onde entra curvado (porque o teto
muito baixo) e de onde avista os largos passeios de calada atravs de uma
pequena janela da cave cuja viso est ao nvel da rua. No entanto, Jlio est
associado ao nvel raso no s pelos espaos que habita mas, tambm pelo tema
referencial dos sapatos. Como Fonseca declara Repare-se, alis, que o
109
caracterizada
pelas
enormes
transformaes
sociais
constituda
Cludia
aceita
que a associao de Jlio ao nvel raso reforada pelo tema pontuador dos
sapatos.
Em ambos os filmes, a luta que se trava entre o subterrneo e a altura
corresponde sobretudo a uma incapacidade de Jlio em aceitar a recusa de Ilda
ao seu pedido de casamento em Os Verdes Anos e a uma falta de conhecimento
por parte de Cludia relativamente ao facto de estar envolvida com o prprio
pai em Sangue do meu Sangue. Se o primeiro culmina em tragdia com o
assassinato de Ilda, o segundo culmina (subentende-se) na eliminao de um
feto, fruto da relao incestuosa entre Cludia e Alberto.
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114
Filipa Rosrio
116
117
Filipa Rosrio
O Douro aqui deve ser entendido nesta perspectiva. Ele surge com a
paisagem circundante: sempre o rio e a margem, aberta, em nada
claustrofbica. A primeira imagem do filme um plano fixo e muito geral que
capta uma margem do Douro, noite, e que integra o prprio rio. O
enquadramento do establishing shot surgir vrias vezes depois, de dia e de
noite, pontuando a trama com algumas variaes. Mas da varanda do quarto
de Isaac que o rio se insurge com calma e subtileza na esfera da motivao do
protagonista. O quarto geralmente filmado de frente para a varanda, que na
maioria das vezes est aberta e por isso permite ao espectador ver a paisagem
rural a que aquela moldura d acesso. Por outras palavras, a vista o ponto de
fuga do quadro. para l que o olhar tende, e de facto Isaac, medida que se vai
perdendo na sua loucura, parece hipnotizado pela vista.
tambm neste quarto de penso que Isaac revela as fotografias que tira,
l, pensa, sonha e alucina, e sempre com o som do rio e a imagem do espao
intocado. Se no seu espao privado e ntimo Isaac desenvolve as suas obsesses,
no mundo l fora tenta concretiz-las. No centro desta dinmica, encontram-se
as fotografias, que retratam e simbolizam essas mesmas obsesses. Existe
mesmo, a dado momento, um travelling sobre as fotografias de Isaac,
penduradas na corda enquanto termina o processo de revelao, em que
Oliveira coloca literalmente no mesmo plano os retratos dos trabalhadores
agrcolas em ao e o retrato animado de Anglica precisamente, universos
com tempos disformes. O Douro neste filme faz parte do cenrio; ganha
autonomia narrativa, transformando-se em paisagem, e adquire, com o
desenvolvimento da histria, propriedades fantasmagricas, associadas a
Anglica.
No seu quarto, com as portas da varanda abertas, Isaac interage com o
espectro dela, que surge geralmente na varanda, associada paisagem. Quando,
num sonho, os dois amantes voam abraados, sobrevoam o Douro, tocam na
gua e partem em direo ao cu, de onde observam ao longe a organizao da
terra, com o rio e margens. Esta paisagem apresentada num plano areo: os
dois contemplam o mundo visto de cima, numa cena invocadora de Mlis que
corresponde a uma simblica viagem sem retorno de Isaac.
Por seu lado, o ltimo momento da cena final do filme mostra a dona da
penso onde Isaac ficava a fechar as portadas da varanda do quarto. Momentos
118
antes, o esprito dele havia levantado voo com Anglica em direo ao cu, e
o seu corpo sido levado para fora da casa. A Senhora Justina filmada de costas
para a cmara, de frente para a varanda, e no quarto no h qualquer tipo de
iluminao. O plano autorreflexivo declara o fim da histria, e se a janela da
varanda moldura, o que fica da histria corresponde ao que est para l dela: o
Douro e a sua margem intocada.
Os amantes, na morte, partem e desaparecem na paisagem, qual
pertencem.
Rocha
O Rio do Ouro (1998) de Paulo Rocha tambm uma histria de amor e
morte. Mas aquilo que surge sbrio, discreto e direto em O Estranho Caso de
Anglica aqui impe-se de uma forma expressionista, coral e melodramtica. Os
filmes distanciam-se no s pelo estilo: tal como o ttulo sugere, o rio mais do
que central na narrativa de Rocha, ele ubquo.
O Douro aqui organiza o espao narrativo. A ao decorre num lugarejo
beira-rio, a Barquinha, entre montes e escarpas, definindo desde logo o cenrio
da histria como espao fechado e claustrofbico. Se no filme de Oliveira o
espectador tem de procurar o lugar do rio na narrativa, aqui no possvel
fugir-se dele.
De facto, o rio est presente na vida das personagens no s de uma forma
pragmtica e concreta, pois elas nadam, navegam, lavam e trabalham nas suas
guas. Mas ele existe tambm de um modo mais abstracto: as cantigas, as
oraes, a mitologia ali presentes compem-se por referncias sua fora
simblica.
Paulo Rocha avisa o espectador nos primeiros momentos do filme de que
se trata da histria de um grande e horrvel crime. No centro da histria,
encontra-se Carolina, Antnio seu marido, Z dos Ouros seu amante e Mlita a
afilhada do casal. O filme tenso desde o incio, no s porque se apresenta
enquanto narrativa trgica, mas porque dentro desta intrincada teia de
personagens no existem ligaes limpas, sem sentidos escondidos. A paisagem
tortuosa, e as personagens agem da mesma forma, mesmo que em graus
diferentes. O passado pesa nelas, e todas parecem guardar segredos. Tudo neste
universo parece estar prestes a implodir. Apenas Antnio escapa regra. ele
119
Filipa Rosrio
que casa com Carolina, a solitria guarda-cancelas que por fim o matar, que
torturar Mlita com mel e abelhas, e regozijar-se- com o afogamento de Z
dos Ouros no fundo do rio.
Aqui, o espao narrativo corresponde ao vale que o Douro atravessa. A
cmara, mais solta que a de Oliveira, movimenta-se com autonomia: ela espreita
e segue. Os planos-sequncia captam com frequncia cenas paralelas, e a
cmara flui entre estas, criando um efeito de contrao de espao. Aquele
espao onde a natureza se manifesta em toda a sua pujana impe-se assim
enquanto submundo de onde no se consegue verdadeiramente sair. At
porque o filme no o permite, ele previne constantemente o espectador para a
tragdia: a banda sonora incessante na tarefa, mas mesmo as personagens
alertam-se mutuamente. Neste sentido, o rio parece pux-las para dentro de si.
Se em Anglica, o rio contido e atrai misteriosamente, aqui as personagens
esto condenadas com violncia quele fundo de lama e de correntes e de
certa forma, j o sabem.
H muita msica em O Rio do Ouro. Ouve-se constantemente temas
populares, seja durante prticas ritualizadas enquanto se lava a roupa ou na
festa da aldeia , ou em momentos solitrios das personagens, sobretudo da
jovem romntica Mlita. Mas a msica tambm est presente na zona
acusmtica no-diegtica, quase como se de um eco do real se tratasse, at
porque os temas que se escutam em off so os mesmos ou semelhantes queles
presentes em campo. Desta forma, no s o espao tambm se contrai por via
do som, como uma dimenso opertica da paisagem se expe. Nesta dinmica,
o realizador enquanto mestre de cerimnias surge inquieto, h um movimento
constante mas nunca nervoso, uma organicidade que projeta fluidez imagem e
ao som e que reflete algum deleite. O que no filme de Oliveira aparece como
angular, distante e sereno, aqui torna-se ziguezagueante, mergulhado e quente.
O jogo musical entre zona diegtica e no-diegtica faz com que aquele
espao se edifique enquanto vitral, no sentido em que se torna difusa a origem
dos temas, se provm das personagens ou da paisagem. E tambm por a ela
adquire uma fora simblica que de facto no existe no Douro de Anglica.
Aqui, no rio do ouro, o estatuto das guas mitificado por todas as
personagens, reflete-se na linguagem, mas existe para l de ambas. No filme de
Oliveira, Isaac quem reconhece essa fora alegrica no rio, e ao espectador
120
cabe testemunhar distncia essa ligao fatal. Quando a Senhora Justina fecha
as portadas da varanda do quarto de Isaac, depois da morte dele, a histria fica
encerrada, j no h fantasmas, nem projees associadas ao Douro. Por outro
lado, na obra de Paulo Rocha, o espectador v confirmado o estatuto mtico do
rio, associado ideia de morte desde a abertura do filme. A histria confirma a
lenda, e esta resiste, permanecendo fora dela mas dentro do espectador. O
ltimo plano do filme mostra Mlita, no fundo do rio, a devolver a um cordo
de ouro a Z, o namorado. A cmara est dentro de gua, no h tenso
narrativa, h sim uma suspenso que fecha a histria e que leva o espectador
para dentro do rio, insistindo no gesto.
Referncias bibliogrficas
Solnit, Rebecca. 2002. As Eve Said to the Serpent. On Landscape, Gender,
and Art. Athens: University of Georgia Press.
121
En ambos casos, estos documentales fueron encargados como pelculas oficiales de un mismo
evento cultural, slo que en diferentes ediciones: el primero para Porto Capital Europea de la
Cultura 2001, y el segundo para Liverpool Capital Europea de la Cultura 2008.
123
que por otra, sus relatos personales permiten viajar en el tiempo hacia el
pasado del lugar, hacia una ciudad ya desaparecida. De esta manera, Oliveira
representa el pasado y el presente de forma simultnea, adems de su propia
evolucin como individuo a lo largo del tiempo, aunque en todo momento
desconfe de su propia capacidad para recordar. Por este motivo, Porto da
Minha Infncia tiende continuamente hacia la autoficcin: la pelcula pone en
escena determinados recuerdos mediante secuencias reconstruidas que
ostentan el mismo valor documental que el metraje de archivo, puesto que
revelan el funcionamiento de la memoria del cineasta.
Estas recreaciones no intentan reproducir la apariencia real del pasado,
sino que construyen su imagen desde el presente. A veces, y esto es quizs la
cualidad ms sorprendente de estas escenas, los personajes ayudan al
cineasta a recordar algn detalle olvidado, como cuando sus dobles en la
ficcin le susurran determinadas palabras justo antes de que l las pronuncie.
Esta idea sugiere que los recuerdos no pasan tanto del creador a sus
creaciones, sino al revs: las vivencias del cineasta no dan origen a la ficcin,
sino que es la propia ficcin la que gua el relato de esas vivencias. Adems,
los dos actores que encarnan al joven Oliveira en este documental son sus
nietos Jorge y Ricardo Trpa, una eleccin de casting basada en su parecido
fsico que refuerza indirectamente el predominio del presente la ficcin
sobre el pasado la memoria.
Fig. 2 - Jorge Trpa (segundo por la izquierda) interpretando el papel del joven
Oliveira.
Desde un punto de vista documental, como ha explicado Laura Rascaroli,
Porto da Minha Infncia no puede considerarse un autorretrato del artista
adolescente, porque ese personaje slo est presente en ausencia, ya sea descrito
por la voz en off o sustituido por dobles (Rascaroli 2009, 175). Al no tener
ninguna prueba audiovisual de su existencia, el pblico tiene que confiar en las
palabras del narrador, que en realidad son una de las dos pruebas que contiene la
pelcula de la existencia de otro personaje: el artista ya anciano. La otra prueba
sera la aparicin fsica del propio Oliveira en la secuencia que recrea una de sus
frecuentes visitas al teatro. Esta inscripcin visual funciona como un juego de
espejos: el viejo y verdadero Oliveira interpreta el papel de un actor que encarna
a un ladrn en una obra de teatro, mientras que su doble est viendo esa misma
obra desde un palco [Imgenes 1 y 2]. Esta segunda imagen, adems, es
prcticamente idntica a un plano de Inquietude (Manoel de Oliveira, 1998) en el
que la cmara encuadra otro palco desde una posicin similar. Por consiguiente,
dado que algunas de las recreaciones ficcionales de Porto da Minha Infncia
parecen estar inspiradas en la puesta en escena de pelculas anteriores,
podramos afirmar que en este documental el pasado se visualiza como una
ficcin del presente, en la que Oliveira se retrata a s mismo como un viejo
cineasta que trata de recordar mediante estas secuencias reconstruidas. Despus
de todo, buena parte de la veracidad de su autorretrato radica en su testimonio, y
126
tanto como debera. Durante esta escena, su voz mantiene el mismo tono
saudosista que en el resto de la pelcula, quizs porque la conservacin de este
espacio hace ms evidente su propio proceso personal de envejecimiento. Por
este motivo, el cineasta se siente emocionalmente ms prximo a lugares
desaparecidos, como los viejos clubes nocturnos, que a aquellos, como el Caf
Majestic, que todava permanecen en pie.
ending, the closer one moves to a rewriting that is a beginning. As, las secuencias
reconstruidas de Porto da Minha Infncia no son slo un intento de recuperar
los recuerdos del pasado, sino sobre todo una forma de crear nuevos recuerdos
para el futuro: el recuerdo de haber realizado otra pelcula, e incluso el
recuerdo del acto del recuerdo, dado que muchas veces recordamos nuestras
vivencias a travs de su relato posterior.
La pelcula termina con un paisaje automovilstico filmado desde el
Viaduto do Cais das Pedras, un pequeo puente sobre el ro Duero que
recorre unos doscientos metros en paralelo a la orilla. Gracias a la curva de
esta infraestructura, la ciudad se ve durante unos segundos desde la
perspectiva del ro, mimetizando la misma visin que los viejos navegantes
portugueses tenan de Oporto antes de partir hacia lo desconocido. El final
de este plano refuerza esta idea al hacer zoom sobre el mural de azulejos que
se encuentra en la Iglesia Matriz de Massarelos y que incluye un retrato del
Infante Don Enrique, apodado precisamente el Navegante debido a sus
esfuerzos por patrocinar la navegacin ultramarina. Esta conclusin
relaciona metafricamente la desembocadura del ro con el final del relato
autobiogrfico de Oliveira, as como los descubrimientos ultramarinos con el
descubrimiento de la vida a travs del cine: de hecho, el plano final de la
pelcula muestra un faro en la bruma del anochecer, una imagen simblica
que vincula la amplitud infinita del horizonte con las posibilidades infinitas
de la pantalla cinematogrfica. Ese faro en concreto, adems, es el Farolim de
Felgueiras, el mismo que ya haba aparecido en los planos de apertura y
cierre de Douro Faina Fluvial. Por lo tanto, al buscar un final para su
autorretrato urbano, Oliveira encuentra la imagen fundacional de su carrera
cinematogrfica
la
reescribe,
estableciendo
un
eterno
retorno
El nombre portugus del ro Duero (ro Douro) suena literalmente como ro de oro.
130
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131
ESCRITA E NARRATIVAS
Um crtico em constante reflexo sobre seu trabalho. Sob este signo, JeanClaude Bernardet altera e repensa seu ato crtico. No incio dos anos sessenta,
boa parte dos crticos pensava sua funo como uma forma de interveno
necessria ao cinema brasileiro. Uma dessas formulaes marcou a dcada.
Durante a I Conveno Nacional da Crtica Cinematogrfica em 1960, Paulo
Emilio Salles Gomes apresenta a tese Uma situao colonial? (Gomes 1981, 286291). O artigo altera de maneira definitiva a forma de pensar o cinema
brasileiro. Especificadamente sobre a crtica, Paulo Emilio mostrava como a
situao de subdesenvolvimento econmico do cinema atingia o olhar do
crtico sobre a produo local. Ele tomava as obras nacionais como inferiores,
desprezando o cinema brasileiro por suas caractersticas incipientes, mas essa
relao mudava totalmente com o filme estrangeiro, visto como uma obra de
arte. Por desconhecimento do contexto de produo, o crtico mantinha uma
1
social
que
contribua
para
fortalecimento
da
democracia,
134
entre 1963-64. Ali ele desenvolveu a crtica conteudstica2 (Cf. Bernardet 1978),
voltada aos lanamentos em salas populares, para um pblico popular. O
objetivo era revelar aos leitores presos ao enredo o processo de construo do
filme, para desvendar seu discurso e suas contradies. Indiretamente esta
crtica pretendia auxiliar no desenvolvimento analtico do espectador perante
os filmes, com o propsito de conscientizar o pblico. Dessa postura deriva um
tipo de crtica praticada depois em Opinio: so artigos de fcil leitura, cujo
objetivo explicar a produo dentro do contexto poltico brasileiro.
A crtica de ltima Hora tornou-se uma crtica de ruptura na medida em
que o golpe militar de 31 de maro de 1964 deu fim a todo o trabalho
desenvolvido por Bernardet no jornal. Com a instaurao do regime autoritrio,
o crtico enfrentou muitas dificuldades.3 No enfrentamento ditadura, a
participao de Bernardet na imprensa alternativa fazia parte da resistncia.
Como jornal de oposio ao regime militar, Opinio (1972-77) foi fortemente
censurado; metade de suas 230 edies foi vetada. Trata-se do jornal
alternativo de base poltica mais importante da imprensa alternativa (Cf.
Kucinski 1991).
Na rea de cinema, Opinio congregou importantes crticos, como JeanClaude Bernardet, Srgio Augusto, Gustavo Dahl; todos eles atuaram
diretamente como pensadores do Cinema Novo no incio dos anos sessenta. O
semanrio Opinio tornou-se referncia sobre o cinema brasileiro, tratando os
filmes pelo fator poltico. Jornal nacionalista por excelncia defendia a
ocupao do cinema brasileiro contra a hegemonia hollywoodiana, mas tinha
2
No era por preferncia pessoal que Jean-Claude Bernardet usava a crtica de contedo, mas
por necessidade ou falta de melhor opo. No posfcio do livro A significao no cinema de
Christian Metz (1972), ele comenta que a matriz do pensamento da crtica brasileira de
contedo. Bernardet ope-se a esta metodologia; o mesmo vale para a crtica sociolgica, por
sua incapacidade de atingir o especfico cinematogrfico. Esta ltima consegue falar de tudo
que o filme fala, mas no consegue falar sobre o filme. Contudo, sem acesso ao filme na sala de
montagem, a conjuno das duas ainda parecia a melhor opo disponvel para ele em 1972.
3
Ele era professor da Universidade de Braslia, junto com Paulo Emilio Salles Gomes, Pompeu
de Souza e Nelson Pereira dos Santos, quando ela foi fechada pelos militares em 1965.
Bernardet estava com a dissertao pronta e foi impedido de defend-la; o mestrado s foi
publicado em 1967, transformando-se no livro Brasil em tempo de cinema. Um novo
enfrentamento ocorreu quando ele foi cassado e aposentado pelo regime militar do cargo de
professor universitrio da Universidade de So Paulo em 1969, em decorrncia do Ato
Institucional Nmero 5 (AI-5 de 13 dez. 1968). Sem poder ministrar cursos de longa durao
na Escola de Comunicaes e Artes (ECA-USP), Bernardet passou por dificuldades financeiras.
Exercia a crtica na imprensa, fazia palestras e seminrios, ministrava cursos de extenso em
outras faculdades. Muitas vezes tinha de escrever com pseudnimos, como lvaro Ferreira no
Dirio de S. Paulo entre 1968-69 ou como Carlos Murao no jornal Opinio entre 1973-74.
Conseguiu duas bolsas, numa delas para a Fapesp teve de assinar Dieter Goebel.
135
desenvolve uma poltica cultural que leva os cineastas a se voltar para os clssicos
literrios. Os verbos desenvolver, levar e voltar-se a atenuam o sentido
do direcionamento estatal. Indiretamente fica claro que o governo no
beneficia obras polticas. O trecho coloca em evidncia que a estrutura externa
(leia-se condies polticas) interfere na temtica do filme. O excerto no pra
por a, estabelecendo uma ligao entre o objetivo do Estado e o sucesso de
pblico e de crtica que Lio de amor colocou em prtica. Mais do que isso,
neste caso, houve uma conformidade entre a orientao estatal e o contedo do
filme, criando uma viso lisonjeira da burguesia.
Este segundo pargrafo ser concludo s com a ltima parte do artigo,
compondo um retrato circular de argumentao. Bernardet deixa implcito
nessas primeiras linhas, mas s conclui com todas as letras no final do texto que
sem dinheiro os cineastas rendem-se ao projeto do governo de realizar
adaptaes de clssicos. A continuao do artigo prova com a anlise do enredo
como o filme traz uma viso lisonjeira da burguesia, ou melhor, dos avsburgueses:
Os burgueses do filme no so assim to desmerecedores.
claro que eles so criticados: tudo mercadoria para eles e os
sentimentos do filho so manipulados como qualquer negcio que se
faz para dar lucros. [...] O casal Souza Costa visto com ironia, sem
dvida, mas tambm e principalmente com a ternura
condescendente que se teria ao folhear um lbum de fotografias de
avs ultrapassados e um pouco ridculos, mas a quem no fundo se
quer bem. Eles fornecem uma imagem digna dos avs da burguesia
brasileira.
O casal Souza Costa possui uma casa ampla e elegante, veste-se
bem, tem bons modos, d uma sensao de segurana e estabilidade:
o casal Souza Costa d dos avs da atual burguesia brasileira uma
imagem digna. Estamos longe do retrato incompetente e
involuntariamente grotesco que s vezes a chanchada faz dos grfinos. [...]
Mas estamos longe, e como! da ironia e do retrato quase
burlesco que Mrio de Andrade faz dos Souza Costa.
Para provar sua teoria, o crtico traz trechos do livro em que Mrio de
Andrade indaga e questiona seu prprio aparato instrumental. Havia uma
inquietao, uma reflexo sobre a narrativa, inexistente no filme. Escorel no
revela ao espectador que se trata de iluso narrativa, da o sentimento de
retrocesso. A condenao linguagem clssica tem dois motivos: ela oculta os
mecanismos de produo, e principalmente no coloca em questo a relao
com o Estado. Assim a forma impecvel da produo e a construo favorvel
aos burgueses no contedo cabem perfeitamente no projeto governamental.
Se no incio, o autor frisava mais a estrutura externa, leia-se poltica
cinematogrfica, como detonador da forma e do contedo, os pargrafos finais
desconstroem a argumentao do prprio texto. Num movimento pendular,
Bernardet defende uma afirmao, para em seguida neg-la, e depois voltar ao
ponto inicial. Eis alguns dos contra-argumentos lanados no final do artigo:
Frulein como projeo de um certo tipo de intelectual. Um
4
No iremos aqui aprofundar esse vis, mas esse tipo de crtica estava em pauta, por exemplo,
na revista Cahiers du cinma a partir de sua segunda fase, em meados de 1968. Para maiores
detalhes ver Baecque 2010 e Xavier 2005.
139
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142
Marcelo Carvalho
Introduo
Alm do encontro fatal2 entre o ambientalista americano Timothy
Treadwell e um urso pardo, o filme O homem urso (Grizzly man, 2005), de
Werner Herzog, traz outro embate, este, interior ao cinema. Mas Herzog pe
em jogo outra dualidade que no a do entrevistador/entrevistado, ou mesmo a
do diretor/ator, comuns no cinema. Entre Herzog e Treadwell, entre o
cineasta-criador e o personagem-cineasta, h uma espcie de corrida, uma
rotao de duas vozes protagonistas que tentam recompor a vida e a
personalidade do prprio Treadwell.
Em momento algum essas vozes se misturam. Ao contrrio, Herzog faz
questo de afirmar a diferena entre ele e Treadwell, afirmando a diferena
entre os dois filmes, aquele que Treadwell jamais finalizaria e o de Herzog,
que se compe sobre o filme em aberto do naturalista. Trata-se da difcil
relao diferencial de um personagem que nasce para a cmera-conscincia
do diretor: enquanto o primeiro surge em meio a aes e atos de fala, o segundo
se afirma pelos recursos anti-ilusionistas do enquadramento e da montagem.
Um personagem que age com modos estranhos em um filme cheio de recursos
estetizantes: cinema de poesia.
O ambientalista, que acampou por treze veres consecutivos em Katmai
National Park and Preserve, no Alasca, com o intuito de observar os ursos
pardos, foi morto por um urso no outono de 2003 com sua namorada, Amie
Huguenard. O homem urso o resultado de uma seleo realizada por Herzog
das imagens gravadas por Treadwell com uma cmera de vdeo, imagens da
Natureza e dele prprio, sempre em Katmai Park. Todo este material original
(cerca de cem horas gravadas) foi montado a posteriori por Herzog, que inseriu
entrevistas com pessoas que conheceram Treadwell (amigos e parentes).
Pareceu-nos que O homem urso se constitui como propcio a uma leitura a partir
da tese do cineasta Pier Paolo Pasolini acerca do cinema de poesia. Este texto se
conduzir por estabelecer tais conexes.
144
Cinema de poesia
Em 1965 o cineasta, escritor e semilogo Pier Paolo Pasolini apresentava o
manifesto O cinema de poesia3 durante a primeira Mostra Internazionale del
Nuovo Cinema de Pesaro, Itlia (Amoroso 2002, 63). Pasolini identificava em
muitos dos filmes presentes no festival o ressurgimento de uma tendncia
eclipsada do cinema, sua vertente mais intrnseca e essencial caracterizada por
constituir-se de elementos irracionais, onricos, elementares e brbaros
(Pasolini 1982, 141), que o cineasta chamou de, justamente, cinema de
poesia.
A questo de Pasolini o da possibilidade de existncia de algo como um
cinema de poesia. Pasolini troca a pergunta evidente uma lngua da poesia
possvel no cinema? pela surpreendente questo: a tcnica do discurso
indireto livre possvel no cinema? (Pasolini 1982, 143). Assim, Pasolini
condiciona diretamente a existncia de um cinema de poesia no ao lirismo
potico contido nas imagens de um filme, mas aos procedimentos formais (isto
, autnomos do contedo) de superao do objetivo e do subjetivo
cinematogrficos, identificados em certo estado de discurso indireto livre
encontrvel num filme, mais precisamente, em uma subjetiva indireta livre.
Cinema de poesia seria, ento, a subjetiva indireta livre cinematogrfica, onde
o verdadeiro protagonista o estilo (Pasolini 1982, 151).
Mas, como definir esse estado hbrido do discurso indireto livre no
cinema? Trata-se, de uma forma geral, da imerso do autor na alma da sua
personagem e da adoo, portanto, pelo autor no s da sua psicologia como da
lngua daquela (Pasolini 1982, 143). Para Deleuze,4 Pasolini retoma o linguista
Bakhtin em sua formulao do discurso indireto livre como diferenciao de
dois sujeitos de enunciao, de duas lnguas:5
3
145
Marcelo Carvalho
no h mera mistura entre dois sujeitos da enunciao
inteiramente constitudos, dos quais um seria o relator e o outro o
relatado. Trata-se antes de um agenciamento de enunciao
operando ao mesmo tempo dois atos de subjetivao inseparveis,
um que constitui um personagem na primeira pessoa, enquanto o
outro assiste ao seu nascimento e o encena. (Deleuze 1985, 97)
146
viso do personagem e do seu mundo, ela impe uma outra viso na qual a
primeira se transforma e se reflete (Deleuze 1985, 98).
O homem urso como cinema de poesia
no embate entre Treadwell e Herzog que o filme segue sua via mais
contundente. Voltemos ao incio do filme. Primeira imagem aps os crditos
iniciais: um plano-sequncia; cmera baixa, plano geral de um campo
verdejante e montanhas com a neve que ainda persiste no vero do Alasca; dois
ursos ao fundo procuram alimento entre as gramneas. Trata-se de uma imagem
realizada por Treadwell com sua cmera de vdeo. Um homem entra em campo,
vindo por detrs da cmera, do lado esquerdo da tela (enquanto em suas costas
lemos o nome do filme, Grizzly Man). Treadwell. Ele se abaixa para entrar no
quadro, coloca-se direita da tela com um dos ursos ao fundo, esquerda;
comea sua fala na primeira pessoa olhando para a cmera: estou aqui em
primeiro plano. Segue falando sobre os riscos de se viver to prximo aos
ursos pardos e de sua fragilidade frente a estes animais (se sou fraco ainda que
seja uma s vez, se aproveitam, me capturam, me decapitam, me cortam em
pedacinhos, estou morto) e da necessidade de sair ileso para continuar
voltando a Katmai. Prossegue exaltando-se: sobrevivo, por hora, persevero,
persevero. Segue um momento de hesitao na fala de Treadwell que olha
calado para a esquerda, para fora do quadro, instante onde evidentemente
caberia um corte. Mas Herzog mantm o plano. Treadwell prossegue, falando
bem de si prprio: diz ser como um guerreiro amvel ou gentil como uma flor
na maioria das vezes; diz que age normalmente, apenas observando os ursos e a
natureza, mas que s vezes o desafiam e ele precisa converter-se em um
samurai, sem medo de morrer, to forte e vencedor. Ento comea a dar
conselhos: preciso ser forte para sobreviver entre os ursos. E lana um
desafio: ningum sabe disso, ningum tem ideia de que s vezes minha vida
est prxima da morte. Ento, jura amor pelos ursos, e diz que os proteger,
que morrer por eles, que ser forte, que ser um deles (serei o mestre).
Nova hesitao, Treadwell olha para trs, para um dos ursos. Volta-se
novamente para a cmera, olha para baixo, diz que ser um guerreiro amvel,
sorri complacente consigo mesmo. Ento lana um beijo para um dos ursos
(Te amo, Rowdy!). Por fim levanta-se at ultrapassar o limite superior da tela,
147
Marcelo Carvalho
149
Marcelo Carvalho
olhar vazio [do urso] mostra que s lhes interessa a comida. Mas para
Timothy Treadwell este urso era um amigo, um salvador.
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152
Introduo
O objetivo deste artigo o de sustentar a tese da omnipresena da
narrativa. Para tal, a narrativa encarada como o elemento de inteligibilidade
por excelncia, que por estar intrnseca ao ser humano (como mais frente
ser argumentado), acaba por funcionar como a chave para a criao de
relaes entre, neste caso, um filme e quem o v/experiencia. A pergunta a
fazer no estar relacionada com a sua existncia, mas sim com o local onde se
encontra, quando no est presente no filme.
1
Joo Leal
154
Este filme feito por uma pessoa que ama os sons por aquilo que eles so.
No conta nada, no descreve, no narra, no fundo o nico filme que Cage
poderia ter feito. Acaba por ser a componente visual, da pea de 1952, 433,
155
Joo Leal
pea originalmente composta para piano, onde o(s) intrpretes cumprem uns
rigorosos quatro minutos e trinta e trs segundos de silncio. Cage estava
consciente da utopia, o silncio em cima do palco mais no faria do que
enaltecer todos os sons envolventes.
O que interessava a Cage na msica que fazia era, acima de tudo, a sua
essncia: o som. Em One11 procurou tambm o elemento essencial ao registo de
imagens: a luz. E este elemento interessa-lhe de tal forma que, o diretor de
fotografia, Van Theodore Carlson, aparece creditado como intrprete.
A narrativa inevitvel
Moreover, in this infinite variety of forms, it is present at all
times, in all places, in all societies; indeed narrative starts with the
very history of mankind; there is not, there has never been
anywhere, any people without narrative [...]. (Barthes e Duisit 1975,
237)
156
Joo Leal
158
A whole is that which has a beginning, a middle, and an end. A beginning is that which does
not itself follow anything by causal necessity, but after which something naturally is or comes
to be. An end, on the contrary, is that which itself naturally follows some other thing, either by
necessity, or as a rule, but has nothing following it. A middle is that which follows something as
some other thing follows it. A well constructed plot, therefore, must neither begin nor end at
haphazard, but conform to these principles. (Aristteles 2000, 12).
159
Joo Leal
Pode dizer-se que o que Peter Gidal escreveu no seu texto AntiNarrative relativamente a um filme de Peter Kubelka (1960), to suppose for
example that Arnulf Rainer is a non-diegetic film is wishful thinking (Gidal
1978, 77), tambm se aplica a One11 and 103.
A diegese que ajuda contextualizao deste filme rica ao ponto de
possibilitar a criao de narrativas que podero ir muito para alm do filme em
causa. A metodologia para a realizao do filme, a relao com os interesses
artsticos do autor e com outras obras do mesmo, a fase da vida do autor em
que o filme foi feito, os locais onde o filme foi filmado e produzido, todos estes
elementos permitem a criao de um espao/tempo que ajuda a contextualizar
o trabalho e qualquer um deles potenciador de narrativas.
Concluso
Considerando que existe sempre narrativa, ao olhar para um filme como
One11 and 103 onde vrios elementos mencionados na anlise esto em falta
(eventos, atores, intervenes, mesmo as linhas e cores), torna-se claro ela no
se encontra no filme em si.
Neste caso, tal como noutros similares (filmes de autores associados ao
cinema no narrativo e outro tipo de obras, entre outros), a(s) narrativa(s),
aquilo que ajudar/permitir a compreenso/contextualizao da obra, est no
prprio autor, no seu percurso, na sua vida, na sua criao artstica, em tudo o
que antecede a obra em causa. Para que seja possvel estabelecer-se uma relao
com o trabalho ser necessrio contextualiza-lo no percurso criativo do autor,
conhecer o autor, ir para alm da obra em causa.
No fundo, a distino no estar tanto entre o narrativo e o no-narrativo,
mas na distino entre narrativas que acreditam em quem est do outro lado,
que contam com o interesse/inteligncia/referncias de quem as experiencia,
que do trabalho porque necessitam de reflexo e de estudo, que exigem
procura e as que se limitam a ser condescendentes ou que aparecem sem
qualquer tipo de contextualizao (seja ela anterior ou posterior).
160
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161
Joo de Mancelos holds a PhD in American Literature and has recently finished his
Postdoctoral Project, in Literary Studies. From 1992 to 2012, he taught American Literature
and Creative Writing at the Portuguese Catholic University (Viseu). Currently, he is teaching
Screenwriting at Universidade da Beira Interior (Covilh). He published several books of
fiction, four scientific books, and numerous essays.
Mancelos, Joo de. 2014. Who Needs a Superhero? New Trends in Action and Adventure
Movies. In Atas do III Encontro Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Srgio Dias Branco,
162-170. Coimbra: AIM. ISBN 978-989-98215-1-4.
Joo de Mancelos
164
165
Joo de Mancelos
Joo de Mancelos
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169
Joo de Mancelos
170
Acabada
(1980)
de
Joo
Botelho
(baseado
na
troca
de
Henrique Muga
Henrique Muga
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
Cheia de enorme mistrio humanssimo das ondas noturnas
A lua sobe no horizonte
E a minha infncia feliz acorda, como uma lgrima, em mim
Henrique Muga
onde se no sai ilustra bem o seu desencanto com a ptria. Tal pessimismo
estende-se sociedade ocidental; a propsito do filme A Comdia de Deus
(1995), afirma em entrevista a Pierre Hodgson (2005, 428): No acredito na
Europa. [] No acredito na moeda nica. Como toda a gente, estou muito
preocupado com a hegemonia da Alemanha. No quero ser alemo. []
preciso fundar uma nova sociedade.
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176
BERTOLUCCI E BOWLES:
POR UMA AUTENTICIDADE NA SUBMISSO
Ana Claudia Rodrigues1
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Atas do III Encontro Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Srgio Dias Branco, 177-187.
Coimbra: AIM. ISBN 978-989-98215-1-4.
fictcias
devem
sua
existncia,
sua
impossvel,
todavia
180
181
em que nos confrontamos com elas a partir de nosso prprio horizonte, como
leitores, crticos ou historiadores. (Arfuch 2010, 59).
E entre as cores frias do quadro de Caspar Friedrich e as palavras da
literatura de Bowles, Bertolucci j fazia germinar em sua imaginao o seu
filme, com as cores do deserto:
Deixaram as bicicletas beira da estrada e comearam a subir
pelo meio das rochas imensas, at o topo da crista. O sol estava no
horizonte plano; o ar saturado de vermelho [...]. Kit pegou a mo de
Port. Subiram em silncio, felizes de estarem juntos... Sentaram-se
nas pedras, lado a lado, olhando a vastido l embaixo. Ela passou o
brao pelo dele e pousou a cabea em seu ombro. Ele apenas olhava
direto frente, suspirou e por fim sacudiu a cabea devagar. (Bowles
2009, 84-85).
182
From the start, we wondered how much of Paul and Janes story had found its way into the
book. Then I had idea of building our characters by drawing from life from the original
models.
183
So, who is this person watching? And Bertolucci would say, Thats you watching your past
life.
184
No romance, Kit se lembra de uma tarde de agosto quando Port teria dito,
em palavras similares, o que Bowles disse quando finaliza o filme:
A morte est sempre a caminho, mas o fato de voc no saber
quando vai chegar parece depreciar a finitude da vida. essa terrvel
preciso que ns tanto detestamos. Mas por no sabermos, passamos
a pensar na vida como um poo inesgotvel. No entanto, as coisas
acontecem s um certo nmero de vezes e um nmero muito
pequeno na verdade. (Bowles 2009, 201)
Port teria dito a Kit no romance, o que foi dito por Bowles no filme. Nem
Port nem Bowles eram profetas anunciando o segredo da vida a no
apreciao do tempo em seu devido tempo faz do homem um ser insatisfeito, a
depositar sempre nos valores quantitativos e imediatos o princpio das
realizaes de suas esperanas. Port, no romance, e Bowles, no filme, anunciam
6
185
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187
Introduo
O advento dos media digitais originou uma profuso de novas prticas
discursivas, entre as quais novas formas narrativas, como as narrativas
1
190
ainda
ser
prontamente
reconfigurada,
prestando-se
assim
191
Vide Making of Scrolls to Screen: A Brief History of Anime (2003). John Gaeta, at data um
profissional relativamente inexperiente, disse mesmo: Eu fiquei muito impressionado pelo
quanto eles estavam abertos s ideias das outras pessoas.
193
as
materializaes
da
histria:
ela
permanece
mesma,
195
Concluses
Em suma, a autoria da saga The Matrix foi de facto colaborativa, e
fortemente favorecida e enriquecida pela abertura dos realizadores ao
contributo criativo da sua equipa, mas ao mesmo tempo eles foram capazes de
segurar as rdeas da sua criao, de forma que qualquer das opes
fundamentais da sua conceo e qualquer dos artefactos, concebido ou no
por eles, plenamente coerente dentro do mundo ficcional uno e coeso que
criaram, o que a prpria marca das narrativas transmediticas.
Este caso particular no nos permite tirar concluses particulares quanto
participao do pblico. Sabemos que ele mais difcil de orientar, pois a sua
participao mais livre e o seu comprometimento com as premissas dos
autores menor, de modo que mais difcil manter a coeso da histria. Mas, em
princpio (princpio que importa verificar em estudos subsequentes), a mesma
lgica que se aplica aos especialistas, poder aplicar-se tambm colaborao
do pblico.
Uma outra concluso que podemos tirar, em relao s narrativas
transmediticas e seu conceito, que, para que os diversos artefactos
efetivamente formem uma histria maior, necessrio coorden-los de forma
eficaz, de modo a serem coerentes uns em relao aos outros e a acrescentarem
informao relevante para o desenrolar da histria, do mundo ficcional e dos
seus personagens. Um bom controlo sobre a histria central , como achamos
que este caso comprova, fundamental. Mas, controlo no significa limitao
ou restrio do trabalho criativo dos colaboradores, mas antes uma orientao
que, sendo construtiva, pode ser profundamente inspiradora, motivante e
gratificante para todos os auteurs envolvidos no processo. Todos eles podem
ser beneficiados por essa colaborao, no s porque so igualmente creditados
pelos seus feitos particulares, mas tambm porque o seu trabalho artstico pode
at ser mais rico do que se fosse desenvolvido isoladamente.
Referncias bibliogrficas
Aumont, Jacques, e Michel Marie. 2004. A Anlise do Filme. Traduzido por
Marcelo Flix. Lisboa: Edies Texto & Grafia.
Barthes, Roland. 1982. Image, Music, Text. Traduzido por Stephen Heath.
Londres: Flamingo.
196
197
lembrar que o cineasta utilizou de modo pontual pelo menos trs outros
pseudnimos. Gilbert Cordier aparece como autor do romance lisabeth
(1946), republicado como La maison d'lisabeth; sobre esta mudana no ttulo o
autor explica que na releitura da obra conclui que o personagem central no era
a mulher mas sim tudo o que se passava em sua casa. Quanto a este
pseudnimo, o cineasta afirmou em entrevista ao jornal Le Monde de 18 de
maio de 2007 que foi uma escolha impensada de sua juventude da qual logo se
arrependeu, diferentemente de ric Rohmer, anagrama que funciona muito
bem, segundo o prprio autor, ao ser transformado no adjetivo rohmeriano
(Blumenfeld 2007). Dirk Peters creditado como autor do fragmento Brnice
que integra o filme Les Histoires extraordinaires dEdgar Po, filme pedaggico
concebido e realizado em 1965 por ric Rohmer para a televiso francesa. Em
entrevista concedida a Hlne Waysbourg em 2009, Rohmer ressalta que em
alguns destes filmes feitos para a Radio et Tlvision Scolaire (RTS), como por
exemplo Perceval ou Le Conte du Graal (1964), chegou a assinar o roteiro com
seu verdadeiro nome (Maurice Schrer) e a direo com seu pseudnimo (ric
Rohmer), acumulando assim as duas funes (CNDP 2012). Sbastien Erms
aparece pela primeira vez como compositor no filme Conte d'hiver (1991),
trata-se de uma colaborao do prprio cineasta com sua montadora Mary
Stephen (Herpe 2007, 242). Esta colaborao se estendeu pela dcada de 1990
at a realizao do curta-metragem Un dentiste exemplaire (1998) que tem a
ltima colaborao musical conhecida da dupla. Segundo Stephen tudo
comeou como uma brincadeira j em 1980 com a msica para a cano de fim
do filme La Femme de l'aviateur, porm no creditada Sbastien Erms.4
Se num primeiro momento a adoo de pseudnimos visava desvincular a
figura do professor de letras, Maurice Schrer, de suas outras facetas artsticas e
intelectuais, sobretudo quelas vinculadas stima arte, considerada naquele
momento como uma arte menor, o pseudnimo ultrapassa a pessoa a qual
designa e comea a traar uma trajetria prpria. Deste modo, Rohmer pde
criar um distanciamento confortvel entre vida privada e vida pblica, o qual
resguardava cuidadosamente. neste mesmo sentido que, e para tentar manter
sua fisionomia desconhecida por parte do pblico, na ocasio do Festival de
A formao do nome d-se pela juno das iniciais de ric Rohmer e de Mary Stephen, o nome
Sbastian uma homenagem ao compositor Johann Sebastian Bach.
199
Marina Takami
cinema de Nova York de 1972, no qual participou com o filme Amor s trs da
tarde,5 Rohmer aparece nas imagens ostentando um bigode falso.
Esse esforo em esconder-se fica evidente no modo cauteloso como o
cineasta mostrava-se. Segundo Andr Labarthe, foram anos de discusso para
obter o acordo de Rohmer para a realizao do filme consagrado sua obra na
srie Cinma, de notre temps; o cineasta dizia de forma intransigente que a
condio para ser filmado era aparecer usando uma mscara (Labarthe 2011,
198). Em 1993 Rohmer cede, participa nas escolhas de formato e de locao,
no sem impr como condio a assinatura de um contrato que garantia a nodifuso do filme sem a sua autorizao expressa at a sua morte, acordo esse
revogado logo aps a finalizao de ric Rohmer, preuves lappui (Provas
abonatrias). Esta vontade de desvinculao de Scherr e Rohmer fica evidente
nas entrevistas que compem o filme, cuja primeira parte comea com o
seguinte prlogo:6 Sabemos desde sempre que fora do cinema ric Rohmer
no existe [], indagado por Jean Douchet, eis aqui um homem sem biografia.
Para este documentrio, o cineasta reuniu escrupulosamente todos os
documentos que julgou necessrios para demonstrar, provar, seus propsitos
enquanto autor e cineasta. Tudo isto no espao de uma pequena sala de um
imvel vazio e impessoal que viria a ser o futuro escritrio de sua produtora
Les films du Losange, um cenrio construdo para abrigar suas histrias.
Esta mesma linha de despistagem j havia sido colocada em evidncia na
apresentao da entrevista concedida a Cahiers du cinma em 1970, intitulada
Nova entrevista, em referncia de 1965 chamada O Antigo e o Novo que foi a
primeira concedida revista por Rohmer na qualidade de cineasta aps seu
afastamento forado da redao.7 O tom tenso esperado da conversa assim
apresentado pelos entrevistadores:
Tudo, nesta entrevista com ric Rohmer, nos ope a ele. Qual a boa razo
ento destas dez pginas?... Nosso empreendimento, sem nenhuma dvida,
comportava o risco deste questionamento. E dizer que os filmes de Rohmer nos
interessam contra suas declaraes, at mesmo que nunca intil traar linhas
de demarcao, isto no dar uma resposta. Digamos que, sobretudo, ns no
pensamos que uma diferena possa ser simples e pura, e que foi esta impureza e
5
200
esta complexidade que nos deteve. Pois, se pode parecer estranho hoje (ou
talvez nada estranho, e ento uma vez mais, por que falar disso) que um
cineasta como Rohmer se preocupe tanto em pensar sua prtica quanto em
afirmar sua metafsica, esquecer que esta prtica, precisamente, tem somente
como funo inscrever esta metafisica na negao daquilo que a cerca. Veremos
que de fato nesta segunda entrevista, mais pungente que a primeira [1965, O
antigo e o novo], o mecanismo de negao, to frequentemente e
essencialmente praticado pelos personagens, e especialmente pelos narradores
dos Contos Morais, est longe de estar ausente do prprio discurso do autor.
Relembremos o princpio que anima o narrador de Maud: Eu minto (a mim
mesmo); mas sabendo (e dizendo) que eu minto (a mim mesmo), eu digo (e
encontro) a Verdade. Ns no paramos certamente de investigar e de mostrar
a mentira desta verdade. E Rohmer, certamente, no parou de despistar nossa
pista. No parou de apagar seus vestgios: pois este apagamento inscreve-se,
uma tal escrita no tem fim por definio e requer uma ateno ela tambm
sem fim (Bonitzer et al 1970, 46).8
Em um outro registro, esse jogo de suspense/suspenso caro a Rohmer,
ficou patente tambm para a audincia do congresso sobre cinema e pintura de
1987, em Quimper, o qual o cineasta honrou com sua presena, mas ao mesmo
tempo surpreendeu com o seu discurso aparentemente esquivo, como relata
Jacques Aumont:
Alm da agitao que causava esta rara presena, ele deu vida a
este coloquio tomando o partido mais paradoxal: convidado a falar de
pintura, ele respondia mise en scne e cor. Era tomar as coisas a um
nvel to elementar, to concreto, longe dos grandes voos tericos
[...].
Nos decepcionamos um pouco, frequentemente sem ousar a
confessar. ric Rohmer, o autor culto de 'Cellulod et le Marbre', de
um estudo erudito sobre Faust de Murnau, no tinha ento a dizer
sobre a pintura no cinema nada alm de uma lista de cores associadas
imaginariamente a seus filmes, segundo um principio simbolista
esgotado, recenseamentos de ambientes coloridos, como um mero
decorador? (Rohmer 2010, 5)
Sublinhado pelo autor. Traduo do original em francs pela autora. Todas as tradues de
originais em francs que se seguem so da autora.
201
Marina Takami
A expresso pictural no filme passa pelos atores a qual une
todos os aspectos do trabalho to singular de Rohmer e d sentido
pleno sua enquete analtica sobre Murnau. O filme pictural se ele
organiza sua forma, e neste trabalho os atores so partes
interessadas fundamentais. Nada de abstrato, nenhuma submisso a
priori ao drama: um belo casamento entre o pictural e o acaso
fotogrfico. Uma bela e rara definio do cinema como arte visual.
(Rohmer 2010, 5)
primeiras
manifestaes
escritas
de
Rohmer
no
campo
cinematogrfico datam de fim dos anos 1940, quando ainda assinava como
Maurice Schrer, so estudos de carter crtico e analtico.9
Le Cellulod et le Marbre (1955)10 foi o primeiro ensaio assinado por
ric Rohmer publicado na revista Cahiers du cinma. Organizado em cinco
partes, ele se insere no contexto da cinefilia parisiense do perodo e tinha por
objetivo demonstrar o valor do cinema como forma de arte ao abordar o
romance, a pintura, a poesia, a msica e a arquitetura, separadamente em cada
um de seus captulos. O tema das outras artes e o cinema reaparece nas
preocupaes tericas de Rohmer e uma das marcas de seu trabalho. O
prprio Le Cellulod et le Marbre ganha uma verso flmica em 1965 como um
episdio da srie de televiso Cinastes de notre Temps.11 Trata-se de um filme
de entrevistas no qual Rohmer e Andr Labarthe se encontram com artistas
contemporneos para debater sobre o ponto de vista deles em relao arte
cinematogrfica. A presena dos entrevistadores no decorrer do filme d-se
pela escuta de suas vozes vindas de corpos que encontram-se fora do campo de
viso do espectador. No entanto, Rohmer, autor do episdio, apresenta-se
corporalmente na abertura do filme. Vemos nesta sequncia inicial um homem
em p falando ao telefone do qual compreendemos ouvir a voz, e
reconhecemos ser a voz de Rohmer; corpo e voz desconectados e sem rosto,
deste modo que o autor se insere no filme. Este autor sem face, inscreve seu
engajamento intelectual e apresenta os objetivos das entrevistas que seguem:
9
Tais como Pour un cinma parlant (Les Temps Modernes, 1948), Le cinma, art de lespace
(La Revue du cinma, 1948) e Lge classique du cinema (Combat, 1949).
10
Publicado em Cahiers du cinma 44, 49, 51, 52, e 53, respectivamente.
11
O filme foi realizado por sugesto do crtico e produtor Claude Jean-Philippe.
202
Com este filme Rohmer quer inverter o ponto de vista de seu texto
homnimo de 1955 e d a palavra a artistas de outras artes, a fim de obter
elementos para a sua tentativa de definir o lugar do cinema na histria da arte.
Questo essa que ser cara ao cineasta, de um certo modo durante toda a sua
trajetria. Rohmer distancia-se desta preocupao do ponto de vista terico,
mas sem deixar de assumir a importncia da presena das artes em geral no seu
cinema.
Em sua segunda e ltima incurso ao teatro em 1987-88, como autor e
como diretor da pea de teatro Le Trio en mi bmol, Rohmer afirma no ter
interesse neste momento em fazer a distino entre o que cinema e o que
teatro. Ele simplesmente buscou o palco porque para aquele texto ele lhe
parecia mais apropriado que a tela para fazer valer a sua obra enquanto autor,
para pr-se prova na qualidade de autor (Rohmer 1987). No por acaso esta
nica pea escrita por Rohmer tem como tema a msica de Mozart que lhe d o
ttulo.
Alguns anos antes na mesma dcada de 1980, Rohmer no autorizou a
republicao de sua srie de ensaios Le Cellulod et le Marbre (1955) na
coletnea de artigos Le Got de la beaut (1984), organizada por Jean Narboni,
sob a justificativa de que no poderia permitir sua incluso sem retificaes ou
explicaes, o que no estava disposto a realizar. Apesar da recusa, Rohmer
reconhece, na entrevista que abre o volume, o impacto deste texto sobre os
leitores da poca; esta negao refora ainda mais o valor para ele desta
reflexo sobre o cinema e as outras artes. Finalmente em 2010 o ensaio aparece
publicado em livro seguido de uma srie de longas entrevistas com o autor; elas
servem, por um lado, de comentrio sobre o texto original e sobre o contexto
de sua primeira apario e, por outro, tomam a forma de reviso de uma
carreira no campo do cinema que havia comeado h mais de sessenta anos.
203
Marina Takami
Marina Takami
que ric Rohmer, coabita na coleo do IMEC com fundos de: Roger Bastide,
Samuel Beckett, George Duby, Marguerite Duras, Michel Foucault, Jean Genet,
Flix Guattari, Jack Lang, Chris Marker, Edgar Morin, Pierre Schaeffer, entre
outros.
Diferentes modos de escrita perpassam a produo de ric Rohmer; ele
praticou, com mais ou menos frequncia, o texto crtico, analtico e terico, o
ensaio reflexivo, o romance, a poesia, a traduo, a dramaturgia, o roteiro de
filme; como cineasta que Rohmer passa a ser reconhecido como artistaintelectual, falecido em 11 de janeiro de 2010, l-se sobre sua lpide, no
cemitrio de Montparnasse em Paris, simplesmente: Maurice Schrer, dito
ric Rohmer.
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Marina Takami
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(Culture).
208
ESCRITA E APOLOGIA
EM FRANCISCO LUIZ DE ALMEIDA SALLES
Fbio Raddi Ucha1
Jundia,
O fluxo econmico de tal rede de galerias, apesar de desenvolvida ao longo dos anos 1950-60,
culminar durante o denominado milagre brasileiro, no incio dos anos 1970, sob a poltica
econmica excludente do regime militar.
211
Entre as galerias paulistas: a Galeria Domus (1947), fundada por um casal de amigos de
Ciccillo Matarazzo; a Galeria Astria (1959) de Carlos Ranzzini e Stephan Geyerhahn; a
Selearte (1962), de Bigio Motta e Giuseppe Baccaro; a Seta (1963), fundada por um casal de
artistas e scios de famlia de industriais e banqueiros. Diversos crticos redigiram
apresentaes para os catlogos de tais galerias, entre os quais pode-se citar: Mrio Shemberg,
Jakob Klintowitz e Paulo Mendes Almeida.
212
Luciano Lo Re
Trata-se de um pintor paulista, nascido em 1945, de obra no muito
conhecida, mas que ter telas vendidas por marchands paulistas. A
apresentao de sua exposio individual, escrita por Almeida Salles no incio
dos anos 1970, mescla elementos biogrficos e uma tentativa de identificar as
relaes estabelecidas entre o pintor e o mundo. Assim, em termos biogrficos,
destaca-se o contato inicial de Lo Re com a pintura, os estmulos feitos pela
Av materna, os estudos, bem como a relao com museus e artistas de So
Paulo como pintor e integrante da Galeria Renome. Por outro lado, em
alguns momentos, Almeida Salles explora a relao de Lo Re com as coisas:
214
define-o como um artista que cria o mundo, por meio de um gesto marcado
pelo desforo:
Desenhava desde menino, rabiscava falando, cantando
oralmente o que arrancava do papel. Sua av materna Carolina
mulher de Celestino Paraventi que o estimulava, cercando-o de
lpis, aquarelas, massas de modelagem, livros. [...]
O pintor no um elaborador de peas contingentes e
desrelacionadas de um contexto global de comunicao e
participao, mas um criador de mundo, unitrio e identificado com
seus prprios limites.
Este o primeiro ttulo a ser conferido a Luciano Lo Re, que
estende sua pintura, coagulada em unidades, narrando sua percepo do
mundo, como se contasse a histria do seu desforo com a circunstncia.
E a palavra desforo caracteriza a pintura de Luciano, pois ela ,
no seu conjunto, um corpo a corpo tenso, nunca um encontro fcil com o
seu testemunho de realidade.
Poderamos denominar rdua a sua captao e imanncia
circundante suas mulheres, seus bares, seus casais entrelaados numa
volpia de devorao, seus homens destilando confisses malvolas.
(Salles s.d.)
215
Crtico com parte da formao realizada na Sua e que, assim como Almeida Salles, tambm
entra em contato com a primeira gerao de intelectuais formada pela Faculdade de Filosofia da
Universidade de So Paulo. Seu trabalho se desdobra entre a crtica de arte e de literatura,
incluindo questionamentos sobre o cotidiano, os problemas sociais e a prpria personalidade
do escritor. (Candido 2006)
216
sua
objetividade e a sua
consequente credibilidade.
217
Para esta idia de cinema, tal como descrita por Almeida Salles, no
importa a captao da realidade objetiva. No se trata de um cinema passivo: a
verdade relaciona-se com a participao do artista, com o seu estar no
mundo, com seu poder de (re)criao.
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das Letras.
Salles, Francisco Luiz de Almeida. 1979. Espelho da seduo. So Paulo: Art
Editora.
218
219
IMAGENS E SONS
Introduo
Ao longo da histria, o cinema brasileiro produziu diversos filmes,
ficcionais ou documentrios, sobre esportes. Entre essas produes, as que
abordam o futebol constituem um corpus significativo (Melo, 2006), embora
ainda permanea a impresso de que a cinematografia nacional tenha dado
pouca importncia modalidade mais popular do pas.
O presente artigo prope discutir algumas caractersticas dos longasmetragens sobre esse esporte realizados de 1995 a 2012, tendo como objetivo a
problematizao de como eles propem experincias estticas do futebol a
partir das escolhas temticas e de que forma estas so tratadas pela linguagem
audiovisual. A anlise empreendida em sete filmes: Boleiros era uma vez o
futebol (1998) e Boleiros 2 vencedores e vencidos (2006), ambos de Ugo
Giorgetti; Garrincha estrela solitria (2003), de Milton Alencar; Carandiru
(2003), de Hector Babenco; O Ano em que meus pais saram de frias (2006), de
Cao Hamburger; Linha de passe (2008), de Walter Salles e Daniela Thomas; e
Heleno (2012), de Jos Henrique Fonseca.
O texto dividido em duas etapas na primeira, h uma contextualizao
do futebol como experincia esttica na vida cotidiana, das materialidades
comunicacionais pelas quais ele se apresenta. J na segunda, apresentada uma
sntese das anlises das obras, a fim de perceber como o cinema brasileiro
contemporneo explora o sensvel do esporte em questo.
O esporte como experincia esttica
Aparies de corpos no espao, epifanias, momentos de intensidade que
desaparecem quase que ao mesmo tempo em que surgem no espao. Esses so
alguns dos termos usados por Hans Ulrich Gumbrecht para definir eventos
esportivos e relacion-los com a experincia esttica. Ao refletir sobre os
efeitos de presena, o autor salienta que esses aproximam a dimenso corprea
do mundo:
Assim, o que presena? O que queremos dizer quando
dizemos que alguma coisa tem presena? Talvez de forma
surpreendente, presena enfatize muito mais o espao que o tempo
(a palavra latina prae-esse literalmente significa estar diante de).
Algo presente algo que est ao alcance, algo que podemos tocar, e
sobre o qual temos percepes sensoriais imediatas. A presena,
222
se
pelas
materialidades
que
transformam,
criam
outras
226
227
228
imprimem
condies
visuais
distintas,
geralmente
em
229
Referncias bibliogrficas
Bordwell, David. 2008. Figuras traadas na luz. Campinas: Papirus.
Damatta, Roberto, org. 1982. Universo do Futebol Esporte e sociedade
brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke.
230
231
Introduo
comum a observao de quanto as torrentes visuais contemporneas,
com uma rapidez sem precedentes, marcam o ritmo da vida quotidiana. Hoje, o
1
Por deciso pessoal, o autor do texto no escreve segundo o novo Acordo Ortogrfico.
Joana Bicacro Mestre em Cultura Contempornea e Novas Tecnologias pela Universidade
Nova de Lisboa. doutoranda em Cincias da Comunicao pela Universidade Lusfona de
Humanidades e Tecnologias. Assistente na Escola de Comunicao, Arquitetura, Artes e
Tecnologias da Informao e tambm investigadora nas reas da cultura visual, teoria da
imagem e arqueologia dos media visuais.
2
Por um lado, o cinema e o vdeo, tendo o movimento como o seu aspecto fundamental, esto
mais rpidos. De acordo com David Bordwell (2006, 121-124), o cinema norte-americano
passou de uma durao mdia de planos de 8 a 11 segundos, antes de 1960, para uma mdia de
4 a 6 segundos na ltima dcada. Por outro lado, os ritmos de consumo tambm encurtaram.
Vemos mais imagens por perodos curtos de tempo. Ecrs e placards, folhetos e cartazes esto
por todo o lado, brilhando, piscando, atualizando-se cada vez mais depressa. nossa volta, em
zonas urbanas, tudo est em velocidade.
4
A reapropriao e remistura de uma sequncia de Gentleman Prefer Blondes (Howard Hawks,
1953), criada por Laura Mulvey e apresentada pela autora neste encontro, um dos melhores
exemplos do fenmeno de retardamento e interrupo do movimento cinemtico aqui em
anlise.
233
Joana Bicacro
234
Tambm no se trata de uma questo dialtica, na medida em que a tenso entre ambos no
ultrapassada numa sntese.
8
fundamental evitar proceder reduo do cinema a questes e problemticas lingusticas e
textuais (feita por tantos autores ao longo da segunda metade do sc. XX). As imagens em
movimento no funcionam de acordo com normas das linguagens faladas ou escritas. Usam-se
aqui as noes de discurso e gramtica, por exemplo, no contexto de linguagens propriamente
cinematogrficas e visuaisno sentido mais lato aberto pelos estudos culturais e pela teoria
crtica (e sem que se adoptem, por isso, os princpios lingusticos e semiticos desenvolvidos
para outras linguagens).
9
Traduo minha.
235
Joana Bicacro
Tom Gunning (2003) argumenta que a crena na analogia entre a fotografia e a viso natural
atravessa a sua primeira crise profunda na sequncia do impacto da obra de Edward Muybridge.
11
Na verdade, esta temporalidade imitada por todos os objetos cinemticos que exibem as
imagens velocidade a que foram captadas.
236
237
Joana Bicacro
criativas
residem.
cinema
funciona,
na
realidade,
238
realizadores
dos
primrdios
do
cinema
perceberam-no,
239
Joana Bicacro
Concluso
Se, como vimos, durante os anos 1960 e 1990, no cinema e no vdeo,
alguns criadores tentaram atacar a noo de um (instante ou) momento anterior
ao colocar nas imagens uma temporalidade nova, nas dcadas seguintes
assistiu-se tentativa de celebrao do qualquer (o outro termo da expresso de
Deleuze). Ao dar s tcnicas de criao de imagens a oportunidade de dialogar
com um instante qualquer e o transportar para o ecr, uma srie de criadores
reconheceram a hiptese de reapropriao e recriao temporal oferecida pela
montagem cinematogrfica. Hoje, a tendncia de abrandamento do tempo fazse sentir pelo uso de efeitos altamente estilizados de temporizao como o
slow-motion extremo, o pixel motion, o timewarp e noutras formas menos
intrusivas de tempo estendido.13
Visto que s a mudana relativa de andamento pode adquirir um sentido,
devem
abandonar-se
as
leituras
gerais
ou
os
sentidos
ontolgicos
13
Igualmente radical, num contexto de grandes velocidades e curta durao de planos, pode ser
a passagem do tempo natural em planos fixos. Justamente, introduzida neste contexto (e
encontra grande expresso meditica contemporaneamente) uma tendncia para reproduzir a
passagem do tempo real que pode constituir, transdutivamente, um modo de abrandamento
profundo do tempo nas culturas visuais. Hoje, a ideia de um congelamento dos corpos colhe
frutos tambm junto do observador de fenmenos de imagem em movimento to dspares
quanto o slow cinema, o cinema contemplativo contemporneo, os canais de paisagem ou
lareira, a cultura do slide show ou do protetor de ecr. Os corpos acompanham a imobilidade da
cmara e a lentido da montagem, os planos de muito longa durao e os efeitos de tempo
natural, a panormica ocasional, a ausncia de drama ou ameaa (com efeitos variveis de
suspense).
240
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241
Joana Bicacro
242
vossa vista, ao seu olhar, de onde lhe parece que foi tomada essa
imagem? Nesse primeiro instante da aula proferida por Godard a estudantes
em Sarajevo em seu filme Notre Musique (2004), algo j entremeado pelo
choque: o hbito visual, o sentido apreendido, comum, aqui desmontado pelo
inesperado. O movimento das imagens invisveis, mentais, provocado pela
pergunta de Godard choca-se com a imagem apresentada, visvel. Campo e
contracampo. O encontro entre o Outrora e o Agora. Entre o visvel e invisvel.
Godard provoca a imaginao de seus espectadores; provoca, portanto, o
deslocamento das imagens preservadas em algum lugar mental.
A aula-filme segue. E outra vez, inesperadamente, interrompendo uma
possvel sequencia previsvel, surge uma menina folheando um livro. Durante
esse seu movimento contnuo, ouvimos em off a voz de Godard narrando a
histria de Bernardette Soubirous, a menina campesina que teria visto a Virgem
Maria, na cidade francesa de Lourdes em 1858. Num lugar outro a ns
desconhecido que no o presente da aula de Godard, a menina continua seu
movimento. Nada vemos de suas pginas. No vemos o que a menina olha, mas
somos levados a imagin-lo, no intervalo de visibilidade criado pela montagem
que provoca o encontro das imagens da menina folheando o livro e a fala de
Godard:
uma pequena camponesa, na poca do Segundo Imprio que
diz ter visto a Virgem. Perguntaram-lhe como ela e Bernardette
responde: no sei dizer. A madre superiora e o bispo lhe mostraram
os grandes quadros de pinturas religiosas. A virgem de Rafael, a de
Murillo, etc.. E Bernardette dizia no, no ela [...]. (2004)
244
Em 1998, em Histoire(s) du cinma outra remisso a Andr Malraux foi feita por Godard ao
citar imagens de L'espoir (1945), filme realizado por Andr Malraux. Godard, J-L. Histoire(s) du
cinma 3A: Le Monnaie de l'absolu (1998).
245
daquilo
que
se
mantm
parcialmente
exposto
e por
246
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Godard, Jean-Luc. 2004. Notre Musique.
248
Resumo: A sequncia que encerra Filme de amor, de Jlio Bressane, trata das
relaes entre corpo e espao urbano a partir de oposies entre, de um lado,
os monumentos da cidade e seu espao geogrfico que trazem em si a escrita
de uma histria e, do outro, os corpos humanos e o sexo, representados por
citaes pintura ocidental. Tanto em Bressane como em douard Manet,
podemos encontrar um olhar devolvido ao espectador. Um olhar que ope o
mundo mental que se foi e a modernidade.
Palavras-chave: Jlio Bressane, Cinema brasileiro, douard Manet, Erotismo,
Espao urbano, Impressionismo francs.
Contacto: [email protected]
Fabio Camarneiro
250
Fabio Camarneiro
Courbet, Balthus entre outros), mas Manet, mesmo sem ser citado
textualmente, quem apresenta relaes mais profundas com o filme. No quadro
Un bar aux Folies-Bergre (1881-82), uma atendente fita um observador,
comprador potencial, que se deixa entrever obliquamente no espelho (Martins
2007, 73).
Figura de linguagem comum no cinema moderno, o olhar lanado pelo
personagem cmera pode trabalhar em vrias chaves. Uma delas a da
reflexividade, quando a obra de arte se reconhece enquanto objeto endereado
a um leitor. Ao analisar a presena dessa figura no Primeiro Cinema, Jacques
Aumont estabelece uma relao entre os irmos Lumire e os pintores
impressionistas (2004, 44). Em Bressane, o olhar devolvido estabelece uma
materialidade presente (Martins 2007, 72) do mundo, relacionada com a
presena dos corpos e a iminncia do sexo. Esse mesmo olhar, tambm
associado ao sexo, pode ser encontrado em outros quadros de Manet, como em
Olympia (1863). T. J. Clark lembra que a prostituta era a figura ideal para se
representar a Paris moderna, por concentrar, como a prpria cidade, um lugar
de prazer, particularmente para o olhar, mas de tal modo que sugerisse que os
prazeres da viso envolviam alguma falta (Clark 2008, 127).
O sexo como algo proibido (e at, de certa maneira, interdito) no espao
da cidade um tema caro a Filme de amor. Toda a metrpole, de certa maneira,
faz circular o capital e o desejo, um alimentando o outra, num movimento
incessante que insere os corpos em produtores e/ou consumidores. Filme de
amor encena uma interrupo, um corte nesse movimento, quando surgem o
sexo e a erudio duas instncias que, para Bressane, parecem prescindir do
tempo controlado da metrpole, ou mesmo subvert-lo.
Luiz Renato Martins, ainda sobre Un bar aux Folies-Bergre, fala da
distino entre o classicismo ou o mundo mental que se foi, e a modernidade
ou o mundo tal como na sua materialidade presente (Martins 2007, 72).
Bressane, em seu jogo de oposies na sequncia final do filme, coloca frente a
frente esse mundo mental que se foi (os monumentos da cidade e seu espao
geogrfico, que trazem em si a escrita de uma histria; mas tambm as
memrias e delrios; a erudio) em oposio a um mundo da materialidade
presente (o tempo presente, cronolgico; o mundo dos corpos e do sexo).
Essa talvez seja a razo de dois planos idnticos, um preto e branco e outro
252
253
Fabio Camarneiro
nos
moldes
europeus
quanto
para
copiar
os
modelos
254
255
Fabio Camarneiro
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256
257
Por deciso pessoal, o autor do texto no escreve segundo o novo Acordo Ortogrfico.
Srgio Dias Branco Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, onde coordena os Estudos Flmicos e da Imagem no curso de Estudos Artsticos.
Cursou Estudos Flmicos na Universidade de Kent, onde se doutorou. Integra o Centro de
Estudos Interdisciplinares do Sculo XX da Universidade de Coimbra e o grupo de anlise
flmica da Universidade de Oxford, The Magnifying Class. co-editor das revistas Cinema:
Revista de Filosofia e da Imagem em Movimento e Conversations: The Journal of Cavellian Studies.
Tem apresentado trabalhos nas Universidades Yale e de Glasgow, entre outras, e publicado
ensaios em revistas como a Fata Morgana e livros colectivos sobre a esttica das obras da
imagem em movimento.
2
Dias Branco, Srgio. 2014. O Vdeos Musicais e Figuras Abstractas. In Atas do III Encontro
Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Srgio Dias Branco, 258-263. Coimbra: AIM. ISBN
978-989-98215-1-4.
Nature and abstract forms are both materials for art, and the choice of one or the other flows
from historically changing interests.
259
linhas, das formas, das cores, e das relaes entre elas, que surgem no s
atravs do labor sobre as imagens, mas na mise-en-scne atravs do trabalho
cenogrfico. Neste caso, a nfase na expresso e no na representao. A
imagem
tornada
tnue,
frequentemente
transformando
banda,
261
Motivos geomtricos
O emprego de motivos geomtricos empresta regularidade formal a uma
composio visual abstracta. Sign o the Times de Prince (1987), dirigido
por Bill Konersman, um exemplo da utilizao desse tipo de motivos, no qual
figuras geomtricas, linhas, e palavras compem uma animao. Este vdeo
musical leva ao limite uma dimenso que j fazia parte dos dois anteriores: a
atenuao da presena reconhecvel do cantor ou da banda. Muitos estudiosos
destas obras afirmam que a imagem da estrela central no entendimento dos
vdeos musicais populares (e.g., Peeters 2004). Esta imagem trabalhada
noutros meios, da capa dos lbuns s fotografias de imprensa passando pelos
concertos ao vivo, e costuma servir de ncora visual ao teledisco. Nada disto
acontece neste vdeo que atinge o limite de apagar a estrela musical Prince. As
imagens abstractas deste vdeo tm tambm a capacidade de questionar a
simples dimenso promocional dos vdeos musicais, de venda de discos, que
depois da dcada de 1980 se foi atenuando e depois desaparecendo. Os vdeos
passaram a ser vendidos em formato analgico, e mais tarde digital, e a ser
procurados, coleccionados, e frudos tal como as canes e os lbuns. Da
podermos falar na videografia de um artista musical, distinguido-a da
discografia.
Sign o the Times considera o modo particular como as imagens
abstractas se podem referir a coisas ou simboliz-las sem as representar
pictoricamente. A letra cantada por Prince transformada em substncia
abstracta. No se trata de apresentar palavras para serem lidas, mas da sua
transformao em elementos grficos com uma determinada forma, dimenso,
cor, e at movimento. Por exemplo, a palavra time (tempo) surge repetida,
em planos diferentes, deslocando-se para a esquerda, visualizando a prpria
ideia de tempo (Fig. 3). Atravs da letra, a cano evoca situaes dramticas
relacionadas com o uso de drogas, com a violncia quotidiana, com o flagelo do
VIH. Estes eram temas que estavam na ordem do dia e que Prince aborda com
desassombro, mencionando o acidente do Space Shuttle em 1986, no ano
anterior ao da escrita da cano. Os EUA eram ento liderados por Ronald
Reagan que insistia em explorar o espao enquanto as desigualdades sociais e
econmicas se agudizavam no pas. Neste sentido, como se o vdeo
confrontasse com a dificuldade em lidar com estas situaes no plano visual,
262
263
Andr Rui Graa licenciado em Estudos Artsticos pela Universidade de Coimbra e Master of
Arts em Estudos Flmicos pela University College London. Prossegue atualmente o
doutoramento no Centre for Intercultural Studies da referida instituio britnica, debruando
a sua investigao sobre a receo e os circuitos de mercado do cinema portugus desde 1974.
bolseiro da Fundao para a Cincia e a Tecnologia e colaborador do Centro de Estudos
Interdisciplinares do Sculo Vinte da Universidade de Coimbra.
Graa, Andr Rui. 2014. 'Porqu to srios?' Rostos de Tragdia nos Cartazes do Cinema
Portugus aps 1974. In Atas do III Encontro Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Srgio
Dias Branco, 264-274. Coimbra: AIM. ISBN 978-989-98215-1-4.
materiais de publicidade.
uma srie de elementos como fotos, entrevistas, recortes de jornais e etc.. com
vista a compilar as credenciais com que um filme se apresentar ao pblico
(Finney 2010, 49-51). Kerrigan relata ainda que h uma srie de elementos
destes cartazes que pode ser condicionada por clausulas contratuais, tais como
o destaque do nome dos atores, ou a dimenso da presena da sua imagem no
cartaz (Kerrigan 2010, 132-133).
Ainda sobre esta matria, e trazendo a discusso para o campo algo
desconfortvel da dicotomia entre o cinema mainstream e os pretensos cinemas
artsticos, recorde-se a distino sugerida pelos autores de Art of the Modern
Movie Poster: no caso dos cartazes de filmes de cinemas do mundo a nfase
no na execuo, mas no conceito e na comunicao, enquanto que nos de
cinema americano, existe a nfase em cenas sensacionais, grande destaque
para as grandes estrelas, cores vibrantes e ausncia de violncia (Kehr et al.
2008, 216). Usando as palavras dos mesmo autores aplicadas a um caso prtico:
pelos anos 50, o desenho de cartazes em Frana tinha-se
tornado to bipolar quanto a prpria indstria francesa de
cinema - por um lado havia os cartazes vvidos, irrequietos e
sedutores, desenhados para filmes populares de gnero e
importaes de Hollywood, e, por outro lado, os desenhos
sombrios e simples, destinados a filmes de autor com intenes
mais srias e que comeavam a emergir. (Kehr et al. 2008, 188)
Todavia, no deixa de ser curioso notar que dificilmente se consegue
identificar ou reconhecer traos da frgil e muito pequena indstria (talvez o
termo mais adequado seja meio) portuguesa, onde todos se conhecem e
acabam trabalhando uns com os outros, gerando uma praxis, uma tica e uma
esttica prprias (Areal 2011, 275) nas descries dos modelos de marketing
cinematogrfico que a literatura internacional de referncia sobre o tpico
toma como estudos de caso e tenta clarificar. Mesmo sendo considerado um
cinema europeu (pois essa a sua insero de mercado), devido sua
dimenso e a uma srie de impasses polticos, o meio do cinema em Portugal
funcionou, at meados dos anos 90, de forma distinta e com padres diferentes
de outros pases da Europa, como a Frana, a Itlia, a Sucia ou o Reino Unido.
Confrontar os casos dos pases agora mencionados, e que normalmente so os
mais explorados pela academia, com as descries da realidade do portugus,
leva a que se verifique que tem havido uma discrepncia grande. Em suma,
266
invisibilidade do
Um cinema psicolgico
Diversas e profcuas tm sido as discusses e as teorias acerca da
portuguesidade contempornea, mormente nos textos de Eduardo Loureno,
Boaventura de Sousa Santos, Antnio Pinho Vargas e Jos Gil. Tarefa ingrata e
apenas ao alcance de uns poucos, a de tentar fixar em letra de forma o
proteiforme e fugaz volksgeist. Do mesmo modo, os trabalhos de Leonor Areal e
Paulo Filipe Monteiro, possivelmente dois dos mais consistentes e abrangentes
at data acerca deste tpico, vo no sentido de interpretar a inquietude dos
filmes portugueses no seu momento histrico.
Segundo Paulo Filipe Monteiro, o cinema portugus tem uma atrao
pelo decadente e por figuras de depresso, derrota, morte, ausncia,
impotncia e nostalgia, sendo uma prtica que parece ir a passo do pretenso
destino portugus. Na mesma linha de pensamento, Leonor Areal escreve
acerca de uma tnica psicolgica e simblica relacionada com o sentimento de
orfandade (Areal 2011, 269) e de um cinema com laivos de tragdia que
Oliveira, Rocha, Reis-Cordeiro e Monteiro assumem [e que se torna] um dogma
esttico que far sucessivos discpulos (Areal 2011, 271). A mesma autora
prossegue, afirmando: Na dcada de 80 ressurgem as representaes do
fatalismo enquanto fundo mitolgico nacional (Areal 2011, 278). Curiosa a
utilizao da palavra ressurgimento. Com efeito, Paulo Filipe Monteiro cr
que o movimento profundo que se iniciou nos anos sessenta [...] apresenta
com fascinante e fascinada recorrncia a derrota portuguesa (Monteiro 1995,
959). Tambm Bnard da Costa reconheceu, numa entrevista sobre o Portugal
retratado nos filmes, que o que passa para o pblico um mundo
claustrofbico, isolado, sem abertura para o exterior e uma profunda tristeza
(Bnard apud. Monteiro 2004, 24).
No que s personagens diz respeito, que so, ao fim e ao cabo as
protagonistas dos cartazes, so descritas como sendo desenraizadas,
demonstrativas de uma fraqueza de vontade. Akrasia [...]. Muitas vezes o
agente at sabe o que fez, e porqu, e sabe que no o melhor a fazer, mas no
sabe explicar porque no fez outra coisa. (Monteiro 1995, 899) Outro ponto
bastas vezes mencionado, o da profuso de monlogos nos filmes
portugueses. Para Paulo Filipe Monteiro, as falas so tpicas de personagens
268
com uma falta de convivncia com a realidade (Monteiro 1995, 909). J para
Areal, o cinema portugus criou personagens ensimesmadas, que se exprimem
intempestivamente por atos violentos que libertam as emoes caladas (Areal
2011, 283). Por seu turno, Joo Botelho afirma que desta forma que entende a
portuguesidade: aquela dor mansa, vegetal, sem... no h grito... se forem os
italianos, berram... os brasileiros tambm... os portugueses calam-se na dor
(Botelho apud. Monteiro 2004, 63). Talvez por tudo isto, Filipe Monteiro
conclua que
No existe em todo o novo cinema portugus [que, como
se sabe, fez escola] um autor que de desprenda desta tradio
melanclica do mal de vivre, la vie e tellement triste:
ningum que ocupe no cinema portugus o lugar solar que, na
poesia, Sophia de Mello Breyner, ou mesmo Eugnio de
Andrade, quiseram e souberam inventar. (Monteiro 1995, 960)
Efetivamente, este conjunto de percees sobre o cinema portugus no
se encontra distante da forma como pensadores conspcuos colocam o pas em
perspetiva. No seu ensaio Labirinto da Saudade, Eduardo Loureno aponta que
treze anos de guerra colonial, derrocada abrupta desse
imprio, pareciam acontecimentos destinados no s a criar na
nossa conscincia um traumatismo profundo anlogo ao da
perda de independncia mas tambm a um repensamento
em profundidade da totalidade da nossa imagem perante ns
mesmos e no espelho do mundo. (Loureno 2010, 46)
Acerca daquilo a que chama uma perceo esquizofrnica da realidade
histrica por parte de Portugal, que jamais entendeu o seu papel de figurante
nobre da histria (Loureno 2011, 107), Loureno afirma que aps 74:
Tudo parecia dispor-se para enfim, aps um longo perodo
de convvio hipertrofiado e mistificado connosco mesmos,
surgisse uma poca de implacvel e viril confronto com a nossa
realidade nacional de povo empobrecido, atrasado social e
economicamente. (Loureno 2010, 52)
J no sculo XXI e indo mais longe que Loureno, Jos Gil apresenta uma
dura crtica a certos aspetos que j o mencionado autor discutia, confirmando a
sua persistncia crnica. Delineando um retrato pessimista, para o filsofo
apesar
dar
liberdades
conquistadas
herdmos
antigas
inrcias:
pas esttico, refere que Em Portugal nada se inscreve, quer dizer, nada
acontece que marque o real, que o transforme e o abra (Gil 2004, 43). Segundo
o raciocnio de Gil, esta falta de inscrio uma consequncia de um medo de
existir; de um nevoeiro ou sombra branca (Gil 2004, 78). Utilizando as suas
palavras: O medo herda-se. Porque interiorizado, mais inconsciente do que
consciente, acaba por fazer parte do carter dos portugueses (ditos tristes,
taciturnos, acabrunhados). (Gil 2004, 78).
Do mesmo modo que se pode encontrar motivos para o nacionalpessimismo na ressaca de um ecstasy histrico e social, numa memria recente
de um perodo repressivo, numa revoluo em parte falhada e na perda do
imprio colonial, tambm na complicada relao entre Portugal e a Europa se
poder encontrar no s uma resposta para esta circunstncia e mentalidade,
como at mesmo para a forma como o cinema nacional se desenvolveu. Ser,
alis, precisamente este ponto que permitir realizar a ponte para a alnea
seguinte.
Loureno prope que os portugueses, perifricos, estabelecem uma
relao de fascnio e ressentimento para com a Europa. Com a perda do imprio
para o qual o pas vivia voltado h cerca de 4 sculos, uma cultura sem lado de
fora e com a transformao de Portugal num pas no de colonizadores mas de
emigrantes, no admira que a fatura a pagar pela constatao de um atraso
cientfico, social e tecnolgico tenha sido brutal. De resto, tal sentimento no
de todo novo. J a gerao de 70 do sculo XIX tinha demonstrado o seu
fascnio por um estrangeiro hiper-real e distante e a amargura de estar fora
desses plos de enunciao. Da o segundo trauma: vivemo-nos como uma
ilha (Loureno 2004a, 163). Afirma Loureno:
O perentrio discurso anteriano sobre a nossa
subalternidade cultural, agora sobretudo na esfera cultural e
cientfica, transformou em chaga morbidamente cultivada um
diagnstico que institua o l fora como referncia exemplar e
de difcil, seno impossvel, lugar habitado por ns. (Loureno
2004a, 169)
No seu ensaio a Europa Desencantada, o mesmo autor acredita que a
entrada na Europa tapava a ferida deixada pela liquidao da herana colonial
(Loureno 2011, 111).
270
aspira a ser se contiver a essncia do que quer ser. Neste caso, as instncias que
decidem essa essncia j estavam estruturadas e encontravam-se a montante de
Portugal. Mais ainda, curioso que o cinema portugus aqui em causa , como
diz Paulo Filipe Monteiro, um cinema que s reconhece uma nica e decisiva
fronteira: entre o cinema de autor e o que no de autor (Monteiro 1995,
809). Em sintonia com isto, ser interessante relembrar o binmio
fascnio/ressentimento avanado por Eduardo Loureno. No admira, por isso,
que o contgio da Nova Vaga francesa e da poltica dos autores tenha
encontrado um terreno frtil em Portugal para germinar. Numa tentativa de
alcanar essa Europa longnqua e reclamarem para si o fascinante estatuto de
autor de pleno direito que era celebrado l fora, os realizadores do novo
cinema e do que haveria de vir depois dele privilegiaram uma prtica
cinematogrfica associada quilo que a literatura de cinema preferiu preservar e
que foi o favorecimento da ideia de que o cinema europeu se define pela
negativa em relao ao cinema americano, popular e conotado com a cultura
low-brow, e pela positiva em relao longa tradio artstica europeia (Fowler
2004, 6).
Acerca do cnone da crtica, Leonor Areal d conta que uma srie de
realizadores portugueses que se conotaram com posies mais materialistas
foram desfavorecidos pela crtica e excomungados por razes no somente
estticas (Areal 2011, 295). De facto, o cinema portugus desde os meados dos
anos 60, parece ter preferido transmitir uma imagem de um cinema artstico
que, falta de pblico nacional, vai buscar l fora (nessa outra Europa que no
habitamos) a legitimao e a aceitao (Monteiro 2004, 32).
A propsito da importncia que a seriedade e o trgico possuem na
perceo cultural ocidental, George Steiner considera que h uma combinao
entre a ideia de excecionalidade do artista e a melancolia, combinao que, por
contraditria que possa parecer, estruturante da nossa cultura a partir dos
meados do Sc. XIX. De facto, o autor afirma que a nostalgia pelo desastre, to
bem exemplificada em Wagner e nas adaptaes neo-clssicas dos trs mestres
trgicos da Antiguidade, surge como uma reao ascenso de expresses
artsticas mornas, para consumo aburguesado (Steiner 1971, 24-26). Desta
forma, a utilizao recorrente do trgico poder ter sido usada de forma
instrumental por parte dos realizadores portugueses numa tentativa de filiar as
272
suas obras num registo de cinema de alta cultura. Por outras palavras, uma
possvel estratgia de comprovada eficcia passaria por no entrarem no
terreno pantanoso da comdia ou do apoltico, considerado escapista, popular e
low-brow. Reza o adgio que mais vale cair em graa que ser engraado. Como
sugere Paulo Filipe Monteiro, talvez justamente o facto de em grande medida
ter sido uma cinema criado em funo dessa aceitao no estrangeiro tenha
vindo a reforar algumas caractersticas que l fora mais foram valorizadas
(Monteiro 2004, 33).
Por fim, a questo parece, pois, legtima: at que ponto no se inventou e
mercantilizou, pela arte, a ideia de esprito de uma nao? O fado, por exemplo,
mercantiliza precisamente essa dor tipicamente portuguesa. J Antnio Ferro
dizia que o caracterstico receita de xito (Ferro apud. Monteiro 2004, 63).
Termine-se citando Eduardo Loureno acerca da essncia portuguesa e do
valor desse gosto absurdo de sofrer:
Melancolia cltica, adoada pelo sol do Sul? Monlogo de povo
beira-mar, dividido entre o rumor das vagas e o seu silncio? Se a
origem permanece indecifrada, as suas manifestaes so patentes e,
embora no sejam as nicas que constituem a trama da cultura
portuguesa, so aquelas que lhe do as suas letras de nobreza.
(Loureno 2004b, 39)
Referncias bibliogrficas
Areal, Leonor. 2011. Cinema Portugus Um Pas Imaginado, Vol. II.
Lisboa: Edies 70.
Barthes, Roland. 2010. A Cmara Clara. Coimbra: Edies 70.
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Londres: Routledge.
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Loureno, Eduardo. 2010. O Labirinto da Saudade. Lisboa. Gradiva.
Loureno, Eduardo. 2004a. Destroos: O Gibo de Mestre Gil e Outro
Ensaios. Lisboa: Gradiva.
Loureno, Eduardo. 2004b. A Nau de caro seguido de Imagem e Miragem
da Lusofonia. Lisboa: Gradiva.
273
274
sua
circulao pela
cultura
digital contempornea.
As
domstico tradicional, mas a grande maioria num novo contexto, mais ligado s
redes sociais, cada vez mais agentes mediadores das formas como nos
apresentamos e os contextos em que vivemos, moldando tambm as nossas
relaes com o mundo. O Instagram, o Facebook, e outras redes sociais, como o
Pinterest, demonstram a importncia que est a adquirir a fotografia como
instrumento de comunicao. Os milhes de fotografias adicionadas
diariamente nas plataformas dos media sociais, dos quais o Facebook pode ser
uma sindoque, so um exemplo desta realidade, marcas visveis de uma vida
mais fotogrfica (Rubinstein and Sluis 2008).
s voc comear a dizer a respeito de alguma coisa: Ah, que
bonito, tinha era que tirar uma foto!, e j est no terreno de quem
pensa que tudo o que no fotografado perdido, que como se no
tivesse existido, e que ento para viver de verdade preciso
fotografar o mais que se possa, e para fotografar o mais que se possa
preciso: ou viver de um modo o mais fotografvel possvel, ou ento
considerar fotografveis todos os momentos da prpria vida. O
primeiro caminho leva estupidez, o segundo loucura. (Calvino
1992, 27)
No s cada vez maior o nmero de pessoas que vivem uma vida mais
fotogrfica, mas tambm cada vez mais comum que se considere fotografvel
cada momento da vida. Susan Sontag escreveu, em 1977, Mallarm, o mais
lgico dos estetas do sculo XIX, disse que tudo o que existe no mundo existe
para vir acabar num livro. Hoje em dia, tudo o que existe, existe para acabar
numa fotografia (Sontag [1977] 2012, 32). Este comentrio de Sontag no
poderia ser mais actual. A ubiquidade das mquinas fotogrficas digitais como
artefactos tecnolgicos de uso
quotidiano,
possibilita
uma
crescente
278
282
283
Referncias bibliogrficas
Amar, Pierre-Jean. 2011. Histria da Fotografia. Lisboa: Edies 70.
285
286
Introduo
O cinema e a pintura, formas de produo imagtica com marcas
identitrias do seu criador, que podem dialogar entre si, como podemos ver em
1
Maria Ftima Nunes licenciada em Lnguas e Literaturas Modernas, pela Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, mestre em Relaes Interculturais e doutora em antropologia
(especializao em antropologia visual), pela Universidade Aberta. Professora auxiliar no
Instituto Superior da Maia, Departamento de Cincias da Comunicao e Tecnologias da
Informao (nas reas de: semitica da imagem dinmica e estudos flmicos) e investigadora
integrada do Centro de Estudos de Lngua, Comunicao e Cultura (CELCC). reas de
investigao: antropologia, antropologia visual, imigrao chinesa, cinema chins, filme
documentrio, semitica do cinema. tambm realizadora de documentrios. Membro da
Associao de Investigadores de Imagens em Movimento. Membro associado do espao Q |
Quadras Soltas, Porto. Membro da comisso tcnico-cientfica do Seminrio Histria dos
Roteiristas organizado pelo Ncleo Audiovisual e Centro de Comunicao e Letras, So Paulo,
Brasil. Formadora na rea das Tecnologias Educativas e da Educao Multicultural.
Nunes, Maria Ftima. 2014. Dong: Dilogo entre Cinema e Pintura?. In Atas do III Encontro
Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Srgio Dias Branco, 287-297. Coimbra: AIM. ISBN
978-989-98215-1-4.
atrevo-me a
fazer
uma
pintor
288
professor desde 2000, que se deslocou a Fengjie, ao lugar onde estava a ser
construda a barragem das Trs Gargantas para observar as condies de vida
das pessoas, as mudanas e para registar as impresses sobre os lugares, as
pessoas, sobretudo as ligadas ao trabalho de demolio
No entanto, Dong no foi rodado apenas na China, na regio das Trs
Gargantas, mas tambm na Tailndia, em Banguecoque, onde Liu Xiaodong
reconhecido internacionalmente como grande pintor desde o ano 2000, assim
como em Taiwan, Paris e So Francisco (Fiant 2009).
A pintura e o cinema
Liu Xiaodong convidou o seu amigo cineasta Jia Zhang-Ke a rodar um
documentrio sobre a sua atividade pictural nas Trs Gargantas, por se tratar de
um lugar em vias de desaparecimento, de metamorfose, de transformao.
A construo desta barragem foi iniciada em 1993 e terminada em 2006,
na bacia do rio Yangtze. o maior projeto hidroeltrico do mundo, que teve
grandes impactos ambientais, humanos e polticos3. Ambientais, na medida em
que provocou a inundao de 600 km de terrenos agrcolas e de florestas.
Humanos, devido ao realojamento de cerca de 1200000 pessoas em trs fases
(1997, 2003 e 2009). Quarenta por cento das pessoas eram de origem citadina,
tendo sido realojadas em novos bairros construdos pressa na cidade; sessenta
por cento eram agricultores da etnia Han, realojados em condies de cultura
diferentes, sem possibilidade de continuarem a praticar a agricultura
tradicional, por os solos, que lhes foram distribudos, serem demasiado
ngremes, com uma cota entre os 300 e 1000m. Impactos polticos, visto a
construo de um projeto gigantesco desta natureza, ao assemelhar-se a outros
projetos no passado, tais como a construo da Grande Muralha, funcionar
como uma forma de propaganda de um regime que une a sua populao,
inclusive os mais jovens, em torno de um projeto de uma sociedade dotada de
meios
financeiros,
humanos,
tecnolgicos
capaz
de
realizar
um
Alguma da informao acerca da barragem das Trs Gargantas foi recolhida no site
http://www.chine-informations.com/guide/barrage-des-trois-gorges_1203.html. Acedido em
12 fevereiro 2013.
289
local, como enfrentou os seus modelos (2012, 182), por nunca ter estado nas
Trs Gargantas e por ter ficado seduzido por aquele lugar quando viu as
primeiras telas pintadas naquele local pelo seu amigo; mas tambm por ser um
cineasta a quem interessa o tema da mudana vivida a uma velocidade veloz na
China.
Neste documentrio, podemos assistir a momentos de simbiose entre o
quadro e o ecr ancorados na relao de proximidade do pintor com as pessoas
que vivem em condies miserveis nas Trs Gargantas, cuja sobrevivncia est
dependente do rio, que fazem qualquer coisa para ganhar um yuan e que no
exteriorizam as suas preocupaes, sofrimentos, angstias. Nas telas que pinta
vemos pessoas serenas, pacficas, amveis, delicadas e at mesmo felizes, pois
Para pintar, gosto de encontrar pessoas otimistas e acontecimentos alegres
num ambiente difcil. No tenho vontade de mostrar o sofrimento. Tudo tem o
seu lado bom.4 Da a representao dos demolidores a jogar cartas num
ambiente descontrado, de pausa do trabalho duro. Observamos tambm o
pintor enquadrado no ecr do cineasta como uma pessoa emocionada, com uma
forte ligao aos demolidores com quem trabalha, cujos corpos ficam
imortalizados na sua tela, mesmo depois do seu desaparecimento.
Testemunhamos a deslocao de Liu Xiaodong aldeia de um demolidor, que
morreu devido a um acidente de trabalho, para lhe prestar uma ltima
homenagem e se encontrar com os seus familiares para lhes devolver
fotografias que tinha feito antes de o pintar na tela, para entregar prendas s
crianas, para os reconfortar com a sua presena durante o ritual fnebre, a que
no temos acesso, at porque a centralidade do filme o pintor, homem e
artista. Nesta cena, no o pintor quem retrata os familiares, homens com
rostos esculpidos com rugas, crianas e mulheres com olhares tristes, mas o
cineasta que fixa a sua objetiva nos rostos destas pessoas humildes e em
sofrimento e os enquadra na tela do cinema.
Jia Zhang-Ke regista, atravs do seu olhar cinematogrfico, o olhar
artstico e a observao atenta do pintor em relao paisagem em
transformao e s pessoas, aos demolidores que vivem num lugar frgil que ir
desaparecer sem lhes ter sido dada a opo de escolha de procurar um outro
4
Estas palavras citadas foram retiradas de uma conversa com o pintor a propsito de Dong,
recolhidas por Deng Xin e Wang Nan, publicadas no livro de Jia Zhang-Ke, Dits et crits dun
cinaste chinois (2012, 180).
290
utilizao Jia justifica como o gesto que retoma os rolos da pintura clssica que
deslizavam assim no espao. (Mas s.d.). Esta paisagem das Trs Gargantas
apresenta os elementos fundamentais da pintura clssica chinesa: o rio, a
montanha, a bruma. Os sons, na maior parte dos casos, acusmticos,5 que
constituem a paisagem sonora so: sons do trabalho: britadeiras, martelos a
demolir, buzinas; sons da natureza: latido de um co, chilrear de pssaros e sons
humanos: vozes de homens, mulheres e crianas. Isto , um olhar do cineasta
para a beleza da destruio e simultaneamente para a mudana.
2. pelo olhar de Liu Xiadong no ato de observar a paisagem, de se deslocar
nas suas deambulaes por entre os destroos; nos momentos de reflexo sobre
os demolidores, ou seja, o olhar do pintor fixado pelos sucessivos quadros do
cineasta, ora a passear por entre locais cobertos de destroos, ora parado de
costas para o rio e a montanha a refletir sobre o ato de pintar, sobre a beleza
dos corpos daqueles jovens que apesar de crescerem num ambiente difcil,
nada encobre a sua beleza, o poder da juventude (Liu, in Dong:
aproximadamente ao minuto 00:10:08);
3. atravs do enquadramento de Liu Xiaodong a dispor os corpos dos
trabalhadores para a pose a ser fotografada antes de ser pintada, atividade que,
de alguma forma, se pode assemelhar ao trabalho de direo de atores no
cinema e cuja metodologia de trabalho se aproxima da do pintor francs Marc
Desgrandchamps, que desde os anos 1990 cria os seus quadros a partir da
fotografia, funcionando como documento, como auxiliar de memria que ajuda
a complexificar uma representao, que at ento era linear e sinttica; a definir
limites rigorosos para a forma e para o corpo (Liu, 00:08:33). Na tela figuram
elementos tpicos da pintura chinesa clssica, ou seja, as montanhas
envolventes, o rio, a bruma, e outros que se afastam da tradio da pintura
chinesa, elementos mais figurativos, os corpos quase nus, de alguns
trabalhadores num momento de pausa, de lazer, a jogar s cartas sentados ou
inclinados num colcho, outros em p a fumar, outros sentados num sof a ver
os jogadores. Um estilo de pintura que alguns aproximam ao neorrealismo
(Fiant 2009);
Segundo Chion, os sons acusmticos so os sons fora de campo, ou seja, aqueles cuja fonte
invisvel temporria ou definitivamente, no caso deste filme, so sons cuja fonte nunca se torna
visvel.
292
forma elementar, rostos humanos e os frutos que vejo aqui a toda a hora (Liu,
00:36:50).
semelhana do que aconteceu na primeira parte do documentrio,
situado na regio das Trs Gargantas, na segunda parte, em Banquecoque, a
sociedade, a religio, a cultura tailandesa so reveladas tambm pelas imagens
visuais e sonoras do cineasta, pela pintura de Liu Xiadong, pela interao do
pintor com os locais e pelas imagens em movimento de uma jovem modelo.
1. O olhar exterior e, por vezes, quase voyeurista do cineasta
representado pelas imagens visuais e sonoras (travellings que nos mostram a
cidade flutuante, onde os comerciantes dentro das pirogas expem e vendem
os seus produtos alimentares; grande angular que mostra o corpo e o rosto de
uma jovem, destruda pela droga e pela prostituio, sentada numa cadeira
numa rua muito movimentada, a sorrir de forma nervosa; plano de
acompanhamento de uma outra jovem modelo dentro de um txi a maquilharse e depois parada numa rua central da cidade, aparentemente espera de
algum; sons do quotidiano, buzinas de automveis, vozes de pessoas, passos
apressados na multido) revela-nos uma cidade que vive do comrcio de bens
alimentares e do comrcio do corpo.
2. O enquadramento de Dong na sua atividade de criao, atravs do qual
vemos o pintor e as jovens modelos num espao fechado. Assim como na
primeira parte, o pintor fotografa as modelos agora no como auxiliar da sua
pintura, mas como uma forma de aproximao aos seus modelos, de
comunicao sem palavras. Pinta os corpos das modelos, umas em pose
enquanto esto a ser pintados, outras sentadas a descansar ou em p a cantar
canes romnticas. Contrariamente, primeira parte, no h comunicao
verbal entre o pintor e as modelos, porque Liu Xiadong no conhece a lngua
tailandesa. Tambm nada sabemos sobre elas. Quem so? O que pensam? O que
fazem? Apenas depreendemos que so mulheres que cuidam muito de si e do
corpo. Para qu? Para serem modelos? Acompanhantes de luxo? Prostitutas?
Ou seja, o corpo como forma de vida.
3. O olhar de Liu Xiadong nos momentos de pausa, em que deambula
pelas ruas da cidade, possibilita-nos um primeiro contacto com Banguecoque a
vrios nveis: econmico e social (trabalho, lazer, habitao, transportes
pblicos,) poder militar e religioso (imagem de um monge budista numa folha
294
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Editor.
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http://id.erudit.org/iderudit/13537ac. Acedido em 10 de maro de 2010.
Excerto de uma entrevista a Jia Zhang-Ke, conduzida por Jacques Kermabon, Marie-Claude
Loiselle et Cheng Xiaoxing, in 24 images, n 133, 2007, pp.34-40. Online
http://id.erudit.org/iderudit/13537ac. Acedido em 10 maro 2010.
296
297
Resumo: Nos ltimos anos, os jogos digitais tem se apresentado como um meio
com grande potencial comunicacional e expressivo contrariando a viso
tradicional que os consideram como uma mdia que deve ser usada apenas para
o entretenimento. Nos jogos independentes indie e jogos de arte gamearte
observamos maiores possibilidades de experimentao e inovao, o que
favorece uma mudana de paradigma tradicional. Dentro dos universos indie e
gamearte esto inseridos os jogos Flower e Journey que, atravs de interessantes
experimentaes, atingiram um grande sucesso comercial e de crtica, abrindo
uma nova fronteira para a rea de games e do modo como se deve encarar os
jogos digitais. O objetivo deste trabalho refletir sobre estas experincias
criativas evidenciando como elas trouxeram inovaes ao campo de
desenvolvimento dos jogos eletrnicos e como elas esto se destacando de
outras iniciativas realizadas nesta rea.
Palavras-chave: Expresso em jogos, Jogos digitais, Jogos independentes.
Contactos: [email protected] | [email protected]
Introduo
Muitas vezes, os jogos digitais so rejeitados como forma de arte. O
pesquisador e crtico James Newman (2004) traz tona a suposta trivialidade
dos jogos como um dos motivos para esta rejeio: so percebidos como meros
passatempos, sendo assim incapazes de carregar significados mais profundos e
1
simples
desenvolvimento
tecnolgico,
contribuindo
assim
para
limitados,
fora
do
mainstream
dominado
pelos
grandes
investigadas
duas
produes
desenvolvidas
pelo
estdio
299
300
uma harmonia entre os dois (rural e urbano) e este jogo muito sobre a
explorao esta harmonia. Porm, como esta experincia proporcionada?
Huizinga (2010, 4) afirma que: no jogo, existe alguma coisa em jogo que
transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido ao.
Todo jogo significa alguma coisa. Apoiando-se em Huizinga, Salen e
Zimmerman (2004, 46) defendem que o grande desafio na criao de um jogo
conseguir fazer com que o ato de jogar seja significativo para o jogador: Jogar
no algo que surge apenas da ao com o jogo, mas depende da maneira como
se interage com ele durante o ato de utiliz-lo. A ao de jogar emerge da
interao entre os jogadores e o sistema de jogo, assim como do contexto no
qual o jogo jogado.
Desta forma, temos que os significados do jogo emergem da relao jogojogador. Assim, podemos nos concentrar em interpretar o que EgenfeldtNielsen, Smith e Tosca (2008, 97) chamam de esttica do jogo digital, os
aspectos do jogo que so experimentados direta ou indiretamente pelo jogador.
Os autores dividem estes aspectos como trs: regras, nmero de jogadores, e
geografia (representao). Os trs aspectos esto ligados, mesmo que no
diretamente; por exemplo, a deciso de se desenvolver um jogo para apenas um
jogador far com que certas regras e representaes grficas sejam preferidas,
por se acreditar que estas funcionam melhor para um jogo single-player.
Do ponto de vista formal, as regras so a identidade de um jogo (Salen e
Zimmerman 2004). Elas estabelecem o protocolo atravs do qual o jogador
interagir com o jogo. Por nmero de jogadores, entende-se a quantidade de
jogadores que pode participar ativamente da experincia de jogo. J por
geografia (ou representao), entende-se a maneira na qual o mundo do jogo
apresentado para o usurio, por exemplo, os grficos e sons (Egenfeldt-Nielsen,
Smith e Tosca 2008).
Flower se destaca pela naturalidade na comunicao com o jogador, sendo
um de seus grandes diferenciais a simplicidade da interface: so pouqussimos
os textos presentes no jogo e as poucas instrues necessrias para a interao
so, em sua maioria, feitas atravs de imagens, como pode ser notado no menu
(Fig. 1).
301
Uma cutscene uma sequncia de imagens em um jogo eletrnico que o jogador no tem
domnio da ao. Em geral, so sequncias de imagens que apresentam aspectos narrativos do
jogo e interrompem a jogabilidade.
302
Fig. 2 - Flower.
O jogador comanda uma ptala movimentando o controle de seu console e,
ao se pressionar e segurar qualquer boto, uma rajada de vento acelera a
velocidade na qual a ptala flutua. Ao tocar nas flores, estas se abrem e liberam
mais uma ptala para o conjunto guiado pelo jogador. A rea a ser explorada
relativamente grande e limitada atravs de um recurso condizente com o
ambiente: caso o jogador tente prosseguir para uma rea fora da zona limite,
uma rajada de vento sopra na direo contrria e o coloca novamente dentro do
espao explorvel. Existem dois tipos de flores a serem tocadas: as facultativas
e as obrigatrias, destacadas atravs de um pequeno halo; apenas aps tocar
todas flores obrigatrias o jogador progride.
Os sons tambm realizam um papel primordial no jogo: a msica cria a
ambincia para o espao vivido pelo jogador e, a cada flor tocada, uma nota
musical ouvida. Ao fazer todas as flores obrigatrias desabrocharem em
determinada rea da fase, surge uma pequena cena que mostra a volta da vida
ao ambiente, como a mudana da cor do gramado da regio para uma cor mais
viva, por exemplo.
No fim de cada fase uma ao maior (apresentada por meio de uma
cutscene) ocorre no espao, indicando que ele foi revitalizado. Aps esta cena,
o jogador direcionado ao menu inicial, onde v a flor selecionada inicialmente
desabrochar.
303
Existe ainda um fio narrativo permeando as fases, pois o jogador passa por
diferentes ambientes, fazendo com que jogador sinta-se realizando uma grande
ao dividida em atos. O tamanho do jogo tambm facilita esta sensao: Flower
um jogo curto se comparado a outros jogos para consoles, podendo promover
uma experincia completa em uma nica sesso de jogo.
A opo por realizar uma obra para um nico jogador favorece uma maior
ligao do fruidor com o ambiente, j que as alteraes do espao estaro
diretamente ligadas s suas aes. Desta maneira, fica clara a existncia de duas
maneiras de se explorar o jogo: o jogador pode agir para cumprir seu objetivo,
fazendo com que as flores desabrochem para assim concluir o nvel, ou
explorando o espao apenas pela experincia esttica.
Journey
O outro jogo analisado Journey. A tela a seguir (Fig. 3) sua
apresentao. Nele o jogador tem como avatar um ser vestido de vermelho, que
lembra um humanoide, em um grande deserto. Aps alguns passos, o jogador
confrontado com esta cena: o deserto e, bem ao fundo, a grande montanha com
o cume iluminado; o objetivo, portanto, cumprir sua jornada at o cume.
primeira vista, no parece que ele seja um jogo inovador; contudo, deve-se
imergir no universo do jogo para compreend-lo mais a fundo.
Fig. 3 - Journey.
Assim como nas outras obras da Thatgamecompany, Journey tambm
baseado no sentimento desejado para o jogador: neste caso, Chen (2012b)
afirma que optaram por estabelecer um contraponto quilo que o padro
304
encontrado em jogos multiplayer online, onde, em geral, os jogos fazem com que
os jogadores assumam posies hostis.
Assim, o desejo foi criar uma experincia online onde os jogadores fossem
amistosos, bem como incentivar a criao de um vnculo emocional entre os
participantes. Chen (2012b) afirma tambm que uma das inspiraes foi a
jornada do heri,6 uma estrutura narrativa apresentada por Joseph Campbell
(1992). Ela pode ser descrita como os nove passos que Campbell identificou
como comuns a vrios heris mticos durante suas jornadas mitolgicas em
diferentes culturas.
Esta estrutura no exclusividade das histrias clssicas, j que so
facilmente encontradas em filmes hollywoodianos, por exemplo (EgenfeldtNielsen, Smith e Tosca 2008). A influncia do trabalho de Campbell fez com
que, nas palavras de Chen (2012b), o jogo fosse muitas vezes associado a
religies. Segundo o criador, isso ocorre porque vrias religies dividem uma
estrutura comum semelhante jornada do heri.
Pode-se afirmar que esta religiosidade reforada pelo ambiente no qual o
jogo se passa: os cenrios levam o jogador a um mundo que invoca dualidades
entre sombrio e sereno, conhecido e desconhecido. Chen (2012b) afirma que
este mundo emergiu do desejo da equipe de construir algo extico, mas
familiar; um espao aliengena, com uma civilizao antiga.
Assim como Flower, Journey tambm prima pela simplicidade de
comandos e pela ausncia de textos: as instrues so passadas atravs de
imagens e a narrativa contada atravs de cutscenes. Um diferencial entre eles
o uso de diferentes poticas durante os pequenos filmes que contam a
histria: muitas vezes, se recorre a uma esttica que lembra mosaicos ou os
hierglifos egpcios. Outra caracterstica comum ao jogo anteriormente
analisado a trilha sonora: assim como em Flower, o responsvel Austin
Wintory, realizador que fez com que Journey fosse o primeiro jogo digital a ser
indicado ao Grammy de Melhor Trilha (Pinchefsky 2012).
Contudo, o grande diferencial de Journey est realmente na experincia
multijogador: ainda que jogar sozinho seja uma experincia interessante,
dividindo a sesso do jogo com outro usurio que a obra leva o jogador a
refletir. Jogando online, ele pode encontrar outra pessoa que est no mesmo
6
305
306
309
311
Em 2004, foi publicado um artigo, em ingls na revista cientifica Noise & Health, de Nuno A.A.
Castelo Branco e Mariana Alves Pereira sobre a doena vibroacstica donde ressalto o seguinte
excerto em portugus: Em 1987, efetuou-se a primeira autpsia de um doente falecido com
DVA [doena vibro acstica]. O alcance das leses induzidas pela exposio ao RBF [ruido de
baixa frequncia] era espantoso e a informao colhida condiciona, ainda hoje, muitos projetos
de investigao em curso. Em 1992, iniciaram-se os estudos em modelos animais expostos a
RBF numa tentativa de obter conhecimentos mais profundos sobre este vetor acstico da
doena e mais adiante A legislao referente ao rudo, presentemente adoptada, inadequada
e um poderoso travo ao avano cientfico. A DVA nunca poder ser reconhecida como uma
patologia ambiental e ocupacional sem que o agente causador o RBF seja tambm
reconhecido e adequadamente avaliado (2004, 3).
4
O fatalismo acstico um corpo sonoro do tipo orquestral mas catico, horrendo, no o
resultado de um s ou de um grupo de causadores sonoros. Mas, como na sinfonia da orquestra,
fruto de todos os produtores acsticos em simultneo. Esta espcie de nevoeiro sonoro contm
todas as frequncias do espetro acstico audvel incluindo a RBF.O podo fatalismo deve-se ao
facto de ningum se sentir responsvel, muito pelo contrrio acha-se que o melhor a
adaptao a este som, intruso e nevoeirento que penetra incomodando, em quase todos os lados
da cidade, ningum considera que o causou, ningum o deseja e todos o expulsariam se
pudessem, mas, de um modo geral, todos podem muito pouco contra ele, logo a designao de
fatalismo acstico.
5
Esta conveno pretende, apenas, no mbito estrito das metodologias da antropologia visual,
conciliar as limitaes sistmicas da audio humana com a audio digital, no seio da escuta
com o silncio convencional da visualizao dos filme, e que decorre de documentos
registados, montados e editados com discriminao por frequncias e intensidades, aps
gravados criteriosamente com gravadores digitais da atualidade, e com os quais possvel dar a
entender os sons fundamentais de um lugar urbano, sem a presena oclusiva do fatalismo
acstico. A conveno da audio digital, definida nos termos desta tese, consubstancia-se
sempre num produto multimdia e que decorre sempre de um estudo antropolgico, como um
documentrio por exemplo.
312
Filme 02
2007
Filme 03
Filme 04
Filme 05
Filme 06
Filme 07
Filme 08
Filme 09
Filme 10
Filme 11
Filme 12
Filme 13
Filme 14
Me e
Carlitos
porta de
casa.
00:02:35
00:02:51
Carlitos na
rua em
frente
casa.
00:02:51
00:03:19
Carlitos na
rua
Me chama o
Carlitos, fala com
ele e entrega-lhe
os livros e
cadernos
esquecidos em
casa.
Carlitos atravessa
a estrada saltando
da frente dos
carros.
Presente
Caminha
distrado pelo
passeio, choca
com o polcia e
depois com o
candeeiro.
Presente
Presente
Som
Anotaes
A voz da me e a
voz do Carlitos, o
som de um boneco
de barro que parte
quando cai ao
cho.
A voz da me.
Em casa no se
ouvem os sons
da rua.
O som do motor
de uma camioneta
de carga com
reboque e o de um
automvel que
buzina.
Ouvem-se a
aproximar os
gritos de um grupo
de midos que vai
para a escola e
depois j vista
Ouvem-se
apenas estes dois
veculos.
No se ouvem
outros sons para
alm da msica
do filme.
No se ouvem
outros sons.
313
00:03:19
00:03:41
A cena
passa para
dentro da
loja.
Junta-se aos
companhei-ros
que correm em
dire-o escola.
O lojista de
dentro da loja fica
a ver os
movimentos dos
midos na rua.
Ouve-se o som da
queda sbita de
caixas e objetos no
cho da loja; a voz
do lojista e a do
empregado.
Na loja no se
ouve o som da
rua.
314
dos cavalos a trote pelas ruas, de algum que se desloca montado, ou o som da
patrulha dos guardas-republicanos a cavalo, ou a carrocinha de algum vendedor
ambulante apregoando azeite ou recolhendo peles de coelho, preges ao longe
ou mais perto com vozes fortes e roucas, ou agudas e intensas, mes berrando e
ralhando pelas tropelias dos midos, ocasionalmente gargalhadas nos passeios,
exclamaes ou sons de irritao por quem passa na rua aos magotes, ou o
rumorejar prprio das conversas amenas e calmas de transeuntes que passam
tranquilamente.
porta de estabelecimentos de caldeireiros, latoeiros, funileiros, ouvia-se
o martelar da chapa nas bigornas que, com arte e destreza, faziam o metal
evoluir para utenslios da vida diria8. porta das tavernas, as conhecidas
discusses e algazarras dos companheiros de Baco. O trautear ocasional de
canes por algum em atividade tranquilo, me chamando pelos midos,
crianas gritando ou chorando alto, vizinhos falando da varanda ou da janela
para a rua, ou ralhando...
Junto ao rio, o som dos barcos a vapor, o cortar da gua pelos remos, os
gritos dos trabalhadores fluviais, um ou outro prego, o som de instrumentos
de trabalho, martelos machadas, serras, formes, galgas, plainas, garlopas ou
alavancas etc., nas mos dos trabalhadores, manuseamento de ps, baldes,
caldeiros, carrinhos de mo, pranchas de madeira, cestos, caixotes. As
correrias, a onda sonora exclamativa dos sobressaltos ou a das exclamaes de
assombro... a inquietude dos animais atados s carroas esperando as cargas,
abanando os arreios, as ordens gritadas dos capatazes dos carros pesados de
fretes. O chiar da madeira dos barcos brunindo com as pranchas de passagem
roando umas nas outras nas amuradas, os sons latidos dos motores dos
motores, os sons das gaivotas, os sibilos do vento, as chuvaradas, a tempestade,
o vento nas enxrcias dos grandes mastros, e ao fim do dia, as vassouras e os
carrinhos de mo cuidando dos lixos em muitos lugares da cidade.
Muito raramente, l de quando em vez, um automvel, uma camioneta ou
um avio, passava troando a atmosfera, reduzindo a silncio os restantes com o
ronco potente dos seus motores.
8
No Porto, bem conhecida a rua dos Caldeireiros, com uma sonoridade muito prpria, em
que os caldeireiros, os homens que faziam os objetos de zinco, e quando mais velhos, regra
geral mais surdos, devido alta estridncia sonora contnua a que ficavam expostos durante
muitos dias a fios, enchiam a rua com as caractersticas marteladas nas bigornas ao fazer a
moldagem dos metais.
316
320
321
Referncias bibliogrficas
Almeida, Antnio Vitorino de. 1987. O Som da Cidade. Povos e Culturas
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de janeiro de 2012.
322
323
HISTRIA E NAO
de
montagem,
sonorizao
locuo
do
filme
um
326
328
minuciosamente,
at
exausto,
a suposta modernidade
331
Assistncia Social
A assistncia social era vasta e era destinada tanto comunidade branca
como negra, e distribua-se por vrias reas de atuao: educao, religio,
alimentao, habitao, sade e lazer. Criaram-se escolas, no s de trabalho
especializado mas tambm de ensino primrio, como a Escola Oficial de Ensino
Primrio criada no Dundo em 1936 e destinadas aos brancos, e a Escola do
Indgena criada em 1942. No entanto, o que o filme mostra a convivncia
entre crianas brancas e negras na escola, o que revela explicitamente o tom
propagandstico da imagem. No mbito da assistncia religiosa, foram criadas
em 1949 as Escolas-Catequese destinadas aos indgenas. Tambm nesse mbito
se realizavam casamentos entre assimilados. A rea da alimentao surge
ilustrada pela construo dos Silos ou armazns de armazenamento de gneros
alimentares, como tambm pelos Refeitrios que serviam os trabalhadores nas
minas (Fig. 4).
Para
assistir
na
habitao,
construam-se
aldeamentos
para
os
332
Para Concluir
O processo de ocupao efetiva dos espaos alm-mar e a imposio de
uma ordem colonial recorreu a instrumentos de controlo das populaes e dos
espaos dominados (Haedrick 1981), e que eram de ndole administrativo,
333
Referncias bibliogrficas
Almeida, Miguel Vale de. 2000. Tristes Trpicos: razes e ramificaes
dos discursos luso-tropicalistas. In Um Mar da Cor da Terra: Raa, Cultura e
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http://www.ces.uc.pt/e-cadernos/media/ecadernos7/
04%20%20Paula%20Meneses%2023_06.pdf. Acedido em abril de 2013.
334
335
CONTORNOS DA NAO
EM CINEJORNAIS BRASILEIROS (1956-1961)
Rodrigo Archangelo1
Resumo: Discutimos as representaes da nao brasileira em duas sries de
cinejornais exibidas entre 1956 e 1961, perodo que se situa num intervalo
democrtico da histria recente do Brasil, que se estende do ps-guerra ao
golpe civil-militar de 1964. Em foco, o material flmico e no flmico das sries
Notcias da Semana e Atualidades Atlntida. Pretende-se o enfoque sobre como
suas notcias, sobretudo as evidentemente polticas, veicularam uma imagem de
Brasil, disseminando um discurso conservador e autoritrio, ainda que em
nome de uma sociedade que avanava cultural e economicamente. Produzidos
pelo Grupo Severiano Ribeiro, que possua uma ampla rede exibidora, esses
cinejornais demonstram como as aproximaes do campo cinematogrfico com
os campos poltico, econmico, jornalstico e cultural evidenciam as ligaes e
interesses por detrs do produto final visto nas telas, tanto em relao aos
eventos representados como na escolha e no vis dos temas abordados. O
discurso de entidades civis, imprensa, grupos econmicos, industriais e
polticos, com a circulao de ideias sobre os usos, costumes e comportamentos
para uma sociedade moderna, exibidos semanalmente nesses cinejornais,
oferecem um interessante panorama audiovisual para uma abordagem histrica
perodo.
Palavras-chaves: Cinejornal, Poltica, Histria do Brasil, Grupo Severiano
Ribeiro.
Contacto: [email protected]
perodos
histricos.
Embora
apresentem
imagens
que
Dentre inmeras obras, sugerimos: Fielding, Raymond. 2011. The American Newsreel: A
Complete History, 1911-1967. Jefferon NC: McFarland; Tranche, Rafael and Vicente SnchezBiosca. 2001. NO-DO: El Tiempo y la Memoria. Madrid: Ctedra/Filmoteca Espaola; Sainati,
Augusto, ed. 2001. La Settimana Incom cinegiornali e informazione negli anni 50. Torino:
Edizione Lindau; Lagny, Michle. 2001. Il formato dei cinegiornali francesi degli anni 50: un
problema sottovalutado In Sainati, Augusto, op. cit., pp. 57-70. Existem sites que oferecem
imagens e informaes sobre cinejornais, como, por exemplo: o Archivio Storico Luce. 2013.
Acedido em 15 de maro. http://www.archivioluce.com/archivio/. Filmoteca Espaola. 2013.
Acedido em 20 de maro. http://www.rtve.es/filmoteca/no-do/; Arquivo Nacional. 2013.
Comit
Gestor
da
Internet
no
Brasil.
Acedido
em
26
de
abril.
http://200.160.7.139/portal/BuscaRapida.do. Cinemateca Brasileira. 2013. Filmografia
Brasileira. Acedido em 01 de fevereiro. http://www.cinemateca.gov.br/. Tambm
recomendamos a leitura do dossi da FIAF (Fdration Internationale des Archives du Film)
sobre cinejornais em arquivos pelo mundo: Smither, Roger and Wolfgang Klaue. 1998.
Newsreels in Film Archive: a Survey Based on the FIAF Newsreels Symposium. Wiltshire: Flicks
Books.
3
Entre algumas pesquisas centradas em cinejornais das dcadas de 1950 e 1960, citamos o
trabalho de Souza, Jos Incio de Melo. 1994. Eleies e Cinema Brasileiro: do Fsforo
Eleitoral aos Santinhos Eletrnicos. Revista da USP n 22 Dossi Futebol. So Paulo: USP,
jun/ago, pp. 155-165; Archangelo, Rodrigo. 2007. Um Bandeirante nas elas de So Paulo o
discurso adhemarista em cinejornais (1947-1956). Dissertao de Mestrado, Universidade de So
Paulo; Siqueira, Daniela Giovana. 2007. Cenas de um Horizonte Poltico: o Ano de 1963 e a
Produo de Cinejornais a Servio de uma Administrao Municipal na Capital de Minas Gerais.
Dissertao de Mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais.
4
Em 1986, a sobrevivncia dos cinejornais j estava comprometida, sobretudo aps a resoluo
de 01/02/1985 do Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), que vetou a propaganda nos
complementos nacionais.
5
Os apontamentos sobre o tema neste artigo so as primeiras concluses da pesquisa de
doutorado do autor, intitulada Imagens da Nao a representao da poltica em cinejornais
337
Rodrigo Archangelo
338
sempre descoladas do conjunto das sries originais. Essa trajetria se faz notar
em algumas colees de cinejornais ainda existentes em arquivos brasileiros, e
que tristemente representam uma pequena parte do que foi produzido. Neste
quadro esto sries que se mantiveram mais coesas ao longo do tempo,
sobretudo aquelas realizadas pelo governo federal e que, desta forma,
carregaram o rtulo de propagandas oficiais7; algumas poucas colees privadas
que ainda repousam em alguma cinemateca ou museu; e os cinejornais
provenientes de grandes companhias produtoras, que no sofreram completa
desagregao devido importncia econmica que a explorao comercial
continuou a propiciar aos seus realizadores ou detentores. Neste ltimo caso,
processos de confeco mais estruturados tambm preservaram seus
documentos no flmicos, que hoje podem subsidiar tanto pesquisas acadmicas
quanto aes de restauro, preservao e difuso, como o caso do ATA e do
NDS.
Entretanto, a leitura de uma documentao correlata apenas o primeiro
passo para destilar informaes dos cinejornais e compor um cenrio passvel
de questionamentos histricos, o que foi necessrio recomposio da seriao
das notcias do ATA e do NDS, edio por edio, considerando toda a ordem
de cuidados na lida com uma fonte cujo valor de pesquisa recai na sua
qualidade de ser seriada (Castelnuovo 2006, 193). Com a investigao sobre
seus documentos sobretudo com os roteiros das locues tambm foi
possvel perceber dinmicas da produo (como, por exemplo, o reuso de
imagens ou de notcias inteiras) e o grau de investimento na realizao desses
filmes pelo seu realizador. Neste caso, cabe mencionar que os cinejornais ATA
e NDS perpassaram toda a cadeia de atividades do Grupo Severiano Ribeiro:
suas imagens eram captadas pelos mesmos cinegrafistas regionalmente
espalhados pelo Brasil, como indicam os roteiros das locues; foram revelados
e montados em laboratrio prprio, a Cinegrfica So Luiz; eram distribudos
como parte dos programas oferecidos pela sua distribuidora, a Unio
Cinematogrfica Brasileira; e foram exibidos nas salas de cinemas do Grupo,
espalhadas pelo Rio de Janeiro e em outras capitais brasileiras. Terminada a
investida sobre esses documentos, e sistematizadas suas informaes em base
7
Como, por exemplo, o Cine Jornal Brasileiro (1938-1946) produzido principalmente pelo
Departamento de Imprensa e Propaganda; e o Cine Jornal Informativo (1946-1969) produzido
pela Agncia Nacional.
339
Rodrigo Archangelo
de dados, lidamos com um total de 170 edies do ATA e 313 do NDS, entre os
anos de 1956 e 1961, o que significa um pouco mais de 2400 notcias,
considerando a mdia de cinco notcias em cada uma das cinquenta e duas
edies realizadas por ano. Obviamente, a documentao no flmica no
substitui as imagens em movimento dos cinejornais, mas ela sua extenso,
resultado do seu processo de confeco e por isso complementar ao prprio
artefato flmico. No estudo que segue, esses papis foram fundamentais para
vislumbrar a seriao nos cinejornais, o que seria impossvel s com as imagens
cinematogrficas sobreviventes.
Em cinco anos de notcias remontadas pela documentao no flmica
do ATA e o NDS, partimos das passagens dos presidentes Juscelino Kubitschek,
Jnio Quadros e Joo Goulart8. Nesta agenda poltica, destacam-se notcias
sobre, por exemplo, a tentativa de impugnao da eleio de Kubitschek9 e suas
viagens internacionais pela Europa, Estados Unidos e Amrica-Latina10; um pas
que buscava sua independncia econmica e realizava importantes obras de
infraestrutura e construa a nova capital Braslia11, num mesmo contexto em
que angariava notoriedade, por exemplo, com o campeonato mundial do
futebol em 195812; e uma nao com claros posicionamentos pr-bloco
capitalista nas participaes da ONU e em fruns internacionais13. Ainda sobre
os presidentes, a doutrina Kubitschek com o mesmo sendo retratado como
lder da Operao Pan-americana em prol dos pases latino-americanos14. As
manifestaes do estilo personalista de Quadros e os enfrentamentos durante o
seu curto mandato15. E a soluo para a crise de agosto de 1961, com a
instaurao de um sistema de governo presidencialista-parlamentarista,
resultado da grande tenso poltica ocorrida na posse de Goulart16.
Nessa recomposio uma agenda poltica torna-se evidente. Embora isso
no seja uma novidade em cinejornais, ela importante para a anlise de um
A saber, o governo de Juscelino Kubitschek entre 1956 e 1960, os sete meses de mandato de
Jnio Quadros em 1961, e os primeiros meses de Joo Goulart aps sua posse, em setembro de
1961.
9
Notcias da Semana. N.55X49; Atualidades Atlntida. N.56X02.
10
Notcias da Semana. N.56X03; N.56X04; N.56X09; N.56X10; N.56X32.
11
Notcias da Semana. N.57X42; N.58X27; N.58X43; Atualidades Atlntida. N.60X18.
12
Notcias da Semana. N.58X28.
13
Notcias da Semana. N.60X41; N.60X43; N.61X46.
14
Notcias da Semana. N.58X26; N.58X32; N.61X13.
15
Notcias da Semana. N.61X09; N.61X14; N.61X30.
16
Notcias da Semana. N.61X38.
340
19
17
341
Rodrigo Archangelo
parque
industrial21;
implantao
de
um
extenso
plano
virio22;
originalmente propostos por Paulo Emlio Salles Gomes juntamente com a exaltao das
belezas naturais e culturais do Brasil, a ideia do bero esplndido. Cf. (Gomes 1986).
20
Notcias da Semana. N.56X21; N.56X25; N.57X21; N.57X24; N.57X26; N.57X44; N.57X31;
N.57X39; N.57X49; N.57X53; N.58X02; N.58X22; N.58X23; N.58X36; N.58X38; N.58X44;
N.59X20; N.59X28; N.59X30; N.59X49; N.60X07; N.60X12; N.60X34; N.60X41; N.61X08;
N.61X29; N.61X36; N.61X43; N.61X49; N.61X50.
21
Notcias da Semana. N.56X20 (inaugurao de fbrica de mquina de costuras); N.57X07
(melhoramentos siderrgicos); N.59X28 (fbrica da Mercedes Benz); N.58X04 (indstria de
342
343
Rodrigo Archangelo
344
protagonismo do povo, das massas por assim dizer, dada as poucas notcias
sobre os movimentos de greve quando noticiados, alvos de crticas34 e
praticamente nenhuma referncia a sindicatos e associaes trabalhistas35,
fossem urbanas ou rurais. Por outro lado, a nfase recaiu sobre as iniciativas
dos poderes pblicos em aes conjuntas com empresrios, estes sim
representados como os promotores do bem-estar do povo, com melhoramentos
em regies como o Nordeste e a construo de indstrias para o progresso
brasileiro36.
Sistematizadas as informaes colhidas em pesquisa com a documentao
correlata, a anlise do material flmico a etapa mais importante na
investigao destes cinejornais. Em nosso trabalho, tal importncia foi
percebida logo nos primeiros visionamentos e cruzamentos das informaes
extradas dos papis e das pelculas. No exemplo a seguir, alguns
questionamentos apontados em relao ao alijamento do povo no ritual do
poder ficam evidentes, quando analisados dentro dos aspectos formais de um
simples registro.
No governo Kubitschek, o Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio j
havia angariado razovel interlocuo com a sociedade, sobretudo a classe
trabalhadora, haja vista a herana poltica varguista do seu trabalhismo, corrente
poltica nacionalmente representada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
sigla do ento vice-presidente Joo Goulart que fora ministro da mesma pasta
entre 1953 e 1954. Em janeiro de 1956, o ento senador Jos Parsifal Barroso
(do PTB) assumiu o Ministrio at deix-lo em junho de 1958, para candidatarse ao governo do Estado do Cear. Em resumo, sua atuao foi marcada pelo
afastamento da participao poltica da classe operria em prol da
governabilidade37, o que talvez seja um indicador da ausncia de manifestaes
trabalhistas para alm das comemoraes do Primeiro de Maio mostradas no
candango, que, ento, poder vencer, facilmente, as distncias da metrpole que ele ergueu
com seus bravos companheiros. Trata-se de um reconhecimento a todos os candangos que
ajudaram a erguer Braslia, conclui a notcia.
34
Notcias da Semana. N.57X29; N.58X24; N.58X48; N.59X23; N.59X51; N.61X25; N.61X43;
61X44.
35
Exceo feita s comemoraes do Primeiro de Maio, cuja locuo aponta as conhecidas
cerimnias, em estdios de futebol, promovidas pelo poder pblico: Notcias da Semana.
N.56X20; N.57X20; N.58X19; N.59X19; N.61X19.
36
Notcias da Semana. N.57X07; N.59X08; N.59X18, N.60X40; N.60X42; N.61X13; N.61X27.
37
Em outras palavras, para compor com as foras mais conservadoras da base do governo
Kubitschek, representadas no na sigla PSD (Partido Social Democrtico), partido do prprio
presidente da Repblica. Cf. (Abreu 2001, 576-577).
345
Rodrigo Archangelo
NDS e no ATA. Por outro lado, Barroso figurou com frequncia nos cinejornais
do Grupo Severiano Ribeiro38, o que continuou quando eleito para comandar o
Estado cearense. Durante a solenidade de sua posse, realizada na capital
Fortaleza, um curto registro deste evento parece corroborar o no
protagonismo da massa, do povo brasileiro, num evento pblico. Em oito
planos-sequncias da sexta notcia de uma edio do ATA, nota-se a segregao
empreendida na topografia visual do registro cinematogrfico39.
Fig. 1 - Em espao
aberto, a multido
captada
num
movimento
em
panormica
que
sugere
a
participao de mais
pessoas para alm
do que se v. Logo
no incio da notcia o
registro estabelece a
presena
de
homens, mulheres e
crianas. Ou seja, o
povo est presente
no evento pblico.
Fig.
2 Num
ambiente restrito ao
povo
massa,
ocupado por pessoas
(apenas
homens)
sugestivamente mais
prximas aos crculos
polticos, Barroso l
seu
discurso.
Amparado
por
microfones, o novo
lder cearense fala
aos seus pares, que o
assistem no ritual
poltico da posse.
38
346
demarcao
dos
papis na mise-enscne poltica,
seguida por outra: o
povo, novamente do
lado fora.
Fig. 4 - Enquanto a
massa
aparece
segregada dos outros
espaos, o antigo
ministro do Trabalho,
de
um
partido
trabalhista,
agora
como
governador
divide o espao fsico
com os referentes do
poder civil e militar, e
no com os da classe
trabalhadora, ou do
prprio
povo
cearense.
Rodrigo Archangelo
Nas duas ltimas sequncias, Barroso mostrado em plano geral fixo passando
em revista um peloto perfilado (fig. 4) e, por fim, cercado por homens com
microfones.
Mais que uma breve cobertura da posse de um governador, os dispositivos
cinematogrficos utilizados, sobretudo a montagem e os enquadramentos de
cmera, demonstram a distncia do poder poltico em relao massa. Ainda
mais quando se trata de algum que esteve, recentemente, na conduo do
Ministrio do Trabalho o que sugere, no limite, o prprio distanciamento do
governo com o trabalhador. H o povo (no caso especfico da notcia, o
cearense), mas ele no divide o mesmo espao que o poltico, no mostrado
em primeiro plano tampouco protagoniza uma assistncia direta ao novo lder.
Fisicamente, Barroso assediado por outros que, imageticamente, representam
instncias do poder civil e militar, e no a massa. Para este contingente, as
panormicas em espao segregado j cumpre o papel na composio de um
ritual do poder. Assim, o povo cearense presente menos que coadjuvante,
pois no toma parte na festividade pblica a no ser como um adorno
massificado na representao dos posicionamentos polticos e sociais ali
mostrados.
Mesmo numa pesquisa em andamento, estes apontamentos indicam, com
segurana, que esses cinejornais carregam uma seiva histrica submersa na
superficialidade do registro do poder. Extra-la exige seguidos visionamentos
das imagens em movimento, assim como atentas leituras dos seus documentos
correlatos (Farge 2009, 35-37, 93). E para compreender um recorte temporal
noticiado por uma ou mais sries de cinejornal, preciso indaga-lo com
interesse, traduzir sua alteridade e recompor a trama dos significados
socialmente
estabelecidos,
despindo-os
de
uma
memria
histrica
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349
Introduo
A instituio da censura e suas estratgias e prticas visam em todas as
pocas combater e restringir o contgio das ideias consideradas perigosas
para a manuteno de um certo poder. A propaganda, pelo outro lado, procura
1
Por deciso pessoal, o autor do texto no escreve segundo o novo Acordo Ortogrfico.
Leonor Areal realizou diversos documentrios, entre os quais Fora da Lei (2006), premiado no
Doclisboa. Publicou Cinema Portugus - Um pas imaginado (tese de doutoramento na Faculdade
de Cincias Sociais e Humanas, UNL, 2009). Actualmente faz investigao sobre censura no
cinema portugus.
2
Areal, Leonor. 2014. A censura ao cinema contra o contgio das ideias. In Atas do III Encontro
Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Srgio Dias Branco, 350-359. Coimbra: AIM. ISBN
978-989-98215-1-4.
representaes
partilhadas,
difundidas
em
permanente
transformao.
Este estudo insere-se numa investigao mais abrangente sobre a actuao
da Comisso de Censura aos Espectculos, feita com base nas suas actas e
relatrios existentes na Torre do Tombo3 e que inclui diferentes vertentes: a) a
questo legal e processual ou os mtodos da censura; b) os contedos
censurados e as questes ideolgicas; c) as consequncias a nvel do cinema
portugus especificamente; d) os objectivos, motivaes e causas, rea onde
este artigo se enquadra.
O contgio das ideias
A expresso contgio das ideias provm de Dan Sperber4, que o explica
de forma muito simples e clara:
Certas ideias as crenas religiosas, as receitas de cozinha, ou
as hipteses cientficas, por exemplo propagam-se to bem que, sob
diferentes verses, invadem populaes inteiras durante muito
tempo. A cultura feita em primeiro lugar dessas ideias contagiosas
(Sperber 1996, 8)5.
3
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Alis, o termo viral muito apropriadamente usado hoje para designar as ideias que se
espalham rapidamente na Internet, em particular pelo actual Facebook. Note-se porm que a
empresa Facebook j comeou a delinear estratgias censurantes, usando meios automticos
para reduzir o possvel efeito de contgio por exemplo, confinar as interaces dos
utilizadores a um crculo restrito de interlocutores (amigos) de modo a impedir a propagao
de informao; naturalmente, essa tcnica de delimitao pode ser defendida como uma
medida de combate entropia informativa do sistema; a questo da censura pe-se no exacta
medida em que cada indivduo tem ou no a possibilidade de definir as suas preferncias.
352
A censura ao cinema
Comisso de Censura aos Espectculos (CCE)7 no incomodava tanto a
existncia de ideias perigosas quanto a sua difuso. Logo em 1927, a lei de
censura interdita a exibio de fitas perniciosas para a educao do povo, de
incitamento ao crime, atentatrias da moral e do regime poltico e social
vigorantes8, designadamente: maus tratos a mulheres, torturas a homens e
animais, execues capitais, assassnios, casas de prostituio, a glorificao do
crime, etc.
Este receio alarga-se depois a outros costumes considerados imorais,
como o adultrio ou os beijos demasiado prolongados ou sensuais, bem como a
cenas de jogo ou de vcio: incide o critrio, nas suas linhas gerais, no combate
ao vcio do jogo e omisso de cenas que reproduzam o obcecado ambiente de
casinos ou congneres (Acta s.n. da CECE de 14-12-1966).
Dos grupos sociais susceptveis influncia das ideias prejudiciais,
destaca-se a juventude, cuja receptividade s ideias subversivas vista como
problema:
O problema dos filmes sobre delinquncia juvenil, sobretudo
daqueles que descrevem e pormenorizam cenas de turbulncia,
rebeldia, estupefacientes, relaes amorosas imorais ou amorais,
crimes, etc., considera-os o Governo como uma perigosa escola que
muito pode contribuir para comportamentos colectivos ou de grupo
que so uma das caractersticas de certa delinquncia juvenil dos
nossos dias. Ainda que Portugal deva considerar-se imune deste mal,
convm estar precavido, tomando preventivamente as medidas
aconselhveis. As principais delas tero de ser a proibio de
noticirio da imprensa dando relevo, em determinados termos, a
estes comportamentos e a exibio de filmes de tal natureza. Nestas
condies, chama muito particularmente a ateno da Comisso para
este assunto, no devendo nenhum destes filmes ser autorizado sem
que previamente o caso seja examinado e ponderado em sesso.
Quanto a filmes j em exibio, devem desde j considerar-se
proibidos os seguintes: Uma Histria Confidencial (High Shool
Confidential); Sementes de Violncia (Blackboard Jungle);
Juventude em Perigo (Crime in the Streets); Antes do Dilvio
(Avant le Dluge); Os Semi-Homens (Die Holbstrarken); Fria de
Viver (Rebel Without a Cause) (Quesada Pastor, presidente da CECE,
apud Acta n 113 de 29-9-1959).
7
8
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podemos ver neste outro exemplo, onde o presidente da CECE comenta o filme
Il Generale della Rovere10:
Pde assim verificar que, em seu parecer, se trata de um filme
integrado no mesmo esprito de dio e de reivindita que inspirou
muitos outros filmes de guerra. Volta este filme a ocupar-se com
demasiado realismo das torturas, fuzilamentos e outras atrocidades
atribudas aos alemes durante a guerra. No lhe falta tambm o
renascimento do problema do racismo nas suas relaes com o
judasmo em condies de fazer reviver uma questo morta e
perturbadora das boas relaes polticas dos pases ocidentais, agora
congraados.
Acresce que, precisamente neste momento, foi lanada no
mundo, por inspirao comunista, uma campanha fazendo crer que
h novamente perigo de renascimento de dios e perseguies
fascistas contra os judeus, o que no passa de um mais que suspeito
manejo poltico. Ora este filme, com os seus judeus mrtires,
morrendo perseguidos e torturados pelos alemes e entoando
impressionantemente rezas e hinos hebraicos, parece servir
precisamente os desgnios desta campanha inconveniente. Tem sido
de resto orientao da Comisso, de h muito estabelecida, no
autorizar filmes desta natureza. Parece-lhe que as circunstncias
presentes e que acaba de referir, aconselham a que se mantenha esta
orientao (Acta n 131 da CECE de 2-2-1960).
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debandada, onde no h actos hericos, nem sequer esprito de
combatentes, e onde, ao contrrio disso, surgem permanentemente
imagens de soldados impotentes perante o inimigo, alm de uma ou
outra fala desagradvel (Caetano de Carvalho apud Acta s. n. da
CECE de 15-12-1965).
Filme de Henri Verneuil (1964) que vem a estrear (salvo erro) com o ttulo Os Longos Dias
de Junho, em 11 de Maro de 1966.
13
O Fundo do Cinema Nacional criado em 1948 pela Lei n 2027 de 18 de Fevereiro, que
define o regime de proteco ao cinema nacional, depois regulamentada pelos decretos-lei ns
37369 e 37370 de 11 de Abril de 1969; o Fundo era gerido pelo Conselho do Cinema, presidido
pelo Secretrio Nacional da Informao, Cultura Popular e Turismo (SNICPT), tendo uma
356
357
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17
358
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Fig 1 - Capas das revistas Film, Films and Filming e Sight and Sound
Obviamente, a sua recepo em Portugal antes do 25 de Abril ou na
Alemanha dividida do ps-guerra foi mais complicada.
S para dar um exemplo: The Strawberry Statement, de Stuart Hagmann
(1970), um filme relativamente desconhecido em Portugal, no entrou no
circuito comercial na Alemanha ocidental at 1976, mas foi um dos poucos
filmes norte-americanos divulgados e apreciados pela crtica marxista da RDA.
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Ich glaube allerdings, da Versuche, politischen Protest mit der Popular Music, also der
Unterhaltungsmusik zusammenzubringen, deshalb zum Scheitern verurteilt sind, weil die
ganze Sphre der Unterhaltungsmusik - auch wo sie irgendwie modernistisch sich aufputzt - so
mit dem Warencharakter, mit dem Amsement, mit dem Schielen nach dem Konsum
verbunden ist, da also Versuche, dem eine vernderte Funktion zu geben, ganz uerlich
bleiben. Wenn also dann Irgendjemand sich hinstellt und auf eine im Grunde doch
schnulzenhafte Musik irgendwelche Dinge darber singt, da Vietnam nicht zu ertragen sei,
dann finde ich, da gerade dieser Song nicht zu ertragen ist. Weil er, indem er das Entsetzliche
noch irgendwie konsumierbar macht, schlielich auch daraus noch etwas wie
Konsumqualitten
herauspret!
(http://www.video4viet.com/watchvideo.html?id=UdmAAUXasXE&
title=Adorno+About+Beckett+And+The+Deformed+Subject/. Acedido em 08/08/2009.
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... die Hersteller und Produzenten solcher Filme verwenden zu wenig Reflexion auf das
Genre, mit dem sie umgehen woollen; sonst nmlich msste ihnen aufgegangen sein, dass sich
Bilder gegen den Krieg in ihrer Wirkung stets selbst aufheben. Es gibt keine Bilder gegen den
Krieg, denn Bilder sind darauf aus Fremdes in Vertrautes umzuwandeln, Entsetzen abzubauen,
statt zu potenzieren. Metaphern wollen immer Ordnung stiften, Mythen schaffen, die diese
Ordnung reprsentieren, Riten, die sie stabilisieren (Radke 1971, 16).
366
Por outro lado, Robin Wood num artigo na revista Movie, tambm critica
precisamente a vazia beleza esttica de Zabriskie Point comparado com Alices
Restaurant: The film itself is, in the last resort, not unlike Rod Taylors house:
as beautiful, superfluous and dehumanised (Robin Wood 1970-71, 23).
Mesmo assim, a revista Films and Filming (Jan. 1971) considerou este
trabalho de Antonioni como a melhor realizao e M*A*S*H como a melhor
comedia e adaptao literria do ano 1970 (Films and Filming 1971, 43-46).
A Receo em Portugal
Aps a implementao da comisso para a censura de teatro e cinema em
Maio de 1945, o cinema em Portugal tinha dupla funo educacional, como
ilustra o ttulo de um artigo publicado por Lus de Pina em 1963: "Educao
pelo Cinema e para o Cinema". Foi impossvel evitar os mecanismos de censura
e autocensura, no s para a produo nacional, mas tambm para a divulgao
comercial de filmes estrangeiros por parte das distribuidoras. O conflito de
interesses econmicos e polticos ficou instalado, causando uma estranha
dinmica entre as expectativas criadas no pblico pela imprensa, as tentativas
das distribuidoras de satisfazer estas espectativas e a atuao da censura. A
relutncia crescente das distribuidoras estrangeiras de fazer negcios com as
suas congneres portuguesas adveio de problemas contratuais sobre filmes que
no passaram a censura e a implcita falta de pagamento das verbas acordadas
pela sua exibio prevista.
A 27 de Setembro de 1968, Salazar confirmou que as mentiras e fices e
os receios de algum modo injustificados acabam por criar estados de esprito
que constituem uma realidade poltica. Em poltica, o que parece . De
um ponto poltico s existe aquilo que o pblico sabe que existe. (MeyerClason 2013, 47). Nos ltimos cinco anos do Estado Novo esta situao no se
alterou significativamente, nem para instituies como o Goethe-Institut de
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Cf. o filme premiado com um Oscar A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen,
Donnersmarck, 2006) que mostra aspetos da controle de expresso artstica na RDA.
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Cf. Cadernos D. Quixote n 7: Que Futuro para o Vietname? (Julho de 1968); n 11: A Revoluo
de Maio em Frana (Novembro de 1968), com artigos traduzidos de Jean-Paul Sartre, Daniel
Cohn-Bendit, Henri Lefebvre, etc. e tambm n 18: Black Power Poder Negro.
7
Entre 1964 e 1967 145 filmes (11%) foram proibidos e 693 (53%) foram exibidos com cortes;
entre 1971 e 1973 123 filmes (quase 15%) foram proibidos e 352 (44%) foram exibidos com
cortes (cf. Geada 1977, 210).
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12
Na RDA que costumava criticar as cenas violentes e de terror das produes de Hollywood, a
violncia brutal deste Western foi apreciada como naturalista. Uma citao das palavras do
prprio realizador, emprestada da Frankfurter Rundschau (RFA), serviu como justificao: If
the film shocked you, it was my intention. I tried to show the true face of war (cf. Prisma, 3,
202-3).
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O gerente holands da Fox Filmes em Lisboa alega ainda que o filme foi
normalmente exibido em Moambique e em Luanda encontra-se actualmente
em exibio, j na 5 semana . De facto, a publicidade no jornal Delegao do
Notcias / Beira tinha anunciado a sua exibio no cinema Scala para maiores
de 17 anos (27/02/1971), citando referncias favorveis da imprensa
estrangeira, como o Time Magazine: MASH Comea onde outros filmes
antiguerra terminam! (sublinhado pelo censor).
Tambm A provncia de Angola fez publicidade pela pelcula no dia
29/08/1971, na pgina 3, com um cartaz explcito, mencionando a companhia
ANGOLA FILMES, mas no a FOX FILMES LD.
Perante esta falta de critrios coerentes ou falha de comunicao entre as
diversas comisses de Exame e Classificao de Espectculos, a distribuidora
solicitou a reviso deste caso. No dia 14 Setembro de 1971, o Director-Geral da
Cultura Popular e Espectculos expe esta situao desagradvel numa carta ao
Chefe de Gabinete de Sua Excelncia o Ministro do Ultramar:
A Comisso de Exame e Classificao de Espectculos, que
conta com a colaborao de um ilustre oficial do Estado-Maior, o
coronel Almeida Nave, entendeu que, nas circunstncias actuais da
vida portuguesa, o referido filme oferecia grandes inconvenientes
no s para os nossos soldados como para a retaguarda
(especialmente em relao s famlias dos que se encontram a
combater). Esta aplicao de critrios diferentes, que nalguns casos
at pode ter justificao, noutros suscita dificuldades que valeria a
pena considerar devidamente (SNI/IGAC, cx. 473, proc. 102/71).
ttulo Deserto de Almas. Nessa altura um outro filme mais atual foi muito
debatido devido s suas pretenses antiguerra e da sua banda sonora:
Apocalypse Now (1978) de Francis Ford Coppola.
Nos tempos ps-25 de Abril, a esttica de receo mudou radicalmente
em Portugal (cf. Cineclube 1975) mas as questes estticas levantadas no
estrangeiro em finais dos anos 60 permanecem:
Almas
uma
produo
"brilhantemente
executada,
com
msica
Compare: Hitler ber Deutschland (1932) e o avio em que Hitler desce das nuvens at ao
Reichsparteitag em Nuremberga ao som de Die Meistersinger (Triumph des Willens, Riefenstahl,
1935).
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14
Cineclube 3, 9-11. Cf. tambm: a revista Cinex (n 2, Jan. de 1975), na qual tanto MASH como
If receberam classificaes medocres de sete peritos de cinema. Week-End considerado
agora obra prima, mas tinha sido proibido em 25 de Junho de 1970 pela censura: O filme ,
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os
que
tematizavam
revolta
estudantil
foram
16
380
the Living Dead (Romero, 1968) - foram tambm visados pela censura mais
severa em pases como Portugal e Espanha.
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Paulo Miguel Martins doutorado pelo ISCTE em Histria da Cultura e das Mentalidades
Contemporneas, com uma tese sobre o cinema em Portugal e os documentrios industriais.
professor tanto no Ensino Superior como no Secundrio. Tem vrios romances publicados e
escreve tambm crticas cinematogrficas na imprensa.
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um povo. In Atas do III Encontro Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Srgio Dias Branco,
383-392. Coimbra: AIM. ISBN 978-989-98215-1-4.
proposto. Por isso, aparecem nessas anotaes vrios pedidos para que se
exibissem aes em movimento, com imagens e sons facilmente reconhecveis
pelos espectadores.
A voz off est presente ao longo de todo o filme, guiando a audincia
atravs de uma linguagem familiar e a autoridade de algum omnisciente. Dessa
forma vai orientando a compreenso do espectador, bem como a maneira como
de ver e apreender o que est a ser veiculado (Daney 1983, 172-173).
Comparando o texto em si mesmo do II Plano de Fomento com o texto do
Guio, nota-se uma grande fidelidade. Por exemplo, as reas econmicas onde
se investiu mais dinheiro, foram precisamente aquelas onde o filme foi mais
pormenorizado e com cenas mais longas.
O discurso e as imagens
O documentrio comea com um discurso simples em voz off sobre o que
um oramento pois tal como as famlias, tambm as empresas precisam de
elaborar um plano. As imagens mostram ambientes rurais e pequenas lojas
facilmente identificveis, passando depois para grandes unidades fabris, que
precisam de mais dinheiro. As anotaes sugerem que sejam includas
imagens das fbricas, para que se veja a modernidade, a mecanizao e o ritmo
rpido do processo industrial, enquanto que para exemplificar uma sociedade
rural se deviam utilizar cenas inertes.
Para ilustrar o progresso foram usados muitas vezes planos com
mquinas em atividade num ritmo crescente e com imagens captadas em
travelling, onde a cmara acompanha a ao. Cria-se um dinamismo no
espectador, como se tambm ele percorresse esse espao. O movimento
assim uma caracterstica esttica essencial da representao da modernidade,
em oposio ao imobilismo do passado.
O confronto recente/antigo outra caracterstica deste discurso visual,
insistindo na comparao entre o antigo como algo obsoleto e ultrapassado,
com o moderno mais recente e eficaz. Um outro fator importante a dimenso.
O que for mais alto e maior ser mais desenvolvido. Ao nvel tcnico, a
dimenso pode ser acentuada atravs dos ngulos de cmara, em contrapicado,
criando a sensao de grandeza.
386
sector
pesqueiro
tambm
includo,
ressaltando
melhor
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Custos e oramento
No contrato, a estreia estava prevista para as vsperas do Natal de 1959.
Em 7 de Dezembro, Felipe de Solms escreveu uma carta ao S.N.I. justificando o
atraso pela falta de dias de sol para as cenas de exterior e tambm pelo
adiamento das filmagens com o Sr. Ministro da Presidncia por este estar
muito ocupado. Outras razes para o atraso aparecem numa carta de 13 de
Maro, onde pedia um aumento da verba a receber: a despesa que mais custa
ver a que foi originada pelas modificaes ditadas pelo Sr. Presidente do
Conselho () a modificao das legendas, as novas filmagens para a marinha,
a modificao na locuo aumentaram a despesa ().
De acordo com o contrato, o produtor, Felipe de Solms receberia
276.000$00. Este valor inclua a produo de 4 cpias a cores e 3 a preto e
branco, no formato de 35 mm. Seria depois combinado um valor suplementar
para as 5 cpias a preto e branco em formato de 16 mm. e para as cpias
posteriores. Com as alteraes os custos aumentaram e o produtor justificou as
despesas do seguinte modo:
- o filme ficou maior do que o previsto. No contrato ficara
estipulado que teria uma metragem de 600 metros e no fim
ficou com mais 100 por termos chegado muito contra nossa
vontade concluso de que se no podia encurtar mais.
- 20.000$00 pelas filmagens que no estavam previstas,
pois tem enormes despesas em material eltrico, sendo sem
dvida o mais perfeito em interiores filmado a cores.
- 7.5000$00 pelos metros de pelcula nas cpias dos
filmes para alm do acordado.
- 9.700$00 pelas filmagens no Funchal, pois s ficara
previsto a recolha de imagens na Metrpole.
TOTAL da despesa no prevista: 37.200$00
deduz a partir do que ouve e do que v esse crescer. Ele j sente isso no seu
subconsciente a partir da prpria experincia. O que lhe exibido tido como
mais verdadeiro, no s pela sua factualidade mas por ser atual, por j ter
ouvido falar do tema em questo (Bernstein 2004, 167-168). As imagens
projetadas como que tornam essa realidade presente e ele reconhece-a,
sentindo-se confirmado no seu saber e estimulado a colaborar.
Distribuio
O governo pretendia que o filme tivesse a maior difuso possvel. Pelo
contrato devia ser exibido em trs das principais salas de cinema de Lisboa e
em duas do Porto. De facto, a estreia aconteceu a 28 de Maro de 1960 em 4
salas de Lisboa (Tivoli, Monumental, Politeama e Roma) e 1 no Porto (S. Joo).
O prprio Salazar assistiu no Tivoli ante-estreia do filme na parte da manh
(Martins 2011, p. 206). A partir daqui, as vrias cpias percorreram toda a
metrpole, como se comprova pelos registos arquivados de todas as projees
em 1960 e 1961. Foi exibido em todas as capitais de distrito e inmeras
localidades de todas as provncias do continente e vrias do ultramar. Utilizou
tambm os circuitos paralelos e alternativos de projeo cinematogrfica como
por exemplo, cineclubes, igrejas, espaos prisionais, escolas, sanatrios,
casinos, etc. Este documentrio ia no s aos locais de trabalho como aos de
convvio das pessoas. Foi visto com maior incidncia no Norte e Centro do pas
e mais no litoral do que no interior. A regio da cintura industrial de Lisboa e
do Porto foram as zonas onde se efetuaram mais exibies, pois era onde se
concentrava o maior ncleo populacional e tambm onde estava quem mais
diretamente se envolveria neste II Plano. O filme foi distribudo no Ultramar,
permitindo aos seus residentes ver como se investiriam os 9 milhes previstos.
Angola recebeu logo uma cpia em Maio que depois circulou por Moambique,
Aores, Madeira, Cabo Verde.
Concluses
Para concluir, podemos afirmar que este documentrio no s regista um
momento da realidade econmica e social de 1959, como permite conhecer a
situao de algumas indstrias e a poltica econmica e social seguida na altura.
No entanto, este filme vai mais longe, tornando-se um instrumento ao servio
391
392
A discusso terica apresentada neste trabalho resultado dos estudos desenvolvidos para a
minha dissertao de mestrado.
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so
conotados
sentimentos
que
envolvem
silenciamento,
conhece Rosa, a pessoa responsvel por cuidar dele e por ser o seu contato com
o mundo exterior. Neste momento, a organizao est num momento difcil e
estudava uma forma de retornar luta poltica. Com o passar do tempo, Tiago
comea a ficar preocupado com a sua segurana, adotando um comportamento
estranho e se questionando se Pedro no seria um traidor.
H o contato com diferentes tipos de militantes e, ao mesmo tempo, com
diversos pontos de vista sobre o mesmo objeto. Grande parte da trama se
desenrola dentro do apartamento de Pedro opo necessria, primeiramente,
por questes oramentrias quando possvel se aproximar do interior de
Tiago. Neste momento, somos levados a conhecer os seus sonhos, medos e
esperanas, tendo a possibilidade de ver o lado mais subjetivo de sua
personalidade. Nos situamos no ano em que o filme ocorre devido a divulgao
da morte de Carlos Lamarca, no serto da Bahia, em 1971.
Nesse mesmo perodo, no incio da dcada de 1970, o diretor do filme,
Toni Venturi, 57, estava no colegial. Segundo ele, possua muita conscincia do
que estava acontecendo no pas, porm no se envolveu em nenhuma forma de
resistncia poltica. A situao de opresso lhe era clara, pois tambm vinha de
uma famlia de professores que no estava alheia a realidade do Brasil. Porm,
por mais que ele no tivesse tido nenhuma relao com a resistncia, as
questes polticas e sociais brasileiras foram foco de seu interesse.
Como a situao no pas estava muito difcil, o diretor Toni Venturi
resolveu, voluntariamente, sair do pas nos anos 1970. Morou 10 anos no
Canad, onde teve contato com diversos exilados chilenos e brasileiros. Entre
eles, muitos tiveram envolvimento direto com a resistncia poltica e, a partir
destes encontros, o diretor passou a conhecer mais o outro lado do que estava
acontecendo no pas. Nos anos 1980, Venturi voltou ao Brasil decidido a fazer o
seu primeiro filme, a cinebiografia de Carlos Prestes, Velho A histria de Luiz
Carlos Prestes (1997), e, segundo ele, mergulhou ainda mais na histria poltica
brasileira.
Prestes fazia parte do Partido Comunista Brasileiro - PCB, que no apoiava
a luta armada. Por esse motivo, o tema foi pouco focado no documentrio,
entretanto era de grande interesse de Venturi. Foi nesta perspectiva que nasceu
a ideia de filmar Cabra-cega, para fazer um mergulho mais profundo no tema
[da luta armada]. Venturi explica que os personagens de Cabra-cega foram
397
inspirados em muitas histrias que ele considera reais. Renato Tapajs, cineasta
que foi militante da Ala Vermelha PcdoB-AV, entrou em contato com Venturi
com um roteiro de fico sobre a luta armada e, por mais que ele tenha gostado
do roteiro, Venturi sugeriu que eles fizessem juntos um documentrio sobre os
militantes que sobreviveram. Para realizar este documentrio, eles mapearam
55 militantes da luta armada que tinham reconstrudo as suas vidas. Destes, 15
aceitaram falar e 11 foram entrevistados. No final, o documentrio No olho do
furaco (2003), que foi desenvolvido para a televiso, ficou com quatro
personagens.
A partir desse material de pesquisa, Venturi e o roteirista Di Moretti
desenvolveram o roteiro que originou o filme Cabra-cega. Segundo o diretor,
basicamente, o roteiro nasce de duas fontes: do argumento de Fernando
Bonassi e das diversas histrias dos 11 personagens entrevistados para o
documentrio No olho do furaco. Conforme acredita Venturi, todas as
referncias do filme so reais, mas cada personagem foi construdo a partir de
caractersticas de diferentes pessoas. Numa entrevista publicada no site oficial
do filme e reproduzida em outro veculo, Venturi ainda cita que a relao
pessoal com o Carlos Eugnio Paz, codinome Clemente, o nico dirigente da
Ao Libertadora Nacional - ALN que no foi morto ou preso e hoje vive no
Rio, foi uma das principais fontes para a criao do personagem principal,
Tiago.
Cabra-cega optou em utilizar metforas para compor a sua narrativa e o
udio um recurso importante para ajudar a contar a histria. Por mais que
tenhamos trs personagens dentro de um mesmo universo, o filme tem como
marca o isolamento e a solido. Este isolamento pode ser interpretado como
uma metfora sobre a situao dos grupos que lutaram contra a ditadura.
Aqueles que lutaram contra o regime estavam isolados no tinham apoio da
sociedade, nem mesmo entre os diferentes grupos de oposio.
A partir de elementos tcnicos e artsticos, o filme busca remeter quele
passado, como no momento em que Tiago ouve msicas que, atualmente, so
ativadas para representar os anos 1960/1970. Pontos-chaves relacionados
ditadura tambm encontram espao na narrativa, como a violncia da
represso, representada pela tortura de uma companheira da organizao de
Tiago. Nua e de rosto coberto, simboliza a humilhao e a dor de tantas pessoas
398
400
A temtica dos filmes tem ligao direta com as memrias e trajetrias dos
diretores, mesmo que no estejam ligadas diretamente com as suas memrias
pessoais. Por mais que, por exemplo, Venturi no tenha sofrido torturas fsicas,
trouxe esta questo para a sua narrativa. A tortura significa uma dor que no foi
punida e se torna um importante signo para demonstrar outras verses sobre o
perodo. Toni Venturi, que no fez parte de nenhum grupo da luta armada,
tambm foi atingido pelo governo autoritrio e o caminho que resolveu seguir
para se afastar da represso, acabou por aproxim-lo mais desta questo, sendo
a arte a forma que encontrou de se manifestar.
J Lcia Murat, que sofreu na pele a violncia mxima da represso, busca
em suas memrias o principal tema de seus filmes. Como ela mencionou, Quase
dois irmos no trata diretamente de algo que tenha acontecido com ela, mas
com pessoas prximas. A partir de uma parte, um olhar para uma histria, traz
em torno da narrativa uma grande relao com o todo e com a sua prpria
trajetria. Como ela demonstrou no filme Que bom te ver viva (1989), foi
preciso encontrar o difcil equilbrio entre no conseguir esquecer e continuar
vivendo. Neste sentido, o cinema se tornou uma forma de manifestar a sua
verso.
Assim,
memrias
individuais
complementam
auxiliam
no
Referncias bibliogrficas
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404
Mickal Robert-Gonalves
Mickal Robert-Gonalves
questo
da
profuso
de
imagens
imbrica-se
noutra
questo
Mickal Robert-Gonalves
conjunturas gerais, tanto como as tcnicas da literatura ou do
cinema tornaram flexvel a rigidez dessa ordem, permitiram a
instaurao de quadros sincrnicos e renovaram os meios tradicionais
de fazer jogar entre eles momentos diferentes. No entanto, a
historiografia coloca o tempo das coisas como contraponto e introduz
a condio de um tempo discursivo (o discurso anda mais o menos
rapidamente, atrasa-se ou adianta-se). Com esse tempo de referncia,
a historiografia pode condensar ou estender o seu prprio tempo,
produzir efeitos de sentidos, redistribuir e codificar a uniformidade
do tempo que flui. Essa diferena possui j a forma de uma bisseco.
Permite um jogo e fornece ao saber a possibilidade de produzir-se
num tempo discursivo (ou num tempo diegtico, diz Genette) que
se ope distncia do real. (De Certeau 2008, 123)
410
Mickal Robert-Gonalves
vrios pases depois. um documentrio ou, mais precisamente, um
documento, que foi realizado sobre o que estava a acontecer e que
tinha a vantagem de reunir as primeiras imagens da revoluo.
sobre o qual Jos Filipe Costa fez uma pesquisa muito relevante4, sem duvida
um dos exemplos mais singulares e interessantes do que era uma cooperativa e
de como se organizavam as pessoas dentro dessas estruturas. Ao lado desses
filmes, h uma outra cartografia complementar, que consiste em mostrar os
diferentes pontos de luta nas empresas ; assim, Candidinha de Antnio Macedo
relata a fuga dos dois patres de um atelier de costura de Lisboa e a subsequente
luta das costureiras para organizar uma cooperativa de produo; Greve na
Construo Civil da Cinequanon mostra a contestao dos trabalhadores da
construo civil que se opem tanto ao patronato, como ao Ministrio do
Trabalho. H tambm Applied Magnetics da Cinequipa que mostra a organizao
das operrias despedidas da empresa norte-americana homnima (o patro
preferiu voltar para os Estados Unidos) durante o PREC; o filme concentra-se
sobretudo nas consequncias dessa situao conflituosa sobre o estado moral
das mulheres; a fora do filme aparece nas vrias entrevistas s operrias, mais
nova das quais s tem quatorze anos, e explicando com um certa pudor a
vivncia do presente e a viso do futuro.
Uma outra espcie de cartografia possvel seria uma cartografia da situao
feminina em Portugal nos anos setenta. primeira vista, muitas vezes, o caso
das mulheres aparece em filmes cuja objecto mais amplo possvel entrever
a situao das mulheres num filme sobre a reforma agrria ou sobre a revoluo
em geral, mas h tambm um corpus de filmes que se concentra principalmente
nas mulheres. Aqui, so sobretudo filmes da Cinequipa, que fazia um programa
especificamente sobre a condio feminina. Os filmes Lcia e Conceio
retrato da vida de duas meninas que trabalham no campo nos Aores e Nascer,
Viver, Morrer que contm entrevistas a mulheres sobre a maternidade, o
casamento e o divrcio so documentos que merecem tambm ser nomeados.
Enfim, para voltar questo da iconografia e da cartografia: como se
constri uma iconografia memorvel? A questo constitui um dos aspetos do
cinema militante: no se sabe inicialmente quais so as imagens que se tornaro
os smbolos do acontecimento na historia visual, mas cada filme que acompanha
o acontecimento um documento e, como tal, pode deixar imagens que sero
4
Jos Filipe Costa escreveu uma tese de doutoramento com uma seco terica (Cinema forges
the event. Filmmaking and the case of Thomas Harlans Torre Bela, thesis for the degree of
Doctor of Philosophy, Londres, The Royal College of Art, 2011) e uma componente prtica,
que originou o filme Linha Vermelha (2011).
413
Mickal Robert-Gonalves
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415
Esta a classificao que Jorge Seabra (2000: 238) faz dos filmes de Jorge Brum do Canto
Abrantes (1933); Nada de novo... em bidos (1933); Sintra, Cenrio de um Filme Romntico
(1933); e Uma tarde em Alccer (1933), que eu tambm analiso no mbito deste projeto.
417
Sofia Sampaio
Maria do Carmo Piarra recorre a um termo semelhante para descrever o Jornal Portugus,
revista de atualidades dirigida por Antnio Lopes Ribeiro, entre 1938 e 1951, como expresso
da poltica-espetculo encenada por Antnio Ferro (2006: 16).
4
Sobre a relao entre o cinema deste perodo e o regime, a grande referncia o trabalho do
historiador Lus Reis Torgal (2000; 2008). Veja-se tambm o estudo de Ellen W. Sapega (2008),
que reconhece tenses e contradies no consenso ideolgico estadonovista, em reas como a
literatura e a cultura visual (sobretudo arquitetura, pintura e exposies).
418
Como Lus Reis Torgal refere: "O cinema no estava, na verdade, preso ao Estado Novo do
ponto de vista institucional. As produtoras eram privadas: Lisboa Filme (fundada em 1928),
Tobis Portuguesa (fundada em 1932), ligada empresa alem, ou, um pouco mais tarde (1938),
a SPAC (Sociedade Portuguesa de Atualidades Cinematogrficas) ou vrias outras que no
vamos aqui citar. Portanto, se havia produes cinematogrficas oficiais, do SPN ou da AgnciaGeral das Colnias, por exemplo, e se outras eram resultado da ao de uma empresa, a SPAC,
que, no sendo estatal, estava intimamente ligada aos interesses do Estado, atravs do seu
principal responsvel, Antnio Lopes Ribeiro, e se, na verdade, a censura (Inspeo-Geral dos
Espetculos, fundada em 1929) exercia a sua ao, louvando algumas produes, censurando
outras ou interditando algumas, no se pode dizer que houvesse uma ligao formal, direta e
intrnseca, do cinema ao regime." (Torgal, 2000: 36)
6
Tambm aqui possvel distinguir entre estudos bem conseguidos, que no descuram a
complexidade do tema, e outros que, colando-se aos discursos oficiais, acabam por reproduzir a
viso elitista desenvolvida pela ditadura, que concebe a populao como homognea (massas)
e aptica, alvos fceis da retrico do regime (cf. Domingos e Pereira, 2010: 12).
7
A partir de 1939, o SPN recebeu as competncias do Ministrio do Interior em matria de
turismo, vindo a integrar, em 1940, o Conselho Nacional de Turismo. Veja-se o artigo da
Associao
dos
Amigos
da
Torre
do
Tombo
sobre
o
SPN:
http://www.aatt.org/site/index.php?op=Nucleo&id=1493
8
Os filmes do SPN eram muitas vezes comprados por empresas como a Fox Movietone News, a
Eclair-Journal; a France-Actualits, a Paramount News, e a Ufa alem (Rodrguez, 2000: 141).
419
Sofia Sampaio
420
10
O filme de Leito de Barros, que teve Artur Costa de Macedo como operador de cmara, foi
elogiado no Cinfilo, nomeadamente por ter sado da estreita rbita em que vulgarmente giram
as curtas pelculas de monumentos e paisagens da nossa terra e que, por lei, preenchem uma
parte mnima dos programas dos cinemas (s/a 1929). Este crtico de cinema apresenta o filme
como uma revelao, salientando a reao positiva do pblico: Foram justas as palmas que
sublinharam Nazar, Praia de Pescadores. Oxal se produzam documentrios idnticos
relativamente a outras regies e stios de Portugal.
11
A informao -nos dada num dos interttulos: Um grupo de cem operrios e operrias
alemes almoaram no magnfico refeitorio creado [sic] pela FUNDAO NACIONAL PARA
A ALEGRIA NO TRABALHO, onde confraternisaram [sic] com os camaradas portugueses,
numa festa cheia de alegria.
421
Sofia Sampaio
12
O filme alemo mais longo (20) do que o portugus (5) entretece, de forma eficaz,
elementos de propaganda ao regime Nazi e elementos que promovem diretamente a atividade
cruzeirista. O enfoque cai sobre os passageiros alemes, homens e mulheres aparentemente de
condio operria, e o modo como ocupam o seu tempo em atividades de lazer e
entretenimento, sobretudo dentro do navio. O destino turstico secundrio, sendo as seces
relativas a Lisboa e Madeira bastante breves (respetivamente, 220 e 2). De Lisboa,
mostram-se os eltricos cheios de turistas, nomeadamente, em Belm. O grande plano de um
homem negro, e as imagens de uma manada de bois e de algumas palmeiras sugerem o interesse
pelo extico, provavelmente mediado por concees rcicas de superioridade. Tambm se v
uma menina a vender postais. Na seco sobre a Madeira, sobressaem as atividades orientadas
para os turistas, tais como os tpicos passeios nos carros de cesto e as excurses para ver e
fotografar as vistas como no plano de um homem que tira fotos com uma cmara montada
num trip, seguido do plano de uma vista panormica sobre os terraos da Madeira.
13
Como no seguinte excerto, dito sobre as imagens de um rebanho a pastar na periferia da vila:
A populao do Caramulo, com as suas modestas e pitorescas construes debruadas umas
sobre as outras, extasiada na contemplao de um dos mais belos panoramas da nossa terra,
parece a pastora do rebanho, to caractersticos da Beira, que entre os penhascos da serra
procuram alimento.
422
Sofia Sampaio
14
424
Resende, princesa destas comarcas, e perto, cada vez mais perto da vista e do corao, Aregos
Caldas de Aregos, mais bem dizendo, a terra que buscvamos e onde afinal chegmos.
425
Sofia Sampaio
rodas de uma carroa que passa); ou mesmo uma sequncia espantosa em que a
cmara colocada na cesta que uma moradora usa para fazer iar as suas
compras. Estas experincias revelam o entusiasmo do homem da cmara (Artur
Costa de Macedo) com a imagem em movimento, que nem sempre
convenceram o pblico. De facto, apesar das crticas terem sido, no geral,
favorveis, as objees tiveram que ver, precisamente, com a ousadia
experimentalista do cameraman, sobretudo nos momentos que envolveram o
uso exploratrio do movimento.16 Por outras palavras, a explorao das
capacidades da cmara em captar e reproduzir o movimento parece ter
agradado crtica da poca; porm, modos mais desviantes de filmar o
movimento tambm provocam apreenso, at pelas limitaes associadas aos
meios tcnicos disponveis. A recenso mais favorvel, a do Cinfilo, menos
sensvel a formalismos, presta igual elogio experimentao visual, j no em
relao ao movimento da cmara, mas forma exaustiva com que esta consegue
revelar Alfama na sua totalidade.17 Comparado a um cicerone, ao
realizador/operador de cmara reconhecida a autoridade para nos guiar a
ns, espectadores tornados turistas de Alfama. No entanto, apesar dos seus
laivos totalizantes tudo ver, de todos os ngulos e modos, para tudo conhecer
a proposta de calcorrear as ruas de Alfama aproxima-se mais de um impulso
etnogrfico (enunciado no interttulo de abertura), com pretenses descritivas,
do que do impulso de sntese (de uma regio, localidade ou bairro), com
pretenses pedaggicas, que viria a caracterizar grande parte dos filmes
sonorizados dos anos 30, 40 e 50.
16
Como ressalta neste excerto da recenso que a revista Cine: revista mensal de arte
cinematogrfica fez ao filme: "O que nos agrada, sobretudo, neste documentrio, o conceito de
cinema que revela. A cmara nunca permanece fixa. Entra nas ruelas estreitas, sobe aos telhados,
rebusca os velhos recantos, deforma a seu modo as perspetivas, para nos restituir depois uma
viso poderosamente animada do bairro mais tradicional da cidade. Nem sempre concordamos,
porm, com o modo como estas deslocaes so feitas. A par de muitos ngulos de feliz escolha, h
uma sucesso demasiado insistente de panormicas, algumas de excessiva rapidez. No nos parece,
do mesmo modo, aconselhveis os travellings que por insuficincia de aparelhagem resultam
bastante defeituosos." (s/a, 1930, meu itlico)
17
Nas palavras do crtico, Avelino de Almeida: "O olho inteligente, aquilino, perscrutador e
sagaz da objetiva tudo esquadrinha, ao perto e ao longe. Conduz-nos a todos os recantos e tudo nos
patenteia, visto do alto, no sentido da profundidade; visto de baixo, no sentido da altura.
Perspetivas falseadas, movimentos panormicos, pormenores sintticos e simblicos, trechos
da vida real cotidiana, o formigueiro e a labuta da gente, os aglomerados da casaria pitoresca, e
calejas e vielas, e becos e travessas, vestgios das construes remotas, sombras de palcios e
vultos de templos, mincias evocativas, tudo vai desdobrando nossa interessada vista o sabedor
e amvel cicerone, depois de apresentar na tela as plantas topogrficas, antigas e modernas, do
bairro que foi o corao da cidade" (Almeida, 1930, meu itlico)
427
Sofia Sampaio
Concluso
O interesse pelo turismo, nas suas modalidades domstica e internacional,
surgiu muito antes do Estado Novo, no podendo por isso reduzir-se ao mbito
estritamente ideolgico do regime. A Primeira Repblica prestou particular
ateno ao turismo domstico, considerando-o essencial para a formao de um
sentimento patritico (Lousada e Pires 2010). Nos anos 30, o SPN recorreu a
imagens de turistas em Portugal designadamente, os operrios alemes de
passagem por Lisboa e os escritores recebidos em Nazar para disseminar a
imagem de Portugal como um pas moderno (a ponto de ter uma instituio
congnere da alem Kraft durch Freude) e civilizado (a ponto de atrair e agradar
a prestigiados intelectuais europeus). No entanto, a ateno que o regime
dedica ao turismo, nestes anos iniciais, ainda incipiente e dispersa, delimitada,
a um lado, pela aceitao mais ou menos tcita que Portugal ocupe uma posio
recetora no turismo internacional, nos termos por este ditados e, a outro, por
objetivos propagandsticos de alcance nacional e internacional.
Com
reconhecimento
da
importncia
do
turismo
domstico,
de
cmara
operadores
de
cmara
tornados
turistas
428
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429
Sofia Sampaio
430
Por deciso pessoal, o autor do texto no escreve segundo o novo Acordo Ortogrfico.
Raquel Schefer realizadora, programadora, doutoranda em Estudos Cinematogrficos na
Universidade da Sorbonne Nouvelle - Paris 3 e bolseira da FCT. Publicou o livro El Autorretrato
en el Documental, resultante da sua tese de mestrado em Cinema Documental, na Argentina, em
2008. licenciada em Cincias da Comunicao pela Universidade Nova de Lisboa. Vive e
trabalha em Paris. Website: http://www.raquelschefer.com/.
2
Schefer, Raquel. 2014. Mos erguidas no movimento das imagens. A representao flmica dos
movimentos polticos contemporneos (Europa e Estados Unidos). In Atas do III Encontro
Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Srgio Dias Branco, 431-443. Coimbra: AIM. ISBN
978-989-98215-1-4.
Raquel Schefer
adiante, contrariando assim a norma histrica do progresso. O recuo do filmeensaio subjectivo e auto-referencial, forma cannica do documentrio
contemporneo, e o retorno de certas formas flmicas que descendem do
newsreel militante3, dos Cinegiornali, do Cinema Directo, dos Cin-Tracts e do
filme-manifesto, revelam a dimenso criativa e poltica dos processos de mise
en crise da imagem e de recesso esttica. Toda uma linhagem de formas
histricas do cinema convocada a representar a crise e os movimentos de
contestao social e poltica.
Neste artigo, gostaria de debruar-me brevemente sobre a representao
flmica dos movimentos polticos contemporneos, esboando uma genealogia
do cinema poltico em grandes e descontnuos traos. Atravs da anlise de um
conjunto de obras como December Seeds (2009), filme atribudo a Chris
Marker, ainda que assinado por Panayotis Karagiorgas, possvel heternimo do
cineasta francs, Gravity Hill Newsreels (2011) de Jem Cohen, Austerity
Measures (2012) de Guillaume Cailleau e Ben Russell, Vers Madrid - The
Burning Bright! de Sylvain George (2013), e, finalmente, das reportagens de
actualidades de Juan Ramn Robles Gonzlez, procurarei inventariar as formas
flmicas do cinema da crise e discutir as condies de existncia de um novo
cinema poltico.
A luta poltica encontra expresso numa batalha formal que reclama a
herana de cineastas como Robert Kramer e do Grupo Newsreel, de Raimundo
Gleyzer, de Fernando Pino Solanas e Octavio Gettino, de Nicolls Guilln
Landrin, de Sergei M. Eisenstein e Dziga Vertov. Os dez episdios da srie
Gravity Hill Newsreels, filme de actualidades sobre o movimento Occupy Wall
Street, que tomou as ruas da Baixa de Nova Iorque no Outono de 2011, so
dedicados pelo cineasta experimental Jem Cohen respectivamente a Vertov, a
Sandor Krasna, o alter-ego de Marker em Sans Soleil (1983), a Humphrey
Jennings, a Joris Ivens, a Agns Varda, a Santiago lvarez, a Peter Watkins e a
Henri Storck, constelao de cineastas que por si s seria suficiente para
esboar uma histria do newsreel e do cinema poltico. As filiaes
reivindicadas ou pressentidas sero, portanto, tomadas como ponto de partida
Filme de actualidades, entendido aqui na sua variante assumidamente poltica, na linha, por
exemplo, do Newsreel Group, fundado por Robert Kramer e Allan Siegel em 1967, em Nova
Iorque, com o objectivo de produzir e distribuir cinema militante.
433
Raquel Schefer
referenciais
tornam-se
mais de
natureza
temporal
do
que
da
ruptura
ou
das
transformaes
desencadeadas
pelo
Raquel Schefer
Referimo-nos a uma das verses intermdias de Vers Madrid!, com uma durao 147 minutos,
apresentada em vrios festivais, tal como na edio de 2013 do Festival EDOC, e no verso
final do filme que acaba de ser concluda (Setembro de 2013).
5
George, Sylvain, sinopse de Vers Madrid - The Burning Bright!.
436
Scenes from the Class Struggle and the Revolution, evocando o filme Scenes
from the Class Struggle in Portugal (1977-1979) -, passando ainda por Federico
Garca Lorca e Benjamin. Os planos contra-picados, a complexa concepo
sonora multitemporal do filme6, o trabalho da elipse, a montagem orgnica
dialctica, atravs de saltos qualitativos, formais e materiais que ampliam a
dimenso temporal dos acontecimentos, os cortes secos e directos e a
vinculao do indivduo e do corpo colectivo arquitectura da cidade
permitem montar uma narrativa coerente e expressiva da complexidade dos
confrontos sociais do capitalismo tardio.
Em Vers Madrid!, o retorno do newsreel como forma paradigmtica do
cinema poltico acompanhado de uma eliso ou de uma transferncia das
estratgias enunciativas subjectivas do documentrio contemporneo. Embora
o filme resulte de uma observao participante, da ligao entre o realizador e
da cmara aos acontecimentos, no existe voz-off nem auto-inscrio na
imagem e o material de arquivo trabalhado a partir da dissociao entre o som
e a imagem. Estamos bem longe das marcas enunciativas subjectivas do
documentrio de criao. O filme pontuado, contudo, por sequncias
epistolares7. Chamo tambm a ateno para o uso da cmara ao ombro em
certas sequncias em que o realizador interpelado pela polcia ou obrigado a
dela fugir. Os planos tornam-se, ento, fluidos, rpidos, trmulos e, por vezes,
oblquos, desequilibrados. Vers Madrid! vai mais alm da representao do
acontecimento poltico, interpelando a histria do cinema militante e engajado
e as suas formas flmicas, o fundo avermelhado do ar dos anos 60 e 70.
Se Emmanuel Levinas define a subjectividade como a capacidade de estar
com os outros, o cinema poltico contemporneo mostra uma redefinio
subjectiva do corpo social. A representao da crise e dos movimentos de
contestao social e poltica combinada com a experimentao formal,
esttica e narrativa. Alm dos traos formais j indicados, destacam-se ainda o
tratamento separado da imagem e do som, o trabalho do fragmento, da elipse e
da sindoque, a construo de uma cronologia no linear (ou de uma anticronologia), que segue, todavia, o acontecimento, e a procura de um
6
437
Raquel Schefer
como
de
uma
variabilidade
inerente
ao
prprio
dispositivo
Metfora utilizada por Hector Tizn para expressar o carcter transversal da memria ((Tizn
2008).
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439
Raquel Schefer
do
cinema
poltico
no
passado
histrico,
abrindo-a,
Raquel Schefer
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443
ou sejam
suficientemente
446
Tal
aventura,
como
diria
Nussbaum,
requer
que
447
se
constitui
como
uma
expedio,
visando
descobrir,
histricos
existentes
entre
cinema,
antropologia,
expanso
associar
histria
de
Carapiru
imagens
que
simbolizam
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