Escrever Como Sintoma
Escrever Como Sintoma
Escrever Como Sintoma
Jean-Pierre Lebrun
Traduo e Apresentao de Paulo Srgio de Souza Jr.1
Apresentao
A literatura sempre foi cara psicanlise, tanto nos textos fundadores de
Sigmund Freud quanto no retorno sua obra proposto por Jacques Lacan. A
escrita literria tem um lugar privilegiado para pensarmos questes que orbitam
na cena analista-div-analisante, na mesma medida em que questes que a
transbordam. Lembremos, ento, da importncia atribuda literatura na
formao do analista - marcada por Freud, por exemplo, em A Questo da Anlise
Leiga (1926) -, ou dos enlaces entre poesia e clnica atribudos por Lacan em
diversos momentos entre eles os seminrios Linsu que sait de lune-bvue saile
mourre (1976-77) e O Ato Analtico (1967-68). Pensemos tambm nos textos
freudianos Delrios e Sonhos em A Gradiva de Jensen (1907) e O Estranho [1919]
no qual o texto de Hoffman convocado -, bem como, agora com Lacan, no
Seminrio sobre A Carta Roubada de E. Allan Poe (1955) e na parte do
Seminrio VI (1959) em que fala sobre Hamlet.
Dito isso, trago aqui a traduo do presente texto, realizada para
constituir material de estudo do centro interno de pesquisa Outrarte estudos
entre arte e psicanlise, do qual sou membro, no Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp).
Fruto de uma conferncia - o que pode ser facilmente notado por suas
eventuais marcas de oralidade -, este texto foi publicado originalmente no
Bulletin de lAssociation freudienne internationale, n. 77, em maro de 1998, sob o
ttulo crire comme symptme, e da autoria do belga Jean-Pierre Lebrun.
Com formao acadmica em psiquiatria, Lebrun psicanalista de atuao
bastante intensa: membro da Associao Freudiana da Blgica e da Associao
Lacaniana Internacional e autor de diversos trabalhos, alguns j em lngua
portuguesa, dentre os quais: Um mundo sem limite e A perverso comum,
publicados pela Companhia de Freud em 2004 e 2008, respectivamente.
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Neste texto J.-P. Lebrun nos leva a pensar sobre o papel sintomtico da
escrita a partir de algumas asseres de Marguerite Duras e de Paul Auster, e
explora o fato de que seja no apenas possvel, mas necessrio, ao analista
aprender com a literatura. Nessa empreitada, o autor faz lembrar, com muita
perspiccia, aquilo que Lacan asseverava em sua Homenagem a M. Duras pelo
arrebatamento de Lol V. Stein:
A nica vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar a
partir de sua posio, sendo-lhe esta reconhecida como tal, a de
se lembrar, com Freud, que, em sua matria, o artista sempre o
precede e, portanto, ele no deve bancar o psiclogo quando o
artista lhe desbrava o caminho. (LACAN, 1965, p. 200)
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por causa disso, fazer desaparecer o furo cuja autoria a ela cabe. Ou seja, furo
haver sempre, e justamente desse lugar que ns falamos.
Por isso, sem dvida, a responsabilidade do analista est em jogo se eu o
entendo como um profissional da enunciao, e, por que no?, ao mesmo tempo,
como um mdico de nossa civilizao inteiramente marcada pelo discurso da cincia.
A responsabilidade de lembrar esta verdade, apesar de evidente, a saber: que,
estruturalmente, sempre haver real. Por causa do que constitui hoje em dia nosso
ambiente social, preciso curiosamente que nos lembremos disso, porque parece que
nos esquecemos, que acreditamos que poderamos dispensar a enunciao.
Eis o prembulo que gostaria de indicar a vocs para lhes dizer onde eu
me situava. Qual a relao disso com a escrita? Qual a relao disso com a frase
de Duras? Qual a relao disso com o corpo? So os trs pontos que vou tentar
articular agora.
Qual a relao disso com a escrita? O que escrita? Escrever no
simplesmente tambm assentar a fala ou deter o dito. Escrever
justamente aquilo sobre o que Roland Barthes nos convidava a pensar, quando
observava que escrever talvez fosse um verbo transitivo, mas tambm
intransitivo: pode-se escrever algo, e pode-se tambm escrever sustentar o fato
de escrever como ato de escrita. O que escrever como verbo intransitivo? O que o
ensino de Lacan nos permite verificar que dizer se isso produz dito
mascara, no mesmo movimento, que com o vazio que sustentamos nosso dizer.
Dito de outro modo, no-dizer est includo no fato de dizer. Includo, mas
escondido. Mas, ento, como dizer o no-dizer? O que eu no posso dizer, posso
justamente escrever. todo o trabalho da poesia que se d pela tarefa de dizer o
indizvel. Pois bem, eu adiantaria que escrever como verbo intransitivo atesta
haver cernido cada vez um pouco melhor o lugar desse no-dizer de onde se pode
dizer um dito. Atesta ter sido fiel, ou pelo menos tentado, dvida com o tcito
que o dizer no chega a quitar; ou, ainda - para retomar e explicitar outra
frmula de Duras, resposta pergunta Pra que serve escrever? : Para, ao
mesmo tempo, se calar e falar. Vejam s como suas palavras so completamente
pertinentes. E por isso, sem dvida, que Flaubert que aparece como o mestre
da literatura moderna, isto , o mestre dessa literatura que congruente com o
que se tornou, ainda que dois sculos mais tarde, o sujeito moderno queria era
escrever, como diz em sua correspondncia com Louise Colet, um livro sobre
nada. Um livro sobre nada, um livro no qual a substncia desconhecida poderia
aparecer no estado puro, sem o amparo de personagens que dispensaria ao
mximo qualquer suporte.
Por que a escrita seria mais forte que a me? Eu gostaria de conduzi-los,
por um instante, ao que tambm faz um dos traos de nossa humanidade, a
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latina2, isto , que isso enuncia a iminncia da efetuao do que est em questo,
um futuro a advir , assinando-lhe a inscrio, testemunha de sua prpria
enunciao. O que supe que ela implique no reconhecimento do lugar onde se
enraza o fato de falar; que ela ponha em prtica essa renncia me, que se
atribui edipianamente ao pai. A escrita vem, pois, inscrever o furo sem se basear
em outra coisa alm dela mesma. Ela exige que se dispense o apoio sobre outra
coisa, e, nesse sentido, ela prpria o princpio paterno.
Isso vai de encontro, alis, a toda a questo do fim do tratamento
analtico, isto , justamente quando o sujeito vai ter de dispensar a presena do
outro no momento, a do analista para sustentar seu prprio trajeto, e isso
pelo simples fato de consentir s inscries que ele prprio verificou como tendo
emergido de seu inconsciente.
Ento, por que ratificar essa frmula, que eu espero ter explicado um pouco
a vocs, de que a escrita mais forte que a me? Por que apenas a escrita mais
forte que a me, como diz Duras? Pois bem, precisamente hoje, no nosso contexto
de discurso da cincia, em que a enunciao foi contrabalanada com o enunciador,
vocs esto vendo o interesse do que est presente na escrita, visto que ela vai
testemunhar o trabalho de enunciao sem se basear num outro como enunciador.
Ora, o discurso da cincia pode muito bem ser identificado a um saber materno, ao
saber da me. Mas se ele completamente prisioneiro de sua ideologia isto , se
ele acredita saber tudo, e se nos leva espontaneamente a crer que se pode saber
tudo , nesse momento ele funciona como um saber particular da me, visto que
um saber materno sem falta e sem mais pai que lhe faa contrapeso. No resta,
ento, nada alm do reconhecimento da inconsistncia desse conjunto de
enunciados e sua inscrio pelo prprio sujeito para dar cabo do que se apresenta
como a onipotncia materna. provvel, pois, que seja totalmente correto dizer
que, no contexto social que o nosso, apenas a escrita mais forte que a me,
apenas a escrita faz barragem contra o Pacfico do materno.
Isso no justamente o que parecem atestar certos autores de hoje em dia?
Muito rapidamente, darei simplesmente duas indicaes para no extrapolar meu
tempo de fala. Orwell, primeiramente. Aqui, uma vez mais, fao um apanhado:
Orwell se fez o denunciador do totalitarismo poltico que ele designava. Sustento,
por outro lado, que se trata daquilo a que o discurso da cincia nos conduz
espontaneamente, quando no se encontra algo que venha constituir um bloqueio,
quando no se reintroduz o lugar do sujeito. Lembrem-se de que o heri de 1984,
Winston Smith, refugia-se em seu quarto; ele se mantm fora do campo de viso do
televisor e diz: fazer um trao sobre o papel era um ato decisivo. E ele comea o
Em francs, o vocbulo escrita {criture} guarda a marca -ur- do particpio futuro
antigamente utilizado em latim (-urus, -ura, -urum). [N. do T.]
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que ser seu verdadeiro crime, alis a escrever um jornal ntimo, a escrever. E
para Orwell a est subjacente justamente toda a sua concepo do totalitarismo,
entendido como a morte do eu capaz de escrever, capaz de escrita. Vou parando
por aqui com Orwell, ainda que haja mais coisas a dizer dele.
Outro autor que me parece testemunhar uma compreenso dessa
especificidade do que seja a escrita Paul Auster. Seu primeiro romance
verdadeiro, A inveno da solido, ele s pde escrever depois de ter se tornado
pai quem diz isso ele. E na primeira parte de seu relato, que se chama
Retrato de um homem invisvel, ele vai desenvolvendo sua busca a partir do
fato de que acabara de se inteirar da morte de seu pai, que, como ele diz, era esse
homem que no estava l. H em Auster, ento, o que ele escreve desse pai,
claro: h a descrio de um pai ausente na cabea de Paul Auster, mas tambm
de um pai que nunca esteve l na cabea dele, jamais capaz de estar onde estava
ele, toda a sua vida nalgum lugar entre aqui e l nunca verdadeiramente aqui,
nunca verdadeiramente l. Notem que no o pai simplesmente ausente que
descrito por Paul Auster; o pai do qual podemos constatar a ausncia da
ausncia. Atualmente ouvimos queixas, com frequncia, que concernem
ausncia dos pais, mas poderamos dizer que isso no novo, que os pais so
ausentes h muito tempo. Mas, hoje em dia, o que caracteriza os pais que eles
so ausentes da ausncia. claro que o transitivo de escrever existe em Paul
Auster, mas, tambm aqui, o intransitivo que me interessa. Porque a escrita de
Auster, justamente nesse primeiro romance, pe em ato esse princpio paterno
que a escrita, como se uma coluna vertebral estivesse se constituindo, como diz
Butor. Da esse ttulo completamente assombroso: A inveno da solido. Acaso
se pode inventar a solido? justamente este o paradoxo da modernidade e,
at mesmo, talvez da ps-modernidade : que o sujeito de hoje deva inventar o
que lhe falta de solido, na medida em que ele est inundado nos enunciados dos
outros ou mesmo nos enunciados que no do lugar sua prpria enunciao. E
eu entendo essa frmula inventar a solido como restituir sua dimenso, seu
lugar na enunciao. H um trao especfico escrita de Paul Auster que o fato
de que ele cite todo mundo o tempo todo, ele est verdadeiramente como que na
relao hamletiana com a me, ele est inundado. Ele est inundado nas
palavras dos outros; e todo o seu trajeto de escrita no tanto o que ele escreve,
mas como ele chega a aproveitar verdadeiramente o fato de estar inundado nas
palavras dos outros para chegar a constituir o que verdadeiramente seu prprio
trajeto, sua prpria inscrio.
Uma ltima questo depois desses dois exemplos sobre os quais teria
muito mais coisa a dizer por um lado, no sou crtico literrio; por outro, h
uma falta de tempo : e o corpo nisso tudo? J que o tema deste colquio corpo
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