Tese Alexandre Zorio Mattos
Tese Alexandre Zorio Mattos
Tese Alexandre Zorio Mattos
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
So Paulo
2006
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
So Paulo
2006
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
Professora Doutora Anna Maria Grammatico Carmagnani, pela orientao precisa e pela
pacincia.
Aos Professores Doutores Lynn Mario Trindade Menezes de Souza e Valdir Heitor
Barzotto, pelas contribuies para esta pesquisa, durante e depois da qualificao.
s Professoras Doutoras Walkyria Monte Mr e Helena Maria Sampaio Bicalho, pelas
contribuies que ofereceram para esta pesquisa nas disciplinas que ministraram.
CAPES, pelo apoio financeiro durante 24 meses, fundamental para a realizao desta
pesquisa.
Marcia, por ter-me feito enxergar este tema to caro e bvio, e pela pacincia nos meus
momentos difceis.
Aos meus amigos Glauco, Nicolau, Thomas, Guilherme e Alcimar, pelas produtivas
discusses sobre um assunto to peculiar.
Aos meus amigos Chiappim, Caio, Glauco, pela nossa primeira sesso de RPG.
Sumrio
Resumo
Abstract
Introduo
Captulo 1: Formao de identidades e de significados: A posio discursiva do
Leitor
1.1 Introduo
1.2 A questo do pblico-alvo
1.2.1 As referncias culturais: alta cultura x cultura de consumo
1.2.2 A funo das referncias alta cultura
1.2.3 Quem o jogador de RPG?
1.2.4 Meninas no RPG
1.2.5 Referncias alta cultura e identificao
1.2.6 Explicitao e camuflagem: dois nveis de funcionamento discursivo das
referncias alta cultura
1.2.7 Reconhecimento e familiaridade: dois nveis de funcionamento discursivo das
referncias cultura de consumo
Captulo 2: Saberes e poderes em jogo: Negociaes interpretativas
2.1 Introduo
2.2 Norman Fairclough e as tendncias de mudana discursiva
2.2.1 Democratizao
2.2.2. Comodificao
2.2.3 Tecnologizao
2.3 Michel Foucault e o saber-poder
2.3.1 Saberes e poderes em jogo
2.3.2 Centralizao e disperso
2.3.3 Centralizao do saber-poder e identidade do jogo
2.3.4 A posio discursiva do Narrador
2.4 Mikhail Bakhtin, dialogismo e polifonia
2.5 Concluso
Captulo 3: Alm das palavras: O discurso visual de Vampire: The Masquerade
3.1 RPG como um novo gnero a importncia das imagens
3.2 O discurso visual do World of Darkness
3.2.1 Temas recorrentes
3.2.1.1 Temas recorrentes: Horror
3.2.1.2 Temas recorrentes: Violncia
3.2.1.3 Temas recorrentes: Misria
3.2.1.4 Temas recorrentes: Gtico-punk
3.2.1.5 Temas recorrentes: Ambientao
3.2.1.6 Temas recorrentes: Sexualidade
3.2.1.7 Temas recorrentes: Tabu
3.2.2 O estilo das ilustraes
3.2.2.1 Retrato de poca
3.2.2.2 Realidade fotogrfica
3.2.2.3 Realidade onrica
3.2.2.4 Realidade polarizada
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3.2.2.5 Quadrinhos
3.2.2.6 Distoro surrealista
3.2.2.7 Esboo / inacabado
3.2.3 As funes das imagens
3.2.4 A padronizao grfica
3.3 A leitura de textos visuais
3.3.1 Elementos selecionados para anlise
3.3.1.1 Offer versus Demand
3.3.1.2 Enquadramento / Distanciamento social
3.3.1.3 ngulo Horizontal / Envolvimento
3.3.1.4 ngulo vertical / Relaes de poder
3.3.2 A suposta liberdade de interpretao do discurso visual
3.4 Anlise do discurso visual de Vampire, de acordo com os temas previamente
identificados
3.4.1 Tema: Tabu
3.4.2 Tema: Sexualidade
3.4.3 Tema: Horror
3.4.4 Tema: Violncia
3.4.5 Tema: Misria
3.4.6 Tema: Gtico-punk
3.5 Concluso
Concluso
Referncias bibliogrficas
Corpus consultado
Apndice I: Histria do RPG
Glossrio
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Resumo
O referencial terico utilizado nesta pesquisa a Anlise de Discurso de linha
francesa; tambm se lana mo, neste texto, de consideraes de outros estudiosos da
linguagem verbal (Mikhail Bakhtin e Norman Fairclough, especialmente) e tambm da
linguagem visual (Gunther Kress e Theo van Leeuwen) compatveis com essa abordagem
dos estudos do discurso.
O objeto deste estudo, o RPG Vampire: the Masquerade, torna-se merecedor de
ateno acadmica porque apresenta uma aparente tendncia disperso das formas de
saber e das posies de poder na prtica do jogo isto , trata-se de um jogo que
explicitamente recomenda a interpretao livre de suas regras e estimula a sensibilidade do
leitor para a multiplicidade de pontos de vista na construo da narrativa. A hiptese de
pesquisa que, no discurso do livro de regras de Vampire, abre-se a possibilidade de que se
constitua uma nova relao de poder entre as posies discursivas do Autor e do
Leitor/Jogador, em que este, o elemento tradicionalmente mais fraco nas prticas de
interpretao dos jogos, assuma a posio de fonte privilegiada de produo de
significados.
Para verificar em que medida efetivamente ocorre essa disperso do saber-poder
interpretativo, esta pesquisa analisa o funcionamento discursivo do jogo (tomando como
corpus os discursos verbal e visual registrados no livro de regras), isto , como o leitor se
relaciona com o jogo, quais formaes discursivas esto presentes no discurso do livro de
regras do jogo, que efeitos de sentido delas resultam, como elas afetam as prticas
discursivas e, por decorrncia, as prticas sociais desse leitor. As asperezas do discurso e
seus pontos de deriva constituem os dados para a anlise.
Para as finalidades desta pesquisa, trs dimenses do jogo so analisadas: a) a
caracterizao do leitor de Vampire: The Masquerade, de acordo com os indcios
encontrados na superfcie textual de seu corebook; b) a anlise da interao entre Autor e
Leitor no processo de interpretao do texto do corebook de Vampire e de alguns
suplementos, e c) a anlise das possibilidades de leitura do discurso visual desse RPG.
A partir dessas anlises, o que se observa que, ultrapassada a superfcie textual, o
discurso do livro de regras se torna mais centralizador; embora esse discurso seja
evidentemente heterogneo, e permita que o saber-poder interpretativo flua para o Leitor
em determinados pontos, prevalecem os significados associados posio discursiva do
Autor em outras palavras, a hiptese de pesquisa no confirmada. Isso ocorre porque a
anlise efetuada concentrou-se no texto do livro de regras, ou seja, num domnio em que os
significados so produzidos basicamente a partir da posio discursiva do Autor. Fica
colocada a necessidade de efetuar uma outra anlise, centrada no domnio da produo das
narrativas particularizadas de cada grupo de jogo domnio em que a produo de sentidos
se faz a partir da posio do Leitor/Jogador, para que se possa ter uma compreenso global
da prtica de jogo de Vampire.
Palavras-chave: Roleplaying games; Anlise de Discurso; negociaes interpretativas;
interao autor-leitor.
Abstract
This research is set in the theoretic field of the French Discourse Analysis;
contributions by other authors, such as Mikhail Bakhtin, Norman Fairclough, Gunther
Kress and Theo van Leeuwen are also used, since their theoretical standpoints are
compatible with the one to which we subscribe.
The object of this study, the roleplaying game Vampire: The Masquerade, attracts
academic interest because of its avowed intention to let the reader do as he/she wills,
stimulating the free re-creation and interpretation of its rules. The central hypothesis of this
research is that a new power relation is established between the discursive positions of the
Authors and the Readers, in which the latter is empowered as the privileged position for
the production of meanings.
In order to determine to what extent this dispersion of power-knowledge really
happens, this research will analyse the discursive workings of this RPG, that is, how the
Reader interacts with the game, which discursive formations are present in the game, what
meanings they uphold, and how they affect the Readers discursive practices, and thus
his/her social practices. The unevennesses of the discourse are the raw data for this
analysis.
Three dimensions of the game will be analysed: a) the characterization of Vampire:
The Masquerades implied Reader, according to the evidence found on the text of its
corebook; b) the analysis of the interaction between Author and Reader in the process of
interpretation of the text of the corebook and some other supplements, and c) the analysis of
the possible readings of the visual discourse of this RPG.
From these analyses, it can be observed that the discourse of Vampires corebook is
essentially centralizing in relation to its interpretations; although, at some points, a certain
degree of empowerment of the Reader can be observed, the Author remains as the main
source of acceptable interpretations of the discourse of the game in other words, the
central hypothesis of this research was not verified. This is so because of the domain in
which this research was conducted the domain on the interaction between the Reader and
the textbook, in which most meanings emanate from the Authors discursive position. It
remains a task for the future to conduct another researched centred on the domain of the
production of the narratives of individual roleplaying groups a domain in which the
meanings predominantly emanate from the Readers discursive position in order to
achieve a full comprehension of this game.
Keywords: Roleplaying games; Discourse Analysis; interpretative negotiations; authorreader interaction.
This game is a coded message. You will decode the message in your dreams and
execute its instructions in the spaces between moments of will. Neither you nor I
will ever know the contents of the message.
Jonathan Tweet, Over the Edge
INTRODUO
O que RPG
Primeiramente, preciso definir a sigla: RPG so as iniciais de roleplaying game
jogo de interpretao de papis parece ser a traduo aceita em portugus, mas neste estudo
utilizar-se- recorrentemente a sigla RPG, cujo uso consagrado pelos jogadores.
Definir a sigla, porm, no traz qualquer esclarecimento sobre o objeto deste estudo.
Aqueles que se encontram fora da cultura do RPG em geral possuem uma viso nebulosa
sobre o que seja isso, uma vez que diversas prticas so comumente reunidas sob esse
rtulo. Para contextualizar esse objeto e observar semelhanas e diferenas entre os vrios
elementos dessa categoria, apresenta-se, abaixo, uma breve descrio de tudo aquilo que
classificado como RPG. Em geral, pode-se encontrar essa expresso fazendo referncia a:
Alguns tipos de jogos de computador. Nesses, diferentemente do que ocorre nos
jogos tradicionais, no bvio o que se espera que o jogador faa; ele deve
progredir por uma sucesso de cenas nas quais tem uma certa liberdade de escolha
quanto ao que quer fazer seja vasculhar o ambiente, questionar as demais
personagens ou iniciar uma luta at chegar ao fim do jogo. personagem do
jogador sucessivamente se oferecem escolhas cujas alternativas so sempre
predeterminadas de caminhos a seguir, de aes a executar. A seqncia em que o
jogador escolhe percorrer as cenas do jogo interfere no seu desempenho: algumas
combinaes de escolhas resultam em caminhos mais fceis, mais difceis ou
mesmo impossveis. Nesses RPGs computacionais, a liberdade de construo da
narrativa que o jogador possui bastante restrita, pois ele somente pode fazer aquilo
que os criadores do jogo previram como aes possveis em cada cena;
Card games, como Yu-Gi-Oh! (muito popular atualmente devido ao desenho
animado homnimo) ou Magic: the Gathering, o representante mais conhecido
dessa categoria. Os card games (tambm chamados de trading card games, TCGs,
ou collectible card games, CCGs) so jogos efetivamente, assemelhando-se aos
jogos de estratgia: dois ou mais jogadores se opem numa partida com objetivos
definidos (geralmente, aniquilao dos oponentes). As cartas representam os
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Huizinga (1939) formula aquilo a que chama de a noo de jogo em sua forma familiar nos seguintes
termos:
O jogo uma atividade ou ocupao voluntria, exercida dentro de certos e determinados
limites de tempo e de espao, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente
obrigatrias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tenso e
de alegria e de uma conscincia de ser diferente da vida quotidiana. (Huizinga, 1939, p.
33)
O mesmo autor observa mais adiante que a noo geral de jogo, tanto nas lnguas da Antigidade, quanto nas
contemporneas, abarca prticas to diversas quanto o canto, a dana, a msica, as brincadeiras infantis, as
piadas, imitaes, representaes dramticas, jogos de azar, competies, apostas, e cerimnias religiosas,
entre outras prticas to dspares que freqentemente no podem ser englobadas por uma nica palavra
jogo. Embora o RPG possa ser descrito em ternos das prticas relacionadas com a noo geral de jogo, ele
extrapola as restries da noo familiar, principalmente as limitaes de tempo e a necessidade de regras.
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Numa instncia, h a interao entre o livro de RPG e o leitor (seja ele um jogador
ou narrador);
Em outro nvel, h a interao entre os leitores/narradores/jogadores, decidindo
sobre as interpretaes aceitveis do livro de jogo.
No primeiro nvel, no parece haver dilogo entre o leitor e o Autor4, afinal, os
livros do jogo so textos fixos, e no h canal para a manifestao do leitor. Na verdade,
sabe-se que, de acordo com a teoria do dialogismo de Bakhtin, o texto do livro de jogo
antecipa a resposta dos leitores, de forma que o dilogo est, sim, presente nele, embora
no seja evidente. Essa relativa imobilidade do discurso do Autor torna-o o elemento
privilegiado para a anlise a ser desenvolvida a seguir, pois facilita a delimitao de um
corpus, alm de excluir as respostas dialgicas externas a si mesmo.
No segundo nvel de interao, temos as negociaes entre a palavra do Autor, as
interpretaes que o Narrador faz delas e as interpretaes dos Jogadores. Esses discursos
manifestam-se, em geral, ao nvel da produo oral5, no sendo registrados, e variam
radicalmente de um grupo de jogo para outro. A ausncia de um registro a que se tenha
acesso fcil, assim como a variabilidade extrema desses discursos tornam a anlise deste
nvel da prtica de jogo demasiadamente complexa. Este estudo concentra-se no nvel
descrito em primeiro lugar. Comentrios menos rigorosos sobre o segundo nvel podem ser
feitos quando confirmarem os resultados da anlise, permanecendo este como um objeto a
ser futuramente estudado.
Objetivo
Esta pesquisa iniciou-se com um objetivo bastante ambicioso: demonstrar como a
prtica de jogo entendido aqui como leitura, interpretao e produo de narrativas
individuais num jogo de representao (RPG) poderia fomentar o desenvolvimento da
capacidade crtica do leitor/jogador. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, tornou-se
Representado com inicial maiscula, pois se trata de uma posio discursiva, e no de um indivduo. O
corebook de V:TM possui mltiplos autores, o que no explicitamente visvel na superfcie textual.
5
As raras representaes escritas desse discurso podem ser encontradas, por exemplo, em fruns de discusso
na internet, onde jogadores compartilham suas dvidas e interpretaes.
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imprescindvel discutir, tambm, de que forma essas mesmas prticas poderiam barrar esse
desenvolvimento. Passou a ser difcil apontar, de forma categrica, em que momentos o
discurso do jogo (o discurso do Autor) efetivamente promovia ou refreava o surgimento de
um sujeito crtico. Ambos efeitos do discurso esto por demais ligados um ao outro. A
pesquisa reestruturou-se, assim, adotando um novo objetivo, fortemente relacionado ao
anterior: estudar o funcionamento discursivo do jogo (tomando como corpus o discurso
registrado no livro de regras), isto , como o leitor se relaciona com o jogo, quais
formaes discursivas esto presentes no discurso do jogo, que efeitos de sentido delas
resultam, como elas afetam as prticas discursivas e, em ltima anlise, as prticas sociais
desse leitor. Ao mesmo tempo, deve-se considerar o leitor como um participante ativo
(embora nem sempre consciente) nesse processo de elaborao de sentidos, capaz de
moldar o discurso do jogo de formas imprevistas pelo seu Autor.
Uma tal anlise deve, como sugere Foucault, se fazer em termos de genealogia das
relaes de fora, de desenvolvimentos estratgicos e de tticas. (...) A histria (...) deve
poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das
estratgias, das tticas. (Foucault, 1979, p. 5). Isso equivale a compreender como se
constituem os saberes, os poderes, os discursos, determinar como e por quem o poder
exercido concretamente no discurso do jogo. Ou, ainda nas palavras de Foucault, demarcar
as posies e os modos de ao de cada um, as possibilidades de resistncia e de contraataque de uns e de outros. (Foucault, 1979, p. 226)
Hiptese de pesquisa
Toma-se como ponto de partida nesta pesquisa a hiptese de que o discurso de
Vampire: The Masquerade subverte a relao normalmente estabelecida entre as posies
discursivas do Autor e do Leitor no discurso dos jogos (expresso basicamente nos livros de
regras), na qual o Autor/Criador assume um papel se no de controle absoluto (uma
possibilidade que rejeitada de partida, pois somente poderia se realizar num ambiente
inatingvel de total transparncia da linguagem e perfeito assujeitamento dos falantes), pelo
menos de autoridade incontestvel no tocante s interpretaes de seu discurso (as regras
do jogo).
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Supe-se que, nesse RPG, seja estabelecida uma nova configurao de poder, na
qual ocorre uma valorizao da posio discursiva tradicionalmente situada em situao
desfavorvel no discurso do livro de regras (o Leitor). possvel ainda supor, como
hiptese adicional de pesquisa, que essa nova configurao de poder, em alguns casos,
promova um genuno empowerment do Leitor, e mesmo um estmulo ao desenvolvimento
de uma reflexo crtica sobre as relaes de poder no discurso do jogo e na sociedade.
Para confirmar a configurao dessa nova configurao de poderes, deve-se
observar as asperezas e os pontos de deriva do discurso (que na superfcie textual afirma a
valorizao do Leitor como agente da produo de sentidos), utilizando-os como dados
para a anlise. Para as finalidades desta pesquisa, trs dimenses do jogo sero analisadas:
a) a caracterizao do leitor de Vampire: The Masquerade, de acordo com os indcios
encontrados na superfcie textual de seu corebook;
b) a anlise da interao entre Autor e Leitor no processo de interpretao do texto do
corebook de Vampire e de alguns suplementos, e
c) a anlise das possibilidades de leitura do discurso visual desse RPG.
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CAPTULO 1
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1.1 Introduo
Tendo em mente o objetivo desta pesquisa determinar o tipo de relao de poder
que se estabelece entre Autor e Leitor nas prticas de jogo de Vampire: The Masquerade
faz-se necessrio, antes de qualquer outro desenvolvimento deste estudo, definir quem o
Leitor com quem se est lidando.
Ao definir quem o pblico-leitor de Vampire, est-se definindo uma posio
discursiva (na verdade, um conjunto de posies, uma vez que, como veremos, o Leitor de
Vampire no uma figura una). Ao mesmo tempo em que se define essa posio
discursiva, e como um processo relacionado, identificam-se os sentidos que podem ser
produzidos por esse Leitor durante a interpretao do livro de regras do jogo e da criao
das narrativas de cada grupo de jogo. A anlise dos significados produzidos nas prticas de
jogo de Vampire revelar se essas prticas efetivamente promovem uma valorizao do
Leitor como participante no processo de produo de sentidos ou se, pelo contrrio, elas
buscam exclu-lo desse processo.
Neste captulo, tratar-se- do estudo da posio discursiva do Leitor, que , como j
visto, um primeiro passo indispensvel para avanar a compreenso do funcionamento
discursivo do jogo.
1.2 A questo do pblico-alvo
Ao se abrir o livro Vampire: The Masquerade, a primeira seo de texto que o leitor
encontra, logo aps o ndice, a seguinte:
Monsters, Monsters, Everywhere
They crowd our imagination. They hide under our beds. They lurk within the dark recesses
of our primal unconscious. You cant run, you cant hide its going to get you. The beast,
the ravager, the Lusus Natura. What is it, and why do we fear it?
What is its name?
We have always had our fiends. They have long fired the romantic imagination of priest
and poet alike. At one time we called them Trolls; later they were named Demons, and then
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they were Witches who brewed evil potions. Still later, the Monster was said to be the
hungry Wolf, the Bogeyman, or the Godzilla of Cold War terror. Finally, some called it
human ignorance and intolerance. For a time, they tried to tell us that monsters dont exist
at all, that everything about the universe was either known or would soon be known.
But now we know better. We have made our reacquaintance with the Beast. We have
learned its true name. ()
We are searchers, forever looking for the uncomfortable truth of our human condition,
searching within ourselves for that which is unclean, uncertain or impure for that which
has no name. By looking at the monsters we create, we gain new insights into our darker
half. These fiends express what we are at the deepest and most inaccessible levels of our
unconscious. Since time immemorial, they have given us a connection to our animal self,
the fulfillment of an unadulterated emotional vitality, and the promise of a brutal justice.
The vampire is the quintessential fiend, for the vampire is so much our own reflection. ()
They, like us, seek redemption, purity and peace. The vampire is the poetic expression of
our deepest fears, and the shadow of our most primal urges.
Just as the hero of legend must descend into the pit of Purgatory to face the tormentor,
overcome personal weaknesses, and finally be cleansed in order to return home with the
gift of fire, so must we descend into the depths of our own soul and return to life with the
secrets we have won. That is the real journey of Prometheus. It is the meaning of the myth.
Only by embarking on such a journey can we discover our true selves and look into the
mirror.
The lure of this promise of spiritual connection is well-nigh irresistible. But, in the end, it is
a most disturbing undertaking. You must take heed and step carefully for no journey is
ever without its perils. Do not look into your own soul, unless you are willing to confront
that which you find there.
So remember:
There are no such things as monsters
(Rein-Hagen et al, 1992b, p. 4-5)
O que se percebe facilmente na superfcie textual deste excerto que Vampire (de
fato, todos os jogos do World of Darkness) foram desenvolvidos tendo em mente um
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jogador sofisticado, capaz de lidar com as temticas complexas e reflexivas presentes nas
narrativas desses jogos; da a declarao estampada nas quartas capas grande parte desses
livros: Games for Mature Minds. Isso parece indicar que esses jogos foram elaborados
para serem consumidos por um pblico adulto (isto , um pblico apto a tratar dessas
temticas). Qualquer pessoa familiarizada com o mundo dos RPGs sabe, porm, que a
grande massa dos jogadores so adolescentes. preciso explicar essa aparente disparidade.
Os adolescentes tambm esto representados no discurso dos jogos do World of Darkness
como pblico-alvo? O que permitiu a eles se inserir no discurso desses jogos6 que
declaradamente no foram desenvolvidos tendo sua faixa etria em vista?
Um primeiro passo na direo de esclarecer esse conflito a anlise das referncias
culturais no jogo. O que se toma por certo neste ponto que cada jogo do World of
Darkness dirige-se a um pblico muito semelhante aos demais. Sendo assim, ser
desenvolvida uma anlise com base em excertos de Vampire, que foi o primeiro desses
jogos a ser publicado, possui a maior quantidade de suplementos (e de jogadores) e pode
ser considerado um modelo para todos os demais.
1.2.1 As referncias culturais: alta cultura x cultura de consumo
Todo o discurso dos jogos do World of Darkness recheado de referncias culturais
explcitas (por exemplo, as inmeras epgrafes presentes em praticamente todas as sees
do livro, e tambm as ilustraes). Logo se percebe que essas referncias lidam com dois
registros culturais: o registro da alta cultura, da literatura cannica, da filosofia, da histria,
e o registro da cultura pop de consumo, dos filmes hollywoodianos, dos quadrinhos, dos
desenhos animados.
Para compreender a importncia das referncias culturais em Vampire, faz-se
necessrio primeiramente contextualiz-las em relao ao universo dos RPGs. Em primeiro
lugar, preciso considerar que outros RPGs vamos tomar como exemplo os dois grandes
ttulos externos ao Mundo das Trevas, Dungeons and Dragons e GURPS no apresentam
essa insistente referncia nem alta cultura, nem cultura de consumo. A presena dessas
6
Isto , os jogos do World of Darkness; quanto aos demais RPGs, parecem ter sido de fato desenvolvidos para
um pblico adolescente. claro que para fazer afirmaes categricas nesse sentido, seria necessrio um
estudo aprofundado do discurso desses outros jogos, o que no foi feito.
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A rejeio do adolescente mdio pela alta cultura/cultura escolar no pode ser comprovada empiricamente
por esta pesquisa. Porm, como se ver adiante, um dado constante nas pesquisas sobre o jogador de RPG o
reconhecimento de que uma das suas caractersticas definidoras a euforizao/fetichizao da alta cultura,
mesmo quando no a possui. Ora, sendo essa uma caracterstica suficientemente singular a ponto de ser
sempre mencionada, entende-se que ela opera uma diviso (no uma diviso rgida, por certo, mas ainda
assim uma diviso) entre o adolescente jogador de RPG e um outro grupo de adolescentes no
necessariamente os no-jogadores, mas ainda sim um grupo suficientemente representativo que estabeleceu
uma relao de repdio pela cultura acadmica.
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Tomando-se o adolescente jogador de RPG como parte desse grupo, no restaria outra
alternativa a no ser reconhecer as referncias alta cultura como fatores de identificao
negativa (principalmente se se considerar que as referncias presentes nos livros dos jogos
do World of Darkness so ainda mais hermticas do que a cultura escolar, pois dizem
respeito alta cultura dos EUA, onde o jogo foi elaborado8), o que equivaleria, na prtica, a
suicdio comercial. O que se pretende aqui justamente estabelecer uma caracterstica
singular do adolescente jogador de RPG que o diferencie (ainda que de forma no
totalmente excludente) da grande massa dos adolescentes. Essa caracterstica, a nosso ver,
a relao positiva que o jogador de RPG estabelece com a cultura acadmica.
Outros pesquisadores dos roleplaying games observaram essa preocupao do
leitor/jogador de RPG em estabelecer uma relao positiva com o conhecimento
acadmico. Tanto Fairchild (2004) quanto Pavo (2000) reconhecem que o leitor de RPG
aberto cultura escolar: ele fetichiza esse conhecimento mesmo quando no o possui,
mesmo quando sua formao ainda est em andamento. Fairchild (2004) chega mesmo a
oferecer uma explicao de fundo psicanaltico para essa euforizao da alta cultura:
(...) o dilema do RPG talvez resida em que, no usufruindo de prestgio, o jogo
s pode redundar em uma forma de prazer igualmente desprestigiada. Desse
impasse provm a falta que aflige o jogador se a sua relao com o RPG
libidinosa, seu desejo no encontra nele uma via plenamente aceitvel de
realizao, chocando-se com o olhar repreensivo da sociedade. Uma das sadas
est na constituio de um fetiche que, sem necessariamente alterar os modos de
acesso ao prazer, permite ao RPGista legitimar-se atravs de sua projeo para
dentro de uma Boa Cultura. (Fairchild, 2004, p. 159)
Cremos que, com base no que foi exposto, tenha sido possvel operar uma diviso
minimamente aceitvel do adolescente jogador de RPG dentro do grupo dos adolescentes
tomados como um todo.
Isto , os autores mencionados no so os das literaturas de lngua portuguesa, mas sim nomes relevantes
nas literaturas inglesa e norte americana, com os quais nossos adolescentes no tem contato formal.
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Deve-se considerar que, em todos os casos mencionados, o que se observa uma relao positiva com uma
verso massificada da alta cultura, por exemplo, alta literatura retirada de seu contexto acadmico habitual e
enxertada num universo cultural pop. Ainda assim, trata-se de uma diferenciao em relao ao adolescente
mdio.
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Moreno (1986) expe de forma muito clara como, desde a mais tenra infncia, os processos educacionais
reforam uma atitude agressiva nos meninos e um carter pacfico para as meninas.
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A esse respeito, sintomtico que muitos jogadores se refiram s narrativas de Dungeons and Dragons
como matar, pilhar, incendiar.
13
Neste ponto, vale pena relatar minha experincia pessoal no XII Encontro Internacional de RPG, em
2004. Nesse evento, foi realizada uma palestra com Justin Achilli, responsvel pelo desenvolvimento de
produtos da linha de jogo Vampire da White Wolf Publishing Inc. Durante a palestra, houve traduo
consecutiva, mas era evidente que o pblico em sua quase totalidade adolescentes, aparentemente de classe
mdia ouvia a fala do palestrante e no a do tradutor. Riam quando ele fazia as piadas, no quando elas
eram traduzidas; expressavam excitao e faziam comentrios quanto aos planos para o futuro da linha de
jogo quando o palestrante mencionava essas inovaes, no quando o tradutor repetia sua fala em portugus.
A que se deve creditar essa competncia em lngua inglesa? claro que, sendo adolescentes de classe mdia,
tiveram provavelmente acesso a uma educao acima da mdia da populao, mas supor que tenham
aprendido ingls apenas porque tiveram melhores condies de estudo seria simplificar demasiadamente a
questo. O que supostamente se poderia identificar em todos os adolescentes presentes quela palestra eram
um interesse e uma atitude receptiva em relao ao conhecimento exatamente aquilo que se sups distinguir
o jogador de RPG da grande massa dos adolescentes.
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pode concluir, ento, que de fato o jogo foi desenvolvido tendo em vista um pblico alvo
ideal portador de alguma erudio. As referncias cultura de consumo imediato, por outro
lado indicam que um pblico menos sofisticado tambm foi levado em considerao. Essas
reflexes levam concluso de que o pblico-alvo dos jogos do World of Darkness ,
assim, considerado em sua heterogeneidade pelo discurso do Autor14.
Isso fica tambm evidente nas recomendaes que o Autor faz aos jogadores;
embora seja um game for mature minds, parece ser necessrio lembrar aos jogadores de
Vampire que se trata apenas de um jogo:
Attention
Reader discretion is advised. The themes and issues described in this game may be
disturbing to some and distasteful to others. Though our purpose is not to offend, our use of
the vampire as a metaphor and as a channel for storytelling may be misconstrued. To be
clear, vampires are not real. The extent to which they may be said to exist is revealed only
in what they can teach us of the human condition and of the fragility and splendor which
we call life. (Rein-Hagen et al, 1992b, p. 2, meus itlicos)
Ainda mais nfase colocada neste aviso aos jogadores de Demon: The Fallen:
Disclaimer
Demon: The Fallen is a game. Like board a (sic) game, you play it around a table with
friends. The difference here is that there is no board, and there may not even be any pieces.
Its still a game, though. It is not real life. Monsters are the products of our imaginations
they are not real. You are not a demon. Its that simple. If you cant distinguish reality
from fantasy, put this book down and walk away. For everyone else, have fun. (Brinkman et
al, 2002, p. 8, meus itlicos)
No seguinte excerto, retirado de um suplemento da linha de jogo Kindred of the
East, o carter explcito do aviso atinge seu clmax (digno de nota o ttulo):
14
Um expediente semelhante utilizado em Wraith: The Oblivion: o prefcio desse livro contm uma carta
post mortem de um certo George para M.W.S explicando o mundo dos espritos errantes (George Lord
Byron, e M.W.S. Mary Wollstonecraft Shelley).
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Da mesma forma que as referncias alta cultura diferenciam-se das referncias cultura
pop por seu carter hermtico, essas referncias cult, embora no sejam eruditas,
diferenciam-se das referncias imediatamente reconhecveis por estarem afiliadas a nichos
culturais.
As referncias pop amplamente reconhecidas (sempre relacionadas ao tempo
presente no caso do jogo, o incio dos anos 90) funcionam como um elemento de
identificao e de auto-reconhecimento para qualquer leitor. Tanto o jogador adolescente
quanto o adulto culto esto igualmente familiarizados com essas referncias.
Algo diferente ocorre com as referncias de consumo cult. Quanto a elas, pode-se
identificar dois efeitos discursivos decorrentes 1) do mero reconhecimento nominal dessas
referncias, ou 2) da familiaridade com os discursos de onde elas provm. Para o leitor real
do jogo, o adolescente, que muitas vezes sequer havia nascido nos anos 80, poca em que
bandas como as mencionadas tiveram seu apogeu, essas referncias funcionam como um
recurso mercadolgico, que diferencia Vampire e os demais jogos do World of Darkness da
massa dos demais RPGs existentes, que passam, por comparao, a ser vistos como jogos
com temticas, ambientaes e personagens infanto-juvenis, em oposio ao game for
mature minds. Para o leitor ideal, o adulto culto, essas referncias funcionam no apenas
como um elemento de auto-reconhecimento, mas tambm como uma afirmao de
identidade do jogo se as referncias so familiares a ele, que certamente se reconhece
como uma parcela minoritria entre os entusiastas por RPG15, trata-se realmente de um jogo
para um pblico diferenciado. Para ambos os pblicos, as referncias cult servem para
diferenciar Vampire e os jogos do World of Darkness dos demais RPGs.
Tudo o que foi discutido neste captulo, at este ponto, serviu para demonstrar a
existncia de duas imagens distintas e explcitas do pblico leitor na superfcie textual de
Vampire. Dessa forma, sempre que um leitor l o texto desse RPG, ele necessariamente
interage com um texto que foi escrito para ele (isto , um texto que foi escrito para
assujeit-lo), mas, paradoxalmente, ele tambm interage com um texto que foi escrito para
um outro leitor sensvel a estratgias de assujeitamento diferentes. Como as estratgias
discursivas para ambos os pblicos so explicitamente visveis na superfcie textual, um
15
Qualquer pessoa com mais de 25 anos sente-se deslocada no meio do RPG, o que pode ser facilmente
comprovado em qualquer conveno.
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dado leitor consegue sempre identificar os elementos do discurso que se dirigem ao outro
(mesmo que ele no consiga identificar com exatido quem esse outro ). Em outras
palavras, o adolescente consegue identificar as referncias alta cultura que esto fora de
seu repertrio como algo que se dirige a um outro tipo de leitor; similarmente, o leitor
sofisticado consegue identificar as referncias cultura de consumo como elementos que se
dirigem a um leitor menos sofisticado. O surgimento dessa percepo do funcionamento
discursivo no outra coisa seno o despertar de uma postura crtica em relao aos textos
do cotidiano e realidade em geral.
Por outro lado, quando se pensa em termos de identidades e de relaes de poder, a
superioridade hierrquica do Autor parece manter-se inabalada. Na anlise desenvolvida
neste capitulo, priorizou-se a idia de que as identificaes do Leitor com o texto ocorrem
dentro das possibilidades previstas pelo Autor. Sabe-se que as leituras de resistncia (i.e., o
surgimento de novos significados e de novas identidades) so sempre possveis, mas, neste
caso, muito difcil identificar os pontos de deriva no discurso do Autor por onde esses
significados possam emergir. Parece que, ao menos sob o enfoque dado neste captulo, o
poder do Autor permanece incontestado.
No captulo seguinte, passa-se ao estudo de como esse(s) pblico(s) interage(m)
com o jogo e das relaes que se estabelecem entre Autor e Leitor.
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CAPTULO 2
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2.1 Introduo
A hiptese que motiva esta pesquisa que o discurso de Vampire subverte a relao
estabelecida entre Autor e Leitor nos discursos dos jogos, instituindo uma nova relao de
poder entre Autor e Leitor e que, nessa nova ordem de discurso, o Leitor
substancialmente valorizado como participante ativo nas prticas de jogo (que so,
essencialmente, prticas discursivas), o que, em princpio, pode despertar sua conscincia
como participante ativo e influente nas prticas sociais (que so tambm, em grande parte,
prticas discursivas).
Fazendo uma simplificao extrema da questo tratada nesta pesquisa, o que se
pretende verificar se esse RPG efetivamente promove uma valorizao das posies
discursivas tradicionalmente situadas em situao desfavorvel nas relaes de poder (neste
caso, o Leitor).
Diversos referenciais tericos coerentes com a Anlise de Discurso de linha
francesa podem ser utilizados para discutir essa hiptese. A seguir, trs abordagens
possveis do problema sero realizadas, para que se possa verificar em que medida os
resultados obtidos confirmam ou refutam a hiptese de pesquisa. As anlises a seguir
baseiam-se em: a) as tendncias de mudana discursiva sugeridas por Norman Fairclough;
b) as consideraes sobre saber-poder propostas por Michel Foucault, e c) os conceitos de
polifonia e dialogismo de Mikhail Bakhtin.
2.2 Norman Fairclough e as tendncias de mudana discursiva
possvel estabelecer uma conexo entre essa reestruturao do discurso que se
supe ocorrer em Vampire: The Masquerade e os fenmenos estudados por Norman
Fairclough (1992) como tendncias de mudana discursiva. Esse autor identifica trs
tendncias: democratizao, comodificao e tecnologizao. Faz-se necessrio neste ponto
discutir cada uma delas em mais detalhes para avaliar a pertinncia de sua aplicao ao
estudo do discurso de Vampire.
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2.2.1 Democratizao
Entendendo-se democratizao discursiva no sentido de que fala Fairclough (1992),
como eliminao de marcadores explcitos de assimetria de poder em discursos
institucionais com relaes desiguais de poder, esse conceito parece demasiadamente
especfico para poder ser aplicado em relao s prticas discursivas que se estabelecem
entre Autor e Leitor num livro de RPG, visto no se tratar de uma ordem de discurso
rigidamente marcada pela assimetria de poder.
O que se pode identificar no discurso de Vampire a democratizao num sentido
amplo, menos evidente na superfcie textual, cuja principal manifestao a aceitao
(ainda que relutante, como se sugerir) do Leitor tradicionalmente posicionado pelo
discurso dos jogos16 como um mero receptor de orientaes dadas como transparentes e
prontas para aplicao como um participante efetivo na construo de seu universo
ficcional particular, apto a fazer certos tipos de contribuio (s regras, ambientao, ao
clima da narrativa) antes restritos ao Autor.
Admitindo-se essa democratizao no discurso de Vampire, surge a seguinte
questo: se h um afastamento do padro de relao de poder tradicionalmente associado a
Autor e Leitor no discurso dos jogos, isso representa uma quebra na hegemonia ou apenas
a hegemonia assumindo novas formas? Essa questo, para efeitos desta pesquisa, pode ser
reformulada nos seguintes termos: a aparente aceitao do Leitor como participante ativo
na construo do jogo no ocultaria, num nvel menos superficial, a substituio de
mecanismos explcitos de controle por mecanismos mais dissimulados e sutis?
2.2.2 Comodificao
A comodificao o fenmeno do afloramento de conceitos e estratgias
discursivas antes especficas do discurso de produo e consumo de bens e servios em
outros domnios do discurso. Nas palavras de Fairclough, (...) podemos entender a
16
Pense-se em esportes, jogos de cartas, jogos de tabuleiro; sob uma perspectiva leiga em termos do
funcionamento do discurso, no cabe ao Jogador o Leitor das regras adicionar sua interpretao
individualizada, mas sim chegar a um entendimento consensual que permita que ele participe da mesma
prtica que os demais jogadores.
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17
Temos (...) que admitir que o poder produz saber (e no simplesmente favorecendo-o porque o serve ou
aplicando-o porque til); que poder e saber esto diretamente implicados; que no h relao de poder sem
constituio correlata de um campo de saber, nem saber que no suponha e no constitua ao mesmo tempo
relaes de poder. (Foucault, 1975, p. 27)
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numa nova configurao de poder, ao mesmo tempo em que abre espao para um contramovimento de resistncia.
Assim, se saber e poder so conceitos indissociveis, ento produzir saber por
exemplo, produzir uma interpretao aceitvel de um texto (isto , uma interpretao
adequada s formas de verdade aceitas no meio social em questo) equivale a revestir-se
de um determinado grau de poder. esse o campo em que se trava o embate entre as
posies discursivas do Autor e do Leitor na anlise a seguir. (Foucault, 1975; Foucault
1979)
2.3.1 Saberes e poderes em jogo
A caracterstica que mais chama ateno do leitor de Vampire: The Masquerade (de
fato, de qualquer jogo do World of Darkness) a forma como o texto estimula o jogador a
interpretar livremente as regras do jogo e a criar as suas prprias. Isso explicitamente
observvel no excerto abaixo:
The Golden Rule
Remember that in the end there is only one real rule in Vampire: there are no rules. You
should fashion this game into whatever you need it to be if the rules get in your way, then
ignore or change them. In the end, the true complexity and beauty of the real world cannot
be captured by rules; it takes storytelling and imagination to do that. Indeed, these rules are
not so much rules as they are guidelines, and you are free to use, abuse, ignore and change
them as you wish. (Rein-Hagen et al, 1992b, p. 79, meus itlicos)
Tambm no trecho a seguir, dirigindo-se especificamente ao Narrador, o Autor
incentiva a livre interpretao das regras:
Breaking the Rules
One of the biggest decisions a Storyteller ever makes is when she first decides to ignore the
rules. This is completely legitimate, provided its done for the right reasons and in the right
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way. In fact, we encourage you to break the rules; it is your prerogative as a Storyteller.
(Rein-Hagen et al, 1992b, p. 60, meus itlicos)
A partir desses fragmentos, parece razovel supor que o Autor abre mo de seu
papel como portador dos saberes relativos ao jogo (e, portanto, do poder associado de dizer
ao leitor como interpret-lo e jog-lo), conferindo a esse leitor a soberania no tocante sua
prtica de jogo 18. Examinando-se o restante do livro, porm, o que se observa que, ao
mesmo tempo em que o Autor garante que no h regras e que, em princpio, o
Leitor/Jogador pode fazer o que bem quiser, ele oferece uma vasta quantidade de regras
explicitando desde a maneira de se comportar no jogo ao vocabulrio que deve ser
empregado prontas para utilizao pelos jogadores. De fato, logo aps explicar a Golden
Rule, o livro encerra a seo de regras com o seguinte pargrafo:
Try It Out
Well, thats it. Those are the rules. The system for dice is all you really need to know to
play this game. All the other rules are just clarifications and exceptions to these ones. As
long as you understand whats been discussed here, you wont have any difficulty
understanding anything else. If you dont think youve caught everything, just read it over
again and youll find it will make more sense the second time around. () (Rein-Hagen et
al, 1992b, p. 79-81, meus itlicos)
Ao mencionar que, na segunda leitura, as regras parecero mais claras, o que o
Autor faz direcionar o leitor para reler a sua (do Autor) interpretao e tentar
compreend-la, ao invs de exaltar a criatividade e recomendar que o leitor faa como lhe
parecer melhor (o que constantemente feito em outros trechos do livro); em outras
palavras, ele centraliza em si a autoridade de dizer como jogar o jogo. O mesmo ocorre
nestes excertos:
18
Ou seja, a interpretao das regras e dos elementos da narrativa como ambientao, enredo, tempo, espao,
clima e a aplicao dessas interpretaes na sesso de jogo.
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Game Terms
Words used by the players: (...) [segue-se uma lista de termos de jogo semelhante a um
dicionrio, com entradas organizadas alfabeticamente e definies] (Rein-Hagen et al,
1992b, p. 83)
Examples of Rolls
Following are some examples of rolls, to provide you with some ideas on how to
incorporate these rules into your roleplaying. () (Rein-Hagen et al, 1992b, p. 81, meus
itlicos)
O carter prescritivo bvio desses exemplos no deixa muito espao para a
interpretao particularizada do leitor. Na verdade, o que se oferece como exemplos so
interpretaes do Autor sobre como as regras se aplicam ao jogo. Por mais que o leitor se
sinta livre para criar suas prprias regras, a palavra do Autor parece muito mais confivel,
alm de ser a nica referncia que ele possui. No havendo outras opes, o que o leitor
faz, via de regra, se apegar ao que tem, ou seja, interpretao do Autor.
A fora do Autor como fonte das interpretaes preferenciais algo que deve ser
compreendido para que se possa analisar os fluxos de saber e poder entre Autor e leitores
no discurso do jogo. Pierre Bourdieu (1982) nos alerta sobre o perigo de buscar a fora
ilocucionria das palavras nas prprias palavras, sem levar em conta sua utilizao social
nas situaes especficas de comunicao. Segundo ele, o poder das palavras vem de fora
do discurso o poder delegado ao sujeito autorizado a proferi-las, dentro de certas
circunstncias que conferem o reconhecimento e a credibilidade ao discurso. Qualquer
tentativa de fundamentar a eficcia simblica do discurso em elementos puramente
lingsticos argumentao, retrica ou estilstica sem levar em conta as propriedades do
indivduo ou grupo que pronuncia esse discurso e daqueles que os autorizam a pronunci-lo
so equivocadas. Bourdieu observa que mesmo no discurso de autoridade (cujas palavras
parecem encerrar em si mesmas o princpio de sua eficcia simblica), a eficcia do
discurso no depende de sua compreenso, mas de seu reconhecimento como legtimo e da
delegao de autoridade decorrente. Sendo assim, a autoridade de que se reveste o discurso
do Autor vem da posio que este ocupa no discurso de sua posio como criador do
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A esse respeito, Pavo (2000) observa que So bastante comuns, em uma mesa de RPG, pequenas
discusses sobre a interpretao de determinados trechos dos livros. Nestes casos, com freqncia parte-se
para a leitura em voz alta, onde todo o grupo participa ativamente para se chegar a um consenso. (Pavo,
2000, p. 183)
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b)
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Looking ahead
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of the final days. It is a world where the forces of evil and entropy are even more powerful
than they are in our world. It is a world of darkness.
Externally, not much differs from our world CDs are in, vinyl is out, the ozone layer is
being depleted, and the same soap operas are being broadcast. The same faces are on
Mount Rushmore, and the Lady still stands proudly in New York Harbor. In this world,
however, vampires exist, and they have directed and influenced the course of human affairs
for some time. Indeed the differences between the Gothic-Punk world and our own are
largely the doing of the vampires. ()
Gothic-Punk
Gothic-Punk is a way of describing the setting in brief. It is a metaphor for our own world,
a warning of what we might become and a shadow of the sickness that infects us now. It is
a world with problems like our own, but where vampires are to blame for much of the
misery.
The Gothic aspect describes the ambiance and institutions of mortal society. The Church is
stronger because people always turn to the Church in times of crisis, and enough people
have been touched by the Kindred to make a difference. The institutions which they control
tend to be even more conservative and resistant to change than those of our world.
Architecture has a menacing gothic flavor to it; in fact, some skyscrapers in this world
might be girded with gargoyles.
The Punk describe the way people live the gangs rule the streets and organized crime
dominates the underworld (and is in turn dominated by the Kindred). Rock, punk and rap
are even more of an escape and release, and rebellion is codified in styles of dress and
speech. All in all, the world is more corrupt, more decadent and less humane than any
suburbanite would like to believe.
In the end, you will decide what the Gothic-Punk world is like. The differences are so
numerous, yet so subtle, that they are impossible to describe fully in this book. It is your
job to convey the mood of the Gothic-Punk world in the stories you tell. You can do this
through your descriptions, the characters you play and the stories that you tell. Everything
and anything can add to the flavor that is Gothic-Punk. (Rein-Hagen et al, 1992b, p. 29,
meus itlicos)
44
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20
Embora este ponto no seja ilustrado aqui, o World of Darkness possui tambm domnios menos
decadentes, ou mesmo prsperos, que refletem os aspectos mais amenos da nossa realidade. H tanto de
realidade numa interpretao particular do WoD quanto queira o intrprete. Por se tratar de um jogo de horror,
o Autor argumenta em favor do favorecimento dos aspectos negativos da realidade, claro.
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Ao final, aparece a tradicional recomendao para que o leitor faa como preferir na
sua narrativa. Nesse excerto sobre o setting e o mundo Gothic-Punk, porm, diferentemente
do que acontece nos captulos referentes a regras e narrativa, essa recomendao no destoa
do discurso em que est inserida nas sees mencionadas, o discurso do Autor
compartilha com o Leitor o poder de determinar como ser o seu World of Darkness, pois,
embora esse mundo ecoe certamente algumas das sugestes apresentadas pelo Autor, ele
tambm composto pelo enfoque de cada leitor sobre o mundo real, realando estas ou
aquelas caractersticas. somente aceitando a sobreposio do mundo real com o World of
Darkness (exceto pelos elementos sobrenaturais, como j mencionado) que se pode afirmar,
como o faz o discurso do Autor, que everything and anything can add to the flavor that is
Gothic-Punk se a essncia do mundo ficcional est nos elementos do mundo real,
qualquer elemento deste pode ser usado para moldar aquele.
Pode-se entender aqui que o Autor reconhece o Leitor como seu igual em termos de
saber (e, portanto, de poder) para interpretar o mundo real, estando apto a criar sua verso
particular do World of Darkness.
A concluso a que se pode chegar, neste momento, de que o discurso do Autor
heterogneo em sua relao com a atribuio de saberes e poderes ao leitor; a diferenciao
que se pode fazer entre os discursos em que predomina a concentrao de saberes-poderes
na posio discursiva do Autor e aqueles em que esses saberes-poderes fluem para o leitor
de natureza temtica: quando trata de regras do jogo, as possibilidades de livre
interpretao se reduzem (embora jamais se fecham totalmente), e quando trata de
desenvolvimento dos elementos ficcionais da narrativa (personagem, atmosfera,
ambientao...), essas possibilidades se ampliam bastante.
Cabe aqui uma discusso a respeito da motivao para tal comportamento dos
fluxos de saberes-poderes na leitura do corebook de Vampire.
2.3.3 Centralizao do saber-poder e identidade do jogo
Num discurso em que o Autor explicitamente estimula a criatividade e a
interpretao livre do Leitor, a centralizao da autoridade interpretativa na sua posio
46
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Go beyond the rules: The rules are for keeping characters in line. If your
imagination is superior to the rules, then go beyond the rules. Especially for non-
21
Tem-se aqui um exemplo muito claro de como as Formaes Discursivas determinam o que pode e deve ser
dito, numa dada situao. (Foucault, 1969)
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player vampire powers, you should let your imagination roam free. There are
werewolves and wizards and even ghosts in this world, yet in this game they are not
carefully detailed. Youll have to make up their powers on your own. You may
make them as mysterious and enigmatic as you desire. Future products in the
StorytellerTM series will detail these beings more completely. (Rein-Hagen et al,
1992b, p. 68-69, meus itlicos)
Quando menciona que as regras servem para manter as personagens na linha, o
discurso do Autor parece compartilhar o poder de interpretao com o Narrador, mas no
com os jogadores; em seguida, encoraja o Narrador a ultrapassar as regras em favor de sua
prpria imaginao o que equivaleria delegao total de poder ao Narrador (excluindo,
novamente, os jogadores). A utilizao das expresses on your own e as you desire
reforam essa delegao do poder. Na ltima sentena, porm, o discurso do Autor retoma
para si o poder que parecia ter concedido, ao afirmar que outros suplementos seriam
futuramente publicados, detalhando os aspectos do World of Darkness que permanecem
obscuros22 isto , oferecendo mais regras e interpretaes prontas para uso dos leitores
(que at aqui haviam sido estimulados a criar as suas prprias regras).
Sendo o Narrador um dentre os Leitores, claro que se aplicam a ele as mesmas
concluses a que se havia chegado anteriormente: o discurso do Autor mantm com o
Narrador uma relao ambgua, que depende da temtica envolvida: quando trata de regras,
embora na superfcie textual o Autor ressalte a independncia da criatividade pessoal do
Narrador, seu discurso como um todo busca enquadrar os saberes do Narrador e submetlos sua autoridade23. Quando trata de elementos como ambientao e clima, h respeito
pela autoridade interpretativa do Narrador.
Um ponto final que deve ser mencionado a negociao de saberes e poderes entre
Narrador e Jogadores durante a construo coletiva da narrativa de RPG. Como afirmado
anteriormente, muitas vezes surgem conflitos entre Narrador e Jogadores em funo de
22
Certamente se identifica aqui uma forte Formao Discursiva mercadolgica, estimulando o leitor a
consumir outros suplementos a serem futuramente publicados.
23
A prpria expectativa dos Leitores/Jogadores de que o Narrador se submeta autoridade interpretativa do
Autor: o Narrador (ou mestre) precisa conhecer muito bem o livro de regras de um ou mais sistemas de jogos
que pretenda mestrar, sendo esta uma das condies importantes para que ele se imponha como tal para um
determinado grupo. (Pavo, 2000, p. 31)
48
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divergncias nas interpretaes acerca das regras expostas pelo discurso do Autor. Como
mencionado, para arbitrar essas disputas, usualmente se apela figura do Autor, cujo
discurso est gravado no livro de regras. Cada uma das partes litigantes se empenha em
convencer a outra que a sua interpretao a mais fiel palavra do Autor (suposta
transparente). O apoio oferecido pelos demais jogadores fundamental para fazer valer a
autoridade de uma ou de outra parte. Essa negociao de saberes e poderes entre Narrador e
Jogadores ocorre de forma muito explcita neste nvel da construo da narrativa de RPG;
trata-se de um processo semelhante ao que ocorre entre o Leitor e o Autor quando da leitura
e interpretao do livro de regras, com o diferencial de que, neste caso, tanto Narrador
quanto Jogador esto fisicamente presentes, tornando a natureza dialgica dos discursos
que eles produzem imediatamente identificvel (a construo coletiva do sentido
evidente, neste caso).
A princpio, o estudo dos fluxos de saber e poder no discurso do jogo no permite
que se emita um parecer definitivo sobre as relaes de poder que se estabelecem entre
Autor e Leitor. Se, por um lado, existe a valorizao dos saberes particularizados do Leitor
(entendida principalmente sob a forma de aceitao explcita das suas contribuies na
interpretao das regras e na criao do universo ficcional em que se desenvolvem as
narrativas nas quais toma parte), por outro, a tendncia centralizao do poder
interpretativo na posio do Autor muito evidente, e a autoridade inerente posio que
ocupa no discurso refora essa assimetria de poder. Ambas as tendncias so igualmente
representativas do discurso de Vampire. Para resolver este impasse preciso considerar as
exigncias que definem a posio discursiva do Autor no discurso, as pr-condies para
que ele seja investido do poder que manifesta.
O poder do Autor resulta do saber que se atribui a ele afinal, ao criar o jogo, ele
a pessoa mais autorizada a descrev-lo, a coment-lo, a expor suas regras. Ele no pode se
esquivar de faz-lo (ao tomar tal atitude, ele estaria renegando sua posio de Autor). O
Leitor, em troca do poder que lhe concede dentro do discurso, espera que ele assuma a
posio de Autor e cumpra com as tarefas que lhe cabem. O Autor no tem como escapar
de sua posio de poder; ao utilizar estratgias discursivas para concentrar o poder em suas
mos, ele faz o que inevitvel. A partilha explcita desse poder com o Leitor, por outro
lado, no um pressuposto inevitvel da relao Autor-Leitor. Se o Autor o faz, porque
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nesse discurso se busca estabelecer uma nova relao com o Leitor, menos hierarquizada,
menos distante. Isso indica que a aparente democratizao do discurso no se resume
apenas a uma nova forma de controle, sendo, de fato, uma proposta para uma nova relao
entre Autor e Leitor.
2.4 Mikhail Bakhtin, dialogismo e polifonia
A voz bakhtiniana pode ser mais bem explicada em termos dos conceitos de
dialogismo e polifonia. O dialogismo um princpio constitutivo da linguagem num nvel
amplo, e de qualquer discurso em particular. Num nvel, os discursos respondem uns aos
outros e antecipam suas respostas futuras, constituindo uma rede de enunciados; em outro,
as circunstncias da enunciao deixam marcas ideolgicas nos discursos e nos prprios
signos lingsticos. Assim sendo, os signos (e, conseqentemente, os discursos) carregam
ndices freqentemente contraditrios, um coro de vozes (da o termo polifonia) que se
fazem ouvir dentro dos enunciados, completando-se, respondendo umas s outras ou
polemizando no interior do discurso.
Embora o dialogismo seja, por definio, a condio fundadora da linguagem, h
discursos monofnicos (aqueles em que se tenta apagar os traos contrastantes das
diferentes vozes) e polifnicos (aquele em que a presena das diferentes vozes no foi
camuflada). Monofonia e polifonia so efeitos de sentido, construdos atravs de estratgias
discursivas. (de Barros, 1994, 2005)
Duas concluses decorrem da teoria bakhtiniana de que o dialogismo condio
essencial da produo do sentido: a) os significados do jogo so construdos
dialogicamente, resultando das negociaes entre Autor e Leitor, e b) a delegao total do
poder interpretativo e criativo para o Leitor , por hiptese, impossvel assim como sua
total reteno na figura do Autor.
A contribuio do Leitor para a construo do sentido um dado inevitvel do
funcionamento da linguagem, mas a forma como isso ocorre no indiferente natureza do
texto: leitores se relacionam de formas diferentes com textos predominantemente
monofnicos e com os predominantemente polifnicos.
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Embora as consideraes apresentadas por esse autor digam respeito a textos literrios, como boa parte das
teorias de Bakhtin, possvel aplic-las a qualquer tipo de texto.
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Isso tambm evidenciado quando o Autor afirma que o Narrador (e no o texto do livro) o rbitro final
em todas as questes relativas s regras do jogo. Abandona-se explicitamente a possibilidade de um jogo com
regras unificadas para todos em favor de um no qual cada grupo desenvolve as suas prprias.
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do texto do corebook efetuada por esse sujeito aproxime-se do segundo modelo apresentado
acima.
2.5 Concluso
Ao analisar os fluxos de saber-poder no discurso do corebook de Vampire: The
Masquerade, foi encontrada uma situao complexa: duas vozes contraditrias
interpelavam o Leitor uma que argumentava em favor da valorizao das interpretaes
individuais, e outra que defendia a centralizao do saber-poder interpretativo na posio
discursiva do Autor. Como indicado, essas duas vozes estavam ligadas a temticas
diferentes; a voz centralizadora era predominante nas sees prescritivas do texto (regras),
enquanto que a voz dispersiva era mais evidente nas sees relacionadas a aspectos da
narrativa (criao da personagem, ambientao).
Num primeiro momento, a hiptese de que o Autor concentrava em si a autoridade
interpretativa parecia mais consistente, ao se considerar o papel privilegiado que ele
continuava a desempenhar no discurso de V:TM. O Autor possuia um marcador evidente de
assimetria de poder, pois suas vozes (as duas mencionadas acima) eram as nicas
explicitamente representadas no texto dos livros (isso, embora parecesse uma obviedade,
era de fato uma prerrogativa de sua posio dentro do discurso de Vampire: a voz do Autor
a que se faz representar em certos gneros de discurso, como livros de RPG; em outros
gneros, como o teatro, por exemplo, h uma dificuldade formal em se fazer ouvir a voz do
Autor26). Ele decidia quando dar espao s contribuies do Leitor, e o que era possvel
formular a partir de sua (do Leitor) posio discursiva, o que era uma forma poderosa para
controlar a interpretao do discurso de V:TM.
Concluiu-se que a voz centralizadora era, de certa forma, uma exigncia da posio
do Autor, no um simples recurso argumentativo para reter o saber-poder interpretativo. A
possibilidade de que uma relao de poder menos desigual estivesse configurada ainda
estava aberta, mas apesar de todas essas consideraes, ainda no era possvel emitir um
veredito final a esse respeito.
26
A esse respeito, ver o ensaio de Dcio de Almeida Prado em CNDIDO, Antnio et al, (1968). A
personagem de fico. 10. edio. So Paulo, Perspectiva, 2004.
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CAPTULO 3
preciso ter em mente que a criao da narrativa coletiva, improvisada, na qual os jogadores interpretam as
personagens centrais pertence ao mbito da prtica do RPG, no sendo uma caracterstica do livro de RPG
como gnero.
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um objeto em certa medida novo, e no se presta a uma leitura idntica de outras formas
de impresso, embora em alguns momentos aproxime-se dela. (Fairchild, 2004, p. 60)
Embora seja possvel identificar o RPG como um gnero novo graas a
caractersticas essenciais, certo que ele ainda no se cristalizou numa forma definitiva. As
possibilidades de experimentao ainda esto abertas. Embora grande parte da produo de
ttulos de RPG esteja ligada aos sistemas consagrados (como o sistema D20, que pode ser
livremente empregado por qualquer editora2), possvel encontrar iniciativas pioneiras,
como tentativas de fundir o RPG de mesa com o live-action, ou ttulos (como Nobilis) que
aboliram os dados como instrumentos para arbitragem. A prpria dificuldade em definir o
RPG como um objeto de estudo e a sua aproximao com card games, jogos de tabuleiro e
jogos de computador, entre outros, so indcios da sua mutabilidade.
O carter fluido dos roleplaying games abre caminho para observaes como a de
Pavo: Esta parece ser uma forte tendncia dentro do RPG como gnero. Afastando-se
cada vez mais do sistema de regras, vai tomando distncia da sua origem como jogo e
aproximando-se cada vez mais aos aspectos mais caros do gnero literrio. (Pavo, 2000,
p. 175). De fato, a transformao histrica dos RPGs parece apontar para uma simplificao
das regras, com conseqente aumento da importncia da criatividade e da capacidade de
improviso do narrador. Fairchild (2004) observa, porm, que a posio adotada por Mota
(1997) (e tambm por Pavo (2000)) a euforizao dos aspectos que remetem o RPG
literatura, criao de narrativas, e a conseqente disforizao dos aspectos herdados dos
jogos de mesa mais tradicionais equivale a ignorar a particularidade desse novo gnero, a
fuso de caractersticas que o definem nem como jogo, nem como literatura, mas como um
amlgama dos dois.
O reconhecimento do surgimento do RPG como um gnero textual (multimodal, na
verdade) distinto reflete-se na constatao de que novas formas de leitura o acompanham.
Nas palavras de Pavo (2000):
A Editora Wizards of the Coast, detentora dos direitos sobre o sistema D20, cede a qualquer outra editora,
por meio da Open Game License, a possibilidade de desenvolver materiais (suplementos, ou mesmo jogos
inditos) utilizando esse sistema. Muitas editoras utilizam-se dessa licena, produzindo materiais compatveis
com o RPG Dungeons and Dragons (para o qual o sistema D20 foi originalmente desenvolvido), um dos mais
populares, e dessa forma aumentando suas chances de sucesso comercial.
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Na verdade, como se ver adiante, possvel supor que o discurso visual seja o canal preferencial de
comunicao entre Autor e Leitor, superando o discurso verbal em termos de importncia embora no em
volume.
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O surgimento das videoconferncias e dos aparelhos celulares que tiram fotos e enviam e-mails indicam que
a prpria telefonia caminha inexoravelmente para a multimodalidade.
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MULTIMODALIDADE
INTERATIVIDADE
EXUBERNCIA VISUAL
APAGAMENTO
DA AUTORIA
PILHAGEM NARRATIVA
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quais o discurso visual passou ao longo do tempo. Esses dados preliminares j sero
capazes de fornecer algumas informaes acerca dos sentidos veiculados no discurso visual
analisado. O corpus selecionado abrange ilustraes de livros publicados entre 1992 e 2004,
isto , praticamente toda a vida da srie Vampire (iniciada em 1991 e encerrada em 2004).
3.2.1 Temas recorrentes
H trs efeitos de sentido predominantes nas ilustraes dos livros de Vampire:
medo, fria e desejo. Esses efeitos misturam-se em propores diferentes em cada uma das
ilustraes, resultando em grupos temticos no perfeitamente distintos uns dos outros a
classificao das ilustraes em um ou outro grupo temtico foi, na prtica, uma questo
subjetiva5. Pode-se identificar como temticas centrais no discurso visual de Vampire:
Horror/Mistrio: este grupo abarca as ilustraes que evocam a impotncia da
humanidade frente ao horror sobrenatural ou que sugerem a iminncia inevitvel da
tragdia;
Misria: encontram-se nesta categoria ilustraes que evocam sensaes de culpa,
depresso e opresso decorrentes da impotncia das personagens em superar sua
condio de vampiros;
Violncia: ilustraes que valorizam principalmente expresses de fria, variando
da ameaa agresso fsica;
Sexualidade: este grupo engloba as ilustraes cujo apelo sensual ou abertamente
sexual dominante;
Tabu: so includas neste grupo ilustraes que violam o senso comum sobre o que
aceitvel em termos de comportamento sexual (representando homossexualismo,
estupro, sadomasoquismo, e sugerindo incesto e zoofilia) e da relao entre homens
e smbolos religiosos (representados em contextos profanos ou de alguma forma
inadequados).
Isto , outro analista teria selecionado outras imagens para compor seu corpus, teria identificado outras
temticas no discurso visual, e ainda que operasse com as mesmas temticas, faria uma classificao diferente
das imagens. Esse nvel de envolvimento do pesquisador com a pesquisa inevitvel, e no prejudica a
validade da anlise.
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Alm dessas temticas ligadas atmosfera do jogo, h ainda duas outras que
representam elementos da narrativa:
Ambientao: foram includas nesta categoria ilustraes que representam o espao
fsico do jogo a arquitetura gtica do World of Darkness, a desolao e a frieza
palpveis desse mundo;
Personagens: estas so as ilustraes que representam o estilo Gtico-Punk das
personagens do World of Darkness, codificado em formas de se vestir, adereos,
cortes de cabelo, tatuagens, piercings, etc.
Uma vez identificados esses temas principais e classificadas as imagens, procedeuse a uma anlise das sries histricas assim constitudas. Embora o ideal fosse reproduzir
neste texto essas sries para facilitar a compreenso do leitor, isso no ser feito por dois
motivos: primeiramente, por uma questo de economia de espao e de recursos, e, em
segundo lugar, porque as sries histricas servem a uma funo puramente descritiva,
podendo ser substitudas por um texto suficientemente minucioso. A seguir, o leitor
encontrar a descrio dos aspectos relevantes das sries histricas, e a anlise diacrnica
que elas autorizam.
3.2.1.1 Temas recorrentes: Horror
Em todos os jogos do World of Darkness, centrados em temticas sobrenaturais,
existe certamente um elemento de horror, tanto no discurso verbal quanto no visual.
Tomando o corpus de pesquisa constitudo por 10 ilustraes publicadas nos suplementos
de Vampire entre 1992 e 2004, tem-se uma amostra significativa das transformaes pelas
quais passa essa temtica do discurso visual ao longo da histria desse jogo,
especificamente6.
Embora esteja presente em todos os jogos, o discurso de horror possui particularizaes especficas em cada
um deles; assim, por exemplo, as ilustraes dos suplementos de Werewolf priorizam imagens de seres
hbridos, deformados e repugnantes, enquanto que as Vampire freqentemente representam vampiros se
alimentando. Anlises de uma temtica qualquer do discurso visual em jogos diferentes, embora apresentem
muitos pontos de concordncia, sero anlises diferentes, devido s particularidades de cada jogo.
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Duas vertentes principais podem ser observadas nas ilustraes desta categoria: as
ilustraes que representam o horror de forma implcita, sugerida ou indireta (50%) e as
ilustraes que representam o horror de forma direta e violenta (30%). Um tema constante
nessa segunda vertente so as imagens de vampiros alimentando-se de humanos indefesos.
Pela srie histrica das ilustraes de horror, observa-se que esse discurso visual pouco
variou ao longo dos anos: a violncia e o derramamento de sangue sempre se fizeram
presentes desde o incio, assim como as imagens mais sutis.
O discurso visual de horror (assim como todos os demais) deve ser analisado em
termos de sua funo dentro do discurso do jogo. parte seu sentido primordial evocar
sensaes de medo e choque ele cumpre tambm uma funo mercadolgica: trata-se de
um jogo de horror, e o discurso visual deve apresentar ilustraes que satisfaam as
expectativas do leitor. Considerando-se que no se pode identificar nenhuma alterao
substancial nesse discurso, a concluso a que se chega que o nvel de choque/violncia
apresentado foi considerado adequado pelo pblico do jogo.
3.2.1.2. Temas recorrentes: Violncia
Este outro tema presente em todos os jogos do World of Darkness. A temtica da
violncia, assim como a de horror, particularizada para cada jogo. O corpus para anlise
do discurso visual de violncia constitudo por 10 ilustraes, publicadas nos suplementos
de Vampire entre 1992 e 2002.
Dividindo essas ilustraes em dois grupos observa-se que, enquanto 40% (4)
representam cenas de violao da integridade fsica das personagens envolvidas, mas nas
quais a idia de morte no evidente, em 60% delas (6) a morte se faz presente de forma
inequvoca. Observando as datas de publicao dessas ilustraes, o que se conclui que,
ao longo dos anos, pouco mudou o discurso visual de violncia. A presena de cenas
sangrentas e a representao naturalista de ferimentos graves verificada desde os
primeiros suplementos da linha; essas ilustraes, por outro lado, sempre conviveram com
outras menos chocantes (embora ainda violentas). Ambos os grupos so essenciais para
formar o discurso visual de violncia de Vampire.
Como ocorre com o discurso visual de horror, o que se conclui que esse nvel de
violncia foi bem recebido pelo pblico do jogo (devido sua imutabilidade ao longo dos
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anos). Retomando a considerao de que a maior parte desse pblico composto por
adolescentes, e que a cultura de consumo contempornea7 plena de violncia (seja nas
sries de TV, no cinema, ou mesmo na msica), o discurso de violncia de Vampire serve
menos a uma finalidade de chocar do que de satisfazer a uma expectativa do leitor.
Especificamente no caso do pblico brasileiro, vale pena notar que as identificaes da
cultura mainstream so sempre politicamente corretas, isto , contrrias exibio de
violncia extrema ou descontextualizada formas de expresso que florescem nas
identificaes cult (quadrinhos underground, punk rock, heavy metal, filmes B) que atraem
os RPGistas.
3.2.1.3 Temas recorrentes: Misria
As ilustraes que compem a categoria temtica de misria so aquelas que
representam a culpa, tristeza e impotncia das personagens frente s situaes que
enfrentam. O corpus para anlise formado por 6 ilustraes, publicadas entre 1992 e
1994. Diferentemente do que ocorre com os temas apresentados anteriormente, este corpus
no abarca um intervalo de tempo muito vasto; as ilustraes mais significativas desta
categoria remetem aos primeiros anos da linha de Vampire8. Aps o meio da dcada de 90,
so exibidas poucas ilustraes com esta temtica nos suplementos desse jogo. A
justificativa para esse sbito desaparecimento do discurso visual de misria pode estar em
questes mercadolgicas. Assim como o discurso de horror e o de violncia permaneceram
bastante constantes ao longo do tempo por satisfazerem a expectativas dos leitores, o
discurso visual de misria abandonado porque provavelmente no corresponde a nenhum
anseio da massa de leitores. Os sentimentos melanclicos tm um local garantido nas
formas de expresso cult como a cultura gtica, identificao muito forte dos jogadores
de Vampire mas, na prtica, as narrativas desse jogo so aventuras picas conduzidas por
uma trupe de personagens, e no jornadas introspectivas pessoais. O que se pode concluir
que o discurso visual de misria foi criado com o intuito de ser uma das vias de construo
da identidade do jogo, mas tambm como uma forma de promover a identificao com o
7
8
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leitor; quando se verificou que essa identificao no ocorria, esse discurso teve de ceder
lugar a outros mais efetivos em termos de captao de leitores.
3.2.1.4 Temas recorrentes: Gtico-Punk
Outra temtica visual cuja representatividade nos suplementos de Vampire decresce
rapidamente aps o livro fundador a do estilo Gtico-Punk. O corebook de Vampire
possui todo um captulo dedicado a descrever a ambientao do mundo que batizou de
Gtico-Punk, mas nunca se refere diretamente ao estilo de vestimentas e adereos exibido
pelas personagens que l moram. Esse discurso sobre as personagens estritamente visual;
para analis-lo, foi constitudo um corpus formado por 10 ilustraes, publicadas entre
1992 e 1993. Exceto por uma nica ilustrao, todas as demais foram retiradas do corebook
de Vampire. Embora, em princpio, toda ilustrao que representa uma personagem seja
uma ilustrao do estilo Gtico-Punk, nesse livro encontra-se no apenas uma quantidade
fabulosa de ilustraes, se comparado com os que o seguiram, mas tambm um grande
nmero de ilustraes que no representam aes (narrativas), mas sim personagens
(descries) sem nenhuma ocupao, aparentemente posando para o ilustrador. Essas
figuras tm por finalidade apresentar o estilo Gtico-Punk ao leitor, o que fica tambm
evidente pela riqueza de detalhes e ornamentos representados sobretudos, bengalas,
chapus, botas, correntes, crucifixos, tatuagens, piercings, anis, culos escuros, roupas de
couro e de vinil.
Essa prolixidade do discurso visual Gtico-Punk se explica pelo carter
doutrinrio do corebook de Vampire: The Masquerade9 ele tinha o propsito de
explicitar a um pblico leitor que ainda no conhecia o jogo qual era o imaginrio de seu
universo ficcional. Nesse livro encontra-se sem sombra de dvidas a maior quantidade de
ilustraes que representam o estilo Gtico-Punk que ele nomeou, assim como a
ambientao do jogo a face visvel do World of Darkness. Uma vez que esse elemento da
identidade do jogo esteve garantido, no foi mais necessrio reservar uma quota to grande
de ilustraes para o discurso visual do estilo Gtico-Punk, e ele rapidamente perdeu seu
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espao. Esse vcuo foi ocupado por outros discursos emergentes em Vampire, como
veremos a seguir.
3.2.1.5 Temas recorrentes: Ambientao
Alm das personagens (isto , de seu estilo de vestimentas), outro elemento
constitutivo da narrativa possui um discurso visual especfico em Vampire: a ambientao.
Assim como ocorre como discurso do estilo Gtico-Punk, o discurso da ambientao tem
sua maior representatividade no livro fundador do jogo, de onde provm todas as 9
ilustraes que compem o corpus analisado. Diferentemente daquele, porm, o discurso
visual da ambientao possui um correspondente verbal, o que explica haver uma
quantidade menor de ilustraes de ambientao do que de personagens ostentando
adereos.
Observando as ilustraes do corpus, possvel identificar os signos que constituem
a paisagem urbana do World of Darkness: abundncia de elementos da arquitetura gtica,
como grgulas, arcobotantes e vitrais; muitas igrejas, cemitrios e catacumbas (o que
garante, por sua vez, uma abundncia de imagens de cruzes; a discusso dessas imagens
pode ser encontrada na temtica do tabu, mais adiante); ruas desertas, sujas e esfumaadas e
rvores desfolhadas, o que evoca uma atmosfera de decadncia e desolao. Esses
referenciais estabelecem uma identificao com a Gotham City dos quadrinhos de Batman,
ou a atmosfera sombria dos filmes de Tim Burton cones pop com os quais se pode
presumir que o leitor esteja familiarizado. Eles so signos de reconhecimento,
principalmente.
semelhana do que ocorre com o discurso visual de misria e do estilo GticoPunk, com o passar do tempo, o discurso visual da ambientao praticamente desaparece
dos suplementos. Por se tratar de uma temtica que no representa personagens, mas sim
locaes, no se proceder a uma anlise destas ilustraes.
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que coincidiu com a criao da Black Dog, a editora irm da White Wolf e que publicava
os livros mais chocantes, que estampavam nas capas inscries como For Adults Only e
For Adults 18 and Over.
claro que a idia de que pblicos diferenciados liam os livros publicados pela
White Wolf e pela Black Dog no possui nenhuma credibilidade. Os jogadores mais
pudicos podem ter deixado de consumir os suplementos para adultos, mas o fascnio pelo
proibido prprio da sua faixa etria, e na prtica essa guinada discursiva constituiu um
index de livros condenados e portanto comercialmente mais atraentes. Os supostos
jogadores maduros devem ter sido os nicos a reconhecer as ilustraes semipornogrficas e a fico decididamente hardcore como recursos mercadolgicos e julgar
esses livros por outros critrios no sensacionalistas.
3.2.1.7 Temas recorrentes: Tabu
O discurso visual do tabu, analisado a partir de uma srie histrica de 10 ilustraes,
publicadas entre 1992 e 2002, pode ser dividido em duas categorias: as ilustraes que
representam tabu sexual e aquelas que representam tabu religioso. As representaes de
tabu sexual envolvem basicamente aquilo que j foi discutido na anlise dos discursos de
seduo, nudez e sexo. Merece comentrios apenas a questo da homossexualidade, que foi
apenas mencionada acima.
Muitas das ilustraes do discurso visual de seduo (27% = 3) envolvem sugestes
de homossexualidade sempre entre duas mulheres. Rarssima a sugesto de
homossexualidade masculina (apenas uma ilustrao). Assim como a nudez masculina, a
homossexualidade masculina um tpico que permaneceu praticamente intocado em todo o
discurso visual de Vampire. Pode-se identificar na predominncia absoluta do pblico leitor
masculino a fonte da resistncia nudez e homossexualidade masculinas no discurso
visual do jogo. Esses so assuntos considerados tabu pela maioria dos homens e
representariam elementos de identificao negativa entre pblico e jogo, causando rejeio
deste (essa considerao lana um novo olhar sobre a questo do tabu, afinal, se o
verdadeiro tabu a homossexualidade masculina, e.g. interditado, ento isso significa
que o tabu representado estupro, sacrilgio, homossexualidade feminina no visto
pelo pblico leitor como um tabu realmente).
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10
Esta uma referncia de certa forma obscura, pois Christopher Lee, embora tenha recentemente participado
de filmes como A Lenda do Cavaleiro sem Cabea (Sleepy Hollow, 1999), Guerra nas Estrelas Episdios II
(2002) e III (2005) e a trilogia O Senhor dos Anis (2001, 2002, 2003) , um ator sem muita importncia no
cinema contemporneo, tendo desenvolvido sua carreira em filmes de horror nas dcadas de 50, 60 e 70. H
que se considerar tambm que a edio de Vampire na qual essa figura encontrada (1992) anterior a
qualquer um dos filmes mencionados.
11, 12
Referncias consideradas imediatas.
13
Esta uma referncia facilmente reconhecvel para o pblico falante de lngua inglesa, mas provavelmente
no funciona para os leitores brasileiros (mesmo porque a frase na camisa da personagem foi traduzida na
edio nacional do livro, apagando-se a referncia ao filme).
14
Esta no , certamente, uma referncia facilmente identificada por qualquer leitor do livro: observando-se a
ilustrao em questo, o ttulo do romance est em segundo plano, e muito mal iluminado. Da mesma forma
como a carta de Vlad epe a Wilhelmina Harker, a referncia a Varney the Vampire uma referncia
implcita, somente visvel (e reconhecvel) para um leitor entusiasta do gnero de horror gtico.
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Horror
Violncia
Sexualidade
Tabu
Ambientao
Misria
Gtico-Punk
Humor
Vampire15
Ravenloft16
AFMBE17
In Nomine18
Vampire
Ravenloft
AFMBE
In Nomine
132
61
75
93
269
222
249
128
0,49
0,27
0,30
0,72
15
Fonte consultada: REIN-HAGEN, Mark et al (1992b). Vampire: The Masquerade. Second Edition.
Clarkston: White Wolf, 1994.
16
Fonte consultada: CERMAK, Andrew et al (s/d). Ravenloft. So Paulo: Devir, 2003.
17
Fonte consultada: BRUNO III, Al et al (1999). All Flesh Must Be Eaten. Loudonville: Eden Studios.
18
Fonte consultada: CAMBIAS, James et al (1998). Infernal Players Guide. Steve Jackson Games, 2005.
19
Este pode ser considerado um tema especfico de Vampire, pois a diferena de abordagem entre o discurso
visual de sexualidade neste RPG e em In Nomine evidente; enquanto In Nomine aborda a questo da
sexualidade principalmente sob o aspecto de seduo, Vampire apresenta situaes muito mais explcitas.
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O que se observa que Vampire utiliza-se do discurso visual com uma intensidade
maior do que os outros RPGs de horror consultados com a exceo de In Nomine, mas
preciso ter em mente que as ilustraes de In Nomine e dos outros RPGs so
freqentemente menores do que as de Vampire. Uma estatstica mais fiel realidade seria a
densidade de ilustraes por pgina calculada com base na superfcie ocupada pelas
ilustraes, resultando na tabela a seguir:
Superfcie ocupada
pelas ilustraes
(A) [cm2]
Nmero de pginas
(B)
Densidade de
ilustraes (A/B)
[cm2/pgina]
Vampire
Ravenloft
AFMBE20
In Nomine
31525
12384
--
10667
269
222
--
128
117,2
55,8
--
84,0
Este dado no foi calculado, pois AFMBE no segue o mesmo formato dos outros RPGs pesquisados (21 x
28 cm, formato adotado por quase todos os RPGs; os livros de AFMBE seguem o formato 19 x 24 cm). Sendo
a superfcie das pginas diferente, no h sentido em comparar o valor da densidade de ilustraes de
AFMBE com o dos outros RPGs.
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Ocorrncias
33
25,0
1,5
0,8
35
26,5
10
7,6
5,3
3,8
6,8
Pgina par
Pgina par
Pgina mpar
Pgina mpar
Pgina par
Pgina par
Pgina mpar
Pgina mpar
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11
8,3
Pgina par
88
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utilizada em todas elas) ocorrem exclusivamente nas pginas pares. O posicionamento das
ilustraes a tambm promove o entrelaamento do discurso verbal com o visual, pois essa
a regio em que o leitor espera encontrar a continuao do texto que foi interrompido na
pgina anterior. Outra funo desempenhada pelas ilustraes nessa regio de deslocar o
texto para uma posio da pgina em que o leitor se demora mais, efetivamente facilitando
a absoro desse discurso pelo leitor.
As ilustraes de pgina inteira so material para uma outra reflexo: elas somente
aparecem nas pginas em que se iniciam os captulos. Embora a notao com o nome do
captulo esteja na pgina mpar ( direita), a ilustrao na pgina oposta atrai o olhar do
leitor, como se cada captulo se iniciasse, de fato, com o discurso visual, e no com o
verbal.
Apresenta-se, a seguir, uma breve anlise que ilustra o tipo de relaes que se
podem estabelecer entre o discurso verbal e o visual, e as formas como a diagramao do
livro afeta a produo dos sentidos:
O seguinte excerto o texto que encerra a pgina 145 (pgina direita do leitor) do
corebook de Vampire: The Masquerade:
Social
Your Social Traits describe your appearance, charm and familiarity with the human mind.
Your Social Traits are vital in determining first impressions, leadership ability and the
nature of your interaction with others.
Charisma
Charisma is a measure of your aptitude for enticing and fascinating others. You use
Charisma to win others over to you emotionally and to get them to trust you. This Trait is
more a facet of a charismatic personality than it is an overt manipulation of others. It is a
sum of the characters bearing, charm and power of influence. Charisma reflects your
power to convince others to put their faith in you. (Rein-Hagen et al, 1992b, p. 145)
Ao virar a pgina para continuar o texto, o leitor encontra, ocupando a metade
esquerda da pgina 146 (onde os olhos esperariam encontrar o restante do texto), a seguinte
ilustrao:
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imagens) exerce um esforo nessa direo, oferecendo pistas de sentido que levam o leitor
a assumir a posio interpretativa desejada pelos produtores da imagem. Pode-se, assim,
dizer que o texto visual possui um leitor ideal, conceito que j foi explorado na discusso
sobre a posio discursiva do Leitor de Vampire (captulo 1):
The implied reader, preferred reading position, etc., similarly, is an image
of a certain competence brought to the text and a structuring of such
competence within the text (Rimmon-Kenan 1983: 118): the text selects a
model reader through its choice of a specific linguistic code, a certain literary
style and by presupposing a specific encyclopedic competence on the part of
the reader (Eco 1979:7). (Kress; van Leeuwen, 1996, p. 120)
No se deve esquecer que o Leitor no precisa necessariamente aceitar a forma de
assujeitamento proposta pelo texto; ele pode assumir outras posies discursivas,
promovendo leituras de resistncia:
Readers will at least recognize [producers] communicative intentions and
these values and attitudes for what they are, even if they do not ultimately
accept them as their own values and beliefs. They can recognize the substance
of what is meant while refusing the speakers interpretations and assesments
(Scannell 1994:11) (Kress; van Leeuwen, 1996, p. 120)
Para compreender os efeitos de sentido resultantes de um texto visual, preciso
saber identificar os elementos formais utilizados para interpelar o leitor e construir para ele
uma posio interpretativa. Essa no uma tarefa trivial, pois, diferentemente do que
ocorre com a escrita, que faz parte da vida diria de quase todas as pessoas, a comunicao
visual permanece um campo pouco explorado pelos leigos.
Na bibliografia consultada, foram identificadas duas abordagens possveis e noexcludentes para a identificao dos aspectos formais da comunicao visual:
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a) a proposta por Dondis (1973), autora preocupada com recursos de ordem abstrata,
aos quais ela chama de tcnicas de comunicao visual: transparncia (em oposio
a opacidade), exatido (em oposio a distoro), planura (em oposio a
profundidade), unidade (em oposio a fragmentao), equilbrio (em oposio a
instabilidade), entre outras. O problema com esse modelo interpretativo que ele
depende demasiadamente da subjetividade do analista; no h justificativas de
ordem discursiva para os efeitos de sentido identificados desta maneira. Na ausncia
de uma formulao terica que explique o processo de emergncia dos sentidos,
qualquer interpretao torna-se possvel, desde que parea razovel ao seu autor, e a
validade dos resultados da anlise dilui-se em meio fora da sensibilidade do
analista a determinados sentidos ou recursos argumentativos;
b) a proposta por Kress e van Leeuwen (1996), autores que, indo alm do estudo da
construo de efeitos de sentido por meio de recursos abstratos, propem que parte
das tcnicas de expresso na comunicao visual so anlogas s tcnicas de
comunicao presencial no-verbal da vida cotidiana:
The articulation and understanding of social meanings in images derives from
the visual articulation of social meanings in face-to-face interaction, the spatial
positions allocated to different kinds of social actors in interaction (whether they
are seated or standing, side by side or facing each other frontally etc.). In this
sense the interactive dimension of images is the writing of what is usually
called non-verbal communication, a language shared by producers and
viewers alike. (Kress; van Leeuwen, 1996, p. 121)
claro que a estrutura interpretativa que os autores propem, como qualquer outra, j
plena de sentido em si mesma; algumas possibilidades de emergncia dos sentidos
so priorizadas, em detrimento de outras. O modelo de interpretao apresentado
pelos autores, centrado na identificao da posio que a imagem constri para o
observador, compatvel com os fundamentos tericos da anlise de discurso, e por
esse motivo foi adotado. A presena de outros sentidos, assim como de outros
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uma resposta do observador, e dessa forma constri para ele uma posio interpretativa que
define quem esse observador .
O segundo tipo de imagem mencionada aquele em que no se encontram
participantes humanos (ou humanizados) olhando diretamente para o observador. Aqui,
esse observador no o objeto de uma exigncia, mas sim o sujeito invisvel do olhar. Os
autores chamam esse tipo de imagem de offer, pois os participantes da imagem so
oferecidos ao observador como objetos para contemplao, de forma impessoal. Nenhuma
relao criada entre o observador e os participantes da imagem. H um distanciamento
quase cientfico em relao aos participantes, cujas aes devem ser interpretadas como
naturais, afinal, eles no sabem que esto sendo observados. Por causa desse efeito de
sentido, as imagens do tipo offer so empregadas em contextos nos quais se espera
encontrar informao objetiva, livre de envolvimento emocional por exemplo, em livros
para os nveis superiores da educao bsica.
Muitas concluses podem ser obtidas a partir da anlise das escolhas feitas pelos
produtores das imagens. A algumas personagens permitido interpelar o observador,
enquanto que outras se prestam apenas como objeto para seu escrutnio. A quem
permitido exigir uma resposta social imaginria do observador e a quem no ? Por que
motivos? Que tipo de observador constitui o pblico ideal presumido de um determinado
texto visual? Os autores argumentam, por exemplo, que sujeitos familiarizados com
contextos em que a informao apresentada de forma impessoal e objetiva tendem a ser
resistentes interpelao direta das ilustraes do tipo demand, identificando esse tipo de
assujeitamento com um rebaixamento de sua posio de sujeito (em razo da abundncia
de ilustraes tipo demand em contextos educacionais de nvel bsico, em oposio
predominncia do tipo offer nos nveis mais elevados da educao).
3.3.1.2 Enquadramento / distanciamento social
Kress e van Leeuwen (1996) estabelecem a relao entre os tipos de enquadramento
utilizados pelos produtores de TV e cinema e as distncias empregadas intuitivamente no
convvio social entre pessoas com graus variveis de intimidade, o que resulta na seguinte
progresso:
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que podem ou devem permanecer desconhecidas? Com que pessoas deve haver
identificao por parte do observador? De que forma as relaes imaginrias constitudas
na imagem esto sendo manipuladas?
3.3.1.3 ngulo horizontal / envolvimento
O que Kress e van Leeuwen (1996) definem como ngulo horizontal a posio
relativa entre o plano frontal do fotgrafo (ou do ilustrador) que , efetivamente, o ngulo
sob o qual o observador v a imagem e o plano frontal dos participantes representados na
imagem. Se esses dois planos forem paralelos, tem-se uma perspectiva frontal. medida
que os planos deixam de ser paralelos, a perspectiva torna-se progressivamente mais
oblqua. No se trata aqui de uma distino meticulosa; para os efeitos desta anlise,
possvel considerar que uma imagem possui um ponto de vista frontal mesmo que os dois
planos mencionados no sejam perfeitamente paralelos24. relevante lembrar tambm que,
em imagens com mais de um conjunto de participantes representados, a perspectiva pode
ser frontal em relao a um grupo, mas oblqua em relao a outro.
Em termos de efeitos de sentido, uma perspectiva frontal sugere o envolvimento do
observador com os participantes representados; esse ponto de vista os torna parte do seu
mundo. A perspectiva oblqua, por outro lado, gera um efeito de distanciamento; os
participantes representados so vistos como outros, alheios ao mundo do observador.
Essas percepes valorativas so criadas pelos produtores da imagem, mas o observador
no tem alternativa a no ser ver os participantes representados da maneira como so
mostrados ele limitado pela perspectiva fixa da imagem. A posio interpretativa que
criada para o observador a de um sujeito que compartilha a viso dos produtores da
imagem. semelhana do que ocorre com a leitura de textos verbais, o observador pode
resistir a essa interpretao e negar a identificao com o ponto de vista expresso na
imagem.
Os autores ressaltam que o sistema de perspectiva interage com a opo por
imagens do tipo offer ou demand de maneiras complexas. Assim, uma personagem pode ser
24
Em termos tcnicos, os autores sugerem que se pode considerar uma perspectiva como frontal desde que os
pontos de fuga estejam contidos dentro dos limites verticais da imagem.
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representada como parte do mundo do observador (ngulo frontal), mas de uma forma
objetiva e distante, como um caso a ser estudado (offer); semelhantemente, pode ser
representada como algum que pertence a outro mundo, alheio realidade do observador
(ngulo oblquo), mas que o convida a se situar numa relao imaginria com a personagem
(demand).
Como todas as opes formais mencionadas anteriormente, a escolha de uma
perspectiva revela muito sobre a posio discursiva dos produtores da imagem e a posio
interpretativa que se tenta construir para o observador: que pessoas so consideradas parte
do mundo do observador e que pessoas so consideradas alheias a ele? Por quais motivos?
3.3.1.4 ngulo vertical / relaes de poder
O ngulo vertical utilizado nas imagens tem uma relao direta com as relaes
imaginrias de poder que se estabelecem entre os participantes representados e o
observador. Imagens feitas a partir de um ngulo superior (high angle, Kress; van Leeuwen,
1996) geram o efeito de sentido de superioridade do observador em relao ao que
observado. O participante representado na imagem visto como impotente, sujeito a um
determinismo inescapvel, moralmente fraco, como um objeto a ser estudado e manipulado
pelo observador. Ao contrrio, imagens feitas a partir de um ngulo inferior (low angle,
Kress; van Leeuwen, 1996) geram um efeito de sentido de superioridade, exaltao e
triunfo da personagem representada em relao ao observador. Por fim, se a imagem feita
na altura da linha do olhar, nenhuma diferena de poder indicada entre o observador e os
participantes representados. Livros escolares normalmente exibem imagens feitas em um
ngulo superior, pois o observador, neste caso, situa-se numa posio de conhecimento (e ,
portanto, de poder); celebridades em revistas so fotografadas sob um ngulo inferior,
indicando seu poder simblico sobre o observador; produtos em propagandas so vistos sob
um ngulo superior, pois se deseja obter o efeito de que estejam ao alcance do observador.
Da mesma forma que na anlise do ngulo horizontal, os efeitos de sentido do
ngulo vertical manifestam-se de forma gradativa, proporcional ao desequilbrio relativo
entre as posies do observador e dos participantes da imagem.
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25
Ao introduzir a questo de como abordar a linguagem como objeto de estudo, Bakhtin (1929) apresenta o
que chama de uma anlise geral das linhas mestras do pensamento filosfico e lingstico dos tempos atuais
(Bakhtin, 1929, p. 71). Segundo ele, h duas tendncias principais e radicalmente opostas nos estudos da
linguagem, o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. Segundo o subjetivismo idealista, a lngua
concebida como um fenmeno esttico. Seu funcionamento (assim como o das manifestaes artsticas)
resume-se a um ato de criao individual, e as leis da criao lingstica so as leis da psicologia individual.
J na segunda tendncia, o objetivismo abstrato, o estudo da lngua se resume ao estudo do sistema
lingstico, o sistema das formas fonticas, gramaticais e lexicais da lngua; toda a contribuio individual,
todos os atos particularizados de fala so desconsiderados. Segundo esta orientao, as leis lingsticas no
podem depender da conscincia individual. (continua)
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O subjetivismo individualista concebe a enunciao (e, portanto, a interpretao, que nada mais do que uma
enunciao a respeito de um enunciado produzido por outrem) como expresso da conscincia individual, de
seus desejos, suas intenes, seus impulsos criadores, seus gostos, etc. (Bakhtin, 1929, p. 110-111)
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claro que nem todos os leitores desejaro (ou mesmo sero capazes de) assumir a
posio discursiva construda pela imagem; para alguns, possivelmente, o choque inicial
permanece como o efeito mais forte da imagem da sua classificao dentro da temtica
do tabu. A leitura de resistncia (aquela em que predominam os significados gerados pelo
Leitor, no os propostos pelo Autor), neste caso, a leitura que favorece os significados de
rejeio rejeio em relao criatura representada, ao livro em cuja capa ela
representada, a todo o universo do jogo no qual ela est inserida. De qualquer forma,
embora os produtores sejam responsveis por publicar tal ilustrao, no razovel
imaginar que o Leitor atribua-lhes a responsabilidade de sugerir uma identificao com a
criatura representada (conforme a discusso sobre a suposta liberdade de interpretao do
discurso visual). Em outras palavras, difcil para o pblico leigo enxergar a posio
discursiva que a imagem constri como um efeito de sentido da imagem; o leitor leigo
provavelmente considera as duas posies interpretativas mencionadas (afinidade e
rejeio) como interpretaes suas. A ele restam duas opes bem definidas: integrar-se ao
universo do jogo ou reneg-lo.
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contato visual direto com o observador. As mos algemadas, incapazes de fazer qualquer
gesto em direo ao observador tambm reforam o modo de representao offer. Essa
personagem oferecida ao escrutnio do observador. Nenhuma reao de empatia ou
compaixo esperada. O enquadramento tambm a afasta do observador; se a moa
estivesse em p, ocuparia cerca de metade da altura da imagem, o que qualifica o
enquadramento como long shot uma distncia que enfatiza a formalidade e a
impessoalidade, ou na qual, nas palavras de Gosser, citado por Kress & van Leeuwen
(1996), possvel olhar para uma pessoa como se fosse uma rvore numa paisagem.
O ngulo vertical superior em relao moa cada refora seu aspecto de
impotncia, de sujeio a foras fora de seu controle (efeito reforado pela mordaa e pelas
algemas). O ngulo horizontal revela uma perspectiva bastante oblqua, o que gera o efeito
de sentido de no pertencimento ao mundo do observador. Sob todos os critrios de anlise,
a personagem da moa o outro, alheio, estranho.
Passando ao grupo de personagens em primeiro plano, s podemos analis-lo a
partir da personagem que segura o tubo de ensaio contra a luz, pois a outra est
demasiadamente fora do enquadramento. A primeira personagem, assim como a moa ao
fundo, tambm representada em modo offer; ela no est ciente da presena do
observador, e leva adiante suas tarefas com uma expresso de distanciamento cientfico (o
prprio tubo de ensaio compe o significado de experimento). Esse efeito de sentido de
racionalidade e frieza reforada pelo enquadramento medium long shot, que mostra todo o
corpo do indivduo ao longo da dimenso vertical da imagem, e que est associado
distncia em que se trata de assuntos impessoais (ainda assim, a personagem est muito
mais prxima do observador do que a moa).
O ngulo horizontal sob o qual a personagem do tubo de ensaio enfocada no
realmente frontal; trata-se de uma perspectiva oblqua, assim como a da moa cada. O que
evidente, porm, que o ngulo entre o plano em que se encontra a personagem do tubo
de ensaio e o plano frontal do observador muito mais fechado do que aquele formado
pelos planos do observador e da moa cada, ou seja, a perspectiva da personagem em
primeiro plano muito menos oblqua do que a da moa ao fundo. Como os efeitos de
sentido desenvolvem-se a partir das relaes entre os participantes da imagem, e no
simplesmente de valores absolutos de variveis tcnicas, a impresso resultante que a
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interessante notar que, nesta imagem, a posio do observador espacialmente diferente da do leitor.
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figura reforam essa impresso: o vestido longo mas justo, que revela as formas do corpo,
as luvas longas, as costas e os ombros nus, o cabelo arrumado, a postura com a cabea
inclinada, a tatuagem da rosa no brao, o batom e a maquiagem, a prpria tcnica de
representao bastante fiel realidade (que torna a existncia da personagem mais
palpvel), tudo isso contribui para criar uma atmosfera de seduo e extrair uma resposta
emocional do observador. As roupas e a postura da personagem sugerem que ela pertena a
um extrato muito alto da sociedade (a um outro mundo, portanto, em relao maioria dos
leitores), mas ainda assim ela se faz acessvel ao observador, convidando-o a envolver-se
com ela. O ngulo vertical indica uma simetria de poder entre observador e personagem,
reforando sua acessibilidade.
Diferentemente do que ocorre em outras imagens analisadas, nesta no se constri
uma posio interpretativa para o observador que seja diferente da do Leitor. No h
elementos de tabu, violncia ou vulgaridade, que poderiam ser euforizados ou disforizados
dependendo do assujeitamento do Leitor. O efeito de sentido de seduo resulta da
aplicao de convenes discursivas amplamente disseminadas no mundo real. A
personagem representa um padro de beleza amplamente aceito a posio discursiva do
observador a de uma pessoa qualquer, transcendendo as divises de sexo e preferncia
sexual. A leitura de resistncia possvel se resumiria basicamente a negar os significados de
seduo, o que somente possvel neste caso se forem ignorados os diversos elementos
anteriormente mencionados, incluindo-se a a prpria beleza da personagem. Essa leitura de
resistncia, embora possvel, pouco provvel. Esta imagem funciona como um
contraponto de consenso ao discurso visual altamente polmico de Vampire, atenuando seu
aspecto chocante.
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este deva ter uma relao emocional. O ngulo vertical levemente superior, associado
representao offer, como em outras imagens analisadas, gera um efeito de livro didtico:
a cena apresentada ao observador como um esquema racional, um experimento, a partir
do qual ele deve aprender algo. O enquadramento medium long shot, adequado a assuntos
impessoais, refora esse efeito de distanciamento cientfico.
Essa ausncia de empatia com as personagens representadas pode ser explicado a
partir da narrativa contida na imagem. Nela, v-se um grupo de exploradores prestes a
adentrar receosamente o que parece ser o poro ou um compartimento subterrneo de uma
casa. A partir da temtica do jogo e da observao dos objetos que carregam martelos,
estacas possvel inferir que se trata de um grupo de caadores de vampiros. Pelas
janelas ao fundo, possvel perceber que j noite; as prprias personagens esto no
escuro, como se observa pelos feixes luminosos das lanternas que carregam e tambm pela
ausncia de sombras. Trata-se de uma m escolha de horrio para enfrentar criaturas
estritamente noturnas. Para piorar a situao do grupo de personagens, o elemento surpresa
que julgam ter tambm foi eliminado ao fundo, direita na imagem, h uma porta para
um cmodo sem iluminao, e l possvel ver, luminescentes na escurido total, os olhos
do vampiro que as personagens esto tentando emboscar. A situao do grupo de
personagens parece ser bastante desfavorvel; o nico trunfo que tem a seu favor a
superioridade numrica, mas ser que isso o bastante? O prprio ttulo deste suplemento,
The Hunters Hunted, revela-se complexo e ambguo: afinal, quem est caando quem?
Em vista da situao crtica das personagens, pode-se interpretar a ausncia de
empatia com elas e o carter didtico da imagem como uma declarao visual de isto o
que no se deve fazer quando se caa vampiros. As personagens no so exemplos a serem
seguidos, heris de uma causa nobre, pessoas com as quais o observador deve buscar
identificar-se; elas esto cometendo erros que podem muito bem custar suas vidas.
Diferentemente de muitas outras imagens em que a posio interpretativa construda
para o observador leva-o a criar uma identificao com os monstros, neste caso, a
identificao (ainda que distante) criada com seres humanos. Isso faz sentido, pois esta
a ilustrao da capa de um suplemento sobre caadores de vampiros; a identificao que se
pretende construir para o observador com essas personagens, e no com os vampiros (que
so as personagens centrais da maior parte dos outros suplementos de Vampire, resultando
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Se a personagem est ajoelhada e, ainda assim, o ngulo vertical do observador pouco superior ao dela,
entende-se que o prprio observador observa a cena de uma posio muito baixa, talvez ajoelhado ou sentado
mas certamente no em p. A sua posio tambm de submisso.
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medium long shot (corpo inteiro) a mantm a uma distncia impessoal, e serve tambm
para exibir a totalidade dos trajes da personagem. O ngulo vertical inferior a coloca numa
posio de superioridade, autorizando-a a emitir um julgamento sobre o observador. Alm
dessa postura arrogante, o outro elemento que chama a ateno na imagem so as roupas da
personagem28, que traja um sobretudo, usa abotoaduras nas mangas da camisa e porta uma
bengala. Esses adereos do-lhe um aspecto de elegncia aristocrtica, ainda que antiquada
(e reforam a sua posio de poder sobre o observador). Na ausncia de outras temticas
chocantes (horror, sexualidade etc.), o que mais chama a ateno do observador o estilo
incomum das roupas da personagem que est intrinsecamente ligado ao efeito de sentido
da imagem, como demonstrado acima. razovel, ento, supor que a desaprovao da
personagem esteja ligada ao modo de se vestir do observador. Essa a caracterstica
fundamental das ilustraes classificadas dentro da temtica do gtico-punk: elas ilustram o
estilo de se vestir das personagens do Mundo das Trevas, e constroem a idia das roupas
como significantes de poder ou de afiliao a grupos. Fairclough (1992), a respeito da
colonizao das diferentes ordens de discurso societrias pelo discurso da publicidade j
observara que, nesses casos, uma das funes principais da imagem evocar uma
experincia de segunda mo, criar uma comunidade de afinidades (o que as imagens
conseguem fazer de modo muito mais rpido e efetivo do que a linguagem escrita). A esse
respeito, ver tambm o captulo 2, item 2.2.2 comodificao.
Retomando as consideraes de Kress & van Leeuwen (1996) sobre as
possibilidades de utilizao do ngulo vertical, as figuras da mdia so geralmente
representadas sob um ngulo inferior, o que as constitui como portadoras de um poder
simblico sobre o observador, como objetos de seu desejo. Esse parece ser o caso aqui. A
personagem representada um modelo esttico a ser adotado, como confirma a anlise de
todas as variveis tcnicas. O observador pode ou no aceitar esse assujeitamento, claro.
A leitura de resistncia mais provvel, neste caso, partiria de uma posio interpretativa
segundo a qual os trajes da personagem seriam vistos como ultrapassados, ridculos ou
exagerados. Este tema do discurso visual aquele que possui o maior potencial de produzir
leituras de resistncia, uma vez que os gostos particulares de cada leitor quanto ao vesturio
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so extremamente variados. Na prtica, porm, isso no acontece, porque o estilo Gticopunk se caracteriza por indumentrias e adereos bastante incomuns, o que cai no gosto de
grande parte do pblico adolescente de Vampire.
3.5 Concluso
Retomando as concluses sobre os efeitos de sentido predominantes nos diferentes
grupos temticos, tem-se o seguinte:
Tabu: O efeito de sentido de tabu nessas imagens est associado sua interpretao
a partir da posio discursiva do Leitor; o senso comum sobre o que ou no
aceitvel em termos de conduta choca-se frontalmente com os significados que
brotam das imagens, produzindo o efeito de desconforto e de rejeio pelo universo
do jogo. Por outro lado, se o leitor assume a posio discursiva de uma personagem
dentro do mundo ficcional do RPG (a posio interpretativa pretendida pelo Autor),
os significados produzidos a partir da imagem so outros, a sensao de choque
desaparece, e o universo do jogo passa a ser aceitvel.
Sexualidade: Como visto, freqentemente as imagens centradas na temtica de
sexualidade lidam tambm com outros temas que, pode-se supor, causam
desconforto ao leitor; As associaes entre sexualidade e violncia e sexualidade e
tabu so particularmente frutferas no discurso visual de Vampire. Supondo um
leitor que no explore as prticas sexuais consideradas marginais, tambm estas
imagens causaro um efeito de desconforto, supervel pelo abandono da posio
discursiva do Leitor e a adoo de uma posio discursiva ficcional no World of
Darkness a posio interpretativa ideal construda pela imagem.
Violncia: Muitas das imagens classificadas nesta temtica representam agressores
inatingveis, sobre-humanos, ao mesmo tempo em que promovem a identificao do
observador com as vtimas ou seja, a imagem sugere a criao de uma posio
interpretativa que no difere muito da posio discursiva do Leitor. O efeito de
sentido geral acaba sendo uma atmosfera de temor, em que o observador se
reconhece como vtima em potencial de uma violncia praticada por um agressor
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freqentemente sem rosto (em 50% do corpus no se pode ver o rosto do agressor).
Por outro lado, quando o observador identificado ao perpetrador da violncia (o
que garantido pelo tom do discurso verbal do livro onde a imagem est inserida),
claro, a posio que assume bastante distante da posio discursiva do Leitor. O
efeito de sentido de temor desaparece, dando lugar a um sentido de triunfo, de
prevalncia sobre os adversrios. Nesses dois casos, porm, a posio interpretativa
dominante aquela construda pelo Autor; as leituras divergentes so sempre
desautorizadas pelos elementos da imagem. Observe-se a diferena entre o
funcionamento discursivo desta temtica e da temtica do tabu, por exemplo, em
que o observador quase sempre identificado com o perpetrador da violncia.
Horror: As imagens classificadas nesta categoria, em geral, apresentam seres
humanos ameaados por criaturas sobrenaturais, supostamente mais fortes e
agressivas. Dessa situao surge um efeito de sentido de horror opressivo nessas
imagens pelo menos quando se leva em conta a posio interpretativa de um
Leitor que se identifica com as vtimas humanas. Passando posio do observador
construda pela imagem, tem-se uma situao complexa, em que a identificao
com as vtimas , em certa medida, interditada (embora a identificao com os
agressores nem sempre seja construda discursivamente). Ao observador resta
permanecer passivo enquanto a narrativa das imagens segue seu curso. Como a
identificao com as vtimas no imediata, o elemento de horror diludo,
tornando-se um horror cmico, semelhana do que freqentemente ocorre nos
filmes de horror contemporneos, em que o infortnio das vtimas um elemento de
diverso e descontrao. Entende-se que esta, a interpretao favorecida pelo Autor,
possui um apelo mais forte entre o jovem pblico leitor de RPGs.
Misria: Tomadas em conjunto, essas imagens constroem para o observador uma
posio discursiva que pouco difere da posio do Leitor. Por esse motivo, mais
difcil resistir ao assujeitamento que promovem. O efeito geral de aproximar o
observador das personagens representadas, criando sentimentos de compaixo pelas
suas aflies e de proximidade. A temtica da misria, diferentemente de todas as
outras, engloba ilustraes em que a polifonia no facilmente identificvel; no h
um conflito evidente de posies interpretativas. preciso lembrar que, como
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mencionado na anlise das sries histricas dos temas visuais, o tema da misria
pouco representado depois dos anos iniciais da srie Vampire, o que refora a idia
de que o discurso visual desse RPG pautado pela polmica (o que refora o efeito
de polifonia e a possibilidade de conflito de interpretaes, na medida em que a
polmica facilita o surgimento de interpretaes divergentes).
Gtico-punk: As imagens classificadas nesta categoria apresentam a maior
freqncia de ocorrncia de representaes do tipo demand de todas as temticas
identificadas, assim como de perspectivas frontais, reforando a proximidade e a
relao emotiva entre observador e personagens. O ngulo vertical inferior tambm
freqentemente empregado. As personagens representadas nessas imagens so, via
de regra, modelos a serem adotados. As ilustraes centradas na temtica do gticopunk so as mais homogneas de todo o corpus, quase nunca apresentando
elementos polmicos, o que permite que a posio interpretativa favorecida pela
imagem seja prxima posio discursiva do Leitor. Essas ilustraes
desempenham um papel fundamental no assujeitamento dos leitores, estabelecendo
padres estticos que so largamente aceitos pelos jogadores de Vampire e que
permitem a fcil identificao mtua. A observao de grupos de jogadores
demonstra que a ocorrncia de leituras de resistncia mnima.
Como mencionado anteriormente, as temticas da misria e do gtico-punk
rapidamente perdem espao na srie de livros de Vampire, que passa a investir
consistentemente nas temticas mais polmicas, como sexualidade e tabu no por acaso,
estas temticas so identificadas, na comparao entre o discurso visual dos diferentes
ttulos de RPG, como temticas especficas de Vampire.
Tomando essa mesma constatao sob o ponto de vista das posies discursivas
construdas para o leitor pelo discurso visual do jogo, tem-se que as temticas que
consistentemente favorecem posies interpretativas semelhantes do Leitor so
abandonadas, enquanto que as temticas polmicas, que favorecem posies interpretativas
bastante divergentes e conflituosas em relao posio do Leitor prevalecem.
Como
mencionado
anteriormente,
as
imagens
que
favorecem
posies
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CONCLUSO
Concluso
Nesta pesquisa, buscou-se analisar a interao entre as posies discursivas do
Autor e do Leitor em alguns livros da linha de RPG Vampire: the Masquerade, para
confirmar a hiptese de que, nesse jogo, uma nova relao de poder era estabelecida entre
as referidas posies, de tal forma que o Leitor seria alado posio de fonte privilegiada
de produo de significados.
Na anlise do discurso verbal de Vampire, difcil chegar a uma concluso clara;
em algumas passagens parece ocorrer de fato uma valorizao das contribuies do Leitor
na produo de sentidos, enquanto que em outras se verifica uma tentativa clara de
centralizar o poder interpretativo na posio discursiva do Autor, sem que haja a
predominncia de um ou de outro modelo de relao de poder. O que se pode dizer que o
discurso verbal ambguo em relao sua inteno declarada de conceder o poder
interpretativo ao Leitor. Passando anlise do discurso visual de Vampire, o que se observa
uma postura muito mais centralizadora por parte do Autor; as suas interpretaes do
discurso visual so evidentemente privilegiadas sobre as do leitor. Isso ocorre em parte
porque, diferentemente do discurso verbal, o discurso visual no oferece ao Leitor a
possibilidade de jogar com parfrases e formulaes alternativas; ele deve ater-se
formulao produzida pelo Autor (a ilustrao), o que limita drasticamente as suas
possibilidades de situar sua posio interpretativa. Ao Leitor restam, basicamente, duas
opes: aceitar a posio interpretativa construda pela ilustrao uma posio discursiva
que o inclui no universo do jogo e a partir da qual a ilustrao gera sentidos desejveis (isto
, de euforizao do jogo e de sua atmosfera) ou resignar-se a uma posio interpretativa
de excluso, externa ao jogo, na qual todas as temticas visuais so disforizadas. Tomado
como um discurso multimodal, e considerando-se a importncia das imagens dentro do
gnero RPG, os fatos parecem apontar para a efetiva centralizao do poder interpretativo
na posio do Autor, contrariando as freqentes afirmaes de liberdade interpretativa
presentes no texto de virtualmente todos os livros da srie Vampire. Como visto no captulo
2, porm, a democratizao uma tendncia discursiva contempornea, o que dificulta a
aplicao aberta de estratgias centralizadoras. Em decorrncia disso, o aspecto
centralizador camuflado no discurso verbal, pois essa a dimenso do discurso em que
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ele pode ser mais facilmente percebido. Como, entretanto, a maioria das pessoas no teve
acesso a uma educao formal sobre as estratgias argumentativas no discurso visual, nessa
dimenso essas estratgias so menos perceptveis e seu uso mais ostensivo.
A hiptese inicial de que, no discurso de Vampire, estabelecia-se uma nova relao
de poder entre Autor e Leitor, favorvel a este ltimo, no se confirmou. O que se verificou
na verdade a presena de uma nova forma de centralizao do poder na posio discursiva
do Autor; as formas tradicionais de centralizao explcita foram abandonadas em favor de
formas mais brandas e menos visveis, de acordo com as convenes discursivas
contemporneas apontadas por Fairclough (1992). Ultrapassada a superfcie textual, o
discurso do livro de regras se torna mais centralizador; embora esse discurso seja
evidentemente heterogneo, e permita que o saber-poder interpretativo flua para o Leitor
em determinados pontos, prevalecem os significados associados posio discursiva do
Autor. A relao de poder que se pretende construir nesse discurso, embora dissimulada,
no difere daquela encontrada no discurso prescritivo das regras de qualquer outro jogo.
No se deve, entretanto, esquecer que o leitor um participante ativo (embora
freqentemente inconsciente) no processo de elaborao de sentidos, um participante capaz
de moldar o discurso do jogo de formas imprevistas pelo seu Autor. O recorte da prtica de
jogo feito nesta pesquisa, centrado na interpretao do livro de regras, favorece a
valorizao do Autor como fonte de significados, pois todo o texto analisado produzido a
partir de sua posio discursiva; o domnio das prticas de jogo excludo desta pesquisa a
produo das narrativas individualizadas dentro do grupo de jogo , por oposio, o
cenrio em que se o Leitor/Jogador assume a posio hegemnica como produtor de
significados. Isso explica a impossibilidade de se confirmar, neste texto, a hiptese inicial.
A anlise aqui desenvolvida tem sua validade como uma anlise parcial da prtica de jogo
do RPG Vampire: The Masquerade, centrada na posio discursiva do Autor. Uma
compreenso efetiva da prtica de jogo como um todo s poderia ser obtida a partir de uma
anlise que englobasse cada um dos dois domnios dessa prtica nas suas singularidades e
nas suas formas de relacionamento. Somente uma tal anlise tornaria possvel estabelecer
de forma precisa as estratgias discursivas, as possibilidades de ao e reao das posies
do Autor e do Leitor no domnio das prticas de jogo de Vampire. O domnio
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Valdir
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texto
publicado
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APNDICE I
HISTRIA DO RPG
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Histria do RPG
O RPG foi inventado por Gary Gygax e Dave Arneson, dois estudantes de histria
na cidade de Lake Geneva, Wisconsin, nos EUA, no incio da dcada de 70. Dave
e Gary eram fs de jogos de guerra, conhecidos como os "war games", mas com
temticas medievais. No a Idade Mdia verdadeira e histrica, mas uma era
medieval num mundo fantasioso, habitado por magos, elfos e drages, inspirados
em livros como "O Senhor dos Anis" de J. R. R. Tolkien.
A vontade de jogar em mundos assim, os fez criar o seu prprio jogo de guerra, o
Chainmail, ambientado em um cenrio fictcio chamado Greyhawk. Eles entraram
to fundo no universo do jogo, que queriam alguma coisa mais, queriam criar um
ambiente real, onde as guerras fossem decididas no s atravs da batalha, mas
tambm pela diplomacia. O que aconteceria se um diplomata fosse enviado ao
reino inimigo para tentar negociar a paz, no lugar de um exrcito pelejar numa
batalha?
Para fazer isso, os dois rapazes elaboraram as estatsticas de um s personagem,
assim como tinham antes feito com os exrcitos. Mas para negociar a paz no
bastavam nmeros: o jogador iria precisar interpretar o personagem, como em
uma pea de teatro, mas sem roteiro. O resultado foi a criao de um jogo onde
no se jogava mais com exrcitos, e sim com personagens daquele mundo de
fantasia: mago, guerreiros, anes e elfos. O trabalho de Gary Gygax e Dave
Arneson deu origem ao primeiro jogo de RPG, o Dungeons & Dragons.
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abordagem
para
RPG.
Seu nome era Empire of Petal Throne e foi lanado pela prrpia TSR em 1975, alcanado
pouco sucesso de vendas. O autor, o professor universitrio M.A.R. Barker, abandonou os
clichs das lendas medievais para criar um mundo completamente diferente, habitado pelos
Ahoggya, Pe Choi e dezenas de outras raas bizarras que se inspiravam lendas astecas,
egpicias
de
outros
povos
da
antiguidade.
Super Heris: com o sistema Champions, que alm de ter iniciado um gnero trouxe
um modo de criao de personagem baseado em pontos, acrescentando alm dos
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Outros: definivamente entre o fim do anos 80 e incio dos 90 surgiram sistemas para
todos os gostos em todos os gneros possveis (militar, antiguidade, etc).
Hoje, existem centenas (provavelmente milhares) de jogos diferentes sendo publicados pelo
mundo. E no h quem negue que o RPG veio para ficar.
RPG no Brasil
E pra quem acha que s sabemos de samba e carnaval, aqui tambm tem RPG (e do bom).
At onde eu sei o primeiro jogo nacional O Desafio do Bandeirantes lanado no incio dos
anos 90. Baseado no D&D e AD&D, substituiu os orcs e elfos por curupiras, sacis e outros
seres das lendas brasileiras. Apesar de ter alcanado pouco sucesso, ainda pode ser
encontrado em livrarias especializadas.
Alguns outros sistemas nacionais so: Tagmar (fantasia a la AD&D), Millenia (fico
cientfica), Invaso (Arquivo X tupiniquim), Trevas (terror) e Defensores de Tquio (super
heris japoneses).
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GLOSSRIO
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The Great War); outros ainda detalham as crenas, segredos e pontos de vista de um
determinado grupo social (e.g. Clanbook Nosferatu ou Guide to the Anarchs).
White Wolf: A editora dos jogos do World of Darkness, entre diversas outras linhas,
sediada nos EUA.
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