Música de Feitiçaria No Brasil - Conferência Literária PDF
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2004 n
RESUMO:
Este ensaio trata do modo como Mrio de Andrade articula
cincia e literatura em seu texto Msica de feitiaria no
Brasil: conferncia literria, conforme procedimentos de
composio identificados e estudados por ele na cultura
popular brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Mrio de Andrade, Brasil, folclore, literatura.
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Ora eu levava pro Nordeste uma grande curiosidade pela feitiaria musical,
que no meu Estado j no existe propriamente mais. O povo brasileiro, de
Norte a Sul, muito supersticioso e dado a prticas feiticeiras, porm
neste mundo de terras vrias, as formas baixas de propiciao, louvor ou
exorcismo das foras daimonacas variam bastante (...) De S. Paulo pro Sul
uma superstio mais avassaladoramente europeizada se aplica secamente s
prticas do baixo espiritismo (...) Assim pois, ao chegar em Natal um dos
meus cuidados foi descobrir feiticeiros de catimb. E o acaso logo me
forneceu dois, o mestre Manuel e o mestre Joo. No catimb os pais de santo
so chamados de mestres, que usana tradicional portuguesa. Cndido de
Figueiredo d mestre com o sentido antiquado de mdico pra Portugal
acrescentando apenas que em Macau e no Ceilo a palavra significa curandeiro;
mas que os feiticeiros curadores se chamavam de mestres tambm em Portugal
o prova um manuscrito de 1630 que diz costuma haver mulheres que debaixo do
nome de mestres usavo (sic) curar os enfermos com reprovadas artes diablicas
e supersties....
Percebe-se que h sempre uma articulao entre os trechos narrativos e
os dissertativos: esses ltimos explicam ou contextualizam algum aspecto daquilo
que foi exposto nos primeiros. Mas curioso observar que, juntando os trechos
referentes experincia do pesquisador no Nordeste, que foram transcritos acima em
itlico, a narrativa se desenrola perfeitamente.
No decorrer da leitura, possvel juntar os trechos relativos histria,
construindo-se uma narrativa coerente, com princpio, meio e fim, passvel de
leitura fora do contexto da conferncia. A histria se constitui, ento, dentro da
conferncia, como um todo independente, dotado de sentido em si mesmo. Por outro
lado, o estudo da msica de feitiaria no Brasil se manteria sem prejuzo de sua
coerncia se retirssemos da conferncia os trechos narrativos. Alm disso, no h
uma perfeita correspondncia entre os trechos narrativos e dissertativos: o estudo
da msica de feitiaria excede os aspectos apresentados pela histria do ritual de
catimb, assim como h trechos da histria do ritual que se desenvolvem sem
interrupes e no so recuperados pela argumentao do autor, fazendo sentido
apenas como partes da histria.
Comparando a utilizao da crnica na conferncia com a utilizao, por
exemplo, do texto da cantiga Candombe-ser, percebe-se a diferena das funes
desempenhadas por essa ltima e pela histria do ritual de catimb. A cantiga
trazida conferncia em meio a uma especulao sobre o significado da palavra
candombe, que poderia trazer esclarecimentos sobre a identificao entre a msica
negra e certos rituais da feitiaria afro-brasileira:
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Lindolfo Gomes colheu em Minas o conto do bicho Pond em que vem uma
cantiga que tambm exemplo dos numerosos textos bilingues existentes em
nosso pas. A cantiga diz assim
Me abre a porta / Candombe-ser
Minha madrinha / Candombe-ser
Que o bicho Pond, / Candombe-ser
Quer me comer / Candombe-ser.
O folclorista no nos esclarece no Vocabulrio sobre o que seja esse refro,
e de fato o problema difcil pois que tanto a palavra pode estar a no
sentido de dana como no sentido de magia religiosa. A forma do canto
claramente responsorial: um verso entoado pelo solista e outro verso-refro
entoado pelo coro. Ora esse processo de ladainha utilizadssimo pelo nosso
povo tanto nas suas festas profanas como nos seus cnticos de feitiaria.
Da cantiga, tudo o que trazido ao texto da conferncia serve
argumentao do pesquisador: a expresso cujo significado se quer apreender
pensada em sua relao com a forma do canto, e a anlise desenvolvida justifica a
sua apresentao no texto como documento. impossvel separar a cantiga do contexto
em que est inserida, sem prejuzo da coerncia do texto. J a histria do ritual
de fechamento de corpo do catimb, como vimos, corre paralela ao estudo da msica
de feitiaria, sem estabelecer com ele relaes de dependncia. s vezes, a histria
e o estudo se distanciam de tal maneira que se faz necessrio promover a costura
entre os dois estratos atravs de um artifcio de enunciao: Mas onde ficou o meu
fechamento de corpo!... exclama o narrador da histria, aps perder-se por mais de
dez pginas discutindo os mais diversos aspectos da msica de feitiaria.
significativo o fato de que o final da conferncia coincida com o final da histria,
em mais de duas pginas sem interrupo para explicaes ou anlises, sem interpretaes
conclusivas, demonstrando a sua autonomia no texto.
Em determinado momento de seu percurso como pesquisador da cultura
popular brasileira, Mrio identifica em nossas danas dramticas (segundo ele uma
das mais tpicas manifestaes da msica popular brasileira) um modo especfico de
composio, que ele iria adotar em sua criao literria:
O que caracteriza mais o aspecto contemporneo de todas as nossas danas
dramticas, que elas, como esprito e forma, no so um todo unitrio em
que desenvolve-se uma idia, um tema s. O tamanho delas, bem como o seu
significado ideolgico, independe do assunto bsico. No geral o assunto d
ensejo a um episdio s, rpido, dramaticamente conciso. E esse ncleo
bsico ento recheiado de temas apostos a ele; romances e outras quaisquer
peas tradicionais e mesmo de uso anual se grudam nele; textos e mesmo
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do povo brasileiro era seu interesse tanto como autor de obras literrias quanto
como estudioso sistemtico da matria. Tal interesse e o reconhecimento das
possibilidades oferecidas pelas duas abordagens se refletem no texto de sua conferncia.
Nela, essas duas perspectivas, a literria e a etnogrfica, se juntam como facetas
que compem o modo de ver de um nico sujeito, aquele que escreve, que vou preferir
chamar de narrador do texto.
Esse narrador, em alguns momentos, se apresenta distanciado do objeto
que estuda, munido de instrumentos de uma cincia importada da Europa, em outros ele
se aproxima desse objeto, experienciando-o. Sente simpatia ou antipatia pelos
mestres do catimb, cr ou no cr nos espritos que eles invocam, tomado de
embriaguez pela sua msica, repete os casos contados por eles, parecendo acreditar
naquilo, participar daquilo. Das diferentes posies que assume no texto, o narrador
recolhe os elementos de que so formadas sua linguagem e sua viso. Desse modo, ele
se nos apresenta como um representante da variedade cultural caracterstica do
brasileiro. significativo que o narrador suspire como Macunama, ai que
preguia!..., identificando-se com o nosso heri sem nenhum carter, personagem
que deve ser entendida (...) como tentativa de avaliao exata do comportamento
brasileiro, em suas oscilaes.
ABSTRACT:
The present essay analyzes the articulations proposed by
Mrio de Andrade in his text Msica de feitiaria no
Brasil: conferncia literria between science and
literature, according to the different procedures of
composition identified and studied by the author in popular
Brazilian cultural products.
KEY WORDS: Mrio de Andrade, Brazil, folklore, literature.
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