Gonçalves, José Reginaldo - Antropologia - Dos - Objetos PDF

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ANTROPOLOGIA DOS

OBJETOS: COLEES,
MUSEUS E PATRIMNIOS
Jos Reginaldo Santos Gonalves
G624a

Gonalves, Jos Reginaldo Santos
Antropologia dos objetos : colees, museus e patrimnios / Jos Reginaldo
Santos Gonalves. - Rio de Janeiro, 2007.
256p. -(Museu, memria e cidadania)


1. Etnologia. 2. Antropologia. I. Ttulo. II. Srie.
07-4138. CDD: 306
CDU: 316.7
MINISTRIO DA CULTURA
INSTITUTO DO PATRIMNIO HISTRICO E ARTSTICO NACIONAL
DEPARTAMENTO DE MUSEUS E CENTROS CULTURAIS
PRESIDENTE DA REPBLICA
Luiz Incio Lula da Silva
MINISTRO DA CULTURA
Gilberto Passos Gil Moreira
PRESIDENTE DO IPHAN
Luiz Fernando de Almeida
DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE MUSEUS E CENTROS CULTURAIS
Jos do Nascimento Jnior
DIRETOR DE PATRIMNIO MATERIAL
Dalmo Vieira Filho
DIRETORA DE PATRIMNIO IMATERIAL
Mrcia Genesia de SantAnna
DIRETORA DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAO
Maria Emlia Nascimento dos Santos
PROCURADORA-CHEFE
Lcia Sampaio Alho
COORDENADORA GERAL DE PROMOO DO PATRIMNIO CULTURAL
Luiz Philippe Peres Torelly
COORDENADORA GERAL DE PESQUISA, DOCUMENTAO E REFERNCIA
Lia Motta
Coleo Museu, Memria e Cidadania
Coordenao: Jos do Nascimento Jnior e Mrio Chagas
EDITORAO
Mrio Chagas e Claudia Maria Pinheiro Storino
ASSISTNCIA EDITORIAL
Tatiana Kraichete Martins
PROJETO GRFICO
Marcia Mattos
EDITORAO ELETRNICA
Editora Garamond Ltda.
Para
Isadora, Renata e Mariana
7 INTRODUO
13 TEORIAS ANTROPOLGICAS E OBJETOS MATERIAIS
43 COLEES, MUSEUS E TEORIAS ANTROPOLGICAS: REFLEXES SOBRE
CONHECIMENTO ETNOGRFICO E VISUALIDADE
63 OS MUSEUS E A CIDADE
81 OS MUSEUS E A REPRESENTAO NO BRASIL
107 O ESPRITO E A MATRIA: O PATRIMNIO ENQUANTO CATEGORIA DE PENSAMENTO
117 AUTENTICIDADE, MEMRIA E IDEOLOGIAS NACIONAIS: O PROBLEMA DOS PATRIMNIOS CULTURAIS
139 MONUMENTALIDADE E COTIDIANO: OS PATRIMNIOS CULTURAIS COMO GNERO DE DISCURSO
159 SISTEMAS CULINRIOS COMO PATRIMNIOS CULTURAIS
175 A FOME E O PALADAR: A ANTROPOLOGIA NATIVA DE LUS DA CMARA CASCUDO
195 PATRIMNIO, MEMRIA E ETNICIDADE: REINVENES DA CULTURA AORIANA
211 RESSONNCIA, MATERIALIDADE E SUBJETIVIDADE: AS CULTURAS COMO PATRIMNIOS
235 A OBSESSO PELA CULTURA
interpretao antropolgica de quaisquer formas de vida
social e cultural passa necessariamente pela descrio etno-
grfca dos usos individuais e coletivos de objetos materiais. No apenas
pelas razes evidentes de que esses objetos preenchem funes prticas
indispensveis, mas, especialmente, porque eles desempenham funes
simblicas que, na verdade, so pr-condies estruturais para o exerccio
das primeiras.
Seja no contexto de seus usos sociais e econmicos cotidianos, seja
em seus usos rituais, seja quando reclassifcados como itens de colees,
peas de acervos museolgicos ou patrimnios culturais, os objetos ma-
teriais existem sempre, necessariamente, como partes integrantes de
sistemas classifcatrios. Esta condio lhes assegura o poder no s de
tornar visveis e estabilizar determinadas categorias socio-culturais,
demarcando fronteiras entre estas, como tambm o poder, no menos
importante, de constituir sensivelmente formas especfcas de subjeti-
vidade individual e coletiva.
Os textos reunidos neste livro focalizam tpicos diversos, embora in-
terligados: teorias antropolgicas e objetos materiais; museus etnogr-
fcos e visualidade; museus e experincia urbana; museus e identidade
nacional; concepes de patrimnio cultural; sistemas culinrios como
patrimnios culturais; a antropologia nativa de Luis da Cmara Cascudo;
as representaes aorianas do patrimnio no contexto das festas do
9 {jos r eginal do santos gonal ves}
divino esprito santo; uma refexo sobre as categorias ressonncia, ma-
terialidade, subjetividade e sua relevncia para entendermos os discursos
do patrimnio; e um artigo fnal, onde desenvolvo uma discusso sobre
os limites das modernas concepes antropolgicas de cultura.
Essa discusso, de certo modo, representa uma espcie de fo condutor
de minhas refexes ao longo dos demais artigos, garantindo-lhes alguma
unidade. Estes ltimos, no entanto, podem ser lidos independentemente.
Eles resultam de um esforo contnuo e sistemtico de refexo sobre os
signifcados que podem assumir os objetos materiais da vida social e cul-
tural. Mais precisamente, essa refexo tem se voltado para os processos
de transformao social e simblica que sofrem esses objetos quando
eles vm a ser reclassifcados e deslocados do contexto de seus usos co-
tidianos para o contexto institucional e discursivo de colees, museus
e patrimnios.
Originalmente palestras, conferncias, aulas, comunicaes em con-
gressos, esses textos, em sua maioria, vieram a ser publicados em revistas
especializadas e em livros, entre os anos de 1989 e 2005. Cada um dos
artigos sofreu pequenas correes e alteraes para sua publicao neste
livro (seja nos ttulos, seja em detalhes do seu contedo para evitar as
repeties e esclarecer trechos obscuros), sem que este procedimento
tenha modifcado as linhas principais de argumentao (embora tenha
sido difcil, em alguns casos, resistir a essa tentao).
Boa parte dos artigos foi produzida para uma audincia de muselogos
e profssionais de patrimnio, com os quais tenho mantido, ao longo dos
ltimos anos, um dilogo constante e produtivo. Outra parte foi produ-
zida para uma audincia ccomposta pela comunidade de meus colegas
antroplogos, socilogos e historiadores.
Menos preocupado em estabelecer cercas entre esses diversos campos
profssionais, espero ter ajudado a construir algumas pontes, embora
esteja bastante csncio de que o melhor dilogo intelectual aquele que
se desenvolve a partir de nossas diferenas, reconhecendo o relativo valor
e os limites de nossas respectivas tradies disciplinares. Nesse sentido,
assumo que a perspectiva aqui adotada informada pela antropologia
10 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
social ou cultural, portanto essencialmente voltada para para a descrio
e anlise comparativa das categorias de pensamento e seus usos na vida
social.
Um tema recorrente atravessa os textos aqui reunidos: o papel que
os objetos materiais em geral, e em especial aqueles classifcados como
itens integrantes de colees, museus e patrimnios, desempenham no
processo de formao de diversas modalidades de autoconscincia. Nesse
sentido, eles no desempenham apenas a funo de sinais diacrticos a
demarcar identidades, mas, na verdade, contribuem decisivamente para
a sua constituio e percepo subjetiva.
Em sua presena incontornvel e difusa, usados privada ou publica-
mente, colecionados e expostos em museus ou como patrimnios cul-
turais no espao das cidades, os objetos infuem secretamente na vida
de cada um de ns. Perceber e reconhecer esse fato pode trazer novas
perspectivas sobre os processos pelos quais defnimos, estabilizamos ou
questionamos nossas memrias e identidades.
Ao longo desses anos, contra algumas dvidas profssionais e inte-
lectuais com instituies e pessoas, s quais devo assinalar meus agra-
decimentos.
Aos colegas, alunos e funcionrios do Programa de Ps-Graduao em
Sociologia e Antropologia e do Departamento de Antropologia Cultural e
do IFCS / UFRJ, cujo apoio institucional tem sido inestimvel.
Aos colegas do Laboratrio de Anlise Simblica do IFCS /UFRJ, em
especial a Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, Marco Antonio Gon-
alves, Elsje Lagrou, Ricardo Benzaquen e Lucia Lippi, os quais tm sido
fundamentais como amigos e interlocutores.
Aos integrantes dos Grupos de Trabalho e dos Seminrios Tem-
ticos de Patrimnio Cultural da ABA e da ANPOCS, especialmente a
Regina Abreu, Myrian Seplveda dos Santos e Manuel Ferreira Lima
Filho. O dilogo que mantenho com eles tem sido dicisivo em minha
produo intelectual.
Marcia Contins acompanhou com ateno e generosidade a elaborao
de cada um desses artigos.
11 {jos r eginal do santos gonal ves}
Gostaria fnalmente de agradecer o convite gentil de Mrio Chagas
(um dos meus interlocutores constantes entre os profssionais de muse-
ologia) para que eu reunisse e publicasse esses textos na forma de livro.
O CNPq, a CAPES, a FULBRIGHT, a FAPERJ e a FUJB, em diversos mo-
mentos e de forma signifcativa, forneceram apoio fnanceiro indispen-
svel ao trabalho de pesquisa de que resultou a elaborao dos textos que
compem este livro.
Teor ias Antr opol gicas
e Objetos Mater iais
Sob o ttulo Antropologia dos Objetos: colees, museus e patri-
mnios, este artigo foi publicado no BIB ANPOCS Revista
Brasileira de Informao Bibliogrfca em Cincias So-
ciais, no 60, EDUSC, 2 semestre de 2005.
Ao colocar a natureza simblica de seu objeto, a antropologia social no pretende
nem por isso afastar-se das realia. Como poderia faz-lo uma vez que a arte, onde
tudo signo, utiliza veculos materiais? No se podem estudar os deuses e ignorar
suas imagens; os ritos, sem analisar os objetos e as substncias que o ofciante
fabrica e manipula; regras sociais, independentemente de coisas que lhes corres-
pondem. A antropologia social no se isola em uma parte do domnio da etnologia;
no separa cultura material e cultura espiritual. Na perspectiva que lhe prpria
e que nos ser necessrio situar ela lhes atribui o mesmo interesse. Os homens se
comunicam por meio de smbolos e signos; para a antropologia, que uma conversa
do homem com o homem, tudo smbolo e signo que se coloca como intermedirios
entre dois sujeitos.
Claude Lvi-Strauss
asas, moblias, roupas, ornamentos corporais, jias, armas,
moedas, instrumentos de trabalho, instrumentos musicais,
variadas espcies de alimentos e bebidas, meios de transporte, meios de
comunicao, objetos sagrados, imagens materiais de divindades, subs-
tncias mgicas, objetos cerimoniais, objetos de arte, monumentos, todo
um vasto e heterclito conjunto de objetos materiais circula signifcati-
vamente em nossa vida social por intermdio das categorias culturais ou
dos sistemas classifcatrios dentro dos quais os situamos, separamos,
dividimos e herarquizamos. Expostos cotidianamente a essa extensa e
diversifcada teia de objetos, sua relevncia social e simblica, assim como
sua repercusso subjetiva em cada um de ns, termina por nos passar
desapercebida em razo mesmo da proximidade, do aspecto familiar e
do carter de obviedade que assume. Na maioria das vezes, a tendncia
mais forte para o esquecimento da existncia e da efccia dos sistemas
de classifcao a partir dos quais esses objetos so percebidos: quando,
por exemplo, nos limitamos a perceber estes ltimos segundo uma razo
prtica (Sahlins 1976), a partir da qual eles existiriam em funo de sua
15 {jos r eginal do santos gonal ves}
utilidade, manipulados por indivduos a partir de suas necessidades e
interesses supostamente universais (Dumont 1985; Sahlins 2004 [1996])
1
,
conforme sugere uma perspectiva a que um autor chamou de concepo
estratigrfca da cultura (Geertz 1989: 25-40).
Essa epistemologia, cabe sublinhar, pressupe uma naturalizao das
modernas categorias ocidentais de sujeito e objeto cuja problemati-
zao parece ser a condio mesma para uma refexo antropolgica. A
literatura antropolgica e etnogrfca tem nos ensinado h mais de um
sculo que so precisamente esses sistemas de categorias culturais que
fazem a mediao e, mais que isso, organizam e constituem esses dois
termos polares, e que sem esses sistemas de categorias, sem sistemas de
classifcao, os objetos materiais (assim como seus usurios) no ganham
existncia signifcativa (Durkheim & Mauss 2001 [1903]; Mauss 2003; Boas
1966 [1911]; Whorf 1984 [1956]; Sapir 1985 [1934]; Lvi-Strauss 1962; Douglas
1975; Sahlins 2004 [1976]; Geertz 1973).
Na medida em que os objetos materiais circulam permanentemen-
te na vida social, importa acompanhar descritiva e analiticamente seus
deslocamentos e suas transformaes (ou reclassifcaes) atravs dos
diversos contextos sociais e simblicos: sejam as trocas mercantis, sejam
as trocas cerimoniais, sejam aqueles espaos institucionais e discursivos
tais como as colees, os museus e os chamados patrimnios culturais.
Acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das fronteiras que de-
limitam esses contextos em grande parte entender a prpria dinmica
da vida social e cultural, seus confitos, ambigidades e paradoxos, assim
como seus efeitos na subjetividade individual e coletiva. Os estudos antro-
polgicos produzidos sobre objetos materiais, repercutindo esse quadro,
tm oscilado seu foco de descrio e anlise entre esses contextos sociais,
cerimoniais, institucionais e discursivos.
OS ANTROPLOGOS E SEUS OBJETOS
No ser exagero afrmar que o entendimento de quaisquer formas de
vida social e cultural implica necessariamente na considerao de objetos

1 Para uma reflexo
original e problema-
tizadora da categoria
indivduo no con-
texto da sociedade e
da cultura brasileira
ver a obra de Roberto
DaMatta (1980).
16 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
materiais. Estes, na verdade, sempre estiveram presentes na histria da
antropologia social e /ou cultural e particularmente na literatura etno-
grfca. Alguns se tornaram clebres: os churinga nos ritos australianos
(Durkheim 2000); os colares e braceletes do circuito do Kula trobriands
(Malinowski [1922] 1976); as mscaras dogon (Griaule 1938). Mas ao longo
da histria da disciplina nem sempre os antroplogos estiveram voltados
para o estudo dos objetos materiais enquanto tema especfco de descri-
o e anlise. Acompanhar as interpretaes antropolgicas produzidas
sobre os objetos materiais at certo ponto acompanhar as mudanas
nos paradigmas tericos ao longo da histria dessa disciplina.
Em fns do sculo XIX e incio do sculo XX, na condio de objetos
etnogrfcos, eles foram alvo de colecionamento, classifcao, refexo
e exibio por parte de autores cujos paradigmas evolucionistas e difu-
sionistas situavam-nos no macro-contexto da histria da humanidade. O
destino desses objetos era no somente as pginas das obras etnogrfcas
(no necessariamente produzidas por antroplogos profssionais, mas
por viajantes e missionrios) e das grandes snteses antropolgicas do
perodo, mas sobretudo os espaos institucionais dos museus ocidentais,
ilustrando as etapas da evoluo scio-cultural e os trajetos de difuso
cultural.
Objetos retirados dos contextos os mais diversos, dos mais distantes
pontos do planeta, eram re-classifcados com a funo de servir como
indicadores dos estgios de evoluo pelos quais supostamente passaria
a humanidade como um todo. Uma mscara ritual da Melansia poderia
ser colocada lado a lado com uma outra de origem africana. Uma vez
identifcadas e descritas a sua composio material e a sua forma est-
tica, uma delas poderia ser classifcada como a que apresentava maior
complexidade e pressupondo uma tecnologia mais avanada do que a
outra. Assim sendo, indicariam estgios hierarquicamente diferencia-
dos de evoluo entre as sociedades de onde vieram. Ou poderiam ser
classifcadas como indicadores de um mesmo nvel de complexidade e
de evoluo tecnolgica, o que indicaria a posio similar das socieda-
17 {jos r eginal do santos gonal ves}
des que as produziram na grande escala da evoluo scio-cultural da
humanidade (Stocking 1968; 1985; Chapman 1985; Dias 1991; 1991a; 1994;
Gonalves 1994; ver Captulo II deste livro).
Os processos histricos de difuso de objetos materiais e traos cul-
turais entre diversas sociedades preocupavam muitos autores, os quais
viam os objetos como meios de reconstituir esses processos. Ao longo dos
trajetos de difuso os objetos sofriam modifcaes, tornavam-se mais
complexos. A cultura humana, para eles, era raramente um assunto de
inveno, mas de transmisso. Alguns operavam com modelos nos quais
se traavam crculos concntricos, onde o ponto central era onde suposta-
mente se situava o objeto em sua forma primeira, sua forma original. Na
medida em que se difundia, ele se transformava. Esse raciocnio valia tan-
to para objetos materiais como para instituies, prticas sociais, idias e
valores, sendo que alguns levaram essa viso a extremos, afrmando que
era possvel identifcar um nico centro de onde teria partido todas as
invenes culturais signifcativas da humanidade. Apesar das diferenas
que os separavam, os paradigmas evolucionistas e difusionistas no entan-
to convergiam quanto a um ponto fundamental: a cultura era concebida
como um agregado de objetos e traos culturais. Isto signifca dizer que
estes eram interpretados como elementos que responderiam a questes
e difculdades universais. Estava aberta a porta para uma percepo e
entendimento claramente etnocntricos desses objetos e das culturas
da qual faziam parte (Lvi-Strauss 1973: 13-44).
Esses paradigmas, com suas divergncias e convergncias, forneceram
os modelos museogrfcos dos grandes museus enciclopdicos do sculo
XIX (Schwarcz 1998; Dias 1991a). O objetivo destes era narrar a histria da
humanidade desde suas origens mais remotas, reconstituindo esse longo
caminho at chegar ao que entendiam como o estgio mais avanado do
processo evolutivo: as modernas sociedades ocidentais. a partir dessas
coordenadas tericas, fundadas numa concepo de cultura como um
agregado de objetos e traos culturais, que veio a se delimitar uma rea
de pesquisa: os chamados estudos de cultura material. Como se possvel
18 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
fosse separar na vida social e cultural o material e o imaterial (ver Captulo
XII deste livro).
Um ponto importante merece ser ainda assinalado para entendermos
as diferenas entre as formas como os antroplogos pensaram a categoria
objetos materiais ao longo da histria da disciplina: nesse perodo, que
fcou conhecido como a era dos museus, diferentemente do que veio a
ocorrer em dcadas subseqentes, a relao entre etngrafos, antrop-
logos e museus era bastante prxima. A antropologia nessa poca era
de certo modo produzida nos limites institucionais dos museus (Karp &
Levine 1991; Gonalves 1994; ver Captulo III deste livro).
A ANTROPOLOGIA PS-BOASIANA
Um autor como Franz Boas (1858-1942) ainda em 1896 formulou uma
crtica extremamente poderosa s teorias evolucionistas e difusionistas
e essa crtica se estendia aos modelos museogrfcos concebidos a partir
daquelas teorias. O ponto forte da argumentao de Boas o de que esses
antroplogos pensavam os objetos materiais em funo de seus macro-
esquemas de evoluo e difuso, esquecendo-se de se perguntarem pelas
suas funes e signifcados no contexto especfco de cada sociedade ou
cultura onde foram produzidos e usados. Diante de uma mscara melan-
sia e uma mscara africana, no era sufciente descrever o material com
que eram feitas, nem o estilo que as caracterizava, nem a tecnologia mais
ou menos evoluda com que eram produzidas. Era necessrio saber qual
o uso dessas mscaras, e conseqentemente qual o seu signifcado para
as pessoas que as empregavam em diversos contextos sociais e rituais.
Em outras palavras, era preciso saber quem as usava, quando e com quais
propsitos, o que permitiria revelar a diferena verdadeira entre uma
mscara melansia usada em rituais religiosos e uma outra mscara usada
nas festas de carnaval em algumas sociedades ocidentais. preciso obser-
var que a partir dessa crtica desloca-se o foco de descrio e anlise dos
objetos materiais (de suas formas, matria e tcnicas de fabricao) para
os seus usos e signifcados e conseqentemente para as relaes sociais
19 {jos r eginal do santos gonal ves}
em que esto envolvidos os seus usurios. O estudo comparativo dessas
relaes nos revelaria as funes e os signifcados dos objetos materiais
e dos traos culturais em diferentes culturas (Boas 2004 [1896]); Stocking
1974; Jacknis 1985).
A antropologia ps-boasiana ou ps-malinowskiana, se utilizarmos
a obra de Bronislaw Malinowski (1884-1942) como referncia produ-
zida a partir das primeiras dcadas do sculo XX veio de certo modo a
relegar progressivamente o estudo da cultura material a uma posio
marginal na disciplina, em grande parte devido ao desgaste sofrido pela
perspectiva etnocntrica da antropologia vitoriana. Apesar disso, im-
portante enfatizar que os objetos materiais jamais vieram a se ausentar
das pginas das monografas antropolgicas. Esse perodo da histria da
antropologia, marcado pela sua profssionalizao e pela juno dos pa-
pis de etngrafo e de antroplogo distingue-se pelo afastamento dos
antroplogos profssionais em relao aos museus. A produo cientfca
da antropologia social ou cultural desloca-se dos museus para os recm
criados departamentos de antropologia nas universidades (Cliford 1988:
21-54; Jacknis 1996; Stocking 2004; Stocking 1985; Schwarcz 1998).
Nas dcadas subseqentes, especialmente aps a II Guerra Mundial,
os antroplogos sociais britnicos de orientao estrutural-funcionalista
e voltados para o estudo de sociedades (ao invs de culturas) inter-
pretaro os objetos materiais como sinais diacrticos a indicar posies
sociais, pouco importando a descrio e anlise da forma e do material
e da tcnica com que eram produzidos esses objetos. A formao desses
antroplogos no passava necessariamente pelos museus e pela ateno
cultura material e as teorias antropolgicas com as quais operavam
vieram a deslocar o seu foco de discusso dos objetos materiais para as
relaes sociais e para os signifcados dessas relaes. Os objetos vo ser
interpretados com base num esquema terico onde eles existiam no
em funo de estarem respondendo a necessidades prticas universais,
nem como indicadores de processos evolutivos e de difuso, mas como
meios de demarcao de identidades e posies na vida social. No incio
20 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
dos anos sessenta, o antroplogo Edmund Leach (1910-1989), ao refetir
sobre o que ele pensava ser a diferena fundamental entre o conceito de
sociedade e o conceito de cultura dizia:
A cultura proporciona a forma, a roupagem da situao social. Para mim, a si-
tuao cultural um fator dado, um produto e um acidente da histria. No sei
por que as mulheres kachin antes de se casarem andam com a cabea descoberta e
o cabelo cortado curo, mas usam um turbante depois, tanto quanto no sei por que
as mulheres inglesas pem um anel num dedo particular para denotar a mesma
mudana de status social; tudo o que me interessa que nesse contexto kachin o uso
de um turbante por uma mulher tem esse signifcado simblico. uma afrmao
sobre o status da mulher (1995 [1964]: 79).
Se interpretamos o texto corretamente, pouco importava teoricamente
se uma mulher kachin, ao passar da condio de solteira para a de casada,
passava a usar um turbante; enquanto uma mulher ocidental passava a
usar uma aliana na mo esquerda. O importante, do ponto de vista do
analista, era que um e outro objeto estariam demarcando uma mudana de
status, especifcamente da condio de solteira para a condio de casada.
Nessa perspectiva, os objetos materiais so pensados como um sistema
de comunicao, meios simblicos atravs dos quais indivduos, grupos e
categorias sociais emitem (e recebem) informaes sobre seu status e sua
posio na sociedade (Leach 1995 [1964]; Graburn 1975; Douglas 1982; Dou-
glas & Isherwood 2004; Miller 1987; 1995; Bourdieu 1979).
OS ESTUDOS DE ANTROPOLOGIA SIMBLICA
J os estudos antropolgicos voltados especifcamente para a natureza
e as funes especfcas do simbolismo na vida social, especialmente a
partir dos anos sessenta, resgataram a relevncia social e cognitiva do
estudo dos objetos materiais no contexto da vida cotidiana, dos rituais e
dos mitos. Este o caso dos estudos de antropologia estrutural; e tambm
dos estudos produzidos pela chamada antropologia simblica (Dolgin;
Kemnitzer; Schneider 1977).
21 {jos r eginal do santos gonal ves}
Muitos desses antroplogos viro a contestar aquela concepo defen-
dida por Edmund Leach e iro perguntar se o papel dos objetos materiais
(e dos smbolos em geral) na vida social se resume afnal a essa funo
de comunicao, a de serem apenas sinais diacrticos de posies e iden-
tidades sociais. E vo sugerir que os objetos no apenas demarcam ou
expressam tais posies e identidades, mas que na verdade, enquanto
parte de um sistema de smbolos que condio da vida social, organi-
zam ou constituem o modo pelo qual os indivduos e os grupos sociais
experimentam subjetivamente suas identidades e status. A partir dessa
perspectiva, seria sim relevante saber por que uma mulher kachin usa
turbante e por que uma mulher ocidental uma aliana no dedo anular
esquerdo. Seria relevante conhecer a forma desses objetos, o material e
a tcnica de fabricao, assim como as modalidades e contextos de uso.
Afnal cada um deles faz parte de um sistema de representaes coleti-
vas, um sistema de categorias culturais que organiza o modo como essas
mulheres experimentam subjetivamente a sua condio de mulheres e
suas eventuais mudanas de status ao longo de sua biografa. Enquanto
objetos cerimoniais, eles no apenas demarcam posies sociais, mas
permitem que os indivduos e os grupos sociais percebam e experimentem
subjetivamente suas posies e identidades como algo to real e concreto
quanto os objetos materiais que os simbolizam (Mauss 1967 [1947]; Turner
1967; Sahlins 2004 [1976]; Seeger 1980).
2

Importante assinalar que, a partir dessa perspectiva, os objetos ma-
teriais, como aqueles classifcados como tecnologia (Schlanger 1998)
ou como arte (Boas 1955; Levi-Strauss 1958; Forge, 1973; Geertz 1998:
142-181; Gell 1992; Almeida 1998; Price 2000; Lagrou 2000), sero pensa-
dos no mais enquanto parte de uma totalidade social e cultural que se
confunde com os limites de uma determinada sociedade ou cultura em-
piricamente considerada, mas sim enquanto parte de sistemas simblicos
ou categorias culturais cujo alcance ultrapassa esses limites empricos e
cuja funo, mais do que a de representar, a de organizar e constituir
a vida social. Em outras palavras, eles sero interpretados, segundo a ex-
2 Para uma fonte
notvel de dados e
interpretaes estimu-
lantes sobre objetos
materiais (mobilirio,
roupas, meios de
transporte, comidas e
bebidas) seus usos e
significados na socie-
dade brasileira, so in-
dispensveis as obras
de Gilberto Freyre
(1981; 2000; 2004);
e especialmente as
de Luis da Cmara
Cascudo (1957; 1983
[1959]; 1962 [1954];
1983 [1963]; 1986
[1968]; 2001); artigos
que publiquei sobre
algumas das obras
de Cascudo podem
ser teis (Gonalves
2000; ver Captulo X
deste livro).
22 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
presso basilar de Marcel Mauss, como fatos sociais totais (Mauss 2003),
exigindo portanto que se ponham de quarentena e se problematizem as
categorias classifcatrias usadas na sociedade do observador.
A HISTORICIZAO DA ANTROPOLOGIA: A REAPROXIMAO ENTRE ANTROPLOGOS
E OS MUSEUS
Mas a partir dos anos oitenta, como parte do processo de historiciza-
o da disciplina, que os objetos materiais, especifcamente enquanto par-
tes integrantes de colees, museus, arquivos e patrimnios culturais
viro a ser tematizados como foco estratgico para a pesquisa e refexo
sobre as relaes sociais e simblicas entre os diversos personagens da
histria da antropologia social ou cultural: viajantes, missionrios, et-
ngrafos, antroplogos, nativos, colecionadores, museus, universidades,
poderes coloniais, lideranas tnicas, etc.
Assiste-se nesse perodo a uma reaproximao entre os antroplogos e
os museus, os quais passam a ser considerados como objetos de pesquisa,
descrio e anlise. Ao mesmo tempo, assiste-se a um trabalho de pro-
blematizao sistemtica (e denncia) do papel desempenhado por essas
instituies enquanto mediadores sociais, simblicos e polticos no pro-
cesso de construo de representaes ideolgicas sobre diversos grupos
e categorias sociais, especialmente aqueles que foram tradicionalmente
eleitos como objetos de estudo da antropologia.
Em parte da literatura antropolgica produzida nas duas ltimas
dcadas do sculo XX sobre os objetos materiais, estes sero estudados
no exclusivamente enquanto partes funcionais e signifcativas de deter-
minados contextos sociais, rituais e cosmolgicos nativos; mas tambm
enquanto componentes dos processos sociais, institucionais, epistemol-
gicos, e polticos de apropriao e colecionamento que sofrem por parte
das sociedades ocidentais, atravs de colees, museus, arquivos e patri-
mnios culturais (Stocking 1985; Cliford 1988; 1994; 1997; 2002; Hainard
& Kaehr 1982; 1885; Haraway 1989; Karp & Levine 1991; Karp; Kreamer;
Levine 1991; Steven Kirshenblatt-Gimblett 1991; Dias 1991; 1991a; 1994;
23 {jos r eginal do santos gonal ves}
Thomas 1991; Ames 1992; Jones 1993; Greenfeld 1996; Grupioni 1998; Ja-
cknis 2002).
O interesse recente pelo tema na rea de antropologia (sobretudo a
partir dos anos oitenta) est em parte associado a um determinado mo-
mento da histria da disciplina que j foi caracterizado por um conhecido
historiador da antropologia como um momento refexivo, hermenuti-
co, interpretativo, desconstrutivo, ou ainda como a manifestao de
uma sensibilidade romntica, que acompanharia toda a histria dessa
disciplina (Stocking 1989:7). Mas evidentemente os objetos materiais que
integram as colees, museus e patrimnios no so estudados apenas
pela sua ntima relao com a histria da antropologia social ou cultural.
Essas instituies constituem na verdade o locus de cruzamento de uma
srie de relaes de ordem epistemolgica, social e poltica, confgurando-
se como reas estratgicas de pesquisa e refexo para o entendimento das
relaes sociais, simblicas e polticas entre diversos grupos e segmen-
tos sociais, especialmente aqueles que se fazem presentes nos contextos
coloniais e ps-coloniais. Acrescente-se que, ao longo de sua histria,
elas desempenharam e desempenham ainda um papel importante na
formao, transmisso e estabilizao de uma srie de categorias de pen-
samento fundamentais para o ocidente moderno em suas relaes com
as culturas no ocidentais: civilizado / primitivo; natureza / cultura;
civilizao /culturas; passado / presente; tradio / modernidade; erudi-
to / popular; nacional / estrangeiro; cincia / magia e religio (Stewart
1984; Haraway 1989; Schwarcz 1998; Santos 1988; 1992; 2003; 2004; Pearce
1992; Kury; Camennietzki 1997; Cavalcanti 2001; Latour 2002). Entre essas
categorias cabe certamente sublinhar o papel desempenhado pela noo
de autenticidade, cuja notvel funo social, poltica e cognitiva j foi
assinalada por diversos autores (Sapir 1985; MacCannell 1976; Handler
1986; Cliford 1988; ver Captulo VII deste livro).
O deslocamento dos objetos materiais para os espaos de colees
privadas ou pblicas ou para museus (por exemplo, na condio de ob-
jetos etnogrfcos ou arte primitiva) pressupe evidentemente a sua
24 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
circulao anterior e posterior em outras esferas. Antes de chegarem
condio de objetos de coleo ou de objetos de museu, foram objetos de
uso cotidiano, foram mercadorias, ddivas ou objetos sagrados. Afnal,
conforme j foi sugerido, cada objeto material tem a sua biografa cultu-
ral (Kopytof 1986) e sua insero em colees, museus e patrimnios
culturais apenas um momento na vida social. No entanto, esse momen-
to crucial pois nos permite perceber os processos sociais e simblicos por
meio dos quais esses objetos vm a ser transformados ou transfgurados
em cones legitimadores de idias, valores e identidades assumidas por
diversos grupos e categorias sociais.
O COLECIONAMENTO COMO CATEGORIA DE PENSAMENTO
Esse processo de deslocamento dos objetos materiais do cotidiano
para o espao de museus e patrimnios pressupe uma categoria fun-
damental: o colecionamento. Na verdade, toda e qualquer coletividade
humana dedica-se a alguma atividade de colecionamento, embora nem
todas o faam com os mesmos propsitos e segundo os mesmos valores
presentes nas modernas sociedades ocidentais. Quem coleciona o qu,
onde, segundo quais valores e com quais objetivos? Basicamente, toda e
qualquer coleo pressupe situaes sociais, relaes sociais de pro-
duo, circulao e consumo de objetos, assim como diversos sistemas de
idias e valores e sistemas de classifcao que as norteiam. Em algumas
sociedades colecionam-se determinados objetos materiais com o prop-
sito de redistribu-los ou mesmo de destru-los; no ocidente moderno, o
colecionamento est fortemente associado acumulao (Mauss 2003;
Malinowski [1922] 1976; Cliford 1988).
Um dos espaos institucionais que no contexto globalizado das
modernas sociedades ocidentais abrigam e exibem as colees (espe-
cialmente as colees etnogrficas) so os museus. Enquanto insti-
tuies culturais, ele tm acompanhado os ltimos cinco sculos de
histria da civilizao ocidental, assumindo funes e significados
diversos ao longo desse tempo e em diferentes contextos scio-cul-
25 {jos r eginal do santos gonal ves}
turais. Desde os gabinetes de curiosidades dos sculos XVI e XVII
s colees privadas de nobres e ricos burgueses da Renascena, pas-
sando pelos museus de histria natural e pelos museus nacionais
do sculo XIX e incio do sculo XX, at os museus do final do sculo
XX e princpios do sculo XXI, essa instituio parece traduzir ou
representar, em suas estruturas materiais e conceituais, concepes
diversas da ordem csmica e social (Oliver Impey 2001; Kury & Came-
netzky 1997; Sherman & Rogoff 1994). Alm disso, a instituio pare-
ce estar intimamente associada aos processos de formao simblica
de diversas modalidades de autoconscincia individual e coletiva no
ocidente moderno.
Nas ltimas dcadas, observa-se um notvel crescimento dos museus
em todo o planeta. Aparentemente, estamos vivendo uma nova era dos
museus semelhante (embora com diferentes signifcados e funes)
quela que caracterizou a segunda metade do sculo XIX e incio do
sculo XX. sintomtico que, desde os anos oitenta do ltimo sculo,
essa instituio, enquanto tema de refexo, tenha ocupado progressi-
vamente um maior espao nos debates acadmicos (em antropologia,
em histria, em sociologia e nos chamados estudos culturais), o que
se manifesta na crescente e signifcativa bibliografa produzida sobre
o tema, sobretudo nos EEUU e na Europa, mas tambm no Brasil (ver
Captulo III deste livro).
Em parte dessa bibliografa, a coleo aparece como uma categoria
histrica e culturalmente relativa, prpria do ocidente moderno e sujei-
ta a transformaes intelectuais e institucionais. Mas ela pode assumir
uma dimenso mais ampla e ser pensada no apenas como uma categoria
nativa do ocidente moderno, mas como uma categoria universal, como
uma prtica cultural presente em toda e qualquer sociedade humana.
Desse modo, ela assume em alguns autores rendimento analtico, servindo
como eixo para uma anlise comparativa (Baudrillard 1989; Alexander
1979; Hainard & Kaehr 1982; 1985; Pomian 1987; 1991; 1997; 1997a; 2003;
Cliford 1988; ver Captulo III deste livro) .
26 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
No contexto da recente literatura produzida sobre colees e museus
etnogrfcos, o centro da discusso est evidentemente nos limites da re-
presentao etnogrfca do outro. A discusso se far a partir de outras
formas de representao etnogrfca que no exclusivamente os textos:
fotografas, flmes, exposies em museus, etc.
3
A partir desse enfoque,
as colees e museus etnogrfcos deixam de aparecer como conjuntos
de praticas ingnuas ou neutras, para serem redesenhadas como espaos
onde se constituem formas diversas da autoconscincia moderna: a do
etngrafo, a do colecionador, a do nativo, a do civilizado, do primitivo, etc.
(Stocking 1985; Cliford 1985: 236-246; Cliford 1988; Kirshenblatt-Gimblett
1991; Dias 1991; Hollier 1993).
OBJETOS MATERIAIS COMO PATRIMNIOS CULTURAIS
Em um sugestivo texto onde comenta o poder dos objetos, Annette
Weiner afrma:
...ns usamos objetos para fazer declaraes sobre nossa identidade, nossos objeti-
vos, e mesmo nossas fantasias. Atravs dessa tendncia humana a atribuir signifca-
dos aos objetos, aprendemos desde tenra idade que as coisas que usamos veiculam
mensagens sobre quem somos e sobre quem buscamos ser. (...) Estamos intimamente
envolvidos com objetos que amamos, desejamos ou com os quais presenteamos os
outros. Marcamos nossos relacionamentos com objetos (...). Atravs dos objetos
fabricamos nossa auto-imagem, cultivamos e intensifcamos relacionamentos. Os
objetos guardam ainda o que no passado vital para ns. (...) no apenas nos fazem
retroceder no tempo como tambm tornam-se os tijolos que ligam o passado ao
futuro. (Weiner 1987: 159).
Na formulao mais abrangente e mais precisa de um outro antrop-
logo, Roy Wagner, os objetos materiais, de certo modo, constituem nossa
subjetividade individual e coletiva:
Existe uma moralidade das coisas, dos objetos em seus signifcados e usos conven-
cionais. Mesmo ferramentas no so tanto instrumentos utilitrios funcionais
quanto uma espcie de propriedade humana ou cultural comum, relquias que
3 interessante
observar que essa dis-
cusso (sobre modos
alternativos de repre-
sentao etnogrfica),
que, para muitos,
teria sido uma criao
dos chamados ps-
modernos, , na ver-
dade, um problema j
assinalado por Clifford
Geertz no incio dos
anos 70: ...a maior
parte da etnografia
encontrada em livros
e artigos, em vez de
filmes, discos, exposi-
es de museus, etc.
Mesmo neles h, cer-
tamente, fotografias,
desenhos, diagramas,
tabelas e assim por
diante. Tem feito falta
antropologia uma
autoconscincia sobre
modos de represen-
tao (para no falar
de experimentos com
elas) (1973:30).
27 {jos r eginal do santos gonal ves}
constrangem seus usurios ao aprenderem a us-los. Podemos mesmo sugerir [...]
que esses instrumentos usam os seres humanos, que brinquedos brincam com
as crianas, e que armas nos estimulam luta. [...] Assim, em nossa vida com esses
brinquedos, ferramentas, instrumentos e relquias, desejando-os, colecionando-os,
ns introduzimos em nossas personalidades todo o conjunto de valores, atitudes e
sentimentos na verdade a criatividade daqueles que os inventaram, os usaram,
os conhecem e os desejam e os deram a ns. Ao aprendermos a usar esses instru-
mentos ns estamos secretamente aprendendo a nos usar; enquanto controles, esses
instrumentos mediam essa relao, eles objetifcam nossas habilidades (Wagner
1981: 76-77).
Esses dois textos apontam de formas distintas para a funo simb-
lica dos objetos materiais nos processos de formao de modalidades de
autoconscincia individual e coletiva. A sugesto que sem os objetos no
existiramos; ou pelo menos no existiramos enquanto pessoas social-
mente constitudas. Sejam os objetos materiais considerados nos diver-
sos contextos sociais, simblicos e rituais da vida cotidiana de qualquer
grupo social; sejam eles retirados dessa circulao cotidiana e desloca-
dos para os contextos institucionais e discursivos das colees, museus
e patrimnios; o fato importante a considerar aqui que eles no apenas
desempenham funes identitrias, expressando simbolicamente nossas
identidades individuais e sociais, mas na verdade organizam (na medida
em que os objetos so categorias materializadas) a percepo que temos
de ns mesmos individual e coletivamente (Cliford 1985).
Na vida social em geral os objetos materiais podem circular na forma
de mercadorias, podendo ser livremente comprados e vendidos; ou na
forma de ddivas e contra-ddivas; ou ainda terem a sua circulao res-
tringida na forma de bens inalienveis (Weiner 1992). Evidentemente, os
objetos materiais esto submetidos a um processo permanente de circula-
o e reclassifcao, podendo ser deslocados da condio de mercadoria
para a condio de presentes; ou da condio de presentes para a condio
de mercadorias; e alguns desses objetos podem ser elevados condio
de bens inalienveis, os quais, nessa condio, em princpio no podem
28 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
ser nem vendidos e nem doados, mas que integram os sistemas de trocas
recprocas para que paradoxalmente possam ser mantidos e guardados
sob o controle de determinados grupos (Mauss 2003; Gregory 1982; Weiner
1992; Godelier 2001; Hnnaf 2002:135-207).
possvel que essa categoria universal de bens nos possa ser til para
entender ao menos parcialmente aqueles objetos que, uma vez retirados
da circulao cotidiana, vm a ser, no contexto das modernas sociedades
ocidentais, classifcados como patrimnio cultural. Objetos que compem
colees particulares podem ser vendidos e comprados; e mesmo objetos
que integram o acervo de museus podem eventualmente ser vendidos ou
trocados; mas, em princpio, no admitido esse procedimento para aqueles
objetos classifcados como patrimnio cultural por determinado grupo
social. Na medida em que assim classifcados e coletivamente reconhecidos,
esses objetos desempenham uma funo social e simblica de mediao
entre o passado, o presente e o futuro do grupo, assegurando a sua conti-
nuidade no tempo e sua integridade no espao.
Nas ltimas dcadas, tem crescido notavelmente a literatura sobre os
chamados patrimnios culturais em diversas reas, mas especialmente
na rea de antropologia
4
. Grande parte desses estudos corretamente tem
assinalado as funes identitrias daqueles objetos materiais (ou mesmo
de supostos bens imateriais ou intangveis) na representao pblica
de identidades coletivas (naes, grupos tnicos, grupos religiosos, bair-
ros, regies). Aparentemente, menos nfase vem sendo dada natureza
mesma dos objetos eleitos como patrimnio (sua forma, o material com
que so produzidos, as tcnicas de produo adotadas, seus usos sociais e
rituais) para representar uma determinada identidade e memria. Em
alguns estudos, a sugesto implcita ou explcita de que a escolha desses
objetos seria de natureza arbitrria, contingente, materializando o que
seriam emblemas de tradies inventadas (Hobsbawm&Ranger 1992).
As aes que levariam a tais escolhas seriam conscientes e intencionais,
visando propsitos ideolgicos e polticos em contextos sociais marcados
pelos confitos de interesses e valores.
4 Para a j extensa
produo bibliogrfi-
ca sobre patrimnio
cultural no Brasil,
vale a pena consul-
tar: Arantes 1984;
Gouveia 1985; Abreu
1996; 2003; Londres
1997; 2001; Rubino
1991; Santos 1992;
Lima Filho 2001;
Proena 2004; entre
muitos outros. Para
a discusso dessa
categoria no contexto
francs, especialmen-
te do ponto de vista
dos historiadores, ver
(Nora 1997).
29 {jos r eginal do santos gonal ves}
Se formos coerentes com a perspectiva que estamos explorando, tere-
mos que efetivamente perguntar se afnal assim arbitrrio e contingente
esse processo de escolha e se, ao legitimarmos essa tese, no estaremos
nos prendendo lgica etnocntrica da razo prtica (Sahlins 1976).
A tese da inveno dos patrimnios vem se tornando uma verdadeira
obsesso e penso se no seria tempo de explorarmos a sugesto segundo
a qual mais importante que a inveno das tradies, seria pensarmos
na inventividade das tradies (Sahlins 1999). Ou, parafraseando a rica
sugesto de Roy Wagner, se no ser oportuno considerar se no so afnal
os patrimnios culturais que nos inventam (no sentido de que cons-
tituem nossa subjetividade), ao mesmo tempo em que os construmos no
tempo e no espao. Em outras palavras: quando classifcamos determi-
nados conjuntos de objetos materiais como patrimnios culturais, esses
objetos esto por sua vez a nos inventar, uma vez que eles materializam
uma teia de categorias de pensamento por meio das quais nos percebemos
individual e coletivamente. Por esse prisma, a categoria patrimnio cul-
tural assume uma dimenso universal e no seria apenas um fenmeno
ocidental e moderno: na verdade, manifestar-se-ia de formas diversas em
toda e qualquer sociedade humana.
5
Nesse sentido, os processos sociais e culturais que levam escolha
desses objetos escapam em grande parte s nossas aes conscientes
e propositais de natureza poltica e ideolgica. Seria importante para
o entendimento de sua natureza o trabalho de acompanhamento dos
processos sociais e simblicos de circulao, deslocamento e de reclas-
sifcao que os elevam condio de patrimnios culturais. nesses
processos de reclassifcao que podemos surpreender a construo e os
efeitos daquelas categorias fundamentais de objetos situados para alm da
condio de mercadorias ou ddivas: objetos que, retirados da circulao
mercantil e da troca recproca de presentes, acedem condio de bens
inalienveis, e que circulam, paradoxalmente, para serem guardados e
mantidos sob o controle de determinados grupos e instituies, assegu-
rando para estas sua continuidade no tempo e no espao.

5 Do ponto de vista
das ideologias das
modernas socieda-
des ocidentais, a
categoria patrimnio
tende a aparecer
com delimitaes
muito precisas.
uma categoria
individualizada, seja
enquanto patrimnio
econmico e finan-
ceiro; seja enquanto
patrimnio cultural;
seja enquanto patri-
mnio gentico; etc.
Nesse sentido, suas
qualificaes acom-
panham as divises
estabelecidas pelas
modernas categorias
de pensamento:
economia; cultura;
natureza; etc. Sabe-
mos no entanto que
essas divises so
construes histri-
cas. Podemos pensar
que elas so naturais,
que fazem parte do
mundo. Na verdade
resultam de proces-
sos de transformao
histrica e continuam
em mudana. A ca-
tegoria patrimnio,
tal como ela usada
na atualidade, nem
sempre conheceu
fronteiras to bem
delimitadas. Em con-
textos no modernos
(e mesmo em contex-
tos especficos das
modernas sociedades
ocidentais) ela tende
a assumir formas
totais, incorporando
amplas dimenses
cosmolgicas e so-
ciais, exigindo assim
o seu entendimento
como fatos sociais
totais (ver Captulo
VI deste livro) .
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etnogr fico e visual idade
~
~
A verso original deste texto foi publicada em Cadernos de
Antropologia e Imagem, UERJ, 1999, no. 8, pp. 21-34.
HISTORICIZANDO COLEES E MUSEUS ETNOGRFICOS
bibliografa sobre colees e museus tem crescido bastante
desde o sculo passado, a partir dos anos setenta.
1
Desde as duas
ltimas dcadas daquele sculo, tem se tornado praticamente impossvel
um controle preciso sobre os problemas discutidos em cada uma das reas
em que se divide esse campo de pesquisa. H os estudos voltados para
a histria da cincia; estudos voltados para concepes de histria, ou
temas precisos da historiografa; pesquisas dedicadas histria da arte;
estudos sobre colees e museus na rea de histria da antropologia; sem
contar as pesquisas desenvolvidas pelos chamados estudos culturais,
voltadas para a representao museogrfca de memrias e identidades
sociais. prudente, nesse campo, nos restringir a uma determinada rea
de pesquisa. Minha proposta, neste caso, uma refexo sobre alguns
problemas suscitados pela bibliografa. Mais precisamente, a respeito das
relaes entre colees e museus etnogrfcos e teorias antropolgicas.
Se consultarmos o Dictionaire de lethnologie et de lanthropologie, pu-
blicado no incio da dcada de noventa pela Presses Universitaires de
France, l poderemos ler um verbete relativamente extenso dedicado
aos Museus. A presena e o contedo desse verbete esto associados
problematizao dos processos de representao do outro, problema-
tizao do discurso etnogrfco e da repercusso deste junto s colees
e museus etnogrfcos. J na primeira frase, a autora do verbete aponta
no sentido de uma historicizao das relaes entre museus e teorias
1 Para uma resenha
dos estudos recen-
temente realizados
na rea de Histria,
especialmente na
Europa, ver (Pomian
1993:1381-1401).
No Brasil, esse campo
de estudos vem se
expandindo nas duas
ltimas dcadas, de
forma diversificada,
sobretudo nas reas
de histria e antro-
pologia H estudos
voltados para a re-
lao entre colees
e histria intelectual
(Schwarcz 1989;
Lopes 1993; Kury e
Camennietzki 1997);
colees e construo
de memrias e identi-
dades sociais (Arantes
1984; Gonalves
1996; Abreu 1996;
Santos 1992; Mene-
ses 1993; Bittencourt
1997; Fonseca 1997);
colees e mercado
de arte (Veiga 1998);
entre outros.
45 {jos r eginal do santos gonal ves}
antropolgicas: Ao se acompanhar o percurso histrico da etnologia,
foroso constatar que cada etapa de renovao terica se faz acompa-
nhar de um projeto museogrfco (Dias 1991a: 496-498). Difcilmente
encontraramos algo semelhante em dicionrios publicados anterior-
mente aos anos oitenta.
No que colees e museus etnogrfcos estivessem ausentes de tais
dicionrios, ou da refexo antropolgica em geral. Mas sua presena
se fazia de forma distinta. Na melhor das hipteses, encontraramos
meno a colees e museus como fontes de dados para a pesquisa et-
nogrfca, sobretudo dados relativos chamada cultura material. Ou
ainda, essas colees e museus poderiam tambm ser entendidos como
uma espcie de prolongamento do campo, a desempenhar um papel
importante na formao dos etnlogos (como sugere Lvi-Strauss).
2
Num
e noutro caso, no se questiona o papel desempenhado por essas ins-
tituies na construo de uma determinada forma de representao
do outro.
Na medida em que esse papel vem a ser problematizado, a coleo
(ou a prtica do colecionamento) ganha relevo enquanto uma categoria
de pensamento. Primeiramente, desempenhando uma funo mediadora
essencial, e qualifcando esse processo mesmo de apropriao de objetos
retirados das chamadas sociedades ou culturas primitivas, e sua trans-
formao em objetos etnogrfcos preservados e expostos nos museus
ocidentais. Por esse prisma, a coleo aparece como uma categoria his-
trica e culturalmente relativa, prpria do ocidente moderno e sujeita s
suas transformaes intelectuais e institucionais.
Mas seu uso na recente bibliografa sobre colees e museus pode
assumir uma dimenso mais ampla. Na verdade, ela vem a ser pensa-
da no apenas como uma categoria nativa do ocidente moderno, mas
como uma categoria universal, como uma prtica cultural presente em
toda e qualquer sociedade humana. Nesse sentido, ganha, em alguns
autores, rendimento analtico, servindo como eixo para uma anlise
comparativa.
2 Lvi-Strauss, num
texto publicado origi-
nalmente em 1954,
onde comenta o
papel dos museus de
antropologia na for-
mao dos etnlogos,
afirma: ...o contato
com os objetos, a
humildade inculcada
no musegrafo pelas
pequeninas tarefas
que esto na base
de sua profisso
desencaixotamento,
limpeza, manuteno
o sentido agudo do
concreto que desen-
volve este trabalho de
classificao, de iden-
tificao e de anlise
das peas de coleo;
a comunicao com
o meio indgena, que
se estabelece indireta-
mente por intermdio
de instrumentos que
preciso saber manejar
para conhecer, que
possuem alm disso
uma textura, uma
forma, muitas vezes
mesmo um odor, cuja
apreenso sensvel,
mil e uma vezes repe-
tida, cria uma fami-
liaridade inconsciente
com gneros de vida
e de atividade lon-
gnquas; o respeito,
enfim, pela diversida-
de das manifestaes
do gnero humano,
que no poderia
deixar de resultar de
tantos e incessantes
desafios para o gosto,
a inteligncia e o
saber, a que os obje-
tos aparentemente
mais insignificantes
submetem cada dia
o meusegrafo; tudo
isto constitui uma
experincia de uma
riqueza e de uma
densidade que no
teramos razo em
subestimar (1973
[1954]: 418-419).
46 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
A COLEO COMO MEDIAO ENTRE O VISVEL E O INVISVEL
Um dos autores centrais no debate assim defne as colees:
...todo conjunto de objetos naturais ou artifciais, mantidos temporria ou defnitiva-
mente fora do circuito de atividades econmicas, submetidos a uma proteo especial
em um local fechado preparado para esta fnalidade, e expostos ao olhar (1987:18).
Autor de um livro bastante citado na bibliografa, Krzysztof Pomian
(historiador polons trabalhando e publicando na Frana)
3
, ao elaborar
uma teoria geral das colees, vai chamar a ateno para o seguinte
ponto: a coleo instituio universalmente conhecida, presente em
toda e qualquer coletividade humana, nas modernas sociedades comple-
xas, assim como nas chamadas sociedades primitivas, e nas sociedades
complexas tradicionais. Esses conjuntos de objetos integram, segundo
ele, um sistema de trocas sociais e simblicas entre distintas categorias
sociais, tais como reinos, imprios, cls, sociedades nacionais, etc; assim
como entre categorias cosmolgicas tais como vivos e mortos, deuses e
seres humanos, passado e presente, presente e futuro, etc.
O carter universal da coleo deriva, segundo o autor, do papel me-
diador que ela desempenha entre os espectadores e o mundo invisvel
do qual falam os mitos, as narrativas e as histrias. Essa mediao, cabe
sublinhar, realizada especifcamente atravs dos objetos da coleo,
uma vez que, segundo seu entendimento, eles existem para serem ex-
postos ao olhar. Realizam assim uma mediao entre os dois termos de
uma oposio igualmente universal: o visvel e o invisvel. Os signifcados
atribudos a esses termos, e as modalidades de relao entre eles vo, evi-
dentemente, variar cultural e historicamente. Mas o que tornar possvel
a comparao entre diferentes perodos histricos, entre diferentes socie-
dades ou culturas precisamente a universalidade dessa oposio
4
.
Na perspectiva assumida por Pomian, seriam entendidos como co-
lees conjuntos de objetos os mais diversifcados: moblia funerria,
oferendas, ddivas e objetos expropriados em guerras, relquias e objetos
sagrados. Alm, obviamente, dos objetos que integram as colees privadas
3 Krzysztof Pomian
historiador e filsofo,
e associado ao grupo
dos historiadores dos
Annales. Ao longo
dos anos setenta
e oitenta publicou
diversos artigos sobre
colees e museus
na Europa moderna,
especificamente do
sculo XVI ao sculo
XVIII. Esses artigos,
juntamente com o
conhecido ensaio
sobre uma teoria geral
das colees, vieram
a ser reunidos no livro
Collecionneurs, ama-
teurs et curieux / Paris,
Venice: XVIe-XVIIIe
sicle, publicado em
1987. Anteriormente,
em 1984, publica
Lordre du temps, um
estudo sobre con-
cepes de tempo no
ocidente. Em 1990,
publica LEurope et ses
nations, sobre iden-
tidade europia. O
autor, ao que parece,
continua ligado ao
tema das colees e
museus. Alm de uma
excelente resenha a
respeito da crescente
bibliografia sobre
colees e museus
recentemente publi-
cada num nmero
dos Annales (1993),
o autor publicou h
pouco na Revue de
Metaphysique et de
Morale um artigo em
que discute as rela-
es entre histria,
memria e os efeitos
das transformaes
tecnolgicas desen-
cadeada nos ltimos
sculos sobre estas
relaes (1998).
4 Embora no os cite,
uma referncia cer-
tamente importante
para as reflexes de
Pomian so os estudos
de J. P. Vernant e
outros helenistas fran-
ceses sobre as con-
cepes a respeito do
visvel e do invisvel na
Grcia antiga (ver es-
pecificamente Vernant
[1973] 1990: 303-
330; e Gernet [1968]
1982: 227-238).
47 {jos r eginal do santos gonal ves}
e diferentes acervos museogrfcos do ocidente moderno. O que haveria de
comum entre esses diversos conjuntos de objetos, situados em contextos
socioculturais os mais distintos, seria o seu papel de intermedirios entre
o visvel e o invisvel. Esta funo mediadora resultaria de seu deslocamen-
to do circuito econmico e utilitrio, sua separao em lugares especiais,
sua exposio ao olhar (seja dos seres humanos, seja dos mortos, seja dos
deuses) e sua conseqente especializao enquanto objetos cuja vocao
signifcar (da o termo semiforos que a eles reserva)
5
.
Vale observar que o autor vai enfatizar a coleo enquanto uma
funo sociolgica de mediao entre o visvel e o invisvel. Assim
procedendo, deixa em segundo plano o conjunto de prticas sociais e
culturais por meio das quais as colees vm a se constituir e se trans-
formar. Em outras palavras, como a oposio visvel/invisvel vem a
se constituir historicamente, na medida mesmo em que se formam
aqueles conjuntos de objetos significativos que viro a realizar uma
mediao entre esses termos. O que estou sugerindo que, assumindo
essa perspectiva, o autor parece se deixar enfeitiar pela prpria ide-
ologia da coleo, a partir da qual esta concebida como um espao
auto-suficiente, infenso s contingncias histricas, suprimindo-se
assim os processos histricos econmicos, polticos de produo que
a tornaram possvel.
O COLECIONAMENTO COMO PRTICA CULTURAL
Outro autor, cuja referncia constante na bibliografa sobre colees
e museus, James Cliford
6
, historiador norte-americano que tem pro-
duzido vrios estudos sobre o pensamento antropolgico no sculo XX,
e especialmente sobre a moderna concepo etnogrfca de cultura.
a partir desse campo de refexo que ele vai se voltar para as prticas de
colecionamento do ocidente moderno e, em especial, para os processos
pelos quais os chamados artefatos tribais vieram, segundo ele, a ser
reapropriados pelos museus, sistemas de troca, arquivos disciplinares e
tradies discursivas do ocidente (1988:215).
5 Entre as formula-
es de Pomian esta
bastante proble-
mtica, uma vez que
assume uma oposio
ontologica entre
objetos que existem
para significar (os se-
miforos); e objetos
que, supostamente,
existitriam em razo
de funes exclusi-
vamente prticas. O
autor parece a incidir
no uso da chamada
razo prtica,
objeto de uma pro-
blematizao radical
por Marshall Sahlins
(1976).
6 James Cl i f ford
historiador e trabalha
atualmente no History
of Consciousness Pro-
gram na Universidade
da California, Santa
Cruz. Autor de uma
excelente monografia
sobre o etngrafo e
missi onri o francs
Mauri ce Leenhardt
(Clifford 1982), tour-
nou-se mais conhecido
por seu livro The pre-
dicament of culture:
t went i et h cent ur y
ethnography, literature
and art, publicado em
1988; e tambm pela
co-edio do conheci-
do Writing culture, jun-
tamente com Georges
Marcus (1986). Nesses
estudos, Clifford se de-
dica a refletir sobre o
pensamento antropo-
lgico no sculo XX,
em especial a antropo-
logia francesa e suas
relaes com o mundo
intelectual modernis-
ta. tambm autor
de Routes: travel and
translation in the late
twentieth century, em
1997. E, mais recen-
temente, em 1998,
publica no Brasil uma
coletnea de textos:
A experincia etno-
grfica: antropologia
e literatura no sculo
XX, organizada por
Jos Reginaldo Santos
Gonal ves (Cl i f ford
1998).
48 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
James Cliford parte da universalidade da prtica do colecionamento.
No entanto, sua nfase desloca-se para as formas especfcas que essa pr-
tica pode assumir em diferentes sociedades, e especialmente no ocidente
moderno. Segundo ele:
Alguma espcie de coleta em torno do self e do grupo a composio de um mundo
material, a demarcao de um domnio subjetivo por oposio a um outro pro-
vavelmente universal. (...) Mas a noo de que essa coleta envolva a acumulao de
posses, a idia de que a identidade seja uma espcie de riqueza (composta por objetos,
conhecimento, memrias, experincia) certamente no universal. (...) No ocidente,
o colecionamento, por longo tempo, tem sido uma estratgia para a elaborao de um
self, uma cultura e uma autenticidade possessivas (Cliford 1988:218).
Na perspectiva de James Cliford, as prticas de colecionamento tm
papel constitutivo no processo de formao de determinadas subjetivi-
dades individuais e coletivas. No contexto das sociedades tribais e das
sociedades complexas tradicionais, essas prticas esto associadas re-
distribuio e ao processo de decadncia natural e histrica; enquanto
que, no ocidente moderno, elas esto associadas acumulao e pre-
servao.
Essas modernas prticas de colecionamento esto no centro dos pro-
cessos de transformao dos chamados artefatos tribais em curiosi-
dades (como eram classifcados no sculo XIX), e posteriormente sua
reclassifcao como objetos etnogrfcos ou como arte primitiva
(no sculo XX). Nessa transformao, so atualizadas estratgias episte-
molgicas, valores estticos e polticos prprios do ocidente. Assim co-
leciona-se o que vem a ser classifcado como tradicional, autntico,
deixando-se de lado o que h de hbrido, ou histrico num sentido atual
e emergente. Segundo o autor, o que se dramatiza nesses processos a
moderna concepo etnogrfca de cultura (ou culturas, no plural e
com letra minscula), associada por sua vez aos aspectos de totalidade,
coerncia, equilbrio e autenticidade. O que classifcado como tra-
dicional garante a idia de uma essncia e uma continuidade no tempo a
49 {jos r eginal do santos gonal ves}
distinguir as culturas. Nesses processos est presente uma determinada
concepo da temporalidade, na qual a histria vista como um processo
incontrolvel de destruio, devendo as culturas, as tradies serem
resgatadas, preservadas, especialmente atravs do colecionamento e
exibio de seus objetos (Cliford 1988).
Partindo-se do pressuposto de que sempre nos colecionamos a ns
mesmos, por meio desses processos de colecionamento que vieram a
se constituir as identidades disciplinares do etngrafo e do moderno
antroplogo social ou cultural. atravs desses processos que veio a se
formar o que o autor chama de sistema de arte e cultura do ocidente
moderno, constitudo pelas relaes entre as categorias arte, cultura
e autenticidade.
Em resumo, para o autor, o colecionamento est no corao mesmo
dos processos de formao de uma subjetividade moderna no ocidente, a
partir da relao deste com as chamadas sociedades primitivas ou ex-
ticas. Nas prticas que desencadeiam esses processos fazem-se presentes
valores centrais de ordem epistemolgica, esttica e poltica.
O colecionamento, nessa perspectiva, ganha o status de uma metfora
privilegiada para descrever as relaes do ocidente com aquelas socieda-
des e com sua prpria subjetividade, para pensar as formas de represen-
tao do outro. Nesses termos, a representao etnogrfca passa a ser
pensada como uma forma de colecionamento. Entre as vantagens que
pode trazer o uso dessa metfora est a nfase no carter necessariamente
parcial dessa representao. Afnal, uma coleo sempre parcial, ela
jamais atinge uma totalidade. Pela sua natureza mesma, ela problematiza
essa totalidade, j que uma coleo jamais se fecha. Trata-se portanto
de um conhecimento sempre situado, produzido a partir de um sujeito
situado numa posio relativa. Um sujeito limitado a produzir, portanto,
verdades parciais.
O uso dessa metfora para pensar a cultura sugere que esta possa
ser vista em constante reconstruo, como um processo hbrido, sempre
parcial, precrio, contingente, jamais fechando-se numa totalidade. A
50 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
anlise crtica da ideologia da coleo mostra precisamente o esforo
sempre irrealizado no sentido de constituir essa totalidade, na medida
mesmo em que exclui o que seja considerado inautntico. Em outras
palavras, o colecionamento, na perspectiva desse autor, parece um pro-
cesso dividido contra si mesmo, articulado por uma permanente tenso
entre totalizao e fragmentao.
Essa perspectiva em relao s formas de representao etnogrfca
defne-se por oposio contrastiva em relao s formas presentes no
sculo XIX, com a antropologia evolucionista, e no sculo XX, com a mo-
derna antropologia social e cultural.
COLECIONAMENTO E CONHECIMENTO: A EXPERINCIA DO OLHAR
um pressuposto epistemolgico das colees e dos museus que o ato
de olhar (objetos expostos) equivale a conhecer algo que est alm dos
prprios objetos e que estes de algum modo evocam (Jordanova 1989).
Esse processo no absolutamente natural.
Como ento se d essa transformao? Como um objeto, por si insig-
nifcante, passa a merecer a ateno especial reservada a objetos que,
supostamente, ao serem olhados, possibilitam o conhecimento de deter-
minadas realidades invisveis? (Kirschenblatt-Gimblett 1991).
Para que se realize o processo de transformao de artefatos tribais
em objetos etnogrfcos (ou arte primitivas), se fazem necessrias diver-
sas mediaes. Estas variam desde as formas de aquisio desses artefatos, o
contexto social e cultural em que foram adquiridos, sua transferncia para
colees privadas e museus, sua reclassifcao e, no menos importante,
suas formas de exposio, e os processos visuais que tornam possvel a sua
recepo por parte dos espectadores. Alguns autores, presentes na biblio-
grafa de colees e museus, vo abordar exatamente esse problema. Seu
ponto de partida o reconhecimento de que o olhar desses espectadores
no absolutamente uma experincia natural, mas, na verdade, uma expe-
rincia codifcada segundo regras variveis cultural e historicamente.
Os estudos de Nelia Dias
7
(autora daquele verbete sobre Museus que
7 Nlia Dias pro-
fessora-assistente do
Departamento de
Antropologia Social
da Universidade de
Lisboa, e uma
especialista em antro-
pologia francesa no
sculo XIX. Publicou
em 1991, Le muse
dEthnographie du
Trocadro: 1878-
1908. Anthropologie
et musologie en
France; e autora de
diversos artigos sobre
a histria da antro-
pologia francesa e
colees etnogrficas
no sculo XIX.
51 {jos r eginal do santos gonal ves}
mencionamos acima) trazem alguns problemas originais para a anlise
das relaes entre teorias antropolgicas e colees etnogrfcas no s-
culo XIX. Ela autora de um estudo monogrfco, publicado na Frana,
sobre a transformao do antigo museu Trocadro no Muse de lHomme em
Paris, e sobre a reclassifcao do acervo de curiosidades como objetos
etnogrfcos e em seguida arte primitiva, referncia importante para
os artistas modernistas nos anos vinte.
Nestes comentrios vou me concentrar num pequeno artigo publi-
cado pela autora (1994), no qual explora alguns problemas importantes
na relao entre teorias antropolgicas, colees e exposies etnogr-
fcas e modalidades distintas de construo cultural do olhar. Em seu
Looking at objetcs: memory, knowledge in nineteenth-century ethno-
graphic displays (1994: 164-176), Dias discute inicialmente a relao entre
viso, conhecimento e memria; e em seguida explora a relao entre
modalidades de viso e formas de exposio museogrfca.
A exemplo de James Cliford (1988) e outros (Karp and Lavine 1991),
Dias parte do reconhecimento das prticas de colecionamento enquanto
historicamente determinadas, o que torna possvel o questionamento
dos sistemas de representao usados para transmitir conhecimento
(1994:164). Desse modo, a pergunta que ela prope inicialmente : que
tipo de conhecimento transmitem os museus? O que signifca ver uma
cultura e entend-la olhando objetos? (1994:164)
8
.
Dias assinala as conexes histricas entre antropologia e a chamada his-
tria natural no sculo XIX, conexo que se faz especialmente presente
nos processos metodolgicos de observao, colecionamento e classifcao
(1994: 164). Essa valorizao da observao, segundo os cnones da hist-
ria natural, transformou-se depois, com a moderna antropologia social e
cultural, em observao participante e, com esta, o trabalho de campo
(1994:165). Desse modo, a nfase colocada sobre a observao, alm da convic-
o, j assinalada por outros autores (por exemplo, Fabian 1983:107), de que
o conhecimento antropolgico est baseado na observao e validado por
ela, fez com que a viso viesse a ser valorizada, em detrimento de outros
8 Questes que, por
sua vez, so tambm
formuladas por outros
autores presentes
na bibliografia sobre
colees e museus
(ver Haraway 1989;
Jordanova 1989; Kirs-
chenblatt-Gimblett
1991; entre outros).
52 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
sentidos. Mas, assinala Dias, diversos autores que focalizaram e criticaram o
que chamam de visualismo do conhecimento antropolgico estavam vol-
tados para as metforas visuais presentes no texto, e no para as exposies
de objetos (Fabian 1983; Cliford e Marcus 1986; Tyler 1987). E para estas que
se dirige sua refexo. Ela sugere que se assuma um enfoque histrico para
entender as diversas formas que pode assumir essa associao entre viso e
conhecimento antropolgico. Uma vez que a viso parece se constituir num
modo privilegiado desse conhecimento, o que para ser visto num museu
muda de um perodo histrico para outro assim como mudam as relaes
e a diviso entre o visvel e o invisvel.
A autora chama a ateno para a nfase concedida, no sculo XIX, aos
objetos em detrimento das palavras. A vasta e diversifcada quantidade
de colees e museus nesse perodo, que j mereceu o ttulo de era dos
museus, parece sustentar sua afrmao. No caso dos museus etnogrfcos
desse perodo, assinala Dias, possvel perceber duas modalidades de expo-
sio de objetos: o arranjo tipolgico e o arranjo geogrfco, associados
a duas diferentes modalidades de viso e dois diferentes tipos de memria,
dois diferentes modos de adquirir e reter conhecimento (1994:165).
Enquanto Pomian, como vimos anteriormente, concebe a relao vi-
svel /invisvel como uma oposio universal a ser mediada pelas cole-
es, Dias vai deslocar sua anlise para o olhar enquanto uma categoria
histrica e culturalmente determinada, e para o entendimento de como
distintas modalidades do olhar podem estar articuladas a concepes
diversas sobre o que visvel e o que invisvel em diferentes culturas e
diferentes momentos histricos.
Desde o sculo XIX, o conhecimento antropolgico tem estado asso-
ciado s metforas visuais. Uma vez que o antroplogo defnido como um
observador, e que o sujeito defnido pela condio mesma daquele que
olha e no do que olhado , esse conhecimento leva objetifcao do
outro. Este outro, o primitivo, representado como distante no espao
e no tempo: um tempo e espao defnidos por oposio ao discurso antro-
polgico, por sua vez defnido no tempo presente e no espao atual.
53 {jos r eginal do santos gonal ves}
o conceito de cultura entendido como uma totalidade materializa-
da por objetos especifcamente em Edward B. Tylor (1832-1917) que
torna possvel a ordenao dos artefatos na forma de listas. Alm disso,
essa concepo de cultura como uma entidade que pode ser visualizada
atravs dos objetos confere a estes, individualmente considerados, o papel
metonmico de representar aquele todo abstrato. A categoria espcime
(usada no sculo XIX para classifcar os artefatos etnogrfcos) funcionava
precisamente como uma ilustrao da espcie.
Os modos tipolgico e geogrfco, de certa maneira, balizavam, se-
gundo Dias, os debates cientfcos e pedaggicos no sculo XIX. O primeiro
privilegiava a forma dos objetos. Alm disso, ele torna possvel traar uma
linha seqencial do mais simples ao mais complexo, independentemente
da origem geogrfca dos objetos expostos. Ele ilustrava um conceito li-
near de evoluo e seu pressuposto de uma mente humana universal. Os
artefatos considerados mais simples eram colocados do lado esquerdo,
enquanto que os que eram considerados mais complexos eram colocados
do lado direito. De tal forma que o espectador acompanhava visualmente
um esquema similar aos estgios da evoluo (1994:168). Ao espectador era
possvel transcender o espao e o tempo prprio dos objetos e situar-se no
espao intemporal, abstrato e analtico do museu (1994:168). O olhar desse
espectador dirigia-se a uma construo terica que era encaminhada
mente desse espectador. O arranjo tipolgico, alm disso, pressupunha
uma ordenao classifcatria do mais simples ao mais complexo; e tam-
bm das atividades supostamente mais necessrias s supostamente mais
suprfuas (1994:168). Dias observa ainda que esse arranjo articulava um
esquema mnemnico anlogo ao da escrita, deslocando-se o olhar do
espectador da esquerda para a direita, como no ato de ler um texto.
Se o arranjo tipolgico tinha como propsito demonstrar a evoluo
da cultura como princpio universal, j o modo geogrfco tinha como
propsito mostrar o modo de vida caracterstico de determinada regio.
A nfase a recai nas particularidades das culturas. Desse modo, no im-
portava apenas a forma exterior dos objetos expostos, mas sim a sua lo-
54 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
calizao em determinado ambiente geogrfco, sua produo, seus usos
e seus signifcados (1994:170). Nessas modalidades de exposio muito
comum apresentarem-se cenas da vida diria.
Esse arranjo pressupunha um outro modo de ver. Outro modo de tornar
visvel o invisvel. Nele buscava-se o signifcado dos objetos, o que exigia
que se chegasse a descobrir aquelas relaes que no eram perceptveis
imediatamente no ato de ver. Essas relaes ocultas eram acessveis apenas
atravs do trabalho de campo (1994:170). O olhar do espectador era solici-
tado a se projetar para alm da superfcie, para alm do quadro horizon-
tal e mergulhar verticalmente (1994:171). Os artefatos eram expostos no
para evidenciar princpios (como no arranjo tipolgico), mas para levantar
questes, levar a descobertas e desafar os valores dos visitantes (1994:171),
uma vez que esse outro que era representado deixava de ser apenas um
personagem no processo evolutivo (como na antropologia evolucionista), e
tornava-se o representante de culturas radicalmente distintas do ocidente
(como vem a ser no discurso da moderna antropologia social e cultural). O
tipo de olhar a presente no poderia ser o olhar desengajado que caracte-
rizava os arranjos tipolgicos.
Em contraste com os arranjos tipolgicos, o arranjo geogrfco volta-
se para um espao concreto, situado geogrfca e temporalmente. Mas,
paradoxalmente, esses arranjos, ainda que mostrem a vida de um povo
na sua singularidade e situados geogrfca e temporalmente, terminam
por apresentar a cultura como se num eterno presente, estvel e imutvel
(1994:171). O espectador, nessas modalidades de exposio, convidado a
ocupar o lugar do antroplogo, como se fosse este no campo, procedimen-
to anlogo ao que articulado nas monografas clssicas (1994:172).
Outro aspecto importante assinalado pela autora que, no caso dos
arranjos geogrfcos, dispensa-se a intermediao de princpios classi-
fcatrios, e pressupe (na medida mesmo em que faz uso de manequins
e reconstrues de aldeias) a convico de uma viso no mediada, uma
viso imediata, livre da interveno humana (1994:172). Em contraste com
o arranjo tipolgico, solicitava-se a um olhar que implicava, em certo
55 {jos r eginal do santos gonal ves}
grau, a participao do observador. Propicia-se ao visitante a experincia
de ser transportado, a experincia imaginria de uma viagem. O realis-
mo torna-se uma forma privilegiada de representao antropolgica. Os
arranjos geogrfcos, especialmente na forma de reconstituio de cenas
cotidianas da vida de um aldeia, contribuiram decisivamente, segundo a
autora, para a dissoluo entre realidade e sua representao (1994:172).
Ambos os modos de exposio pressupem concepes de cultura,
segundo as quais esta pode ser materializada atravs de coisas tangveis, e
podendo, portanto, ser exposta (1994:173). Essa estratgia de exposio, ao
lado do processo mesmo de colecionamento de artefatos leva convico
de que a cultura algo caracterizvel por certas espcies de objetos. A
determinadas sociedades ou culturas atribudo um determinado tipo
de objeto (1994:173). Nas ltimas dcadas, algumas experincias museo-
lgicas tm incorporado recursos sonoros, com o propsito de deslocar
essa tradicional nfase visual (1994:174).
Um tema no entanto que no trazido pela autora, pelo menos no o
de forma explcita, a noo de autenticidade, e que, como sabemos,
desempenha um papel central no discurso das colees e museus. Assim,
o efeito visual realista a que a autora alude, na verdade qualifcvel pelas
ideologias da autenticidade a partir das quais as exposies de objetos et-
nogrfcos so organizadas. Nos arranjos geogrfcos, que so a matriz das
representaes etnogrfcas das culturas no sculo XX, mostram-se no
apenas objetos, mas modos de vida singulares. A noo de autenticidade a
relativa no apenas aos objetos mas basicamente em relao a esses modos
de vida distintos. O que parece marcar a literatura etnogrfca no sculo
XX (e no s a literatura etnogrfca) a busca de uma autenticidade ao
mesmo tempo existencial, esttica, epistemolgica. Seguindo a proposio
expressa pelo verso de Baudelaire (...qualquer lugar fora daqui...), artistas,
escritores e etngrafos vo buscar, fora dos limites da civilizao ocidental
(ou em suas margens) formas de vida que representem uma alternativa
crtica inautenticidade da moderna civilizao urbana, industrial do
ocidente (Cliford 1998).
56 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Ao se avaliar a autenticidade das representaes articuladas por colees
e museus etnogrfcos, e especifcamente das exposies etnogrfcas, esse
valor poder ser concebido de duas formas distintas. Ora pelo que chamei
de autenticidade aurtica: uma concepo centrada no princpio da no
reprodutibilidade dos objetos, e voltada para a originalidade, singularidade e
permanncia destes; ora pelas formas no aurticas de autenticidade, arti-
culadas pelo princpio mesmo da reprodutibilidade, e nas quais os objetos so
reproduzidos e transitrios (Gonalves 1988; ver captulo VI deste livro).
Em uma e outra concepo de autenticidade esto presentes idias dis-
tintas a respeito da imagem (ou do objeto), ou do visvel e sua relao
com o que por ela representado, ou com o invisvel.
9
No primeiro caso,
a imagem (ou o objeto), ou o visvel entendido como uma encarnao
do invisvel, uma espcie de revelao de uma realidade; de certo
modo, os objetos expostos so uma emanao, ou uma manifestao da
prpria realidade invisvel que eles representam (uma mscara Tukuna
a forma visvel da totalidade que a cultura Tukuna).
No segundo caso, a imagem (ou o objeto), ou o visvel entendido
como uma imitao da aparncia, como uma cpia imitando um mo-
delo, valorizando-se o visvel em detrimento do invisvel. O esforo
a no sentido de que as imagens (ou os objetos) venham a ilustrar, ou
documentar, e no manifestar a realidade que representam.
As teorias antropolgicas de carter mais universalista (e que enfa-
tizam a similaridade entre as culturas e a redutibilidade destas a mo-
delos tericos abstratos) acompanham bem esta segunda concepo da
imagem. J as de carter relativista (e que enfatizam as diferenas entre
as culturas e a irredutibilidade dessas diferenas) parecem se adequar
melhor primeira concepo a respeito das relaes entre a imagem e
o que por ela representado. No primeiro caso, temos uma visualidade
mediada pela transparncia; no outro, pelo mistrio
10
.
DISCURSO ANTROPOLGICO E VISUALIDADE
Mas, afnal, que podemos aprender sobre as teorias antropolgicas
da cultura estudando as formas que assumem quando visualmente re-
9 Fao uso aqui aqui
das reflexes de Jean
Pierre Vernant sobre
as categorias visvel
e invisvel na Gcia
antiga em estudos
acima citados.
10 Para uma elabo-
rao da categori a
mistrio, associada
a si tuaes soci ai s
marcadas pela dife-
rena, ver (Burke 1966:
223-239).
57 {jos r eginal do santos gonal ves}
presentadas por meio de colees e exibies? Qual a especifcidade da
linguagem das colees e museus? Afnal, o que pode nos oferecer esse
tema das colees e museus (em suas relaes com as teorias antropol-
gicas), e que os textos antropolgicos e etnogrfcos em si mesmos no
oferecem?
Neste momento de nosso raciocnio, faz-se necessrio trazer a oposio
visvel /invisvel, ou a funo mediadora que desempenham as colees
entre uma e outra dimenso. Afnal, as colees existem para serem exi-
bidas. Elas implicam necessariamente em modalidades distintas do olhar.
Considerando-se, evidentemente, que este rgo no realiza sua funo
seno por meio de cdigos culturais (regimes visuais) especfcos.
No plano das ideologias das colees e museus etnogrfcos, os objetos
expostos tornam possvel uma relao direta, imediata entre o espectador
e a experincia humana representada. O que esses estudos revelam a
extensa e diversifcada srie de mediaes por meio das quais se realiza
o processo de transformao de artefatos tribais em objetos etnogrfcos
a integrar colees e museus. E entre essas mediaes, aquela que defne
a especifcidade mesma do tema, qual seja, o efeito visual produzido
por essas instituies. A visualidade mesma deixa de ser pensada como
uma experincia natural e mostrada como o resultado de uma srie de
regras variveis em termos culturais e histricos.
Essa mediao visual qualifca esse processo de comunicao entre a
academia e o espao extra-acadmico, operado pelas colees e museus
etnogrfcos. Estas instituies ocupam uma posio liminar entre um e
outro espao. Nesse processo, as teorias antropolgicas, uma vez elabora-
das conceitualmente na academia, vm a ser difundidas junto ao grande
pblico atravs de exposies em museus (e atravs de outros meios, tais
como flmes, fotografas, vdeos, etc.).
11
O que nos possibilita esse foco sobre o tema das colees e museus
perceber os processos sociais por meio dos quais essas teorias vm a ser
elaboradas, transformadas, difundidas, exercendo um papel formador
junto sociedade. A histria da disciplina (da moderna antropologia social
11 Sem contar, evi-
dentemente, que a
produo mesma des-
sas teorias j envol-
vem evidentemente
determinados cdigos
visuais, determinadas
modalidades de olhar,
imagens privilegiadas.
Ou seja, quando o
etngrafo transforma
sua experincia de
campo em etnogra-
fia, j nesse processo
se fazem presentes
cdigos visuais es-
pecficos. Alm de
escrever, o pesquisa-
dor antropolgico de
campo fotografa e
filma, trazendo em-
butida nessa atividade
concepes a respeito
da imagem. Ou seja,
juntamente com de-
terminada estratgia
terica, ou de repre-
sentao etnogrfica,
vai uma estratgia
visual, uma determi-
nada concepo a
respeito da imagem e
de sua relao com o
que ela representa.
58 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
e cultural) passa a ser entendida como parte de um contexto histrico e
intelectual mais amplo. Mais que uma disciplina, no sentido mais estrito,
profssionalizado e acadmico do termo, podemos perceber a antropolo-
gia como uma forma de vida, ou como um jogo de linguagem, passvel de
transformaes de um a outro perodo histrico.
59 {jos r eginal do santos gonal ves}
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setembro de 2003.
az parte do senso comum dos antroplogos sociais ou culturais a
idia de que, ao estudarmos nossas prprias sociedades, a tarefa
principal estranhar nosso cotidiano, nossas relaes, as idias
e valores com as quais mantemos uma relao de familiaridade.
Evidentemente, os museus, enquanto instituies, enquanto um sistema
de relaes sociais e um conjunto de idias e valores, fazem parte do coti-
diano das modernas sociedades complexas e particularmente das grandes
cidades. Meu objetivo aqui ser fazer um exerccio de estranhamento
em relao a essas instituies e sua relao com o espao urbano. Mais
precisamente, trazer algumas idias no sentido de desvendar as lgicas
culturais que informam as diferentes experincias humanas associadas
a distintos modelos de museus e suas relaes com o espao da cidade.
NARRATIVA E INFORMAO
Em um texto j bastante conhecido, escrito em 1936, Walter Benja-
min desenvolve algumas refexes que se tornaram clssicas a respeito
do narrador. Ele inicia o texto com a constatao do declnio e desa-
parecimento da narrativa, de nossa capacidade de narrar, processo que
est intimamente associado perda de nossa faculdade de intercambiar
experincias (1986:198). Pois precisamente A exprincia que passa de
pessoa a pessoa [que] a fonte a que recorreram todos os narradores
(1986:198).
65 {jos r eginal do santos gonal ves}
A narrativa, enquanto uma modalidade especfca de comunicao
humana, foresce num contexto marcado pelas relaes pessoais. O nar-
rador algum que traz o passado para o presente na forma de memria;
ou que traz para perto uma experincia situada num ponto longnquo
do espao. A narrativa sempre remete a uma distncia no tempo ou no
espao. Essa distncia mediada pela experincia pessoal do narrador.
Para Benjamin, os grandes modlos de narradores eram o velho arteso
que conhecia as tradies de sua aldeia e o marinheiro que narrava suas
experincias adquiridas em viagens.
O narrador sempre impunha a sua marca pessoal em suas estrias.
Enquanto modalidade de comunicao, a narrativa sempre deixa rastros
humanos. Como a marca das mos do arteso num objeto que produz.
H uma forte relao pessoal entre o narrador e suas estrias e com sua
audincia. Relao esta que passa necessriamente pelo corpo. O narra-
dor, ao contar uma estria, faz uso do seu corpo, especialmente de suas
mos. Segundo Benjamin:
...a narrao, em seu aspecto sensvel, no de modo algum o produto exclusivo
da voz. Na verdadeira narrao, a mo intervm decisivamente, com seus gestos,
aprendidos na experincia do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fuxo do
que dito (1986:221).
Outro aspecto importante na caracterizao dessa forma de comuni-
cao humana a ausncia de qualquer explicao. A narrativa se basta
a si mesma e dispensa qualquer esfro, por parte do narrador, no sen-
tido de explicar os acontecimentos narrados. A audincia livre para
interpretar a estria como quizer. Essa ausncia de explicaes deixa
livre o terreno para o que fundamental na narrativa: o intercmbio de
experincias. Segundo Benjamin, quanto mais renuncia s explicaes
psicolgicas, mais a narrativa se gravar facilmente na memria dos ou-
vintes. Em suas prprias palavras, Quanto mais o ouvinte se esquece de
si mesmo, mais profundamente se grava nele o que ouvido (1986:205).
Processando-se em camadas muito profundas do psiquismo, esse processo
66 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
de assimilao ... exige um estado de distenso que se torna cada vez mais
raro (1986:204) no cotidiano de uma cidade moderna.
Com o declnio da experincia no contexto da grande metrpole, de-
senvolve-se uma outra forma de comunicao humana peculiar a esse
novo contexto: a informao. A imprensa uma das suas manifestaes.
ela em grande parte a responsvel pelo desaparecimento da narrati-
va. Com o seu advento, desaparece o contexto de relaes inter-pessoais
onde foresce a narrativa. A informao fruto de um universo marcado
pela heterogeneidade dos cdigos scio-culturais, pela impessoalidade
e pelo anonimato. A narrativa, como vimos, fundada na possibilidade
de compartilhar experincias, portanto numa coletividade interligada
por laos afetivos. A informao dirige-se a indivduos isolados, tomos
sociais desprovidos da rde intensa de relaes que caracteriza o narrador
e sua audincia. A informao, em contraste com a narrativa, no deixa
rastros, no deixa marcas pessoais. Enquanto a narrativa trazia estrias
que vinham de longe no tempo ou no espao, a informao se prende ao
que prximo. A narrativa trazia embutido um saber que vinha de longe
e dispunha portanto de uma autoridade que podia mesmo dispensar a
sua verifcao pela experincia. Segundo Benjamin:
...a informao aspira a uma verifcao imediata. Antes de mais nada, ela precisa
ser compreensvel em si e para si. Muitas vezes no mais exata que os relatos
antigos. Porm, enquanto esses relatos recorriam freqentemente ao miraculoso,
indispensvel que a informao seja plausvel. Nisso ela incompatvel com a arte
da narrativa (1986:203).
Finalmente, associado a esse ltimo aspecto da informao, est o
de que os acontecimentos que ela nos traz j chegam com explicaes, o
que restringe radicalmente o leque de interpretaes possveis de serem
elaboradas pelo leitor. Alm disso, o processo de assimilao pelo leitor
bastante inferior ao produzido pela narrativa, uma vez que no se verifca
na informao aquele estado de distenso psicolgica caracterstico do
ouvinte de uma narrativa. Esse estado incompatvel com o ritmo intenso
da grande cidade.
67 {jos r eginal do santos gonal ves}
O FLNEUR E O HOMEM-DA-MULTIDO
O declnio da experincia na grande metrpole traz consigo, junta-
mente com o fm da narrativa e o advento da informao, o surgimento
de alguns personagens tpicos desse contexto. O mesmo Benjamin elabora
uma outra distino que est associada que acabamos de expor e que
ilumina algumas dessas modalidades de experincia humana. Trata-se
da distino entre o fneur e o homem da multido.
Um e outro representam modos diversos de reagir ao universo da
grande cidade, ao seu ritmo vertiginoso e sua impessoalidade. O fneur
recusa-se a ser absorvido por esse ritmo, recusa-se a perder sua subjeti-
vidade no universo da multido. Ele caminha lentamente e experimenta
subjetivamente cada detalhe visual, tctil, auditivo ou olfativo das ruas
da cidade. O fundamento do pensamento e da experincia da fnerie a
ociosidade, a contemplao. Segundo Benjamin:
O pedestre sabia ostentar em certas condies sua ociosidade provocativamente.
Por algum tempo, em torno de 1840, foi de bom-tom levar tartarugas a passear nas
galerias. De bom grado, o fneur deixava que elas lhes prescrevessem o ritmo de
caminhar (1989a:122).
Num texto escrito em 1936, em Paris, Edmond Jaloux, citado por Ben-
jamin, diz:
Um homem que passeia no devia se preocupar com os riscos que corre, ou com as
regras de uma cidade. Se uma idia divertida lhe vem a mente, se uma loja curiosa
se oferece a sua viso, natural que, sem ter de afrontar perigos tais como nossos
avs nem mesmo puderam supor, ele queira atravessar a via. Ora, hoje ele no pode
faz-lo sem tomar mil precaues, sem interrogar o horizonte, sem pedir conselho
delegacia de polcia, sem se misturar a uma multido aturdida e acotovelada, cujo
caminho est traado de antemo por pedaos de metal brilhante. Se ele tenta
juntar os pensamentos fantsticos que lhe ocorrem, e que as vises da rua devem
excitar, ensurdecido pelos alto-falantes ... desmoralizado pelos trechos de dilo-
gos, dos informes polticos e do jazz que se insinuam pelas janelas... (1989a:210).
68 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Nesse mesmo texto, ele acrescenta, numa caracterizao da fnerie:
Sair quando nada nos fora a faz-lo e seguir nossa inspirao como se
o simples fato de dobrar direita ou esquerda j constituisse um ato
essencialmente potico (1989a:210).
Como se pode perceber, o que ganha destaque na caracterizao do
fneur o seu compromisso com o cio. Esse um outro motivo que o situa
na contra-mo dos modernos processos de diviso social do trabalho. Esse
cio no entanto esconde um intenso intersse na vida sua volta. Num
universo marcado pela impessoalidade e pelo anonimato garantidos pela
reserva psicolgica caracterstica do habitante das grandes cidades, o
fneur se dedica a advinhar pelas roupas, gestos, voz, modo de caminhar,
a profsso, a origem e o carter dos transeuntes.
Seu deslocamento pelas ruas da cidade, embora casual e ocioso, mo-
tivado pela possibilidade de, a qualquer momento, experimentar a desco-
berta de alguma dimenso de realidade desconhecida, extica, distante no
tempo ou no espao. O museu pode ser um dos locais dessa experincia.
Ora, esses atributos so precisamente os que esto ausentes na carac-
terizao do homem-da-multido. Este pode ser descrito como o que
aconteceria ao fneur se lhe fsse retirado o seu ambiente. a intensifca-
o dos processos caractersticos da grande cidade, a vasta heterogenei-
dade de cdigos scio-culturais, a intensifcao da atitude psicolgica de
reserva do habitante da grande cidade, o aumento do trfego e do ritmo
de deslocamento da populao, que inviabilizam a experincia do fneur,
assim como a informao inviabiliza a narrativa. O homem-da-multido,
em contraste com o fneur, identifca-se maniacamente com a multido
e seu ritmo vertiginoso. Dele est ausente a dimenso subjetiva do f-
neur, a atitude de intersse e curiosidade pelo que ocorre a sua volta. Ele
certamente tem sua ateno mobilizada pela multido, mas ele se deixa
levar de modo manaco pelo movimento desta. Ele no a observa, como
faz o fneur, mantendo seu ritmo prprio. O homem-da-multido tende
a se defnir como um nmero num universo progressivamente marcado
pelo igualitarismo e pelo carter abstrato das relaes.
69 {jos r eginal do santos gonal ves}
preciso acrescentar que um e outro tipo tm como pano de fundo
um espao progressivamente ocupado por um outro tipo humano bas-
tante comum nas grandes metrpoles: aquele dotado de uma estrutura
de personalidade e um modo de conduta caracterizada por Georg Sim-
mel atravs da expresso blas. Trata-se de uma estrutura psicolgica
desenvolvida pelos habitantes dos grandes centros urbanos e que tem
como funo proteg-lo da vasta quantidade de estmulos sensoriais e
psicgicos a que ele submetido cotidianamente. Uma atitude de reser-
va, de frieza ou de indiferena diante de tudo que se passa a sua volta.
Segundo Simmel:
A essncia da atitude blas consiste no embotamento do poder de discriminar. Isso
no signifca que os objetos no sejam percebidos (...) mas antes que o signifcado e
os valores diferenciais das coisas, e da as prprias coisas, so experimentados como
destitudos de substncia. Elas aparecem pessoa blas num tom uniformemente pla-
no e fosco; objeto algum merece preferncia sbre outro. Esse estado de nimo o fel
refexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada (1973:16).
O universo social dessa atitude estruturada a partir de um vasto e
heterogneo conjunto de cdigos scio-culturais pelos quais os habitan-
tes de uma grande cidade transita diariamente. E quanto maior e mais
diferenciado esse conjunto, quanto mais numerosas e mais heterogneas
nossas relaes cotidianas, mais nos individualizamos, mais intensifca-
mos nosso universo subjetivo e nossa atitude de reserva em em relao
aos outros. a moderna experincia scio-cultural do individualismo.
Minha sugesto a de que usemos essas distines para desenharmos
alguns modlos conceituais para pensarmos os museus e entender seu
surgimento e suas transformaes em funo de sua relao com o espao
da grande cidade e especifcamente com o pblico.
Esquematicamente, poderamos distinguir dois modelos a que chama-
ramos o museu-narrativa e museu-informao. Cada um deles cor-
responderia a um tipo de relao com o pblico e a experincias humanas
70 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
situadas num continuum cujos polos seriam delimitados pelas fguras do
fneur e do homem-da-multido.
O MUSEU-NARRATIVA E A FLANRIE
O museu-narrativa surge e se desenvolve em um contexto urbano
onde a relao com o pblico ainda guarda uma marca pessoal. Ele no
um museu feito para atender grandes multides. Quantitativamente
seu pblico bem restrito; qualitativamente, seleto. provvel que nle
caminhe confortvelmente o fneur; mas certamente no se reconhecer
nesse espao o homem da multido. Dessa relao o museu-narrativa
retira uma srie de caractersticas defnidoras.
A fruio do museu-narrativa supe da parte do visitante um estado
de distenso psicolgica que no mais possvel no contexto de uma
grande metrpole com seu ritmo intenso, frentico, incompatvel com a
fnerie. No por acaso, Benjamin chama de casas de sonho os museus
parisienses do sculo XIX visitados pelo fneur (1989b:422-433). Essa ex-
perincia supe aquele estado de distenso psicolgica prxima da ex-
perincia do narrador e dos seus ouvintes.
Essa fruio supe, por sua vez, uma determinada confgurao do
espao do museu e dos objetos expostos. Esse espao tende a ser identif-
cado como um interior, a separao com relao ao espao da rua bastante
marcada, o que repercute na iluminao. Uma grande quantidade de ob-
jetos so expostos, acumulando-se em salas e vitrines, sem textos que os
situem em algum perodo histrico. O deslocamento dos visitantes se faz
com lentido. Os objetos se impem ateno dos visitantes, exercendo
seu poder evocativo. Moedas, mveis, espadas, medalhas, loua, quadros,
vesturio, um conjunto heterclito de objetos ocupa amplamente os es-
paos dedicados exposio. Esses objetos tambm esto ligados expe-
rincia, pelo menos experincia de determinados grupos e categorias
sociais, por exemplo s famlias de elite. Eles desencadeiam a fantasia
do visitante, uma vez que no esto amarrados a qualquer informao
defnida. Confguram um espao propcio fnerie.
71 {jos r eginal do santos gonal ves}
Em um belssimo estudo comparativo sbre o Museu Imperial de
Petrpolis e o Museu Histrico Nacional, Myrian Seplveda dos Santos,
analisando o espao deste ltimo nos anos da administrao Gustavo
Barroso, afrma:
O retrato de qualquer uma das salas arrumadas na poca de Barroso nos d a sen-
sao de que a superabundncia era considerada o meio mais adequado para que
as obras adquirissem valor. Praticamente todo o acervo estava exposto. As louas
ou aparelhos de cermica tinham quarenta ou mais pratos, todos expostos, lado a
lado. Os objetos literalmente empilhavam-se. Armas, bandeiras, canhes, louas,
tudo em grande quantidade. Essa profuso simbolizava a capacidade que tinham
estes objetos de testemunhar sbre a realidade. Mas estas relquias do passado eram
mostradas ao pblico obedecendo a uma lgica que lhes pertencia. As peas de um
aparelho da Companhia das Indias no podiam ser separadas. como se elas fossem
capazes de dizer mais do que qualquer um sobre o tema, eram fonte de inesgotvel
saber, parte da realidade a ser descoberta por cada visitante. Quem entrasse em
uma sala jamais poderia pensar ter captado todo o sentido nela embutido. No havia
uma mensagem por parte do Museu, mas milhares (1988:44).
Evidentemente que percorrer essas salas exigiam do visitante um
longo tempo, incompatvel com o contexto e as funes do museu-infor-
mao e com a disponibilidade do seu pblico.
No caso do museu-narrativa h tambm uma rede de relaes de na-
trureza interpessoal e por meio da qual se d o fuxo de trocas entre doa-
dores e diretores de museus. Em grande parte as colees so obtidas por
meio dessa rde de relaes. Em um estudo sbre a coleo Miguel Calmon,
do Museu Histrico Nacional, Regina Abreu (1990) chama a ateno para
a relevncia dessas relaes na histria dessa instituio. Essa dimenso
entrar em declnio com a entrada em cena do museu-informao, o qual
acionar estruturas burocrticas, como as associaes de amigos, para
mediar suas relaes com a sociedade.
Coerentemente com esses traos caracterizadores do museu-narra-
tiva, h que assinalar o paradigma de formao e de prtica de trabalho
72 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
dos seus profssionais. O profssional desse modelo de museu defnir
sua identidade fundamentalmente pela sua capacidade de identifcar e
autenticar objetos. Esse tipo de relao com os objetos passa por uma
comunicao sensvel tato, cheiro, olhar que viabiliza a identifca-
o e autenticao dos objetos. No contexto do museu-informao esse
profssional ser solicitado a desempenhar outras funes alm daque-
las, ganhando o primeiro plano as funes de pesquisa, comunicao e
divulgao.
O MUSEU-INFORMAO E A MULTIDO
O sistema de relaes sociais e o conjunto de idias e valores a que
estou chamando museu-informao desenvolvem-se em funo das
grandes metrpoles e de suas multides annimas, defnindo-se a partir
de suas relaes com o mercado, com um vasto pblico voltado para o
consumo de informaes e bens culturais. Ele existe basicamente para
atender a esse pblico, e pelo qual v-se na contingncia de competir com
os meios de comunicao de massa. Seus visitantes, diferentemente do
fneur, o percorrem num ritmo intenso, vertiginoso, na expectativa de
consumir informaes da maneira mais rpida e econmica. para esse
visitante que se montam os servios de infra-estrutura dos museus assim
como todo o conjunto de atividades culturais e objetos que se vendem no
espao dos museus e dos chamados centros culturais.
nesse contexto que se desenvolvem propostas no sentido de que os
acervos museolgicos assim como o patrimnio cultural representem
democraticamente as diversas categorias e grupos sociais existentes na
sociedade. nesse contexto que se fala em inveno do patrimnio. A
idia de inveno nesse contexto vem acompanhada de valores como
autonomia e liberdade assumidos por sujeitos individuais ou coletivos. H
ento uma nfase bastante forte nas funes de comunicao dos museus.
Essas propostas manifestam a tendncia fragmentao, onde cada cate-
goria, cada grupo social e, levando ao absurdo, cada indivduo possuiria
seu prprio museu ou seu prprio patrimnio cultural. A chamada nova
73 {jos r eginal do santos gonal ves}
museologia manifesta fortemente essas tendncias democratizantes. A
fragmentao ocorre ao mesmo tempo que a perda da aura. A fragmen-
tao acompanha a perda da experincia, da narrativa, da fnerie. Ela
contempornea do museu informao e do concomitante desapareci-
mento do museu narrativa.
Em contraste com a fragmentao, h a tendncia unidade, a uma
representao unifcadora ou globalizante dos diversos grupos e catego-
rias sociais que compem a sociedade. No caso das sociedades moder-
nas, no entanto, essa tendncia tem sua legitimidade permanentemente
questionada. No h assim, ou pelo menos bastante problemtica a
existncia dessa representao ou dessa memria totalizante. Nas chama-
das sociedades tradicionais, estruturadas a partir de um modlo holista,
a memria totalizante era a memria de um grupo ou categoria social
hierarquicamente superior: a memria da nobreza no ancien rgime, das
castas superiores na sociedade indiana, a memria de cls e linhagens
em sociedades tribais, etc. A memria signifcativa a memria dessa
unidade social encompassadora, nela incluindo-se as memrias de grupos
hierarquicamente inferiores e a memria de indivduos. No caso das socie-
dades modernas, marcadas pelo individualismo e igualitarismo, enfatiza-
se contrastivamente as memrias de pequenos grupos e categorias e a
memria biogrfca de indivduos, todos pensados em termos de mtuas
relaes de igualdade e valorizando-se positivamente a singularidade de
cada uma dessas memrias. com o propsito de atender s demandas
de representao cultural dessa vasta e heterognea populao que fun-
cionam os modernos museus-informao.
Essas mudanas que levam ao museu-informao resultam do pro-
cesso de complexifcao da diviso social do trabalho e seus efeitos na
confgurao do espao da cidade. Esse espao torna-se no smente mais
populoso como tambm torna-se um espao segregado, alm de forte-
mente marcado pela impessoalidade, pelo anonimato e sobretudo pela
intensa experincia da heterogneidade dos modos de vida e das vises
de mundo (Velho 1994).
74 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Desse processo faz parte a profssionalizao do campo museolgico
no Brasil, sobretudo a partir dos anos setenta e oitenta. Essa profssiona-
lizao, resposta necessria s transformaes por que passam os museus
e a cidade, tende no entanto a trazer consigo uma relao marcadamente
tcnica e mercadolgica com os objetos e com os espaos museolgicos,
acentuando-se as funes de comunicao com o pblico, o que contrasta
fortemente com o contexto do museu-narrativa.
MUSEUS E MUSELOGOS: OS MODLOS NO COTIDIANO
No meu objetivo celebrar nostlgicamente o museu-narrativa e
nem promover o futuro dos museus-informao. Evidentemente, o que
trago aqui so tipos ideais ou modlos. Enquanto tais, esto sempre
aqum das situaes sociais e das experincias humanas analisadas. Mas
por seu intermdio que talvez se confgure um campo frtil para o di-
logo entre cientistas sociais de um lado; e muselogos e profssionais de
patrimnio cultural de outro.
No cotidiano dos museus e de suas relaes com a cidade h uma
evidente interseo entre museus-narrativa e museus-informao. Em
nenhuma situao emprica encontram-se esses modlos em estado puro.
Embora o museu-informao seja dominante, ele jamais exclui a vigncia
do museu-narrativa.
Como j assinalamos, cada um desses modlos vai junto com distintos
paradigmas de formao e de prtica profssional dos muselogos. Em con-
tatos recentes com essa comunidade profssional tenho aprendido sbre a
diferena entre o meu trabalho como cientista social e o trabalho deles no
dia-a-dia dos museus. Estamos diante de duas tribos intelectuais com mitos
de origem, ritos de refro da identidade, vocabulrios e cotidianos profssio-
nais bem diferentes. Minha hiptese a de que essa diferena se fundamenta
primordialmente na relao com os objetos, numa relao sensvel com os ob-
jetos, uma relao que passa pelo tato, pela viso, pelo olfato e pela audio.
A oposio clssica entre o bricoleur e o engenheiro, formulada por Clau-
de Lvi-Strauss (1973:19-55) com o propsito de iluminar as diferenas entre
75 {jos r eginal do santos gonal ves}
o pensamento mtico ou pensamento mgico e o pensamento cientfco,
pode ser til nesse contexto da discusso. O bricoleur trabalha sempre a
partir de um conjunto heterclito de objetos e fragmentos que ele foi acu-
mulando a partir do princpio de que eles eles podem servir. O bricoleur
sempre opera a partir desse universo fechado. J o engenheiro jamais se
submete a esse conjunto dado de objetos e fragmentos. Na execuo de seus
projetos ele produz os materiais de que necessita. Por isso mesmo suas rea-
lizaes, em comparao com as do bricoleur, so ilimitadas, visto que no
se reduz a um conjunto de materiais disponveis. O bricoleur dialoga com os
objetos; o engenheiro os produz a partir de novas estruturas conceituais.
Na ideologia do moderno profssional de museus, ste tende a agir como
um engenheiro; enquanto a prtica cotidiana desses profssionais jamais
excluiu a bricolage. Em termos esquemticos, poderamos dizer que o museu-
narrativa est para o bricoleur assim como o museu-informao est para o
engenheiro. Sem que, evidentemente, um exclua o outro.
Essa relao que os muselogos mantm com os objetos est ausen-
te, ou pelo menos no est necessriamente presente na formao e na
prtica profssional de um historiador ou de um antroplogo, os quais
trabalham fundamentalmente com estruturas conceituais. Para um his-
toriador moderno ou para um antroplogo, os textos falam mais e melhor
do que os objetos. Para um profssional de museu, a valorizao recai nos
objetos. Isso no quer dizer que os profssionais de museus no trabalhem
com estruturas conceituais, o que seria um absurdo; mas sim que a rela-
o que o diferencia dos demais profssionais esta relao sensvel com
os objetos. E quanto a esse ponto possvel dizer que os profssionais de
museus so herdeiros da tradio dos antiqurios do sculo XVII e XVIII
tal como so descritos num texto do historiador Arnaldo Momigliano
(1983:244-293). Os antiqurios no sculo XVII e XVIII ampliavam os mto-
dos da pesquisa histrica ao incorporarem dados no textuais, tais como
moedas, inscries e outros testemunhos materiais.
No j referido estudo de Myrian Seplveda dos Santos sbre o Museu
Histrico, ela assinala a relao entre essa tradio dos antiqurios e a
76 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
prtica dos profssionais desta Casa poca de Barroso. Essa relao teria
entrado em declnio com o advento de novos modelos museolgicos a
partir dos anos setenta. Historicamente, verdade que os novos muse-
logos, desde os anos setenta, retiraram a nfase nas prticas de identi-
fcao e autenticao de objetos como um dos requisitos fundamentais
na formao do profssional de museus. Eu arriscaria dizer no entanto
que, apesar do declnio da valorizao dessas prticas, elas talvez ainda
constituam o ncleo da identidade dos profssionais de museus. Apesar
de ocuparem uma posio marginal nos atuais currculos de museologia,
possvelmente por seu intermdio que a comunidade identifca, avalia
e reconhece, informalmente, no cotidiano, os seus profssionais. Nesse
sentido, acredito que haja uma continuidade profunda, uma estrutura de
longa durao a ligar os antigos e os novos profssionais de museu quela
tradio dos antiqurios.
provvel que essa distino entre uma dimenso concreta e outra
abstrata na atividade do profssional de museu esteja ligada a uma dua-
lidade estrutural presente nos prprios objetos museolgicos, dualidade
no muito diferente daquela estabelecida na teologia poltica medieval
entre os dois corpos do rei. Segundo um estudo clssico de Ernst Kan-
torowicz (1981), os reis medievais possuiam dois corpos. Um deles era
um corpo contingente e perecvel e que desapareceria com a morte. O
outro era um corpo transcendente e eterno e que porisso mesmo tinha
a capacidade de representar a totalidade da ordem csmica e da ordem
social. Assim, tambm os objetos museolgicos possuem, de um lado,
uma dimenso contingente e perecvel enquanto objetos materiais; de
outro, uma dimenso abstrata e transcendente enquanto representaes
de ideais e valores sociais. As transformaes que se processaram no
discurso museolgico desde os anos setenta parecem indicar uma forte
tendencia no sentido de se valorizar a dimenso abstrata dos objetos, a
sua capacidade de representar valores e ideais de diferentes grupos e
categorias sociais. Faz sentido nesse contexto a valorizao dos textos
em detrimento dos objetos. Estes tendem a ser mais valorizados como
77 {jos r eginal do santos gonal ves}
suportes materiais de idias abstratas, como ilustraes dos textos; e
menos como objetos a serem apreciados em si mesmos, em funo de sua
concretude, de sua forma plstica e de sua capacidade de evocao. Este
ltimo aspecto, embora no tenha desaparecido, perdeu sua preeminn-
cia com o desaparecimento do museu-narrativa. No museu-informao,
os objetos tendem a ser valorizados pela sua capacidade de representar
idias e valores sociais num econmico processo de comunicao.
Os profssionais de museus tm diante de si um caminho que leva a um
afnamento com as demandas do pblico da sociedade urbana e do mercado,
e que o leva a competir com os meios de comunicao de massa; e um outro
caminho baseado numa relao diferencial com essas demandas, e que tem
como base precisamente essa relao sensvel com os objetos relao no
muito diferente daquela que o narrador entretm com suas estrias e com
sua audincia. Esse ltimo aspecto o que parece garantir a originalidade
de sua contribuio. Sem seguir o primeiro caminho ele se isola e possibi-
lita o fracasso do seu emprendimento no contexto contemporneo de uma
grande cidade. Abandonando o segundo, ele perde sua identidade.
Seria fcil afrmar que a soluo ideal para o profssional de museus
estaria numa combinao entre o engenheiro e o bricoleur. Acredito no
entanto que o que est em jogo na formao e na prtica desse profssional
e, por extenso, do profssional de patrimnio cultural, precisamente
a dimenso da bricolage, o que faz com que suas atividades sejam menos
semelhantes ao do cientista e mais identifcadas ao trabalho do artista e
do poeta. E se insistimos em falar de cincia, melhor seria que falssemos
numa cincia do concreto.
Num universo scio-cultural como o da grande cidade, onde imperam
a impessoalidade, o anonimato, e as formas de pensamento e comunicao
mais abstratas, como caracterstico dos grandes empreendimentos tec-
no-burocrticos, no ser de pequena relevncia a contribuio de quem,
alternativamente, mantm com o universo e a sociedade uma relao de
conhecimento eminentemente sensvel, e que tende a agir e pensar em
termos de uma potica do espao.
78 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
No acredito que um bom diagnstico antropolgico ou sociolgico
possa ser aplicado com o propsito de melhorar ou tornar mais ra-
cional o funcionamento de determinada instituio ou o ofcio de seus
profssionais.
Acredito no entanto que o conhecimento produzido pelas cincias
sociais, sendo essencialmente dialgico, possa alimentar a conversao
entre diferentes sub-culturas. No caso em pauta, a sub-cultura dos cien-
tistas sociais de um lado; e de outro, a sub-cultura dos muselogos e dos
profssionais de patrimnio. Minha expectativa que essas sugestes
possam servir, de algum modo, para manter viva, entre ns, essa con-
versao.
79 {jos r eginal do santos gonal ves}
r efer ncias bibl iogr ficas
Abreu, Regina
1990 O culto da saudade no templo dos imortais. Tese de mestrado
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Benjamin, Walter
1986 Magia e tcnica, arte e poltica. Obras Escolhidas. Vol 1.
Brasiliense. S.P.
1989a Charles Baudelaire: um lrico no auge do capitalismo. Obras
Escolhidas, Vol 3, Brasiliense. S.P.
1989b Paris, capitale du XIXme sicle. Les Editions du Cerf. Paris.
Kantorowicz, Ernst
1981 The Kings Two Bodies. Princeton University Press. New Jersey.
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Momigliano, Arnaldo
1983 Problmes dhistoriographie ancienne et moderne.
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1973 A metrpole e a vida mental. In: O Fenmeno Urbano (org.
Otvio Guilherme Alves Velho), Zahar, R.J.
Velho, Gilberto
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Os Museus e a Repr esentao
do Br asil
Texto publicado na Revista do Patrimnio no. 31, 2005, pp. 254-273.
With good reason postmodernism has relentlessly instructed us that reality
is artifce yet, so it seems to me, not enough surprise has been expressed as to
know how we nevertheless get on living, pretending thanks to the mimetic
faculty that we live facts, not fctions.
1

Michael Taussig
Mimesis and alterity: a particular
history of the senses
OS MUSEUS COMO ESPAOS MATERIAIS DE REPRESENTAO SOCIAL
o visitarmos um museu, mal percebemos a complexidade do
sistema de relaes sociais e simblicas que tornaram pos-
svel a sua formao e asseguram o seu funcionamento. Percorrendo o
circuito das exposies, somos levados a esquecer todo o processo de
produo de cada um dos objetos materiais expostos, a histria de cada
um deles, como chegaram ao museu, assim como todo o trabalho necess-
rio sua aquisio, classifcao, preservao e exibio naquele espao.
Os agentes e as relaes que tornam possveis esses processos fcam na
penumbra, em favor do enquadramento institucional dos objetos numa
determinada exposio.
Na verdade, para que esta acontea, faz-se necessria uma extensa e
complexa cadeia de aes sociais e simblicas. Ao situarmos essa cadeia
no tempo, alm de sua confgurao no espao, ela torna-se ainda mais
extensa e complexa. Um longo caminho geogrfco e histrico deve ser
percorrido, desde aquelas aes necessrias aquisio e elaborao da
matria prima necessria produo, at s aes de produzir, utilizar,
1 Com boas razes,
o ps-modernismo
tem nos mostrado
incansavelmente que
a realidade um arti-
fcio, ainda que, assim
me parece, no muita
surpresa tenha sido
expressa em relao
a sabermos como,
apesar disso, ns
continuamos a viver
acreditando graas
faculdade da mmese
que vivemos fatos e
no fices.
83 {jos r eginal do santos gonal ves}
adquirir, colecionar, classifcar, preservar e expor os objetos materiais
que compem uma exposio.
O espao material dos museus constitudo social e simbolicamente
pelo tenso entrecruzamento de diversas relaes entre grupos tnicos,
classes sociais, naes, categorias profssionais, pblico, colecionadores,
artistas, agentes do mercado de bens culturais, agentes do Estado, etc. As
idias e valores que norteiam essas relaes so dramatizados por meio
de uma teia de signifcados (Weber 1978; Geertz 1973) cuja coerncia
e estabilidade so permanentemente ameaadas por questionamentos
externos e internos ao prprio campo. Meu objetivo descrever e inter-
pretar parcialmente essa teia, suas ambigidades e tenses e revelar o seu
papel na construo e no funcionamento dos museus enquanto espaos
materiais de representao social no Brasil.
Os museus tm sido associados, nas modernas sociedades ocidentais,
aos espaos da cultura, no sentido da cultura letrada, da alta cultura
ou da cultura erudita, por oposio s culturas populares ou cultura
de massa. Espaos demarcados social e simbolicamente, defnem-se por
uma relao de supremacia ideolgica frente a outras formas culturais.
Eles dramatizam, desse modo, uma concepo especifcamente ociden-
tal e moderna de cultura. Enquanto para as sociedades tribais e para as
sociedades complexas tradicionais, a cultura pensada como algo in-
timamente ligado s experincias sagradas e profanas da vida cotidiana
e ao contexto de relaes sociais que estruturam essas experincias, nas
sociedades modernas a cultura veio a ser objetifcada (Handler 1985),
concebida como uma dimenso separada da experincia cotidiana das
relaes sociais, como um espao nobre que abriga um conjunto de objetos
passveis de serem apropriados, contemplados, preservados e represen-
tando valores transcendentais.
As relaes entre esse espao nobre e as demais formas de cultura, no
entanto, vm sendo progressivamente desestabilizadas e suas fronteiras
demarcatrias aparentemente enfraquecidas. Os produtos das culturas
populares e da cultura de massa so incorporados naqueles espaos;
84 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
enquanto produtos da chamada cultura erudita so igualmente incor-
porados, reinterpretados e difundidos pelos meios de comunicao. Esse
processo, importante sublinhar, no se desenrola num mesmo plano,
onde tudo se homogeneizaria num processo de globalizao e trans-
nacionalizao da cultura. Na verdade, esse processo de circulao da
cultura est submetido a divises e hierarquias, a estruturas nacionais e
locais de natureza social e simblica, cuja lgica de funcionamento pre-
cisa ser decifrada para que se possam perceber os limites reais e avaliar
lucidamente os seus efeitos sociais.
Ao adquirir, por variados meios, objetos das mais diversas procedn-
cias, ao classifc-los como componentes de uma determinada coleo e
ao exibi-los publicamente, os museus modernos no somente expressam
como fabricam idias e valores por meio dos quais as relaes entre socie-
dades, grupos e categorias sociais so pensadas. Seu estudo nos d acesso
aos mecanismos pelos quais essas idias e valores circulam socialmente,
como so reproduzidos, reinterpretados e disseminados no espao p-
blico das sociedades modernas. Aquilo que Franoise Hritier chamou
de simblica elementar do idntico e do diferente (1979:217) elabora-
da de modos particulares atravs daqueles procedimentos de aquisio,
classifcao e exibio de objetos pelos museus. Oposies fundamentais
do universo social e ideolgico moderno tais como civilizado /primitivo,
nacional/ estrangeiro, erudito /popular, elite /povo, passado /presente
e principalmente autenticidade / inautenticidade so representadas e
disseminadas no espao dos museus, o que os transforma em rico material
de estudo sobre os sistemas de relaes sociais e os sistemas de idias e
valores vigentes no contexto das sociedades modernas.
Desde as duas ltimas dcadas do sculo passado, tem crescido no-
tavelmente o nmero de estudos produzidos sobre colees, museus e
patrimnios culturais, sobretudo nas reas de Antropologia e de His-
tria. Os primeiros concentram-se em colees e museus etnogrfcos e
tnicos (Cliford 1997; 2003; Dias 1991; Stocking 1983; Karp & Lavine 1991;
Karp, Lavine & Kreamer 1992; Thomas 1991; Ames 1992; Jacknis 2002);
85 {jos r eginal do santos gonal ves}
os segundos em colees e museus histricos e de arte (Pomian 1987;
2003; Poulot 1993; Bann 1994;; McClellan 1994; Beard 1994; Bennett 1995;
Sherman & Rogof 1994; Jones 1993). Esses estudos esto associados, por
um lado, s transformaes ocorridas nessas disciplinas desde a ltima
dcada. Na antropologia ao processo de auto-refexo sobre os para-
digmas antropolgicos e que se fazem presentes no somente nos textos
dos antroplogos mas tambm no espao dos museus (Karp & Lavine
1991; Karp, Lavine & Kreamer 1992). Na histria, aos questionamentos
da predominncia da histria econmica e social e confgurao de
uma histria scio-cultural ou poltico-cultural (Pomian 2003), alm da
ampliao das fontes utilizadas pelos historiadores, daquilo que enfm
passvel de ser considerado como material histrico.
Por outro lado, esses estudos sobre colees, museus e patrimnios re-
percutem aspiraes e reivindicaes formuladas por movimentos sociais
de natureza nacionalista, tnica ou religiosa em defesa de suas respectivas
concepes de identidade e memria. Um exemplo ostensivo o processo,
corrente desde os anos sessenta, de reivindicao por parte de socieda-
des nacionais e grupos tnicos no sentido de serem repatriadas colees
existentes nos grandes museus ocidentais (Greenfeld 1987; Hass 1996).
No Brasil, desde as duas ltimas dcadas do sculo XX, alguns es-
tudos tem sido produzidos por antroplogos, socilogos e historiadores
sobre colees e museus histricos, sobre os discursos ofciais do chamado
patrimnio histrico e artstico nacional e sobre concepes locais de
patrimnio cultural (Abreu 1990;; Rubino 1991; Santos 1992; Santos 1992;
Bittencourt 1997; Fonseca 1997; Menezes 1992; Schwarcz 1998; Abreu &
Chagas 2003; Arantes 1984; ). Eles fazem parte de um processo de refexo
sobre a chamada alta cultura ou cultura de elite em contraponto aos
estudos centrados nas chamadas culturas populares ou na cultura de
massa. Uma difculdade fundamental enfrentada por esses estudos est
precisamente na proximidade que, enquanto pesquisadores mantemos
com esse objeto. Uma excessiva familiaridade tende a nos induzir a um
procedimento de celebrao ou de acusao, inibindo o poder de anlise
86 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
de nosso discurso. Ou, dito de outra forma, essa excessiva familiaridade
pode levar por vezes os pesquisadores a reeditar em suas anlises as idias
e valores presentes nos discursos daqueles que so seus objetos de estudo.
A antropologia, com sua tradio de estudo do outro, de sociedades e
culturas radicalmente distintas das nossas, e de crtica permanente ao
etnocentrismo, pode talvez se constituir num excelente ponto de apoio
para nosso distanciamento em relao quele universo. Antes de tudo,
preciso colocar em perspectiva as prprias teorias ocidentais de cultura
como uma das teorias possveis, problematizando assim a sua univer-
salidade.
Minha sugesto entender os museus enquanto espaos integrantes
dos modernos sistemas de arte e cultura (Cliford 2003) por meio dos
quais grupos e categorias sociais representam e constituem simbolica-
mente suas inter-relaes e sua insero na sociedade brasileira.
2
A es-
tratgia assumida a de focalizar os processos cotidianos de construo
e reconstruo desses sistemas do ponto de vista de seus agentes. Assumi
como tarefa inicial saber como os profssionais de museus, aqueles que
so responsveis pela formao, preservao e exibio de colees, con-
cebem sua atividade e que relao estabelecem entre esta e os diversos
grupos e categorias sociais que compem a sociedade brasileira e que,
em princpio, devem estar representados, de formas diversas, em nossos
museus.
O fato de iniciar essa refexo, assumindo o ponto de vista dessa cate-
goria ao invs de ter iniciado pelo pblico dos museus, ou pelos cole-
cionadores, ou ainda pelas agncias e agentes do Estado responsveis pela
manuteno de grande parte dos museus existentes no Brasil deve-se a
uma escolha determinada: os profssionais de museus (em geral muse-
logos formados em um curso universitrio, mas nem sempre) ocupam
uma posio central no processo de seleo, identifcao, autenticao,
preservao e exibio dos objetos que integram os acervos dos museus.
Eles fazem uma mediao social e simblica estratgica entre a sociedade,
o Estado e o pblico.
2 Este artigo um
dos resultados do
projeto Museus
como Sistemas Cultu-
rais: uma perspectiva
antropolgica, finan-
ciado pelo CNPq na
dcada de 90, e que
deu continuidade aos
estudos que j vinha
realizando, desde a
dcada de oitenta,
sobre os discursos do
patrimnio cultural
no Brasil .
87 {jos r eginal do santos gonal ves}
MUSEUS E MUSELOGOS
Na medida em que, durante a pesquisa que realizei junto a esses pro-
fssionais
3
, intensifquei meus contatos atravs de visitas a seus locais de
trabalho e entrevistas, pude perceber algumas nuances importantes em
nossas relaes. Uma vez superada a fase dos encontros mais formais,
foi fcando claro para eles que eu estava interessado no s nas teorias
museolgicas e na histria dos museus, mas na experincia cotidiana
desses profssionais em seus ambientes de trabalho, suas trajetrias na
carreira, suas relaes com seus pares, com o pblico, com o Estado, com
outras fontes de fnanciamento. Evidentemente que a partir de ento as
relaes se tornaram mais complexas e meus entrevistados deixaram
claro que estavam determinados a me esclarecer a respeito do que era
um museu e o que era ser um muselogo, uma vez que minha posio era
a de um estranho naquele meio. Um estranho em termos sociais, uma vez
que eu no tinha quaisquer vnculos institucionais com museus e escolas
de museologia; e um estranho em termos culturais, j que, enquanto
antroplogo, partilhava um outro cdigo disciplinar.
Alguns temas bsicos se impuseram desde os primeiros contatos: os
padres de formao profssional, o papel social do muselogo, as relaes
com o mercado de trabalho, etc. Sobretudo enquanto as entrevistas se
realizavam no espao da escola de museologia, onde iniciei meus contatos.
Quando as entrevistas eram realizadas no espao dos museus, o tema era
o prprio museu e seu papel social, o signifcado especfco do trabalho
dos muselogos e a trajetria de cada um deles. Evidentemente um e ou-
tro tema so interdependentes e a nfase sobre cada um deles refete os
contextos institucionais em que foi conduzida a pesquisa.
Entrevistamos uma srie de profssionais, no Rio de Janeiro, vincula-
dos a diferentes museus, com trajetrias profssionais distintas, em sua
maioria mulheres, e de geraes diversas. Partilham todos a identidade
profssional de muselogos expressa no s pela formao e pelo ttulo
acadmico adquirido como pela sua efetiva atuao nesse campo, sendo
profssionais de relativo prestgio junto a seus pares. Nessas entrevis-
3 As entrevistas foram
realizadas ao longo do
ano de 1994 e inclu-
ram profissionais do
Rio de Janeiro ligados
ao Museu Histrico
Nacional e Escola
de Museol ogi a da
UNIRIO, aos quais sou
bastante grato pela
ateno e gentileza
com que me recebram.
Destaco entre eles o
Prof. Mrio Chagas,
ento diretor da esco-
la de Museologia da
Uni-Rio, que partilhou
comigo o seu refinado
conhecimento sobre
a histria dos museus
brasileiros.
88 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
tas, conduzidas em sua maioria nos seus locais de trabalho, solicitamos
que nos contassem de que modo tornaram-se muselogos e que des-
crevessem sua trajetria profssional. Formaram-se todos, em perodos
distintos, na Escola de Museus do Museu Histrico Nacional. Em segui-
da, vieram a trabalhar inicialmente como estagirios e posteriormente
como profssionais contratados no prprio Museu Histrico ou em outros
museus pblicos federais ou estaduais no Rio de Janeiro ou em outros
estados. Muitos vieram a trabalhar ou ainda trabalham como professores
na formao de muselogos.
Em linhas gerais, possvel perceber, atravs do depoimento dos en-
trevistados, que ao longo dos ltimos setenta anos ocorreram mudanas
signifcativas nas concepes de museu e de seu papel social e conse-
qentemente nos padres de formao dos seus profssionais. Afrmar
que essas mudanas ocorreram no sentido de uma progressiva profssio-
nalizao desse campo, embora no seja falso, pode induzir a uma viso
linear e teleolgica da histria desse campo no Brasil. Assim, talvez seja
mais prudente afrmar que esse processo de profssionalizao obedece
a tenses especfcas entre conjuntos diferenciados e opostos de idias
e valores quanto ao papel social dos museus e a identidade dos seus pro-
fssionais.
Vamos analisar dois temas interdependentes que nos foram sugeridos
pelos entrevistados:
a) os padres de formao dos profssionais de museus;
b) as funes do museu e a especifcidade do trabalho dos seus pro-
fssionais.
FORMAO PROFISSIONAL E AS FUNES SOCIAIS DO MUSEU
No campo internacional da museologia, desde os anos sessenta e se-
tenta, abriu-se um extenso debate expresso nos congressos e nas publi-
caes. Esse debate foi desencadeado pelas teses identifcadas com a cha-
mada nova museologia e que vieram a se contrapor s concepes e aos
modelos museogrfcos at ento vigentes. Embora a nova museologia
89 {jos r eginal do santos gonal ves}
j no seja mais nenhuma novidade para os profssionais desse campo,
os debates por ela gerados, de certo modo, fazem sentir seus efeitos at
hoje e oferecem as coordenadas para a identifcao das diversas posies
atualmente dentro desse campo.
Na verdade a expresso nova museologia uma espcie de discurso
guarda-chuva, abrigando posies diferentes mas que mantm em comum
sua oposio ao que seria o museu tradicional. Menos que um discurso
com fronteiras disciplinares bem defnidas, trata-se antes de tudo de um
movimento que veio a afetar amplamente os padres de formao de
profssionais de museus e colocar em questo o papel social dessas insti-
tuies em diversos pases, incluindo-se o Brasil. Segundo os tericos da
nova museologia, os museus devem assumir a sua funo eminentemente
social e superar os limites de uma concepo de cultura restrita produo
e circulao de bens culturais da elite, projetando-se assim como institui-
es afnadas com uma sociedade democrtica. O museu tradicional seria
elitista e voltado para si mesmo, distanciado do cotidiano dos indivduos e
dos grupos que compem as modernas sociedades.
Uma obra coletiva publicada na Frana em 1985, signifcativamente in-
titulada Nouvelles Museologies, organizada por Alain Nicolas e editada pela
associao Musologie Nouvelle et Experimentation Sociale (MNES)
expe, atravs de entrevistas e artigos de diversos autores sobre museus
e museologia, algumas idias e propostas bsicas desse movimento.
Segundo seu organizador:
...[a Associao]...Museologie Nouvelle et Experimentation Sociale rene pro-
fssionais dos campos da cultura, do ensino e da comunicao, e tambm [pessoas
escolhidas] pelas comunidades locais. Ela faz parte de uma corrente internacional
que visa reestruturar, animar e democratizar tudo o que diz respeito memria
coletiva e criao e, mais particularmente, ao fenmeno museal atualmente em
plena renovao (Nicolas 1985).
No prefcio dessa obra, Hughes de Varine, um dos criadores do con-
ceito de ecomuseu, faz uma espcie de manifesto do Museologie Nou-
90 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
velle et Experimentation Sociale: prope que os profssionais de museu,
ou como ele os chama, les gens de muse ...tomem a palavra fora dos
circuitos ofciais; que se expressem como profssionais e pesquisadores
de sua prpria disciplina, face aos tericos de fora, aos crticos e aos fun-
cionrios (1985). Afrma ele que deve procurar uma gerao interessada
no homem e no que vivo, em oposio ao objeto e morte (1985). Sobre a
profsso de muselogo, afrma que ela se constitui ...pelo nascimento de
uma conscincia coletiva de pertencimento, de um projeto comum, de in-
teresses comuns, de prticas comuns (1985). E ainda: Como movimento, a
associao destaca seu compromisso na sociedade contempornea. Como
unio de grupos polticos, ela coloca em causa no as tcnicas museol-
gicas, mas suas misses fundamentais, seja para lhes valorizar, seja para
lhes contestar propondo alternativas (1985). Assim, diferenciando-se das
organizaes internacionais, as quais, segundo ele, pretendem criar uma
disciplina cientfca, a museologia, o MNES ...tenta aqui abrir um meio de
expresso diversidade de comportamentos museolgicos, a experincias
e pesquisas. Seu objetivo provocar uma refexo individual e coletiva
(1985). Ele enumera alguns princpios do movimento:
1. o objeto est ao servio do homem e no o inverso; 2. o tempo e o espao no
se fecham entre muros e paredes; 3. a arte no a nica expresso cultural do
homem; 4. o profssional de museu um ser social, um ator da mudana, um ser-
vidor da comunidade; 5. o visitante no um consumidor dcil, mas um criador
que pode e deve participar da construo do futuro; 6. a pesquisa, a conservao,
a apresentao, a animao so funes, grupos de tcnicas, mas em caso algum
misses do museu; 7. por que o museu, para ns, ou deve ser um dos instrumen-
tos mais perfeitos que a sociedade se deu para preparar e acompanhar sua prpria
transformao (1985).
Esses princpios resumem a orientao ideolgica da chamada nova
museologia. Estamos diante de uma das ideologias culturais nas mo-
dernas sociedades ocidentais cujo foco so os museus ou o que chamam
o fato museal, na medida em que este no se restringiria aos espaos
91 {jos r eginal do santos gonal ves}
dos museus. Entre seus efeitos est o de redefnir o conjunto de idias e
valores que norteiam as prticas dos profssionais de museu. Nos termos
do discurso da nova museologia desloca-se a nfase tradicionalmente
posta nos objetos materiais para a relao de interdependncia destes
com a sociedade enquanto instrumentos de construo social e simblica
de identidades e memrias. Os objetos perdem assim a sua condio de
depositrios de valores transcendentes e portanto independentes das
relaes entre classes, grupos e categorias sociais. A prpria idia de mu-
seu substituda pela idia de fato museal ou ainda pela de prtica
museal, com o propsito de indicar que a atividade do profssional de
museu no se restringe ao espao da instituio museu. Essa atividade
ampliada no sentido de incluir aquelas que se realizam para alm do
espao institucional de um museu, por exemplo junto a determinada
comunidade, junto a um bairro, numa pequena cidade, em colaborao
com determinado grupo ou categoria social. De tal forma que aquilo que
se considera museu passa a incorporar prticas e espaos que tradi-
cionalmente estariam excludas daquela categoria. Assim, o espao e o
tempo dos museus, tradicionalmente defnidos por meio de uma fronteira
rigidamente delimitada, abrem-se para o exterior, enfraquecendo-se e,
nos termos desse discurso, fortalecendo as relaes de comunicao dos
museus com a sociedade como um todo.
possvel afrmar que nos limites dessas coordenadas ideolgicas
que se defne a identidade dos profssionais de museu a partir dos anos
setenta no Brasil. Desde fns dessa dcada uma srie de transformaes
ideolgicas e institucionais na rea de museus, parcialmente inspiradas
pelo discurso da nova museologia, vo provocar uma redefnio nos
padres de formao dos profssionais.
4
Essa redefnio vem se opor aos
padres estabelecidos ao longo de algumas dcadas, desde os anos trinta,
quando ento se institui a primeira escola de museologia do pas (Dumans
1942).
A histria da formao dos profssionais de museus no Brasil confunde-
se em grande parte com a histria do Museu Histrico Nacional fundado
4 Nos anos noventa,
um novo personagem
passa a freqentar o
espao dos museus:
os profi ssi onai s de
desi gn. Estes assu-
mem, muitas vezes, a
formulao e imple-
mentao de projetos
museogrficos em co-
laborao ou no com
musel ogos. Devo
esse coment r i o a
uma observao feita
por Lucia Lippi de Oli-
veira em comunicao
pessoal.
92 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
por Gustavo Barroso. Os paradigmas museogrfcos que, durante os lti-
mos sessenta anos, nortearam a organizao do espao dessa instituio,
os modos como eram obtidas, organizadas e expostas suas colees esto
intimamente associados aos padres de formao dos profssionais de mu-
seu no Brasil. Gustavo Barroso em 1911 lana pelo jornal a idia de criar
um museu histrico militar (Dumans 1942). O MHN ser criado em 1922
no Governo de Epitcio Pessoa, seu cunhado, que o indica para dirigir a
recm-criada instituio. Gustavo Barroso dirigiu o MHN desde a fundao
at o ano da sua morte em 1959, quando ento veio a ser substitudo por
Josu Montello. Este veio a ser substitudo por Lo Fonseca em 1967, o qual
permaneceu at 1972. Data de ento as primeiras mudanas ocorridas na
instituio depois de dcadas sob a direo de seu fundador.
O primeiro centro de formao profssional no pas foi o Curso de
Museus, fundado pelo prprio Gustavo Barroso em 1932 (Decreto no.
21.129, de 07/03/1932), e que funcionou at fns dos anos setenta, precisa-
mente em 1979, nas dependncias do Museu Histrico Nacional.
5
Foi ento
transferida para a UNIRIO, onde funciona hoje como Escola de Museolo-
gia. Inicialmente, o Curso de Museus formava o que ento se chamava
conservadores de museus para desempenharem suas funes no Museu
Histrico Nacional e no Museu de Belas artes como funcionrios pblicos
(desempenhavam o cargo de 3o Ofcial do Museu). Era inicialmente um
curso tcnico, mas em 1951, foi-lhe conferido mandato universitrio em
acordo com a Universidade do Brasil, o que lhe valia a condio de curso
superior. Ao longo de vrias dcadas a maioria dos profssionais de museus
atuando no Brasil eram formados por essa escola. Ela tem desempenhado
um papel crucial na formao de profssionais e na disseminao de de-
terminado modelo museogrfco para o resto do pas. Em linhas gerais,
desde os anos trinta, os museus brasileiros, especialmente os museus
histricos, tendem a reproduzir os padres que vieram a ser difundidos
pelo Museu Histrico Nacional.
A formao dos conservadores de museu, dos anos trinta at fns dos
anos sessenta, estava centrada no seu treinamento para a identifcao,
5 Escolas de muse-
ologia em nvel de
graduao somente
existem no Brasil
a mais antiga, do
Museu Histrico, atu-
almente funcionando
na UniRio; outra que
funcionou nas Facul-
dades Estcio de S; e
uma terceira em Sal-
vador, na Bahia mas
em nenhum outro
lugar do mundo (com
exceo da Holanda).
Nos EEUU e na Euro-
pa, o treinamento de
um profissional de
museu se d apenas
no nvel de ps-gra-
duao, devendo o
candidato ser for-
mado em uma outra
especialidade.
93 {jos r eginal do santos gonal ves}
autenticao e preservao de objetos. O currculo do curso que inclua dis-
ciplinas tais como Histria do Brasil, Histria da Civilizao, Arqueologia,
Etnografa, Histria da Arte, Artes Decorativas, Tcnica de Museus e cujo
objetivo fundamental era preparar os profssionais para aquelas tarefas
que eram consideradas essenciais para o funcionamento de um museu.
Segundo um dos meus entrevistados, que participou, enquanto professor,
das mudanas curriculares ocorridas em fns dos anos sessenta, o currculo
compunha at ento um conjunto de disciplinas sendo que a principal des-
tas, Tcnica de Museus, ...era um conjunto informal de conhecimentos que
se dava a respeito de todas as coisas ligadas ao museu, ela era um pot-pourri
de conceitos e de regras tcnicas misturadas. Era um pouco o que museu,
como se organiza, como que administra, era uma coisa pragmtica....
provvel que a formao propriamente profssional ocupasse uma posio
subordinada em relao funo institucional (funcionrio pblico) e ideo-
lgica (representar a histria da nao) dos futuros profssionais de museu.
Da o carter pouco sistemtico e fortemente instrumental do currculo
do Curso de Museus. O nmero de alunos era, at os anos sessenta, muito
pequeno, entre cinco e dez anualmente. Em sua grande maioria mulheres.
E sua origem social estava nos estratos mais altos da sociedade. O mercado
de trabalho era bastante restrito e o destino dos alunos ao se formarem era
ocupar uma funo em algum museu fnanciado pelo Estado.
O fato do Curso de Museus funcionar, at 1979, nas dependncias do
prprio Museu Histrico, permitia uma relao prxima entre os alunos
e a prtica profssional no cotidiano de um museu. Segundo um dos meus
entrevistados:
Era uma vivncia cotidiana, porque 80% dos professores eram funcionrios do
museu Ento uma grande famlia, o diretor dava aula, os funcionrios . Ento era
difcil voc no estar envolvido. (...) O aluno era chamado, como uma mo-de-obra
menos qualifcada, voc tem estagirios, voluntrios, tambm.
Segundo ele, havia uma certa intimidade entre os alunos e o Museu,
entre os alunos e os objetos do acervo. Havia uma relao interpessoal
94 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
cotidiana entre os alunos e aqueles profssionais que dirigiam e manti-
nham em funcionamento o museu. Esse fato permitia aos alunos um tipo
de formao pragmtica que, nos dias de hoje, tm de buscar atravs de
estgios em outras instituies, uma vez que na prpria Escola de Muse-
ologia no existe essa possibilidade. Alguns dos meus entrevistados criti-
cam fortemente essa ausncia de um vnculo cotidiano dos alunos com a
prtica profssional, o que leva a uma relao excessivamente terica com
a profsso e uma limitada capacitao tcnica fundada na experincia.
Numa relao necessria com esse padro de formao profssional,
o signifcado do museu e da prtica de seus profssionais era pensado a
partir de uma teia de relaes interpessoais entre dirigentes, tcnicos de
museus e membros de famlias de elite. O museu era pensado como um es-
pao onde se representava a histria do Brasil por intermdio de colees
que se formavam a partir dessas relaes dirigentes e as famlias de elite.
Esse ponto j foi assinalado respectivamente por duas monografas que
tomam os espao do Museu Histrico Nacional como objeto de descrio
e anlise (Santos 1988) e por (Abreu 1990). Ao profssional de museu cabia
ento um papel mediador entre essas famlias e o processo de identifca-
o, preservao e exibio dos objetos que constituam os acervos.
Os objetos, valorizados pelos seus atributos internos e pelo fato de te-
rem pertencido a membros daquelas famlias, a personagens histricos e
heris nacionais, autenticavam as narrativas histricas sobre o Brasil. Es-
ses objetos eram em geral doados por essas famlias e as colees formadas
recebiam o nome do antepassado celebrado. Em um estudo sobre a coleo
Miguel Calmon, do Museu Histrico Nacional, Regina Abreu (1990) chama
a ateno para a relevncia dessas relaes na histria dessa instituio.
Essa dimenso entrar em declnio nos anos setenta e oitenta, quando
sero acionadas estruturas burocrticas, como as associaes de amigos
para mediar suas relaes com a sociedade. A nao era representada de
forma totalizadora e por intermdio dessa teia de relaes e desses obje-
tos. No espao do museu, a exemplo do que ocorria no currculo do antigo
Curso de Museus, eram os objetos que ocupavam a posio central. Estes
95 {jos r eginal do santos gonal ves}
eram dispostos de forma a evidenciar um excesso, como assinala Miriam
Seplveda dos Santos em sua anlise sobre o Museu Histrico Nacional
nos ltimos anos da direo de Gustavo Barroso:
O retrato de qualquer uma das salas arrumadas na poca de Barroso nos d a sen-
sao de que a superabundncia era considerada o meio mais adequado para que
as obras adquirissem valor. Praticamente todo o acervo estava exposto. As louas
ou aparelhos de cermica tinham quarenta ou mais pratos, todos expostos, lado a
lado. Os objetos literalmente empilhavam-se. Armas, bandeiras, canhes, louas,
tudo em grande quantidade. Essa profuso simbolizava a capacidade que tinham
estes objetos de testemunhar sobre a realidade. Mas estas relquias do passado eram
mostradas ao pblico obedecendo a uma lgica que lhes pertencia. As peas de um
aparelho da Companhia das Indias no podiam ser separadas. como se elas fossem
capazes de dizer mais do que qualquer um sobre o tema, eram fonte de inesgotvel
saber, parte da realidade a ser descoberta por cada visitante. Quem entrasse em
uma sala jamais poderia pensar ter captado todo o sentido nela embutido. No havia
uma mensagem por parte do Museu, mas milhares (1988:44).
Esse modelo de museu e o concomitante padro de formao profssio-
nal certamente romperam-se. Romperam-se ou ao menos fragilizaram-se
as relaes entre as elites e o espao do museu, sobretudo a partir dos anos
setenta. Mudaram as relaes entre os museus e o pblico. Tornaram-se
mais impessoais, tecnicamente mediadas, e esse processo refetiu-se nos
modelos museogrfcos, no modo como eram concebidos e expostos os
objetos, assim como no modo de representao da identidade nacional
brasileira, conforme veremos mais adiante.
As mudanas provocadas pela nova museologia repercutem no Bra-
sil a partir dos anos setenta sobre o currculo do antigo Curso de Museus
e sobre as concepes de museu e de seu papel social. Entre as mudanas
ocorridas no campo est a substituio do antigo currculo por um outro
cujo centro organizador era constitudo pelas disciplinas de museologia
e a museografa.
Segundo um dos entrevistados:
96 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Comecei a estudar os contedos do livro... [um livro sobre tcnica de museus
usado tradicionalmente na Escola no tempo de Gustavo Barroso], digo, olha esses
contedos, no so uma coisa s, isso aqui caracteriza disciplinas especfcas, na
rea na museologia e na rea de museografa, diferenciao essa que no era conhe-
cida por geraes de muselogos. No havia esse conhecimento de que museologia
uma rea do conhecimento que tem uma teoria prpria e que, a partir dessa teoria,
h uma prtica que a museografa, que a escrita do museu.
A partir de ento o currculo do curso estar fundado na disciplina
da Museologia que, para muitos, uma teoria cientfca, supostamente
com objeto e mtodos prprios. Seu objeto o fato museal que no se
limitaria ao que ocorre no espao tradicional dos museus, mas pode ocor-
rer em qualquer outro espao, ampliando-se assim os limites do que se
entende por museu. J a Museografa trata das prticas profssionais por
meio das quais se constituem os fatos museais. Para outros, a Museologia
no chega a se constituir numa cincia, mas apenas numa disciplina cujo
produto uma refexo permanente sobre as prticas museogrfcas e a
sociedade. Para os que defendem a Museologia como uma teoria cien-
tfca h um espao garantido para a Museologia na academia. Para os
outros, esse espao apenas uma dimenso, mas certamente no essencial
das prticas museogrfcas, as quais se realizam no espao da sociedade
de modos variados.
6
O currculo adotado no Curso de Museologia, na poca de minha pes-
quisa (ver Anexo I), d grande peso a disciplinas tericas como a Muse-
ologia embora outras disciplinas, que integravam o currculo anterior
sob a rubrica de Tcnica de Museus, ainda se fzessem presentes. Essas
disciplinas, no entanto, ocupam uma posio subordinada em relao s
disciplinas de museologia e museografa, centros estruturadores do que
veio a ser o novo currculo. Nesse sentido, a formao do profssional de
museu a partir dos anos setenta passou a se defnir mais fortemente a
partir da categoria museologia. Isto signifcou uma intensifcao do
processo de profssionalizao.
6 O reconhecimento
legal da profisso de
muselogo no Brasil
data dos anos oiten-
ta. H por parte desses
profissionais um senti-
mento de ambigida-
de: embora situados
formalmente dentro
do espao acadmico,
vem-se ainda envol-
vidos numa luta pelo
seu pleno reconheci-
mento. Eles tm uma
hi stri a de empre-
endimentos institu-
cionais e discursivos
precisamente por esse
objetivo. No plano dis-
cursivo, por exemplo,
esses empreendimen-
tos expressam-se por
meio de algumas po-
sies dentro do cam-
po. Alguns defendem
a existncia de uma
teoria do fato muse-
al, assumindo assim
a natureza cientfica
da museologia. Outras
enfatizam uma con-
cepo da profisso a
partir da museografia,
que seria basicamente
a prtica dos museus.
97 {jos r eginal do santos gonal ves}
Vale assinalar que os efeitos desse processo no se realizam, no entan-
to, de maneira direta e automtica, mas mediados pelo cdigo cultural que
norteia a prtica dos museus. Desse modo, enquanto para muitos muse-
logos a profssionalizao e todos os seus efeitos so vistos positivamente;
para outros esse processo trouxe uma perda na qualidade da formao dos
profssionais e que repercute em suas prticas. Para estes, h uma relativa
dissoluo da identidade do muselogo na medida em que se deslocou a nfase
dos objetos materiais para estruturas conceituais ou textos. Desse mesmo
ponto de vista, a especifcidade dos profssionais de museu est precisamente
numa relao sensvel com os objetos, uma relao mediada pela viso e pelo
tato, o que o diferencia do historiador e do cientista social, que trabalham
fundamentalmente com estruturas conceituais. Isto seria uma espcie de
ncleo da profsso e que tenderia a se dissolver porque os novos profssionais
so formados distncia dos museus e dos acervos, mais envolvidos que esto
em debates tericos sobre a museologia (Gonalves 2003a).
ESTRUTURAS CONCEITUAIS E A MAGIA DOS OBJETOS
No contexto desse processo, tal qual este se confgurou a partir dos
anos setenta, a identidade dos profssionais de museu, enquanto pro-
fssionais, passou a ocupar uma posio hierarquicamente superior em
relao s funes institucionais e ideolgicas que desempenhavam em
relao sociedade, o que vai repercutir sobre o modo como represen-
tada a identidade nacional e outras identidades scio-culturais. At os
anos sessenta, eles operavam fundamentalmente como responsveis pela
representao da nao pensada em sua totalidade. Dos anos setenta em
diante, essa representao cede terreno a uma viso fragmentria, onde
se enfatizam as identidades particulares de grupos e categorias sociais.

A
extensa proliferao de museus na ltima dcada pode ser pensada como
um sintoma desse processo de fragmentao nas formas de representao
das identidades sociais e culturais. Essa mudana ocorre concomitante-
mente a mudanas no padro de formao dos muselogos, na prpria
concepo de museu e nas relaes dos profssionais com o mercado.
98 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
profssionalizao dos muselogos corresponde uma disciplina-
rizao do discurso museolgico e um afastamento em relao a uma
determinada concepo de museu que eu chamei de museu narrativa
em contraposio ao museu-informao (ver Captulo IV deste livro). No
primeiro caso, o profssional de museu est imerso numa teia de relaes
pessoais por intermdio das quais circulam os objetos materiais que vm
a ser apropriados e classifcados pelos museus. H um pblico restrito
e os museus constituem-se parcialmente em espaos de celebrao dos
valores das elites sociais que representam a nao de modo totalizador.
No segundo, o profssional defnido pela sua autonomia, pelo saber espe-
cfco de que detentor, assumindo a funo de atender no a um pblico
restrito (famlias de elite) mas a um pblico amplo, impessoal, um pblico
no sentido moderno do termo.
Nesse processo de afastamento em relao ao modelo do museu-
narrativa passa-se de uma forte nfase nos objetos (tanto em termos de
formao profssional quanto em termos de modelo museogrfco) para
uma nfase em estruturas conceituais, em textos, que so dominantes
no museu-informao (ver Captulo IV deste livro). Os textos ganham um
papel central, enquanto os objetos tendem a assumir a funo de supor-
tes materiais das mensagens veiculadas. No primeiro modelo, os objetos
mantinham a sua capacidade evocativa, na medida em que existiam como
mediadores simblicos entre as famlias de elite e o espao do museu, onde
se representava a nao por meio de valores transcendentes dramatizados
por heris nacionais. No segundo modelo, os objetos passam a desempe-
nhar uma funo subordinada, j que a misso principal do museu passa
a ser pensada como a de representar da maneira mais objetiva possvel,
isto , por meio de estruturas conceituais, o cotidiano dos diversos grupos
e categorias sociais que compem a sociedade brasileira.
Os muselogos entrevistados assinalaram que o mercado de trabalho,
embora pequeno, vem se ampliando em funo da criao de novos mu-
seus desde a ltima dcada e em funo da prpria redefnio da ativida-
de do muselogo a partir do discurso da museologia. Assim, o profssional
99 {jos r eginal do santos gonal ves}
de museu atualmente no se v limitado perspectiva de se tornar um
funcionrio pblico em algum museu do Estado, podendo ser contratado
por empresas privadas ou por grupos e categorias sociais empenhadas em
frmar publicamente sua memria e identidade. Na medida em que esses
temas se tornam mais e mais relevantes no espao pblico dos grandes
centros metropolitanos (ver Captulo IV deste livro), trata-se de um processo
ainda em expanso.
O fato que merece destaque que esse processo tem trazido efeitos
sobre o modo como os profssionais de museu vem pensando suas ativi-
dades no que se refere ao modo de representao da identidade nacional
brasileira e dos vrios grupos e categorias sociais que a compem. O ponto
chave de minha argumentao o de que profssionalizao cada vez
maior dos muselogos vem correspondendo um modo de representao
do Brasil cada vez mais dependente de perspectivas singulares de grupos
e categorias sociais, sem o pressuposto de que estejam representando o
Brasil como um todo. Um de nossos entrevistados afrma que tem cla-
ra conscincia de que atualmente os profssionais de museus no do
conta do nacional e que representar o Brasil tornou-se uma tarefa bem
mais complexa. A concepo e a realizao de um projeto de mdulo num
museu hoje em dia supe a participao efetiva de profssionais diver-
sos, onde historiadores e antroplogos, no caso dos museus histricos
e museus de cultura popular, tm papel central. H portanto uma forte
conscincia de que o Brasil a ser representado menos uma totalidade
j concluda, composta por valores transcendentes e heris nacionais do
que um processo contingente de construo com base em fragmentos de
sociedade e de cultura, representaes do cotidiano de diversos grupos
e categorias sociais situados no espao e no tempo histrico.
Mas, alm dessa variao diacrnica e sincrnica nos contedos da
representao da nao nos museus brasileiros, preciso enfatizar que a
variao tambm perceptvel nas modalidades mesmas de entendimen-
to da linguagem museogrfca. No absolutamente irrelevante assinalar
que o que est no corao mesmo desses processos de representao no
100 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
espao dos museus o fato de ali se desenrolar uma linguagem especfca
que articulada por meio de espaos, imagens e objetos materiais, e que
no traduz de modo transparente uma linguagem de conceitos.
Em outras palavras: se fosse possvel dizer por intermdio apenas de
palavras (por escrito ou oralmente) o que digo por meio de disposies
espaciais, imagens e objetos materiais, como se faz nas exposies nos
museus, por que gastar tantos recursos com estas? Estamos diante de
problemas especfcos suscitados pela natureza da representao muse-
ogrfca. No basta dizer que os museus representam identidades nacio-
nais, identidades tnicas, religiosas, etc. preciso responder por que essas
representaes feitas por meio de objetos materiais continuam a exercer
sua magia e despertar fascnio sobre as pessoas. A pergunta expressa na
epgrafe deste artigo deve ser objeto de refexo.
Uma sugesto que os objetos materiais, ao contrrio do que pensa-
mos usualmente, no se restringem funo de suportes de signifcados.
Nesse sentido, os espaos dos museus, assim como os objetos materiais que
abrigam, no so apenas instrumentos de representao ou de inveno
da nao ou de quaisquer outras categorias. Estas representaes so
na verdade vividas como fatos, no como fces. E os objetos materiais,
especialmente os objetos de museu, desempenham funo estratgica
nesse processo. Os objetos contemplados nas exposies histricas ou
etnogrfcas so percebidos como metonmias de realidades distantes no
espao ou no tempo, estabelecendo com estas uma relao de continuida-
de sensvel. E nesse sentido desempenham um papel ativo, ao imprimir
realidade, materialidade e visibilidade a categorias abstratamente for-
muladas, mediando o visvel e o invisvel (Pomian 1987). Uma pista para
o entendimento da natureza especfca da linguagem museogrfca, da
sua dimenso visual e mesmo tctil, esteja talvez na advertncia institu-
cional dirigida, por escrito, ao olhar de todo e qualquer visitante de um
museu: favor no tocar.
101 {jos r eginal do santos gonal ves}
ANEXO I
1. Primeiro perodo: a) metodologia da pesquisa aplicada a
museologia; b) introduo ao estudo das cincias; d) introduo
teoria museolgica; e) histria da civilizao I; f) sentido e forma
da produo artstica; g) introduo administrao;
2. Segundo perodo: a) museologia I; b) museografa; c)
antropologia I; d) histria da civilizao II; e) histria do Brasil I; f)
sentido e forma da produo artstica II;
3. Terceiro perodo: a) antropologia II; b) preservao de bens
culturais I; d) histria da civilizao III; e) histria do Brasil II; f)
sentido e forma da produo artstica III; g) identifcao de motivos
e tcnicas artsticas; h) armaria e instrumentos de suplcio;
4. Quarto perodo: a) antropologia III; b) preservao de bens
culturais II; c) produo artstica no Brasil I; d) histria do Brasil
III; e) modernismo: forma e processo; g) herldica e organizao
nobilirquica; h) acervos religiosos;
5. Quinto perodo: a) museologia II; b) museografa II; c) produo
artstica no Brasil II; d) evoluo do vesturio; e) numismtica I;
f) histria do Brasil IV; g) antropologia IV; h) vanguarda: forma e
processo;
6. Sexto perodo: a) museologia III; b) museografa III; c) produo
artstica no Brasil; d) arqueologia I; e) condecoraes e bandeiras;
f) numismtica II; g) vidros, cristais, cermicas, faianas e
porcelanas; h) ourivesaria e bronzes;
7. Stimo perodo: a) museologia IV; b) museografa IV; c)
arqueologia II; d) crtica da produo artstica; e) mobilirio;
8. O ltimo perodo inclui: a) estgio obrigatrio, b) monografa e mais
as disciplinas de c) tapetes e tapearias e d) flosofa crtica da cultura.
(UNI-RIO/Escola de Museologia/Manual do Aluno 1993).
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Uma verso deste paper foi originalmente apresentada no
Seminrio 100 Anos de Lucio Costa, organizado pela PUC-
RJ, no ano de 2002. A presente verso foi apresentada na 26
Reunio Anual da ANPOCS, Caxambu, 2002. Ela foi tambm
apresentada como aula inaugural do Instituto Goiano de Pr-
Histria e Antropologia / Programa de Mestrado em Gesto
do Patrimnio Cultural, da PUC de Gois, em maro de 2003.
Publicado em Patrimnio e memria: ensaios contemporneos (org.
Regina Abreu e Mrio Chagas), DPA/ FAPERJ, Rio de Janeiro,
setembro de 2003.
O espir ito e a matr ia: o
patr imnio enquanto
categor ia de pensamento
estudo das categorias de pensamento uma contribuio
original da tradio antropolgica. A histria da disciplina
marcada pela descoberta e anlise de categorias exticas e aparente-
mente estranhas ao pensamento ocidental: tabu, mana, sacrifcio, magia,
feitiaria, bruxaria, mito, ritual, totemismo, reciprocidade, etc.
Gostaria de elaborar algumas refexes sobre as limitaes e as possi-
bilidades que a noo de patrimnio, enquanto uma categoria de pen-
samento, pode oferecer para o entendimento da vida social e cultural.
No caso estamos focalizando uma categoria, no extica, mas bastante
familiar ao moderno pensamento ocidental. Nossa tarefa consiste em
verifcar em que medida ela est tambm presente em sistemas de pen-
samento no-modernos ou tradicionais e quais os contornos semnticos
que ela pode assumir em contextos histricos e culturais distintos.
Como aprendemos a usar a palavra patrimnio?
Ela est entre as palavras que usamos com mais freqncia no cotidia-
no. Falamos dos patrimnios econmicos e fnanceiros; dos patrimnios
imobilirios; referimo-nos ao patrimnio econmico e fnanceiro de uma
empresa, de um pas, de uma famlia, de um indivduo; usamos tambm
a noo de patrimnios culturais, arquitetnicos, histricos, artsticos,
etnogrfcos, ecolgicos, genticos; sem falar nos chamados patrimnios
109 {jos r eginal do santos gonal ves}
intangveis, de recente e oportuna formulao no Brasil. Parece no haver
limite para o processo de qualifcao dessa palavra.
Muitos so os estudos que afrmam que essa categoria constitui-se em
fns do sculo XVIII, juntamente com os processos de formao dos Esta-
dos nacionais. O que no incorreto. Omite-se no entanto o seu carter
milenar. Ela no simplesmente uma inveno moderna. Est presente no
mundo clssico, na idade mdia e a modernidade ocidental apenas impe
os contornos semnticos especfcos que ela veio a assumir. Podemos dizer
que ela tambm se faz presente nas chamadas sociedades tribais.
O que estou sugerindo que estamos diante de uma categoria de pen-
samento extremamente importante para a vida social e mental de qual-
quer coletividade humana. Sua importncia no se restringe s modernas
sociedades ocidentais.
A categoria colecionamento traduz, de certo modo, o processo de
formao de patrimnios. Sabemos que estes, em seu sentido moder-
no, podem ser interpretados como colees de objetos mveis e imveis
apropriados e expostos por determinados grupos sociais. Todo e qualquer
grupo humano exerce algum tipo de atividade de colecionamento de ob-
jetos materiais cujo efeito demarcar um domnio subjetivo em oposio
a um determinado outro. O resultado dessa atividade precisamente a
constituio de um patrimnio (Pomian 1997; Cliford 1985).
No entanto, nem todas as sociedades humanas constituem patrimnios
com o propsito de acumular e reter os bens que so reunidos. Muitas so
as sociedades cujo processo de acumulao de bens tem como propsito a
sua redistribuio ou mesmo a sua simples destruio, como no caso do Kula
trobriands e o Potlatch no noroeste americano. (Malinowski 1976; Mauss
1974).
O que preciso colocar em foco nessa discusso, penso, a possibi-
lidade de se transitar analiticamente com essa categoria entre diversos
mundos sociais e culturais. Em outras palavras: como possvel usar
essa noo comparativamente? Em que medida ela pode nos ser til para
entender experincias estranhas modernidade?
110 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Do ponto de vista dos modernos, a categoria patrimnio tende a apa-
recer com delimitaes muito precisas. uma categoria individualizada,
seja enquanto patrimnio econmico e fnanceiro; seja enquanto patri-
mnio cultural; seja enquanto patrimnio gentico; etc.
Nesse sentido, suas qualifcaes acompanham as divises estabe-
lecidas pelas modernas categorias de pensamento: economia; cultura;
natureza; etc. Sabemos no entanto que essas divises so construes
histricas. Pensamos que elas so naturais, que fazem parte do mundo.
Na verdade resultam de processos de transformao e continuam em
mudana. A categoria patrimnio, tal como ela usada na atualidade,
nem sempre conheceu fronteiras to bem delimitadas.
possvel transitar de uma a outra cultura com a categoria patrim-
nio. Desde que possamos perceber as diversas dimenses semnticas que
ela assume. Desde que no naturalizemos as nossas prprias represen-
taes a seu respeito. Em contextos sociais e culturais no-modernos,
ela coincide com categorias mgicas tais como mana e outras, e se defne
de modo amplo, com fronteiras imprecisas e com o poder especial de se
estender e se propagar continuadamente.
A noo de patrimnio confunde-se com a de propriedade. A literatura
etnogrfca est repleta de exemplos de culturas nas quais os bens materiais
no so classifcados como objetos separados dos seus proprietrios. Esses
bens, por sua vez, nem sempre possuem atributos estritamente utilitrios.
Em muitos casos, servem a propsitos prticos mas possuem, ao mesmo
tempo, signifcados mgico-religiosos e sociais. Confguram aquilo que
Marcel Mauss chamou de fatos sociais totais (Mauss 1974). Esses bens so
ao mesmo tempo de natureza econmica, moral, religiosa, mgica, poltica,
jurdica, esttica, psicolgica, fsiolgica. So, de certo modo, extenses
morais de seus proprietrios e estes, por sua vez, so partes inseparveis de
totalidades sociais e csmicas que transcendem sua condio de indivduos.
Esse mesmo autor assinalou: ...se a noo de esprito nos pareceu ligada de
propriedade, inversamente esta liga-se quela. Propriedade e fora so dois
termos inseparveis; propriedade e esprito se confundem... (1974:133).
111 {jos r eginal do santos gonal ves}
Nos contextos sociais e culturais modernos, a categoria patrimnio,
embora tenda a ser delineada de modo ntido e separadamente de outras
totalidades, esse aspecto mgico no est ausente de suas representaes.
A exemplo do mana melansio, discute-se a presena ou ausncia do pa-
trimnio, a necessidade ou no de preserv-lo, mas no a sua existncia.
Esta categoria um dado de nossa conscincia e de nossa linguagem; um
pressuposto que dirige nossos julgamentos e raciocnios.
Embora possamos usar a categoria patrimnio em contextos muito diver-
sos, necessrio no entanto adotar certas precaues. preciso contrastar
cuidadosamente as concepes do observador e as concepes nativas.
Recentemente construiu-se uma nova qualifcao: o patrimnio
imaterial ou intangvel. Opondo-se ao chamado patrimnio de pedra
e cal, aquela concepo visa aspectos da vida social e cultural difcilmen-
te abrangidos pelas concepes mais tradicionais.
Dentro dessa nova categoria esto: lugares, festas, religies, formas de
medicina popular, musica, dana, culinria, tcnicas, etc. Como sugere
o prprio termo, a nfase recai menos nos aspectos materiais e mais nos
aspectos ideais e valorativos dessas formas de vida. Diferentemente das
concepes tradicionais, no se prope tombar os bens listados nes-
se patrimnio. A proposta no sentido de se registrar essas prticas
e representaes e de se fazer um acompanhamento para verifcar sua
permanncia e transformaes.
A iniciativa bastante louvvel porque representa uma inovao e fe-
xibilizao nos usos da categoria patrimnio, particularmente no Brasil.
Ela oferece, tambm, a oportunidade de aprofundar nossa refexo sobre
os signifcados que pode assumir essa categoria.
Para isto, gostaria de trazer uma experincia recente como pesqui-
sador.
Nos ltimos anos, venho realizando pesquisas sobre as festas do di-
vino esprito santo entre imigrantes aorianos nos Estados Unidos e no
Brasil. Podemos dizer que essas festas constituem um fato de civilizao,
no sentido atribudo por Marcel Mauss a esse termo (1981: 475-493). No
112 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
se restringem a uma determinada rea social e cultural. Transcendem
fronteiras nacionais e geogrfcas. vasta sua rea de ocorrncia. Aores,
Canad, Estados Unidos (Nova Inglaterra e Califrnia principalmente) e
Brasil (especialmente o sul e o sudeste do Brasil).
Em termos histricos, apresenta uma grande profundidade. Os mitos
de origem da festa referem-se sua criao no sculo XIII, em Portugal.
Mas h referncias sua existncia na Alemanha e na Frana, ainda no
sculo XII. Estamos diante de uma estrutura de longa durao.
Trata-se tambm de um fato social total, na medida em que envolve
arquitetura, culinria, msica, religio, rituais, tcnicas, esttica, regras jur-
dicas, moralidade, etc. O que suscita algumas questes relativamente s con-
cepes de patrimnio. Especialmente pelo fato dessas diversas dimenses
no aparecerem, do ponto de vista nativo, como categorias independentes.
Aparecem simbolicamente totalizadas pelo divino esprito santo. Este, por
sua vez, representado no exatamente como a terceira pessoa da Santssima
Trindade, mas como uma entidade individualizada e poderosa.
Essas festas so exemplo do que poderamos chamar de um patrim-
nio transnacional. Mas classifcar essa festa como patrimnio exige
alguma cautela. preciso reconhecer algumas nuances nas representa-
es do que se pode entender por patrimnio.
bem verdade que so as prprias lideranas aorianas que falam de
um patrimnio aoriano ou da aorianidade. Mas este uso est distante
das concepes assumidas pelos devotos do esprito santo em sua vida co-
tidiana. A diferena fundamental est precisamente no uso das categorias
esprito e matria. Elas so diversamente concebidas pelos intelectuais
e lideranas aorianas, pelos padres da igreja catlica e pelos devotos.
Do ponto de vista dos devotos, a coroa, a bandeira, as comidas, os
objetos (todo esse conjunto de bens materiais que integram a festa e so
propriedade das irmandades) so, de certo modo, manifestaes do pr-
prio esprito santo. Do ponto de vista dos padres, so apenas smbolos
(no sentido de que so matria e no se confundem com o esprito). Do
ponto de vista dos intelectuais, so apenas representaes materiais de
113 {jos r eginal do santos gonal ves}
uma identidade e de uma memria tnicas. Desse ponto de vista, as
estruturas materiais que poderamos classifcar como patrimnio so
primeiramente boas para identifcar.
As classifcaes dos devotos so estranhas a essa concepo de patri-
mnio. Do seu ponto devista, trata-se fundamentalmente de uma relao
de troca com uma divindade. E nessa concepo total, culinria, objetos,
rituais, mitos, esprito, matria, tudo se mistura. Sabemos do carter
fundador dessas relaes de troca com os deuses. Como nos lembra Mar-
cel Mauss, foi com eles que os seres humanos primeiro estabeleceram
relaes de troca, uma vez que eles eram os verdadeiros proprietrios
das coisas e dos bens do mundo (Mauss 1974:63).
Como podemos usar adequadamente, em contextos como esses, a
categoria patrimnio? Podemos ali certamente identificar estruturas
espaciais, objetos, alimentos, rezas, mitos, rituais enquanto patri-
mnio. Mas preciso no naturalizar essa categoria e impor quele
conjunto um significado peculiar e estranho ao chamado ponto de
vista nativo.
H uma diferena bsica. E esta reside no modo como represen-
tada a oposio entre matria e esprito. Sabemos que a concepo de
uma matria depurada de qualquer esprito uma construo moderna
(Mauss 1974:163). Idem para um esprito independente de toda e qualquer
materialidade. No a partir dessa dicotomia que pensam os devotos.
Devemos levar em conta esse fato se queremos entender a concepo
nativa de patrimnio.
possvel preservar uma graa recebida? possvel tombar os sete
dons do esprito santo? Certamente no. Mas possvel, sim, preser-
var, por meio do registro e do acompanhamento de sua existncia social,
lugares, objetos, festas, conhecimentos culinrios, etc. nessa direo
que caminha a noo recente de patrimnio intangvel, nos recentes
discursos brasileiros do patrimnio.
curioso, no entanto, o uso dessa noo para classifcar bens to tan-
gveis quanto lugares, festas, espetculos e alimentos. De certo modo, essa
114 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
noo expressa a moderna concepo antropolgica de cultura. Nesta
concepo, a nfase est nas relaes sociais, ou mesmo nas relaes sim-
blicas, mas no nos objetos e nas tcnicas. A categoria intangibilidade
talvez esteja relacionada a esse carter desmaterializado que assumiu a
moderna noo antropolgica de cultura. Ou, mais precisamente, ao
afastamento dessa disciplina, ao longo do sculo XX, em relao ao estu-
do de objetos materiais e tcnicas (Schlanger 1998). No por acaso, so
antroplogos muitos dos que esto frente daquele projeto de renovao
ou ampliao da categoria patrimnio.
Do ponto de vista dos devotos do esprito santo, o patrimnio pen-
sado no exatamente como um smbolo de realidades espirituais; nem
necessariamente como representaes de uma identidade tnica aoria-
na; na verdade, ela pensada como formas especfcas de manifestao
do divino esprito santo.
Afnal, os seres humanos usam seus smbolos sobretudo para agir
e no somente para se comunicar. O patrimnio usado no apenas
para simbolizar, representar ou comunicar: ele bom para agir. Ele faz
a mediao sensvel entre seres humanos e divindades, entre mortos e
vivos, passado e presente, entre o cu e a terra, entre outras oposies.
No existe apenas para representar idias e valores abstratos e para ser
contemplado. Ele, de certo modo, constri, forma as pessoas.
Esses diversos signifcados, vale sublinhar, no se excluem. As mesmas
pessoas podem operar ora com um, ora com outro signifcado. Como o caso
da coroa do divino, um elemento extremamente importante desse patri-
mnio. Exposta num museu, faz a mediao entre os visitantes e a cultura
aoriana, torna visvel essa dimenso do invisvel (Pomian 1997). Numa
irmandade religiosa, circula entre os irmos, est presente nas festas e ceri-
mnias, nos almoos rituais, manifestando concretamente a presena do es-
prito santo, fazendo uma mediao sensvel entre a divindade e seus devotos.
Nesse ltimo contexto, no uma simples coroa de prata. No contexto de uma
exposio museolgica, um objeto cultural, parte do chamado patrimnio
aoriano, aqui entendido em seu sentido estritamente moderno.
115 {jos r eginal do santos gonal ves}
A originalidade da contribuio dos antroplogos construo e ao
entendimento da categoria patrimnio reside, talvez, na ambigidade
da noo antropolgica de cultura, permanentemente exposta s mais
diversas concepes nativas. Explorando essa direo de pensamento, a
prpria categoria patrimnio que vem a ser pensada etnografcamente,
tomando-se como referncia o ponto de vista do outro. Pergunta-se: em
que medida essa categoria til para entender outras culturas? Em que
medida ela nos permite entender o universo mental e social de outras
populaes?
Marcel Mauss dirigia aos antroplogos a famosa recomendao:
...antes de tudo, formar o maior catlogo possvel de categorias; preciso partir de
todas aquelas das quais possvel saber que os homens se serviram. Ver-se- ento
que ainda existem muitas luas mortas, ou plidas, ou obscuras no frmamento da
razo (Mauss 1974: 205).
Estamos certamente diante de uma dessas categorias. necessrio
comparar os diversos contornos semnticos que ela pde e poder ainda
assumir no tempo e no espao. Mas no cumprimento dessa tarefa, im-
portante assinalar que nos situamos num plano distinto das discusses
de ordem normativa e programtica sobre o patrimnio. No poderemos
responder qual a melhor opo em termos de polticas de patrimnio.
Mas apontando para a dimenso universal dessa noo, talvez possamos
iluminar as razes pelas quais os indivduos e os grupos, em diferentes
culturas, continuam a us-la. Mais do que um sinal diacrtico a diferenciar
naes, grupos tnicos e outras coletividades, a categoria patrimnio,
em suas variadas representaes, parece confundir-se com as diversas
formas de vida e de autoconscincia cultural. Ao que parece, trata-se de
um problema bem mais complexo do que sugerem os debates polticos e
ideolgicos sobre o tema do patrimnio.
116 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
r efer ncias bibl iogr ficas
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117 {jos r eginal do santos gonal ves}
Verses anteriores deste texto foram publicadas em
Estudos Histricos: identidade nacional, vol. 1, no 2, 1988,
Ed. Vertice, Rio de Janeiro; e em Fazendo Antropologia no
Brasil (orgs. Esterci, N.; Fry, P.; Goldemberg, M.) DP&A
Editora/ CAPES / PROIN, Rio de Janeiro, 2001.
Autenticidade, Memr ia e
Ideol ogias Nacionais:
o pr obl ema dos
patr imnios cul tur ais
118 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
AUTENTICIDADE E A IDIA DE AURA
1
Entre as modernas categorias de pensamento, pou-
cas me parecem to pervasivas, to presentes nas conversas cotidianas
e nos debates eruditos quanto a de autenticidade. Podemos aplic-la a
pessoas ou objetos. Podemos nos referir autenticidade de uma experi-
ncia pessoal; ou autenticidade de um objeto histrico ou de uma obra
de arte. sintomtico o prprio fato de que poucos tm sido os estudos
produzidos com a inteno de pens-la como um problema; e muitos os
que a tomam como um dado existencial ou histrico.
Entre os poucos est um belssimo estudo elaborado por Lionel Trilling
sobre as categorias sinceridade e autenticidade na moderna histria cul-
tural do Ocidente. Segundo ele, ambas as categorias esto ligadas s modernas
idias de indivduo e sociedade (1972: 20-24). Assim, com a emergncia
dessas categorias, a relao entre os indivduos e seus papis sociais torna-se
problemtica. Se no universo medieval, os indivduos compem uma unidade
com seus papis, com a desintegrao desse universo, esses papis descolam-
se dos seus portadores e no servem mais como indicadores seguros nas
interaes sociais. A valorizao da sinceridade -...the absence of dissi-
mulation or feigning or pretence(1972: 13)- intensifca-se nesse contexto e
se estende desde fns do sculo XVII a incios do sculo XIX. A preocupao
com a sinceridade corresponde a uma preocupao com a insinceridade nas
relaes sociais. Como saber, com certeza, que aquele que desempenha um
papel social est sendo sincero e no est nos mistifcando? Desse modo, sin-
ceridade tem a ver com o modo como apresentamos nosso self nas relaes
com o outro. Do ponto de vista de Trilling, sinceridade expressa, nesse
contexto, a luta de uma concepo de self socialmente determinada -onde
a relao com o outro ainda prezada- contra as modernas e emergentes
concepes individualistas do self (1972:1-25).
A noo de autenticidade, que Trilling defne como ...a sentiment
of being...(1972:92), emerge no contexto em que predominam as con-
cepes individualistas do self. Desse modo, autenticidade tem a ver no
1
Este artigo foi origi-
nalmente produzido
como parte de um
projeto de pesquisa
sbre Nacionalismo
e Ideologias de
Patrimnio Cultural
desenvolvido no
Departamento de
Antropologia da Uni-
versidade de Virginia
(Estados Unidos) vi-
sando ento a elabo-
rao e defesa de uma
tese de doutorado,
sob a orient,o do dr.
Richard Handler. Esse
trabalho foi possvel
graas a uma bolsa
de doutoramento
concedida pelo CNPq
(20.0158/83). A tese
veio a ser defendida
em 1989 e poste-
riormente traduzida
para o portugus e
publicada como livro
sob o ttulo A Retrica
da Perda: os discursos
do patrimonio cultural
no Brasil. Ed. da UFRJ/
IPHAN, 2003.

Entre os anos de 1987
e 1988, quando em
trabalho de campo no
Brasil, recebi o apoio e
o incentivo de diversas
pessoas. Entre elas,
gostaria de agradecer
ao Prof. Gilberto
Velho, do PPGAS do
Museu Nacional e
ento membro do
Conselho Consultivo
da SPHAN; e in
memoriam ao Prof.
Rafael Carneiro da Ro-
cha, ento consultor
jurdico da SPHAN; e
Profa. Dora Alcntara,
responsvel naquela
poca pelo Setor
de Tombamento da
SPHAN. Finalmente
aos tcnicos e funcio-
nrios da SPHAN.
119 {jos r eginal do santos gonal ves}
com o modo como apresentamos nosso self ao outro em nossas interaes
sociais, mas sim como ele realmente ou como realmente somos in-
dependentemente dos papis que desempenhemos e de nossas relaes
com o outro (1972:106-133). Assim, o indivduo passa a ser pensado como
o prprio locus de signifcado e realidade. Autenticidade a expresso
desse self defnido como uma unidade livre e autnoma em relao a toda
e qualquer totalidade csmica ou social.
2
Essas concepes so aplicveis a pessoas ou objetos. No que diz res-
peito aos objetos de arte a idia de autenticidade est ligada s modernas
tcnicas de reproduo (Benjamin,1969:217-254). O autntico equacio-
nado ao original; enquanto o inautntico cpia ou reproduo. Em um
artigo bastante conhecido, diz Benjamin:
Precisely because authenticity is not reproducible, the intensive penetration of
certain (mechanical) processes of reproduction was instrumental in diferentiating
and grading authenticity. (...) To be sure, at the time of its origin a medieval picture
of the Madonna could not yet be said to be authentic. It became authentic only
during the succeeding centuries and perhaps most strikingly so during the last
one (1969:243).
No entanto, essa oposio nascida com a modernidade, desafada
por algumas das modernas formas de arte, especifcamente o cinema e
a fotografa. Assim, se a existncia do original a condio necessria
para o conceito de autenticidade, no caso de um negativo fotogrfco, em
que possvel fazer um sem nmero de cpias, no faz sentido perguntar
pela cpia autntica.
Segundo Benjamin, em decorrncia mesmo desse desafo, a aura
tende a desaparecer: ...that which withers in the age of mechanical reproduction
is the aura of the work of art (1969:221). A aura de um objeto est associada
a sua originalidade, a seu carter nico e a uma relao genuna com o
passado. Benjamin reserva as noes de singularidade (uniqueness) e
permanncia para designar esses aspectos; em contraste com a re-
produtibilidade e a transitoriedade dos objetos no-aurticos. Estes
2
Em um pequeno arti-
go sobre autenticidade,
baseado no trabalho de
Lionel Trilling, Richard
Handler chama a aten-
o para a presena da
categoria autentici-
dade nas ideologias
tnicas, nacionais e
mesmo nas teori as
antropolgicas e no
discusrso dos cientistas
sociais em geral (1986).
Em um artigo sobre
Celtic Ethnic Kinship
and the Problem of
Being English, Marion
McDonald aponta para
o mesmo problema
(1986). Ainda sobre
esse problema,, vale
a pena lembrar o tra-
balho de Adorno, The
Jargon of Authenticity
(1973).
120 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
ltimos, exatamente por serem reproduzidos e transitrios, no guardam
qualquer relao orgnica e real com um passado pessoal ou coletivo.
Nesse contexto de desaparecimento da aura, a prpria oposio autnti-
co/inautntico tende a perder sua relevncia.
Meu objetivo explorar essas idias no contexto dos chamados pa-
trimnios culturais. Acredito que, a exemplo do que ocorre com as obras
de arte na modernidade, os bens culturais que compem esses patrim-
nios, em funo mesmo de sua reprodutibilidade tcnica, tendem a perder
sua aura e desenvolver o que eu chamaria uma forma no-aurtica de
autenticidade. Esse fato pode ser usado para problematizar a autenti-
cidade ou realidade de categorias como as de nao ou identidade
nacional, na medida em que esta supostamente expressa ou repre-
sentada pelos chamados patrimnios nacionais.
PATRIMNIOS CULTURAIS:
PROPRIEDADE, MEMRIA E IDENTIDADE
Os idelogos da nacionalidade ou da etnicidade dedicam especial aten-
o ao problema do patrimnio cultural. No contexto dos chamados mo-
vimentos tnicos assim como nos Estados nacionais considerada como
fundamental a elaborao e implementao de polticas culturais -entre
as quais se situam as polticas de patrimnio- visando a construo e
comunicao de uma identidade nacional ou tnica.
O conceito de nao - e, acredito, tambm o de etnicidade- pode
ser entendido no contexto do moderno individualismo (Tocqueville,l945;
Dumont,1966,1983; Simmel, l97l). Segundo Dumont, a nao realiza, no
plano coletivo, a moderna concepo do Indivduo como uma entida-
de autnoma, defnida independentemente de suas relaes com o todo
social ou csmico (1966;1970). Segundo ele, a moderna nao pensa-
da como uma coleo de indivduos ou como um indivduo coletivo
(1966:379;1983:115-131). De um modo ou de outro, a nao equacionada
a indivduos reais, sendo portadora dos mesmos atributos destes: carter,
personalidade, autonomia, vontade, memria, etc. Do ponto de vista dos
121 {jos r eginal do santos gonal ves}
seus idelogos a nao pensada como uma unidade objetiva, autnoma,
dotada de ntidas fronteiras territoriais e culturais e de continuidade no
tempo.
Esse moderno princpio individualista pode ser aplicado tanto ao
mundo social quanto ao mundo fsico. Desse modo, no s o mundo social
pensado como uma coleo de indivduos defnidos pela sua auto-
nomia; o prprio mundo fsico tambm pensado como uma coleo de
elementos dissociados de qualquer ordem csmica ou social (Koyr,1957;
Cassirer,1962). Esses indivduos ou elementos so em si mesmos o foco
de sua realidade ltima, de sua autenticidade.
Nos ltimos anos, antroplogos e historiadores tm realizado estudos
sobre objetos, colees e seu uso simblico para construir identidades
pessoais e coletivas na moderna histria cultural do Ocidente (Rydell,1984;
Stocking,1985; Fabian, 1983; Mullaney,1983; Stewart,1984; Bunn,1980). Ob-
jetos materiais de vrios tipos so apropriados e visualmente dispostos
em museus e em instituies culturais com a funo de representar
determinadas categorias culturais: os primitivos, o passado da hu-
manidade, o passado nacional, etc. Os chamados patrimnios culturais
podem ser interpretados como colees de objetos mveis e imveis, atra-
vs dos quais defnida a identidade de pessoas e de coletividades como
a nao, o grupo tnico, etc.
Alguns autores, baseando-se em Macpherson (1962), interpetam a
emergncia da moderna idia de colees como um fato associado ao
chamado individualismo possessivo no sculo XVI (por exemplo, Hand-
ler,1985). Nos termos dessa ideologia, a identidade de um indivduo ou uma
coletividade defnida pela posse de determinados bens. Em um estudo
sobre nacionalismo e poltica cultural em Quebec, Handler (1988) usa essa
idia para interpretar um aspecto bsico do nacionalismo quebcois em
particular e dos nacionalismos em geral. Segundo ele, a nao, enquanto
coleo de indivduos ou indivduo coletivo, atravs da posse de seu
patrimnio cultural ou sua cultura defne a sua identidade. Nesse
contexto, a cultura pensada como coisa a ser possuda, preservada,
122 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
restaurada etc. Assim, do mesmo modo que uma pessoa pode ter a sua
identidade defnida pela posse de determinados bens, uma nao def-
ne-se a partir da posse de seus bens culturais.
Embora esta seja uma idia importante para se entender o problema
dos chamados patrimnios culturais, acredito que estes apresentam um
outro aspecto igualmente importante: o seu papel mediador entre dis-
tintas dimenses de tempo. Desse modo, muitos dos bens culturais que
compem o patrimnio esto associados ao passado ou histria da
nao. Eles so classifcados como relquias ou monumentos. Assim
como a identidade de um indivduo ou de uma famlia pode ser defnida
pela posse de objetos que foram herdados e que permanecem na
famlia por vrias geraes; tambm a identidade de uma nao pode
ser defnida pelos seus monumentos -aquele conjunto de bens culturais
associados ao passado nacional. Estes constituem um tipo especial de
propriedade: a eles se atribui a capacidade de evocar o passado e, desse
modo, estabelecer uma ligao entre passado, presente e futuro. Em
outras palavras, eles garantem a continuidade da nao no tempo.
Acredito, com Hutton (1987:386), que a capacidade desses objetos -rel-
quias, monumentos, etc- de evocar o passado est, de certo modo, fundada
na clssica arte da memria, na qual idias so associadas a espaos ima-
ginrios como recursos mnemnicos (Yates,1966). Na medida em que asso-
ciamos idias e valores a determinados espaos ou objetos, estes assumem
o poder de evocar visualmente, sensivelmente aquelas idias e valores.
Na verdade, a prpria idia de um passado ou de uma memria
como um dado relevante na construo das identidades pessoais e coleti-
vas poder ser pensada como uma inveno moderna e que data de fns do
sculo dezoito. nesse contexto que emerge o gnero autobiogrfco, onde
um passado narrativamente construdo usado como um instrumento de
autoconhecimento (Olney,1980). Isto pode ser feito numa escala pessoal
ou coletiva. A segunda metade do sculo dezenove e as primeiras dcadas
do sculo vinte foram prdigas naquilo que Hobsbawn chamou tradies
inventadas (1983: 1-14). Monumentos, relquias, locais de peregrinao
123 {jos r eginal do santos gonal ves}
cvica, cerimnias, festas, mitologias nacionais, folklore, mrtires, heris
e heronas nacionais, soldados mortos em batalhas, um vasto conjunto
de tradies foram inventadas com o objetivo de criar e comunicar
identidades nacionais (Mosse,1975; Koselleck,1979; Augulhon,1979; Her-
zfeld,1982; Hutton,1981; Ozouf,1976). Nesse contexto, o passado nacional
simbolicamente usado com o objetivo de fortalecer a identidade pessoal
e coletiva presente.
No entanto, atravs de uma relao presente e ativa de propriedade
ou atravs de uma relao baseada na memria, o que importante as-
sinalar que, em ambos os casos, do ponto de vista nativo, se estabelece
uma relao metonmica entre proprietrio e propriedade; e entre mo-
numentos e passado. A propriedade considerada parte do proprietrio;
e vice-versa. Os monumentos so considerados parte orgnica do passado
e, na medida em que os possumos ou os olhamos, estabelecemos, por seu
intermdio, uma relao de continuidade com esse passado.
No contexto brasileiro, as igrejas barrocas de Minas Gerais, enquanto
monumentos nacionais, so vistas em termos de uma suposta relao
de continuidade com o passado colonial brasileiro. Assim como um mo-
numento nacional como o terreiro Casa Branca, em Salvador, pode ser
visto atravs de sua relao com o passado dos negros e, por extenso,
do Brasil. Nesses e em outros casos similares, pensamos e sentimos, ou
mais que isso, temos a experincia sensual de ver o Brasil ou o passa-
do brasileiro nas formas plsticas de igrejas barrocas ou de um terreiro
de candombl. Expresses como Isto o Brasil... ou Isto somos ns,
negros brasileiros... revelam o sentimento de identifcao entre esses
monumentos, aquilo que eles representam e aqueles que os olham. Em
outras palavras, atravs dessa estratgia retrica da identifcao entre
Brasil e, no caso, igrejas barrocas em Minas ou um terreiro de candom-
bl em Salvador, defnimos a nao como barroca, religiosa, catli-
ca, mineira; ou negra, afro, nag e baiana; e, como num passe
de mgica, nos sentimos todos de algum modo autnticos portadores
desses mesmos atributos.
124 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
A no problematizao da categoria autenticidade desempenha um
papel importante nessa estratgia retrica. A autenticidade do patri-
mnio nacional equacionada suposta existncia da nao enquan-
to uma unidade real, autnoma, dotada de uma identidade, carter,
memria, etc. Em outras palavras, a crena nacionalista na realidade
da nao retoricamente possibilitada pela crena na autenticidade do
seu patrimnio. No importa que os contedos das defnies de patri-
mnio, autenticidade e nao possam variar bastante em termos
histricos e sociais. Idelogos do patrimnio -ou idelogos da nao- con-
siderados como autoritrios ou democrticos convergem na sua crena
na autenticidade.
CONCEPES DE AUTENTICIDADE:
COLONIAL WILLIAMSBURG E OURO PRETO
Gostaria de problematizar essa categoria fazendo uso de dois exemplos
de patrimnio cultural situados em dois contextos distintos: as cidades
histricas de Colonial Williamsburg, nos Estados Unidos; e Ouro Preto,
no Brasil. Cada um desses espaos est simbolicamente associado s idias
de identidade e memria nacional. No entanto, do ponto de vista dos
idelogos de patrimnio no Brasil -mas tambm na Europa e mesmo nos
Estados Unidos- Colonial Williamsburg tende a ser considerada como
um exemplo de inautenticidade. Muitos, no Brasil, usam esse exemplo
para defnir, por oposio, o carter autntico do patrimnio brasileiro.
E muitos, nos Estados unidos, o usam para defnir o que no deve ser um
autntico trabalho de preservao histrica. Muitos preservacionistas
americanos consideram Colonial Williamsburg uma espcie de Disneylan-
dia e, portanto, carente de qualquer autenticidade. No entanto, Colonial
Williamsburg pode ser defnida e defendida como autntica por seus
idelogos.
Obviamente no meu propsito participar dessa polmica. No pre-
tendo defender a autenticidade ou inautenticidade desses espaos.
Proponho no entanto que desloquemos o centro da discusso. Ao invs
125 {jos r eginal do santos gonal ves}
de continuarmos a conversao em termos da oposio autntico/inau-
tntico, consideremos a idia de uma forma no-aurtica de autenti-
cidade. Esta, em contraste com a autenticidade aurtica, dispensa um
vnculo orgnico com o passado: o aspecto da recriao nela mais forte
que o aspecto da herana. O que lugares como Colonial Williamsburg
podem nos ajudar a perceber exatamente o carter construdo ou
tecnicamente reproduzido dos chamados patrimnios culturais. Eles
nos permitem assim problematizar a crena nacionalista de que eles de
algum modo mantm uma relao orgnica, real com a nao, sua
identidade e seu passado.
difcil falar de patrimnio cultural nos Estados Unidos com o mesmo
sentido abrangente que esse termo assume no Brasil e em outros pases
-por exemplo, a Frana (Gouveia,1985; MEC-SPHAN/pr-Memria,1980).
Ao falar de Colonial Williamsburg e de Ouro Preto me restrinjo, aqui, a
um determinado tipo de patrimnio cultural que, nos Estados Unidos,
classifcado mais estritamente como historic preservation. Esta ca-
tegoria designa aquele conjunto de atividades associadas preservao,
restaurao e recriao de objetos, prdios, conjuntos arquitetnicos,
cidades antigas que sejam representativos de perodos histricos, pocas
ou que mantenham vnculos com indivduos clebres, heris nacionais
e acontecimentos histricos. Uma outra categoria estende-se e inclui a
reencenao dramtica de eventos histricos ou mesmo do dia-a-dia de
determinados perodos histricos. Assim, no incomum nos Estados
Unidos que a recriao de muitos dos chamados historical places, his-
torical cities, historical villages etc seja complementada pelo trabalho de
atores profssionais ou amadores que reencenam (reenact), em seus
mnimos detalhes, acontecimentos histricos e o cotidiano de determi-
nada populao.
COLONIAL WILLIAMSBURG
Colonial Williamsburg pode ser considerada, nos Estados Unidos,
como um modelo -negativo ou positivo, segundo o ponto de vista- de
126 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
preservao histrica. Nas discusses entre especialistas em preservao
histrica, Colonial Williamsburg sempre uma referncia necessria.
Muitos dividem a histria do movimento preservacionista americano em
antes e depois de Colonial Williamsburg (Hosmer,1965).
Historicamente, Williamsburg, no Estado da Virginia, foi a capital do
domnio ingls na Amrica do Norte, no sculo dezoito. Aps a Revolu-
o, a capital dos Estados Unidos da Amrica mudou-se primeiramente
para Richmond e fnalmente para Washington. Williamsburg entrou em
decadncia e foi esquecida ao longo de todo o sculo dezenove.
Na segunda dcada do sculo vinte, ela veio a ser redescoberta e,
sob o patrocnio de John D. Rockefeller, totalmente reconstruda. Esse
trabalho de reconstruo tinha como objetivo refazer a cidade tal qual
ela supostamente teria sido urbanstica e arquitetonicamente no sculo
dezoito, s vsperas da Revoluo. Inspirado por uma ideologia naciona-
lista, o projeto de reconstruo visava afrmao de uma identidade
genuinamente americana por oposio Europa e massa de imigrantes
europeus ento existente nos Estados Unidos (Wallace,1981). Esse uso pa-
tritico de Colonial Williamsburg tem sido uma constante na sua histria.
Na segunda Guerra Mundial, soldados americanos, antes de embarcarem,
eram levados a Colonial Williamsburg, onde passavam alguns dias com
o objetivo de estimular suas virtudes cvicas. At os dias atuais, a cidade
usada como ponto importante nas visitas ofciais de chefes de Estado
estrangeiros.
O processo de reconstruo assumiu dimenses gigantescas. Na me-
dida em que o objetivo era reconstruir Williamsburg do sculo dezoito,
anterior Revoluo, tudo que veio a ser construdo posteriormente, ao
longo do sculo dezenove e incios do sculo vinte, foi destrudo total ou
parcialmente. Segundo depoimento de um dos presidentes da Colonial
Williamsburg Foundation sobre o processo de reconstruo:
...82 colonial buildings, which still survived in whole or in part from the 18th
century, had been restored to their original form; 341 buildings of which, very
often, nothing but a part of a foundation survived to show their location, had been
127 {jos r eginal do santos gonal ves}
reconstructed; 616 modern buildings had been torn down or removed from the
restored area to make room for gardens, greens, and reconstructed buildings; 20
modern buildings had been removed from the restored area and a number of new
structures built outside its limits, among them a school for 845 students, a court
house, and a fre station (CW-RP, 1951:12).
Esse modelo de preservao veio a ser bastante criticado pela sua
artifcialidade ou inautenticidade. Na verdade, esse modelo bastante
antigo e remonta ao arquiteto francs Viollet-Le-Duc, um pioneiro da
preservao histrica no incio do sculo dezenove na Frana. Segun-
do seu modelo, um prdio deveria ser reconstrudo integralmente at
atingir felmente as suas caractersticas originais, eliminando-se todos
os elementos intermedirios. Uma catedral gtica no sculo dezenove
deveria, aps o trabalho de restaurao, apresentar as mesmas caracte-
rsticas que apresentavam na poca de sua existncia original no sculo
treze. As crticas a esse modelo tambm no so novas e, ainda no sculo
dezenove, encontravam expresso veemente nos escritos de John Ruskin,
na Inglaterra. Do ponto de vista desse preservacionista ingls, um prdio
antigo deveria ser mantido tal qual fosse encontrado no presente, tal qual
fosse recebido ou herdado do passado, devendo-se limitar ao mnimo
necessrio toda e qualquer interveno restauradora ou de reconstruo.
O objetivo era permitir que o prdio testemunhasse em seu aspecto a pas-
sagem do tempo, a sua antiguidade; o que era eliminado, segundo ele, no
modelo de Viollet-Le Duc. Em outras palavras, a nfase estava mais nos
aspectos de singularidade e permanncia; do que nos aspectos de re-
produtibilidade e transitoriedade. De modo no explcito, a ideologia
que norteou a reconstruo de Colonial Wiliamsburg e de muitos outros
historical places nos Estados Unidos deve muito concepo do arquiteto
francs (Hosmer,1981:953-954).
O propsito da criao de Colonial Williamsburg era apresentar o
passado do modo mais preciso e objetivo possvel. Uma grande
equipe de arquitetos, engenheiros, historiadores, arquelogos e ou-
tros profssionais foi contratada para essa fnalidade. Uma forte n-
128 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
fase era colocada nos aspectos tcnicos do processo de restaurao e
recriao do passado em Colonial Williamsburg. Segundo uma frase
de J.D.Rockefeller na poca: No scholar must be able to come to us
and say we have made a mistake(RP,1951). Esse processo de recriao
tem um sentido permanente e at os dias atuais o passado -isto ,
Williamsburg em 1775, s vsperas da Revoluo- objeto de intensas
e cuidadosas pesquisas por parte de historiadores, arquitetos e arque-
logos com vistas a oferecer um quadro cada vez mais completo, preciso
e objetivo.
Alm disso, a recriao no atinge apenas os prdios, as ruas e os
objetos. Ela assume tambm um aspecto dramtico na reencenao (re-
enactment), por parte de uma grande equipe de atores, do cotidiano de
Williamsburg no sculo dezoito e mais precisamente no ano de 1775. Esses
atores vestem-se tal como homens e mulheres supostamente vestiam-se
naquela poca; realizam atividades econmicas e sociais da poca; e fa-
lam um ingls tal qual supostamente falado naquele sculo. Esses atores
movimentam-se casualmente pelas ruas e prdios da cidade e fngem
ignorar a presena dos visitantes. Ao serem abordados, no saem do seu
papel e conduzem-se rigorosamente de acordo com o personagem que
esteja representando.
A cidade nos sugere a imagem de uma miniatura. O passado parece
existir dentro de uma redoma, desconectado de um presente, de um fu-
turo ou de um passado reais. Assim, em Colonial Williamsburg sempre
1775. O passado um tempo que se repete indefnidamente. O conjunto
urbanstico e arquitetnico, e mais a performance dos atores, no sugere
antiguidade mas sim o aspecto novo e limpo, quase asctico das coisas
recriadas. Colonial Williamsburg nos evoca poderosamente no a idia
de um passado cujo testemunho se faa presente no aspecto antigo de
ruas, prdios e objetos. Em Colonial Williamsburg, esses prdios e objetos
no parecem vir de nenhum passado mas antes de um eterno presente.
O desaparecimento da aura, de que nos fala Benjamin, parece aqui ter
atingido um limite extremo.
129 {jos r eginal do santos gonal ves}
OURO PRETO
No contexto brasileiro, as concepes de patrimnio cultural tm
variado em termos diacrnicos e sincrnicos. Desde os anos trinta, com
a criao da SPHAN, at fns dos anos setenta, o conceito ofcial que nor-
teou a poltica brasileira de patrimnio restringia-se aos chamados mo-
numentos arquitetnicos e obras de arte erudita associados ao passado
brasileiro (MEC-SPHAN/Pr-Memria,1980; Andrade,1952;1987). Desde
fns dos anos setenta, principalmente com a criao da Pr-Memria, a
categoria patrimnio expandiu-se e veio a incluir no somente monu-
mentos arquitetnicos, obras de arte erudita, mas tambm documentos,
antigas tecnologias, artesanato, festas, material etnogrfco, vrias for-
mas de arquitetura e arte popular, religies populares, etc. (MEC-SPHAN/
pr-Memria,1980; Frota,1981; Falco,1984; Velho,1984; Lemos,1985; Ma-
galhes,1985). Ouro Preto desempenhou e ainda desempenha um papel
importante em ambos os contextos.
At os anos vinte e trinta, quando veio a ser descoberta pelos intelec-
tuais modernistas
3
Ouro Preto era mais uma das tantas cidades mortas
-na expresso de Monteiro Lobato existentes no Brasil. Passada a fase
da minerao, a cidade entra em decadncia. Mas ela ainda a capital
da provncia de Minas Gerais. Em fns do sculo dezenove, ela perde essa
condio para Belo Horizonte. Em conseqncia de sua redescoberta
pelos intelectuais modernistas, Ouro Preto elevada, em 1933, por um
decreto presidencial, condio de monumento nacional. Nos anos
sessenta, ela elevada condio de Cidade Monumento Mundial pela
UNESCO, passando assim a integrar o chamado patrimnio cultural da
humanidade.
Data dos anos vinte e trinta a criao do culto a Ouro Preto e s cha-
madas cidades histricas de Minas, arte e arquitetura religiosa barroca
do sculo dezoito mineiro. A prpria atuao da SPHAN, criada em 1937
no mbito do ento Ministrio da Educao e Sade de Gustavo Capane-
ma (Schwartzman et allii,1984; Andrade,1952; MEC-SPHAN/Pr-Mem-
3
Sbre esse ponto
vale a pena citar aqui
um texto de Otto
Maria Carpeaux:
Ouro Preto foi trs
vezes descoberta: em
1668 pelos bandei-
rantes; em 1893 pelos
intelectuais bomios
do Rio de Janeiro; e
por volta de 1925,
de 1929, pelos mo-
dernistas de So Pau-
lo.(...) A redescoberta
de Ouro Preto um
dos grandes feitos do
modernismo. Mrio
de Andrade estve l.
Oswald de Andrade
escreveu os famosos
versos sobre os pro-
fetas do Aleijadinho.
De Manuel Bandeira
a substanciosa cr-
nica De Vila Rica de
Albuquerque a Ouro
Preto dos Estudan-
tes, primeiro ncleo
daquilo que ser mais
tarde o indispensvel
Guia de Ouro Preto.
Vieram as pginas de
Carlos Drummond de
Andrade. Vieram os
servios de Rodrigo
de Melo Franco de
Andrade e basta
este caro nome para
revelar o sentido pro-
fundo dessa terceira
descoberta: em Ouro
Preto conquistou o
Brasil moderno sua
conscincia histrica
(Correio da Manh,
8-7-1961, Arquivo
SPHAN).
130 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
ria,1980), e dirigido por Rodrigo de Mello Franco de Andrade at a dcada
de sessenta, contribuiu intensamente para a consolidao desse culto.
Ao longo de vrias dcadas, essa agncia concentrou suas atividades no
tombamento de monumentos arquitetnicos religiosos em grande parte
situados no Estado de Minas Gerais e, particularmente, em Ouro Pre-
to (MEC-SPHAN/pr-Memria,1982; Pr-Memria,1982). O perodo mais
intenso dessa atividade se estende de 1938 a 1942, decaindo progressi-
vamente nas dcadas subseqentes (Pr-Memria,1982). O culto a Ouro
Preto, s cidades histricas de Minas, ao barroco mineiro, s obras do
Aleijadinho divulgado atravs de livros, artigos de jornais e revistas, e
que vm promover o turismo na rea. O conhecido Guia de Ouro Preto, de
Manuel Bandeira, um dos exemplos. Ouro Preto assim dimensionado
no imaginrio coletivo brasileiro como poderoso smbolo da identidade
brasileira. Um smbolo barroco e mineiro.
4

Ouro Preto e, por extenso, as demais cidades histricas de Minas,
a arquitetura e a arte barroca mineira passam a ser visualisados pelos
idelogos do patrimnio em termos de uma relao metonmica com o
passado e a identidade brasileira. Em seu Guia de Ouro Preto, diz Manuel
Bandeira: Para ns brasileiros, o que tem fora de nos comover so jus-
tamente esses sobrades pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma
coisa de nosso comeou a se fxar.(1967:44). E acrescenta: A desgraa foi
que esse fo de tradio se tivesse partido.(1967:44).
O patrimnio visto assim como um meio de restabelecer os vnculos
com essa tradio. Acredito que o que aparece aqui, em contraste com
o que descrevemos sobre Colonial Williamsburg, a idia da aura (Ben-
jamin, 1969:221), onde os aspectos da singularidade e permanncia
so enfatizados em detrimento da reprodutibilidade e da transitorie-
dade.
PATRIMNIO E NAO
Ao contrastar esses dois espaos classifcados como patrimnios
culturais nos Estados Unidos e no Brasil, respectivamente, no os estou
4
De certo modo, a
ideologia da SPHAN
pode ser interpre-
tada como parte da
chamada ideologia
da mineiridade.
Para uma interpre-
tao sociolgica da
mineridade, ver
Boumeny (1986).
131 {jos r eginal do santos gonal ves}
considerando como representativos ou expressivos de identidades
ou memrias nacionais. No estou considerando Colonial Williams-
burg como um espao expressivo da identidade nacional americana;
ou Ouro Preto como expressivo da identidade nacional brasileira. No
estou preocupado com a especifcidade do Brasil ou dos Estados Unidos
enquanto naes. Acredito que esta uma das questes propostas pelos
idelogos da nao ou mesmo por aqueles cientistas sociais que reprodu-
zem em seu discurso categorias e proposies nacionalistas. Em outras
palavras, no estou interessado em construir simbolicamente a nao;
antes, estou tentando problematizar o carter naturalizado que pode
assumir essa categoria.
Desse modo, no meu objetivo descrever uma Colonial Williamsburg
no-aurtica versus um Ouro Preto aurtico. Isto seria reifcar essas
categorias. Assumo que tanto em Colonial Williamsburg quanto em Ouro
Preto coexistem os aspectos aurticos e no-aurticos. Podemos descrev-
los atravs de um ou outro critrio. Ambos so construes culturais. Acre-
dito no entanto que Colonial Williamsburg, assim como outras experincias
similares de preservao histrica nos Estados Unidos, com sua nfase na
recriao do passado, leva a um ponto extremo os aspectos no-aurticos.
Mas, se insistimos em classifc-las como inautnticas, jogamos o velho jogo
de afrmarmos nossas crenas -na autenticidade- atravs do seu inverso.
Do ponto de vista dos idelogos brasileiros de patrimnio cultural, os
Estados Unidos nunca se constituram em modelo a ser imitado. Desde os
anos trinta com a criao da SPHAN at os dias atuais, a referncia mais
constante tem sido a Europa e, particularmente, a Frana e a Itlia. Muitos
dos especialistas brasileiros na rea de patrimnio, a exemplo de seus
colegas europeus, tendem a tomar os Estados Unidos, e particularmente
o caso de Colonial Williamsburg como um exemplo negativo. Usualmente
essa avaliao est baseada na oposio autenticidade / inautenticidade.
Alm disso, parecem embebidas em critrios ideolgicos nacionalistas,
onde o nacional e autntico defnido por oposio ao no-nacional
e inautntico.
132 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Acredito que experincias como Colonial Williamsburg -e outras
similares- podem ser usadas para repensarmos nossas representaes
sobre a categoria autenticidade. Parafraseando Benjamin, eu diria que
elas constituem um exemplo de patrimnio cultural na poca de sua
reprodutibilidade tcnica. Elas tornam explcito o carter artifcial,
construdo ou tecnicamente reproduzido dos chamados patrimnios
culturais. Sua autenticidade no aurtica. Ela est fundada no numa
relao orgnica com o passado, mas na prpria possibilidade, no pre-
sente, de reproduo tcnica desse passado. Desse modo, somos levados
a problematizar categorias como as de nao que, supostamente, so
expressas pelos chamados patrimnios culturais. Estes, na medida em
que no consideremos como dadas sua autenticidade ou inautentici-
dade, podem ser pensados como construes sem nenhum necessrio
fundamento ltimo na histria, na natureza, na sociedade ou em
quaisquer outras categorias reifcadas com que confortavelmente bus-
camos justifcar nossas crenas nacionalistas.
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Monumental idade e
Cotidiano: os patr imnios
cul tur ais como gner o
de discur so
O PALCIO E A PRAA PBLICA
as modernas sociedades complexas existem gneros de
discursos associados a distintas reas de atividade, a di-
ferentes grupos e categorias, a diferentes situaes sociais. Com esses
gneros, variam o vocabulrio, a gramtica e a entonao, atravs dos
quais so articulados. Esses gneros variam tambm conforme a posio
daquele a quem o autor do discurso esteja se dirigindo, e conforme esse
autor esteja acusando, perguntando, interpelando, ensinando, persuadin-
do, etc. Quando falamos em discursos, no estamos nos referindo apenas a
frases, mas a enunciados, sempre proferidos por algum, em algum tempo
e espao, e sempre dirigidos a um outro, que responder. Por sua vez, esse
enunciado j uma resposta a um outro proferida anteriormente. H
portanto uma cadeia interminvel de enunciados. No existe o discurso
primeiro, aquele que j no esteja respondendo a algum outro.
As variaes de vocabulrio e intonao ocorrem, por exemplo, segundo
se trate de um discurso formal, ofcial, enunciado num espao hierarqui-
camente valorizado como um palcio; ou se trate de um discurso informal,
popular, articulado no espao da praa pblica. H um vocabulrio, assim
como uma intonao, que distinguem os discursos do palcio (por exemplo,
os discursos de posse, os elogios fnebres, os discursos de inaugurao; ou
ainda os discursos da sala de aula, dos congressos, dos encontros cientfcos;
os discursos que se realizam nas missas, etc.). O mesmo pode ser dito em
141 {jos r eginal do santos gonal ves}
relao aos gneros de discurso da praa pblica, tais como o prego do
camel, os xingamentos, as ofensas proferidas em brigas de rua, os cum-
primentos cotidianos, a linguagem das torcidas de futebol, as conversas
de botequim, etc. H gneros de discursos apropriados a espaos, tempos,
personagens e atividades sociais diversos. Cada grupo, categoria social,
instituio, atividade, e mesmo cada indivduo dispe de um discurso di-
ferenciado por meio do qual dialoga com discursos produzidos por outros
interlocutores. precisamente a relao dialgica entre esses discursos que
nos constituem enquanto sujeitos individuais e coletivos.
Em termos esquemticos, e para os propsitos de nossa argumenta-
o, podemos dizer que existem nas sociedades complexas gneros de
discurso associados aos grupos dominantes, que podem estar centra-
dos na espiritualidade, na imaterialidade, na hierarquia e na etiqueta.
E, tambm, gneros associados aos grupos situados na escala inferior
da sociedade, podendo esses discursos estarem centrados no corpo, na
materialidade, na irreverncia e no riso.
Os discursos do patrimnio cultural, presentes em todas as modernas
sociedades nacionais, forescem nos meios intelectuais e so produzidos e
disseminados por empreendimentos polticos e ideolgicos de construo
de identidades e memrias, sejam de sociedades nacionais, sejam de
grupos tnicos, ou de outras coletividades. Esses discursos podem estar
associados, ora a grupos dominantes, e centrados em valores tais como ci-
vilizao e cultura pensados enquanto valores espirituais e imateriais;
ora associados a grupos e categorias situados nos estratos inferiores da
sociedade e centrados em valores que podem ser reinterpretados a partir
daqueles e centrados em dimenses materiais e corporais da existncia.
Os discursos do patrimnio usualmente se articulam em nome de uma
totalidade que pretendem representar, da qual pretendem ser a expresso
autntica, e em relao qual mantm uma conexo metonmica. Nesses
discursos, o patrimnio , em tese, aquilo que no se divide, e que no se
fragmenta nem no tempo e nem no espao. Ele forte precisamente na
medida em que no se divide. Da a tenso existente nesses discursos em
142 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
relao a toda e qualquer iniciativa que sugira perspectivas diferentes,
antagnicas em relao s identidades e memrias que, em princpio,
representem. Essas iniciativas so vistas como ameaa integridade e
autenticidade, valores fundamentais dos patrimnios.
Os discursos do patrimnio se articulam enquanto narrativas, nas
quais se relata a histria de uma determinada coletividade, seus heris,
os acontecimentos que marcaram essa histria, os lugares e os objetos que
testemunharam esses acontecimentos. Os que narram essa histria o
fazem sob a autoridade da nao, ou de outra coletividade qualquer, cuja
memria e identidade so representadas pelo patrimnio.
No entanto, como nenhum gnero de discurso uma entidade coeren-
te, como todo discurso est dividido contra si mesmo e, ao mesmo tempo,
dialogando com vrios outros, os discursos do patrimnio, na medida
em que pretendem representar uma sociedade nacional, abrem-se para
outros grupos e categorias sociais, constituindo-se zonas de contato
entre diversos gneros de discurso. Por exemplo, entre o palcio e a praa
pblica, podendo esse contato se confgurar de maneira mais ou menos
intensa, mais ou menos policiada, permitindo maiores ou menores trans-
gresses nas linhas de demarcao entre um e outro espao.
Minha sugesto que talvez seja rentvel analiticamente pensarmos os
patrimnios culturais enquanto discursos, isto , modalidades de ex-
presso escrita ou oral, que partem de um autor posicionado (individual ou
coletivo) e que se dirigem e respondem a outros discursos. Isto signifca dizer
que estou tomando como pressuposto que os patrimnios culturais no so
simplesmente uma coleo de objetos e estruturas materiais existindo por si
mesmas, mas que so, na verdade, discursivamente constitudos. Os objetos
que identifcamos e preservamos enquanto patrimnio cultural de uma
nao ou de um grupo social qualquer, no existem enquanto tal seno a
partir do momento em que assim os classifcamos em nossos discursos.
Vale a pena assinalar no entanto que quando falo em discursos, orais
ou escritos, no estou me referindo linguagem no sentido mais estrito,
no sentido formal (enquanto gramtica, sintaxe, lxico), mas s vises
143 {jos r eginal do santos gonal ves}
de mundo que so parte integrante dessas linguagens e que se opem
dialogicamente a outras. No h vises de mundo, formas de pensamento
separadas dos discursos que as veiculam. Cada modalidade de discurso
traz consigo uma viso de mundo, um ponto de vista sobre a sociedade.
Quando falo portanto dos discursos do patrimnio, estou na verdade me
referindo ao conjunto de concepes de patrimnio, concepes de tem-
po, espao, subjetividade, etc.
Em outras palavras, o pensamento no anterior aos discursos, s pa-
lavras, frases e nem mesmo intonao com que escrevemos ou falamos.
Ele estruturado pelos discursos que enunciamos. A noo de gnero
de discurso usada no em seu sentido formalista, mas, nas palavras de
Mikhail Bakhtin, como um campo de percepo valorizada, um modo
de representar o mundo (Bakhtin 1981:28).
Mais que isso, quando falo em discurso, no me refro estritamente a
um conjunto de enunciados sobre o patrimnio, que seria ento um objeto
representado. A noo de discurso aparece aqui como formas de ao, no
sentido em que o que falamos ou escrevemos tem efeitos sobre as situaes
que vivemos. De certo modo, os discursos do patrimnio so o patrimnio,
na medida mesmo em que o constituem de diversas formas.
Resumindo, meu objetivo trazer a sugesto de interpretar os discuros do
patrimnio cultural como narrativas. Narrativas organizadas ora em torno
do princpio da monumentalidade, ora segundo o princpio do cotidiano.
Esses princpios so usados em estratgias que se opem dialogicamente,
podendo coexistir em uma mesma narrativa. Antes de prosseguir, no entan-
to, devo explicar melhor o que estou entendendo por monumentalidade
e cotidiano, uma oposio que elaborei com base numa outra, construda
por Bakhtin entre dois gneros narrativos: a pica e o romance.
O BRONZE E A ARGILA
Trs pontos fundamentais caracterizam a narrativa pica, segundo
Bakhtin:
1) seu tema o passado histrico nacional;
144 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
um mundo feito de fundadores, de heris considerados como os pri-
meiros e os melhores e que deram incio a uma determinada coletividade
nacional. Mas o ponto fundamental no precisamente o tema, mas o
fato de que nas narrativas picas o mundo representado transferido
para o passado. Esse mundo congelado no passado. A posio do autor
aquela de algum que fala de um passado que inacessvel, e com a
atitude reverente de um descendente. Est longe de ser o discurso de um
autor contemporneo que se dirige a leitores contemporneos. Entre esse
passado e o autor, fca a tradio. O passado portanto narrado com base
no que transmitido por essa tradio e no com base na experincia
pessoal. Esse passado absoluto da narrativa pica a fonte e o comeo de
tudo que acontece posteriormente. na verdade a memria (transmitida
pela tradio), e no o conhecimento (possibilitado pela experincia pes-
soal), que serve como fonte do impulso criador. Esse passado sagrado,
absoluto, jamais submetido a um ponto de vista relativo.
2) a fonte da narrativa pica uma tradio nacional, e no a experincia
pessoal e o pensamento livre que da decorre;
O passado pico separado de modo absoluto em relao ao presente.
H uma fronteira intransponvel entre esse passado e a realidade contem-
pornea. Ele somente revelado por meio da tradio. Esse um trao
imanente dessa narrativa, assim como o tambm o passado absoluto.
Esse mundo do passado inacessvel experincia individual. Ele somente
traduzvel na linguagem da tradio e em nenhuma outra.
3) nas narrativas picas uma distncia absoluta separa o mundo da nar-
rativa do mundo da realidade cotidiana, isto , do tempo e espao em que
esto situados o narrador e o leitor;
A zona de contato entre a narrativa pica e a realidade contempo-
rnea constituda por mnimas interaes. H uma separao absoluta
entre o que se passa no plano da narrativa e o que se passa na realidade
cotidiana. Ela infensa a qualquer ponto de vista, a qualquer desafo da
realidade contempornea. Por isso, somente se pode aceitar o mundo
145 {jos r eginal do santos gonal ves}
pico com reverncia, pois ele est alm do domnio da experincia, das
atividades e dos sentimentos humanos. O passado por ela representado
tem uma dimenso monumental.
Em resumo, a narrativa pica est articulada por uma idia no relati-
vizada do passado, e os personagens que a se movem e os acontecimentos
que se passam so absolutos. O passado um todo acabado e perfeito e se
comunica com o presente apenas atravs da tradio. Os personagens
agem de modo exemplar, no esto sujeitos s contingncias do cotidiano.
Os eventos e personagens das narrativas picas estaro fora do tempo,
esto congelados. No se valoriza a experincia pessoal. Valoriza-se a
memria, e no o conhecimento. O mundo do passado pico um mundo
perfeito. No h incertezas.
J o romance concebido por Bakhtin a partir de trs traos defni-
dores:
1) seu estilo tem um carter tridimensional, que est associado cons-
cincia multilingustica que se realiza nessa narrativa;
Essa conscincia de mltiplas linguagens est associada ao prprio
contexto em que emerge na Europa moderna, o sculo XVIII, um contex-
to de intensos contatos entre lnguas e culturas e que se torna um fator
decisivo na viso de mundo desse perodo. Da o carter eminentemente
dialgico do romance, um gnero de narrativa onde se fazem presentes
diferentes linguagens, pontos de vista que dialogam e se desafam mutu-
amente. Esse fato contrasta com o contexto das narrativas picas, que se
caracterizam precisamente pelo isolamento em relao a outras culturas
e lnguas, o que repercute no carter monolgico dessas narrativas.
2) o romance promove uma mudana radical nas coordenadas temporais
da imagem literria;
Enquanto as narrativas picas apresentam uma separao radical en-
tre o passado e o presente, o romance vai precisamente redefnir essa rela-
o, valorizando o presente. Conseqentemente, a relao com o passado,
no romance, no mediada pela tradio, mas pela experincia pessoal. O
146 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
passado, portanto, torna-se relativo. Ele vai depender de pontos de vista
particulares. No existe assim um nico passado, mas vrios, segundo
pontos de vista individuais ou coletivos diferenciados. O passado no
valorizado em si, mas como um instrumento na construo do futuro.
3) o romance abre um novo espao para a estruturao de imagens lite-
rrias, especifcamente aquela zona de mximo contato com o presente,
isto , com a realidade contempornea em toda sua abertura;
Esse ltimo ponto fundamental. No romance se intensifcam ao m-
ximo as interaes naquela zona de contato entre a narrativa e a realidade
contempornea. Os espaos, os tempos, os personagens, os vocabulrios da
realidade cotidiana tm livre acesso ao romance. Os gneros de discurso
cotidianos, populares, os vocabulrios da praa pblica so trazidos para
o interior da narrativa em p de igualdade com os vocabulrios do palcio.
A linguagem falada do cotidiano colocada lado a lado com a linguagem
escrita. Os discursos baixos, voltados para o corporal e o material so
trazidos lado a lado com os discursos elevados voltados para o que
espiritual e imaterial. H um contato direto e cru entre esses gneros de
discursos. As relaes entre eles no so mediadas pela reverncia e pela
etiqueta, mas pelo desafo, pela irreverncia, pelo xingamento e pelo riso.
Nesse sentido, o riso das narrativas folclricas teve um papel fundamental
na formao do romance. Foi ele que permitiu exatamente a quebra da
atitude reverente das narrativas picas.
O que era distante na narrativa pica foi aproximado e tornado
diretamente acessvel experincia pessoal. A memria, quando
tematizada, a memria de indivduos ou de coletividades individuali-
zadas, a memria autobiogrfica, no a memria herica da narrativa
pica. O passado, na medida em que aproximado da contemporanei-
dade, da experincia pessoal, torna-se um objeto familiar, passvel
de investigao. Se comparado com o passado da narrativa pica, ele
torna-se menos transparente, ele no mais o passado cristalino e
estvel da pica; ele no ilumina mais o presente de forma exemplar
(a histria, no romance, deixa de ser a mestra da vida, como era
147 {jos r eginal do santos gonal ves}
na concepo clssica, ou pica, de histria); mas, ao tornar-se essa
dimenso escura e instvel, o passado torna-se, ao mesmo tempo, ob-
jeto de curiosidade, objeto de investigao, o que supe uma relao
no marcada pela reverncia. O passado das sociedades, assim como
o dos indivduos, torna-se objeto de investigao e instrumento de
auto-conhecimento.
O romance caracteriza-se precisamente pela nfase no cotidiano, pela
contingncia, pela transformao no tempo, na histria. O dia-a-dia feito
de incertezas, de acidentes. O futuro no uma projeo da tradio, mas
uma construo baseada na experincia. Exatamente porque se valoriza
o presente inconcluso, ele torna-se cada vez mais prximo do futuro.
Finalmente, enquanto na narrativa pica importa pouco o comeo
e o fm da estria, no romance fundamental tanto o impulso de con-
tinuar (o que vai acontecer depois?), quanto o impulso de concluir
(como termina a estria?). Na pica, essas perguntas no fazem sentido
porque todos j conhecem o enredo. J sabemos todos de antemo o que
vai acontecer com dipo.
O contraste entre esses dois gneros narrativos pode ser expresso
atravs das imagens do bronze e da argila. As narrativas picas, voltadas
para o passado e para a permanncia, representando um mundo acabado e
exemplar, so como que moldadas em bronze ou mrmore. A fexibilidade,
a plasticidade e a abertura do romance para a realidade contempornea
sugere que o material para sua construo seja a argila.
O MONUMENTAL E O COTIDIANO
Por que se vem a tornar necessrio um discurso de patrimnio? A
partir de que momento e por que se comea a se falar de patrimnio cul-
tural? Esse discurso responde a quem, ope-se a quem, a que outros dis-
cursos? Como se estabelecem as fronteiras do que se chama patrimnio
cultural no processo de formao das modernas sociedades nacionais?
Como essas fronteiras so guardadas e policiadas? Quem representa os
patrimnios culturais, como e contra quem?
148 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
H uma espcie de afnidade eletiva entre o gnero patrimnio
cultural e o gnero romance. As narrativas de patrimnios culturais
nascem com o romance. Ambos forescem, historicamente, na segunda
metade do sculo XVIII e primeira metade do sculo XIX. Os patrimnios
culturais so constitudos concomitantemente formao dos Estados
nacionais, que fazem uso dessas narrativas para construir memrias, tra-
dies e identidades. Trata-se de um fenmeno que um autor chamou de
inveno de tradies (Hobsbawm 1983). Assim como no romance, o que
est em foco nas narrativas de patrimnio a experincia de formao
de uma determinada subjetividade coletiva, a nao enquanto coleti-
vidade individualizada e, a exemplo dos indivduos, dotada de memria,
carter, identidade, etc. De certo modo, as narrativas de patrimnio so
romances nacionais.
No por acaso, aparece, nesse mesmo contexto intelectual e histrico,
os antiqurios. A genealogia dos modernos museus e dos discursos de
patrimnio cultural passa necessariamente pela experincia dos antiqu-
rios e sua concepo de histria. So eles que vo fazer com que moedas,
medalhas e runas passem a ser considerados material de pesquisa his-
trica. At ento, no modelo clssico de histria, somente textos escritos
considerados como material digno de serem estudados. Os antiqurios
vo valorizar aqueles objetos, no pelos ensinamentos morais que pudes-
sem trazer (a exemplo dos textos clssicos) mas pela sua verdade factual
(Momigliano 1983).
O modernos discursos do patrimnio cultural constituram-se arti-
culadamente ao processo de formao dos Estados nacionais e, dialogica-
mente, em contraposio ao modo como os objetos que vieram a integrar
os patrimnios nacionais eram concebidos na sociedade do antigo regi-
me. Neste ltimo, no havia um patrimnio nacional, mas to somente
os patrimnios de diversos estamentos sociais, da nobreza, do clero, em
mos de quem estavam esses bens. Na medida em que os Estados nacionais
se constituem, simultaneamente se formam patrimnios nacionais cujo
acesso passa a ser obrigatoriamente universal, aberto a todos os cidados.
149 {jos r eginal do santos gonal ves}
Estes, nesse moderno contexto nacional, so, em princpio, diretamente
representados pelo seu patrimnio cultural, o patrimnio da nao. Sua
relao com o Estado deixa de ser mediada pelos nobres e, no ponto mais
alto da hierarquia, pelo rei. Passam a ser considerados como indivduos,
constitudos a partir de valores como igualdade e liberdade, e portanto
independentes de toda relao social, e de qualquer posio de interde-
pendncia.
Em toda e qualquer moderna sociedade nacional possvel identifcar
a existncia de modalidades de discursos de patrimnio em competio
para representar com autenticidade a identidade e a memria da cole-
tividade. Esses discursos se opem entre si e disputam lugares de legiti-
midade. No contexto brasileiro, esses discursos assumiram, esquemati-
camente falando, duas modalidades: uma delas, a que estou chamando
de discurso da monumentalidade; a outra, a que poderamos nomear
como o discurso do cotidiano. Cada um desses discursos traz consigo
uma concepo da relao que estabelecem com a nao, seu passado,
sua identidade e seu futuro. Eles tm coexistido, dialogicamente, desde
os anos vinte e trinta at a atualidade, tendo sido gerados nos quadros
dos discursos modernistas no Brasil.
Focalizo a relao dialgica entre monumentalidade e cotidiano,
enquanto estratgias narrativas do patrimnio, discutindo trs oposies
centrais, onde se realizam, com mais nitidez, os seus contrastes. So elas:
1. o passado e o presente; 2. a tradio e a experincia; 3. a narrativa e a
realidade contempornea.
1. O PASSADO E O PRESENTE
Uma dessas modalidades de discurso dominou a cena pblica desde os
anos trinta, quando da criao do ento Servio do Patrimnio Histrico
e Artstico Nacional (o SPHAN), at os anos sessenta. A outra, embora no
estivesse ausente nesse perodo, ganha o primeiro plano a partir do anos
setenta e oitenta do ltimo sculo. Narrar o patrimnio cultural brasileiro
sob o registro da monumentalidade, ou do cotidiano, tem sido possibi-
150 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
lidades constantes, e diferentemente exploradas, ao longo dos ltimos
oitenta anos de histria (Gonalves 2003).
Os modos como esto relacionados e valorizados o passado e o pre-
sente confguram um dos pontos fundamentais da diferenciao en-
tre essas narrativas. No registro da monumentalidade, o passado ser
considerado como hierarquicamente superior ao presente. Essa valo-
rizao expressa pela idia de tradio, que desempenha um papel
crucial naquela modalidade narrativa que ocupa o espao pblico nos
anos trinta. Nos textos escritos por Rodrigo Melo Franco de Andrade
(RMFA), um dos principais articuladores dessa narrativa de patrim-
nio, a tradio o que faz a mediao entre o passado e o presente
da nao. O conjunto de bens que so classifcados como patrimnio
representam precisamente essa tradio, vinculando os brasileiros
de ontem aos de hoje.
Nessa narrativa, uma outra noo importante a de civilizao. A
nao brasileira concebida como parte da civilizao crist ocidental,
assumindo no entanto uma confgurao especfca ao longo de sua for-
mao. O patrimnio histrico e artstico brasileiro tem uma relao de
continuidade com essa civilizao. Ela pensada basicamente por meio
da tradio, o que signifca dizer que o passado mantm com o presen-
te uma relao, se no exemplar, como nas narrativas picas, por certo
uma relao de continuidade, hierarquicamente valorizada. De modo a
tornar-se civilizado, o Brasil teria de relembrar se passado ou tradio
e, nesse processo, monumentos e obras de arte desempenham um papel
especial. Monumentos barrocos coloniais eram exemplos privilegiados
para inspirar a vida de homens e mulheres no presente. Considerados
monumentos no sentido clssico do termo, isto , pela sua exemplaridade
cultural e esttica, eles materializavam a tradio, fonte segura de uma
identidade nacional.
Em um texto famoso, o Guia de Ouro Preto, Manuel Bandeira, um colabo-
rador do SPHAN no chamado perodo herico da instituio, dramatiza
essa valorizao do passado e da tradio ao afrmar:
151 {jos r eginal do santos gonal ves}
Para ns brasileiros, o que tem fora de nos comover so justamente esses sobra-
des pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso comeou a se
fxar. A desgraa foi que esse fo de tradio se tivesse partido(1938:42).
Essa modalidade de narrativa do patrimnio vai precisamente tentar
reconstituir esse fo partido da tradio. Esse fo feito de monumen-
tos, por meio dos quais se pode estabelecer uma relao com o passado.
Objetos de arte, arquitetura (igrejas, fortes, palcios, casas de cmara e
cadeia, conjuntos arquitetnicos e urbansticos), o chamado patrimnio
de pedra e cal, substituto do bronze, material prprio das narrativas
picas, so itens fortemente valorizados.
O ponto fundamental que o presente e, consequentemente, o futu-
ro, embora estejam em construo, devem ser norteados pelo passado.
Embora no haja entre um e outro uma separao absoluta, como na
narrativa pica, o primeiro visto com o respeito que devem inspirar as
tradies. Ele ocupa uma posio hierarquicamente superior em relao
ao presente, uma vez que para este uma fonte de identidade. A memria
valorizada enquanto memria da nao. Somos na medida em que nos
lembramos.
J quando se narra o patrimnio no registro do cotidiano, essas re-
laes se invertem. No mais o passado que hierarquicamente valo-
rizado, mas o presente. O passado no mais acessvel por meio de uma
tradio. Ele deixa de ter a posio quase absoluta que assume na primeira
narrativa. Ele fortemente relativizado. Existem, nessa narrativa do co-
tidiano, tantos passados, e consequentemente, tantas memrias, quantos
so os grupos sociais. Tomando-se como ponto de partida o presente, o
passado ser sobretudo uma referncia a ser pragmaticamente utili-
zada no processo de produo cultural e na garantia da continuidade da
trajetria histrica da nao.
O registro da cotidianidade aparece de modo intenso em vrios dis-
cursos do patrimnio (em Mrio de Andrade, por exemplo, ainda nos
anos vinte e trinta), mas ele fortemente tematizado no espao pblico
atravs do discurso articulado por Alosio Magalhes, nos anos setenta do
152 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
ltimo sculo e, mais recentemente, por meio da noo de patrimnios
intangveis. No discurso de AM desloca-se a valorizao quase exclusi-
va dos chamados bens patrimoniais, associados ao passado da nao,
para o que ele chamava de bens culturais, enquanto integrantes da
vida presente dos diversos segmentos da populao. Alm disso, como
conseqncia da valorizao do presente, esses bens culturais sero pen-
sados como instrumentos de construo de um futuro, na construo do
desenvolvimento.
2. A TRADIO E A EXPERINCIA
Quando narrado sob o registro da monumentalidade, a tradio
que defne o que seja o patrimnio cultural, deslocando-se para segundo
plano a experincia individual e coletiva dos bens culturais. H uma
viso homognea da nao. A relao entre esta, enquanto uma totalidade
homognea, e os indivduos, se faz pela predominncia da primeira. A na-
o anterior aos indivduos. Ela que d realidade aos indivduos, assim
como aos segmentos especfcos que integram a sociedade nacional.
No registro do cotidiano, a narrativa do patrimnio tem como ponto
de referncia bsico a experincia pessoal e coletiva dos diversos grupos
e categorias sociais em sua vida cotidiana. So os pontos de vista ar-
ticulados por cada uma dessas individualidades que fornecem o ponto
de partida para narrar o patrimnio. A nao deixa de ser a totalidade
homognea representada por um patrimnio narrado no registro da mo-
numentalidade. A heterogeneidade passa a ser reconhecida como uma
confgurao defnidora da sociedade nacional
3. NARRATIVA E REALIDADE CONTEMPORNEA
Essa oposio fundamental na diferenciao entre as duas estrat-
gias narrativas que estamos distinguindo. Pois precisamente nesse pon-
to que elas aparecem como zonas de contato, onde se fazem presentes,
de modo mais ou menos intenso, mais ou menos policiado, as interaes
entre diversos gneros de discurso que circulam na sociedade.
153 {jos r eginal do santos gonal ves}
No caso da narrativa monumentalista, a relao com a realidade con-
tempornea, cotidiana, bastante restrita. Valorizando o passado e a tra-
dio, em detrimento do presente e da experincia, ela estabelece com o
cotidiano relaes fortemente policiadas. Na medida mesmo em que se fun-
damenta numa viso hierarquicamente valorizada do passado, este deve
ser defendido contra qualquer tentativa de relativizao que possa partir
de indivduos e grupos sociais situados na realidade cotidiana. A primazia
da nao, enquanto uma totalidade homognea, deve ser preservada.
A relao entre essas narrativas e a populao mediada por uma
misso civilizadora (aquilo que RMFA chamava de obra de civilizao):
os cidados devem ser educados, civilizados, e nesse processo o patrim-
nio (defnido em termos monumentais) tem um papel crucial, na medida
em que por seu intermdio que os indivduos entram em contato com a
nao e sua tradio. No h muito espao alternativo fora desse canal
de comunicao.
Nas narrativas do patrimnio, nas quais este aparece sob o signo do
cotidiano, confgura-se, tendencialmente, uma zona de mximos conta-
tos com a realidade contempornea. Os diversos gneros de discurso que
circulam socialmente transpem as fronteiras entre narrativa e realidade
cotidiana. Da a possibilidade de se pensar em vrias modalidades de
patrimnio.
Enquanto na primeira modalidade de narrativa, o patrimnio aparece
na forma de monumentos, cujo destino permanecer; na segunda desta-
cam-se os objetos, espaos usados e atividades exercidas pelos segmentos
sociais em sua vida cotidiana, e que esto marcados pela transitoriedade.
Na primeira os objetos so situados num tempo transcendente, associa-
dos a eventos histricos fundadores e a heris nacionais. Na segunda,
os objetos so postos no tempo contingente das relaes cotidianas. Da
passarem de monumentos (os chamados monumentos de pedra e cal)
a bens culturais, que podem ser estruturas arquitetnicas, urbansticas,
objetos, atividades, mas existindo sempre dentro de uma rede atual e viva
de relaes entre grupos sociais.
154 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
SUBJETIVIDADE E ESPAO PBLICO
Cada uma dessas estratgias narrativas vai trazer conseqncias dife-
rentes quanto ao modo de se conhecer o espao pblico. Concebido ora no
registro monumental, ora no registro do cotidiano, ele assumir formas
diversas. Ora um espao pblico monolgico, policiado, fechado; ora um
espao tendencialmente mais aberto, polifnico.
No primeiro caso, na medida em que o patrimnio representa a nao
como uma totalidade, o espao pblico pensado como um espao sem
confitos, porque sem diferenas, sem pluralidade, todos os seus elemen-
tos remetidos ao valor hierarquicamente superior, que a nao, seu
passado e sua tradio.
J no caso das narrativas articuladas no registro do cotidiano, o es-
pao pblico pensado enquanto dividido pela diversidade de pontos de
vista, pela diversidade dos gneros de discurso que nele circulam. A nao
no algo acabado, cuja essncia seria representada pelo patrimnio. A
nao heterognea e est em permanente processo de transformao.
Os patrimnios fazem parte do dia-a-dia da vida dos diversos segmentos
sociais.
O que estou tentando mostrar que existem modos diferentes de se
usar a expresso patrimnio cultural. E que seus efeitos so distintos.
Em um livro que intitulei A retrica da perda (Gonalves 2003), argumento
que os discursos de patrimnio cultural funcionam a partir da fgura da
perda. Esta que pe em movimento esses discursos. Como se no seu
interior existisse um vazio obsessivamente preenchido por contedos
distintos. Identifquei dois deles aqui. Mais importante, no entanto, que
a simples identifcao, o reconhecimento dos efeitos que uma auto-
conscincia em relao a essas modalidades de discurso pode trazer para
as prticas dos profssionais do patrimnio. Entre esses efeitos est o de
nos revelar o carter eminentemente arbitrrio de cada um desses dis-
cursos e dos patrimnios tal como neles aparecem. E se so arbitrrios,
se no esto fundados em nenhuma realidade ltima, seja a natureza, a
histria, a sociedade ou a cultura (concebidas estas enquanto categorias
155 {jos r eginal do santos gonal ves}
reifcadas), eles so portanto passveis de reinveno. Percebemos que so
constitudos, no enquanto objetos, mas enquanto perspectivas, discur-
sos dialogicamente opostos.
Os patrimnios culturais so estratgias por meio das quais grupos
sociais e indivduos narram sua memria e sua identidade, buscando
para elas um lugar pblico de reconhecimento, na medida mesmo em
que as transformam em patrimnio. Transformar objetos, estruturas
arquitetnicas, estruturas urbansticas, em patrimnio cultural signi-
fca atribuir-lhes uma funo de representao que funda a memria
e a identidade. Os dilogos e as lutas em torno do que seja o verdadeiro
patrimnio so lutas pela guarda de fronteiras, do que pode ou no pode
receber o nome de patrimnio, uma metfora que sugere sempre uni-
dade no espao e continuidade no tempo no que se refere identidade e
memria de um indivduo ou de um grupo. Os patrimnios so, assim,
instrumentos de constituio de subjetividades individuais e coletivas,
um recurso disposio de grupos sociais e seus representantes em sua
luta por reconhecimento social e poltico no espao pblico. Na medida em
que torno pblico um conjunto de objetos que, at ento, tinham apenas
existncia privada, altero as fronteiras entre um e outro domnio, altero
minha posio em relao a interlocutores situados no espao pblico.
Vale assinalar, no entanto, que ambos os discursos so semelhantes
ao romance. Ambos so tambm eminentemente monolgicos, centrados
institucional e discursivamente numa posio que visa unifcar, repre-
sentar de maneira abrangente. No jargo bakhtiniano, ambos estariam do
lado das foras centrpetas, e no das foras centrfugas da linguagem.
preciso portanto no exagerar as diferenas entre uma e outra narrativa.
Quanto ao aspecto monolgico, elas esto muito prximas. Os desafos, as
possibilidades de liberar a dimenso heteroglssica, esto alm das fron-
teiras dessas narrativas: na verdade, elas esto no dia-a-dia da populao,
nas formas de discurso que caracterizam os espaos desse dia-a-dia e
que, difcilmente, atravessam as fronteiras do patrimnio em seu sentido
ofcial. Ambas as narrativas podem ser, de certo modo, monumentalistas.
156 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Assim, por exemplo, se uma delas monumentaliza o barroco; a outra pode
perfeitamente monumentalizar o cotidiano, o popular.
Minha sugesto que as categorias monumentalidade e cotidiano,
seguindo a oposio entre pica e romance, podem ser boas para pensar
esse conjunto de traos que defnem dialogicamente as dimenses pica
e de romance que se fazem presentes nas narrativas de patrimnio. No
por acaso, essas palavras esto bastante presentes nessas narrativas. No
jargo antropolgico, elas podem ser chamadas, sem muita margem de
erro, de categorias nativas.
Marcel Mauss disse certa vez que o que peculiar perspectiva an-
tropolgica que toda instituio, toda e qualquer prtica ou discurso
coletivo, ser sempre arbitrrio. Essa perspectiva pode, eventualmente,
ter um efeito teraputico, na medida em que desperte nos profssionais
de patrimnio, e em certa medida nos prprios cientistas sociais, uma
autoconscincia em relao aos valores e idias, em relao s narrativas
culturais que estruturam seus pensamentos e prticas.
157 {jos r eginal do santos gonal ves}
Refer ncias bibl iogr ficas
Bakhtin, M
1981 The Dialogical Imagination. University of Texas Press.
Bandeira, M.
1938 Guia de Ouro Preto. Rio de janeiro: Publicaes do SPHAN, no. 2.
Gonalves, J.R.S.
2003 [1996] A Retrica da Perda: os discursos do patrimnio
cultural no Brasil. 2 edio Ed. da UFRJ/SPHAN. Srie Risco
Original. Rio de janeiro.
Hobsbawm, E.; Ranger, T.
1983 The invention of traditions. Cambridge University Press.
Momigliano, A.
1983 Problmes dhistoriographie ancienne et moderne.
Gallimard. Paris.
Originalmente publicado com o ttulo A Fome e o Paladar:
uma perspectiva antropolgica na Srie Encontros e Estudos 4
(Seminrio Alimentao e Cultura / Projeto Celebraes e
Saberes da Cultura Popular / Programa Nacional do Patri-
mnio Imaterial).
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular / FUNARTE
Secretaria do Patrimnio, Museus e Artes Plsticas
Ministrio da Cultura 2002.
Sistemas Cul inr ios como
Patr imnios Cul tur ais
ste texto foi escrito com o propsito de trazer algumas refe-
xes que pudessem, de algum modo, orientar o trabalho das
equipes tcnicas envolvidas no Projeto de Inventrio de Bens Culturais de
Natureza Imaterial, especialmente aquelas voltadas para o tema da ali-
mentao. Duas questes me pareceram bsicas: a) como lidar com o tema
da alimentao em um projeto como o Inventrio dos Bens Culturais de
Natureza Imaterial?; b) como descrever e identifcar alimentos que possam
ser considerados signifcativos em termos sociais e culturais, e que possam
vir a ser ofcialmente reconhecidos como patrimnio cultural?
ESTUDOS SOBRE ALIMENTAO
Um primeiro passo discutir o modo como esse tema j foi tratado,
especialmente por estudiosos de folclore, antroplogos, historiadores,
gegrafos, economistas, mdicos, nutricionistas. Algumas distines b-
sicas se impem entre as perspectivas terico-metodolgicas a partir das
quais esses diversos estudos podem se estruturar.
De um lado, esto aqueles estudos que tomam a alimentao como um
dado natural, uma resposta fome, uma das necessidades bsicas. Nessa
perspectiva, trata-se de discutir a alimentao como fonte de protenas,
vitaminas, elementos indispensveis manuteno do corpo. Partem de um
pressuposto cosmolgico ocidental moderno, segundo o qual, o ser humano
defnido intrinsecamente por sua carncia, por seu sofrimento advindo
dessa carncia e que caberia, supostamente, sociedade, compensar. A vida
161 {jos r eginal do santos gonal ves}
pensada como uma busca interminvel de satisfao, o ser humano como
uma criatura imperfeita defnida pela falta e pelas necessidades (Sahlins
2001). Privilegiam a categoria alimentao e, por suposto, a fome.
De outro, esto aqueles estudos que tomam como ponto de partida
no uma suposta necessidade natural bsica, a fome, mas o paladar (ou
o gosto), como uma experincia culturalmente construda. Do ponto
de vista desses estudos, no basta dizer que a alimentao serve para
satisfazer uma necessidade bsica, a fome, mas preciso responder so-
bretudo porque determinadas sociedades ou culturas elegem determina-
dos alimentos em detrimentos de outros para sua alimentao. preciso
sobretudo qualifcar o que se entende pela categoria alimentao.
Coloca-se ento em primeiro plano o processo de classifcao social e
cultural do que seja ou no considerado comestvel (comidas proibidas e
comidas autorizadas); do que seja comida do dia-a-dia e comida de festa;
comida de pobre e de rico; de mulher e de homem; de crianas e de velhos;
de seres humanos e de deuses; de nacionais e estrangeiros; nacionais
e regionais, etc. Esses estudos privilegiam a categoria culinria e, por
suposto, o paladar.
A ALIMENTAO COMO TRAO CULTURAL
Esse ltimo ponto importante porque nos permite problematizar
os pressupostos de uma srie de estudos (sobretudo os estudos de folclo-
re) que, embora considerem a alimentao em termos culturais, tratam
esse tema em termos difusionistas, usando a categoria traos culturais.
Nessa perspectiva, cabe ao pesquisador identifcar determinados itens
fundamentais na alimentao de determinadas populaes e reconsti-
tuir os processos de difuso desses traos, e mostrar de que modo eles
caracterizariam determinadas reas culturais.
A proposta do Inventrio parece realmente inovadora, na medida
em que desloca a ateno desses itens para os processos sociais e simbli-
cos a partir dos quais eles ganham funo e signifcado. Os questionrios
e as fchas de identifcao manifestam essa perspectiva.
162 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Mas o problema que nos ocupa atualmente precisamente como ope-
racionalizar essa mudana de perspectiva. E o passo inicial nos desfazer
dessa perspectiva individualizadora, na qual as culturas aparecem como
uma espcie de somatrio de traos. Mas por que ele parece to insistente?
provvel que ela seja parte de uma ideologia, na qual sociedade brasileira
pensada em termos de uma evoluo histrica, em que os itens tradicionais
vo sendo progressivamente substitudos pelos itens modernos, embora os
primeiros possam persistir na forma de sobrevivncias. Mas a pergunta
que temos de responder por que sobrevivem?. Quais as funes e signi-
fcados que desempenham e que fazem com que no desapaream?
Essa persistncia, nos termos dessa ideologia, s seria garantida como
resultado de uma interveno protetora e preservacionista do Estado.
Embora essa interveno seja evidentemente importante, no podemos
esquecer que as chamadas culturas populares tm suas prprias razes
para permanecer ou desaparecer. No dependem inteiramente das in-
tervenes do Estado.
Nessa ideologia, a categoria perda, como j assinalei, desempenha um
papel fundamental. como se todas as culturas estivessem caminhando
inexoravelmente para a fragmentao e a perda e somente de nossa in-
terveno dependesse o seu salvamento.
necessrio problematizar essa ideologia, e considerar o problema do
ponto de vista das culturas populares. Do ponto de vista destas, as cele-
braes, linguagens, saberes, lugares, no necessariamente se perdem;
mas eles se transformam sempre.
Podemos pensar que essa ideologia da perda j foi sufcientemente
problematizada e superada. Mas na verdade ela muito presente e parece
informar obsessivamente os discursos de preservao, que costumam ser
sobretudo discursos da perda (Gonalves 2003).
ALIMENTAO COMO INSTRUMENTO DE IDENTIFICAO SOCIAL
Um passo importante considerarmos no que os diversos itens ou traos
culturais podem ser elementos identifcadores nacionais ou regionais (ou
163 {jos r eginal do santos gonal ves}
tnicos), mas, sim, como e porque esses itens podem desempenhar essa
funo identitria.
Para que possam desempenhar essa funo, eles na verdade ocupam
posies dentro de sistemas de relaes sociais e de signifcados. Eles
existem basicamente na medida em que integram esses sistemas. No
existem separadamente.
Nesse sentido, preciso qualifcarmos os usos da palavra alimenta-
o e apurarmos os signifcados que podem assumir nas relaes e nos
discursos sociais. E aqui entram algumas distines importantes, tais
como fome e paladar; alimento e comida.
Quando falamos de fome estamos nos referindo a uma experincia
humana universal: aquilo que nos coloca no plano comum fsiolgico.
Quando falamos em paladar (ou gosto), consideramos aquilo que pode nos
distinguir enquanto culturas, enquanto coletividades ou mesmo enquanto
indivduos. Entra nesse quadro aqueles alimentos que coletivamente sele-
cionamos como o que nos identifca e nos distingue em relao a outras cul-
turas, em relao a outros grupos. Nesse processo, como assinala DaMatta,
eles deixam de ser alimentos (para saciar a fome) e passam a ser comida
(para agradar o paladar e nos distinguir socialmente) (1998).
Nesse contexto, o item cultural alimentos torna-se parte inseparvel
de um sistema articulado de relaes sociais e de signifcados coletiva-
mente partilhados.
A FUNO SOCIALMENTE CONSTITUTIVA DA ALIMENTAO
Outro aspecto no menos importante a natureza dessa funo iden-
titria. Ela de natureza inconsciente. Desse modo, no escolhemos os
alimentos que vo nos representar coletivamente. No se trata de uma
escolha consciente e proposital como aquela que fazemos quando sele-
cionamos um prato num cardpio. Na verdade, no somos ns que es-
colhemos os alimentos; so os alimentos que nos escolhem. Isto porque
quando escolhemos um determinado alimento, j estamos operando den-
tro de um determinado sistema culinrio com seus princpios e regras
164 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
inconscientes. Na verdade, somos j constitudos social e culturalmente
por esse sistema.
Desse modo, a exemplo de outros itens culturais, a alimentao de-
sempenha no somente uma funo identitria, mas tambm, no plano
mais inconsciente, ela desempenha uma funo constitutiva. No basta
dizer assim que determinados alimentos so escolhidos para representar
uma identidade nacional ou regional. preciso responder por que deter-
minados alimentos especifcamente (seu modo de obteno, de prepara-
o, de consumo, as ocasies em que consumido, etc.) so coletivamente
celebrados em detrimento de outros.
Essa funo constitutiva se exerce precisamente na medida em que se
desencadeiam processos de transformao de algo que natural em algo
cultural; do que alimento em algo classifcado como comida; a transfor-
mao da fome em paladar; da comida dos outros em nossa comida.
Mas como dar conta dessa transformao em termos conceituais?
provvel que o conceito de sistema culinrio (Mahias, M.-C. 1991) nos
possa ser til.
SISTEMA CULINRIO
Primeiramente, esse conceito desloca nossa ateno para o carter
estruturado desse sistema e para a interdependncia dos seus elementos
constitutivos.
Esses elementos constitutivos incluem:
a) processos de obteno de alimentos (caa, pesca, coleta, agricul-
tura, criao, troca ou comrcio);
b) seleo de alimentos (slidos e lquidos; doces, salgados; etc.);
c) processos de preparao (cozimento, fritura, temperos, etc.);
d) saberes culinrios;
e) modos de apresentar e servir os alimentos (marcados pela forma-
lidade ou pela informalidade);
f) tcnicas corporais necessrias ao consumo de alimentos (maneiras
de mesa);
165 {jos r eginal do santos gonal ves}
g) refeies: isto , situaes sociais (cotidianas e rituais) em que se
preparam, exibem e consomem determinados alimentos;
h) hierarquia entre as refeies;
i) quem oferece e quem recebe uma refeio (cotidiana ou ritual);
j) classifcao entre comidas principais, complementares e sobre-
mesas;
k) equipamentos culinrios e como so representados (espaos, me-
sas, cadeiras, esteiras, talheres, panelas, pratos, etc.);
l) as classifcaes do paladar;
m) modos de se dispor dos restos alimentares; etc.
Essas operaes culinrias constituem um lugar de interao de tc-
nicas, relaes sociais e representaes, seja qual for a variedade do seu
contedo emprico. A seleo dos alimentos, quer seja o resultado dos
recursos comestveis disponveis ou efeito de interdies (temporrias
ou permanentes, impostas a todos ou somente a alguns), est fundada
em classifcaes ligadas a um ordenamento simblico do mundo, a uma
cosmologia que liga a pessoa, a sociedade e o universo, e situando os seres
humanos em termos de lugar e conduta (Mahias, M.-C. 1991: 186-188). Em
outras palavras, os sistemas culinrios supem sempre sociabilidades e
cosmologias especfcas.
CATEGORIAS DOS PESQUISADORES E CATEGORIAS NATIVAS
Mas o conceito de sistema culinrio apenas um instrumento. Ele
pode nos ser til no trabalho de descrio, anlise e identifcao de de-
terminados patrimnios culinrios. Mas, para isso, preciso que focali-
zemos as categorias nativas atravs das quais aquele sistema se realiza. Ou
seja: as palavras por meio das quais as pessoas descrevem e interpretam
quotidianamente aqueles elementos constitutivos dos sistemas culinrios
e suas inter-relaes.
preciso tambm focalizar as categorias usadas pelos pesquisadores
que j estudaram e estudam a alimentao no Brasil. Essas categorias no
existem isoladamente no espao da academia, mas so parte integrante
166 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
do sistema social e cultural brasileiro, defnem-se por suas relaes com
as categorias culinrias nativas.
Assim, entre os pesquisadores da alimentao no Brasil, um autor como
Josu de Castro descreve a alimentao do ponto de vista de uma geogra-
fa da fome, portanto pelo prisma moderno da nutrio (Castro 1957); j
Cmara Cascudo v o sistema pelo prisma da cultura popular, focalizando
no a fome, nem a nutrio, mas o paladar (Cascudo 1983[1967]).
J ento se pode perceber duas dimenses importantes nesse sistema:
uma delas defnida pela modernidade, pela igualdade, pelas relaes im-
pessoais, pelas regras da cincia mdica e da tecnologia, pelos valores nu-
tritivos dos alimentos, pela necessidade de saciar a fome das populaes;
e uma outra dimenso defnida pela tradio, pelas culturas populares,
pelas relaes pessoais, pelas regras do paladar.
O prprio Cascudo na Introduo ao seu Histria da alimentao no Brasil
ope a sua perspectiva etnogrfca viso nutricionista do problema:
Essa Histria, nos seus limites de exposio, oferece campanha nutricionista a
viso do problema no tempo e a extenso de sua delicadeza porque ir agir sobre um
agente milenar, condicionador, poderoso em sua sufcincia: o paladar. A batalha
das vitaminas, a esperana do equilbrio nas protenas, tero de atender as reaes
sensveis e naturais da simpatia popular pelo seu cardpio, desajustado e querido. (...)
indispensvel ter em conta o fator supremo e decisivo do paladar. Para o povo no
h argumento probante, tcnico, convincente, contra o paladar... (1983[1967]: 19).
Considerando esse ponto de vista etnogrfco, percebe-se que h distin-
es importantes no sistema do ponto de vista da temporalidade. Conside-
rando-se essa dimenso tradicional, percebe-se que, enquanto a fome e a
nutrio segue uma temporalidade histrica, acompanhando as mudanas
de ordem econmica e poltica de uma sociedade; o paladar, por sua vez,
segue uma temporalidade prpria, assumindo uma permanncia notvel.
Uma observao de Gilberto Freyre pode ilustrar esse ponto:
Numa velha receita de doce ou de bolo h uma vida, uma constncia, uma capa-
cidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas e nem capitu-
167 {jos r eginal do santos gonal ves}
lando, seno em pormenores, ante as inovaes, que faltam s receitas de outros
gneros. s receitas mdicas, por exemplo. Uma receita mdica de h um sculo
quase sempre um arcasmo. Uma receita de bolo do tempo do Padre Lopes Gama
ou de doce dos dias de Machado de Assis que se tenha tornado um bolo ou um doce
clssico como o sequilho do padre ou o doce de coco do romancista continua
atual, moderna, em dia com o paladar, se no humano, brasileiro (1997: 23).
Pesquisadores que trabalharam com comunidades tnicas assinalam
com freqncia que os gostos alimentares so os mais permanentes, os
mais difceis de sofrerem modifcaes, os mais resistentes s mudanas
histricas, quando das experincias migratrias para contextos nacionais
inteiramente diversos.
Desse modo, estudarmos o paladar, enquanto parte de um sistema
culinrio, temos acesso a dimenses de longa durao, uma vez que se
trata de processos sociais e rituais bastante resistentes s mudanas his-
tricas de ordem econmica e poltica. O sistema de identidades encontra
a provavelmente um dos seus alicerces mais estveis.
O SISTEMA CULINRIO BRASILEIRO
Se assumimos a utilidade do conceito de sistema culinrio, qual se-
ria lgica do sistema culinrio brasileiro? Ou, diante dos vrios sistemas
culinrios presentes na sociedade brasileira (em termos histricos e em
termos atuais), o que eles apresentariam em comum?
DaMatta sugere que nesse sistema (ou sistemas) fundamental a va-
lorizao ritual da mistura, em detrimento da separao e da individu-
alizao. Este seria o princpio bsico a estruturar o sistema culinrio
brasileiro. Este princpio estaria presente, segundo ele, em outras reas
do sistema social (por exemplo das relaes raciais, com a fbula das trs
raas) e caracterizaria este sistema como um todo.
Expressando o fato de que nesse sistema o valor bsico a relao,
teramos no Brasil uma cozinha relacional. Essa cozinha expressaria,
segundo ele,
168 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
...de modo privilegiado uma sociedade igualmente relacional. Isto , um sistema
onde as relaes so mais que mero resultado de aes, desejos e encontros indivi-
duais; pois aqui entre ns elas se constituem, em muitas ocasies, em verdadeiros
sujeitos das situaes, trazendo para elas o seu ponto de vista. Um ponto de vista,
claro est, que sintetiza sempre as posies de quem est engajado na prpria
relao (1988: 63-64).
No plano do que estamos chamando de sistema culinrio, especifca-
mente quanto aos modos de servir, esse princpio relacional apareceria,
segundo ele, no modo como privilegiamos no
...o prato separado (como na China e no Japo) nem a combinao de pratos se-
parados que so fortes e descontnuos (como na Frana e na Inglaterra), mas, isto
sim, a possibilidade de estabelecer, tambm pela comida, gradaes e hierarquias,
permitindo escolhas entre uma comida (ou prato) que central e dada de uma vez
por todas a comida principal e seus coadjuvantes ou ingredientes perifricos,
que servem para juntar e misturar(1988: 63-64).
Esse mesmo princpio apareceria tambm em outros aspectos do sis-
tema culinrio: na preferncia pela comida cozida em detrimento dos
assados; na valorizao de comidas situadas entre o lquido e o slido; a
conseqente valorizao de ingredientes perifricos (farinhas, molhos)
que permitiriam operar essa passagem entre o slido e o lquido; na valori-
zao de refeies coletivas que celebram as relaes pessoais de amizade;
na valorizao da mesa comum e farta; etc.
Evidentemente, essas hipteses so valiosas enquanto instrumentos,
cuja rentabilidade terica dever ser avaliada a partir da pesquisa etno-
grfca e histrica. Em outras palavras, cabe s pesquisas a serem reali-
zadas demonstrar ou no o seu valor analtico. Afnal, existem diversos
sistemas culinrios no Brasil, variveis em termos histricos, e tambm
em termos locais e regionais. Eles precisam ser descritos e analisados para
se verifcar a preciso dessas hipteses. No entanto, independentemente
dos seus limites analticos, elas deixam claro a necessidade de proble-
matizar uma percepo moderna, individualizadora e etnocntrica da
169 {jos r eginal do santos gonal ves}
alimentao, trazendo para o primeiro plano o papel social e simblico
das relaes na vida social e cultural brasileira.
CONSEQNCIAS
Que conseqncias podemos tirar dessas refexes para nosso traba-
lho no Inventrio?
Primeiramente, penso que devemos ser cautelosos com as categorias
que encontramos j dadas na vida social e cultural. preciso trabalh-las,
ao invs de us-las tal como elas se oferecem.
Desse modo, no basta identifcar, por exemplo, a mandioca e a farinha
enquanto traos culturais, enquanto itens individualizados da alimen-
tao brasileira. Isto seria naturalizar uma determinada percepo ou
leitura da sociedade brasileira. Para que se possa perceber e entender sua
funes e signifcados preciso consider-las como parte de um sistema
de relao sociais e como parte de um sistema culinrio, o qual pe em
foco (ou ritualiza) os valores mais caros a essa sociedade.
preciso considerar, por exemplo, mandioca e a farinha como uma de-
terminada categoria de alimentos, cujo signifcado resulta de sua posio
dentro do sistema culinrio brasileiro. Mais especifcamente, preciso
considerar a natureza das relaes entre comidas principais e elementos
complementares.
Fazendo uso de algumas categorias de DaMatta, trata-se da distino
entre comida principal e coadjuvantes ou ingredientes perifricos (en-
tre eles a farinha de mandioca) e que permitem misturar. Diz ele que,
em decorrncia do princpio relacional que estrutura o sistema culinrio
brasileiro, ...temos sempre que usar a farinha de mandioca em sua forma
simples ou como farofa em todas as refeies. De fato, a farinha serve como
cimento a ligar todos os pratos e todas as comidas (1988: 63).
Podemos identifcar assim uma determinada categoria de alimentos
em funo de sua posio no sistema culinrio. Os ingredientes perif-
ricos teriam, nesse sistema relacional, o papel fundamental de ligar e
misturar alimentos diferentes.
170 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Nessa mesma categoria, sugiro, estaria o acar e a produo de doces.
Conforme assinalou Gilberto Freyre, ao elaborar uma sociologia do doce
no Brasil, a preferncia nacional pelos doces traduzem o que ele chama de
interpenetrao de etnias, interpenetrao de culturas e de classes.
Diz ele:
Como a msica, e a prpria arquitetura e at o futebol, o doce mais caracteristicamente
brasileiro tende a ser, tambm ele, expresso, cada dia menos, de divises de classes,
raas e de culturas que por algum tempo se projetaram sobre os comeos da cultura
brasileira e, cada vez mais, do processo de interpenetrao de culturas e at de classes
que vm crescentemente caracterizando o desenvolvimento do Brasil (1997:26).
E ainda:
Os doces-sinhs e os doces de rua tendem, tambm eles, a sintetizar-se no Brasil,
em doces que, tendo, uns, origem aristocrtica, outros, se no origem, conotao
plebia, so essencialmente brasileiros, sendo hoje j elegante, no Brasil, comer,
como sobremesa, cocada e at rapadura (1997:26).
Outro item importante da alimentao no Brasil e que parece ocupar
uma posio semelhante farinha e aos doces a cachaa, sobre a qual
disse Cmara Cascudo:
Reaparece disfarada em gelo e sumo de frutas, nas batidas aperitivais, no gole
rpido antecedor de feijoadas empanturrantes e paneladas apocalpticas. Partici-
pao sem predomnio. uma menor, tutelada, garantindo o ingresso pelo prestgio
acompanhante. (1986 [1968]:55).
O que aparece enfatizado no estudo de Cascudo sobre a cachaa o
seu papel estruturalmente complementar, desempenhando sempre um
papel social e simbolicamente mediador.
Essa idia da complementaridade se faz presente tambm em sua
Histria da alimentao no Brasil, onde Cascudo, repercutindo a fbula das
trs raas, defende a tese da interdependncia entre a cozinha indgena,
a cozinha africana e a cozinha portuguesa no processo de formao de
uma cozinha brasileira.
171 {jos r eginal do santos gonal ves}
Esta , de certo modo, tambm a tese trazida por Peter Fry em seu
estudo comparativo sobre feijoada no Brasil e soul food nos EEUU. En-
quanto nos EEUU os mesmo prato servido no Brasil serve a propsitos
de identifcao tnica e representa os negros; no Brasil, a feijoada tor-
nou-se smbolo nacional, integrando simbolicamente as trs raas (no
s o prato propriamente dito, quanto as formas de preparar, de servir
e de consumir a feijoada, que caracteriza uma situao social especial,
marcada pelo encontro).
Em resumo, o que estou sugerindo que, seja l qual for o aspecto do
sistema culinrio brasileiro para o qual voltemos nossa ateno, perce-
beremos provavelmente esse princpio relacional a situ-lo num conjunto
de relaes de interdependncia. Desse modo, ao invs de focalizarmos
itens alimentares ou culinrios individualizadamente, precisamos, se
bem entendo a proposta do inventrio, registrar formas de sociabilidade
e formas de pensamento (sistemas de signifcados) dentro das quais esses
itens ganham sentido.
Mary Douglas criou a noo de food events (eventos alimentares)
para surpreender os usos sociais e simblicos dos alimentos. Um food
event entendido como aquela ocasio em que se consome algum ali-
mento, sem defnio a priori de que constitua ou no uma refeio. Uma
refeio, do seu ponto de vista, seria aquele modo de consumo de alimen-
tos que seria parte de uma situao fortemente estruturada em oposio
a situaes no estruturadas (Douglas 1975) .
No caso brasileiro, essa oposio no aparece em termos binrios
(situao estruturada versus no estruturada; ou refeio versus no-
refeio), mas em termos graduais, desdobrando-se num continuum que
vai desde situaes altamente formais (como um banquete), passando por
situaes que conjugam formalidade e informalidade (como num almoo
familiar) at situaes claramente informais (como um jantar ou almoo
entre amigos). possvel que essa gradao se processe entre os extremos
de relaes sociais altamente impessoais e formais at o extremo oposto
de relaes pessoais e informais.
172 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Sociabilidades e cosmologias culinrias talvez seja uma categoria
til para orientar o trabalho de identifcao e registro do inventrio
relativo a alimentao no Brasil. Elas dirigiriam nossa ateno para a
alimentao enquanto fato social total (na concepo de Marcel Mauss),
iluminando o conjunto das relaes sociais e simblicas dentro das quais
a alimentao ganha sentido.
A categoria refeies, sua qualifcao e sua distribuio entre os
opostos de pessoalidade e impessoalidade, informalidade e formalidade,
cotidiano e ritual, profano e sagrado, igualdade e hierarquia, estrutura
e anti-estrutura (Victor Turner), pode ter um papel importante nesse
trabalho de identifcao e registro.
PESQUISADORES E IDENTIFICADORES
Enquanto integrantes desse Projeto, fazemos simultaneamente o pa-
pel de pesquisadores e de agentes culturais autenticadores de determina-
dos bens que viro a ser classifcados como patrimnio cultural. H uma
tenso, uma ambigidade entre esses papis. No h como pular sobre
a prpria sombra. Quem identifca? O qu? Como? E em funo de quais
argumentos? Como determinados bens culturais vm a ser identifcados
e autenticados como patrimnio cultural?
O ponto central que quero trazer aqui que esse processo no in-
teiramente consciente; e o papel de identifcadores hierarquicamente
subordinado ao papel de pesquisadores. Vou tentar explicar por que.
O reconhecimento por parte do Estado, por parte do IPHAN (o regis-
tro do bem em um dos Livros do Patrimnio Cultural) parte integrante
de uma extensa cadeia de agncias de identifcao e legitimao: o
turismo, agncias de viagem, os meios de comunicao, o comrcio, a
academia, diversas agncias do Estado em nvel municipal, estadual,
federal, etc.
Em termos locais necessrio levar-se em conta o sistema de patrona-
gem (por exemplo: a freqncia de pessoas importantes em determinados
restaurantes, apadrinhando-os). Trata-se de estratgias de autenticao
173 {jos r eginal do santos gonal ves}
de formas locais ou regionais de alimentao e que podem vir a ser, se
que j no so, reconhecidas enquanto patrimnios nacionais.
Como se d esse processo identifcao? Como um prato como feijoa-
da, originalmente associado s classes populares vem a ser reconhecido
como prato nacional? Por que e como determinados pratos vieram efe-
tivamente a ser aceitos enquanto nacionais?
O que importante sublinhar aqui, de acordo com o que dissemos a
respeito da funo identitria da alimentao, que, na verdade, no con-
trolamos de modo consciente e proposital a escolha desses smbolos na-
cionais ou regionais. Conforme j sublinhamos, na medida em que se trata
de um processo social e cultural de natureza inconsciente, no somos ns
que escolhemos os alimentos; so os alimentos que nos escolhem.
Com isto quero dizer que uma tarefa difcil, mas muito necessria, to-
marmos conscincia de nossas perspectivas etnocntricas e autoritrias
em relao s chamadas culturas populares; importante no tomarmos
como um dado que elas estariam fadadas a um processo de perda; nem
nos considerarmos os salvadores dessas culturas.
Nesse processo de identifcao de determinado prato como nacio-
nal est presente a tipifcao, ou seja a construo desse prato de tal
modo genrico que possa ser usado em qualquer lugar. Ele destitudo de
suas impurezas originais e locais. Ele nobilitado. Ou passa a ocupar tam-
bm um espao nobilitado, alm dos espaos originalmente plebeus.
Embora esse processo tenha uma dimenso poltica e ideolgica, por-
tanto consciente e proposital, este no o aspecto decisivo do processo.
Pois no basta dizer que a feijoada um prato nacional, mas resta explicar
por que a feijoada exatamente, e no o pur de batatas, nem a carne de
r, o quiabo ou quaisquer outros pratos.
Em outras palavras: esses pratos nacionais no so apenas emblemas
da nacionalidade. Na medida em que fazem parte de um sistema social e
de um sistema culinrio, eles no apenas identifcam seus consumidores;
eles os constituem em termos sociais e simblicos.
174 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
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Originalmente publicado em Estudos Histricos:
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A Fome e o Pal adar : a
antr opol ogia nativa de
Luis da Cmar a Cascudo
UMA ETNOGRAFIA NATIVA
1
eu propsito discutir algumas categorias culi-
nrias no contexto da cultura popular brasileira,
tal como so representadas nos estudos do etngrafo e folclorista Luis da
Cmara Cascudo. A partir de uma leitura de seus textos, trago, explora-
toriamente, alguns problemas e hipteses eventualmente teis para um
entendimento dos sistemas culinrios no Brasil.
Entre os estudiosos do folclore no Brasil, Luis da Cmara Cascudo cer-
tamente o mais conhecido e o mais popular. Ao longo de sua vida, publicou
numerosos livros e artigos sobre contos populares, provrbios, festas po-
pulares, religies, medicinas populares, objetos, gestos, comidas, bebidas,
entre outros temas. Ele tambm autor do Dicionrio do Folclore Brasileiro
(Cascudo 1962 [1954))
2
, uma utilssima obra extensivamente consultada
por qualquer um que esteja envolvido com o estudo da cultura popular
no Brasil. De certo modo, esse Dicionrio, publicado pela primeira vez em
1954, um riqussimo catlogo no qual podemos encontrar das mais im-
portantes s mais obscuras categorias da cultura popular brasileira.
Cascudo nasceu em 1898, na cidade de Natal, capital do Rio Grande do
Norte, e morreu nessa mesma cidade no ano de 1986. Nunca deixou essa
cidade, tendo incorporado essa circunstncia biogrfca como um cone
de sua identidade existencial e intelectual. Seus bigrafos tm sublinhado
o fato de que Cascudo sempre defniu-se a si mesmo como um provincia-
1 Este ensaio foi
originalmente
apresentado na 99a
Reunio da American
Anthropological
Association em San
Francisco, California,
entre 15 e 19 de
novembro de 2000,
na sesso Sensuous
regimes:the politics of
perception.
2 Sobre o Dicionrio
do Folclore Brasileiro
ver o verbete produzi-
do por Martha Abreu
em (Silva 2003).
177 {jos r eginal do santos gonal ves}
no (Costa 1969). Desde o incio dos anos noventa, a obra de Cascudo vem
se tornando o foco de um renovado interesse por parte dos intelectuais
e dos meios de comunicao
3
.
Seus escritos etnogrfcos, em sua maioria escritos ainda na primeira
metade do sculo XX, de certa maneira antecipam os estudos antropo-
lgicos que foresceram no Brasil nos anos setenta e cujo foco era a vida
cotidiana
4
. Ao tempo em que escrevia seus estudos etnogrfcos sobre
comidas, bebidas, gestos, jangada, redes-de-dormir, e outros aspectos
da vida cotidiana brasileira, tais temas no eram considerados objetos
relevantes para cientistas sociais srios e responsveis. Esses profssio-
nais estavam mais preocupados com temas tais como desenvolvimento
econmico, modernizao, polticas de Estado, partidos polticos, e no
com aspectos vulgares da vida cotidiana (Gonalves, 1999).
No por acaso, Cascudo jamais veio a ser reconhecido como um cien-
tista social, no sentido estrito desse termo. Ainda que um folclorista
nacional e internacionalmente reconhecido, sempre ocupou uma posio
marginal como no sistema acadmico brasileiro. At certo ponto, sua
posio pessoal expressa a marginalidade a que foram submetidos os
estudos de folclore na vida intelectual brasileira (Vilhena e Cavalcanti
1992; Cavalcanti 1992; Vilhena 1997).
Mas os escritos seus revelam alguns traos que os distinguem daque-
les produzidos por outros folcloristas brasileiros. Muitas vezes, Cascudo
inicia suas frases afrmando: Ns, o povo, acreditamos que.... Assim, ele
explicitamente assume, como autor, um ponto de vista a partir do qual ele
escreve, no sobre, mas a partir da prpria cultura popular. Assume
desse modo as categorias dessa cultura, e particularmente da cultura
popular do Nordeste. Por sua vez, essa cultura identifcada em seus
escritos como uma espcie de sobrevivncia (ainda que bastante viva
na atualidade) herdada do Brasil tradicional, cuja existncia histrica
se desenrola do sculo XVI ao sculo XIX.
Em seus escritos etnogrfcos, possvel reconhecer no o clssico
Eu estive l dos antroplogos sociais ingleses e dos antroplogos cultu-
3 Um exemplo re-
cente o Dicionrio
Crtico Cmara Cascu-
do, utilssima fonte de
consultas sobre a obra
desse autor, organi-
zado por Marcos Silva
(2003).
4 A obra importante
e influente de Roberto
DaMatta , de certo
modo, emblemtica
da antropologia
brasileira nos anos 70
(DaMatta 1979).
178 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
rais norte-americanos, mas, alternativamente, Eu sempre estive aqui...,
prprio do etngrafo nativo (Cliford 1996). Como disse h pouco, Cascudo
sempre se defniu a si mesmo, existencial e intelectualmente, como um
provinciano, em oposio ao universo social e cultural da metrpole.
Ele transforma assim essa circunstncia biogrfca e geogrfca em uma
perspectiva intelectual e existencial que defne o seu perfl como autor.
At certo ponto, possvel dizer que Cascudo v o Brasil do ponto de vista
da provncia (Gonalves, 1999).
De um ponto de vista etnogrfco, nesse momento que seus escritos
tornam-se mais interessantes. Quando ele escreve sobre cultura popular,
tomando-a como um distante objeto de pesquisa, quando ele pensa como
um estudioso de folclore, ele tende a construir suas interpretaes em
termos difusionistas, buscando as origens e reconstituindo os processos
de difuso de determinados itens culturais no tempo e no espao; ou,
eventualmente, pensa em termos funcionalistas, procurando encontrar
as funes que podem desempenhar determinados itens culturais no
contexto das relaes sociais cotidianas. Em resumo, quando ele pensa
teoricamente, seus escritos parecem historicamente datados.
Mas, na maioria das vezes, Cascudo escreve como um nativo. Ele pensa
menos como um engenheiro e mais como um bricoleur. Suas refexes
so sistematicamente organizadas por categorias nativas e seus escritos
seriam assim melhor descritos como uma espcie de antropologia nativa.
Na medida em que seus estudos focalizam extensivamente tpicos asso-
ciados a experincias corporais (tais como comida, bebidas, gestos, objetos
materiais, etc.), revelam um rico ponto de vista nativo sobre concepes
do corpo humano e dos sentidos na cultura popular brasileira.
Uma vez que sugiro interpretar Cascudo como um escritor que cons-
tri retoricamente sua autoria como um etngrafo nativo (Gonalves
1999)
5
, expressando idias e valores de sua prpria sociedade e cultura,
qual a relevncia de suas categorias de pensamento para o entendimen-
to dessa sociedade e cultura? O que podemos aprender sobre a cultura
brasileira em seus escritos? Mais especifcamente, o que podemos apren-
5 Esse ponto , de
certo modo, assina-
lado por Margarida
de Souza Neves em
seu excelente verbe-
te sobre Tradio:
cincia do povo
(Neves 2003)
179 {jos r eginal do santos gonal ves}
der, por seu intermdio, sobre prticas e representaes populares sobre
alimentao no Brasil?
ALIMENTAO E NATUREZA HUMANA
O tpico alimentao se faz amplamente presente nos escritos etno-
grfcos de Cascudo. Comida e bebida aparecem em muitos de seus estudos
sobre narrativas, provrbios, festas populares, religies, etc. Mas ele tam-
bm escreveu trabalhos especfcos sobre o tema. Um deles a Histria da
alimentao no Brasil, dois volumes publicados pela primeira vez em 1967
(Cascudo 1983 [1963]). Em 1968, publicou um breve mas til livro sobre
a histria e os signifcados da cachaa (Preldio cachaa (Cascudo 1986
[1968]). Em 1977, publica Antologia da alimentao no Brasil, no qual rene um
conjunto de textos literrios, documentos histricos, artigos de jornais
antigos, e textos de estudiosos do folclore sobre comidas e bebidas. Ao
longo de sua carreira, publicou numerosos artigos sobre diversas formas
de classifcao, preparo e consumo de comidas e bebidas no Brasil.
Na maioria de seus estudos, no entanto, praticamente impossvel
isolar essas formas de preparao e consumo de comidas e bebidas em
relao a outros tpicos. impossvel separ-las do sistema de rela-
es sociais e simblicas, das festas, religies populares, medicinas
populares, provrbios, narrativas, relaes mgico-religiosas com os
santos, com os mortos, etc. Nesse sentido, categorias como nutrio e
alimentao, comida e refeio, fome e paladar, cru e cozi-
do, entre outras, integram de fato um vasto sistema de categorias que
estruturam seus escritos etnogrfcos e sua interpretao da cultura
popular brasileira.
No incio de sua Histria da Alimentao no Brasil (Cascudo 1983 [1963)), ele
ope sua prpria perspectiva intelectual quela outra, expressa por Josu de
Castro (1908-1973), autor de A geografa da fome (Castro 2002 [1946]) e outros
livros e artigos sobre a experincia humana da fome. Se Castro escreve do
ponto de vista da fome, ele, Cascudo, afrma que escreve seus livros sobre
comidas e bebidas populares, do ponto de vista do paladar
6
.
6 Afirma Cascudo
em sua Histria da
Alimentao no Brasil:
Andei uma tempora-
da tentando Josu de
Castro, em conversa e
carta, para um volume
comum e bilnge. Ele
no idioma da nutrio
e eu na fala etnogrfi-
ca. O Anjo da Guarda
de Josu afastou-o
da tentao diabli-
ca. No daria certo.
Josu pesquisava a
fome e eu a comida.
Interessavam-lhe os
carecentes e eu os
alimentados, motivos
que hurlaient de se
trouver ensemble.
Na sua Geografia da
Fome, (Rio de Janeiro,
1946), no prefcio,
Josu alude ao projeto
de uma histria da
cozinha brasileira, de
quem me libertei tam-
bm (1983, 16).
180 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Do ponto de vista de Castro, um sistema de alimentao funciona para
alimentar as pessoas, para satisfazer s necessidades biolgicas de deter-
minada populao. Argumentando nos termos de uma concepo es-
tratigrfca de cultura, fundada em relaes funcionais entre os nveis
biolgico, psicolgico, social e cultural (Geertz 1973, 37), Castro entende
a fome como uma necessidade biolgica a ser satisfeita de modo mais ou
menos bem sucedido pelas instituies sociais, econmicas e polticas.
Sociedade e cultura so assim pensadas como dimenses a serem aciona-
das para resolver o problema da fome. O paladar (em oposio fome)
assim pensado como algo suplementar e defnido aleatoriamente. Mas,
do ponto de vista de Cascudo, o paladar determinado por padres,
por regras e proibies culturais. Mais que isso, o paladar, segundo ele,
um elemento poderoso e permanente na delimitao das preferncias
alimentares humanas. Ele estaria profundamente enraizado em normas
culturais. Diz Cascudo:
A escolha de nossos alimentos dirios est intimamente ligada a um complexo
cultural infexvel. O nosso menu est sujeito a fronteiras intransponveis, riscadas
pelo costume de milnios (Cascudo 1983, 26-27).
Assim, no pode ser facilmente modifcado por polticas pblicas fun-
dadas no argumento mdico de que determinado alimento ofereceria
maior valor nutritivo. Para Cascudo, indispensvel ter em conta o fator
supremo e decisivo do paladar. Para o povo, no h argumento probante,
tcnico, convincente, contra o paladar... (Cascudo 1983, 19). Modifcaes
do paladar, argumenta, dependero da mesma fonte de sua formao: o
tempo.
Quaisquer sociedades ou culturas humanas vo elaborar alguma for-
ma de distino entre fome e paladar. importante, no entanto, foca-
lizar a natureza da relao entre essas categorias. No caso dos escritos
de Cascudo, e particularmente das categorias neles expressas, o pala-
dar desempenha uma funo dominante; enquanto a fome, uma funo
subordinada. Em tal perspectiva, as regras culturais e as trocas sociais
181 {jos r eginal do santos gonal ves}
defnem a natureza humana, no as necessidades biolgicas. Um sistema
alimentar funciona no exclusivamente para satisfazer essas necessida-
des, mas para expressar um paladar cultural e historicamente forma-
do. Enquanto uma necessidade natural, a fome vem a ser satisfeita por
qualquer tipo de alimento; assim como a sede satisfeita pela gua. Mas
o paladar est associado a distintas modalidades de comidas e bebidas;
mais que isso, est associado a formas especfcas e particulares de prepa-
rao, apresentao e consumo. Por intermdio do paladar, os indivduos
e grupos distinguem-se, opem-se a outros indivduos e grupos. Por essa
razo, o paladar situa-se no centro mesmo das identidades individuais
e coletivas.
Nesse sentido, tanto o paladar quanto a fome podem ser pensa-
das como categorias mutuamente opostas, como princpios estruturais
por meio dos quais relaes sociais e conceitos de natureza humana so
culturalmente organizados. Se tomamos como ponto de partida uma ou
outra dessas categorias, chegamos a perspectivas diferentes quanto ao
que seja sociedade e cultura e, basicamente, quanto ao que seja a nature-
za humana. Se nossa refexo estiver baseada na fome enquanto uma
necessidade natural (como faz, por exemplo, Josu de Castro), a sociedade
ser concebida como uma coleo de indivduos, e a cultura como um
conjunto de instrumentos por meio dos quais a natureza humana, su-
postamente fraca e dependente, poder e dever ser compensada. Nessa
perspectiva, a natureza humana tende a ser concebida em termos bio-
lgicos. Vale lembrar, nesse momento, o que antroplogos como Mary
Douglas tm assinalado: a fome no falta de comida, mas ausncia de
relaes sociais e culturais (Douglas, 1975; 1982).
Mas se tomamos o paladar como uma norma cultural, ento a socie-
dade humana vem a ser entendida como um domnio simblico constitu-
do por relaes e diferenas. E este o sentido da perspectiva de Cascudo
sobre a alimentao. Em seus escritos, a alimentao existe na cultura e
na histria, no fundamentalmente na natureza. Desse ponto de vista, a
natureza humana concebida como cultural e historicamente formada.
182 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Por meio dos alimentos, indivduos e coletividades fazem conexes e es-
tabelecem distines de natureza social e cultural. A alimentao, assim,
como j foi sugerido, no apenas boa para comer.
A categoria paladar (em oposio explicita e implcita fome)
atravessa o conjunto das refexes de Cascudo sobre comidas e bebidas.
Mais do que uma perspectiva terica construda em termos estritamente
acadmicos, a concepo de Cascudo expressa uma viso corrente sobre o
tema no cotidiano da sociedade brasileira. Em outras palavras, assume-se
no cotidiano que os alimentos funcionam basicamente para expressar e
celebrar diferentes espcies de relaes sociais e culturais. Eles desem-
penham diversas funes, mas no exclusiva ou principalmente aquela
de alimentar ou satisfazer a fome enquanto necessidade natural.
ALIMENTO E COMIDA; COMIDA E REFEIO
H nos escritos de Cascudo, e na cultura popular brasileira, uma dis-
tino entre alimento e comida
7
. O alimento est associado expe-
rincia fsiolgica da subsistncia e da fome. J em relao comida, diz
Cascudo em seu Dicionrio do Folclore Brasileiro: Transcende do simples
ato de alimentar-se a signifcao da comida (1962 [1954], 228). A comida
assim social e culturalmente signifcativa e conseqentemente distinta
da experincia estritamente fsiolgica de alimentar-se. A comida tem
a ver com apetite e paladar. No caso do alimento, o apetite substitudo
pela fome. A comida est assim associada a um corpo que culturalmen-
te formado, e a um paladar igualmente formado; mas o alimento tem a ver
com um corpo concebido em termos estritamente fsiolgicos, defnido
em termos de suas necessidades biolgicas elementares. Se a comida
est associada a um ser humano concebido em termos de paladar, e
portanto escolha cultural; o alimento, por sua vez, est associado a
uma concepo do ser humano entendido como um indivduo infeliz,
fraco, faminto e dependente da sociedade para compensar essa intrn-
seca fraqueza e infelicidade (sobre essa idia, ver o importante ensaio de
Marshall Sahlins 1996).
7 Para uma interes-
sante elaborao
dessa distino, ver
DaMatta (1894).
183 {jos r eginal do santos gonal ves}
Mas h ainda uma outra oposio importante nos escritos de Cascudo.
aquela defnida entre o ato social e cultural de comer; e o ato igualmente
social e cultural de participar de uma refeio. A comida, tal como en-
tendida por Cascudo, pode estar presente em diferentes situaes sociais
e culturais. A refeio entendida como uma situao social e cultural
particular e fortemente ritualizada. Ela pressupe, obrigatoriamente,
um modo especfco de preparar, de servir e de consumir. Participar de
uma refeio no simplesmente comer. A diferena entre refeio e
comer est baseada em um processo de transformao de uma situao
informal e casual em uma situao mais estruturada em termos sociais
e culturais.
8
Na verdade, podemos perceber essa oposio em diferentes sociedades
ou culturas. So categorias universais (assim como o paladar e a fome,
o cru e o cozido). Mas no contexto da obra de Cascudo (assim como na
cultura popular brasileira, tal como descrita nessa obra), esses termos
adquirem um conjunto de signifcados particulares. Primeiramente, in-
tegram categorias mais amplas, de natureza social, histrica, fsiolgica,
geogrfca, cosmolgica. possvel dizer que Cascudo, implicitamente,
pensa a comida e a refeio como fatos sociais totais, no sentido
atribudo a esse termo por Marcel Mauss (1973 [1950]. Conforme j assi-
nalei, impossvel, no contexto da obra de Cascudo, isolar esses termos
de outras oposies presentes em seu pensamento, tais como tradio
/modernidade, provncia / metrpole, cultura popular / cultura erudita,
espontaneidade / auto-controle, corpo / alma, vivos /mortos, passado
/ presente, divindades / seres humanos, animais / seres humanos, etc.
Eles devem ser entendidos no contexto dessas oposies. Do ponto de
vista de Cascudo, esse parece ser o caso para o que ele entende como
Brasil tradicional (a colnia e o imprio, ou o Brasil Velho, segundo uma
expresso sua), ou para as prticas e representaes contemporneas da
cultura popular.
Para Cascudo, uma refeio implica necessariamente uma forma
de comportamento organizado fundamentalmente a partir de um ritmo
8 Para uma elabora-
o da oposio entre
situaes formais e
informais em relao
alimentao, ver
Douglas (1975).
184 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
lento. Esse ritmo usualmente associado autoridade social e cultural,
em oposio a posies subordinadas (Cascudo 1987 [1973] 177-178). Uma
refeio implica um processo longo e complexo de preparao, apresen-
tao e consumo de alimentos e bebidas, marcando assim sua distino
do simples ato de alimentar-se. Uma refeio , desse modo, claramente
oposta quela espcie de comida que as pessoas podem consumir de modo
casual na vida cotidiana. Uma verdadeira refeio, segundo ele, nunca
realizada de modo apressado. Ele assinala tambm que uma refeio, no
contexto tradicional brasileiro, deve ser realizada em silncio, as pessoas
fazendo um uso mnimo de palavras. Historicamente, nos termos de Cas-
cudo, as refeies so permanentes, antigas, profundamente enraizadas
em tempos ancestrais, seguindo os ritmos da tradio assim como os
ritmos csmicos e naturais. O ato de simplesmente de comer no tem,
por sua vez, esse carter antigo e permanente, sendo casual e sujeito s
transformaes rpidas ditadas pela moda. As refeies so necessaria-
mente coletivas; so parte integrante de uma totalidade csmica, natural,
social e histrica. Comer tende por sua vez a ser um ato fragmentrio, ca-
sual, individualizado e eventualmente solitrio. As refeies estabelecem
conexes entre os seres humanos, entre estes e divindades, entre vivos e
mortos, etc.; comer, por outro lado, conecta os seres humanos com suas
necessidades individuais, passageiras e eventuais. Uma refeio envolve
relaes no contexto domstico, mas envolve tambm situaes altamen-
te ritualizadas cujos parceiros so criaturas distantes, como divindades,
santos, mortos (Cascudo 1983 [1963])
9
.
Cascudo distingue diferentes espcies de refeies na sociedade e na
cultura brasileira. Ele focaliza a distino entre formas tradicionais e
modernas de refeies. Segundo ele, at o fm do sculo XIX e princpio do
sculo XX (portanto no que ele chama de Brasil Velho), a seqncia das
refeies dirias era organizada do seguinte modo: a primeira refeio era
o almoo, por volta de sete horas da manh; a segunda era o jantar, por
volta de meio dia; em seguida, a merenda, uma curta refeio em torno
de trs horas da tarde; e fnalmente a ceia, por volta de seis horas. Ainda
9 Essa distino
pode, de certo modo,
ser aproximada da-
quela construda por
Walter Benjamin entre
o contexto tradicional
do narrador e o
contexto moderno,
no qual se verifica a
decadncia desse per-
sonagem (Benjamin,
1986).
185 {jos r eginal do santos gonal ves}
segundo Cascudo, a partir do sculo XX, e no Brasil contemporneo (Hist-
ria da Alimentao no Brasil originalmente publicado em 1963)
10
, teramos
a seguinte seqncia: caf da manh, almoo, lanche e fnalmente
o jantar. Essas formas de organizao da seqncia das refeies di-
rias fazem sistema com tcnicas culinrias, certas espcies de comidas e
bebidas, e modos especfcos de apresentao e consumo (Cascudo 1982
[1963]). Segundo o ponto de vista de Cascudo, no somente as refeies,
mas tambm todos os demais componentes do sistema culinrio vieram a
modifcar-se sob a gide da oposio cultural e histrica entre um Brasil
tradicional e um Brasil moderno.
SISTEMAS CULINRIOS BRASILEIROS
Enquanto um conjunto de prticas e representaes, os sistemas
culinrios
11
esto intimamente integrados a determinadas cosmologias,
unindo a pessoa, a sociedade e o universo, e identifcando a posio e o
comportamento do ser humano nessa totalidade. As preferncias alimen-
tares, os modos de cozinhar, as formas de apresentao dos alimentos,
as maneiras de mesa, as categorias de paladar ou gosto, todos esses ele-
mentos inter-relacionados compem um cdigo cultural por meio do qual
mediaes sociais e simblicas so realizadas entre os seres humanos e o
universo. Como estgios em um longo e complexo processo, esse sistema
opera uma importante transformao simblica da natureza cultura,
da fome ao paladar, do alimento comida, e da comida s refeies, assim
como opera mediaes no menos importantes entre distintos domnios
sociais e culturais
12
.
Se os escritos de Cascudo sobre comidas e bebidas forem lidos sob a
tica defnida pelo conceito de sistema culinrio (Mahias 1991), perce-
bemos que as formas descritas de aquisio, preparao, apresentao e
consumo de comidas e bebidas so termos sistematicamente inter-relacio-
nados, ainda que no explicitamente. Na verdade, Cascudo nos traz uma
percepo nativa daquilo que poderamos chamar de sistema culinrio
popular brasileiro. Baseado em pesquisas bibliogrfcas e de arquivos e em
10 Escrito ini-
cialmente como
encomenda para a
Sociedade de estudos
Histricos Pedro II,
esse livro foi publica-
do pela primeira vez
em maro de 1963.
Ver Pinto e Silva
(2003, 99).
11 Para uma til
elaborao do con-
ceito de sistema
culinrio ver o
verbete de Mahias,
1991.M-C. Cuisine,
In: Le dictionaire de
lethnologie et de
lanthropologie. Pa-
ris: PUF, 1991.
12 Uma importante
fonte de insights sobre
cdigos culinrios a
obra de Claude Lvi-
Strauss sobre mito-
logia amerndia. Ver
Lvi -Strauss (1964;
1966; 1968). Mas a li-
teratura recente sobre
o tema vasta. Entre
os estudos na rea
de antropologia e de
histria, algumas refe-
rncias teis so: Jack
Goody (1982; 1998);
Mary Douglas (1975;
1982); C. Counihan;
P. Van Esterik (1997);
S. Mennell (1985); M.
Montanari (1996); S.
Mintz (1985); J-L Flan-
drin e M. Montanari
(1996); J-L Flandrin e
J. Cobbi (1999). Um
nmero especial da
r evi st a Hor i zontes
Antropolgicos (no. 4,
1996) foi dedicado ao
tema alimentao.
186 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
sua memria e experincia biogrfca, Cascudo descreve as preferncias
brasileiras tradicionais por determinadas comidas e bebidas, assim como
os meios especfcos de as preparar, servir e consumir. A perspectiva de
Cascudo historicamente orientada e seu foco descritivo est voltado
para um Brasil tradicional, que teria existido em sua inteireza at fns
do sculo XIX. Um Brasil do passado (o Brasil Velho), mas ainda assim
existindo na forma de sobrevivncias
13
ainda ativas em diversas mo-
dalidades da chamada cultura popular contempornea no mundo rural e
urbano. Suas fontes so textos de viajantes dos sculos XVI, XVII, XVIII e
XIX; textos literrios nacionais e estrangeiros de perodos histricos di-
versos; e especialmente sua experincia biogrfca como membro da elite
nordestina brasileira, na condio de um etngrafo nativo. Enquanto um
etngrafo, Cascudo costumava entrevistar ex-escravos, ex-proprietrios
de escravos, cozinheiras, seus prprios empregados e empregadas doms-
ticas, membros de sua famlia (especialmente as mulheres), cozinheiros
de restaurantes, pescadores e toda sorte de pessoas envolvidas direta ou
indiretamente com atividades culinrias (Cascudo 1983 [1963]).
Num estilo no muito distante de James Frazer, Cascudo rene um
conjunto de dados histricos e etnogrfcos relativos ao Brasil e a outras
partes do mundo. Ali vemos um vasto acmulo de informaes sobre di-
ferentes elementos ou aspectos do sistema culinrio brasileiro: formas de
escolha, aquisio, preparao, apresentao e consumo de determinados
alimentos e bebidas, maneiras de mesa, categorias de paladar, modos de
lidar com os restos de comida, etc. No nvel mais consciente e explcito
da organizao de seu pensamento, ele ordena esses dados em uma se-
qncia histrica que se estende do Brasil tradicional ao Brasil que lhe
contemporneo, do sculo XVI ao sculo XX. No entanto, meu ponto que
os escritos etnogrfcos de Cascudo sobre comidas e bebidas tendem a se
confgurar de modo muito mais rentvel, do ponto de vista descritivo e
analtico, se os lemos, no em termos dessa seqncia evolucionria, mas
de um modo sistemtico e sincrnico. Nesse sentido, o Brasil tradicional
e o Brasil moderno no so apenas dois momentos numa seqncia his-
13 A categoria so-
brevivncia, nos
textos de Cascudo,
no tem o sentido
estritamente evolu-
cionista ao qual est
associado. Na verda-
de, o uso que ele faz
dessa noo acompa-
nha a ambigidade
com que ela aparece
nos textos de um de
seus autores favoritos,
James Frazer. Para
este, a idia de sobre-
vivncia trazia, alm
do sentido de algo
do passado que teria
simplesmente perma-
necido ao longo do
tempo, o significado
de algo selvagem que
existiria ativamente
sob a calma superfcie
da civilizao, po-
dendo manifestar-se
a qualquer momento.
Sobre esse ponto na
obra de Frazer, ver
Stocking Jr. (1996,
XXV).
187 {jos r eginal do santos gonal ves}
trica, mas dois modos distintos de interpretar a vida social e cultural
do Brasil contemporneo.
No primeiro volume do seu Histria da Alimentao no Brasil (Cascudo
1983 [1967]), ele descreve o que considera ser as formas indgenas, africa-
nas e portuguesas da culinria. Seguindo em linhas gerais a conhecida
fbula das trs raas (DaMatta 1990 [1987]), Cascudo argumenta que
uma cozinha nacional brasileira teria se confgurado por volta do fnal
do sculo XVIII, como o produto histrico da dominao social e cultural
portuguesa sobre os sistemas indgenas e africanos de alimentao. De
certo modo, o sistema culinrio brasileiro veio a se constituir como a
sntese dessas trs tradies culinrias, sob a gide da herana cultural
portuguesa.
A FOME E O PALADAR
Se focalizamos nos textos de Cascudo a fome e o paladar, no como ex-
perincias naturalmente dadas, mas como categorias culturais, podemos
dizer que a categoria paladar domina o sistema culinrio tradicional; a
fome, por sua vez, domina o sistema moderno. Segundo Cascudo, o pa-
ladar desempenha um papel dominante nas refeies tradicionais; mas
a fome tende a ser o fator dominante nas formas modernas, ocasionais
e irregulares de alimentao cotidiana (1983 [1967]).
Cascudo argumenta que no mundo moderno, especialmente nas reas
urbanas, as refeies no desaparecem, mas tendem a ser substitudas por
prticas de alimentao ocasionais, irregulares e ligeiras. Restaurantes e
locais de venda das chamadas fast food substituem o espao da comida
feita em casa. Relaes sociais e culturais so substitudas por necessida-
des imediatas. O apetite e o paladar perdem espao para a fome. Nutricio-
nistas ocupam o lugar dos cozinheiros tradicionais. Comidas enlatadas
substituem longos e complexos processos de preparao de alimentos.
Comportamentos casuais, barulhentos e apressados competem com o
ritmo lento e silencioso das refeies tradicionais (Cascudo 1983 [1967]).
Fome e paladar so desse modo pensadas como categorias intimamente
188 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
ligadas a distintas formas de vida social e cultural. Poderamos talvez falar
da diferena entre uma cultura da fome e uma cultura do paladar.
Enquanto um estudioso de folclore, com uma orientao cultural e
histrica Cascudo percebe os itens que compem o sistema culinrio
brasileiro nos termos de uma seqncia histrica. Mas, enquanto uma
etnografa nativa, seus escritos revelam o carter sistemtico das relaes
entre esses itens. Do ponto de vista de Cascudo, vale ainda sublinhar, as
formas tradicionais de vida e de pensamento, enquanto sobrevivncias,
esto ainda ativas e poderosas (ainda que no predominantes) na vida
cotidiana brasileira contempornea.
No entanto, importante qualifcar a distino entre os conceitos tradi-
cionais e modernos de fome e paladar. De acordo com a percepo nativa de
Cascudo, ambas as categorias esto presentes tanto no contexto brasileiro
tradicional quanto no contexto moderno. Seus escritos sugerem no entanto
que nos contextos tradicionais, esses conceitos esto totalmente embutidos
em relaes sociais e culturais. Eles fazem parte de categorias totais. Nos
contextos modernos, no entanto, a fome assim como o paladar tornam-se ca-
tegorias individualizadas e autnomas (e por isso mesmo, naturalizadas) em
face das relaes sociais e culturais. Nos contextos tradicionais, por exemplo,
no Brasil colonial, possvel distinguir o paladar do escravo e o paladar do seu
proprietrio. O paladar parte inseparvel da persona de cada um deles. Por
outro lado, nos contextos urbanos modernos, o paladar torna-se autnomo.
Ele transforma-se em bom gosto (o gosto do gastrnomo) e teoricamente
independente de categorias sociais ou raciais (Flandrin 1971). A categoria
paladar torna-se to individualizada, assume contornos semnticos to
delimitados quanto a categoria fome, ambas fundadas numa concepo
moderna e igualitria da natureza humana (Dumont 1977; Sahlins 1996).
COMENTRIOS FINAIS
Por que, nos escritos etnogrfcos de Cascudo, tpicos como comidas
e bebidas recebem tanta ateno, alm de outros objetos e experincias
da vida cotidiana?
189 {jos r eginal do santos gonal ves}
De certo modo, assim como os waigua trobriandeses (malinowski 1974
[1922]), as brigas de galos balinesas (Geertz 1973), o gado Nuer (Evans-Pri-
tchard 1973 [1940]), ou a feitiaria Zande (Evans-Pritchard 1976 [1951]),
comidas e bebidas parecem constituir-se em uma extensa e difusa lin-
guagem por meio da qual indivduos e grupos no Brasil falam sobre e
para si mesmos. Certamente, comida e bebida compem uma linguagem
universal e seu uso pode ser reconhecido em qualquer sociedade ou cul-
tura. De modo algum, isto seria uma peculiaridade brasileira. No entanto,
possvel especular que no Brasil essa linguagem pode assumir um papel
preponderante na vida cotidiana. Nesse sentido, ela uma espcie de
linguagem privilegiada que as pessoas usam para descrever suas experi-
ncias pblicas e privadas.
um fato usualmente apontado por visitantes estrangeiros que, no
Brasil, as pessoas, no dia-a-dia, falam obsessivamente de comidas e be-
bidas. Em sua Histria da Alimentao no Brasil, Cascudo rene 138 termos
culinrios (comidas, bebidas, frutas, doces, formas de preparar de servir
e de consumir comidas, etc.) usados s centenas em expresses popula-
res e provrbios na vida cotidiana brasileira. Cascudo tambm menciona
dois outros autores que igualmente coletaram centenas de expresses.
Mas qual a importncia da comida na cultura popular brasileira? Qual a
freqncia com que aparecem sendo usadas para descrever os atributos
morais e o comportamento das pessoas, e para avaliar situaes e expe-
rincias humanas?
Um de meus propsitos neste artigo foi sugerir que os escritos etno-
grfcos de Cascudo (especialmente aqueles que versam sobre comidas
e bebidas) seriam melhor considerados no simplesmente como traba-
lhos datados em termos de anlise tericas (o que, parcialmente, so),
mas como documentos etnogrfcos nativos. Como tal, eles requerem
um trabalho de descrio e anlise que os situem como ricas expresses
de representaes coletivas relativas sobre os signifcados da comida na
vida cotidiana brasileira contempornea, assim como em diversos outros
momentos histricos. Suas idias so assim a expresso escrita de cate-
190 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
gorias sociais e culturais em ampla circulao na sociedade brasileira.
Nesse sentido, eles podem ser lidos no apenas como fontes de informao
histrica e cultural. Eles so, na verdade, fontes de perspectivas para o
entendimento da cultura popular brasileira. Uma vez que Cascudo, como
um bricoleur, pensa por meio de categorias culturais nativas, ele oferece
ao leitor pontos de vista originais sobre diferentes aspectos do cotidiano
brasileiro. Mais do que qualquer outro estudioso de folclore no Brasil, seus
escritos sobre alimentao podem trazer um ponto de vista estimulante
e at o momento no plenamente explorado para o entendimento desse
e outros tpicos da cultura popular brasileira.
191 {jos r eginal do santos gonal ves}
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tada ao VI Congresso Luso-Afro-Brasileiro realizado em Coimbra
no ano de 2004.
Patr i mni o, Memr i a e
Etnicidade: r einvenes da
cul tur a aor iana
INTRODUO
vasta a literatura produzida sobre as festas do divino esprito
santo. Estudiosos de folclore (Van Gennep 1947; 1949; Moraes
Filho 1999; Cascudo 1962)
1
, historiadores (Melo e Souza 1994; Abreu 1999),
antroplogos (Brando 1978; Salvador 1981; 1987; Leal 1994; 2001) tm
produzido uma extensa bibliografa sobre a ocorrncia dessas festas na
Europa, no Arquiplago dos Aores, na Ilha da Madeira, no Brasil, nos
Estados Unidos e no Canad.
Apesar das contribuies importantes que podem trazer em termos
informativos, os estudos de folclore (por certo os mais numerosos dentre
as trs categorias de estudos que distinguimos), assim como alguns estu-
dos de histria voltados para uma perspectiva estritamente descritiva,
foram acertadamente criticados em funo dos pressupostos etnocntri-
cos com que foram conduzidos
2
. Desse modo, estudos antropolgicos e
histricos modernos deslocaram sua ateno dos traos culturais que
distinguiriam essas festas, assim como de seu processo de difuso, para
as funes sociais e simblicas que elas desempenham em determinadas
sociedades e perodos histricos.
Dentro desse conjunto, estudos recentes realizados por antroplogos
e por historiadores tm focalizado esta celebrao em contextos scio-
culturais especfcos: nos Aores (Leal 1994; 2001); no Brasil (Brando 1978;
Melo e Souza 1994; Abreu 1999); e nos Estados Unidos (Salvador 1981; 1987).
A perspectiva metodolgica desses estudos tem sido predominantemente
1 Para um levanta-
mento bibliogrfico
de trabalhos de me-
morialistas e folclo-
ristas sobre as festas
do divino no Brasil,
ver (Abreu 1999:
394-395) Ver tambm
Cascudo (1962) para
uma bibliografia de
estudos de folclore
sobre as festas do
divino. Leal (1994)
comenta bibliografia
de folcloristas e
alguns antroplogos
sobre esta festa em
Portugal, Aores e Ilha
da Madeira.
2 Uma discusso crti-
ca dessa bibliografia,
especialmente aquela
referente aos Aores,
Ilha da Madeira e
aos Estados Unidos
feita por (Leal 1994).
197 {jos r eginal do santos gonal ves}
monogrfca, deixando num segundo plano ou mesmo excluindo as pos-
sibilidades de investigao comparativa suscitadas por esse fenmeno.
Entre os anos de 2000 e 2005
3
, realizei pesquisas sobre as festas do
divino esprito santo entre imigrantes aorianos nos Estados Unidos e no
Brasil. Podemos dizer que essas festas constituem um fato de civilizao,
no sentido atribudo por Marcel Mauss a esse termo (1968a: 235)
4
. No
se restringem a uma determinada rea social e cultural. Transcendem
fronteiras nacionais e geogrfcas. vasta sua rea de ocorrncia: Aores,
Canad, Estados Unidos (Nova Inglaterra e Califrnia principalmente) e
Brasil (especialmente o sul e o sudeste do Brasil). Em termos histricos,
apresenta uma grande profundidade. Os mitos de origem da festa refe-
rem-se sua criao no sculo XIII, em Portugal
5
. Mas h referncias
sua existncia na Alemanha e na Frana, ainda no sculo XII (Van Gennep
1947; 1949; Cascudo 1962). Estamos diante de uma estrutura de longa
durao.
PATRIMNIO CULTURAL E IDENTIDADE
Trata-se tambm de um fato social total (Mauss 1974), na medida
em que envolve arquitetura, culinria, msica, religio, rituais, tcnicas,
esttica, regras jurdicas, moralidade, etc. O que suscita algumas questes
relativamente s concepes de patrimnio cultural. Especialmente
pelo fato dessas diversas dimenses no aparecerem, do ponto de vista
nativo, como categorias independentes. Aparecem simbolicamente tota-
lizadas pelo divino esprito santo. Este, por sua vez, representado no
exatamente como a terceira pessoa da Santssima Trindade, mas como
uma entidade individualizada e poderosa.
Nos ltimos anos venho trabalhando sistematicamente com a catego-
ria patrimnio e os diversos contornos semnticos que ela pode assumir.
Explorando os seus usos sociais e simblicos dessa categoria, tenho pro-
blematizado as noes modernas e correntes de patrimnio cultural,
mostrando situaes que se caracterizam pela sua insero em totalida-
des csmicas e morais, onde suas fronteiras so bem pouco delimitadas.
3 O trabalho de cam-
po foi desenvolvido
junto a irmandades na
Nova Iglaterra, espe-
cificamente em Rhode
Island, EEUU; e no
Brasil, na cidade do
Rio de Janeiro, junto a
irmandades do divino
esprito santo dirigi-
das por imigrantes
aorianos em diversos
bairros e suburbios
cariocas.
4 Les phnomnes
de civilization sont
ainsi essentiellement
internationaux,
extranationaux. On
peut donc les definir
em opposition aux
phnomnes sociaux
spcifiques de telle
ou telle socit: ceux
des phnomnes
sociaux qui son
communs plusieurs
socits plus ou
moins rapproches,
rapporches par
contact prolong,
par intermdiaire
permanent, par fi-
liation partir dune
souche commune
(1968a: 235).
5 A origem da festa
, em geral, situada no
sculo XIV, associada
Rainha Santa Izabel
(1271-1336), esposa
de Dom Diniz (Cas-
cudo 1962: 281-282).
Alguns estudiosos
apontam para a liga-
o entre a festa e a
ideologia milenarista
do abade calabrs
Joaquim de Fiore,
elaborada a partir
da chegada de uma
idade do esprito
santo, que sucederia
as idades do pai e
do filho (Corteso
1980; Leal 1994).
198 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Tenho sublinhado que os patrimnios culturais seriam melhor enten-
didos se situados como elementos mediadores entre diversos domnios
social e simbolicamente construdos, estabelecendo pontes e cercas entre
passado e presente, deuses e homens, mortos e vivos, nacionais e estran-
geiros, ricos e pobres, etc. Nesse sentido, tenho sugerido a possibilidade
de pensarmos o patrimnio em termos etnogrfcos, analisando-o como
um fato social total, e desnaturalizando assim seus usos nos modernos
discursos do patrimnio cultural (ver Captulo V deste livro).
Essas festas so exemplo do que poderamos chamar de um pa-
trimnio transnacional. Mas classifcar essa festa como patrim-
nio exige alguma cautela. preciso reconhecer algumas nuances
nas representaes do que se pode entender por patrimnio.
bem verdade que so as prprias lideranas aorianas que falam
de um patrimnio aoriano ou da aorianidade. Mas este uso est
distante das concepes assumidas pelos devotos do esprito santo em
sua vida cotidiana. A diferena fundamental est precisamente no uso
das categorias esprito e matria. Elas so diversamente concebidas
pelos intelectuais e lideranas aorianas, pelos padres da igreja catlica
e pelos devotos.
Do ponto de vista dos devotos, a coroa, a bandeira, as comidas, os
objetos (todo esse conjunto de bens materiais que integram a festa e so
propriedade das irmandades); so, de certo modo, manifestaes do pr-
prio esprito santo. Do ponto de vista dos padres, so apenas smbolos
(no sentido de que so matria e no se confundem com o esprito). Do
ponto de vista dos intelectuais, so representaes materiais de uma
identidade e de uma memria tnicas. Desse ponto de vista, as es-
truturas materiais que poderamos classifcar como patrimnio so
primeiramente boas para identifcar.
As classifcaes dos devotos so estranhas a essa concepo de patri-
mnio. Do seu ponto de vista, trata-se fundamentalmente de uma relao
de troca com uma divindade. E nessa concepo total, culinria, objetos,
rituais, mitos, esprito, matria, tudo se mistura. Sabemos do carter
199 {jos r eginal do santos gonal ves}
fundador dessas relaes de troca com os deuses. Como nos lembra Marcel
Mauss, foi com eles que os seres humanos primeiro estabeleceram rela-
es de troca, uma vez que eles eram os verdadeiros proprietrios das
coisas e dos bens do mundo (Mauss 1974:63; ver Captulo V deste livro).
AS CATEGORIAS DA HONRA E DA GRAA
Um importante estudo monogrfco sobre as festas do divino nos Ao-
res traz para o foco de anlise as relaes de ddiva e contra-ddiva entre
os seres humanos e entre estes e o esprito santo (Leal 1994) . Embora essa
hiptese traga uma contribuio importante para o entendimento da
festa ela deixa de lado alguns problemas importantes.
Ao sublinhar as funes sociais das festas na reproduo da ordem
social, ela deixa de responder questo de sabermos quais os signifcados
religiosos e simblicos dessas festas, ou mais precisamente, quais as cate-
gorias coletivas de pensamento por meio das quais elas so estruturadas.
Minha proposta consiste precisamente em focalizar algumas dessas
categorias que parecem desempenhar um papel fundamental nessas fes-
tas, tanto no contexto dos Aores quanto no contexto da emigrao.
Entre as categorias que qualifcam essas relaes de ddiva e contra-
ddiva entre seres humanos e entre estes e a divindade, podemos destacar,
respectivamente, a honra e a graa.
Em termos conceituais, estou usando essas categorias com base nas
refexes tericas de Julian Pitt-Rivers sobre a honra e a graa a partir de
pesquisas etnogrfcas nas chamadas sociedades mediterrneas e espe-
cialmente sul da Espanha.
Resumindo ao extremo um ponto bastante complexo, podemos
dizer que essas festas so realizadas com o propsito fundamental
de conquistar e legitimar a honra e, simultaneamente, propiciar a
graa.
Indivduos no participam da festa. As unidades sociais de participao
so famlias: famlias nucleares e famlias extensas, mais compadres, vi-
zinhos, amigos. Cada mordomo participa da festa enquanto pai, av, flho,
200 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
irmo, tio, etc. na condio de chefe de uma famlia, de centro de uma
rede de relaes de parentesco que ele assume a direo da festa.
Nessas redes de relaes que participam de todos os momentos da
festa, possvel distinguir um domnio masculino e um domnio femi-
nino, cada um deles ritualmente demarcado. As categorias homem e
mulher no expressam apenas relaes de gnero, no sentido moderno
desse termo. Trata-se na verdade de categorias totais, pressupondo di-
menses morais e csmicas.
Enquanto a honra (a qualidade, precedncia moral pessoal) se situa
basicamente no domnio masculino, das relaes entre os homens, o es-
pao da rivalidade e da competitividade, das relaes com o mundo dos
negcios e da poltica; a graa situa-se no plano feminino, especialmente
no espao das relaes de ddiva e contra-ddiva entre os seres humanos
e o esprito santo; a graa uma ddiva unilateral concedida pelo capricho
da divindade e sem possibilidade de retribuio.
Segundo Julian Pitt-Rivers:
Existem dois modos de comportamento paralelos que correspondem antiga
oposio entre o corao e a cabea: o que se sente e o que se sabe, a viso subjetiva
e a viso objetiva do mundo, o misterioso e o racional, o sagrado e o profano. Esto
governados respectivamente pelo princpio da graa e pelo princpio da lei, isto , a
regularidade previsvel, assim como a justia e a lei que impem ordem nos assun-
tos humanos e em relao ao qual o perdo (ou graa) permite um desvio. Sob o
ttulo de graa possvel agrupar todos os fenmenos que escapam ao controle
consciente e racional da conduta (1992:288).
Surpreendemos a uma outra distino fundamental que entre o
mundo do divino e o mundo dos seres humanos; entre a impenetra-
bilidade da vontade do esprito santo, cuja graa um mistrio, e os
esforos humanos de prever e controlar o futuro por meio do clculo e
do contrato, onde se conquista a honra.
Uma das funes simblicas fundamentais das festas do divino re-
alizar uma mediao entre esses universos. Novamente resumindo gros-
201 {jos r eginal do santos gonal ves}
seiramente um ponto bastante complexo, diria que as festas do divino
transformam simbolicamente a honra conquista pelos homens no mun-
do terreno em graa concedida pela vontade misteriosa do divino.
As festas do divino ocorrem em um perodo ritualmente demarcado
do ciclo anual. Elas tm incio formal na noite do domingo de Pscoa e se
prolonga por sete semanas at o dia principal, que domingo de Pente-
costes. Esse perodo do ano simbolicamente demarcado como o tem-
po das festas, ou o tempo dos imprios, como dizem nos Aores (Leal
1994). Trata-se de um tempo de intensa aproximao com o sagrado, um
tempo que se caracteriza pelo que Durkheim chamou de efervescncia
social (2000).
Embora as atividades de preparao da festa j se desenvolvam no
prprio domingo de Pentecostes (quando so sorteados o mordomo e
os domingas
6
que assumiro a direo da prxima festa), a partir do
domingo de Pscoa do ano seguinte que as atividades mais se intensifcam
e ganham uma dimenso ritual mais forte.
Assim como o inverno e o vero esquim, estudados por Mauss
(1974), o tempo das festas ope-se ao tempo anterior e posterior em
termos da intensidade das atividades, da dedicao ao trabalho para o
esprito santo, dos freqentes e intensos encontros sociais, dos almo-
os, lanches e jantares, da distribuio de po e carne aos pobres, e das
atividades religiosas como rezas, procisses e missas, ao longo das sete
semanas, de segunda a domingo.
Na classifcao do tempo anual, esse perodo tem uma qualidade
muito especial, pois ele simbolicamente defnido como o tempo em
que se espera e se recebe o esprito santo. Nos limites desse tempo, l-
se o universo, a natureza, a vida coletiva e individual, as relaes com
a divindade e com os homens, tomando-se como referncia a categoria
da graa.
O espao tambm redefnido em funo do tempo das festas, esse
tempo de aproximao do sagrado e de renovao do mundo. As atividades
se concentram, alternadamente, na irmandade, nas casas dos domingas
6 A categoria mordo-
mo usada no con-
texto da Nova Iglaterra
(e tambm nos Aores)
para designar aquele
que responsvel pela
direo anual das fes-
tas. Os domingas
situam-se numa posi-
o hierarquicamente
abaixo dos mordomos,
sendo os responsveis
por cada uma das sete
semanas da festa. Ve-
rifiquei o uso desses
termos entre imigran-
tes aorianos na Nova
Inglaterra. No Brasil,
es peci al ment e no
Ri o de Janeiro, no
veri fi quei o uso de
nenhuma dessas ca-
tegorias. Nesse ltimo
contexto, designam-
se a si mesmos como
irmos.
202 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
(ou irmos), na igreja, e atravs das procisses (Contins 2003) a mediar
as distncias fsicas e simblicas entre esses locais.
A preparao e organizao da festa cabem queles que, sorteados
na noite do domingo de Pentecostes, fcaro responsveis por cada uma
das sete semanas de festa. Cada um desses irmos ter consigo a coroa
do divino durante essa semana. Sua casa, especialmente preparada para
isso, com um altar na sala de visita abrigando a coroa em posio de des-
taque, receber diariamente os irmos que desejem fazer alguma prece
ao divino.
Nas quintas-feiras, serve-se, depois da reza, um lanche ou um jantar.
No domingo, depois da missa e da coroao das crianas, serve-se um
almoo na irmandade ou na casa de um irmo.
As atividades de preparao, organizao e realizao da festa de-
pendem fortemente dos domingas e mordomos. Evidentemente, as
irmandades apiam essas atividades em termos de trabalho e em termos
fnanceiros. Mas sem os domingas e mordomos a festa no possvel.
importante assinalar que se verifica uma forte rivalidade entre
os diversos domingas, entre o mordomo e os domingas, para mostrar
quem fez a melhor festa, ou seja, quem teve o maior nmero de con-
vidados, e conseqentemente a maior fartura de comidas e bebidas.
Cada detalhe da festa rigorosamente avaliado e julgado pelos irmos.
Um dominga que ofereceu uma festa qual faltou comida e bebida,
ou qual no compareceram muitos convidados, ter seu prestgio
fortemente abalado.
Cada um dos domingas e mordomos com quem conversei manifes-
taram seu intenso temor de que faltassem comidas e bebidas, ou que
faltassem convidados, ou que algum detalhe comprometesse a festa.
Uma festa bem sucedida confrma a posio social e moral superior, ou
a honra, de um dominga. Mas, uma vez que nem todas as festas podem
ser igualmente boas, muitos saem um tanto diminudos ao fm do tempo
das festas. Cada perodo de festas portanto um teste para o prestgio
pessoal de cada dominga.
203 {jos r eginal do santos gonal ves}
H nesse contexto uma forte rivalidade, um sentido agonstico prxi-
mo do potlatch do noroeste americano (Mauss 1974). preciso ter recur-
sos, e demonstrar que se tem recursos, quando se assume uma semana
de festas na condio de dominga. O propsito a indubitavelmente
ofuscar o outro.
Mas esse comportamento no classifcado positivamente. Afrmam
que seu` esprito santo no gosta disso e pode mesmo punir severa-
mente aquele que se exceder em sua vaidade e ostentao.
Desse modo, em respeito ao esprito santo que esses domingas e
mordomos buscam aparentar moderao em seus gestos de generosida-
de. Assim procedendo, tornam possvel a transformao de sua honra
pessoal em graa.
Afrmei h pouco que as festas do divino, do ponto de vista desses
homens que assumem o papel de domingas e mordomo, funcionam sim-
bolicamente para transformar honra em graa. A fonte principal desta
o esprito santo. Diferentemente da honra, que algo que se conquista,
que se acumula e se defende contra os rivais; a graa, categoria eminen-
temente feminina, to somente recebida e ela depende do capricho do
divino esprito santo.
Julian Pitt-Rivers, analisando as representaes camponesas no sul
da Espanha, afrma:
A graa precisamente o contrrio da honra masculina e isto a coloca do lado da
honra feminina. Em primeiro lugar, a mulheres tm, por assim dizer, um direito
preferente graa, no s no terreno religioso (so mais ativas na religio do que
os homens), mas tambm em sua atribuio na maioria de suas formas. A graa
esttica puramente feminina: no se espera que os homens tenham graa de
movimentos, e ainda que possam danar com graa, supe-se comumente que os
danarinos profssionais so afeminados (1992: 295).
As atividades femininas na preparao, organizao e realizao das
festas do divino so essencialmente complementares s atividades dos
homens. Enquanto estes ltimos desenvolvem suas atividades no espao
204 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
entre a famlia, a irmandade e o mundo exterior, fazendo contatos com
crculos sociais e polticos mais amplos, especialmente quando buscam
arrecadar fundos para as festas, as atividades das mulheres se desenvol-
vem predominantemente do espao da famlia e da irmandade.
A elas cabe dirigir as rezas, que desempenham papel fundamental
durante as festas. A elas compete os cuidados relativos comensalidade:
elas preparam e servem os alimentos aps as rezas.
Considerando a festa em sua totalidade, h um momento que ocupa
uma posio crucial em todo o processo: a coroao. Esta realizada em
cada um dos sete domingos at o dia de Pentecostes. Em geral, as crianas
so coroadas, e o so pelo padre, aps a missa, e no interior da igreja.
um momento vivido com muita intensidade emocional.
A coroa (e o cetro) desempenha um papel crucial. Ela est sempre, ne-
cessariamente presente em todos os tempos e lugares da festa. Se seguir-
mos o movimento desse objeto, acompanhamos todas as etapas e lugares
importantes das festas. A ela se dirigem as rezas; ela est presente nas
procisses; ela est presente nos almoos e jantares, colocada em posio
de destaque, como um hspede de honra. Os irmos demonstram forte
emoo quando ela chega e quando ela parte.
A coroa e o cetro so, de certo modo, uma espcie de equipamentos
da graa. por seu intermdio (da coroa e do cetro, mas especialmente
da coroa) que se manifesta simbolicamente a presena da graa. Na co-
roao das crianas, mas tambm em outras ocasies, quando a coroa
levada em visita casa de algum irmo doente, ou quando se toca com o
cetro a cabea e o corao dos irmos. Nas procisses apenas mulheres e
crianas carregam a coroa e o cetro.
Vale lembrar aqui o mito de origem das festas aorianas do divino.
Essas festas teriam tido incio no sculo XIV, pela iniciativa da Rainha
Santa Izabel, em pagamento a uma promessa que fzera ao esprito santo,
para que cessassem as guerras entre seu marido, Dom Diniz, e seu flho.
Prometera que ofereceria sempre uma festa e distribuiria comidas e be-
bidas fartamente aos pobres. Em algumas verses, ela mesma coroava
205 {jos r eginal do santos gonal ves}
os pobres com sua prpria coroa. Desde ento se realizam as festas do
divino. Esse mito bastante presente entre os imigrantes aorianos, que
freqentemente, trazem em suas procisses uma adolescente vestida com
o manto, o cetro e a coroa da Rainha Santa Izabel.
O que gostaria de ressaltar aqui essa oposio complementar entre a
honra e a graa, o mundo dos homens e o mundo das mulheres, o mundo
dos seres humanos e o mundo do esprito santo. Oposio fundamen-
tal a estruturar as festas do divino, ela se manifesta nas representaes
nativas da categoria patrimnio. Desse ponto de vista, o patrimnio
existe simultaneamente, e de modo complementar, enquanto honra e
enquanto graa.
Por um lado, so objetos e propriedades reguladas pelo contrato e pela
lei; por outro, so objetos, propriedades que funcionam simbolicamente
como mediadores entre o mundo do divino e o mundo dos homens.
Essa concepo nativa do patrimnio ope-se s representaes dos
intelectuais e das lideranas aorianas, para quem esse conjunto de bens
e propriedades de natureza material e imaterial constituem-se basica-
mente como emblemas da aorianidade, como patrimnio cultural
aoriano.
Nessa concepo o patrimnio cultural , antes de tudo, uma re-
presentao e circula no espao pblico e poltico da identidade e da
memria aoriana, devendo ser preservado, exibido, reconstrudo, usado
como defesa dos interesses dessa comunidade.
Nas representaes populares, esse patrimnio apresenta duas faces
complementares e indissociveis. Ele circula entre o mundo do divino
e o mundo dos homens, parte das relaes de ddiva e contra-ddiva
entre os homens e o divino, e tambm entre os homens. antes de tudo
uma mediao material e imaterial. provvel que nessas representaes
esteja o signifcado simblico da etnicidade aoriana.
206 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
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Apresentado como uma comunicao na XXIV Reunio da
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Junho de 2004, esse texto, em sua verso original, foi publica-
do na Revista Horizontes Antropolgicos. Revista do PPGAS
da UFRGS. Vol. 11. No. 23, Jan- Jun 2005.
Arquivo eletrnico: http://www.scielo.br/pdf/ha/v11n23/
a02v1123.pdf
Ressonncia, Mater ial idade
e Subjetividade: as cul tur as
como patr imnios
Nous avons beaucoup trop tendence croire que nos divisions sont des fatalits
de lsprit humain; les catgories de lsprit humain changeront encore et ce qui
semble bien tabli dans les sprits sera un jour compltement abandonn.
Marcel Mauss, Manuel dEtnographie
Patrimnio s. m. (...) 1. herana familiar 2. conjunto dos bens familiares 3. fg. Grande
abundncia; riqueza; profuso (p. artstico) 4. bem ou conjunto de bens naturais
ou culturais de importncia reconhecida num determinado lugar, regio, pas, ou
mesmo para a humanidade, que passa(m) por um processo de tombamento para
que seja(m) protegido(s) e preservado(s) (...) 5. JUR. Conjunto dos bens, direitos
e obrigaes economicamente apreciveis, pertencentes a uma pessoa ou a uma
empresa (...) (Dicionrio Houaiss de Lngua Portuguesa).
este artigo exploro alguns limites da categoria patrimnio
ou, mais precisamente, o seu potencial analtico para o en-
tendimento da vida social e cultural. Em outras palavras, proponho respon-
der a seguinte questo: o que podemos aprender sobre a noo de cultura, ao
usarmos a noo de patrimnio? Referimo-nos usualmente ao patrimnio
cultural, ou seja, s dimenses culturais do patrimnio. Mas no teramos
algo a aprender com o esforo de focalizar o que poderamos nomear como as
dimenses patrimoniais da cultura? Que aspectos da cultura a explorao
analtica da noo de patrimnio poderia iluminar, e que estariam suposta-
mente inibidos nas teorias antropolgicas? Sugiro que esses aspectos sejam
expressos por algumas categorias especfcas, dentre as quais selecionei trs:
1) ressonncia; 2) materialidade; e 3) subjetividade.
I.
So muitos os estudos que afrmam que a categoria patrimnio cultu-
ral constitui-se em fns do sculo XVIII, juntamente com os processos
213 {jos r eginal do santos gonal ves}
de formao dos Estados nacionais. O que no incorreto. Omite-se no
entanto o seu carter milenar e sua ampla distribuio geogrfca. Ela no
simplesmente uma inveno estritamente moderna. Est presente no
mundo clssico, na idade mdia e a modernidade ocidental apenas impe
os contornos semnticos especfcos que ela veio a assumir (Fumaroli 1997:
101-116). Podemos dizer que, enquanto uma categoria de pensamento,
ela se faz presente mesmo nas chamadas culturas primitivas. Estamos
provavelmente diante de uma categoria extremamente importante para
a vida social e mental de qualquer coletividade humana.
Evidentemente, nem todas as sociedades ou culturas humanas consti-
tuem, de forma dominante, patrimnios acumulados e retidos com fnali-
dades de troca mercantil. Muitas so aquelas cujo processo de acumulao
de bens tem como propsito a sua redistribuio ou mesmo a sua ostensiva
destruio, como nos casos clssicos do Kula trobriands e do Potlatch no
noroeste americano (Malinowski 1976 [1922]; 2003 [1950]: 185-318). Nesses
contextos, cabe assinalar, existem os chamados bens inalienveis, cuja
natureza defnida pela impossibilidade social e simblica de circula-
rem amplamente, desenhando assim hierarquias fundamentais (Weiner
1992).
O que preciso colocar em foco nessa discusso, penso, a possibi-
lidade de se transitar analiticamente com essa categoria entre diversos
mundos sociais e culturais, iluminando-se as diversas formas que pode
assumir. Em outras palavras: como possvel usar a noo de patrimnio
em termos comparativos? Em que medida pode nos ser til para tambm
entender experincias estranhas modernidade?
II.
RESSONNCIA
A noo de patrimnio confunde-se com a de propriedade. Mais pre-
cisamente com uma propriedade que herdada, em oposio quela que
adquirida. A literatura etnogrfca est repleta de exemplos de culturas
nas quais os bens materiais no so classifcados como objetos separados
214 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
dos seus proprietrios. Esses bens, por sua vez, nem sempre possuem atri-
butos estritamente utilitrios. Em muitos casos, servem evidentemente a
propsitos prticos, mas possuem, ao mesmo tempo, signifcados mgico-
religiosos e sociais, constituindo-se em verdadeiras entidades, dotadas de
esprito, personalidade, vontade, etc. No so desse modo meros objetos.
Se por um lado so classifcados como partes inseparveis de totalidades
csmicas e sociais, por outro lado afrmam-se como extenses morais e
simblicas de seus proprietrios, sejam estes indivduos ou coletividades,
estabelecendo mediaes cruciais entre eles e o universo csmico, natural
e social. Marcel Mauss assinalou certa vez que: ...se a noo de esprito
nos pareceu ligada de propriedade, inversamente esta liga-se quela.
Propriedade e fora so dois termos inseparveis; propriedade e esprito
se confundem... (2003 [1950]: 136-137). Essa categoria de objetos no apre-
senta assim fronteiras classifcatrias muito defnidas, sendo ao mesmo
tempo objetos e sujeitos, materiais e imateriais, naturais e culturais, sa-
grados e profanos, divinos e humanos, masculinos e femininos, etc.
1

Nas anlises dos modernos discursos do patrimnio cultural, a nfase
tem sido posta no seu carter construdo ou inventado. Cada nao,
grupo, famlia, enfm cada instituio construiria no presente o seu pa-
trimnio, com o propsito de articular e expressar sua identidade e sua
memria. Esse ponto tem estado e seguramente deve continuar presente
nos debates sobre o patrimnio. Ele decisivo para um entendimento
sociolgico dessa categoria. Um fato, no entanto, parece fcar numa rea
de sombra dessa perspectiva analtica. Trata-se daquelas situaes em
que determinados bens culturais, classifcados por uma determinada
agncia do Estado como patrimnio, no chegam a encontrar respaldo
ou reconhecimento junto a setores da populao. O que essa experincia
de rejeio parece colocar em foco menos a relatividade das concep-
es de patrimnio nas sociedades modernas (aspecto j excessivamente
sublinhado), e mais o fato de que um patrimnio no depende apenas
da vontade e deciso polticas de uma agncia de Estado. Nem depende
exclusivamente de uma atividade consciente e deliberada de indivduos
1 Um exemplo consis-
te naquela categoria
de objetos que Victor
Turner, num estudo
clssico, chamou
de sacra: objetos
materiais marcados
pela ambigidade e
usados nos momen-
tos liminares dos ritos
de passagem. Ver Be-
twixt and between:
the liminal period in
Rites de passages
(1967: 93-111).
215 {jos r eginal do santos gonal ves}
ou grupos. Os objetos que compem um patrimnio precisam encontrar
ressonncia junto a seu pblico.
Aqui fao uso dessa noo, tal como a utiliza o historiador Stephen
Greenblatt. Diz ele:
Por ressonncia eu quero me referir ao poder de um objeto exposto atingir um
universo mais amplo, para alm de suas fronteiras formais, o poder de evocar no
expectador as foras culturais complexas e dinmicas das quais ele emergiu e das
quais ele , para o expectador, o representante (1991:42-56)
2
.
No processo de construo dessas instituies situadas entre a me-
mria e a histria (tais como o patrimnio, as colees, os museus, os
monumentos, os arquivos), opera-se um trabalho cuidadoso de elimi-
nao das ambigidades. Substituem-se categorias sensveis, ambguas
e precrias (por exemplo, cheiro, paladar, tato, audio) por categorias
abstratas e com fronteiras nitidamente delimitadas com a funo de re-
presentar memrias e identidades. Essa eliminao da ambigidade e da
precariedade dos patrimnios culturais pode colocar em risco o seu poder
de ressonncia, seu poder de evocar no expectador as foras culturais
complexas e dinmicas de onde eles emergiram.
O que pretendo colocar em foco precisamente a ambigidade pre-
sente na categoria patrimnio, aspecto defnidor de sua prpria natureza,
uma vez que liminarmente situada entre o passado e o presente, entre o
cosmos e a sociedade, entre a cultura e os indivduos, entre a histria e
a memria. Nesse sentido, algumas modalidades de patrimnio podem
servir como formas de comunicao criativa entre essas dimenses, co-
municao realizada existencialmente no corpo e na alma dos seus pro-
prietrios.
Mais precisamente, quero chamar a ateno para o fato de que
o acesso que o patrimnio possibilita, por exemplo, ao passado no
depende inteiramente de um trabalho consciente de construo no
presente, mas, em parte, do acaso. Se por um lado construmos in-
tencionalmente o passado, este, por sua vez, incontrolavelmente se
2 Para um exempl o
brilhante de uso qua-
lificado dessa catego-
ria na anlise de textos
literrios, onde o autor
distingue o processo
de ressonncia de um
determi nado texto
em outro na forma
de inspirao ou de
citao, ver o artigo
Ressonncias de An-
tonio Candido (2004:
43-52).
216 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
insinua, nossa inteira revelia, em nossas prticas e representaes.
Desse modo, o trabalho de construo de identidades e memrias co-
letivas no est evidentemente condenado ao sucesso. Ele poder, de
vrios modos, no se realizar. Um texto de Marcel Proust pode talvez
iluminar esse ponto:
assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evoc-lo, todos os esforos
de nossa inteligncia permanecem inteis. Est ele oculto, fora de seu domnio e de
seu alcance, em algum objeto material (na sensao que nos daria esse objeto mate-
rial) que ns nem suspeitamos. Esse objeto, s do acaso depende que o encontremos
antes de morrer, ou que no o encontremos nunca. (1998: 48)
Proust se referia certamente memria individual, mas talvez pos-
samos estender suas refexes s memrias coletivas, sofsticando assim
o entendimento do seu processo de produo.
Ao trazer esse problema, meu objetivo colocar em foco a natureza
precria do trabalho de representao do passado, ou de representao
de outras culturas, identidades e memrias. Especialmente no contexto
dos museus histricos e dos museus etnogrfcos, os objetos esto certa-
mente a servio do conhecimento cientfco, do conhecimento histrico
e antropolgico; mas ao mesmo tempo, incontornvel a demanda para
que esses objetos tenham ressonncia junto a determinados segmentos
do pblico.
Vou terminar com o exemplo de um museu, onde a experincia da
ressonncia vem ocupar um espao notvel. Trata-se do Museu da Po-
licia Militar do Rio de Janeiro, que funcionou, se no me engano, at a
segunda metade dos anos oitenta. O museu, que, na dcada de setenta,
foi estudado por trs antroplogas (Maggie; Contins; Montemor 19...),
oferecia um espao no mnimo curioso, aproximando-se mais do modelo
de um gabinete de curiosidades do que de um museu moderno. Reunia
e expunha os objetos mais variados e que testemunhavam a atuao
da polcia na cidade do Rio de Janeiro: objetos capturados na represso
aos partidos integralista e comunista; uma coleo de facas recolhidas
217 {jos r eginal do santos gonal ves}
de presidirios; cartas de baralho e objetos que foram reunidas na re-
presso a atividades classifcadas como curanderismo e explorao da
f pblica; a suposta ossada de Dana de Tef; fnalmente, entre outros
tantos objetos, uma notvel coleo de objetos de culto e imagens de
entidades da umbanda, apreendidos pela represso policial em dcdas
passadas (19...).
E aqui est o aspecto que quero sublinhar. Essa coleo de imagens
estava organizada na forma como ela existe num terreiro de umbanda.
Entre as imagens estava um exu, feito com a terra de todos os cemitrios
da cidade e considerado uma entidade muito poderosa. A razo dessa
disposio estava no fato de que o responsvel pelo museu, que no era
muselogo, mas um velho policial aposentado e, alm disso, umbandista,
cuidou a seu modo da exposio.
Entre as visitas que o museu recebia cotidianamente estavam muitos
fis da umbanda que iam buscar apoio junto a essas entidades para re-
solver suas afies. Poderamos dizer que, nesse caso, temos um excesso
de ressonncia: um museu dedicado ao passado e identidade de uma
organizao policial aproxima-se da condio de um terreiro de umban-
da. Trata-se evidentemente de um caso extremo e, por isso mesmo, bom
para expor a dimenso de ambigidade que parece caracterizar os objetos
no contexto dos museus.
III.
MATERIALIDADE
Outro ponto importante a ser considerado nessa discusso o fato de
que o chamado patrimnio sempre foi e material. Tanto assim que
foi necessrio, nos discursos contemporneos, criar a categoria do imate-
rial ou do intangvel para designar aquelas modalidades de patrimnio
que escapariam de uma defnio convencional limitada a monumentos,
prdios, espaos urbanos, objetos, etc. curioso, no entanto, o uso dessa
noo para classifcar bens to tangveis e materiais quanto lugares, fes-
tas, espetculos e alimentos.
218 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
De certo modo, essa noo expressa a moderna concepo antropo-
lgica de cultura, na qual a nfase est nas relaes sociais, ou nas re-
laes simblicas, mas no especifcamente nos objetos materiais e nas
tcnicas. A categoria intangibilidade talvez esteja relacionada a esse
carter desmaterializado que assumiu a moderna noo antropolgica
de cultura. Ou, mais precisamente, ao afastamento dessa disciplina, ao
longo do sculo XX, em relao ao estudo de objetos materiais e tcnicas
(Schlanger 1998).
Um dos possveis corretivos proporcionados pelo uso analtico da ca-
tegoria patrimnio em relao s teorias antropolgicas seja talvez o
colocar em primeiro plano a materialidade da cultura. No h como falar
em patrimnio, sem falar de sua dimenso material.
3
Mas, o que importante considerar que se trata de uma catego-
ria ambgua e que na verdade transita entre o material e o imaterial,
reunindo em si as duas dimenses. O material e o imaterial aparecem
de modo indistinto nos limites dessa categoria. A noo de patrimnio
cultural desse modo, enquanto categoria do entendimento humano, na
verdade re-materializa a noo de cultura que, no sculo XX, em suas
formulaes antropolgicas, foi desmaterializada em favor de noes
mais abstratas, tais como estrutura, estrutura social, sistema simb-
lico, etc.
4
Um autor brasileiro que elabora em sua obra uma concepo peculiar
do patrimnio cultural assinala a importncia do que ele chama elemen-
tos humildes e de uso cotidiano. Em seu livro Rede-de-Dormir: um estudo
etnogrfco, publicado na dcada de 50, Luis da Cmara Cascudo assinala
a inexistncia de estudos sobre esse objeto e comenta:
Certos temas do prestgio ao pesquisador, e outros exigem uma prodigiosa re-
trica para valoriz-los. Um livro sobre educao, fnanas, economia, assistncia
social, higiene, nutricionismo, empresta ao autor um ar de competncia severa,
de idealismo prtico, de ateno aos altos problemas. Quem vai se convencer da
necessidade de uma pesquisa etnogrfca sobre a rede-de-dormir, a rede que nunca
3 Para um uso analtico
inovador da catego-
ria materialidade no
contexto da histria
literria ver o impor-
tante artigo de Hans
Gumbrecht O campo
no-hermenutico e
a materi al i dade da
comunicao (1998
[1992]: 137-151).
4 Vale sublinhar que
a categoria da ma-
terialidade, con-
cebida nos termos
da oposio entre
matria e esprito
especialmente no
contexto da cultura
popular, pode ser
entendida como
uma dimenso
elementar, ligada
no s aos objetos
materiais mas aos
chamados fatos b-
sicos da existncia,
aos sentimentos, s
paixes e ao corpo
humano, sobretudo
suas partes inferio-
res (Bakhtin 1993).
219 {jos r eginal do santos gonal ves}
mereceu as honras de ateno maior e olhada de raspo pelos mestres de todas
as lnguas sbias? (1983:17).
5

Muitos desses objetos podem ser certamente entendidos como patri-
mnios, na medida em que, pela sua ressonncia junto a grande parte da
populao brasileira, realizam mediaes importantes entre o passado
e o presente entre o imaterial e o material, entre a alma e o corpo, entre
outras.
Evidentemente as monografas clssicas da antropologia esto re-
pletas de dados sobre objetos materiais e seus usos. Seu entendimento
entretanto, a partir das categorias tericas dessa disciplina, tende a ser
concebido a partir de suas funes sociais ou de suas funes simblicas,
deixando em segundo plano a especifcidade, a forma e a materialidade
desses objetos e de seus usos por meio de tcnicas corporais. O fato im-
portante a considerar que, se nos colocarmos do ponto de vista nativo, a
vida social no seria possvel sem esses objetos materiais e sem as tcnicas
corporais que eles supem. O que seria o kula sem os colares, braceletes,
sem as canoas e todo o conjunto de tcnicas necessrias sua construo
e ao seu uso?
possvel que a categoria do patrimnio, tal como a estamos explo-
rando, sublinhe, entre outras, essa dimenso material da vida social e cul-
tural. E, ao lado dessa dimenso material, preciso assinalar a dimenso
fsiolgica, ou mais precisamente, o uso de tcnicas corporais. Objetos
sempre implicam em usos determinados do corpo. Afnal, pergunta Mar-
cel Mauss: o que um objeto se ele no manuseado?.
6
Objetos materiais
e tcnicas corporais, por sua vez, no precisam ser necessariamente en-
tendidos como simples suportes da vida social e cultural (como tendem
a ser concebidos em boa parte da produo antropolgica). Mas podem
ser pensados, em sua forma e materialidade, como a prpria substncia
dessa vida social e cultural. Muitos estudos, enfatizam corretamente o
fato de que os objetos fazem parte de um sistema de pensamento, de um
sistema simblico, mas deixa em segundo plano o fato de que eles exis-
tem na medida em que so usados por meio de determinadas tcnicas
5 Vale assinalar aqui o
interesse de Cascudo
por temas coti di a-
nos: no somente a
rede-de-dormir, mas
tambm os gestos, a
alimentao, as rela-
es de vizinhana,
expresses populares,
meios de trabalho e de
transporte como a jan-
gada, e outros.
6 Car ce qui est vrai
des fonctions spcia-
les des organes dun
vivant est encore plus
vrai , et mme vrai
dune tout autre vrit
des fonctions et fonc-
ti onnements dune
socit humaine. Tout
en elle nest que rela-
tions, mme la nature
matrielle des chses;
un outil nest rien sil
nest pas mani (Mar-
cel Mauss 1969 [1927]:
214).
220 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
corporais em situaes sociais e existenciais (e no apenas em termos
conceituais e abstratos). Eles no so apenas bons para pensar, mas
igualmente fundamentais para se viver a vida cotidiana. Desse modo,
necessrio pesquisar como, por exemplo, as roupas so produzidas, como
so adquiridas, e sobretudo como so usadas, por meio de quais tcnicas
corporais, como se desfazem das roupas, como elas deixam de ser usadas,
como saem de moda, sendo reclassifcadas, etc. Mais especifcamente:
preciso descrever como cada um desses processos mediado pelas tc-
nicas corporais (Mauss 2003: 401-408) que integram esses sistemas.
A fm de tornar esse ponto mais preciso, talvez seja til trazer aqui a
anlise que Luis da Cmara Cascudo desenvolve sobre o objeto desse seu j
citado estudo etnogrfco: a rede-de-dormir. Enquanto um objeto material,
a rede indissocivel de relaes sociais, morais, mgico-religiosas, existindo
portanto enquanto parte indissocivel de totalidades csmicas e sociais. Mais
precisamente ela desempenha um papel fundamental no processo de media-
o sensvel entre as diversas oposies que compem essas totalidades.
Em seu livro, Cascudo afrma que, adotada no sculo XVI pelos coloni-
zadores europeus, a rede-de-dormir passa a integrar a vida cotidiana da
colnia, de forma bastante extensiva, at meados do sculo XIX, quando
vem a ser progressivamente substituda pela cama (considerada ento
como um objeto civilizado, por oposio rede, que ser associada
barbrie, ao atraso).
No perodo colonial, no entanto, afrma esse autor:
Dentro e fora do mbito das vilas e povoaes, engenhos de acar e primeiros cur-
rais de gado, a rede foi uma constante. Adotaram-na como soluo prtica e natural.
Evitava-se o transporte dos pesados leitos de madeira que vinham de Portugal e s
posteriormente comearam a ser carpinteirados no Brasil (1983: 23).
Ao longo do perodo colonial, a rede-de-dormir usada com vrias
funes no ciclo de atividades dirias:
Estando constantemente armada (como no serto nordestino as redes acolhedoras
viviam nos alpendres e latadas) servia de cadeira, escabelo, mocho para o descanso.
221 {jos r eginal do santos gonal ves}
Nela o visitante participava da refeio e dormia seu sono. Era uma tentativa de
acomodao raramente infrutfera. Nela conversava, mercadejava, fazia planos,
concertava alianas discutia, propunha, ajustava.(1983: 24).
Alm, evidentemente, de seu uso para o sono noturno ou para a sesta.
As redes podiam servir ainda como meio de transporte. Durante o
perodo colonial, em Salvador, em Recife, como no Rio de Janeiro, ...a rede
coberta com um dossel bordado [chamada de serpentina], levada por dois
africanos [era] o meio regular de transporte urbano da sociedade mais
alta (1983: 26). A rede para descansar, amar, dormir, tornou-se tambm
indispensvel como viatura. Carregava a gente de prol nas ruas e mesmo
para o interior das igrejas (1983: 27-28).
A rede podia e pode ainda ser usada como meio de transporte e enterro
de defuntos. Faz-se, desse modo, presente no ponto derradeiro do ciclo
de vida dos indivduos, atualizando tambm nesse momento a sua ntima
vinculao com o corpo dos seus usurios.
Sendo seu uso comum s diversas categorias sociais, dos nveis mais
inferiores aos mais altos, dos escravos aos senhores, dos pobres aos ricos,
a rede no poderia deixar de expressar, em suas cores e formas, as marcas
da distino social:
Quando as redes eram feitas, unidade por unidade, e no em sries, mecanicamente, es-
tavam todas dentro de moldes fis s convenincias tradicionais. Os tipos tinham seus
destinos, previstos, antecipados, sabidos. Eram quase sempre ...redes de encomenda e
obedeciam aos modelos inalterveis nas dimenses e cores. Azul, encarnado, amarelo,
verde, eram as tonalidades preferidas, evitando-se as que sugerissem tristeza, viuvez,
luto, morte, o lils, o roxo, o negro, para os lavores e bordados ornamentais.
As redes em branco-e-negro tiveram mercado depois de 1889. O comum, antiga-
mente no Nordeste, era a rede branca como a mais vistosa e digna dos ricos pelo
aspecto imaculado, exigindo cuidados e desvelos na conservao.
As redes de cor no eram as mais caras e nem as melhores, prendas de coronis
e fazendeiros, senhores de engenho e vigrios colados da freguesia, ou qualquer
autoridade mandona. Ficavam nas residncias medocres e menos prestigiosas.
222 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
O estilo era uma s cor, com nuanas e gradaes. Redes com enfeites de mais
de uma cor, apapagaiada, no merecia aceitamento de gente ilustre. As redes
brancas eram as tradicionais da aristocracia rural, com varandas, varrendo o
cho. (...) (1983: 119).
As varandas eram as franjas que ornavam certos tipos de rede e
tinham um signifcado social:
O tamanho das varandas, com as fmbrias orladas de bolinhas, (...), fgurava como
honraria. As redes de escravos, as redes pobres, no tinham varandas. As redes co-
muns, compradas nas feiras, fabricadas comumente, tinham varandas curtas. Uma
alta distino, sinal de poderio, era ver-se algum em rede branca, com as varandas
quase arrastando no solo. Como as redes eram feitas sob encomenda unicamente
para as pessoas graduadas vinham varandas compridas (1983: 122).
As redes eram tambm, segundo Cascudo, alvo de uma srie de ati-
tudes rituais:
A soberania dos fazendeiros compreendia a rede como expresso legtima da pr-
pria grandeza. Botar a mo no punho da rede onde estivesse deitado um desses chefes
onipotentes era sinal de privana, initimidade, confana. Falar segurando o punho
da rede era o mesmo que acobertar-se debaixo do manto ducal. O protocolo era a
fala de p, diante da rede, respeitando a distncia cautelosa. (1983: 122).
E continua:
Coerentemente, cortar os punhos da rede senhorial era um desafo supremo, equiva-
lente a cortar a cauda do cavalo de estimao. Nas guerrilhas polticas, at quase
fnais do sculo XIX, surpreendendo um bando inimigo Casa Grande indefesa
nunca esquecia o chefe de deixar o sinal do atrevimento inapagvel: o punho da
rede cortado a faco. Era pior do que incendiar a casa inteira. Cortei-lhe o punho da
rede, orgulhava-se o vencedor ocasional at a inevitvel represlia(1983: 123).
Na medida em que pensada como uma extenso do corpo do seu
proprietrio, ela o acompanha em seus diversos deslocamentos sociais e
simblicos. A rede pode estar no interior da casa, no alpendre, nas ruas
223 {jos r eginal do santos gonal ves}
e estradas. Ela o acompanha no apenas fsicamente mas moralmente.
Ela torna-se uma espcie de extenso material e esttica de sua condio
social e moral:
A rede representa o mobilirio, o possudo, a parte essencial, esttica, indivisvel
do seu dono. (...) Ainda hoje o sertanejo nordestino obedece ao secular padro. A
rede faz parte do seu corpo. a derradeira coisa de que se despoja diante da misria
absoluta (1983: 25).
O eixo de toda sua descrio e anlise da rede-de-dormir est, me
parece, na relao fundamental entre o corpo e a cultura. O que os usos
desse objeto evidenciam o seu signifcado como extenso do corpo e do
self. O vnculo percebido por Cascudo entre a rede e o corpo vai ser en-
fatizado quando ele ope o uso da rede ao uso da cama. Trata-se de uma
oposio que , ao mesmo tempo, material, histrica, social, cultural,
moral, esttica, econmica; mas uma oposio cuja dimenso fsiolgica
parece desempenhar um papel fundamental na sua concepo de cultura.
Comparando as relaes entre o corpo, a rede e a cama, ele afrma:
O leito obriga-nos a tomar seu costume, ajeitando-nos nele, numa sucesso de
posies. A rede toma o nosso feitio, contamina-se com os nossos hbitos, repete,
dcil e macia, a forma de nosso corpo. A cama hirta, parada, defnitiva. A rede
acolhedora, compreensiva, coleante, acompanhando tpida e brandamente, todos
os caprichos de nossa fadiga. Desloca-se, incessantemente renovada, solicitao
fsica do cansao. Entre ela e a cama h a distncia da solidariedade resignao
(1983: 13).
possvel surpreender nessa descrio simultaneamente o objeto em
sua materialidade, sua forma e em seus usos sociais e simblicos. Mais
que a expresso emblemtica de uma sociedade ou uma camada social
determinada, esse objeto e seus usos parecem na verdade colocar essa
sociedade em movimento.
7
E mais precisamente, no caso especfco da
rede de dormir, num movimento pendular, defnido pela adaptabilidade
ao cosmos. A rede faz mediaes sensveis entre vrias oposies, entre a
7 Aqui acompanho
uma sugesto pre-
sente no pensamento
de Mauss, para o qual
o fluxo da vida social
seria impensvel sem
os objetos materiais
e sem o corpo huma-
no, ou seja, sem os
efeitos fisiolgicos
das diversas catego-
rias col eti vas: No
podemos descrever
o estado de um in-
divduo obrigado,
ou seja, moralmente
preso, alucinado por
suas obrigaes, por
exemplo uma questo
de honra, a no ser
que saibamos qual
o efeito fisiolgico e
no apenas psicolgi-
co dessa obrigao
(Mauss 2003 [1950]
319-348).
224 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
fxidez e o deslocamento, entre o interior e exterior, o privado e o pblico,
entre o cu e a terra, entre o self e o mundo. O uso desse objeto articula
material e simbolicamente uma forte valorizao de uma subjetividade
que se defne precisamente no pela ao disciplinada e voluntariosa por
meio da qual se impe sobre o mundo, o que caracterizaria a chamada
moderna subjetividade ocidental, mas, ao invs, pela sua plasticidade e
adaptao a esse mundo
8
.
IV.
SUBJETIVIDADE
O que pretendi ressaltar nessa exposio foi a possvel utilidade ana-
ltica da noo de patrimnio para iluminar determinados aspectos da
vida social e cultural, especifcamente sua ressonncia, sua materia-
lidade e, concomitantemente, a presena incontornvel do corpo e suas
tcnicas. Volto-me agora para o papel fundamental que desempenha a
categoria do patrimnio no processo de formao de subjetividades indi-
viduais e coletivas. Em outras palavras, no h patrimnio que no seja
ao mesmo tempo condio e efeito de determinadas modalidades de au-
toconscincia individual ou coletiva.
9
Quero dizer que entre o patrimnio
e essas formas de autoconscincia existe uma relao orgnica e interna
e no apenas uma relao externa e emblemtica. Em outras palavras,
no h subjetividade sem alguma forma de patrimnio.
A fm de desenvolver nosso raciocnio, cabe distinguir inicialmente
dois signifcados que assumiram historicamente as concepes de cul-
tura. De um lado uma concepo clssica, na qual a cultura pensada
como processo de auto-aperfeioamento humano. De outro, uma con-
cepo moderna vigente sobretudo a partir do sculo XVIII, fundada no
pensamento do flsofo alemo Johann Gottfried Herder (1744 -1803) e
segundo a qual as culturas seriam expresses orgnicas da identidade
das diversos grupamentos humanos. No primeiro caso, a noo de cul-
tura est associada idia de trabalho, de esforo constante e consciente
no sentido de formar e aperfeioar os seres humanos. No segundo, ela
8 Para uma discusso
bastante rica da cate-
goria subjetividade
e como ela se confi-
gura no ocidente mo-
derno em comparao
com outros contextos
culturais ver Goldman
(1988). Para a noo
de adaptabilidade
na concep o de
subjetividade, ver o
cl ssi co de Weber
sobre a rel i gi o na
China antiga (1951).
Devo essas sugestes
a Ricardo Benzaquen
Arajo, em comunica-
o pessoal.
9 Alguns autores j
chamaram a ateno
para esse aspecto
no contexto da mo-
dernidade ocidental,
assinalando, em Lo-
cke, a relao entre
a moderna noo de
indivduo e a noo de
propriedade, expressa
na categoria do indi-
vidualismo possessi-
vo (Handler 1985);
ver t ambm uma
inspiradora reflexo
sobre a relao entre
as prticas de colecio-
namento e formao
da subjetividade em
James Clifford (1985;
2002).
225 {jos r eginal do santos gonal ves}
pensada fundamentalmente como expresso da alma coletiva, assumindo
o sentido relativista que veio marcar a histria da antropologia ao longo
do sculo XX.
O ponto importante a ser considerado no entanto a repercusso
desses dois entendimentos da cultura nos usos da categoria patrimnio.
Se por um lado, este pode ser entendido como a expresso de uma nao
ou de um grupo social, algo portanto herdado; por outro ele pode ser
reconhecido como um trabalho consciente, deliberado e constante de
reconstruo. Se os dois lados esto presentes na categoria patrimnio,
este parece funcionar como uma espcie de mediador sensvel entre essas
duas importantes dimenses da noo de cultura. Os patrimnios podem
assim exercer uma mediao entre os aspectos da cultura classifcados
como herdados por uma determinada coletividade humana, e aque-
les considerados como adquiridos ou reconstrudos, resultantes do
permanente esforo no sentido do auto-aperfeioamento individual e
coletivo.
Uma outra oposio parece existir ainda de modo tenso nos limites
dessa categoria: o universal e o singular. Ernst Cassirer chama nossa aten-
o para um dilema importante:
Se nos ativermos exigncia da unidade lgica, a individualidade de cada campo
e a caracterstica do seu princpio correm o risco de dissolver-se na universalidade
da forma lgica; se, em contrapartida, mergulhamos nesta mesma individualidade
e nos limitarmos sua anlise, h o perigo de nos perdermos nela e de no encon-
trarmos mais o caminho de volta para o universal (Cassirer 2001: 28-29).
10

possvel que o patrimnio ou mais precisamente, o patrimnio
segundo o modo como o estamos articulando, enquanto uma categoria
de pensamento nos possibilite uma mediao entre esses extremos.
Ela talvez permita surpreender de modo tenso e simultneo aspectos
da cultura que so apenas parcimoniosamente iluminados por teorias
classifcadas como universalistas (das quais seria um exemplo notvel a
obra de Claude Lvi-Strauss); ou por teorias classifcadas como relativis-
10 Sublinho que no
h necessariamente
um meio termo,
qualquer espcie
de compromisso
de estadista entre
essas opes, uma
vez reconhecido seu
carter antinmico.
Segundo Max Weber:
...es preciso combatir
con la mayor decisin
la difundida creencia
de que la objetividad
cientfica se alcanza
sopesando entre si las
diversas valoraciones
y estableciendo entre
ellas un compromiso
de estadista. Pero
el termo medio es
tan indemostrable
cientficamente, con
los recursos de las
disciplinas empricas,
como las valoraciones
ms extremas.
(Weber 1973 [1917]:
231).
226 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
tas (entre as quais merece destaque a obra de Cliford Geertz). Afnal, os
patrimnios so sempre concretos e especfcos, embora no irredutivel-
mente singulares; e universais, embora essa universalidade seja sempre
de natureza concreta e contingente.
possvel que a possamos reconhecer a presena do que Marcel Mauss
chamou de arbitrrio cultural:
Todo fenmeno social possui efetivamente um atributo essencial: seja ele um sm-
bolo, uma palavra, um instrumento, uma instituio, seja ele a lngua ou a cincia
mais bem feita, seja ele o instrumento que melhor se adapte aos melhores e mais
numerosos fns, seja ele o mais racional possvel, o mais humano, ainda assim ele
arbitrrio. (1979[1929]: 192-193).
Na medida em que arbitrrios, os patrimnios no esto centrados
na sociedade, na histria ou na natureza; eles prprios que, na verda-
de, constituem um centro que histrica e culturalmente constitudo,
podendo assumir mltiplas formas no tempo e no espao formas ins-
titucionais, rituais, textuais. Nesse sentido poderamos dizer que uma
instituio como o Potlatch do noroeste americano estudado por Marcel
Mauss (2003 [1925]: 185-318); a cerimnia trobriandesa do Kula, objeto de
uma monografa clssica escrita por Bronislaw Malinowski (1976 [1922]);
a bruxaria zande interpretada por E. E. Evans-Pritchard (1978 [1938]); as
diversas modalidades de totemismos analisados por Claude Lvi-Strauss
(1962); as brigas de galo em Bali analisadas por Cliford Geertz (1978 [1973]);
a fgura do narrador em sua forma tradicional, analisado em um be-
lssimo texto por Walter Benjamin (1986a [1936]); os antagonismos em
equilbrio que iluminam a anlise do sistema patriarcal brasileiro por
Gilberto Freyre (Freyre [1936]; Arajo 1995); objetos materiais como a rede-
de-dormir estudada por Luis da Cmara Cascudo (1983 [1959]); as alegorias
do carnaval carioca analisadas por Maria Laura Viveiros de Castro Caval-
canti (1994); alguns dos padres culinrios brasileiros em estudos como
os de Eunice Maciel (2004); ou ainda a msica popular e suas relaes com
a msica erudita no contexto do modernismo brasileiro, em brilhante
227 {jos r eginal do santos gonal ves}
estudo de Santuza Naves (1998); esses exemplos, ao lado de tantas outras
instituies, prticas, ritos, objetos materiais, e suas respectivas repre-
sentaes textuais, podem ser pensados como patrimnios.
Mas, cabe perguntar: afnal, em que essas instituies, cerimnias e
objetos materiais se tornam diferentes quando pensados enquanto pa-
trimnios o patrimnio aqui entendido enquanto categoria de pensa-
mento e reconhecido seu potencial analtico? Qual a vantagem enfm de
entend-los como patrimnios?
Eu arriscaria dizer que, luz dessa categoria, aquelas instituies, ritos
e objetos podem ser percebidos simultaneamente em sua universalidade
e em sua especifcidade; reconhecidos ao mesmo tempo como necess-
rios e contingentes; adquiridos (ou construdas e reproduzidas no tempo
presente) e ao mesmo tempo herdados (recebidos dos antepassados, de
divindades, etc.); simultaneamente materiais e imateriais; objetivos e
subjetivos; reunindo corpo e alma; ligados ao passado, ao presente e ao
futuro; prximos, ao mesmo tempo em que distantes; assumindo tanto
formas sociais quanto formas textuais (por exemplo, nas etnografas e
nos ensaios em que vieram foram representados).
11
O sentido fundamental
dos patrimnios consiste talvez em sua natureza total e em sua funo eminen-
temente mediadora.
Aproximamo-nos aqui da noo de cultura autntica (em oposio
cultura espria ou enlatada) tal como formulada num artigo clssico
de Edward Sapir. A cultura autntica, afrma, no necessariamente alta
ou baixa; apenas inerentemente harmoniosa, equilibrada e auto-satis-
fatria. Ela a expresso de uma atitude ricamente diversifcada diante
da vida e ainda assim consistente, uma atitude que v a signifcao de
qualquer elemento da civilizao em sua relao com todos os outros
(1985: 315). Uma forma autntica de cultura no pode portanto jamais ser
entendida como ...uma soma de fnalidades abstratamente desejveis,
como um mecanismo (1985: 316), dentro do qual o indivduo seja apenas
uma pea (1985: 315). Para esse autor, a cultura autntica no est basea-
da numa oposio verdadeira entre o indivduo culturalizado e o grupo
11 Sem considerarmos
aqui as demais formas
de representao et-
nogrfica tais como
fotografias, filmes e
exposies museogr-
ficas. Sobre esse ponto
ver Geertz (1978: 30).
228 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
cultural (1985: 321-322). Para ele, o indivduo no pr-existe s formas
culturais, mas , at certo ponto, um efeito dessas formas culturais. No
entanto, e a est a diferena, para Sapir essas formas no so entidades
objetifcadas esperando para serem descritas e analisadas. Quando so
autnticas, essas formas no se dissociam dos indivduos, e estes as sentem
como parte deles, como sua criao e no com algo estranho. A cultura,
segundo Sapir, quando autntica, vivida pelos indivduos como uma
experincia de criao, de transformao. Nela o indivduo pensado
...como um ncleo de valores cultuais vivos (1985: 318). Em resumo, a
cultura, quando autntica, no se impe de fora sobre os indivduos, mas
de dentro para fora, sendo uma expresso da criatividade destes.
Outro aspecto igualmente importante na sua compreenso das cultu-
ras autnticas ...a atitude adotada em relao ao passado, suas institui-
es, seus tesouros de arte e pensamento (1985: 325). Esse passado, no con-
texto dessas culturas, no existem na forma como determinados objetos
so apreciados atravs das vitrines dos museus. Na verdade, afrma Sapir,
...o passado de interesse cultural apenas quanto ele est ainda presente
e pode tornar-se o futuro (1985: 325). Esse aspecto, cabe sublinhar, man-
tm uma ostensiva afnidade com a categoria patrimnio, tal como a
estamos explorando nestas refexes. Ele articula-se intimamente com a
dimenso da subjetividade, uma vez que esta pressupe sempre alguma
forma especfca de continuidade entre passado, presente e futuro.
O que desejo ressaltar ao trazer essa concepo de cultura autn-
tica, tal como formulada por Sapir, no evidentemente legitimar as
estratgias intelectuais correntes que condenam certas formas culturais
inautenticidade enquanto congelam outras na condio de autnti-
cas. Nem era tampouco o objetivo daquele autor, embora estivesse ento
motivado por uma atitude de crtica da cultura moderna, e particular-
mente da cultura norte-americana. J tive oportunidade de num artigo
chamar a ateno para a necessria discusso da autenticidade enquanto
categoria de pensamento e sua relevncia nos debates culturais (Ver Ca-
ptulo VI deste livro). O que sublinho a utilidade dessa noo de cultura
229 {jos r eginal do santos gonal ves}
autntica como um instrumento conceitual para interromper todo e
qualquer processo de objetifcao de formas culturais. Explorando as
conseqncias analticas mais importantes do texto de Sapir, podera-
mos dizer que a cultura autntica precisamente o que escapa de toda e
qualquer defnio, classifcao e identifcao precisa e objetifcadora,
tal como ocorre nos discursos de patrimnio cultural em seu sentido
moderno, especialmente quando articulados por agncias do Estado. So
exatamente as formas de cultura autntica que necessariamente esca-
pam das redes desses discursos.
V.
Num ensaio de 1933, Experincia e pobreza, Walter Benjamin pergunta-
va: ...qual o valor de todo nosso patrimnio cultural, se a experincia no
mais o vincula a ns? (1986 [1933]). Numa perspectiva identifcada como
crtica da cultura, o autor apontava a perda da experincia como uma
caracterstica da modernidade. No entanto, possvel que, se concebemos
os patrimnios do ponto de vista etnogrfco, se abrimos essa categoria e
exploramos suas outras dimenses, possamos encontrar formas de patri-
mnio cultural no mundo contemporneo que estejam fortemente ligadas
experincia. Assim, as festas religiosas populares, quando consideradas
do ponto de vista dos devotos e suas relaes de troca com determinadas
divindades (ver Captulos VI e XI deste livro). Essa dimenso existe numa
permanente tenso com aquela outra, na qual as festas so classifcadas
do ponto de vista de agncias do Estado (e parcialmente assumida pelos
prprios devotos) como formas de patrimnio cultural, patrimnio
imaterial, etc.
As variaes de signifcado nas representaes sobre a categoria pa-
trimnio oscilam possivelmente entre um patrimnio entendido como
parte e extenso da experincia e portanto do corpo; e um patrimnio
entendido de modo objetifcado, como coisa separada do corpo, como
objetos a serem identifcados, classifcados, preservados, etc. Por um lado,
um patrimnio inseparvel do corpo e suas tcnicas o corpo, que ,
230 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
em si, um instrumento e um mediador social e simblico entre o self e
o mundo (Mauss 2003 [1950]: 401-424); e por outro lado um patrimnio
individualizado e autonomizado, com a funo de assumir o papel de
representao ou de expresso emblemtica de categorias que so
transformadas em alguma forma de entidade, seja a nao, o grupo tnico,
a regio, a natureza, entre outras.
Penso que, uma vez submetidos a esse prisma analtico, os atuais dis-
cursos (e polticas) de patrimnio cultural talvez possam assumir formas
menos onipotentes. Na medida em que esses discursos sejam expostos
ao reconhecimento da natureza ambgua e precria dos objetos que eles,
simultaneamente, representam e constituem, interrompe-se o esforo
obsessivo de objetifcao dos patrimnios. Para o autor destas refexes,
esta seria evidentemente uma expectativa ambiciosa.
231 {jos r eginal do santos gonal ves}
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1992 Inalianable possessions: the paradox of keeping while giving, University
of California Press, Berkeley.
A Obsesso pel a Cul tur a
Este texto foi originalmente uma comunicao em um ciclo de pales-
tras (Cultura, Substantivo Plural) promovido pelo CCBB em novembro
de 1995.
Em seguida ela foi publicada em um livro que reunia todas as comuni-
caes do ciclo e com o mesmo ttulo: Cultura, Substantivo Plural (Coord.
Marcia de Paiva e Maria Ester Moreira), CCBB, 34 Letras, 1996, Rio de
Janeiro.
estranho que determinadas pocas no consigam se livrar do
poder de certos conceitos. O conceito de cultura, por exem-
plo. Ele parece ter marcado defnitivamente a segunda metade do sculo
XIX e todo o sculo XX. H uma espcie de obsesso por essa idia. Os
antroplogos, paralelamente, e em contraste com outros especialistas,
tm desempenhado um papel especfco nesse processo. Ao construrem
a noo de cultura para pensar as experincias humanas, as diferenas
entre civilizados e primitivos, entre ns e os outros, trouxeram
algo que, simultneamente, desencadeia e cura a doena; ao mesmo tem-
po, veneno e remdio.
Houve poca em que os seres humanos eram pensados a partir de um
outro vocabulrio. Por exemplo, a partir de sua suposta condio de f-
lhos de Deus. Interpretar as experincias humanas, entender a histria
da humanidade signifcava tomar como ponto de partida essa condio,
manifestao de uma vontade e determinao divina. A humanidade
comeava com Ado e Eva. Esse pressuposto estava presente naquelas
interpretaes que identifcavam nas chamadas sociedades primitivas os
remanescentes de um processo de degenerao que teria atingido parte
da humanidade. Essa degenerao era pensada em termos teolgicos,
237 {jos r eginal do santos gonal ves}
resultado da experincia do pecado. Os primitivos estariam no fm de
um longo processo.
As interpretaes propostas pelos antroplogos evolucionistas, na
segunda metade do sculo XIX, vo trazer um outro vocabulrio. Palavras
como origem, evoluo e cultura passam a desempenhar um papel
fundamental. No discurso de evolucionistas como Morgan, Tylor, Frazer e
outros, os primitivos no estariam no fm de um longo processo de degene-
rescncia, mas no incio de um processo de evoluo. Eles representariam
a origem da humanidade, um estgio inicial de sua evoluo. Deus no
seria mais a palavra forte nesse vocabulrio. Ela seria substituda por
cultura. Essa palavra seria extensiva a toda a humanidade, diferenciada,
no entanto, em termos de uma hierarquia evolutiva. Povos mais ou menos
evoludos, estgios mais ou menos avanados de cultura. O grande marco
de referncia seria as sociedades europias do sculo XIX, consideradas
como o pice da evoluo humana, como o estgio mais avanado da
evoluo cultural. As demais sociedades seriam consideradas como mais
ou menos evoludas em relao a esse padro de referncia. Presena ou
ausncia, maior ou menor extenso de traos como Estado centralizado,
propriedade privada, famlia monogmica, desenvolvimento tecnolgico
estaria entre os critrios de identifcao dos distintos estgios de evo-
luo das sociedades.
Vale assinalar que no vocabulrio evolucionista, a palavra cultura,
ou a noo de evoluo cultural vai sempre acoplada noo de evoluo
biolgica. De tal forma que os chamados primitivos eram assim clas-
sifcados no apenas no plano cultural, mas tambm no plano biolgico
(Stocking 1968).
O que diferencia o uso da palavra cultura no vocabulrio evolucio-
nista o fato de aparecer sempre no singular. Fala-se em cultura, sua
origem e evoluo; mas no em culturas. Esse deslocamento do singu-
lar para o plural que vai marcar a genealogia da noo de cultura, tal
como aparece no discurso antropolgico moderno (Stocking 1968). Isso
vai ocorrer em fns do sculo XIX e incio do sculo XX. Nesse perodo, em
238 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
debate com os evolucionistas, autores como Boas, Malinowski, Durkheim
e Mauss vo elaborar um vocabulrio alternativo, onde desempenha um
papel crucial a noo etnogrfca de cultura (alm, evidentemente, das
noes de trabalho de campo, observao participante, etnografa
e outras que integram o jargo da disciplina). nesse momento que os
antroplogos vo opor esse vocabulrio aos discursos do viajante, do mis-
sionrio e do funcionrio da administrao colonial a respeito dos chama-
dos primitivos (Cliford 1988). O que os antroplogos vo defender, e que
a marca registrada da disciplina, que se deveria entender os primitivos
a partir de suas prprias perspectivas, a partir das categorias nativas
de pensamento. O estudo da lngua falada nessas sociedades passou a ser
um requisito fundamental para o entendimento de sua cultura. H uma
ntima associao entre entender a lngua nativa e entender a cultura.
O uso da noo de cultura no plural est embutido em uma nova con-
cepo da linguagem, ou linguagens, enquanto sistemas de signos, e que
est associada ao nome de Saussure. As experincias humanas, a partir
de ento, vo ser pensadas atravs da metfora da linguagem, que pas-
sa a desempenhar um papel central. Confgura-se nesse momento um
vocabulrio, cujos pressupostos tornam-se visveis, agora, no fnal do
sculo. Esse perodo, que cobre aproximadamente dois teros do sculo
XX, parece to obcecado por essa noo etnogrfca de cultura quanto
o sculo XIX estava obcecado pelas noes de evoluo, raa, origem,
histria e progresso (Cliford 1988). Segundo essa concepo de cultu-
ra, tambm conhecida como relativismo cultural, os seres humanos
so constitudos por sistemas de signos diferenciados, atravs dos quais
pensam e articulam suas experincias, suas relaes com a sociedade e
a natureza. A partir da obra de Saussure e dos antroplogos, postula-se
a arbitrariedade dos signos lingusticos, assim como a arbitrariedade
dos signos culturais que constituem as experincias humanas.
Num ensaio escrito ainda nos anos sessenta, Cliford Geertz descreveu
esse processo como o impacto do conceito de cultura sobre o conceito
de homem (1973). Ele argumenta que esse conceito provocou um des-
239 {jos r eginal do santos gonal ves}
centramento sobre a noo de homem tal como esta se confgurava no
vocabulrio iluminista francs do sculo XVIII. Segundo esse discurso, os
homens seriam idnticos em todo e qualquer lugar, partilhando uma ra-
zo que seria idntica em toda e qualquer sociedade e em todo e qualquer
perodo histrico. As culturas, nessa perspectiva, no eram seno rou-
pas, disfarces, que ocultariam uma identidade profunda. A diversidade
seria o superfcial, a universalidade o profundo. J no horizonte aberto
pela noo etnogrfca de cultura, as diferenas culturais no seriam
roupas ou mscaras que os homens vestiriam ou despiriam vontade,
mas, na verdade, constituiriam os seres humanos, seus pensamentos,
suas emoes, e suas prticas. Em outras palavras, sem culturas, ou sem
linguagens, no haveria seres humanos.
A concepo universalista uma espcie de outro da noo etno-
grfca ou relativista de cultura, e com a qual mantm uma relao de
permanente tenso, desde a sua formao. Uma e outra freqentam a
antropologia e podem ser caracterizadas atravs de matrizes tais como
tradio iluminista e tradio romntica; ou de paradigmas, como
razo prtica e razo simblica; atravs de identidades disciplinares,
tais como antropologia como cincia natural da sociedade e antropolo-
gia como uma das humanidades; ou ainda, atravs de objetivos discipli-
nares: uma cincia em busca de leis, ou em busca de signifcados.
Essa relao de tenso pode assumir a forma de mtuas acusaes: os
universalistas atacam os relativistas como inimigos da cincia, obscuran-
tistas, subjetivistas, ticamente insensveis (ou sem carter), anti-pro-
fssionais, etc. Estes reagem, acusando os primeiros de etnocntricos,
mais preocupados em vestir os outros com suas prprias idias e valores,
do que em respeitar-lhes as singularidades. Ainda no campo relativista,
alguns diagnosticam um medo do relativismo, que seria gerado pelas
prprias fantasias universalistas a respeito de uma natureza e de
uma mente humana uniformes (Geertz 1988).
Em uma e outra perspectivas, percebe-se uma verdadeira obsesso
pela noo de cultura, que ora aparece no registro da universalidade, ora
240 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
no registro da singularidade; ora sustentando um modelo cientfco de
conhecimento, ora um modelo de conhecimento identifcado s chama-
das humanidades. Ela permanece, no entanto, como uma palavra chave
no vocabulrio dessa poca. O que parece marcar o momento atual, dos
anos setenta e oitenta para c, uma perspectiva de distanciamento em
relao a esse vocabulrio, uma atitude irnica em relao epistemologia
que foresce no fnal do sculo XIX e incio do sculo XX e que gerou a
antropologia social e cultural, tal como a conhecemos at hoje.
Meu ponto o seguinte: a obsesso que une, ao mesmo tempo que di-
vide, uma e outra perspectivas talvez se explique pelo que uso que fazem
dessa metfora fundamental do vocabulrio antropolgico moderno: a
noo de linguagem. Apesar das divergncias, que alimentam um extenso
debate que j faz parte dos manuais de histria da antropologia, essas
perspectivas convergem quanto ao modo de conceber a linguagem e
suas relaes com dimenses extra-lingusticas.
TEORIA E NARRATIVA
Uma relao de forte tenso entre duas atitudes distintas constitui as
identidades que a disciplina assumiu ao longo de sua histria, desde sua
formao. De um lado, uma atitude que poderamos chamar de terica
e que se expressa nos trabalhos daqueles antroplogos que, ao estudarem
a cultura, buscam os seguintes objetivos:
a) generalizao;
b) busca de princpios e leis universais;
c) descoberta de relaes de determinao no plano emprico, ou re-
laes necessrias no plano lgico;
d) subordinao do tema do indivduo ao tema da cultura, entendida
como uma como totalidade coerente e estvel (um indivduo pensado em
termos universais, partilhando um fundo de identidade encontrvel em
qualquer contexto);
e) subordinao do tema da histria regularidade dos princpios
(uma histria pensada como o domnio da contingncia);
241 {jos r eginal do santos gonal ves}
f) a cultura como objeto passvel de um conhecimento similar ao pro-
duzido pelas cincias naturais;
g) primado da representao;
h) construo de teorias da cultura.
Por outro lado, uma atitude que chamaramos de narrativa, arti-
culada em estudos antropolgicos, que se caracterizariam do seguinte
modo:
a) ceticismo em relao a generalizaes;
b) foco em situaes singulares;
c) nfase no indivduo (um indivduo sempre culturalizado);
d) nfase na histria (uma histria pensada em termos de padres
culturais);
f) a cultura como um tema de conhecimento similar ao produzido
nas humanidades;
g) primado da narrativa;
h) o que os antroplogos fazem etnografa.
Atravs da primeira atitude se espera obter certeza, rigor, determi-
nao, regularidade e generalidade nos estudos da cultura. Atravs da
segunda se espera obter contingncia, criatividade, singularidade, in-
determinao. Da primeira decorre um discurso profssionalizado, re-
lativamente isolado em relao sociedade mais ampla. Da segunda um
vocabulrio menos especializado, mais prximo da sociedade. Cada uma
dessas vai junto com um certo modo de conceber a identidade dos antro-
plogos. Num caso, cientistas. No outro, crticos da cultura.
Frazer e Malinowski, Radclife-Brown e Evans-Pritchard, Kroeber
e Boas, Lvi-Strauss e Geertz so pares de autores que, em diferentes
momentos da histria da disciplina, dramatizam essa tenso no discurso
antropolgico. preciso que se diga que no se trata aqui de mais uma
tipologia, mas de uma relao estruturante desse discurso. Assim, essa
tenso pode existir, de formas mais ou menos intensas, na obra de um
mesmo autor. A distino entre Malinowski como terico da cultura
(autor de Uma teoria cientfca da cultura) e o Malinowski etngrafo (au-
242 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
tor de Os argonautas do pacfco, alm de outras monografas) um caso
exemplar.
Essa oposio entre uma atitude terica e uma atitude narrativa
poderia ser perfeitamente dispensvel se ela apenas reeditasse a velha
oposio entre universalismo e relativismo, ou uma valorizao da teoria
versus a etnografa. No entanto, o uso que fao dessa oposio tem a fun-
o de iluminar um outro aspecto: o reconhecimento ou no do carter
fccional da cultura. Esse ponto pode ser qualifcado se focalizarmos as
concepes de linguagem embutidas nos discursos antropolgicos que
confguram o debate entre as perspectivas universalista e relativista.
O reconhecimento ou no desse carter fccional da cultura vai afe-
tar o modo como se concebe a etnografa, uma modalidade de produo
intelectual fundamental na identidade da disciplina. No primeiro caso,
esta deixa de ser apenas uma coleta de dados que viriam alimentar uma
refexo terica e defniria o prprio modo de refexo antropolgica,
onde a teoria aparece embutida na pesquisa etnogrfca. fcil encon-
trar na comunidade dos antroplogos profssionais com maior ou menor
afnidade com a pesquisa etnogrfca, com maior ou menor talento para
essa atividade. um pouco mais difcil, alm de pouco convincente, que
algum se declare contra a etnografa. Meu ponto aqui que no sufcien-
te dizer que a prtica da etnografa defne a perspectiva antropolgica.
preciso, afnal, qualifcar essa noo, dizer de que etnografa se trata, de
que modo ela concebida, se no quisermos correr o risco de entend-la
de modo restrito, como atividade de apoio teoria, simples observao e
coleta de dados. O reconhecimento ou no do carter fccional da cultura
vai afetar qualitativamente o modo como podemos entender a etnografa,
tornando-a um empreendimento discursivo plural, que pode assumir
vrias formas, livre de um rgido contrle metodolgico. Afnal, Malino-
wski assim como Evans-Pritchard, Boas assim como Ruth Benedict, Geertz
assim como Lvi-Strauss fzeram etnografas. Mas quanta diferena entre
seus textos.
243 {jos r eginal do santos gonal ves}
UM FRTIL PONTO DE VISTA
Em um dos seus livros, Contingncia, Ironia e Solidariedade, o flsofo
americano Richard Rorty sugere que podemos distinguir dois tipos de
estratgias em relao ao conhecimento. Por uma lado, uma estratgia
irnica; por outro, uma estratgia metafsica. A primeira consiste,
segundo ele, em:
1) dvidas permanentes em relao ao vocabulrio fnal que usamos
para nos descrever e aos outros, uma vez que j fomos expostos a outros
vocabulrios, considerados como fnais, atravs de pessoas e coletividades
que no fazem parte do nosso cotidiano;
2) a percepo, segundo a qual, os argumentos apresentados em nosso
vocabulrio no so capazes de dissolver essas dvidas;
3) o reconhecimento de que os nossos vocabulrios no esto mais
prximos da realidade do que os outros, de que eles no esto em contato
com nenhum poder, com nenhuma dimenso que nos transcenda.
Os que assumem essa estratgia irnica no esto preocupados avaliar
esses vocabulrios no contexto de um meta-vocabulrio que seria neutro
e universal, nem em opor um vocabulrio a outro enquanto aparncia e
realidade (no sentido em que um seria mais verdadeiro que outro, que
um revelaria mais a realidade do que outro). Os irnicos limitam-se a
contrastar esses vocabulrios no tempo ou no espao, explorando as suas
respectivas possibilidades de conhecimento e construo da realidade.
J aqueles que assumem a estratgia metafsica cultivam um voca-
bulrio fnal como a via nica de acesso a uma realidade, que existiria
por si mesma. A pergunta que assumem literalmente : em que consiste
intrinsecamente essa realidade?, qual a sua essncia?, como podemos re-
present-la objetivamente?.
Essa oposio entre irnicos e metafsicos pode nos ser til para
pensar algumas estratgias que tm caracterizado o discurso antropo-
lgico. Quando os antroplogos perguntam o que a cultura?, buscan-
do encontrar princpios ou leis universais que a expliquem; ou quando
tentam responder essa mesma pergunta buscando smbolos e signifca-
244 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
dos a serem interpretados; o que acontece que, seguindo um ou outro
caminho, partem sempre do pressuposto de uma linguagem que fun-
cionaria basicamente enquanto representao. Representao de um
mundo exterior ou interior. Ora ela refetiria o mundo social e natural;
ora expressaria uma interioridade individual ou coletiva.
No chamado contexto ps-estruturalista, um deslocamento parece
ocorrer em relao a esse pressuposto. A pergunta mais conseqente no
ser mais exatamente se um ou outro caminho, se universalismo ou rela-
tivismo, poder dar conta das propriedades defnidoras da cultura; mas se
de fato precisamos nos ater quele pressuposto. A questo no ser mais
saber como ele possvel, mas por que ele se tornou necessrio. O que vai
estar em jogo a prpria noo de linguagem com que podemos operar.
O que parece unir universalistas e relativistas , precisamente, uma
concepo de linguagem como representao. Ambas as perspectivas
concebem essa metfora central para a noo moderna de cultura, a lin-
guagem, restringindo-a a seu uso como representao. Nesse raciocnio,
a cultura vem a ser pensada tambm como representao: ou a represen-
tao de leis e princpios universais; ou a representao de signifcados
especfcos, prprios de determinada poca ou de determinada sociedade
em um momento de sua histria; ou a representao de uma mente ou
uma natureza humana universais; ou a representao de contextos
sociais articulados por teias de signifcado sempre singulares.
O que vai permitir um deslocamento em relao a essa obsessiva osci-
lao entre as duas perspectivas uma concepo da linguagem pensada a
partir dos seus mltiplos usos, na qual a funo de representao aparece
como uma possibilidade entre outras. As repercusses dessa concepo de
linguagem sobre as concepes antropolgicas de cultura vo fazer com
que esta seja pensada tambm em termos de seus usos, de seus efeitos, e
no de propriedades intrnsecas defnidoras. Conseqentemente, o que
vir a ser enfatizado nessas concepes a dimenso de criatividade
da cultura, ou seja, as mltiplas formas que podem assumir seu funcio-
namento e seus efeitos. Ela deixa, assim, de estar amarrada funo de
245 {jos r eginal do santos gonal ves}
representar alguma outra dimenso que a ela se oponha em termos de
exterioridade.
A partir dessa estratgia que, aceitando a sugesto de Rorty, cha-
maramos de irnica, a cultura vem a ser pensada menos como um
objeto, e mais como uma inveno, como um artifcio por meio do
qual podemos interpretar, ao mesmo tempo que inventar (no sentido
de construir e de criar) nossas experincias e de outros. Essa possibi-
lidade brilhantemente explorada por Roy Wagner que, em um dos seus
livros, The invention of culture [A inveno da cultura], onde sugere que A
antropologia o estudo do homem como se existisse cultura (1975:10).
Isso signifca dizer que, ao estudar uma outra cultura, seja uma distante
sociedade tribal, seja um grupo integrante de sua de prpria sociedade,
o que os antroplogos fazem inventar uma cultura por meio da qual
as prticas dessas pessoas possam ganhar inteligibilidade. Na medida em
que assim procedem, inventam para si mesmos uma cultura, uma vez que
o estudo da cultura a nossa forma de cultura. por meio desse pro-
cedimento que tornamos visveis as experincias dos outros e as nossas,
transformando-as em culturas. Nesse sentido, irrelevante perguntar
se a cultura existe mesmo ou no. Ela existe como efeito desse processo
de inveno, que se desencadeia na relao entre antroplogo e nativo.
Atravs desse processo, os antroplogos objetifcam, isto , tornam vi-
sveis, ou tornam pensveis as experincias humanas, da mesma forma
que um xam ou um psicanalista exorcisa as ansiedades do paciente, ob-
jetifcando ou tornando visveis as suas fontes (Wagner 1975:8). O que vale
destacar a precisamente essa dimenso de inveno e criatividade
da cultura, tanto no sentido geral do conceito de cultura, como os antro-
plogos usam, quanto no sentido especfco de culturas ou subculturas
singulares vividas no cotidiano de diversas sociedades.
1

Um flsofo do sculo XX dizia que aquilo que autores como Coperni-
co e Darwin nos ofereceram de mais importante no foi a descoberta de
uma teoria verdadeira, mas um frtil e novo ponto de vista (Wittgens-
tein 1984:18). provvel que isso valha tambm para os antroplogos. O
1 Numa breve refern-
cia ao uso do conceito
de inveno por Roy
Wagner, Marshall Sah-
lins, a partir de uma
perspectiva distinta,
embora complemen-
tar, vai dizer: This
is what Roy Wagner
(1975) must mean by
the invention of cul-
ture: the particular
inflection of meaning
that is given to cul -
tural concepts when
they are realized as
per sonal proj ect s
(Sahlins 1985:152).
246 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
que eles ofereceram de melhor no foram teorias verdadeiras da cultura,
mas pontos de vista frteis, que os diferentes usos da noo de cultura
tornaram possveis. Essa contribuio pode ser reconhecida como uma
possibilidade sempre presente na chamada tradio antropolgica. J
foi assinalado que se trata de uma disciplina que jamais conheceu pa-
radigmas estveis e hegemnicos, e que sempre esteve assumidamente
dividida contra si mesma. Roberto Cardoso de Oliveira, em um dos seus
ensaios, sugere:
diferena das cincias naturais, que (...) registram [os paradigmas] em sucesso
num processo contnuo de substituio , na antropologia social os vemos em
plena simultaneidade, sem que o novo paradigma elimine o anterior por via das
revolues cientfcas de que nos fala [Thomas] Kuhn, mas aceite a convivncia,
muitas vezes num mesmo pas, outras vezes numa mesma instituio (1988:15).
Vale a pena destacar essa dimenso de simultaneidade, para alertar
para o fato de que as distines que apontei na identifcao de estrat-
gias intelectuais na comunidade antropolgica perderiam toda sua fora
se fossem entendidas em termos seqenciais, maneira de um processo
evolutivo linear. O que pode garantir a vitalidade das sugestes aqui apre-
sentadas precisamente a simultaneidade, ou a convivncia, nem sempre
muito pacfca, entre essas estratgias.
A atitude irnica que podemos assumir diante da tradio antropol-
gica parece ser uma marca distintiva do momento que vivemos na histria
da antropologia, que j foi caracterizado como refexivo, hermenu-
tico, interpretativo, desconstrutivo, ou ainda como um campo de
manifestao de uma sensibilidade romntica, que acompanharia toda
a histria da disciplina, como sugere George Stocking (1989). O que pa-
rece haver em comum entre todos esses termos a identifcao de uma
atitude de distanciamento irnico e disposio para a recriao frente
tradio disciplinar. Essa atitude e disposio parecem estar presentes
em grande nmero de trabalhos publicados desde os anos oitenta do s-
culo passado.
247 {jos r eginal do santos gonal ves}
Entre os efeitos mais notveis desses trabalhos est o de sinalizar
para a possibilidade de deslocarmos as questes que, no saber conven-
cional da disciplina, dirigimos ao tema da cultura. Eles apontam, cada
um a seu modo, para a possibilidade de no mais nos perguntarmos
sobre a natureza ltima da cultura, sobre as supostas propriedades
intrnsecas que a defniriam, mas dirigem nossa ateno para os usos
que a constituem e os seus efeitos. A sugesto de que a cultura menos
um objeto dado empiricamente ou construdo teoricamente do que um
vazio diversamente e obsessivamente preenchido por diversas metfo-
ras. E as concepes de cultura, menos uma descoberta do que frteis
pontos de vista.
A CULTURA COMO CONVERSAO
Inspirado em George Herbert Mead, Kenneth Burke, um crtico liter-
rio americano, sugeria, ainda nos anos quarenta, que pensssemos a his-
tria [cultural] como uma interminvel conversao. [De onde retiramos
o material para nossos debates?, perguntava.] Segundo ele, dessa
... interminvel conversao que se desenrola j no momento da histria em
que nascemos. Imagine que voc entra em uma uma sala de debates. Voc chega
tarde. Quando voc chega, outros, h muito, j o precederam, e j esto engajados
em uma acalorada discusso, uma discusso bastante acalorada para que possam
fazer uma pausa e explicar para voc do que se trata. Na verdade, a discusso j
havia comeado muito antes que qualquer um deles tivesse chegado ali, de modo
que nenhum dos presentes est qualifcado para reconstitui para voc todos os
passos anteriores da discusso. Voc ouve um pouco, ento voc decide que foi
conquistado pelo esprito de um dos argumentos; ento voc faz sua interveno.
Algum responde; voc replica; outro intervm em sua defesa; outro se alinha
contra voc, ou para o embarao ou para a alegria do seu oponente, dependendo
da qualidade da assistncia do seu aliado. No entanto, a discusso interminvel.
A hora avana e voc tem que partir. E voc parte, com a discusso ainda intensa.
(Ver The philosophy of literary form 1973 [1941]: 110-111.)
248 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
Podemos dizer que como participantes dessa conversao, que
pode historicamente incluir um maior ou menor nmero de partici-
pantes, uma variedade mais ou menos extensa de interlocutores, e que,
sobretudo, pode estruturar-se a partir de lgicas distintas
2
, que cons-
trumos o conhecimento. Um conhecimento sempre parcial, exercen-
do-se sempre contra algum outro, confgurando-se como um campo
multiplamente dividido entre aliados e adversrios. Do ponto de vista
da comunidade dos antroplogos, a noo de cultura tem sido, simult-
neamente, o objeto e o modo desse conhecimento, o contedo e a forma
dessa conversao, simultneamente o que tranqiliza e o que inquieta,
remdio e veneno.
Minha sugesto que as interpretaes da cultura, em suas verten-
tes tericas ou narrativas, podem ser pensadas, numa perspectiva
wittgensteiniana, como jogos de linguagem ou formas de vida
(Wittgenstein [1953] 1989), em que a palavra cultura diferente-
mente usada e com efeitos diversos. As fronteiras entre esses jogos
no esto determinadas a priori. Atravs de sua separao, da quebra
de sua inter-comunicao, demarcam-se fronteiras disciplinares, que
podem ser necessrias na construo das comunidades cientificas, de
suas linhagens e faces, e na identificao de aliados e adversrios,
mas que no podem, afinal, funcionar como um impedimento para a
reflexo. O ponto a ser assinalado que o reconhecimento desse pro-
cesso, e portanto da permanente vigncia dessas opes, assim como
da necessidade de uma atitude de sistemtica indeciso diante delas,
o que pode garantir no smente a continuidade, mas a vitalidade
de nossa conversao.
Em resumo, numa perspectiva antropolgica, as culturas so constitu-
das pelas metforas por meio das quais as inventamos: ora como evoluo,
como funo, como gramtica, como cdigo, como estrutura; ora como
drama, teias de signifcados, textos, modos de produo textual, estratgias
discursivas, dialogia, narrativas. Nesse mesmo processo de inventarmos
outras culturas por meio dessas metforas, inventamos e reinventamos,
2 Vale assinalar
que esse ponto no
parece presente
na viso de Burke,
cujo entendimento
da metfora da
conversao, apa-
rentemente, restrin-
ge-se a uma lgica
simtrica (Bateson
1972), igualitria
(Dumont 1985), dei-
xando fora de foco
modalidades de con-
versao, ou dilogo,
cujas relaes entre
os interlocutores es-
tejam estruturadas a
partir de uma lgica
da complementa-
ridade (Bateson
1972), ou da hie-
rarquia (Dumont
1985). Penso que os
usos da noo de
conversao ou
dilogo poderiam
ser enriquecidos a
partir de uma pers-
pectiva que explo-
rasse essa distino
no plano social e
epistemolgico. Essa
sugesto trazida
por DaMatta em
um artigo, no qual
comenta os usos da
noo de dialogia
entre antroplogos
norte-americanos
(1992: 49-77).
249 {jos r eginal do santos gonal ves}
simultneamente, a nossa prpria cultura, seja a cultura dos antroplogos,
sejam as culturas vividas por indivduos e grupos no cotidiano.
3
A atitude irnica que podemos assumir diante da tradio antropo-
lgica pode ter um efeito teraputico. Se no nos livramos do conceito de
cultura, ao menos podemos us-lo com um pouco mais de auto-conscin-
cia e liberdade, podemos saber, relativamente, que jogo estamos jogando,
seus limites e possibilidades, e que outros se fazem, ainda, presentes em
nosso horizonte de possibilidades.
3 No ato de inventar
uma outra cultura, o
antroplogo inventa a
sua prpria, e de fato
ele reinventa a prpria
noo de cul tura
(Wagner 1975:4).
250 {antr opol ogia dos objetos: col ees, museus e patr imnios}
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Este livro foi impresso em novembro de 2007, com uma
tiragem de 1000 exemplares.
A fonte do texto a Gentium, desenhada especialmente
para textos de divesas etnias que usam a escrita Latina.

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