A Teoria do Conhecimento na antiguidade: contribuies para o

pensamento filosfico na Idade Moderna.

Para entender a histria... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume jan., Srie 17/01, 2011, p.01-08.

Modernamente, a Teoria do Conhecimento um ramo da filosofia que estuda a
possibilidade e a capacidade humana de conhecer a realidade, opondo-se a metafsica.

Neste sentido, utiliza a axiologia (do grego axios = valor), questionando a construo
dos valores humanos.
Uma postura fundada por Ren Descartes, o pai do racionalismo, embora exista uma
corrente terica que defende John Locke como sendo o verdadeiro fundador da moderna
Teoria do Conhecimento.
No entanto, apesar de no existir ainda nominalmente, as questes em torno da Teoria
do Conhecimento remontam a antiguidade.
Foi quando se estabeleceram as bases que permitiriam aprofundar o debate sobre a
possibilidade de conhecer a realidade.
Entretanto, para os gregos antigos a Teoria do Conhecimento era chamada de
epistemologia.
Uma palavra derivada a partir de outra, do grego episteme, que significa cincia,
conhecimento ou discurso.
Portanto, a anlise da construo do discurso e, simultaneamente, o estudo da
construo do conhecimento.

Nada mais natural, at porque prprio da filosofia considerar qualquer teoria como
no mais que um discurso bem construdo, no possuindo necessariamente
correspondncia com a realidade.
Uma concepo um pouco diferente da moderna Teoria do Conhecimento, a qual
considera a observao da realidade, enquanto um ponto de interseco entre verdade e
senso comum, para tentar entender como o conhecimento construdo.
interessante notar que a cincia outro ponto de interseco possvel entre verdade e
senso comum, assim tambm fazendo parte da Teoria do Conhecimento.


Os pr-socrticos.
Os pr-socrticos, notadamente trs pensadores que viveram na Grcia do sculo IV.
a.C, iniciaram a discusso em torno da Teoria do Conhecimento, sob a gide da
epistemologia: Herclito, Parmnides e Demcrito.

Para Herclito, seria impossvel conhecer a realidade concreta, pois existiria uma
diferena entre o que percebemos e o que temos a capacidade de entender.
Isto porque a natureza est em fluxo perptuo, tudo se modifica mais rpido do que
temos a capacidade de entender.
A partir deste raciocnio, ele criou a teoria do Devir, uma palavra que em grego
significa mudana constante, usando a famosa analogia do rio.
Um homem no pode atravessar o mesmo rio duas vezes, pois as guas j no so as
mesmas, j que o liquido corre, assim como o homem no o mesmo, pois ele tambm
se modifica.
Parmnides chegou mesma concluso por um caminho diferente, embora parecido.
Para ele s seria possvel conhecer aquilo que permanece imutvel,
pois estando o mundo em constante mudana, o que o pensamento entende j no
corresponde realidade, j passou.
Em outras palavras, ao beber a gua de um rio, impossvel dizer se dita gua boa,
pois ao fazer esta afirmao, a gua que corre pelo rio j no a mesma que foi
ingerida.
Portanto, s podemos dizer o que foi e no o que .
Uma concluso diferente da idia defendida por Herclito, uma vez que, para este, o que
a razo entende no o que passou, mas sim algo que no corresponde realidade
porque reflete o que os sentidos percebem como real, sem que exista correspondncia
com a realidade.
No entanto, para Parmnides, observando o que est por trs das aparncias possvel
entender a realidade, o que implica em descobrir a essncia das coisas perguntando: O
que ?
a partir desta premissa que Parmnides criou a teoria do ser, segundo a qual toda
mudana ilusria, pois a essncia do ser sempre a mesma, permanece imutvel.
por isto que o ser definido simplesmente como aquilo que .
Dentro deste raciocnio, Parmnides dizia que tudo ser e no ser, a despeito de existir
tambm o vir a ser; ou seja, os sentidos enganam, mas a razo pode identificar o que
ou no e deduzir o que pode se tornar.
Entretanto, Herclito e Parmnides chegaram a uma mesma concluso: existe um
descompasso entre a realidade e o entendimento, seja este tributrio dos sentidos ou da
razo.
Na realidade, com estes pensadores, so fundadas duas tradies: a partir de Herclito
baseada na confiana nos sentidos, o que seria continuado pelos empiristas na entrada
da modernidade; enquanto Parmnides estabelece a centralizao na razo, um preldio
do racionalismo cartesiano.

Diferente dos dois, Demcrito estabeleceu a teoria conhecida como atomismo,
realidade constituda portomos, aquilo que no pode ser dividido.
Para ele, sendo o mundo constitudo por diferentes tomos, os quais so imutveis, o
mundo e o conhecimento dele concreto, portanto real.
Temos a impresso de mudanas conforme os tomossofrem re-arranjos de
combinaes, mas os tomospermanecem os mesmos.
A percepo no ilusria, os sentidos percebem aquilo que realmente , embora
somente o pensamento, a razo, seria capaz de observar os reajustes dos tomos e a
realidade.
Em certa medida, Demcrito funda a tradio que seria seguida por Kant no sculo
XVIII, ao mesmo tempo, tambm seguida pelo iluminismo.


Os sofistas e o pensamento socrtico.
Os sofistas foram os primeiros polticos e advogados do mundo Ocidental, compunham
um grupo que cobrava para ensinar e defender pontos de vista, sendo considerados
guardies da democracia em Atenas e os primeiros professores remunerados.
Dentre os sofistas, destacaram-se Protgoras, Grgias e Iscrates.
Todos viveram na Grcia do sculo V. a.C.
Refletindo sobre o antagonismo entre os filsofos anteriores, os sofistas terminaram
concluindo que o conhecimento relativo, podendo refletir mltiplas opinies, isto
porque essncia da realidade no pode ser conhecida.

Grgias, por exemplo, colocou-se contra Parmnides, afirmando que o ser no existia,
pois seria impossvel determinar a essncia das coisas.
Para ele no possvel dizer o que uma coisa ou no , j que poderia ser muitas
coisas ou nada.
Na opinio dos sofistas, tudo era apenas uma questo de retrica, linguagem
manipulada para modificar a percepo da realidade, os interlocutores percebem o
mundo de acordo com a construo do discurso.
Os sofistas defendiam o relativismo, Protgoras cunhou a frase o homem a medida de
todas as coisas, das coisas que so, enquanto so, das coisas que no so, enquanto no
so.
Tentava expressar a idia de que tudo conhecido de forma particular por cada um, no
existindo conceito absoluto.
Dentro deste contexto, Grgias se notabilizou por responder questes, sem preparo
algum, usando apenas a arte da retrica, defendendo idias absurdas e fazendo os
ouvintes chegarem concluso de que eram possveis.
Ele persuadia o interlocutor usando o controle das emoes, envolvendo os sujeitos para
convencer.

Iscrates tambm usou a arte da retrica para persuadir, utilizando a mitologia para
validar sua argumentao, inaugurando a manipulao poltica do povo pelo orador,
fundando uma escola de eloqncia.
Um estilo de construo do raciocnio que iludia as pessoas, levando a aceitar fatos
totalmente destoantes da realidade.
Justamente diante da utilizao poltica da linguagem pelos sofistas, o pensamento
socrtico tencionava demonstrar como a realidade era mais complexa do que
aparentava.
Para conhecer a realidade, seria necessrio afastar as iluses perpetuadas pela
linguagem e os sentidos, o que expresso pela famosa alegoria do mito da caverna.
O personagem Scrates duvidava que a filosofia pudesse ser ensinada, como
propunham os sofistas, achava que as inquietaes deveriam brotar de dentro de cada
um.
Tambm ao contrrio dos sofistas, a tradio socrtica buscava um conhecimento
absoluto e inquestionvel, julgando que era possvel sim conhecer a realidade, bastava
sair da caverna, buscar a verdade por trs das aparncias.

Neste sentido, o conhecimento s era limitado pela prpria ignorncia do sujeito.
O que expresso pela frase: s sei que nada sei.
Simbolismo que significa que quanto mais aprendemos, mais percebemos saber pouco,
pois ainda resta muito a conhecer.
A idia que, ao sentir-se ignorante, o sujeito se coloca em uma postura de constante
aprendizado, sendo possvel conhecer realidades provisrias que vo se substituindo e
expandindo o conhecimento acumulado.
Na realidade um principio bsico que iria forjar o que entendemos por cincia hoje,
afinal o que so teorias se no verdades provisrias adotadas at que outras venham
substitu-las.


A contribuio de Plato.
Plato viveu em Atenas, na Grcia, no sculo V. a. C., era de origem nobre, descendia
da alta aristocracia; viajou pelo Egito e Pennsula Itlica, acabando escravizado em
Siracusa, onde foi comprado e libertado por um amigo, quando voltou para sua cidade
natal.

Seu verdadeiro nome era Arstocles, Plato era um apelido, que significava ombros
largos, um atributo considerado muito atraente entre os gregos na poca.
Em Atenas, de volta da aventura, fundou a Academia, uma escola que seria conservada
funcionando pelos prximos mil anos.
Plato demonstrou grande preocupao pelo crcere representado pelo corpo,
defendendo a idia de que a morte era a libertao definitiva de um mundo ilusrio.
Para ele, a realidade percebida pelos sentidos apenas uma cpia imperfeita daquilo que
existe no pensamento, j que o percebido no passa de aparncia.

Existiriam dois mundos diferentes:
1. Mundo Sensvel, o qual muda constantemente, puro devir, percebido pelos sentidos,
onde se passam os fenmenos, sendo apenas uma cpia imperfeita da realidade.
2. Mundo Inteligvel ou das Idias, livre de mudanas e presente no pensamento,
refletindo a verdadeira realidade, enxergando por trs das aparncias.

Esta concepo faz parte da hierarquizao do mundo presente na essncia de todo o
pensamento platnico, j que existiriam graus de conhecimento entre o mundo
sensvele inteligvel.
A matemtica estaria no grau mais puro e verdadeiro do conhecimento da realidade,
pertencendo completamente ao contexto das idias, sendo pura abstrao.
Plato tentou resolver a oposio entre Herclito e Parmnides, buscando uma soluo
para a oposio entre a idia de que tudo movimento e de que isto uma iluso, pois a
essncia no muda.
Para isto elaborou uma teoria gnosiolgica (gnosis = conhecimento), demonstrando
preocupao com a validade da construo do conhecimento.
Pensou na afirmao de Herclito de que impossvel dizer o que uma rvore, uma
vez que ela muda conforme cresce existem muitas espcies.
Contraposta a idia de Parmnides de que a rvore muda desde a semente at morrer,
existindo muitas espcies, mas sua essncia ser rvore.
Plato resolveu a questo de forma diferente de Demcrito, no usando o subterfgio
dotomo.
Para ele, a rvore muda porque no apenas uma idia, mas uma representao do
pensamento, uma cpia imperfeita da realidade.
Plato usa um mito para explicar este conceito, supondo que, antes de nascer, a alma
vivia em uma estrela, onde se localizavam as idias.
Ao nascer, o impacto leva ao esquecimento, mas a anamnesis (reminiscncia) conduz a
recordar a partir das cpias imperfeitas da realidade.
Portanto, impossvel conhecer a realidade vivendo neste plano trreo de existncia, o
que pensamos saber apenas uma sombra da verdade.
O conhecimento mais prximo da realidade concreta est apenas no mundo das idias,
da inclusive a expresso amor platnico significando originalmente que o verdadeiro
amor pertence aquilo que imaginado e no ao vivido.
Uma vez que o imaginado real para quem imagina, enquanto o vivido pode parecer
real para mim, mas no ser para o outro.


As idias de Aristteles.
Aristteles nasceu em Estagira no sculo IV. a. C., filho do mdico pessoal do rei da
Macednia, na Grcia, indo para Atenas aos dezesseis anos de idade para estudar na
Academia de Plato.
Mais tarde, foi professor de Alexandre, o Grande, filho do rei da Macednia de quem o
pai de Aristteles foi mdico.

O pensamento aristotlico parte do mesmo principio hierarquizado das idias platnicas,
distinguindo graus de conhecimento que transitam entre o mundo sensvele inteligvel.
No entanto, diferente de Plato, Aristteles afirma que a realidade formada pelo
acumulo de graus.
Embora as idias expressem a verdade, este conhecimento intil, pois a realidade
uma juno de graus.
Isto porque, alm da razo e dos sentidos, para conhecer necessrio usar a intuio,
um raciocnio inconsciente, uma suposio sobre o que pode ser.
A matemtica insere-se, neste contexto, como grau mais puro de conhecimento.
Diferente de Plato, Aristteles no considera que a matemtica pertence ao mundo das
idias, sendo puramente intuitiva, precisando da soma dos graus para existir como
conhecimento.
A matemtica necessitaria da razo, dos sentidos e da intuio como instrumentos que
ajudam a pensar sem equvocos.
O que, por sua vez, originou a idia de que no possvel encontrar a essncia das
coisas.
Assim, a questes ticas no seriam possveis de aplicao prtica, j que no possvel
definir o que .
Para estas questes, Aristteles encontrou como soluo a repetio das aes para
garantir a ordem das coisas e atingir a felicidade.
No sendo possvel dizer o que imutvel, como definir, por exemplo, o que a
virtude?
O virtuoso se torna o que est convencionado pela repetio dos atos.
O que originou o silogismo, a demonstrao do raciocnio dedutivo por meio de
operaes do pensamento, envolvendo premissas que permitem chegar a uma
concluso.
Um raciocnio que, segundo Aristteles, permite se aproximar do conhecimento da
realidade.


Concluindo.
A despeito da discusso iniciada na antiguidade, durante a Idade Mdia, o cristianismo
interrompeu o debate em torno da possibilidade de conhecer.

Isto porque o cristianismo medieval distinguiu as verdades de f, reveladas, e a
realidade racional.

Em outras palavras, a realidade passou a ser aquela que Deus permite conhecer,
revelada pelo poder eclesistico.

Esta forma de enxergar o mundo s comeou a mudar a partir da contestao de alguns
pensadores, entre eles, nos sculo XVII, Ren Descartes na Frana e John Locke na
Inglaterra.
Os dois, conforme a corrente terica, so considerados fundadores da moderna teoria do
conhecimento.
Entretanto, Descartes segue uma tradio iniciada na antiguidade por Parmnides,
baseada na razo, representando o racionalismo.
Locke continuou a vertente iniciada por Herclito, baseada nos sentidos, originando,
junto com outros filsofos de sua poca, empirismo.
Assim, ao observar o pensamento filosfico na Idade Moderna, devermos ter em mente
a forte contribuio de uma discusso densa iniciada na antiguidade.


Para saber mais sobre o assunto.
ALQUI, F. et. alli. Galileu, Descartes e o mecanismo. Lisboa: Gradiva, 1987.
CHAUI, M. Convite a filosofia. So Paulo: tica, 1984.
KOYR, A. Consideraes sobre Descartes. Lisboa: Presena, 1963.
KUJAWSKI, G. Descartes existencial. So Paulo: Edusp. 1969.
MACIEL JR, A. Pr-socrticos: a inveno da razo. So Paulo: Odysseus, 2007.
PLATO. A repblica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2000.
SANTOS, J. Do empirismo a fenomenologia. So Paulo: Loyola, 2010.