Crónica D. Afonso V - Volume I - Edição Escriptorio
Crónica D. Afonso V - Volume I - Edição Escriptorio
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CLSSICOS
PoRTLGUEZES
Proprietrio . iid.fbr
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VOLUME XXIX)
CHRONICA
D'EI-Rei D. Affonso V
Ruy de Pina
VOLUME i
ESCRIP70RI
147
=Rua dos Retrozeiros=
147
LISBOA
190 1
BIBLIOTHECA
DE
CLSSICOS PORTUGUEZES
PROPRIETRIO B FUNDADOR
MELLO D'AZEVEDO
BlBLIOTHECA DE CLSSICOS PoRTUGUEZES
Proprietrio e fundador
Mello d'Azevedo
CHRONICA
DE
EL-REI
D. AFFOISO V
POR
Ruy de Pina.
VOL. I
ESCRIPTORIO
147=
Rua dos Retrozeiros =
i47
LISBOA
1901
2>r
I
C
i
1968
Duas palavras de introdueo
El-Rei
D.
Manuel encomendou com grande e
/fica-
da a Ruy de Pina a chronica de D. Affonso
V.
E elle escreveu baseado em informaes
e nos
documentos que poude alcanar, com uma sinceridade
notvel em chronista de palcio occupando cargos de
confiana regia.
Parcial todavia, pouco inclinado a cousas de Hes-
panha e da nobreza, conta-nos a historia d'esse pero-
do de forma que parece preparar o espirito do leitor
para as grandes luctas do reinado seguinte.
A historia da pocha de D. Affonso V importa
ao estudo da nacionalidade portugueza em qualquer
ponto de vista. Affirma-se a auctoridade real, ape-
zar das prodigalidades do rei, a independncia da na-
o em combates rijos, a expanso ultramarina def-
ne-se com o arrojo dos navegantes e dos homens de
guerra, a cultura dos espritos sobe, os costumes po-
liciam-se, attende-se a melhoramentos materiaes nas
povoaes.
Bibliotheca dos Clssicos Portugitezes
A prpria figura do rei desperta vivamente a at-
teno; os seus primeiros annos passaram num meio
agitado, difficil, triste talvez, pelas luctas palacianas,
mas til para a formao de espirito culto pela fre-
quncia, provvel, de homens superiores como os in-
fantes D. Pedro e D. Henrique. Pelo que nos conta
Ruy de Pina foi lastima que Affonso V fosse rei, por-
que era bom de mais, com sua parte de phantasia
mansa.
Era um sereno, de piadosa condio, familiar,
gran-
de amador de musica e de livros, e tambm de em-
prezas arriscadas.
Quando a Excellente Senhora professou, grassava
em algumas cidades do paiz o contagio com grande
intensidade, elle desconsolado quiz deixar a governan-
a, queria ser leigo no seu mosteiro do Varatojo.
Como era generoso e pouco calculista, sem sentir,
pouco a pouco, foi accumulando de mercs certos fi-
dalgos insaciveis, o que originou depois a grande lu-
cta dos primeiros annos de
Joo
II.
N'esses quadros agitados destacam-se figuras prin-
cipaes como o infante D. Pedro, o das sete partidas,
e D. Henrique o navegador, sempre com a sua ida
fixa de descobrir terras, os condes de Viana, e de
Avranches, grandes senhores, e aquelle singular bispo
D. Garcia de Menezes to brilhante orador e guerreiro
que tristemente encerrou a sua vida.
Outros vultos de raro perfil movimentam ainda a
pocha, D. Pedro o rei intruso de Arago, filho do
infante D. Pedro, erudito, collecionador de livros e
medalhas, o duque de Borgonha, a Excellente Senho-
ra. No meio das luctas e intrigas estrondea o casa-
mento de D. Leonor. Depois das gloriosas jornadas de
Alccer, Tanger, Anafe e Arzilla, a ida para Frana.
O chronista no esquece os movimentos populares,
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V
as luctas na cidade de Lisboa, as unies e alvoroos
;
nem a lucta contra o Turco que em I480quasi se as-
senhoreou do Mediterrneo.
Hoje conhecemos outros documentos, os anteceden-
tes da Alfarrobeira esto mais esclarecidos, papeis de
aleivosia como o testemunho do escudeiro
Joo
Ro-
drigues correm impressos.
Ha documentos tambm para o modo de viver da
pocha que em geral no mereceram atteno aos
chronistas, os que dizem respeito a costumes, a ques-
tes econmicas, ao direito. A publicao das Orde-
naes, comeadas em tempo de
Joo
l. facto ca-
pital. Em chronicas francezas encontram-se noticias
de valor, ainda no approveitadas. Finalmente ser
preciso estudar noutra parte, e hoje ha muitos ele-
mentos publicados, o admirvel esforo do infante de
Sagres, e da sua gente, n'este perodo, nos gloriosos
descobrimentos dos novos caminhos martimos, dos
archipelagos do Atlntico revelados successivamente,
G. Pereira.
PROLOGO
Chronica do Mui Alto e Mui Poderoso Prncipe
EL-REI D. AFFONSO
d'este nome o quinto
E dos Reis de Portugal o duodcimo, dirigido ao muito
alto e muito excellente Prncipe, El-Rei D. Manuel,
seu sobrinho, nosso Senhor, por cujo mandado Ruy
de Pina, Cavalleiro de sua casa e seu Chronista
Mr e Gnarda Mr da Torre do lombo, nova
primeiramente a compoz
mais singular e mais proveitoso conselho, Se-
renssimo Rei, que Demtrio Phalereo, philo-
sofo mui sabedor, deu ao grande Tholomeu,
Rei do Egypto, para sobre todolos Reis de seu tempo
poder ser mais excellente, foi que procurasse de vr,
e ter por mui familiares os livros, principalmente
aquelles, em que os virtuosos costumes e claros feitos
dos illustres Reis e Prncipes passados fossem verda-
deiramente escriptos : amoestando-o que com vivo
cuidado os lesse e ouvisse : nem era sem causa
;
por-
Chronica d'El-Rei
Affonso
V
que, como mui prudente, sabia que
os
J*'vios, posto
que sejam conselheiros
mortoa, sempre porm ensi-
nam e. do verdadeiros e sos conselhos, mui livres
e isentos das paixes dos conselheiros vivos, dos
quaes muitas vezes por no saberem, e outras por
no quererem, e muitas mais por no ousarem, se
nega e esconde a clara verdade, que a seus maiores e
Senhores pospem s prprias inclinaes e paixes
d'affeio, dio, lisonjaria, interesse ou temor, que so
causa da mais certa queda, e principal destruio de
reinos e senhorios. E por tanto, muito poderoso se-
nhor, no conhecimento dos bons exemplos e das cou-
sas passadas, de que a Historia um vivo espelho, e
os livros so fieis thesoureiros, se recebe, para no er-
rar, conselho sem paixo, e doutrina sem receio, de
que Humanidade e ao Estado Real principalmente
se segue um mui seguro proveito, e por isso a Deus
grande e mui assignado servio.
E posto que das Chronicas e lembranas escriptas
das perfeitas bondades e memorandas faanhas dos
claros bares no naturaes e estrangeiros, quando as
lemos e ouvimos, logo nos movem para aborrecer os
vicios, e com uma virtuosa inveja de seus gloriosos
exemplos, nos espertam e guiam para o caminho de
suas louvadas virtudes e fama
;
porm, outra diffe-
rena de vergonha, outra viveza de gloria, outro acen-
dimento d'esforo sentimos logo em nossos coraes,
quando lendo topamos, e com tento esguardamos nas
excellentes virtudes e prosperas empresas de nossos
prprios naturaes, e maiormente d'aquelles de que
descendemos
;
porque tanto mais nos acendem e obri-
gam para os semelharmos e seguirmos, quanto a certa
verdade de suas virtuosas obras e grandes feitos de
maior contententamento e mais chegada a nosso fresco
conhecimento, com que a no duvidamos.
10 Bibliotheca de Clssicos
Portuguezes
E pui
o<^a
to urgente causa e bem to universal,
e principalmente por
tonra e gloria de vossos reinos
de Portugal, Vossa Mui Real benhora, como
virtuoso
Rei mui piedoso e verdadeiro successor d'elles que
,
sabendo que a memoria das reaes virtudes e feitos
imperiaes do mui glorioso Rei D. Affonso o quinto,
vosso tio e predecessor, cujo irmo legitimo era o mui
illustre Infante D. Fernando vosso padre, por negli-
gencia sua ou mingoa d'escriptores no eram
j
do
escuro esquecimento menos gastadas, que sua carne e
seu corpo que a terra comia: por mais illustrardes
vossa legitima descendncia, e vossa coroa real no
ficar sem uma guarnio de pedraria to preciosa,
como sua clara e louvada memoria: e assi por Vos-
sa Alteza mostrar um santo ensino e maravilhoso
exemplo de Rei, encommendou com grande efncacia
a mim Ruy de Pina, Cavaleiro de vossa casa, Chro-
nista Mr de vossos reinos e Guarda Mr da Torre
do Tombo d'elles, que, quanto minha deligencia e
entendimento fosse possvel, trabalhasse de haver as
cousas notveis de seu tempo, e para sua Chronica
mais necessrias, e a compozesse. E como quer, muito
poderoso Rei, que a carrega e peso d'esta Obra, por
ser to digna e to necessria, e com desejo e cui-
dado to virtuoso, como este vosso,
j
foi outras
vezes posta e encommendada sobre os hombros e for-
as d'outros chronistas d'estes reinos, que ante mim
foram pessoas de singular doutrina e mui sufficientes
:
e por suas grandes e desesperadas difflculdades e peso
incomportvel, elles nem somente a moveram; porm
eu que para vencer e passar com ella caminhos
j
to
cerrados e de tanta aspereza e escurido, convertidas
j
em uma manifesta impossibilidade, por vir ao fim
de vosso desejo e esperana, tomei por guia e salvo
conduto de tantos temores vosso mandado e o vivo
Chronica d'El-Bei D.
Affonso
V 11
desejo que sobre todos em mim sinto de sempre bem
e lealmente servir Vossa Real Senhoria, e inteira-
mente lhe obedecer: confiando que ao menos, pelo
merecimento de minha obedincia, algum tanto serei
relevado do erro da ignorncia e temerria ousadia
com que emprendi e acabei esta real e mui verda-
deira chronica, cuja sequencia n'esta maneira.
CHRONICA
DO
SENHOR REI D. AFFONSO V
CAPITULO I
Narrao
muito alto e muito excellente Rei D. Duarte,
d'este nome o primeiro, e onzeno dos Reis de
Portugal, acabou sua desejada e necessria
vida com claros signaes de grande contrio, e com
certo testemunho de salvao de sua alma, em a Villa
de Thomar, quinta feira ix dias de Setembro, anno do
Nascimento de Nosso Senhor Jesus
Christo de mil e
quatrocentos e xxxviii : no qual dia por espao de
duas horas o sol em grande cantidade foi cris, assi
como tambm o foi na hora do fallecimento d'El-Rei
D.
Joo
seu padre, e da Rainha D. Pilippa sua madre.
E as cousas que de sua antecipada morte se conjei-
turam, e aos autos de prantos e tristezas que se n'ella
no podiam escusar, e como foi levado ao mosteiro
da Batalha, onde jaz sepultado, em sua Chronica,
onde propriamente pertence, com maior declarao
esta o apontadas.
Chronica d'El- Rei D. Ajfomo
V 13
E por seu fallecimento ficaram legtimos dois filhos
e quatro filhas: I o Prncipe D. Affonso filho seu
maior,
primognito herdeiro, que logo foi alevantado
por Rei, que de sua edade havia seis annos e entrava
em
sete : e o Infante D. Fernando, padre d'El-Rei D.
Manuel nosso Senhor: e a Infante D. Filippa, que no
anno que o dito Rei falleceu se finou em Lisboa de
onze annos : e a Infante D. Lyanor, que foi impera-
triz
d'Allemanha : e a Infante D. Catherina que sem
casar falleceu e jaz em Santo Eloy de Lisboa : e a
Infante D. Joanna, de que a Rainha D. Lyanor ficou
prenhe, e foi Rainha de Castella, casada com El-Ret
D. Anrique, o quarto d'este nome.
E ficaram outrosi vivos estes irmos d'El-Rei D.
Duarte, filhos d'El-Rei D.
Joo
I; o Infante D. Pedro,
que era duque de Coimbra : e o Infante D. Anrique,
que era duque de Vizeu e tinha o Mestrado de Chris-
tus: e o Infante D.
Joo,
que era Condestabre do
Reino e tinha o Mestrado de Santiago : e o Infante
D. Fernando, que ento era captivo em Fez e tinha
o Mestrado d'viz : e a Infante D. Izabel, legitima
duqueza de Borgonha, casada com o duque Filippe
:
e D. Affonso conde de Barcelos, que depois foi du-
que de Bragana, que era filho natural d'El-Rei D.
Joo.
Ao tempo que o dito Rei falleceu no eram em
Thomar outras pessoas principaes, depois do Prncipe
D. Affonso e seu irmo, salvo a Rainha D. Lyanor
sua mulher, filha d
!
El-Rei D. Fernando d'Arago, e
o Infante D. Pedro, irmo primeiro legitimo d'El-Rei
:
o qual, por dar ordem ao alevantamento d'El-Rei D.
Affonso seu sobrinho, e s outras cousas que perten-
ciam para bem do reino, ficou na dita villa e no foi
com o corpo de seu irmo, a que no falleceu outra
muita e honrada companhia.
14 Bbliotheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO II
Alevantamento cFEl-Rei
Era
quinta feira logo seguinte, dez dias do dito
mez : o Infante D. Pedro, como Prncipe a que
das cerimonias reaes e das outras cousas em
que cabia descrio e virtude nada s'escondeu, fez
fazer antre o convento e os paos do castello da dita
villa um assentamento assi real e ricamente guarne-
cido, como para o auto cumpria. E bespora do
dito dia, o Infante com todolos fidalgos e nobre gente
da corte foram aos paos d'El-Rei, que eram dentro
no convento, vestidos por ento os corpos dos pa-
nos mais ricos, mas as almas e caras de clara tris-
teza, que em todos no era fingida, mas verdadeira e
justa, assi pela privao d'El-Rei, que era muito vir*
tuoso e para todos de grande humanidade e boa con-
dio, como por lhes os coraes revelarem as gran-
des divises c muitos trabalhos, em que pela socces-
so de to novo Rei se haviam de ver, como viram.
O Principe D. Affonso posto em vestiduras reaes,
e bem acompanhado de todos, sahiu fora ao assenta-
mento, onde pelo Infante D. Pedro com grande reve-
rena, e muito acatamento foi posto na cadeira real.
E emquanto um Mestre Guedelha, singular fysico e
astrlogo, por mandado do Infante regulava, segundo
as
influencias e cursos dos planetas, a melhor hora e
ponto em que se poderia dar aquella obedincia : o
Infante volveu a contenena ao povo, e com gro se-
gurana e palavras mansas disse
:
Como quer que, o dia d'hoje com muitos dos que
iro, teramos justa causa dar lugar a nossos olhos,
Chronica d'El-Rei D. Afonso
V 15
que com muitas lagrimas testemunhassem a dr e
perda que recebemos na morte de um Prncipe to
catholico e to virtuoso, e to necessrio a ns todos
como foi El-Rei meu Senhor e irmo, cuja alma Deus
haja : devemos, porm, consirar como catholicos e de
razo, que, pois em escusar sua morte no ha rem-
dio, que duas cousas somente nos ficam, para que %
Deus e ao mundo certefiquemos o amor e boa von-
tade que lhe tnhamos. A primeira, em nossas ora-
es, jejuns e obras meritrias havermos sua alma em
memoria para a encommendarmos a Deus. A
segunda,
este ramo em todolos signaes de virtudes to flore-
cido, que de seu real Tronco naceo, que o mui
excellente Princepe D. Affonso seu filho nosso Se-
nhor, que temos presente, havermo-lo de
reconhecer,
servir e amar por nosso s natural e verdadeiro
Rei
e Senhor, como o requere nossa mui antiga e costu-
mada lealdade, e o Direito nos obriga. E, porm,
vo-lo apresento aqui para o assi em todo o reconhe-
cerdes, e vos encommendo da sua parte, que para o
assi fazerdes no hajaes respeito sua nova idade,
mas s velhas obrigaes em que para isso lhe soes e
sua Real Senhoria nos d
j
uma mui certa esperana
d'acharmos n'elle honra, merc, favor e justia, como
cada um o merecer e lh'o requerer.
E em dizendo Mestre Guedelha, que era boa hora
para fazer sua obedincia, o Infante com os giolhos
em terra tomou as mos ao Prncipe, e em lh'as bei-
jando disse
:
Muito alto e muito excellente Senhor, assi como
vos eu hoje ponho n'esta seda, em que vs por graa
de Dens legitimente
recebeis o real Septro e
senhorio
d'estes vossos reinos, assi espero com sua ajuda e
minha
grande lealdade de vo-los ajudar a manter e
deffender
com todas as minhas foras e poder, e sa-
16
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
ber,
quando me vossa Merc mandar, ou eu sentir
que cumpre a vosso estado e servio.
E com estas palavras acabando se alevantou.
E logo D. Duarte de Meneses, alferes mr, filho do
conde D.
Pedro de Meneses, primeiro capito de Ceuta,
com a bandeira real levantada, e os reis d'armas e
arautos com elle comearam alli sua grita, e depois
com ella foram pela villa, repetindo-a trs vezes, se-
gundo custume, com toda aquella cerimonia e solemni-
dade que a tal auto real pertencia
;
porque o infante
D.
Pedro, por cuja ordenana e mandado se fazia,
era
Prncipe n'aquellas cousas mui ensinado, e quiz
n'aquelle auto que no ficasse cousa dina por fazer:
assi porque assi o requeria sua grande bondade e a
muita lealdade em que nascera : como por mostrar a
muitos de damnadas maginaes, e Rainha D. Lya-
nor
principalmente, que aquella fora sempre, e era
sua leal e verdadeira teno d'obedecer, e no a ou-
tra falsa de querer por fora reinar, como lhe faziam
crer que elle desejava. Porque a Rainha, como quer
que sempre foi muito honesta, virtuosa, prudente, de-
rota e muito amiga da vida e honra d'El-lei seu ma-
vido : porm sempre em sua vida mostrou ao Infante
D.
Pedro que no lhe tinha boa vontade : e as causas
porque assim fosse eram occultas para culpar o In-
fante, salvo se procedessem de induzimentos alheios,
que em sua feminil fraqueza de ligeiro fariam impres-
so, ou por ventura procederia das imisades que fo-
ram entre El-Rei D. Fernando d'Arago, pae da rai-
nha, e o conde d'Urgel, pae da Infante D. Izabel, mu-
lher do dito Infante D. Pedro, que pertendeu por di-
reito na successo d'Arago, e foi d'El-Rei n'ella
vencido.
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 17
CAPITULO III
De como comearam de entender nas cousas do reino,
e se viu o testame?ito d'
}
El-Rei
\
&anto que a Rainha viu seu filho alevantado por
Rei, logo fez chamar sua casa o Infante D.
Pedro, e o Arcebispo de Lisboa, D. Pedro de
Noronha, primo com irmo de seu pae d'ella, e as
outras principaes pessoas que hi eram. Perante as
quaes, em presena de notairos pblicos, fez abrir e
lr o testamento d'El-Rei seu marido, em que foi
achado ella, sem ajuda d'outra pessoa, ficar in solido
testamenteira de sua alma, e titor e curador de seus
filhos, e regedor do reino, e herdeira de todo o mo-
vei. E encommendou n'elle muito que, por dinheiro,
ou captivos, ou por outra qualquer maneira tirassem
de poder dos mouros o Infante D. Fernando seu ir-
mo; e quando por semelhantes meios no fosse pos-
svel, que ento Ceuta sem escusa se desse por elle;
da qual publicao a Rainha por sua guarda mandou
tomar estromentos, e comeou logo a usar do regimento
inteiramente sem alguma publica contradico : como
quer que alguns seus servidores avisados e virtuosos,
e que de verdade amavam sua vida, honra e descan-
so, logo s e secretamente lhe disseram em conselho
n'esta maneira :
Conselho que se deu Rainha
Senhora, o peso d'este cargo de reger, que assi
soltamente tomaes, mui grande e tal, que muitos
bares abastados de fortaleza de corao e de pru-
dncia o recearam. E por serdes mulher e ainda es-
18 Bibliotheca de Clssicos Portugueses
trangeira, como quer que para isso haja em vs s
conscincia e conhecidas virtudes com mui santo de-
sejo, em caso que no houvsseis n'elle alguma con-
tradico, certo duvidamos que o poi-saes soffrer;
porque Vossa Senhoria ha-de consirar que so n'este
reino trs Infantes, grandes Prncipes, e de muita au-
toridade, e naturaes da terra, que ho d'estimar por
quebra e abatimento de seus estados serem regidos
por mulher, especialmente no natural nem herdeira,
como vs sois, e que o por suas bondades e asses-
sego de todos quizessem consentir, no falleceriam
outros amigos de novidades, que lh'o fariam sentir e
obrar por outra maneira : de que se no podem escu-
sar dios, escndalos e outros muitos males, em espe-
cial claros impedimentos para vs, nem elles estes
reinos poderdes reger, como a servio de Deus e
d'El-Rei, e bem d'elles cumpre: de que vos muito
deve pesar. E no vos fieis nos offerecimentos e muita
parte que vos muitos de si agora prometem, para
crerdes que o esforo d'estes enfraquentra o dos ou-
tros
;
porque em fim todos, ou a mr parte ho de
seguir a vontade dos Infantes, qualquer que fr,
quanto mais que
j
agora pelas praas se solta, que
El-Rei nosso Senhor, vosso marido, que santa gloria
haja, vos no podia leixar este cargo ce reger : c este
poder demleger regedor do reino era somente ao
reino e aos trs estados d'elle reservado
;
e d'onde isto
agora sae de presumir que mais jaz. Pelo qual nosso
conselho seria, que agora com prazer e assessego
vosso, e do reino, consirados todos estes inconvenien-
tes, leixasseis assi de vossa vontade este regimento,
antes que depois o leixardes forada, ou impedida de
vossa natural fraqueza, ou de outras foras maiores
:
o que deve ser com pouca honra e contentamento
vosso. E a vs, Senhora, bem abastara terdes cuidado
Chronica d' El- Rei D.
Affonso
V 19
da criao de vossos filhos, e do descargo d'alma d'El-
Rei vosso marido, que so cousas assas grandes, hon-
radas e honestas.
A Rainha, como era senhora de bom entender e de
teno s, e conforme em todo ao servio de Deus,
pareceu-lhe bem este conselho, e quizera-o seguir;
mas no falleceram logo outros, que com outras ra-
zes coradas ao revs cfestas, a mudaram d'este pro-
psito, e fizeram tomar determinao de todavia re-
ger s: dando lhe estes, por principal causa, a segu-
rana da vida e estado de seus filhos, que em poder
do Infante D. Pedro lhe faziam crer que no seriam
muito seguros, por ser prncipe poderoso, amado do
povo, e tinha filhos, e podia n'elle entrar o desejo de
reinar, que vence todolos outros; e assi venceria n'elle
a divida lealdade para o executar.
CAPITULO IV
Da vinda do Injante D. Anrique corte, e das cou-
sas que se logo acordaram
Infante D. Anrique, depois da vinda do cerco
de Tangere, que veiu fallar a El-Rei seu ir-
mo a Portel, como anojado do captiveiro do
Infante D. Fernando, seu irmo : e por o feito se no
seguir, como desejava, se tornou logo ao reino do Al-
garve, sem mais tornar a este; e como l foi avisado
da doena d'El-Rei, pelo grande amor e muita leal-
dade que lhe tinha, partiu logo : e assi trigou suas
jornadas, que em mui poucos dias chegou a Thomar,
onde
j
achou El-Rei fallecido. Mas a Rainha, e o In-
fante D. Pedro, e toda a corte, vendo-o com sua triste
20 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
livre, renovaram com sua vista outros prantos maio-
res, nem era sem razo
;
porque n'elle pareciam si-
gnaes de tanta tristeza, e dizia palavras de tanto sen-
timento, que aos dormentes na dr espertava para
chorar, e ser tristes.
A Rainha depois d'esto enviou chamar o Infante
D. Pedro, e lhe disse
:
Senhor Irmo, porque sinto que necessrio dar-
se ordem e remdio s cousas do reino, que esto ora
suspensas, eu vos rogo muito que tomeis cuidado de
ter em vossa casa conselho : e Vs, e o Infante vosso
irmo, com os principaes que aqui so, apontae o que
em taes tempos e casos convm que se faa : e tra-
zei-m'o para o vr, e me acordar comvosco e se fazer
o que fr servio de Deus, e d'El-Rei meu filho, Se-
nhor, e bem de seus reinos.
A qual cousa se poz logo em execuo, e se teve
conselho, em que foi acordado que aos embaixadores
de Castella, que hi eram por despachar, fosse por
ento respondido, que esperassem a vinda dos gran-
des do reino, com que El Rei ordenava de fazer cor-
tes e ter conselho : e que logo haveriam resposta.
E estes embaixadores vinham a El-Rei D. Duarte,
e chegaram ao tempo de seu fallecimento ; e as pes-
soas que eram, e o que requeriam, e com que funda-
damento, ao diante se dir.
Acordaram outrosi, por quanto em Castella co-
meava d'haver movimentos, que pareciam princpios
de guerra, que os alcaides das fortalezas dos estre-
mos fossem avisados sobre ba guarda e defenso
d'ellas : e assi que se fizesse o geral acostumado cha-
mamento, para o saimento que se havia de fazer na
Batalha, e cortes em Torres Novas. E as cartas, que
sobre isto haviam de ir, acordou o Infante D. Anri-
que com os do conselho, que fossem assignadas pelo
Chronica d'El-Rei D. Afonso
V 21
Infante D. Pedro
;
mas elle com mostrana de muita
honestidade se escusou : e a Rainha assignou aquellas,
e todalas outras at s cortes
;
porque n'ellas se acor-
dou outra ordem de Regimento, como se dir.
E assi tomou cuidado a Rainha de cumprir aquel-
las cousas do testamento d'El-Rei, que logo cumpriam
de se acabar. E de todo o movei que lhe foi leixado
tomou para si a capella e reposte, e repartiu as cou-
sas de guarda-roupa e estrebaria por essas pessoas a
que lhe parecia razo, e a que mais afeioada era :
no se esquecendo prover com vestimentas, das rou-
pas e pannos de seda que ficaram, a algumas egrejas
e mosteiros, em que sentiu que podia d'isso haver ne-
cessidade.
CAPITULO V
Como o Infante D.
Fernando
foi
jurado por Prin-
cepe, se El-Rei no houvesse
filho
legitimo
Estando
assi estes Senhores em Thomar, espe-
rando o tempo do saimento e cortes, foram alli
juntas quasi todolas pessoas principaes do rei-
no, com esperana e certido de futuras mudanas,
salvo o Infante D.
Joo,
que era doente em Alcacere
do Sal, a que por grande resguardo da Infante sua
mulher, a morte d'El Rei seu irmo no foi desco-
berta se no depois que foi retornado em sua sa-
de, a que no fossem contrairs novas para elle to
tristes. E sendo presentes em conselho os Infantes e
o conde de Barcellos seu irmo, e o Infante D. Pe-
dro propoz logo primeiro dizendo
:
Senhor irmo, e honrados senhores fidalgos que
aqui estaes, bem vedes que a nova idade d'El Rei
nosso Senhor assi n'elle, como nos outros meninos,
sojeita a muitos casos e desastres, de que Deus nosso
22 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
Senhor o guarde e defenda. E porque d'aqui at que
sua Merc tenha idade e desposio para casar e ha-
ver filhos, se passar bom espao de tempo : meu voto
,
por sermos fora d'algumas duvidas que por sua
morte em tal tempo podiam sobrevir, que o Senhor
Infante D. Fernando seu irmo, seja logo aqui intitu-
lado e jurado por Prncipe e seu herdeiro, at que a
Deus praza de dar a El-Rei nosso Senhor filho que
de tal nome se possa intitular, e o sobceda : e n'isto
no somente faremos o que necessrio, mas ainda
pagaremos o que devemos a nossa lealdade, e ao
grande amor que tnhamos a El-Rei meu Senhor e
irmo, e ao que somos certos que nos elle tinha. E
este tempo tal, em que estas obrigaes se devem
a seus filhos pagar, em todo o que redunda em suas
honras, estado e servio.
Acabou o Infante sua proposio, em que no fo-
ram necessrias mais razes para suas sinas, para se
louvar, e haver por justa e ba sua teno. Pelo qual
os Infantes e o Conde de Barcellos, e os outros se-
nhores que eram presentes, por si e por todolos do
reino logo fizeram d'isto um auto solemnisado por ju-
ramento, perante notairos pblicos, em cumprimento
do qual o Infante D. Fernando se chamou e intitu-
lou por Princepe, at que El-Rei houve filho.
CAPITULO VI
Primeiro consentimento da Rainha para El-Rei seu
filho
casar com a
filha
do Infante D. Pedro
JLI
Rainha por este accordo e determinao de que
1 foi certificada, recebeu em sua tristeza muita
consolao, e em seus cuidados descano, e
em seus receios grande segurana : especialmente por
Chronica d'El-Rei D. Afonso
V 23
ser d'ella inventor e principal movedor o Infante D.
Pedro, em quem, pelas causas que
j
toquei, lhe fa-
ziam sem causa ter suspeitas, a seus filhos perigosas,
e a ella desleaes
;
como quer que por elle nunca fo-
ram cuidadas, nem por alguma obra, nem congeitura
fossem sentidas. Pelo qual, como Senhora virtuosa e
agardecida a boa vontade e obras que o Infante D.
Pedro comeara de mostrar, mandou logo a elle o
doutor Ruy Fernandes com esta mesagem :
Senhor, diz a Rainha nossa Senhora, que por sa-
ber bem o grande amor que vos El-Rei seu Senhor
tinha,
e o desejo que sempre teve para vossa honra
e acrecentamento : e como, em cumprimento de sua
teno leixou dito a Frei Gil de Tavulla, seu confes-
sor, que sua derradeira vontade era, que o Prncipe
seu filho casasse com D. Isabel vossa filha
;
que assi
por cumprir principalmente a vontade d'El-Rei seu
Senhor, como por vos mostrar com obras de vossa
honra e contentamento, o contrairo do que por ven-
tura vos fazem d'ella crer: e des-hi, porque v que
este um dos melhores casamentos do mundo que a
El-Rei seu filho, Senhor, agora melhor pode vir, lhe
apraz que este casamento logo entre ambos se faa
;
e que para isso vos envia por mim seu consentimen-
to, que por ventura atgora havereis por duvidoso,
e no to certo.
CAPITULO VII
Resposta do Infante D. Pedro Rainha
Infante, como ouviu este recado, em que viu
o cabo de sua bemaventurana, com o cora-
o cheio de alegria, e os olhos por isso no
vasios de lagrimas, disse:
24 Biblv-theca de Clssicos Portuguezes
Doutor amigo, dizei Rainha, minha Senhora, que
lhe beijo as mos por tamanhas duas mercs, como
em sua embaixada me mandou offerecer : c uma,
de sua Senhoria haver por bem que este casamento
se faa, a maior que para mim pode ser. E a outra
no na estimo em menos; pois se lembrou de m'a fa-
zer sem meu requerimento. E que alem da p^ga prin-
cipal que n'isso recebe de suas muitas virtudes, pra-
zer a Deus que eu a servirei por maneira que se no
arrependa d'este seu propsito : mas que por agora
me no parece tempo conveniente para isso, assi por
a pouca idade d'El-Rei meu Senhor, em que se no
perde tempo, como pela tristeza geral, em que com
tanta razo todos seus vassallos estamos
;
e que sua
Senhoria haja por bem que isto se alargue mais al-
guns dias, nos quaes se procurar a dispensao que
se requer, e o povo perder parte d'este sentimento,
e se poder fazer ento melhor e com mais honesti-
dade, e com aquellas cerimonias e festas que se a taes
pessoas deve.
CAPITULO VIII
Contradico que houve em algumas pessoas no con-
sentimento do casamento a" El-Rei com a
filha
do
Infante D. Pedro
consentimento e prazer da Rainha acerca d'este
casamento, no foi egualmente recebido nos
coraes de todos os que alli eram : c uns o
aprovavam com prazer e sem paixo, e outros com
tristeza, dio, inveja e cobia, o no podiam padecer.
E entre alguns d'estes que hi havia, o
principal, di-
ziam, que era o conde de Barcellos, a quem parecia
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 25
que da concluso e outorga d'este casamento pesava
muito. E, como quer que em publico o no contra-
dissesse, procurava porm secretamente, por meio do
Arcebispo D. Pedro, de Lisboa, a quem a Rainha dava
muita f, e no tinha boa vontade ao Infante D. Pe-
dro, como do que acerca d'este casamento lhe tinha
prometido, ella se desdissesse, com fundamento de
trabalhar com toda sua possibillidade que El-Rei
casasse com sua neta, D. Isabel, filha maior do In-
fante D. Joo;
porque o conde de Barcellos, como
j
disse, foi filho natural d'El-Rei D.
Joo, e teve trs
filhos legtimos da filha do Condestabre D. Nuno Al-
vares Pereira, com quem primeiro casou: saber D. Af-
fonso, conde d'Ourem: e D. Fernando, conde d'Ar-
rayolos: e a Infante D. Isabel, mulher do Infante
D. Joo;
e por falecimento da filha do Condestabre
casou com D. Costana de Noronha, filha do conde
de Gyam e irm d'este Arcebispo, que elle com ra-
zo amava muito; porque n'ella havia assaz de virtu-
des e fremosura e outras bondades, porque o bem
merecia: e d'ella no houve filho nem filha, e por seu
respeito o conde de Barcelos amava muito todas suas
cousas d'ella, e em especial seus irmos, entre os
quaes o principal era o Arcc-bispo, asi por sua idade
maior, como por sua denidade; e por isso o conde
fiava d'elle, e lhe encarregava a estorva d'este casa-
mento d'El Rei com a filha do Infante D. Pedro: e
no falleciam outros que o n'isso assaz ajudavam. Da
qual cousa o Infante por seus meios foi logo avisado:
e como era prudente e discreto, no lhe esqueceu o
que geralmente se cr e afirma da inconstncia e pouca
firmeza que muitas mulheres por sua natural condi-
o tem, quo ligeiramente se movem. Pelo qual, por
segurar o passado, foi l~go fallar rainha, pedindo-
lhe com palavras em que havia muita razo e hones-
26 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
tidade, que da merc e consentimento que lhe tinha
prometido acerca do casamento d'El-Rei com sua fi-
lha, lhe desse uma certido e segurana assignada por
ella; do que a Rainha muito aprouve, e encommen-
dou ao Infante que a fizesse, como fez, em um Al-
var, na forma que cumpria : e Ella o assignou e lh'o
deu, que o tivesse.
CAPITULO IX
De como se
fez
o saimento dEl-Rei no mosteiro da
Batalha
El-Rei
e o Prncipe seu irmo, e a Rainha e In-
fantes, e outros muitos prelados e condes, e se-
nhores do reino, partiram de Thomar para o
mosteiro da Batalha no fim do mez d'Outubro, que
era o termo, a que as gentes, para o saimento d'El-
Rei, se haviam n'elle de ajuntar, e des-hi para as cor-
tes em Torres Novas, e por estas ceremonias de sai-
mentos, que aos Reis e Princepes, depois de suas
mortes, em suas reaes sepulturas se fazem, serem to
geraes e to costumadas em Espanha e assim n'estes
reinos de Portugal, que pela mr parte todos ho
d'ellas noticias e informao: por fugir o vicio e avor-
recimento da proloxidade, a mim pareceu escusado
descreve-lo aqui particularmente, e somente abaste
brevemente saber que na pompa e cerimonias de suas
exquias se guardou e cumpriu todo o que ao estado
de um to alto Prncipe em tal auto cumpria ; e nos
buris e lutos dos corpos de todos, e nas lagrimas ge-
raes de todolos olhos, e na commum tristeza de to-
dolos rostos, em todo o reino claramente parecia
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 27
quanto em sua vida era de todos amado, e a grande
perda e desamparo que, por sua morte e pelo per-
der, todos recebiam.
CAPITULO X
Como ante de se fazerem as primeiras cortes em Tor-
res Novas, se
fez
uma conjurao contra o Infante
D. Pedro
JJcabado
o saimento, assi como alli eram juntos,
1 assim se foram todos a Torres Novas, onde
por dar logar que alguns alcaides e outras
pessoas acabassem de vir, para fazer as menagens e
dar a obedincia a El-Rei, sem se comearem as cor-
tes se passaram alguns poucos dias : nos quaes por
meio principalmente de Vasco Fernandes Coutinho,
marechal, que depois foi primeiro conde de Marialva,
foram liados por juramento contra o Infante D. Pedro
casi todolos fidalgos do reino, em que entravam, por
mais principaes, o Arcebispo D. Pedro, e D. Sancho
seu irmo, e o priol do Crato D. Frei Nuno de Ges;
os quaes juntos secretamente em uma egreja, o ma-
rechal, como quer que outros bi estivessem de mor
valor e auctoridade, elle para os mais commover a
seu propsito, porque tinha para isso audcia, lhe fez
uma falia com largas razes, cuja sustancia foi
:
Que o regimento do reino e criao d'El-Rei e
seus irmos por disposio do testamento d'El-Rei
ficara, como sabiam, que no saisse do poder da Rai-
nha
;
o que elles deviam requerer e procurar que se
cumprisse; assi por ser razo, como por a Rainha ser
mulher estrangeira, da qual por se mostrarem em
28 BbTiotheca de
Clssicos
Porturjuezes
favor de seu servio e teno sempre receberiam
honra,
favor, merc e acrecentamento
; e
por is-o de-
viam trabalhar que no viesse em maneira alguma
ao
Infante D. Pedir, de cujos rigores e mostranas
suas falsas, que fazia ao povo, de justo e s concien-
cia, no podiam receber se no o contrara; e
que isto
lhes seria fcil de fazer; porque por parte
do
Infante
D.
Pedro, quando muito podesse ser, seria povo e
gente meuda, que sem cabeceiras no
teriam foras
nem dariam ajuda, e que
por a sua d'elles eram
01
que estavam presentes com outros muitos que logo
seriam com elles; e mais cria do Infante D. Anrique,
e sabia do conde de Barcellos, que seriam em sua
ajuda, pedindo lhe em concluso, que o houvessem
to
los
assi por bem, e o affirmassem, e segurassem
COm
juramento.*
Do que a todos aprouve, e o poseram em escrpto,
que logo juraram.
,
como quer que n'isto entrassem grandes ho-
mens, e
de muita auetoridade, porm seus signaes e
juramentos tiveram
d'hi a pouco pouca firmeza
;
to-
dos os mais se desdisseram e acostaram a banda do
Infante D. Pedro e
dos outros Infantes que foram
com elle; parque n'aquelle tempo todo
reino final-
mente estava vontade e di dos filhos e ne-
tos d'EI Rei D.
Joo.
E d'este ajuntamento assi jurado, que rainha logo
foi notificado, porque confiou n'el!e muito mais do
que devera, se lhe seguiu todo seu damno, perda,
desassocego, e emfim a morte,
no como a
seu estado
cumpria; porque crendo, que nestes
para seus feitos
haveria a firmeza que juraram e lhe prometteram,
no se contentou no principio d'est- s movimentos
d'alguns meios bons e honestos, que lhe furam apon-
tados; do que a ella pelos no acceitar se seguiu
Chronica d'El-Rei D. Afonso V 29
muito mal, e ao reino, e a muitos cTelles pouco bem,
como se dir.
CAPITULO XI
Como se deu a obedincia
e
fizeram
as menagens a El-Rei
e se praticou sobre quem regeria
Jssignado
o dia da proposio das cortes, El-
Rei teve seu estrado e Real Estado em uma
pequena praa, que se faz ante a egreja de
Santiago d'aquella villa, onde todolos senhores e of-
ficiaes e procuradores dos povos postos em sua cos-
tumada e antiga ordenana, comeou e fez arenga, que
para tal auto se requere e costuma, o doutor Vasco
Fernandes de Lucena, mui elegante e cheia de mui
doces palavras e graves sentenas para aquelle caso
da obedincia ; e com necessrias e vivas razes exor-
tou todolos que eram presentes para a fazerem
;
como
a arenga foi acabada os Infantes primeiro, e des-hi os
condes e os outros senhores deram logo suas mena-
gens e obedincias a El-Rei, segundo sua boa e devi-
da lealdade; e comearam logo de mover sobre quem
teria o regimento do reino, que das cortes era o ponto
mais sustancial, no que houve entre todos grandes
desvairos; porque os mais se mostravam segundo
opinio das parcialidades que tinham, justificando
cada uns suas tenes, e aos menos, que haviam res-
peito ao bem commum e assessego do reino, no
eram recebidos nem ouvidos seus meios.
30 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
GAPITULO XII
Concrdia
feita
entre a Rainha e o Infante D. Pearo
acerca do regimento
E
porque a competncia e deferena do regimento
no era principalmente salvo entre a Rainha e
o Infante D. Pedro, a Rainha, como senhora,
que de sua virtuosa condio desejava todo o bem e
assessego, sentindo os malles e damnos que d/estas
diverses se podiam seguir, pelos atalhar com aleuma
justa concrdia, enviou rogar ao Infante D. Pedro
por meio do Infante D. Anrique, que lhe fosse falar:
do que o Infante foi muito alegre
;
e, escolhendo para
isso tempo conveniente, satisfez logo a seu requeri-
mento: e, sendo ambos ss apartados, a Rainha lhe
disse muitas ras-s sobre o desvairo do regimento,
em que bem pareceu que havia n'ella muita virtude,
s conciencia e grande discrio e justo juizo, con-
cluindo que lhe rogava que ambos sem outro meio
se quizessem sobre isso concordar.
C) Infante D. Pedro, como era Prncipe justo, bom,
e
temente a Deus, foi de suas palavras assaz contente;
e
com outras de grande reverencia e acatamento lh'as
teve muito em merc
;
e depois d'alguns meios, sobre
que entre si debateram, finalmente foram acordados
d'esto:
Que com a Rainha ficasse o cargo da criao de
seus filhos, e com a governana e ministrao de
toda a fazenda; e ao Infante ficasse o regimento da
justia e o titulo de defensor dos reinos por El-Rei.f
O qual meio, por muitas rases, que entre si pra-
ticaram, houveram por justo e razoado ; e mostraram
ambos ser d'elle muito contentes.
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 31
CAPITULO XIII
Da contradio e mudana que houve neste acordo
Luez-se este acordo entre estes senhores pela raa-
r\, nh, no qual dia os que eram ajuramentados,
T em especial o Arcebispo de Lisboa, por meio
de seus meios, que dentro trazia, souberam logo da
falia que a Rainha e o Infante houveram
;
e, como fi-
caram ambos d'acordo, do que lhes muito pesou, e
em especial se disse, que desprouvera muito ao conde
de Barcellos, que desejava e procurava entre elles
haver desacordo, por se no aceitar o casamento de
El-Rei com a filha do Infante, esperando com a vinda
do Infante D. Joo
corte, que El-Rei casasse com
sua filha, como atraz se tocou.
E ao outro dia, sendo ante a Rainha juntos alguns
d'estes Principaes seus servidores, lhe perguntaram
em que maneira se concordara com o Infante. E a
rainha lhes disse que era bem concordada ; e que por
assi ser dava graas a Deus, dizendo-lhe logo a con-
crdia em que ficaram, e as causas e razes porque
ella devia ser, e era d'isso contente. A qual cousa lhe
logo todos desdisseram
;
e que fora n'isso muito en-
ganada, e seu estado muito abatido ; e que ainda er-
rara fazer nada em cousa semelhante sem primeiro
lh'o fazer saber, ao menos para a aconselharem, afeando
tal concerto com razes e inconvenientes assi cora-
dos, e to aparentes, que a Rainha, vencida d'elles,
creu que em fazer tal acordo no poder fazer cousa
em todo mais errada. Pelo qual logo alli lhe fizeram
tomar outra determinao contrair em que ficara
com o Infante; e que todavia se afirmasse ella s re-
ger sem outra ajuda; e, quando no podesse com ai-
32
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
guma parte do regimento, que de sua mo a desse e
encarregasse a quem sentisse que havia de servir e
fazer sua vontade. O que no ficou logo por saber ao
Infante D. Pedro.
CAPITULO XIV
Apontamentos que publicamente se
fizeram
contra o
testamento a"El-Rei para a Rainha no dever re-
ger
Com
esta volta que a Rainha fez do propsito e
acordo em que ficara com o Infante, comea-
ram outra vez as differenas e debates entre
os
grandes e povo sobre o regimento.
A Rainha com os de sua parte requeriam para ella
toda a governana em solido, assi como no testamen-
to
d'El-Rei ficara determinado: os povos geralmente
com
outros da parte do Infante D. Pedro requeriam
o
regimento para elle s sem outra ajuda nem com-
panhia, allegando que a Rainha por muitas razes
no devia reger ; e d'este voto foram Pedro de Serpa,
e
Vicente Egas, cidados e procuradores de Lisboa,
homens honrados, bem entendidos, e de grande au-
toridade. Os quaes altercando sobre estes debates
perante El Rei, como quer que era menino, quando
um e quando o outro lhe disseram:
Muito alto e poderoso Prncipe, Rei nosso Senhor,
porque nos parece que acerca de se regerem estes
reinos por v<, sois requerido que cumprindo o tes-
tamento d'El-Rei vosso padre, que Deus haja, deis
inteiramente o regimento Rainha nossa Senhora,
vossa madre, ns, como procuradores da vossa cidade
Chronica d'El- Rei D.
Affonso
V 33
de Lisboa, e assi em nome dos outros procuradores
que aqui so, nossos irmos, dizemos que sob reve-
rencia de vossa real pessoa, El-Rei vosso padre no
podia fazer tal testamento; nem em tal caso leixar
Regedor do reino sua disposio
;
porque a ns
vosso povo pertence por direito enleger quem por
defeito de vossa madura edade nos haja por Vs de
defender com as armas e reger por leis com jus-
tia.
E isto no aggrava vossa legitima sobcesso ; nem
mingua em vossas lealdades ; c por serdes seu filho
maior legitimo, e baro, ns alegremente vos reco-
nhecemos e recebemos por nosso verdadeiro Rei e
Senhor
;
e com ajuda de Deus vos guardaremos aquella
lealdade, f, e amor, que bons, leaes vassalos devem
a Senhor
;
mas quanto a enleger Regedor, at que Vs
sejaes em edade para nos por vs regerdes, ns bus-
caremos e enlegeremos quem em vosso nome nos haja
de reger e governar
;
porque asi como a ns somente
pertence enleger Rei, se a real e legitima sobcesso
dos Reis d'estes reinos por algum caso, o que Deus no
queira, se destinguisse, e se no guardaria em tal caso
o testamento, nem disposio do Rei postumeiro; assi
pertence a ns enleger agora Regedor por Vs; e para
serdes servido abasta que ns o enlejamos tal, que
seja natural, e do vosso real sangue, e no estrangei-
ro, e em que haja virtudes, saber, e conciencia, e sobre
tudo lealdade, a que se no deva poer suspeita. E
vossa mui Real Senhoria guarde-nos nossa justia e
liberdade, como esperamos, no que recebereis muito
servio
:
e ns vossos vassalos com vossos reinos re-
ceberemos merc, proveito e assessego, que deveis
desejar: e assi o pedimos a vs, mui illustres Infan-
tes e magnficos condes; e requeremos a vs, honra-
dos senhores, e leal povo de Portugal, que aqui sois
VOL. I
FOL.
3
34
Biblioiheca de Clssicos Portugaezes
juntos para celebrar estas reaes cortes, que assi jun-
tamente o peaes e requeraes que se faa.
No cabo d'esta falia, assi como os coraes dos que
a ouviram eram desvairados, assi no houve rostos
nem consentimentos eguaes; e por isso no cessaram
os primeiros debates do Regimento, os quaes, como
somente eram entre a Rainha e o Infante, como disse,
alguns por assessego apontavam que ambos fossem
exclusos de reger, e enlegessem outros; outros diziam,
mas que ambos regessem juntamente n'aquella parte
que a cada um bem coubesse; outros tinham que a
Rainha somente tivesse o Regimento; e outros o da-
vam inteiramente ao Infante: e a esta parte se incli-
navam mais os povos; e a cada uns para execuo de
seus votos no falleciam autorizadas razes.
CAPITULO XV
Do meio que o Infante D. Anrique tomou entre a
Rainha e o Infante D. Pedro acerca do Regimento
Infante D. Anrique era a estas differenas pre-
sente, e como virtuoso meio trabalhou de as
poer em alguma temperana : e posto que
algnns tiveram que elle fora sempre mais inclinado
parte da Rainha que do Infante; porm, passados
quinze dias d'apontamentos e conselhos, foi feita por
acordo do Infante D. Anrique, e dos outros do con-
selho e procuradores do povo uma determinao por
maneira de Regimento, que se denunciou em publico
ajuntamento por Nuno Martins da Silveira, escrivo
da puridade, cuja sustancia foi
:
Que a Rainha ficasse por tetor e curador d'El-Rei
Chronica d'El-Bei D.
Affonso
V 35
seu filho com a ministrao das rendas e officios ; e o
Infante D. Pedro tivesse cargo da defenso do reino
com titulo de defensor
,
e o conde d'Arrayollos, filho
do conde de Barcellos tivesse cargo da justia ; e que
na corte, onde El-Rei estivesse, andassem sempre seis
do conselho repartidos a tempos, e mais um prelado
e um fidalgo, e um cidado ; e na corte outros alguns
sem especial necessidade no podessem andar : e que
com estes seis do conselho e trs dos estados se de-
terminassem todas as cousas que sobreviessem com
autoridade da Rainha e acordo do Infante D. Pedro,
estando sempre pelas mais vozes. E sendo caso que
seus votos fossem em desvairo por egual, que o noti-
ficassem ento aos Infantes e condes ; e qne segundo
as mais vozes fosse o negocio da duvida determina-
do.
E as reparties d'estas cousas, em que estes se-
nhores ha\
r
iam de ter cargo, eram assi limitadas,
que muito poucas, e de pequena sustancia podia cada
um em seu cargo, por s determinar.
Foi mais ordenado que em cada um anno se fi-
zessem cortes, s quaes no viessem mais que dois
prelados e cinco fidalgos, e oito cidados, e n'ellas se
determinassem as duvidas que os do conselho por si
no podessem concludir, ou algumas outras em sus-
tancia assi especiaes, que para aquelle tempo devessem
ou podessem ser reservadas, assi como mortes de
grandes homens e privao d'officios grandes, e per-
dimentos de terras, e corregimento ou fazimento de
leis e ordenaes; e que nas crtos vindoiras sempre
se podesse correger e emmendar qualquer defeito ou
erro que houvesse nas passadas. Com outras par-
ticularidades, cuja mais expresso no necess-
ria.
E n'este accordo cuidou o Infante D. Anrique que,
36 Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
se o Infante D. Pedro o assignasse e consentisse, que
levemente acabaria com a Rainha que tambm assi o
fizesse; mas ella, a que o dito acordo foi primeiro
mostrado, por induzimentos de no verdadeiros e
sos conselheiros o denegou fazer, querendo que o
Regimento lhe fosse dado inteiramente, e que ella de
sua mo daria d'elle a parte que quizesse a quem lhe
bem parecesse.
E o Infante D. Pedro, como quer que mostrasse do
dito acordo sentimento, por lhe ser n'elle mui limi-
tada e adelgaada a parte do reino que havia de re-
ger, porm por assessego disse : que faria o que o
Infante seu irmo quizesse.
Mas o Infante D. Anrique, vendo to forte o pro-
psito da Rainha, houve o feito por descordado de
todo. De que o povo foi logo sabedor, e posto em
grande alvoroo contra a teno da Rainha, e de se-
guirem a do Infante D. Pedro, qualquer que fosse. Ao
qual os povos por Lopo Antnio, que depois foi
escrivo da puridade, fizeram saber que estavam
para seguir o qne elle ordenasse, affirmando que elle
s sem outrem havia de reger.
A Rainha por os de sua parcialidade, que d'este
alvoroo foram logo sabedores, foi conselhada que
para o atalhar, como cumpria a seu servio e honra,
e bem do reino, convinha que logo assignasse o ac-
cordo, e no parecesse que por sua parte ficava ;
Rainha prouve fazel-o, e mandou logo chamar o In-
fante D. Anrique, em cujo poder era o Regimento, e
o assignou, e ordenou que os Infantes e os outros
prelados e condes, e procuradores, o assignassem e
jurassem juntamente, o que todos fizeram em um
altar, perante notairos pblicos, salvo o arcebispo D.
Pedro, que no quiz por no ficar o Regimento in
solido Rainha. Mas cada um que assignou e jurou,
Chronica d'El-Rei D. Afonso V 37
fez assi seu juramento, e s escreveu seu signal com
taes cautellas e palavras, que bem parecia querer lei-
xar a sua disposio fazer sempre depois o que qui-
zesse, sem parecer que o quebrantava.
CAPITULO XVI
Como a Rainha por meio do conde de Barcellos enviou
pedir ao Infante
D. Pedro o alvar que lhe tinha
dado sobre o casamento d^El-Rei
conde de Barcelos, como quer que assignou
este Regimento, no foi porm d'elle satisfeito,
por lhe no ficar n'elle alguma parte ; e como
homem que para acrecentar por qualquer maneira
seu nome e proveito, teve sempre grande cuidado,
desejando que todavia o casamento d'El-Rei com sua
neta se fizesse, vendo que o alvar que a Rainha tinha
dado ao Infante D. Pedro lhe era para isso grande
embargo, ordenou por si e por outros de sua teno
que a Rainha com razes obrigatrias com que a mo-
veram, mandasse pedir o alvar ao Infante D. Pedro.
A qual como quer que, como virtuosa o refusasse,
por no quebrar sua verdade, e mais a determinao
d'El Rei D. Duarte seu marido; porm como impor-
tunada e induzida lh'o fizeram consentir.
E, porque algum dos outros que eram n'este acor-
do, no ousou de ir em nome da Rainha ao Infante
pedir-lhe o alvar, o conde de Barcellos acceitou o
cargo, e foi ao Infante, e lhe disse
:
Senhor, a Senhora Rainha vos manda dizer que
sabeis, que vos tem dado um alvar sobre o casa-
38 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
mento d'El-Rei nosso Senhor, seu filho com vossa
filha ; e por quanto este caso de tamanho peso e
importncia, que o no devera passar sem accordo
e conselho dos principaes do reino, a que tambm
toca ; e agora por estes movimentos no
,
nem pde
n'isso entender, vos roga que lhe mandeis o alvar, e
que sobre isso ter a maneira que vir que cumpre,
fallando primeiro com ns outros, de quem sabeis
que no ha de sahir, salvo cousa que seja vossa honra
e acrecentamento.
O Infante lastimado da embaixada e avisado de
sua destruio, d'onde nacia, a que fim vinha, disse:
O alvar que dizeis, em meu poder ; e eu, se
quizesse, justa e honestamente podia denegar Se-
nhora Rainha a entrega d'elle
;
porque no sei como
o que por El-Rei meu Senhor e irmo me foi outor-
gado, e por ella depois a mim lembrado, requerido e
outorgado, se me pde revogar sem causa; bem creio
que em suas virtudes haveria firmeza de cumprir o
que promette, e mais em cousa to justa e to hones-
ta, se a no movessem d'ella conselheiros pouco fieis,
no que lhe fazem pouco servio
;
porm, porque no
parea que eu por fora quero, nem tomo, o que com
razo me devia ser requerido e dado, dae a sua Se-
nhoria seu alvar, e ir roto, e no so a seu poder,
em testemunho da quebra de sua verdade, que me
quebrou.
E logo o tirou de um cofre, e o rompeu, e roto o
entregou ao conde.
Chronica d'El-Rei D. Ajjfonso V 39
CAPITULO XVII
Como El-Rei se
foi
a Lisboa, onde o Infante D. Joo
veiu a primeira vez
I i.
|
m mez e alguns dias mais duraram as cortes em
J
Ui.
Torres Novas, em fim das quaes, por ser o anno
de mantimentos mui estril, e aquella comarca
mui cara, acordou a Rainha e os Infantes de se irem
como foram, com El-Rei para Lisboa, onde, por via
do mar com industria e aviamento de bons regedo-
res, se buscou razoado provimento, que deu causa se-
rem hi os mantimentos em menos careza, que em al-
guma outra parte do reino.
O Infante D.
Joo,
depois de convalescido da doena
de que
j
se disse, soube do fallecimento d'El-Rei seu
irmo, de que sobre todos seus irmos mostrou ser
mais anojado e no era sem razo; porque por falle-
cimento da Rainha D. Filippa, sua madre, o Infante
D.
Joo
e Infante D. Fernando ficaram pequenos; e
El-Rei D.
Joo
recolheu para si o Infante D. Fer-
nando, que era mais moo ; e deu o Infante D.
Joo
a El-Rei Duarte que o criou e amou sempre, como
prprio filho: e por esta criao, que com elle teve,
alem da geral e natural divida d'El-Rei e irmo lhe
devia o Infante D.
Joo,
sentiu sobre todos sua morte;
porque vindo ante a presena d'El-Rei e da Rainha,
depois da obedincia e reverena devida, suas conti-
nuas lagrimas e dorosas palavras davam claro teste-
temunho do sentimento de seu corao pela morte
d'El-Rei. E ali em publico fez logo uma falia Rai-
nha de grandes offerecimentos, de a servir e amar
mais que nunca, com palavras de muita discrio
e
40 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
amor, e acatamento, em que tambm com razes evi-
dentes lhe tocou, que lhe parecia que se no devia
antremeter no regimento do reino
;
e que assi como
esta havia de ser sua teno, assi seria tambm que
em todo o mais sua honra, estado, acatamento e -ser-
vio se guardasse por todos o mais inteiramente, do
que se nunca guardara a outra Rainha; do que ella
no foi contente, e muito menos os da sua teno,
que eram presentes : e porque isto foi dito de praa,
logo o rumor d'isso sahiu pela cidade, com que os
povos e a gente d'ella principalmente comearam de
se alvoroar e praticar entre si secretamente, como
tirariam o Regimento Rainha.
CAPITULO XVIII
Do despacho que se deu aos embaixadores de Castella
s embaixadores de Castella, que eram na corte,
como se atrs disse, pelos desvairos que sobre
o Regimento houve em Torres Novas no fo-
ram ouvidos, nem despachados at Lisboa, onde jun-
tos Rainha e Infantes com os deputados do conse
lho deram sua embaixada, a qual, por ser desgosto
d'este reino, se cr que tardou tanto em se ouvir;
porque
j
a sustancia d'ella seria revelada.
Requereram em nome d'El-Rei D.
Joo
o segundo,
que ento reinava em Castella, que as egrejas que pela
Cisma ento foram tiradas aos bispados de Tuy e Ba-
dalhouce, e eram regidas por administradores, se tor-
nassem a seus prprios prelados. Outrosi que os mes-
trados d'Aviz, e Santiago d'estes reinos tornassem um
i
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 41
Ordem e obedincia de Calatrava, e o outro de
Santiago de Castella, cujos membros foram, e que os
titulos
ficassem, como eram, e as enlies se fizessem
c
;
mas as confirmaes d'elles se houvessem pelos
superiores de Castella. Requereram outrosi que alguns
bispados d'estes reinos reconhecessem superioridade
ao arcebispo de Sevilha, como Metropolitana sua, que
sempre fora. E assim apontaram sobre tomadias de
navios, que se fizeram, requerendo restituio, apon-
tando e allegando sobre cada uma d'estas cousas mui-
tas razes e fundamentos de direito: porque entre el-
les era um grande doutor de direitos.
Ouvida esta embaixada, em que tambm os embai-
xadores tocaram aggravos de sua tardana, houve so-
bre o despacho d'ell.es grandes divises, segundo os
votos de cada um
;
porque a uns parecia bem respon-
der-lhe manso, poendo a defesa d'esto em razes de
direito; e a outros parecia que no esforo e confiana
d'armas e valentes coraes ; e finalmente foi havido
ento por melhor acordo envia-los, corno enviaram,
sem alguma certa resposta, escurando-se com os mo-
vimentos, torvaes e pouco assessego que pela morte
d'El-Rei ainda no reino havia; e que El-Rei, depois
d'haver em todo seu conselho, enviaria logo a El-Rei
de Castella a resposta com sua embaixada.
E o que d'estes requerimentos se pde logo saber,
foi que no nasceram da prpria vontade d'EI-Rei,
em cujo nome vinham ; mas dos Infantes d' Arago,
seus cunhados, que ento picavam com elle, e gover-
navam o reino, com fundamenio de meter este reino
em necessidade, e elles por seus meios e com sua pri-
vana o remedearem, e esperando que por isso car-
regariam maior obrigao a El-Rei de Portugal e a
seus reinos e vassalos, para as necessidades suas, em
que esperavam de se vr, como viram : por quanto fi-
42 Bibliotheca de Clssicos Portugnezes
zeram ento lanar fora d'El-Rei de Castella e de sua
corte o condestabre D. lvaro de Luna, grande po-
deroso, e muito seu imigo.
CAPITULO XIX
Como a Rainha comeou de reger e ser em seu regi-
mento prasmada
JCI
Rainha regia o reino, e tinha El-Rei em seu po-
1 der, e por seu aio Nuno Martins da Silveira: e
como ella era de boa e virtuosa teno tomava
o encarrego do Regimento com mais trabalho e con-
tinuao do que tivera em costume, nem requeria sua
fraca desposio; e des-hi os requerimentos assi pela
boa ordem que se logo deu ao ouvir d'elles, como
por haver
j
dias que se no despachavam, cresciam
cada vez mais ; o que cada dia, alm de ser prenhe,
lhe causava dores e enfermidades, que contrariavam
seu bom e verdadeiro propsito
;
e, sendo com razo
aconselhada que temperasse seu grande trabalho, e
entrepozesse nos negcios alguns dias para seu re-
pouso e descanso, ella constrangida
j
de suas prprias
necessidades o comeou de fazer, no sem reprenses
do povo, com que indevidamente logo comearam a
acusar sua innocente fraqueza, e queriam asolver seus
muitos e desordenados requerimentos, e incomport-
veis importunaes. Pelo qual alguns se atreviam
j
havendo por servio de Deus e d'El-Rei e bem do
reino de cometer ao Infante secretamente que tomasse
o Regimento de todo; mas elle, ou por sua dissimula-
o, ou por ser assi sua vontade, a todos tirava de
tal esperana ; antes em taes cousas assi se fazerem,
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 43
posto que melhor se podessem e devessem fazer, sem-
pre escusava as fraquezas e innocencia da Rainha com
quanto podia.
CAPITULO XX
Fallecimento da Infante D. Filippa
J\\
este anno de mil e quatrocentos e trinta e
J\l
nove, no mez de Maro, porque comearam
de morrer em Lisboa, e se finou de peste-
nena a Infante D. Filippa, de onze annos, filha d'El-
Rei D. Duarte e da Rainha sua mulher, El-Rei e o
Prncipe se foram a Almada ; e a Rainha se foi a
uma quinta junto com Santo Anto, que se chama
Monte Olivete.
CAPITULO XXI
Nascimento da Infante D. Joana
Ealli
pariu a Infante D. Joana,
que depois foi
Rainha de Castela, e lhe vieram novas como o
Infante D. Pedro, seu irmo mais moo, fora
morto em Itlia de uma bombardada, estando com
El-Rei D. Affonso seu irmo, em cerco sobre a cidade
de Npoles. E assi veiu Rainha n'este anno uma
carta consolatoria do Papa Eugnio, conortando-a so-
bre a morte d'El-Rei seu marido, e amoestando-a que
por alguma maneira se no
desseca
cidade de Ceuta
por a soltura do Infante D. Fernando, allegando-lhe
para tudo razes santas e catholicas quanto a Deus, e
de muita honra e louvor para este reino.
44
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO XXI
Praticas que o Infante D. Pedro teve sobre descon-
tentamentos que tinha da Rainha acerca do Regi-
mento
jYf
o mez cTAgosto d'este armo de mil e quatro-
jj\
centos e trinta e nove, a Rainha se foi da
J
quinta de Santo Anto para Sacavm : e o
Infante D. Pedro ficou com El-Rei em Lisboa, onde
fallando com D. lvaro Vaz d'Almada, capito mor
do mar, e com outros de que se fiava, disse
:
<Que por quanto n'esta parte do Regimento que acei-
tara, segundo era pequena, e a Rainha se havia solta-
mente em todo, e defamava a elle e todas suas cou-
sas, elle recebia grande abatimento : sua vontade era,
por muitas razes que apontou, leixar aquelle pequeno
cargo que lhe fora dado, e ir-se para suas terras : e
que porm queria saber que lhes parecia.
No que por seus conselheiros houve votos desvai-
rados, c uns tinham que emprendesse e tomasse o
Regimento de todo : e outros que se contentasse com
a parte que tinha, e se so fosse : outros que leixasse
tudo e se fosse : e a cada um no falleciam razes as-
saz aparentes para justificar seu parecer. E finalmente
foi acordado que d estas seguisse a parte que ao In-
fante D.
Joo
melhor parecesse
;
porque era de crer
que sua seria o Infante D. Anrique e o conde de
Barcellos, e assi seus filhos os condes d'Ourem e d'Ar-
rayollos.
Chronica d'El-Rei Afonso
V 45
CAPITULO XXII
Como o Infante D. Pedro e o Infante D. Joo am-
bos se viram e /aliaram sobre o Regimento
VT^/ELO
qual o Infante D. Pedro enviou pedir ao
Infante D.
Joo,
que era em Alcohete, que se
J
vissem, como viram logo ambos, no Oratrio
^
de Santa Maria do Paraso, em que se depois fun-
dou e mudou o mosteiro de Santos da Ordem de
Santiago.
E porm ante da ida do Infante D.
Joo,
elle pri-
meiro foi avisado do capito lvaro Vaz, como de si
mesmo, da teno porque o Infante D. Pedro se que-
ria com elle vr.
Alli os Infantes se apartaram ss, onde o Infante
D. Pedro com largo recontamento propoz a teno
em que era de leixar a parte do Regimento que ti-
nha : como era aconselhado pelo contrairo, apontando
as causas e razes em que uns e outros se fundavam :
e que porm lhe pedia que n'isso o aconselhasse
;
por
que na confiana que tinha de seu saber e certido de
amor, que entre elles havia, sua vontade era seguir o
que a elle melhor parecesse.
O Infante D.
Joo
lhe respondeu :
Senhor irmo, ante d'isto eu tinha
j
n'este caso
assas consirado ; e, porque mui em breve vos respon-
da, sabei que se chamais erro acceitardes o Regimen-
to, como sois aconselhado, no sei cousa que possaes
acertar, c se vs nascereis primeiro e vos no fizera
Deus to bom e to prudente como soes, e assi ao
Infante D. Anrique nosso irmo, crede que eu reque-
46
Bbliotheca de Clssicos Portuguezes
rra o Regimento para mim
;
e se m'o no quizerem
dar, eu o tomara ou morrera sobre isso
;
porque com
quanto a Rainha mui virtuosa e mui discreta e
amiga de Deus, nunca vi mr vergonha e abatimento
nosso, que sermos regidos por ella
;
pois mulher, e
mais estrangeira.
O
Infante D. Pedro lhe respondeu :
Senhor irmo, bem vejo o que dizeis ter funda-
mento de muita razo, se por todos se quizesse assi
consirar com juizos livres de paixo; mas como n'este
caso haja propsitos e tenes desvairadas, tenho re-
ceio nascer d'ellas alguma diviso, que a qualquer
reino grande faria perder, quanto mais a este de Por-
tugal to pequeno, que sem sua destruio no padece
algum desacordo; e por elle ser a herdade em que
nascemos e que nos criou, e porque nosso padre tanto
sangue espargeu, e tanto trabalhou pela conservar e
manter, eu sentiria em egual de morte para mim ser
eu causa de sua perdio : verdade que, se com pra-
zer de todos e sem alguma diviso se podesse fazer,
logo por servio de Deus e d'El-Rei meu Senhor, e
bem de seus reinos e minha honra, folgaria aceitar
este cargo.
O Infante D.
Joo
lhe disse
:
A diviso e desacordo do reino que temeis, no
querendo vs usar do Regimento, no se escusa se a
Rainha com estes que agora esforam sua teno o
reger; porque elles n'esta contrariedade que seguem
no ho respeito a algum amor que tenham Rainha,
nem menos ao reino em que vivem , mas somente por
segurarem e escaparem os castigos de seus erros pas-
sados, e d'outros, se os fizerem ; e para com achaque
de necessidades fingidas tomarem causas de pedirem
e
encurtarem o patrimnio real e acrecentarem o seu;
e por esta conta, que verdadeira, a justia e a fa-
Chronica (VEl-Rei D. Affonso
V 47
zenda do reino, em que consiste toda sua sustancia,
cairiam com elle de necessidade na perdio que te-
meis : e alm de o cuidado e trabalho de reger ser
incomportvel s foras da Rainha, hei ainda mais
por principal ioconveniente o Regimento d'este reino
ficar s sua disposio esta vinda dos Infantes de
Arago, seus irmos, a Castella; porque, como so
homens amigos de novidades, e tem no mesmo reino
grandes competncias, certo que se ho de favore-
cer com este, e poer muitas vezes as gentes d'elle em
perigo; e as rendas em despesa por sua ajuda e favor
:
assi que por estas razes e inconvenientes, que em
vs regendo todos cessam, meu conselho que vs
todavia rejaes: e quando o vs no quizerdes ou no
poderdes fazer, que o faa o Infante D. Anrique nosso
irmo; e des-hi eu, se o caso a isso chegar, e da di-
viso que tocaes, no tenhaes receio; porque o In-
fante D. Anrique e o conde de Barcellos, e seus fa-
lhos, os condes d'Ourem e d'Arrayllos, que so as
pessoas principaes do reino, seguiriam em tudo nossa
teno, quanto mais esta, em que ha tanta necessidade,
justia e honestidade: e se d'alguma parte devem de
esperar honra e interesse, em vs a tero mais certa:
e por tanto eu me affirmo que todavia deveis reger;
e que logo o declareis; e nas cortes que se ora ho
de fazer acerca d'isso, eu darei e susterei a voz por
vs: e no sinto algum to ousado, que m'a ouse
contrariar.
O Infante D. Pedro finalmente disse
:
Que seu parecer era, que por ento no devia
acerca d'isto fazer altercao nem mudana alguma;
porquanto at s cortes havia ainda bom espao de
tempo, no qual poderia ser que a Rainha mesma cansa-
ria n'este cargo, e no se sentiria desposta para elle,
e seria contente d'algum tal meio, porque cessassem
48 Biblithoeca de Clssicos Portugueses
dios e escndalos entre elles, e o reino seria regido
em outro bom assessego, como desejava.
E n'este acordo ficaram ; e o Infante D. Joo
se
tornou a Alcochete ; e o Infante D. Pedro se
foi a
Camarate, junto com Sacavm.
CAPITULO XXIII
Como a Rainha lanou
fora
de sua casa certas
don-
zellas, por suspeitas a ella, e affeioadas
ao In-
fante
D. Pedro
I
JuL
Rainha estava em Sacavm com El-Rei e seus
lf
filhos, onde seu corao no tinha repouso com
novas de mudanas e alvoroos, que se em Lis-
boa cada dia moviam, de que logo era avisada por
pessoas que por isso esperavam haver com ella mais
graa, e pelas cousas que lhe faziam crer, ella come-
ou d'haver e declarar por suspeitas e contrairs a si
mesma todas cousas do Infante D. Pedro; pelo qual
com palavras irosas, e que no cabiam em sua pru-
dncia, mansido e virtudes, lanou fora de sua casa
duas donzellas, filhas de Izabel Gomes da Silva, mu-
lher de Pro Gonalves, vedor da fazeuda, e filha de
Joo
Gomes da Silva, e irm d'Aires Gomes da Sil-
va
;
e assi no consentiu em sua casa outra donzella,
filha de
Joo
Vaz d'Almada, sobrinha do
capito,
por serem pessoas do Infante D. Pedro : o que a Rai-
nha fez por induzimentos alheios sem aquelle res-
guardo e bom conselho, que a seu estado e servio
cumpria
;
porque o lanar d'estas donzellas fez contra
ella grande escndalo na cidade de Lisboa, por serem
dos naturaes e principaes d'ella, e assi por se decla-
Chronica aVEl-R D.
Affonso
V 49
rar imiga do Infante D. Pedro, que do povo era mui
amado
;
porque at li sua desavena d'ambos podia
jazer em suas vontades ; mas sua rotura no se dizia
nem mostrava to depressa como se por isto mos-
trou.
CAPITULO XXIV
Do alvoroo que se seguiu contra a Rainha pela
execuo dos varejos de Lisboa
Jcrecentou
mais este escndalo contra a Rainha,
e para a maior parte do povo soltamente con-
trariar seu Regimento, passar uma carta em
nome d'El-Rei, porque fazia merc a Nuno Martins
da Silveira, seu aio, dos varejos a que os mercadores
de Lisboa eram obrigados de sete annos, cuja publi-
cao e esperana de execuo aos ditos mercadores
causou tanta tristeza e sentimento, que certificados
de suas perdies, se se executassem, se soccorreram
camar da cidade, e com palavras em que moviam
todos a piedade para si mesmos, e com muitas razes
que pareciam de servio d'El-Rei e bem do reino, lhe
pediram que com a Rainha e com o conselho, ou por
outra qualquer maneira a tal merc impedissem.
A cidade fez sobre isso seu ajuntamento, em que
por fora entraram mais dos ordenados
;
e a elle vie-
ram um Bertolameu Gomes, contador, e outro lvaro
Affonso, escrivo da sisa dos pannos, criado de Nuno
Martins, em cujo poder era a carta, por serem os so-
licitadores d'ella ; e, sendo lida em publico, foi tanta
a defenso e alvoroo em todo o povo, por ser pas-
sada por s auctoridade .da Rainha sem accordo do
Infante D. Pedro, que lvaro Affonso, com funda-
VOL. i fol.
4
50 Bblioiheca de Clssicos Portuguezes
mento de lhe fazerem padecer morte mais crua, o fi-
zeram saltar por uma janella, mas, por cair primeiro
em um telhado, no morreu
;
e a Bertolameu Gomes
alguns cidados seus amigos com grande difficuldade
defenderam a vida : c n'estes, por serem mui ensina-
dos no que pertencia s rendas d'El-Rei, havia sus-
peita, que deram azo e conselho, como esta merc se
pedisse.
Os que fizeram este insulto e alvoroo em desaca-
tamento da Rainha, eram quasi todolos do povo com
alguns principaes da cidade, e com temor que tinham
de a Rainha com rigor de justia os mandar castigar
como porventura mereciam, procuravam e ordenavam
assi em secreto, como
j
em publico, que o Regimento
lhe fosse de todo tirado, sobre o qual tinham suas
praticas, que enviavam logo ao Infante D. Podro,
dando- lhe muitas razes e esforo para s tomar o
carrego de reger. O qual, como quer que at li sem-
pre mostrasse estranhar com palavras de honestidade
aos que lhe em tal caso fallavam, porm a este tempo
por ter sabido e visto como a Rainha se declarava
ter-lhe desamor e m vontade, d'hi em diante, aos
que n'isso o comettiam,
j
recebia e ouvia mais com
rostro de lhe agradecer que o fizessem para vir a
effeito, que de lhe pesar.
E porque na cidade havia n'este caso propsitos e
vontades contrairs, assi naciam d'ellas bandos e ru-
mores que mostravam signaes de rompimentos peri-
gosos, aos quaes nem por provimentos e penas dos
officiaes de justia, nem por pregaes que se de in-
dustria de bons religiosos para ello fizeram, nunca se
pde atalhar, antes crecia cada vez mais.
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 51
CAPITULO XXV
Ida do conde d'Arrayollos a Lisboa sobre assessego
d'e//a, e como no aproveitou
Era
a este tempo na cidade Pedro Anes Lobato,
homem de grande auctoridade e bom caval-
leiro, ao qual, como quer que de grande con-
dio de sangue no fosse, El-Rei D.
Joo
por conhe-
cer d'elle ser bom e discreto, e em armas homem
esforado, deu a governana da justia da casa do
eivei, e a tinha; e por vr a unio e desacordo na
cidade tamanho, a que com sua vara e foras no
podia resistir, avisou de todo a Rainha, e por muitas
causas lhe enviou pedir trigoso remdio. A qual com
esses que com ella eram presentes, teve sobr'isso con-
selho, onde foi acordado que o conde d'Arrayollos,
que estava em uma quinta junto com Loures, por ter
cargo da justia do reino e ser pessoa de valor e au-
toridade, fosse poer assessego nas cousas da cidade,
para o qual loi logo chamado, e fallou com a Rainha
o que n'aquelle caso cumpria: e d'ella por ser de boa
teno e s conciencia, e tambm de si mesmo por
ser virtuoso e justo, foi avisado segundo o feito es-
tava, de o tratar e assessegar mui mansa e tem-
peradamente.
Partiu-se logo o conde para Lisboa com a trigana
que se requeria, onde chegou tarde, e para haver
melhor informao das cousas, e ter conselho sobre
o remdio d'ellas, quizera repousar algum pequeno
espao de tempo sem n'ellas intender; mas ao outro
dia por sua ida foi tanto o alvoroo e desacordo na
cidade, e com tanta soltura de palavras deshonestas
62
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
e mostranas
de desobedincia, que o conde no sa-
bia que caminho de remdio tomasse; porque os da
parte da Rainha favoreceram- se com sua ida, affir-
mando em seu favor que era para fazer justia dos
alevantadores
da unio sobre o caso dos varejos, e
que
contrariavam
o Regimento da rainha: e os da
parte do Infante D. Pedro e Infante D.
Joo
com
muitos da cidade, que eram d'outro acordo, tomaram
receio de ser por ventura verdade ; especialmente por-
que um Luiz Gonalves, official na relao, criado de
Pedro Anes Lobato, e que s cousas da Rainha havia
grande affeio,
affirmou de praa que por a ida do
conde cidade cedo veriam por justia as gigas da
ribeira cheias de ps e mos de muitos, como de pes-
cado
,
o que logo se soltou publicamente: e por ser
homem d'algum credito e ter officio na casa da jus-
tia, fizeram
para isso suas palavras alguma impres-
so e crena ; e pareceu que as no diria sem ter al-
guma cousa d'isso sentido. Pelo qual alguns princi-
paes cidados com verdadeiro temor e occupaes
fingidas de proverem suas fazendas, se ausentaram
da cidade, temendo que em tanto alvoroo no hou-
vesse justo juizo, e que por ventura poderiam rece-
ber pena sem culpa.
Mas os do povo posposto todo o medo assi conti-
nuavam, e acrecentavam a cada vez mais sua unio,
e com tanto rumor d'algum fim perigoso, que o
conde desesperado de com suas foras, nem da jus-
tia poder assessegar o feito como desejava, havido
primeiro sobre isso conselho, tentou de o remedear
com pregaes, palavras brandas, e de conciencia,
que por algum bom e entendido religioso em ajunta-
mentos pblicos se dissessem.
E havido este por melhor e derradeiro remdio, o
conde fez chamar um Frei Vasco da Allagoa, da Or-
Chronica d'El-Bei D.
Affonso
V
53
dem de S.
Domingos, ao qual por ser padre d'aucto-
ridade e de letras, e ter boa audcia para dizer, en
commendou que sobre o caso das unies e desac-
cordos da cidade, o domingo seguinte pregasse no
seu mosteiro, avisando-o primeiro que todo seu fun-
damento fosse commover o povo a paz e asses-
sego.
E sendo n'aquelle dia por aviamento e rogo do
conde juntos no mosteiro quasi todolos da cidade,
Frei Vasco comeou seu sermo, e por ser servidor
da Rainha e s cousas de seu servio mais inclinado,
esquecido do aviso que lhe fora dado d'amansar o
povo com esperana de bem, tocou o caso e revoltas
da cidade com tanta reprenso dos cidados e povo
d'ella, que com altas exclamaes os chamava ingra-
tos e desleaes, trazendo-lhes s memorias entre outros
exemplos, a pena que os cidados de Bruges merece-
ram e houveram pela desobedincia e traio que co-
metteram contra o duque Filippe.
E estando
j
todo o povo mui descontente e escan-
dalisado das palavras de Frei Vasco, um barbeiro em
meia voz, e com rostro iroso disse contra os que junto
com elle estavam
:
E como egual o nosso caso dos framengos, que
quizeram matar seu prncipe e Senhor?
Ns no
somos tredores mas mui leaes, e no havemos de ma-
tar nosso Rei e Senhor ; mas porque o amamos have-
mos todos de morrer por elle, quando lhe cumprir
:
mas certo este frade alguma cousa tem sentida: por-
que nos pe esta raiva.
E estas palavras com algum rumor comearam ir
de puridade em puridade pelas orelhas de muitos do
povo, os quaes assi como as ouviam assi volviam logo
os olhos de sanha contra o frade, e com mostranas
de tanta indinao, que elle sentindo seu alvoroo,
54 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
por se no ver em perigo, desamparou sem conclu-
so o plpito, e se acolheu ao mosteiro.
O conde d'Arrayollos foi mui descontente do pre-
gador, por errar em todo a sustancia de seu prop-
sito, e do que era para o tempo necessrio. E vendo
que para amansar o povo
j
lhe no ficava remdio
para o fazer, e que sua estada d'hi em deante lhe fa-
ria abatimento, se partiu da cidade, e foi Rainha
dar-lhe de tudo conta.
E o povo depois de comer no esquecido do escn-
dalo do sermo foram ao mosteiro e disseram ao priol
que logo lanasse Frei Vasco fora d'elle, se no que
o
derribariam e queimariam. E o priol aconselhado
da necessidade do tempo assi o fez; e o pregador se
salvou secretamente.
CAPITULO XXVI
Como o Infante D. Pedro
foi
a Lisboa reprender e
assessegar as unies da cidade
Infante D. Pedro estava em Camarate como
j
disse, e sabendo que a ida do conde seu so-
brinho cidade nas revoltas d'elia no apro-
veitara, desejando poelas em assessego se foi l; e
no mosteiro do Carmo onde pousou fez logo ajuntar
os
principaes da cidade com os officiaes da Camar,
e com a cara grave e palavras de grande autoridade
sustancialmente os reprendeu de suas unies e ale-
vantamentos, com que faziam doesta Rainha e a elle
e a todolos que tinham cargo de reger por El-Rei o
reino; e que" por isso tinham merecido spero castigo,
e o mereciam maior se o no atalhassem
;
e que, se
Chronica d' El- Rei D.
Affonso
V 55
sobre aggravos que tivessem recebidos queriam reque-
rer suas liberdades e direito, que o fizessem por ou-
tra maneira como sbditos, e que seriam bem ouvi-
dos
;
e no com presumpo de superiores, de poer e
despoer Regedor sua vontade, como diziam, tocan-
do-lhe sobr'isto muitas e notveis razes conformes a
este propsito, as quaes alguns tomaram que no
sahiram verdadeiramente de sua vontade; porque ti-
nham concebido que lhe no pesava de semelhantes
movimentos por serem contra o Regimento da Rainha
e com fundamento de elle o ter; mas a determina-
o d'este juizo fique somente a Deus que o soube.
Os cidados, depois de ouvido o Infante, lhe res-
ponderam mui mansamente, tendo-lhe em merc acon-
selha-los bem
;
e d'es-hi asolvendo-se como melhor
podram dos alevantamentos passados, especialmente
no caso dos varejos, em que houveram respeito a no
serem os mercadores da cidade pela execuo d'elles
destrudos, e assi em quererem quelle escrivo, que
persumiram ser inventor, dar tal castigo, que outros
por seu exemplo semelhantes cousas no inventassem,
pedindo ao Infante que em seus trabalhos e aggravos
os quizesse ajudar e favorecer, obrigando-o para isso
com razes assaz honestas e boas. Onde logo por um
dos procuradores dos mestres foi apontado que as di-
vises e escndalos no nasciam no reino, salvo por
o Regimento d'elle ser repartido por muitos, e que
para bem ser, ou havia de ficar somente Rainha ou
a elle, allegando do contrairo muitos inconvenientes
no sem fundamentos de razo, como cousa em que
j
muitas vezes tinham praticado.
E o Infante depois de sobretudo haver largas re-
pricas e praticas, lhe encommendou muito o asses-
sego da cidade, e que para as cortes que se chega-
vam, podiam livremente requerer e apontar o que
66 Bihlioihoca de Clssicos Portukuezes
lhes bem parecesse, e que elle no que fosse direito e
justia os ajudaria: e com isto se despediu d'elles, e
se tornou a Camarate.
CAPITULO XXVII
Como a Rainha mandou secretamente prtceber os de
sua valia que viessem s cortes armados
J
Rainha sendo d'estas cousas informada, sen-
tindo que os alvoroos da cidade no cessa-
vam, antes creciam com fundamento de o Re-
gimento lhe ser tirado, o notificou logo pelo reino
a todolos fidalgos, e pessoas d'estima, que entendeu
serem por ella, encommendando-lhes que para as cor-
tes logo vindoiras viessem d'armas e gentes assi per-
cebidos, que com sua segurana podessem resistir a
qualquer contrariedade que os povos em seu dessser-
vio quizessem ordenar e fazer : e para ser mais em
segredo, no o escreveu a todos particularmente, mas
ordenou regimentos para ceda comarca, e escudeiros
de que fiava ; e com suas cartas de crena os andas-
sem secretamente mostrando quellas pessoas que
ella queria.
A qual cousa com quanto pareceu ser incoberta,
foi logo ao Infante D. Pedro revelada, e ainda mos-
trado por mor certeza um dos prprios
regimentos
:
e maravilhado d'isso o descobriu e mostrou logo ao
conde d'Arrayollos, que com grande trigana veiu
sobr'isso fallar Rainha, espantando-se
muito de tal
movimento, e reprendendo quem lh'o conselhra, pe-
dindo-lhe
afincadamente com respeitos de
servio de
Deus e d'El-Rei, e d'ella, e bem do reino, que o ata-
Chronica d'El-Rei D. Afonso
V 67
lhasse, e escrevesse quelles que cessassem do que
lhes tinha escripto.
E como quer que ella por sua virtuoza teno lhe
pareceu assi bem e prometesse ao conde de o assi fa-
zer, no se achou porm quem depois o fizesse; antes
se soube que logo veiu a ella Pedro Annes Lobato cer-
tificar-lhe que os percebimentos e alvoroos d'alguns
creciam cada vez mais por seu respeito, e que a fama
era que ella os ordenava assi para morte d'alguns
principaes por sua vingana, o que como quer que
elle sabia o contrairo e o desdissesse, que o no criam
como suspeito a suas cousas; e assi tambm lhe pe-
diu que com assessego o remedeasse.
E a Rainha crendo que aproveitaria sua desculpa,
escreveu logo sobre aquelle caso mui graciosamente
cidade, certificando-lhe o contrairo do que tinham
concebido
;
e encommendando-lhes sua paz e assessego
com grande instancia, e com sua crena a Pedro An-
nes, o qual com quanto em camar dissesse alm da
carta da Rainha muitas razes e causas para desfaze-
rem suas maginaes e cessarem de seus alevanta-
mentos, no aproveitou nada: e com tudo responde-
ram Rainha que a causa dos receios e alvoroos
que tinham, os seus principalmente os faziam, affir-
mando e divulgando cousas para assi ser
;
que os man-
dasse castigar, e tudo cessaria.
E como quer que a Rainha para satisfao d'elles
mandasse sobr'isso fazer exame e deligencias para ser
asperamente punido quem taes movimentos fizesse :
finalmente no se achou certo autor, nem cousa a que
em especial fosse razo dar-se f nem autoridade, e
com tudo a fria do povo no amansava.
58 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO XXVIII
Como o Infante D. Pedro e o Infante D. Joo sobre
estas cousas se tornaram a ver, e o que acordaram
Infante D.
Joo
a este tempo era doente em
Alcochete; e enviou ao Infante D. Pedro que
fosse, como foi, ve-lo, e sendo ambos juntos,
o Infante D.
Joo
lhe disse:
Senhor irmo, por no estar em disposio de po-
der ir onde estveis, vos enviei pedir que chegsseis
aqui ; assi porque folgo muito de vos ver, como prin-
cipalmente por saber parte de vs, e de vossos feitos
com a Senhora Rainha, os quaes no devem estar bem
nem como vossa honra cumpre, segundo a soltura e
atrevimento que todolos fidalgos tem de fallar contra
vs, tirando os de minha casa, e para se isto reme-
dear convm que faaes o que no fizestes, que no-
mearde-vos logo por Regedor do reino in solido. E
para sosterdes vossa empresa tendes em vossa ajuda
mui certos a mim e ao conde d'Ourem que aqui est
comigo
;
e assi a cidade de Lisboa que vo-lo requere;
e comvosco sero outros muitos que nos ajudaro
n'esta contenda
;
e ento venham os do juramento ar-
mados contra vs; e os Infantes d'Arago entrem a
favorecer o partido de sua irm.
O Infante D. Pedro lhe disse:
Leixando o mais que me dizeis, a esta derradeira
condio por mais sustancial vos responderei primei-
ro
;
e digo que
j
vos disse outras vezes, quo pouco
contente sou da Rainha e de seus mos conselheiros,
e da dureza de sua condio, com que nunca quiz
perder esta seita contra mim ; e Deus sabe que c lhe
Chronica d'El- Rei D.
Affonso
V 59
no fui nunca nem sou em culpa para assi ser; antes
lhe tive sempre merecimento, por desejar de a servir
como era razo : e o galardo que d'ella houve foi
sempre dio e m vontade para mim e minhas cou-
sas; e mais agora, onde na esperana de suas honras
e mercs
j
os fidalgos como dizeis me no olham se-
no por desprezo, crendo que o que mais fizer con-
tra mim maior parte haver d'ellas. E por isto e prin-
cipalmente por minha segurana, certo prazer-me-ha
muito ter corregimento; mas porque a esta sazo e
tempo, segundo as divises esto, eu o no poderia fa-
zer sem esperana de muito damno e grande perda
d'este reino, o que eu no queria, a mim parece como
vos
j
disse, leixarmos vir o tempo das cortes
;
e se
n'ellas se acordar que tenha o Regimento, ento se-
rei contente de o tomar; e d'outra maneira nos.
O Infante D.
Joo
disse:
Certo bem me parece vossa concluso; mas tenho
receio a estes de Lisboa com esta vossa dilao per-
derem por ventura este fervor que tem para vossa
ajuda, e serem depois mos de tomar a nosso prepo-
sito.
No cureis (respondeu o Infante D. Pedro) c
se Deus vir que seu servio, Elle por sua bondade
ordenar como se faa
;
e por isso sede certo, que
por nenhuma cousa no emprenderei encargo que seja
sem cortes
;
mas que sei que a Rainha escreve aos fi-
dalgos que so de sua parte, que venham a ellas po-
derosos, eu como defensor o quero fazer saber s ci-
dades e villas do reino; e que sejam prestes para qual-
quer movimento e novidade que se seguir.
E com esta teno que seu irmo aprovou, se des-
pediu d'elle.
60 Biblioihcae de Clssicos Portuguezes
CAPITULO XXIX
Como o Infante D. Pedro avisou e percebeu o reino
sobre os alvoroos que se ordenavam
E
Tanto que o Infante D. Pedro foi em Camarate,
que era no comeo de Setembro do anno de
mil e quatrocentos e xxxix, logo escreveu a
todolos logares do reino notificando-lhe os movi-
mentos que se esperavam, de que era certificado, e as
causas de quem procediam, encommendando-lhe que
logo se fizessem e estivessem prestes para quando
vissem seu recado
;
por quanto de semelhantes unies
no se podia seguir, salvo desservio de Deus e d'El-
Rei e grande mal e damno de seus reinos e naturaes,
e assi foram avisados do Intante os messageiros que
levaram as cartas, que todas em todo o reino a um
dia certo e logo assignado por elle, fossem dadas. E
tanto que assi escreveu, se partiu para Coimbra e
suas terras.
A carta para Lisboa foi dada na Camar da Fei-
tura a xv dias, sendo
j
o Infante partido, e depois
de vista foi posta nas portas principaes da S, onde
esteve alguns dias sem haver logar de se poder aca-
bar de lr, e de noite com candeias a vinham trella-
dar; e sobre as cousas d'ella as praticas e alvoroos
eram tamanhos, que em publico e em secreto no se
fallava em outra cousa.
Os da cidade depois de haverem seu conselho acor-
daram responder ao Infante, em que remercearam sua
notificao, e se offereceram para todalas cousas que
fossem de sua honra e servio, e elle dispozesse e man-
dasse. As outras cidades e villas do reino responde-
Chronica d'El-Hei D. Affonso
V 61
ram todas conforme a isto em sustancia; somente a
cidade do Porto emadeo mais, que queria que o In-
fante D. Pedro s, sem outra ajuda nem companhia
fosse Regedor: e com estas cartas houve no reino
grande alvoroo, com alguma indinao contra a
Rainha, por n'ellas se tocar entrada de gentes ex-
trangeiras n'este reino em seu favor e ajuda.
Mas se o Infante isto escreveu por ter d'isso a esse
tempo alguma certido, ou o fez de industria por al-
voroar as gentes contra a Rainha e contra os que se-
guiam sua teno, isto fique a Deus e em sua concien-
cia, somente de crer que o Infante o no faria sem
causa
;
especialmente porque a esse tempo os Infantes
d'Arago irmos das Rainhas de Portugal e de Cas-
tela prosperavam n'aquelle reino; e era de presumir
que nos aggravos de que se ella queixava, se socor-
reria a elles, que a deviam e podiam bem ajudar, e
elles lh'o no denegariam por seu sangue e grandeza.
CAPITULO XXX
Como se o
Infante D. Pedro despediu da Rainha, e da
falia que como descontente lhe
fez
Jnte
que o Infante D. Pedro partisse de Cama-
rate para suas terras, foi a Sacavm fallar a
El-Rei
;
e depois de se despedir d'elle e lhe
beijar a mo entrou onde a Rainha estava, e com
a presena carregada lhe disse em
p
e de praa
algumas palavras, cuja sustancia foi recontar- lhe ser-
vios que lhe tinha feitos com desejo de fazer outros
maiores, de que finalmente at ento no houvera
d'ella outro galardo, salvo dio e m vontade com
62
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
que sempre procurara em todo sua deshonra e aba-
timento
;
e assi lhe tocou nas differenas em que anda-
vam, e nos percebimentos que mandara fazer, e em
outras cousas d'esta calidade, com razes assaz graves
e honestas, e em fim declarou que at li a Rainha o ti-
vera como ella queria, e que d'hi cm deante o toma-
ria como o achasse. E n'esta concluso que pareceu
de rompimento, se despediu d'ella sem lhe beijar a
mo, nem cometer de o fazer. O que a Rainha ouviu
com grande segurana e assessego, e no lhe respon-
deu cousa alguma; porque o Infante com sua trigosa
partida no deu a isso lugar, e porm sentiu muito
partir-se assi d'ella o Infante com mostrana de ta-
manho desacatamento
;
o que por assi passar de praa
foi logo divulgado, que a uma parte e a outra acre-
centou mais matria d alvoroos e unies.
CAPITULO XXXI
Como a Rainha com El-Rei e seus
filhos
se
foi
a Alan-
quer, e do que se seguiu em Lisboa
ll Rainha se partiu com El-Rei e seus filhos e sua
/J
B casa para Alanquer, muito revosa dos movi-
^/
'
mentos e alvoroos de Lisboa, e pouco segura
em Sacavm onde estava, por ser alda fraca e to
perto da cidade, como quer que d'alguns seus fosse
aconselhada que o no fizesse, antes que se fosse den-
tro cidade
;
porque era de crer que sua presena
daria ao povo menos ousadia para contra ella segui-
rem e acabarem o que tinham comeado
;
e que sua
ausncia com mostrana de temor causaria o contrairo
Os officiaes de Lisboa vendo esta mudana da Rai-
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 63
nha fizeram logo seu ajuntamento, onde Vicente Egas,
homem cidado velho, entendido e de grave repre-
sentao fez uma falia com largo recontamento, cuja
sustancia foi avisar a cidade dos males e perigos que
por as mudanas presentes se lhe aparelhavam
;
e
como para terem por cabea alguma pessoa que por
ella os resistisse, lhe era necessrio enlegerem e to-
marem alferes, apontando logo o capito lvaro Vaz
d'Almada, que da cidade fora o derradeiro alferes,
como por outros muitos e mui dinos merecimentos e
louvores que d'elle com verdade recontou
;
no que to-
dos consentiram, e por dois cidados o enviaram logo
chamar, por quanto era fora da cidade
;
e em chegando
ribeira, sendo
j
sabido a determinao sobre que
vinha, se ajuntou com elle a mor parte da cidade, e
assi acompanhado com grande honra foi levado Ca-
mar, onde por os vereadores com certas cerimonias
e largas palavras de grande seu louvor e muita con-
fiana, lhe foi entregue a bandeira da cidade com
suas condies; e elle a recebeu com palavras corte-
zes e discretas, e de grande esforo
;
porque era ca-
valleiro que n'este reino e fora d'elle por esperien-
cias mostrou que isto e muito mais de louvar havia
n'elle, c em Frana por sua ardideza e bondades foi
feito conde d'Abranxes, e em Inglaterra por sua va-
lentia foi recebido por companheiro da Ordem da
Garrotea, de que prncipes christos e pessoas de
grande merecimento so confrades; e em Portugal
por todas estas, e mais por sua linguagem e fidalguia
mereceu ser como foi capito mor do mar.
64 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO XXXII
Accordo que o povo de Lisboa
fez
acerca do Regi-
mento
Estando
o Regimento do reino n'este balano,
mais com mostranas de guerra que de paz, e
com signaes mais de perigo que de segurana,
os officiaes macanicos de Lisboa com outra gente po-
pular se ajuntaram em S. Domingos da Cidade, onde
fizeram escrever e assignaram um acordo, em que por
algumas razes que apontaram, e em especial por o
perigo e no bom Regimento do reino, declaravam e
se affirmavam, que o Infante D. Pedro fosse seu Rege-
dor e defensor somente; e que assi promettiam de o
requerer nas cortes; e que o contrairo no consenti-
riam ou morreriam sobr'isso, se o caso assi reque-
resse.
A qual cousa sendo logo sabida, como quer que a
alguns parecesse determinao de pouco peso e au-
ctoridade, o contrairo pareceu a Pedro Annes Loba-
to, que por ser muito servidor da Rainha, se foi logo
a Alanquer onde estava, e lhe notificou com tristeza
aquelle acordo, havendo-o por principio mui contrairo
a seu servio, affirmando que no podia ser sem fa-
vor e consentimento dos principaes, e com aquelle
acatamento que devia a reprendeu muito da segu-
rana que n'estes feitos sempre tivera, e o pouco cui-
dado de os remediar nos comeos ante d'alguma
execuo, especialmente estando to acerca e to avi-
sada cada dia dos movimentos que se faziam.
E perguntado pela Rainha e pelos do conselho
que hi eram, que se faria ou que remdio se daria
Chronica d'El-Rei D. Pedro V 65
para o povo cessar de seu alvoroo, Pedro Annes
respondeu que
j
no sabia, salvo pedi-lo a Deus.
finalmente depois de sobre isso praticarem, acor-
daram que a Rainha escrevesse, como logo escreveu
cidade, e alm das razes santas e virtuosas na sua
carta logo declaradas, por que deveram ser bem se-
guros dos receios com que se alteravam, Pedro An-
nes que era o messegeiro, lhes disse outras muitas
mais, a ellas conformes, em que no fallecia siso e
prudncia ; mas d'isto em fim se fez pouca estima, e
responderam a tudo como
j
endurecidos em sua tna-
ginao e porfia.
CAPITULO XXXIII
Como a cidade de Lisboa entendeu contra o Arcebispo
D. Pedro pelos cubelos da alcova que tomou
|V| o de duvidar que a Rainha para toda paz,
]j\
bem, e assessego do reino tivesse sempre mui
J virtuoso desejo ; mas muitas vezes por ventu-
ra, por estar assi determinado na providencia divi-
na, os seus sem vontade d'ella damnavam e faziam
duvidoso seu propsito
;
porque estando a cidade de
Lisboa em alguma consirao de repouso por o que
a Rainha lhe tinha escripto e enviado dizer, o Arce-
bispo D. Pedro seu primo, que em todo seguiu sua
teno, pousava nos seus paos d'Alcaova pegados
com Sancta Cruz, e porque entre elles e o castello
vae um lano de muro em que est a porta, que se
chama de Martim Moniz com alguns cubellos altos,
mandou cobrir e abrir para elles uma porta porque
se corriam por cima do muro, ficando a porta da ci-
vol. i pol.
5
66 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
dade que sahia para fora sujeita a sua disposio, e
da outra parte dos paos contra o bairro dos escola-
res, tinha dias havia feita uma torre mui alta, forte e
fremosa em que se acolhia ; e sendo as cousas da
Rainha havidas na opinio do povo por to suspeitas,
o Arcebispo alm da obra e refazimento que nos cu-
bellos mandara fazer, dizia soltamente palavras que
pareciam ameaas com esforo alheio. E deu aos seus
armas alm das custumadas, e dizia-lhes de praa taes
razes, que os mettia em alvoroo ; e elles fallando
ousadamente pela cidade, mettiam a outros muitos em
outro maior : e com isto no apagavam, mas acendiam
mais a suspeita e receios que o povo tinha : a qual
cousa sentida pelos officiaes, fizeram sobre isso ve-
reao e acordo
;
e por dois deputados para isso man-
daram requerer em sustancia ao Arcebispo que logo
despachasse e leixasse o muro e cubellos, que eram
prprios da cidade, de que a tinha forada. O qual
anojando-se de tal recado, como era de spera con-
dio, e no muito sobjecto a deliberado conselho,
respondeu aos messegeiros de maneira que foram d'elle
mui descontentes ; sobre o qual se tornaram outra
vez a juntar em camar, e se alguns com difficuldade
o no temperaram, o primeiro acordo era de mor ri-
gor e damno; mas em fim acordaram que os cubellos
fossem logo despachados, e fechada a porta que o
Arcebispo mandara abrir; do que elle mui anojado,
sendo constrangido para o cumprir, se sahiu logo da
cidade, e depois para Castella, como ao diante se dir.
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 67
CAPITULO XXXIV
Vinda do Infante D. Joo
cidade
Jjjj
cidade de Lisboa, pela confuso e receios em
3~T que estava, ocordou de enviar o capito l-
varo Vaz ao Infante D.
Joo,
notificar-lhe os
feitos como estavam e pedir-lhe por merc, que para
ser sua cabeceira quizesse estar na cidade, porque sua
presena lhes era mui necessria, at que nos feitos
se tomasse alguma boa concluso.
Ao Infante prouve muito de o fazer ; e se veiu
logo a cila e pousou nas casas da Moeda, onde enten-
dida a sustancia do caso, conhecendo que a maior
parte da inclinao e vontade do povo e cidados,
era o Infante D. Pedro reger, louvou muito seu pro-
psito, e os esforou n'elle.
CAPITULO XXXV
Como a Rainha escreveu a Lisboa e todo o reino
sobre o assessego d'e//e
Jfl
Rainha como foi em Alanquer, logo escreveu
Tl
a Lisboa, e alli geralmente a todas as cidades,
villas e povos do reino, notificando-lhe alguns
benefcios e boas obras que
j
lhes procurara para os
obrigar
;
e assim as causas dos aggravos e sem razes
que acerca do Regimento recebia, para os mover a
piedade, descarregando-os com razoas boas, honestas
e de razo, dos temores que d'ella tinham acerca do
68 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
meter das gentes estrangeiras n'estes reinos, e segu-
rando-os da vingana que lhes faziam crer que ella
d'alguns cruamenta queria tomar; encommendando-
lhes e requerendo finalmente, que para as cortes que
se chegavam, cessassem de requerer novidades acerca
do Regimento, e quizessem approvar o que El-Rei
D. Duarte seu marido leixara, ou ao menos o que nas
cortes de Torres Novas fora acordado, com alguns
protestos fundados em sua boa e virtuosa teno,
mandando que por seu descargo se d'ello se seguissem
alguns males e inconvenientes, que suas cartas se
registassem nos livros das camars, e puzessem nos
cartrios das religies : o que se no fez assim
;
por-
que na maior parte do reino era o alvoroo tamanho
contra a Rainha, que alem de no quererem vr suas
cartas, ainda tratavam os messegeiros d'ellas aspera-
mente, e no como deviam. E porque Gomes Borges
que era escrivo da chancellaria d'El-Rei, poz nas
portas da S a carta que a Rainha enviou a Lisboa,
foram os povos sobre elle, e to indinados, que com
difficuldade escapou da morte.
CAPITULO XXXVI
Declarao que Lisboa
fez
de o Infante D. Pedro
s reger o Reino
Esx
ANoo ass, as cousas nesta confuso, o doutor
Diogo Affonso Mangancha em que havia letras
e ardideza com pouco repouso, e um Lopo Fer-
nandes, tanoeiro de Lisboa, homem velho afazendado,
e de que o povo fazia grande cabeceira, estes ou por
serem afeioados parte do Infante D. Pedro, ou por
Ckronica d'El-Rei D. Afonso V 69
lhes parecer razo elle s reger e no a Rainha, or-
denaram e praticaram entre si que o doutor fizesse
na camar uma publica falia sobre isso, affirmando
que todavia era bom, antes das cortes se fosse poss-
vel, assi se declarar e requerer ; e que ao menos no
cabo da falia conheceriam nos rostos dos mais suas
vontades para seu aviso : e era opinio que d'esto
no desprazia ao Infante D.
Joo,
pelo favor que
dava e gasalhado que fazia a este tanoeiro.
E junta a mr parte da cidade na camar, sem ge-
ralmente se saber a que fim, o doutor Diogo Affonso
propoz sua falia, em que logo com muitas e vivas ra-
ses tocou os erros que havia em o Regimento do
reino ser repartido, como fora em Torres Novas ; e
assi com determinaes do Direito Cannico e Civil,
e com auctoridades do Testamento Novo e Velho, e
com exemplos d'historias antigas reprovou Regimento
publico ser dado a mulher, porque excludio a Rainha
;
e com outras de no menos raso e auctoridade pro-
vou que devia ser dado a homem baro, em que hou-
vesse as virtudes e calidades que todas achou com
verdade no Infante D. Pedro, para o qual concludio
que devia ser requerido e forado para isso, quando
por sua vontade o no quizesse acceitar.
Acabando o doutor sua falia, foi-lhe por um ve-
reador dadas graas por ella em nome de todos, os
quaes encommendaram logo ao capito que desse so-
bre o caso sua voz, que a deu com cautellas e funda-
mentos de homem prudente e mui avisado, em que
concludiu mais alm, que era grande perigo e aleijo,
El-Rei ser mais criado em poder de mulheres ; e no
menos erro reger a Rainha, no sem muitos mereci-
mentos e grandes louvores d'ella, que tambm apon-
tou para ser sempre servida e acatada
;
e que o In-
fante D. Pedro devia reger.
70 Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
Era alli Martim Alho, cidado honrado, e por ser
muito servidor da Rainha quizera dilatar esta conclu-
so para outro ajuntamento e mais pessoas, parecen-
do-lhe que se apertava muito em seu d'esservio;
mas Ruy Gomes da Gr, outro si cidado, e de boa
e antiga linhagem, que era presente, com palavras de
grande auctoridade e raso contradisse muito a dila-
o n'este caso, e louvou a breve concluso ; e depois
de muitas praticas e largos apontamentos, elle com
os mais approvaram e pozeram em escripto este ac-
cordo que se segue.
CAPITULO XXXVII
Forma do acordo sobre o Regimento
Em
nome de Deus nosso Remidor e Salvador
Je-
sus Christo, e de sua Santssima Madre a Vir-
gem Maria nossa Senhora. Acordmos em uma
voz e acordo, todolos fidalgos, cidados, e homens
bons da cidade de Lisboa, consirando o trabalho e
grande destruio que em todo o reino ha por causa
de ter diversos Regedores, entre os quaes sempre era
diviso, em grande damno e perda de todo o reino,
querendo a cidade remediar a servio de Deus e d'El-
Rei nosso Senhor, como aquella que sobre todas as
cousas d'este mundo mui leal e verdadeiramente o
ama, todos em uma voz acordamos, e determinamos
que n'estas cortes que ora prazendo a Deus sero fei-
tas, conhecendo ns a grande lealdade e muita pru-
dncia do muito alto e muito excellente Prncipe e
Senhor o Infante D. Pedro, e como filho legitimo
do muito poderoso e virtuoso Rei D.
Joo
nosso Se-
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 71
nhor, cuja alma Deus haja, e o mais ancio sangue
chegado mui alta e real coroa do muito excellente
e poderoso Prncipe El-Rei D. Affonso nosso Senhor,
que elle dito Senhor Infante D. Pedro seja Regedor
livremente e in solido n'estes reinos, e at que pra-
zendo a Deus, El-Rei nosso Senhor, que sobre todos
mais lealmente amamos, seja em edade para os por si
poder reger e deffensar, ao qual tempo o dito Senhor
Infante D. Pedro seu leal sangue e vassalo leixar li-
vremente a possesso de seus reinos e senhorio ; e lhe
entregar a ministrao e Regimento d'elles pacifica-
mente, para El-Rei nosso Senhor os governar e re-
ger, como fizeram os mui virtuosos Reis d'onde elle
descende ; e vindo tal caso, que o Senhor Infante D.
Pedro no possa ter o Regimento e governana dos
ditos reinos, que por esta forma e maneira seja dada
e a haja o mui leal Prncipe e Senhor Infante D. An-
rique seu irmo ; e fallecendo elle, seja por o seme-
lhante dada ao Senhor Infante D.
Joo
; e por esta
guisa ao Senhor Infante D. Fernando, que Deus de
terras de mouros traga com bem e liberdade a estes
reinos; e fallecendo todos ante que El-Rei D. Affonso
nosso Senhsr seja em edade para reger, que ento por
esta forma venha o dito Regimento ao conde de Bar-
cellos, e aos condes d'Ourem e d'Arrayollos seus
filhos, com todas as clausulas e condies suso escri-
ptas.
E assi acordamos e determinamos que a muito alta
e muito excellente e muito prezada a Rainha D. Lia-
nor nossa Senhora seja sempre em sua vida honrada
e manteuda, acatada e servida em seu alto e real es-
tado
;
e por esta mui nobre e leal cidade de Lisboa e
povo d'ella lhe seja sempre feito tanto servio, prazer,
e mandado, assi como somos teudos e obrigados por
bons e leaes vassallos, e por ser madre d'El-Rei nosso
72 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
Senhor, assi e pela guisa que lh'o sempre fizemos em
vida d'El-Rei D. Duarte, seu marido nosso Senhor,
cuja alma Deus haja ; e muito mais podendo-se fazer.
Alguns houve alli e poucos, a que d'este acordo
no prouve ; em especial a Martim Alho, que sobre
algumas palavras que acerca d'esso disse, no lhe
conveiu mais esperar ; e se foi com sua vida e honra,
a que o rumor do povo comeava
j
de ser contrairo.
CAPITULO XXXVIII
Notificao
deste accordo ao Infante D. Joo,
que
o approvou
Lj Ueitq e assignado este accordo, enviaram logo
Y\ chamar Vasco Gil, confessor do Infante D.
T
Joo,
ao qual deram o accordo e lhe encommen-
daram que o mostrasse ao Infante, a cuja prudn-
cia, correio e prazer o sometiam.
E mui em breve tornou Vasco Gil com a resposta
em que o Infante approvava e louvava seu accordo,
no como cousa feita por homens, mas como inspira-
da n'elles por Deus. E que porm ao outro dia quin-
ta
feira fossem ouvir missa com elle a Sancto Spiritu,
e que alli lhes responderia.
Ao qual dia juntos todos e ouvida a missa, que se
disse muito solemne com seus capelles e cantores, o
Infante apartou os da cidade somente e alli resumiu
o accordo que fizeram e lhe enviaram mostrar. Onde
com palavras de grande equidade lhes aguardeceu a
notificao d'elle. E com razes de muita auctoridade
o approvou, offerecendo-se a elles.
E .pois aquella era a verdade, que pospostos os es-
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 73
pantos, ameaas e receios que se logo apontaram,
promettia de lh'a ajudar a manter e cumprir: pelo
qual a cidade assi favorecida em seu propsito fez no
outro dia ajuntar no refeitrio de S. Domingos todo
o povo, aquelle que pde caber, onde em plpito
Pedro Anes Sarrabodes notificou em alta voz o accordo
passado e a maneira que se n'isso tivera, requerendo
a todos que dissessem o que d'elle lhes parecia. Onde
logo sem bem se acabar a pregunta um Diogo Pirez,
alfayate, bradando respondeu: que accordo nem pare-
cer ha de ser o nosso, salvo assignarmos todos esse,
e fazermos logo vir o Infante D. Pedro, e comece de
reger b
Com aquella voz seguiram tantas vozes, que alguma
se no ouvia ; e com os assignados dos que tinham
assignado foram logo outros tantos postos, que no
cabiam em um grande quaderno
;
porque assi tra-
balhava cada macanico official de poer alli seu nome
como se na postura d'elle acrecentasse sua honra e
fazenda, e remedeasse de todo a necessidade do reino.
CAPITULO XXXIX
Notificao do dito accordo Rainha, que o contrariou,
e assi aos Infantes e ao reino
1X
oncordado e assignado este accordo, a cidade o
yjfc- notificou logo Rainha com fundamentos e
causas justas e honestas, e com palavras do
mr acatamento seu, que no caso cabiam. A qual lhes
respondeu com uma notvel justificao, desfazendo
e
anichilando particularmente todalas cousas do acor-
do, denegando-lhe em todo a auctoridade para tal
74 Bibliotkeca de Clssicos Portuguezes
poderem fazer, sem ajuntamento e concrdia dos trs
Estados do Reino, encomendando-lhes a revogao
do accordo com algumas protestaes e cautellas dos
damnos, se sobr'isso viessem.
No somente a cidade de Lisboa notificou este
accordo Rainha, mas logo aos Infantes D. Pedro e
D. Anrique, e condes; e assi s cidades e villas do
reino. E o Infante D. Pedro lhes respondeu agarde-
cendo-lhes com palavras mui graciosas seu propsito,
e oflerecendo-se com outras de muito peso e discri-
o, aceitar o Regimento e seguir jurar e manter as
condies do acordo. No qual isso mesmo as cidades
e villas do reino sustancialmente consentiram. E prin-
cipalmente a cidade do Porto por ter aquello mesmo
dias havia determinado.
Mas o Infante D. Anrique na resposta que sobr'isso
enviou, no mostrou ser do accordo contente, no por
erro da sustancia d'elle, mas no modo que tiveram,
por tomarem em tal caso a autoridade e poder que
aos trs Estados do Reino em cortes era somente re-
servado, conforme ao que a Rainha apontara, conclu-
dindo em remeter seu acordo e teno para as cortes
que se logo esperavam, onde tudo bem visto e con-
sirado se faria o que fosse mais servio de Deus e
d'El-Rei, e bem de seus reinos, amoestando-os final-
mente para paz e assessego, poendo-lhes os inconve-
nientes da diviso. E mais de si mesmo jnstificando
tudo com palavras e razes de tanta autoridade, que
bem pareciam dinas de tal Prncipe. E que sobretudo
iria a Coimbra fallar ao Intante D. Pedro, e ao conde
de Barcellos seus irmos, e a concluso que tomassem
lhes faria logo saber.
D'esta resposta do Infante D. Anrique no foram
os da cidade contentes; e muito menos o Infante D.
Joo
que n'ella era presente, o qual tomou cargo de
Chronica d' El- Rei D.
Affonso
V 75
responder, como respondeu por ella a seu irmo, em
que lhe afirmou o acordo se fazer e divulgar com sua
autoridade, justificando com vivas razes todolos pas-
sos d'elle, tocando mui verdadeiramente para assi ser
as necessidades em que o reino estava e danos que
recebia por a multido e diviso dos Regedores; e
quanto um era mais necessrio e proveitoso, o qual
no podia nem devia ser, salvo o Infante D. Pedro
seu irmo, por as calidades que n'elle para isso havia,
que logo apontou dinas d'outro Regimento maior.
Pedindo emfim, que com elle quizesse dizer:
Con-
firmat hoc Deus, quod operatus est in nobis.
Chronica d'Ei.-Rei D.
Joo
I, por J'e/uo Lopes
7
volumes 2S800
VIII
Chronica d'Ei.-Rei D.
Joo
I, por
Gomes
Eannes d' Azurara, vol. i, h e iii (viu, ix e x) . 1.8200
IX Dois Capites da ndia, por Luciano Cordeiro,
1 volume 400
X
Mello d'Azevedo
CHRONICA
DE
EL-REI D. AfMSO V
POR
Ruy de Pina
VOL. II
\
(D
9
y%T
ESCRIPTORIO
i47=Rua dos Retrozeiros=i47
LISBOA
1902
CAPITULO LXXX
D'outra embaixada que ao Regente veiu d'El-Rei e
do povo de Castella, sobre as mesmas cousas da
Rainha, e da resposta que houreram,
e como se en-
tendeu em alguma concrdia e contentamento
da
Rainha
Eo
Infante D. Pedro se foi com El-Rei cida-
d do Porto, onde tornaram a elle sobre o mes-
mo caso da Rainha quatro embaixadores, dois
em nome d'El-Rei de Castella, e dois em nome do
seu povo
;
porque a Rainha D. Lianor, quando viu
os primeiros embaixadores tornar com resposta sua
esperana e desejo to contrair, comeou claramente
de conhecer os enganos em que cair, e lastimando-
se d'isso aos Infantes seus irmos, elles por em algu-
ma maneira cumprirem com ella, fizeram com El-Rei
que os procurados dos povos de seus reinos em cr-
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
tes ouvissem, como ouviram suas querellas e agravos
contra o Regente, e com tal graveza se propozeram,
que foi accordado enviar-se
j
por final aquella em-
baixada, em nome d'El-Rei e do povo com temerosas
protestaes , dizendo que quando aos requerimentos
d'ella no se satisfizesse, poderiam ento mover guer-
ra, sem parecer que por sua parte as pazes se que-
brantavam. Sobre a qual o Regente teve conselho, e
enviou avisos aos Infantes e pessoas principaes do
reino, e foi determinado que o Infante no desse de-
terminada resposta aos embaixadores, e que por di-
latar a remettesse, que El-Rei seu Senhor enviaria,
para que offereceria a El-Rei de Castella todo o que
por contemplao sua e de seu povo Rainha n'estes
reinos se devia e podia fazer.'
E com isto despediu os embaixadores, e se foi com
El-Rei villa de Tentuguel, que no Campo Mon-
dego. Onde accordou de enviar, como enviou por
embaixadores a Castella, como ficara, a Lionel de Li-
ma, que depois foi primeiro bisconde de Villa Nova
de Caminha, e o doutor Ruy Gomes d' Alvarenga. Os
quaes bem instructos e avisados do que haviam de
dizer, se foram a El-Rei de Castella, com quem fala-
ram em apartado as cousas de sua embaixada, em
que sustancialmente concludiram que a Rainha por
muitas causas, razes e impedimentos que apontaram,
no devia vir a estes reinos, nem menos ter a gover-
nana d'elles, nem a criao d'El-Rei e seu irmo que
requeria, e que o reino todo havia por tamanho in-
conviniente para o bem e assessego d'elle, que para o
no consentir se despoeriam ante a todo trabalho e
perigo ; mas ainda que por direito no houvesse para
isso obrigao, que por ser madre d'El-Rei seu Se-
nhor, e por elle Rei o requerer, lhe dariam onde ella
quizesse fora de Portugal, seu dote e arras, e todas
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V
as cousas suas que n'este reino se achassem, que no
fossem da Coroa, e mais dez mil dobras d'ouro para
satisfao dos que a serviram. E com isto outras mui-
tas razes, com exemplos de merecimentos passados,
porque El-Rei devia amar muito mais El-Rei seu Se-
nhor e ao Regente, que a Rainha D. Lianor nem a
seus irmos.
El-Rei de Castella depois de os ouvir, ante de lhe
responder teve com os grandes do seu reino so-
brosso conselho, em que eram os Infantes d'Arago e
a Rainha, onde para a paz e para guerra houve vo-
tos e sentenas contraras
;
e finalmente o conde de
Faram, e um Bispo da vila que eram presentes,
com fundamentos e razes mui justas concludiram
que por este negocio da Rainha, ainda que fosse ir-
m, nem filha d'El-Rei, que pelas pazes que com Por-
tugal tinha feitas e juradas, no lhe podia nem devia
fazer guerra, e que a mr ajuda que Rainha po-
diam dar, assi era de rogos somente; com os quaes
dois senhores muitos outros se foram. E o conde de
Faram aderenou sua falia para a Rainha, e lhe disse
:
Senhora, bem creiu em caso que o voto que dei
seja contrairo a vosso desejo que no leixar vossa
merc de crer que eu amo muito vosso servio, e dos
Senhores Infantes vossos irmos, por cuja honra e es-
tado eu trabalhei e padeci o que elles sabem, c por isso
o dei e o disse, e por isso vos quero bem conselhar. Soes
primeiramente muito enganada em procurardes en-
trar em Portugal por guerra, e contra vontade do Re-
gente e dos Infantes seus irmos; pois sabeis que todo
o reino por natureza os ama, e por obrigao e von-
tade os ho-de servir, e das mostranas que alguns l
fizeram de vos recolher e servir,
j
deveis de ser des-
enganada, e a concrdia do conde de Barcellos e do
Marechal com o Infante D. Pedro vos para isso cia-
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
ro exemplo, e que vos parea que a necessidade do
tempo lh'o fez assi fazer, ainda no creaes, vendo el-
les as cousas revoltas que no sostenham a parte de
seu Rei natural antes que a do estranho, e mais eu
no sei que segurana tereis do amor do povo que
guerreardes por fogo e sangue, que tal caso se no
pode escusar, antes para vossa vida conseguireis dio,
desamor e perigo, que por todas razes no deveis
querer
;
no fallo
j
no grande trabalho e muita per-
da que estes reinos de Castella receberam com espe-
rana de to duvidosa victoria. Aquelle reino no
pequeno, e mui forte e de gente leal e mui esfor-
ada, e ser mui mo de sogigar por fora. E para
melhor verdes esta impossibilidade, sabeis bem que
um cavalleiro de duas fortalezas tem n'estes
reinos
corao de se levantar contra a obedincia e servio
d'El-Rei nosso Senhor; e quero dizer se o devo di-
zer, que no poderoso de o cercar nem tomar,
quanto mais que os Infantes vossos irmos que aqui
esto, de necessidade conviria terem n'estes
reinos
outra gente d'armas, e no pouca contra o Condes-
tabre e o Mestre d'Alcantara seus imigos, e que se-
ria impossivel ou com abatimento de suas honras e
estados se sogigarem a elles, que seria grande vitup-
rio em sangue real, que Deus nunca consinta, c no
haveis de duvidar que estes dois homens pela grande
imizade que comvosco e com elles tem e pelas boas
obras que do Regente em suas necessidades e afron-
tas tem recebidas, o ho sempre de servir e ajudar,
por mais enfraquentar vosso poder, c de todo so
desconfiados de vossa concrdia, e fazendo ainda es-
ta empreza to leve, que sem muita pena cobrsse-
mos o reino de Portugal, no creaes que o dssemos
a El-Rei vosso filho, nem a vs o Regimento d'elle;
porque para cobrar novos reinos no ha f nem ver-
Chronica cVEl-Rei D. Affonso
V
dade, c aos mortaes cobia sobre todas, e sobre
tudo com reverena e acatamento d'El-Rei nosso Se-
nhor que aqui est, vos digo que sua Senhoria tem
com gram razo grande amor ao Regente. E crede
que por s importunao de que por vs e vossos
irmos foi vencido, tem feito centra elle o que fez,
n'estas embaixadas que enviou, c no ha por sua
vontade de proseguir cousa que em sua honra e es-
tado muito desfaa, pelo qual Senhora, meu conselho
que pelo que a vosso habito, conscincia, e asses-
sego pertence, acceiteis qualquer razoado partido que
de Portugal vos fizerem, c do contrairo sede certa,
que cada vez recebereis mais dano, e mor paixo.
Este desengano do conde de Faram foi muito lou-
vado, e muitos do conselho o seguiram, e Ei-Rei o
approvou, pelo qual por parte da Rainha logo se
apontaram alguns meios, em que para ella requere-
ram uma grande somma de dobres. E para 'alguns
seus, casamentos assignados, e para outros satisfa-
es de dinheiro, pago em certo modo e tempo, com
outras cousas que tambm requereram, segundo que
por escripto o apontaram, e com estes meios vieram
os embaixadores a Portugal, com fundamento de lo-
go tornarem com a concrdia; e porque o Regente
sem todo o reino e principaes d'elle no quiz n'elles
tomar certo assento, seguiu-'se no ajuntamento para
isso tanta dilao, que n'estes reinos, e nos de Cas-
tella principalmente sobrevieram em tanto cousas de
taes afrontas e necessidades, que as da Rainha fica-
ram de todo por acabar, at que com ellas acabou
tambm sua vida, como se dir.
10 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO LXXXI
De como o
Infante D. Joo falleceu, e que
filhos
cPe/le
ficaram
o fim do raez de Outubro d'este anno de mil
e quatrocentos e quarenta e dois, o Infante D.
Joo
em a villa d'Alcacere do Sal acabou sua
vida de febre, d'onde levaram seu corpo ao mosteiro
da Batalha, onde tem sua sepultura, dentro da capella
d'EI-Rei D.
Joo
seu padre, e foi sua morte com dr
e tristeza de muitos muito sentida
;
porque era Prn-
cipe de grande casa, e em que havia muitas bondades
e virtudes sem algum vicio que as minguassem, em
especial era muito amigo do bem commum d'estes
reinos, que por elle mostraram claros signaes da perda
que n'elle perderam.
E o que de sua morte e privao mostrou sobre to-
dos ser mais triste e anojado, foi o Infante D. Pedro
que era em Coimbra, onde como soube de seu falle-
cimento, cahiu de verdadeiro nojo em cama morte,
no havendo em sua enfermidade outra causa, e no
era sem razo; porque eram irmos que sem cautella
e mui verdadeiramenta se amaram, e foram sempre
em todo mui conformes, e o amor que o Infante D.
Pedro lhe tinha no ficou sem experincia de ser mui
conhecido
;
porque no somente na vida, mas depois
da morte muito mais claro em todas suas cousas lh'o
mostrou
;
porque do Infante D.
Joo
ficaram trs fi-
lhas e um filho. O filho houve nome D. Diogo, a que
o Regente logo em nome d'El-Rei fez Condestabre,
e deu o Mestrado de Santiago com todalas rendas e
Chronica d''El-Rei D. Affonso
V 11
cousas que o Infante seu padre tinha, e falleceu logo
muito moo, e a filha maior a que chamavam D. Isa-
bel, que de virtudes da alma e perfeies do corpo foi
em todo cumprida, casou com El-Rei D.
Joo
de Cas-
tella, que sendo elle de edade de quarenta annos a
houve por segunda sua mulher, de que nasceu real ge-
rao e sobre todas mui excellente. E a segunda filha
do Infante D.
Joo
houve nome D. Breatiz, esta ca-
sou o Infante D. Pedro com o Infante D. Fernando,
irmo d'El-Rei D. Affonso, de que houveram por fi-
lhos, a sobre todas mui virtuosa a Rainha 13. Lianor,
mulher que foi d'El-Rei D. Joo^o
segnndo d'estes
reinos de Portugal, e El-Rei D. Manoel nosso Senhor,
que por fallecimento d'outro legitimo herdeiro, dire-
cta e ligitimamente os sobcedeu. E a terceira filha do
Infanie D. Joo
se chamou D. Filippa, que sem casar,
casando e fazendo muito bem a seus criados e cria-
das, acabou virtuosamente sua vida.
N'este anno estando o Regente com El-Rei na ci-
dade d'Evora, falleceu sem herdeiros um D. Duarte,
que foi senhor de Bragana, e tinha o castello d'Ou-
teiro de Miranda
; veiu logo corte o conde de Bar-
cellos, e pediu este senhorio e castello ao Regente, o
qual se escusou d'elle por o ter
j
promettido ao conde
d'Ourem seu filho, que no requerimento se antecipara
primeiro, e porm logo entre o pae e o filho houve
n'isso tal concrdia, que o conde d'Ourem por ser fi-
lho maior esperando todo sobceder, juntamente desis-
tiu da promessa e por prazer do Regente a passou ao
conde de Barcellos, que logo pelo dito Infante D. Pe-
dro foi feito e intitulado duque de Bragana. Mas no
se seguiu assi, porque o filho que era moo, falleceu
primeiro que o pae que era
j
mui velho, como se
dir.
12 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO LXXXII
De como falleceu o
filio
do Infante D. Joo
que era
Condestabre, e como o filho
maior do Infante D. Pe-
dro foi
daquella dinidade provido, que
foi
causa e
fundamento da morte do dito Infante D. Pedro
Eno
comeo do anno seguinte de mil e quatro-
centos e quarenta e trs, falleceu de febre con-
tinua D. Diogo, filho do Infante D.
Joo,
cuja
herana e casa passou logo a D. Isabel sua irm maior,
e depois porque casou com El-Rei de Castella, passou
por contrato filha segunda D- Briatiz, casada com o
Infante D. Fernando, como disse.
E o Infante D. Pedro, porque do Infante D.
Joo
no ficara outro herdeiro baro, fez com El-Rei que
proveu logo do Oficio de Condestabre a D. Pedro seu
filho maior, e o conde d'Ourem fundando-se em ra-
zes que no provou, enviou pedir a mesma denidade
ao Infante D. Pedro seu tio, dizendo-lhe, que o seu
av o conde Nuno Alvares Pereira houvera este Ofi-
cio, para si e para tQdolos que d'elle decendessem. E
que por quanto d'elle no ficara filho baro que o her-
dasse o houvera o Infante D.
Joo,
no como filho de Rei,
mas como quem casou com sua neta, e que como quer
que a elle conde d'Ourem mais que a outrem de razo
pertencesse, por ser neto baro e maior do Condestabre
;
porm que o leixara ento de requerer, porque para
e haver no fizera diferena entre o Infante D.
Joo
e si mesmo ; mas agora que por sobcesso de baro fi-
cava distinto, e a elle pertencia como a principal ramo
Chronica d'El Rei D.
Affonso
V 13
que do tronco do Condestabre ficava, lhe pedia que
o provesse d'elle.
E o Regente lhe respondeu que El-Rei seu Senhor
tinha
j
d'elle feito merc a D. Pedro seu filho, para
quem elle o pedira, para em algum cargo de honra ter
mais razo de o servir; porm que se hi houvesse doa-
o ou cousa assi autentica por que parecesse este Ofi-
cio de direito lhe pertencer, que lh'a mandasse mos-
trar e que por alguma maneira lh'o no tiraria. Ale-
gando-lhe mais para sua satisfao e contentamento a
merc de Bragana e de Castello d'Outeiro, que pou-
cos dias havia que recebera, ainda que de sua vontade
a trespassara em seu padre, o que elle assi consentira
por ter razo de o mais cedo fazer duque depois da
morte de seu padre, que por curso de natureza, segundo
sua muita edade no podia
j
muito tardar, e que por
hi elle ficaria duque, e trs vezes conde com outros
senhorios e terras, de que para a estreiteza de Portu-
gal se devia haver por muito acrecentado, honrado e
contente. E que portanto lhe rogava, que por amor
d'el!e no se descontentasse em seu filho haver este
Officio, em que bem cabia por muitos respeitos, e isto
porm fosse quando no houvesse tal firmeza, porque
de direito lhe pertencesse
;
porque se a houvesse fosse
certo que seu filho lh'o leixaria.
E em fim o conde d'Ourem no mostrou o que por
ventura no tinha
;
porm tamanho descontentamento
e agravo mostrou que do Infante por isso recebia, que
nunca depois quiz vir sua casa, e menos corte d'El-
Rei emquanto elle regeu, e este dio do conde d'Ou-
rem foi a causa principal da morte e destruio do In-
fante D. Pedro, como se dir.
14 Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO LXXXIII
De como
foi
a morte do Infante D. Fernando que era
captivo em Fez
En'este
anno outrosi de mil e quatrocentos e qua-
renta e trs, veiu certido da morte do Infante
D. Fernando, que era posto per arefens em Fez,
e segundo o testemunho que de sua vida e morte de-
ram os christos que com elle ficaram, homens fidal-
gos e pessoas de muito credito, certo de crer piado-
samente que morreu santamente, e com esperana de
ser santo e bem aventurado. E porque Deus por sua
piadade e em galardo de seus merecimentos, segundo
f de muitos fez evidentes milagres, e a morte ante-
cipou os naturaes dias de sua vida com a aspereza
do trato e mo captiveiro que padeceu por mandado
de Lazarac Marym, cri e mo tirano de Fez, que por
ser vil e de nenhum sangue real, com muita sede e
grande fome o fazia servir em oficios baixos e vis, e
com tal estreiteza, que em uma masmorra e priso mui
escura acabou n'este mundo a vida, para nosso Senhor
lhe dar no outro outra melhor e mais viva, que em sua
gloria durar para sempre.
A morte d'este Infante por sua calidade e desam-
paro foi muito sentida e pranteada n'este reino, e prin-
cipalmente dos Infantes seus irmos, que lhe manda-
ram fazer mui honradas e solemnes exquias e saimento,
e seu corpo metido em um atade, esteve muitos tem-
pos pendurado por cadas sobre uma porta da cidade
de Fez, e depois por conveno que se fez, foram seus
ossos trazidos a estes reinos em tempo d'este Rei D.
Affonso, no anno de mil quatrocentos e lxxiii, e de-
Chronica d'El-Eei D. Affonso
V 15
pois cia tomada de Arzilla ; os quaes de Lisboa foram
levados com grande honra e solemnidade ao mosteiro
da Batalha, em que tem sua sepultura especial e hon-
rada na capellla d'El-Rei D.
Joo
seu padre. Onde por
signal que acabou como catholico e mui fiei christo,
ha grande credito que nosso Senhor fez, e faz por elle
muitos milagres.
Por morte d'este Infante D. Fernando ficou vago o
Mestrado d'Avis, de cuja governana e administrao,
D. Pedro, filho do Regente, foi a suplicao d'El-Rei
por auctoridade Apostlica provido.
CAPITULO LXXXIV
De como
foi
a morte da Rainha D. Lianor em 7o/edo,
estando
j
para se tomar a Portugal
^|
o anno de mil e quatrocentos e quarenta e qua-
tro, vendo-se El-Rei de Castella em poder dos
Infantes d'Arago seus cunhados, roubado da
liberdade e senhorio que a sua dinidade real pertencia,
tinha a elles grande dio e desamor, e para se em al-
guma maneira d'elles isentar, ordenou por conselhos e
modos do Condestabre D. lvaro de Luna de mandar
como mandou por visorei comarca de Andaluzia ao
Infante D. Anrique, provendo-o para isso de poderes
fingidos com fundamentos falsos, dando- lhe a entender
que assi cumpria para sua mais honra e mr segurana,
onde por engenho do dito Condestabre e mestres de
Alcntara e Calatrava seus contrairos, e com gente
de Sevilha e outra muita que o Infante D. Pedro d'estes
reinos l mandou, foi em todo desobedecido, e em des-
baratos que houve mui mal tratado, e d'esta vez se
16 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
tomou Carmona, e em tanto se conformou o Condes-
tabre com outros grandes senhores d'aquelle reino que
para isso se ajuntaram por fora d'armas, e tiraram
El-Rei do poder e sobgeio d'El-Rei de Navarra, que
segundo o que se via no o tratava, nem acatava como
a rei superior se devia.
E d'estas voltas de fortuna que a Rainha D. Lia-
nor viu padecer aos Infantes seus irmos, foi da es-
perana que n'elles tinha desesperada de todo, e
vendo-se
j
mal olhada d'El-Rei e da Rainha sua ir-
m, e com pouca sua ajuda, foi -se da corte para a
cidade de Toledo, d'onde constrangida
j
de grandes
minguas que a apertavam, soltou quasi toda a gente
que tinha, encommendando os filhamentos e vivendas
de seus criados a aquelles senhores de Castella com
que cada um mostrava ter mais contentamento de
viver.
Alli veiu a Rainha a tanta necessidade e
pobreza,
que para seu suportamento lhe conveiu receber aju-
das em po e dinheiro d'alguns Prelados e donas viu-
vas d'aquel!e reino, em especial de uma D.
Maria da
Silva de Toledo, senhora de nobre sangue e muita
fazenda. E n'este reino e em Ceuta sendo de suas ne-
cessidades sabedor D. Fernando de Noronha, primeiro
conde de Villa Real, e segundo capito da dita ci-
dade
;
porque era de real sangue e mui nobre cora-
o; principalmente porque El-Rei D. Duarte o criara
e acrecentara com muito amor, e asi por elle ter com
a Rainha divido mui conjuncto, a mandou visitar e
ajudar com uma boa somma d'ouro amoedado, de
que por sua nobreza e bom conhecimento foi de to-
dos c e l mui louvado. Pelo qual a Rainha sen-
tindo-se
j
envergonhada de requerer, e cansada de
esperar, vendo os caminhos e remdios de sua espe-
rana, com as mudanas de seus irmos de todo cer-
Chronica d' El-Rei D.
Affonso
V 17
rados, houve-se de todo por mal aventurada, e sobre-
tudo por enganos mal aconselhada, e suspirando
j
por Portugal, ao menos para lhe sua terra comer o
corpo, fallou com Mossem Gabriel de Loureno, seu
capello mor, e com suas crenas, instruco e poder,
o enviou a Albuquerque, d'onde por meio do conde
d'Arrayollos tratasse alguma concrdia com o In-
fante D. Pedro, ao qual Infante a Rainha com pala-
vras e cousas assaz piadosas, enviava
j
pedir, ao
mais consentimento e lugar para vir a estes reinos, e
n'elles morrer, no como Rainha, mas como sua irm
menor que se queria poer em suas mos, de que se
contentaria receber o que elle quizesse, e lhe pare-
cesse razo.
O conde d' Arroyollos, como era homem virtuoso e
de justa teno, acceitou com boa vontade o nego-
cio, e o Regente a que o dito conde por Vasco Gil,
seu secreiario, o notificou, o ouviu e recebeu com
muito melhor mostrana, e andando
j
em aponta-
mentos com esperana de ba concluso, chegou re-
cado certo ao Regente, como a Rainha D. Lianor fal-
lecera na mesma cidade de Toledo, sexta-feira xix
dias de Fevereiro de mil quatrocentos e quarenta e
cinco.
Foi sua morte arrebatada, sem ter uma hora de
accordo para o que sua alma e sua fazenda cum-
pria, em que houve violenta presumpo que fora de
peonha
;
porque em lhe lanando uma ajuda, que
por ser um pouco achacada requerera, logo sem en-
trevalo nem repouso deu alma a Deus. E a opinio
dos mais foi que esta morte lhe ordenara, no o In-
fante D. Pedro, como muitos maliciosos quizeram fal-
samente dizer, mas o Condestabre D. lvaro de Luna,
por meio de uma mulher da villa de Ilhescas, que em
casa da Rainha tinha grande entrada e muita fami-
18 fiiblintheca de Clasticos Portuguezes
liaridade. Receoso que, se a Rainha vivesse, estando
em a cidade de Toledo, ordenaria como o Infante
D. Anrique seu irmo, tornasse a ella, de que fora
j
lanado. Porque foi avisado que ella o procurava
e concertava
j
com Pro Lopez d'Ayala, que na ci-
dade era alcayde mr, e cavalleiro mais principal,
crendo que se o Infante fosse senhor de tal cidade,
o Condestabre o havia por cousa muito contrair a
seu desejo e propsito, que era destrui lo e desterra-
lo do reino com seus irmos, e por argumento d'isto,
outro tanto se presumio do mesmo Condestabre, que
ordenara Rainha D. Maria, mulher d'El-Rei D.
Joo,
que aps sua irm no durou com vij^a mais de xv
dias.
E esta Rainha D. Maria jaz sepultada na capella
mr do mosteiro d'Aguadallupe.
O Regente como soubesse do fallecimento da Rai-
nha, enviou logo pela Infante D. Joana,
que ficara e
estava em Toledo em grande desamparo, e a foi ao
extremo receber, e trouxe mui honradamente para
Lisboa, onde a poz em companhia da Infante D. Ca-
tharina sua irm, em poder de Violante Nogueira, e
tomou para El-Rei todolos criados que ficaram da
Rainha, tirando alguns em que tinha suspeita e des-
contentamento.
Chronica d*El-Rei D. Afonso V 19
CAFITULO LXXXV
Como o Condestabre filho
do
Infante D. Pedro
foi
en-
viado a Castella com gentes d?armas, em ajuda de
El-Rei de Castella contra os Infantes d'' Arago, e
do que se passou at tomar
V^/ei.a
morte d'estas duas Rainhas o partido dos
Infantes d'Arago ficou em Castella mui fraco
T e abatido, e o Condestabre porque viu tempo
^que lh'o assi aconselhava, ordenou de os fazer lan-
ar e desterrar fora do reino, e acabou com El-Rei
que escreveu ao Regente com as razes e causas com
que sentio que o mais obrigaria, pcdindo-lhe para isso
ajuda de gente d'armas por seu messegeiro, o qual
Infante teve sobre o caso bom conselho em Tentu-
guel, onde ^lle foi de sua vontade movido para ir em
pessoa; e porque foi em contrairo aconselhado, de-
terminou-se que enviasse o senhor D. Pedro seu filho
que era Condestabre, em edade de xv annos, e a mais
formosa nem melhor proporcionada creatura que se
podia vr de seu tempo, ao qual foram ordenados dois
mil homens de cavallo, e quatro mil de
p,
e com elle
estes fidalgos principaes: D. lvaro de Castro que
depois foi conde de Monsanto, e Lopo d'Almeida que
depois foi conde d'Abrantes, e D. Duarte de Mene-
zes que depois foi conde de Viana, e Diogo Soarez
d'Albergaria, e Ferno Coutinho, e
Joo
de Gouva,
e outros muitos fidalgos e cavalleiros da corte, em
que ia a frol d'ella.
E porque o sr. D. Pedro no era cavalleiro, quiz o
Infante seu padre que o fosse da mo do Infante D.
Anrique seu tio, que era em Lagos, e foi para isso
20
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
chamado a Coimbra, onde logo veiu e este
ajunta-
mento se fez, e sobre qual dos Infantes devia fazer
aquelle auto de Cavallaria, houve entre elles uma
oerciosa, mas mui honrada e maravilhosa contenda.
Porque cada um parecia que minguava em seus me-
recimentos, por acrecentar nos do outro, e cada um
se alegrava ser n'elles do outro vencido para que o
fizesse, e em fim o cargo ficou ao Infante D.
Anrique
e no sem merecimento
;
porque em seu tempo mui-
tos Prncipes foram de mais turras, gentes, e rendas,
mas no houve em seus dias algum ante quem elle
em perfeio de virtudes, e bondade d'armas, e es-
foro do corao se devesse contar por segundo, o
qual com novas cerimonias e grandes festas, armou
Cavalleiro o Condestabre seu sobrinho, no mosteiro
de S. Jorge,
que junto com a cidade sobre o Mon-
dego. D'onde logo partio com mais gentes de sua or-
denana
;
porque alguma que falleceu, se refez toda
com elle em Cidad Ronrigo, primeiro lugar de Cas-
tella por onde entrou. E certo d'armas, cavallos, li-
vre e arreios, foi gente mui luzida e mui aparelhada
para fazer um bom servio.
El-Rei D.
Joo
de Castella, para execuo do que
desejava, tinha
j
cercados na villa de Olmedo a El-
Rei de Navarra, e ao Infante D. Anrique seus
cunha-
dos, com muitos e grandes senhores de Castella. Os
quaes esforados na muita gente que comsigo tinham
e confiados que pela antiga criao e conhecimento
que tinham d'aquelle reino, e assi pelo desamor que
geralmente tinham ao Condestrabre, que as gentes
d'El-Rei quando os vissem em rompimento e pe-
rigo os ajudariam, e temendo outrosi a gente de Por-
tugal, que tambm ia sobr'elles, e vendo q*ue por isso
o cerco por muitos inconvenientes lhe no cumpria,
determinaram poer seus feitos em ventura, e dar,
Chronica d'El- Rei D.
Affonso
V
21
como deram, batalha a El-Rei, em que foram de todo
vencidos, d'onde o Infante D. Anrique sahiu ferido
em um brao, de que a poucos dias falleceu em Ara-
go. E El-Rei de Navarra se acolheu fugido a seu
reino sem mais vir a Castella; ainda que o depois muito
procurasse.
D'este caso assi como passara foi o senhor D. Pe-
dro em Cidad Rodrigo avisado. Sobre o qual os do
conselho d'El-Rei, que com elle eram, praticaram o
que fariam. E acordaram que deviam todavia prose-
guir sua viagem como fizeram, e que do caso acon-
tecido avisassem logo El-Rei seu Senhor, e a El-Rei
de Castella notificassem sua ida. E com isto feito fo-
ram fazendo suas jornadas, at chegarem cidade
de Touro, onde o Condestabre D. Pedro houve res-
posta d'El-Rei de Castella, em que lhe rogava, que
assi como vinha o fosse vr, como foi, villa de
Maiorca, onde
j
com toda sua corte estava, e em
seu recebimento lhe foi feita honra mui assinada
;
porque El-Rei com toda sua corte sahiu ao receber,
mui contentes de vr um Principe em todo to pro-
porcionado, em que muito acrecentava a graa das
ricas armas em que ia vestido. E depois de passarem
alguns dias, em que d'El-Rei e dos grandes de seu
reino, foi com muitas honras e festas tratado, El-Rei
com os aguardecimentes que em sua ida cabiam, lhe
disse : Que pois seu servio lhe no era necessrio,
que se poderia tornar para Portugal. E como quer
que o Condestabre muito insistisse para ficar e o ser-
vir
;
corno d'El-Rei seu Senhor, e do Infante seu pa-
dre trazia ordenado, El-Rei no quiz, posto que lhe
requereu e desejou que com a gente somente que
para o servir fosse necessria ficasse aforrado em sua
corte. Mas aos fidalgos que com elle iam no pare-
ceu razo leixa-lo assi, sem prazer do Regente. Pelo
22 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
qual El-Rei o despediu com dadivas de jias e cavai-
los, e mullas e outras cousas de grande preo, e no
falleceram outros muitos grandes senhores d'aquelle
reino que lhe offereceram seus presentes, de cousas
que sua idade e tempo requeriam. Mas para d'outrem
algum no receber nada, salvo d'El-Rei, teve as mos
to castigadas, como as fez soltas em dar e fazer gran-
des mercs a aquelles que semelhantes cousas lhe apre-
sentavam, ainda que com ellas se tornassem, e d'esto
se escusava com tanta humildade e cortezia, que bem
parecia que no era por algum vicio de presumpo
que n'elle coubesse.
E assi com sua gente na ordenana em que fora,
e com bandeiras tendidas se tornou a Portugal e en-
trou por Bragana, e na villa d' Aveiro achou El-Rei
e com elle o Infante seu padre, d'onde despediram
os fidalgos e a gente que com elle fora, dando pelo
servio que fizeram muitos aguardecimentos com as
mercs que cada um por sua confisso merecia, e isto
passou no anno de mil e quatrocentos e quarenta e
cinco.
CAPITULO LXXXVI
De como o Regente
fez
cortes geraes, em que leixou a
El-Rei a primeira vez o Regimento do Reino, se-
gundo era obrigado, e como El-Rei Itio tornou a
dar
Econsirando
o Regente, como para o Janeiro
do anno que logo entrava de mil e quatrocen-
tos e quarenta e seis, El-Rei D. Affonso cum-
pria idade de Xiv annos, em que, segundo foro d'Es-
panha, qualquer Prncipe Real deve haver inteira
posse e administrao de seu reino e senhorio, e lem-
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 23
brando-se isso mesmo da obrigao em que por sua
f e juramento ficara de a este tempo livremente lhe
entregar o reino, querendo inteiramente assi cumprir,
fez para isso cortes geraes e solemnes em Lisboa, e
na salla grande dos paos, sendo El-Rei com os In-
fantes e senhores, e seus officiaes e procuradores, em
sua costumada e antiga ordenana, o doutor Diogo
Affonso Mangancha, em nome do Infante D. Pedro,
fez uma louvada orao, cuja sustancia se concludio
em quatro cousas.
A primeira, apresentar e entregar alli El-Rei em
tal disposio de sua pessoa, siso e entender, manhas
e virtudes, como de sua edade no cria que no mundo
outro tal houvesse
;
porque dava e dessem todos mui-
tas graas a Deus. A segunda, que no regimento do
reino que todos lhe deram, como quer que para o
bem fazer, elle com todas suas foras, entender, e di-
ligencia fizera muito a alm do que poder
;
porm
que pelo grande trabalho, que em nome d'outrem
era reger, especialmente em tempos de tantos desvai-
ros e balanos como no seu se seguiram, elle confes-
sava tel-o feito muito quem do que devia, de que
pedia perdo. A terceira, em dar aguardecimentos
quelles, que no tal caso bem e lealmente serviram e
ajudaram, guardando nas palavras o acatamento, mais
e menos, segundo cabia nas calidades das pessoas e
estados do reino que eram presentes. A quarta con-
cluso foi, que em caso que no fora direito nem
costume aos Prncipes de to pequena edade, como
eram a quatorze annos dar-se livre poder de per si
regerem reinos e senhorios, que a El-Rei seu Senhor
vista em todo sua perfeio, por graa especial lhe
devia ser dado, como a outro que fosse de muitos
mais dias. E que para isso lhe entregava alli mui
livremente, e sem cautella, sey Regimento. Metendo-
24
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
lhe logo com rostro mui alegre a vara da justia nas mos,
que em giolhos e com
muito acatamento lhe beijou.
E depois d'El-Rei ser recolhido sua camar, onde
era o Infante D. Fernando, seu irmo, e o Infante
D.
Anrique, seu tio, com outros muitos senhores, o In-
fante D. Pedro, praticando com elle a maneira que d'hi
em diante teria em reger, El-Rei depois de bem ou-
vir, lhe pediu que at vr o que n'isso poderia fazer,
elle inteiramente mandasse e fizesse em seu nome o
que d'antes fazia; porque receava de per si s sem
sua ajuda ou d'outrem no poder com tamanho cargo.
E de hi a trs dias se fez na ordenana passada
outro ajuntamento, em que o mesmo doutor Diogo
Affonso em nome d'El-Rei fez outra falia, porque
sustancialmente se declarou que havia por recebido
em si do Infante D. Pedro seu tio e padre o inteiro
regimento de seu reino, dando-lhe, por isso com lar-
go recontamento de seus muitos servios e mereci-
mentos, grandes agardecimentos com muitos seus lou-
vores, outorgando-lhe no somente auctorisadas qui-
taes de todo o tempo de sua governana ; mas ain-
da por maior sua honra, que ficasse em registo por
verdadeiro e claro testemunho, da obrigao em que
por isso ficava a elle e a seus filhos, com todolos que
d'elles descendessem
;
porque conhecia e declarava
que nunca algum Principe fora no mundo com tanto
amor e em tanta perfeio criado, nem em manhas e
costumes reaes to bem ensinado, nem com tanta
lealdade e obedincia servido e tratado, como elle
sempre fora do Infante D. Pedro seu tio e padre
;
po-
rm porque elle ainda no tinha idade para per si s
reger sem perigo de si mesmo e das cousas que re-
gesse, nem tivera a pratica e esperiencia d'ellas como
para Rei cumpria, e era por isso necessrio tomar al-
guma pessoa que no regimento o insinasse e ajudasse,
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 25
e por todos respeitos, causas e razes, no havia em
todos seus reinos outro para isso mais pertencente
que o mesmo Infante D. Pedro, que elle de seu pr-
prio moto, sem lembrana nem requerimento d'alguem
o escolhia para isso, e havia por seu servio e por
bem de seus reinos que elle Infante tornasse com elle
a reger e governar seus reinos, assi como d'antes
fazia, at elle se sentir em desposio para per si s
o poder fazer, mandando que a obedincia que em
regendo sempre lhe guardaram, essa d'hi em diante
lhe guardassem muito mais inteiramente.
E aos grandes e povos de seus reinos que eram
presentes, em sua presena mandou muito agardecer
por lhe requererem e darem por mulher a filha do
Infante D. Pedro seu tio e padre, de que sobre toda-
las cousas do mundo, por muitas razes era mais con-
tente
;
mas porque este seu casamento quando pri-
meiramente foi em bidos celebrado, por ventura
por se fazer ante de haver idade cumprida e necess-
ria, para isso sem sua aprovao pareceria defeituoso,
elle que ento a tinha
j
para isso de todo perfeita, o
aprovava e consentia, como se n'aquella hora de seu
prazer, e com sua inteira liberdade novamente o fi-
zesse.
CAPITULO LXXXVII
De como as
filhas
do Infante D. Joo foram casadas
Eno
comeo do anno de mil e quatrocentos e
quarenta e sete, o Infante D. Pedro se partiu
com El-Rei da cidade d'Evora, para o lugar
das Alcovas, onde por concerto veiu a Infante D.
Isabel, mulher do Infante D.
Joo,
e trouxe comsigo
duas suas filhas, que alli ambas juntamente casaram
;
26 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
D. Isabel que era maior com El -Rei de Castella, por
Garcia Sanchez de Toledo, que como seu procurador
e embaixador a recebeu, e D. Briatiz com o Infante
D. Fernando, por elle mesmo. E do casamento que
prometeu a El-Rei de Castella, que foi cem mil flo-
rins d'Arago, se seguiu a este reino pouca despesa;
porque os recebeu El-Rei de Castella em desconto do
soldo que era obrigado pagar gente do soccorro, e
da ajuda que El-Rei de Portugal lhe enviou com o
Condestabre seu primo, como atrs
j
disse.
E no Maio d'este anno, que era o tempo da en-
trega da Rainha, em que se concertaram El-Rei e o
Infante seu irmo, com todolos senhores e pessoas
principaes do reino, fizeram em Lisboa por honra da
Rainha umas grandes festas, acabadas as quaes, o In-
fante D. Pedro, acompanhado grandemente, levou a
Rainha a Coimbra, onde foi festejada, e d'hi villa
de Pinhel que em Portugal, onde era concordado
que El-Rei de Castella havia de vir em pessoa, para
lhe ser alli entregue e a levar, e elle no veiu, de que
com palavras honestas e de receber, se enviou escu-
sar por certos senhores e grandes de
seu reino, a
que a Rainha com seu poder e auctoridade foi entre-
gue, e lh'a levaram.
Chronica d'El-Rei D. Afonso
V 27
CAPITULO LXXXVIII
Como El- Rei por meio do duque e de seu
filho
o conde
dOurem pediu ao Infante o Regimento do Reino
\
e como inteiramente lh'o lei.tou
duque de Bragana, e conde d'Ourem, e o Ar-
cebispo de Lisboa com outros de sua valia,
no ficaram sem grande paixo de ser o Re-
gimento do reino outra vez tornado ao Infante D. Pe-
dro, e o duque publicamente por Gonalo Pereira,
que se dizia das amas, o contrariou nas cortes por
uns apontamentos que a ellas enviou. Mas no foi
ento ouvido
;
porque o corao d'El-Rei ainda no
era de falsos testemunhos corrompido, nem cheio das
erradas suspeitas contra o Infante, como ao diante
foi. Mas em fim taes rodeios tiveram, principalmente
o duque e conde d'Ourem, e taes incitadores busca-
ram e meteram secretamente s orelhas d'El-Rei, que
o comoveram para o que quizeram, que foi requerer,
como requereu ao Infante D. Pedro que lhe leixasse
livremente o regimento
,
porque s sem outrem que-
ria reger.
E o Infante bem conheceu que tal movimento, e a
tempo to antecipado no nascera na prpria vontade
d'El-Rei, mas que fora n'ella semeado por engenho
de seus imigos. E porm lhe disse que elle era d'isso
mais ledo e mais contente, do que por ventura lhe
fariam crer que o elle seria; porque quando elle nas
cortes que ento foram, se escusava aceitar outra vez
o regimento para que o forava, bem via que lhe dera
Deus tal siso e tal disposio, que per si sem outra
ajuda poderia reger estes seus reinos e outros maio.
28 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
res; porm pois assi era sua vontade, que lhe pedia
por merc que com o regimento juntamente qui-
zesse tambm tomar sua mulher, pois era em edade para
isso; porque assim faria mais por sua honra e estado.
No que El-Rei ento consentiu; e ficou logo entre elles
tempo assignado para isso, no qual o Infante se per-
cebeu dos corregimentos e cousas que para a pessoa
d'El-Rei e da Rainha, e assi para sua casa e camar
cumpria
;
mas El-Rei por induzimentos d'alguns, e do
Arcebispo de Lisboa principalmente, que de noite lhe
ia falar, no esteve pela concrdia em que ficara
;
porque antecipou o tempo, e tornou requerer o In-
fante, que logo leixasse o regimento; porque antes de
casar elle inteiramente queria reger, c em outra ma-
neira no seria sua honra nem convinha a seu estado,.
ao que o Infante por no dar causa a mais danamento,
logo satisfez e desistiu em todo do mandado e go-
vernana que tinha, em tanto que as cartas e provi-
ses que d'antes foram por elle desembargadas, e eram
feitas para se de seu nome assignarem, no as quiz
mais assignar, nem entender em cousa que a regi-
mento pertencesse.
E porm El-Rei no mez de Maio de mil e quatro-
centos e quarenta e sete, em Santarm, tomou sua
casa e sua mulher juntamente, com as benes e ce
rimonias pela Santa Igreja em taes casos ordenadas, e
com alguma mostrana de festas, mas no foram n'a-
quella perfeio e cumprimento que o Infante quizera
e tinha ordenado. Porque como leixou o regimento,,
logo todalas cousas ainda que fosse sem culpa sua,
para seu desfavor lhe volveram as costas.
Chronica d'El Bei D. Afonso
V 29
CAPITULO LXXXIX
Das cousas que o conde de Barcellos
fez
em abatimento
do Infante D. Pedro depois que soube que
j
no
regia, e paru lanarem o Infante fora da corte
duque de Bragana como soube que o Infante
desistira do regimento, e que
j
El-Rei abso-
-
lutamente regia, por imprimir e confirmar no
povo a suspeita de desleal que contra o Infante ti-
nha
j
com EI-Rei principiada, partiu da Villa de
Chaves, e com estrondo de gente armada se foi
cidade do Porto, e a Guimares e Ponte de Lima, e a
outros logares d'aquella comarca, onde aos criados
do
Infante tirou os officios que tinham d'El-Rei, e a
todos com infmia de tredores lanou fora, e com
nome de receio do Infante mandou velar e roldar as
villas e castellos, como se El-Rei e o Infante foram
imigos e houvera
j
entre elles pregoada guerra, com
outras onies d'esta calidade, que no reino contra
elle individamente se faziam.
Estas falsas novidades vinham logo s orelhas do
Infante, que feriam sua alma com muita dr e tris-
teza, especialmente porque o remdio que n'ellas ca-
bia e elle procurava, via que com desprezos lh'o de-
negavam.
Na corte d'El-Rei andava a este tempo um Berredo,
proto-notairo, filho de Gonalo Pereira, de Riba de
Vizela, mancebo avisado, que por estar
j
em corte
do Santo Padre tinha boa pratica, e por algumas le-
tras que aprendera havia solta audcia de dizer. Este
por astcia e conselho do duque e do conde d'Ourem,
veiu corte bem avisado d'elles, do que secretamente
30 Bibliotheca de Clssicos Portugupztis
diria a El-Rei para o fim que desejavam, que era me-
ter El-Rei em dio com o Infante D. Pedro e tira-lo
do regimento, e com achaque de despedir suas cousas
para Roma, fallava com elle muitas vezes em apar-
tado, por cujo malicioso meio e falsa informao que
astuciosamente dava a El-Rei, se seguiu principal-
mente o maior damno que o Infante e suas cousas
receberam. Porque com isto fazia-se grande servidor
e muito familiar do Infante, a cuja casa, camar e
mesa ia continuamente. D'onde maliciosamente trazia
novidades e suspeitas a El-Rei, com que umas horas
lhe fazia crer que andava subgeito, e contra o que a
seu estado cumpria, e outras que sentia do Infante
que queria reinar e fazer seus filhos grandes, acau-
telando-se sempre que o que dizia a El-Rei, no era
como imigo nem desservidor do Infante, de quem
recebia honra e merc; mas porque era portuguez
leal a El-Rei a quem mais devia.
E assi o sabia entoar, que todo o que queria im-
primia sua vontade na molle e nova edade d'El-
Rei, e por aviamento d 'este se foi El-Rei ver com o
conde d'Ourem a Torres Novas. Onde com muitas
razes, que para o caso com seus aderentes tinha
compilladas, fez crer a El-Rei camanho abatimento e
quo grande sobgeio sua era andar mais o Infante
na corte, que cedo por isso no obedeceriam a El-
Rei, e era razo que o fizesse; porque andando o re-
gimento assi misturado, sempre seria de crer que o
Infante mandava e regia, o que a todos seus vassal-
los fazia grande escndalo, e que por isto e por ou-
tras causas muitas que alegavam, El-Rei com algu-
ma mostrana de bem o devia despedir de si e de sua
governana, e que para isso seria melhor, e com me-
nos pejo seu no tornar mais a Santarm, e mandar
por outrem dizer ao Infante sua teno e vontade,
Chronka d'El- Rei D. Afonso
V 31
por se escusarem quebras e descontentamentos d'en-
tre ambos em pessoa.
El-Rei levemente consentiu no despedimento do
Infante, mas disse que no havia com tal engano
despedir seu tio
;
porque seria sem duvida declarar
de todo sua fraqueza e algum desconhecimento ; mas
que em pessoa o despediria como era razo.
E para em caso que o Infante a isso no obedecesse
e refusasse sua partida, disseram que era bem que
El-Rei levasse comsigo armados, como levou, os vas-
sallos da comarca. E que por fora em tal caso, como
a revel o lanasse fora da corte, com aquella mais
pena que por isso merecesse. Mas o Infante a que
tudo isto se logo descobrio, quiz da fora alheia fazer
sua livre vontade, e como El-Rei tornou a Santarm
foi-lhe logo falar, e encobrindo com uma falsa alegria
de seu rostro uma verdadeira tristeza do corao que
tinha; depois d'algumas praticas extraordinrias, pu-
blicamente lhe disse.
Senhor, dez annos ha que n'este cargo, que vs e
vosso reino me destes, vos servi como melhor pude
e soube, nos quaes minhas terras por minha ausncia
receberam de mim pequeno repairo, como todos sa-
bem, e minha fazenda padeceu grande perda; porm
tudo hei por bem empregado, pois tudo redundou em
vossa perfeita creao e mui inteiro servio. Agora
pois vos Deos chegou a tal idade, e deu tal siso, en-
tender e disposio para sem outra ajuda regerdes
por vs vossos reinos ainda que fossem maiores, pe-
o-vos por merc que me deis licena para ir prover
o meu, que de mim
j
tem grande necessidade, e
quando nas cousas graves e pesadas, que em vosso
reino e a vosso servio occorrerem minha presena fr
necessria, mandae-me chamar, e prazendo a Deos vs
n'isso e em todo conhecereis que sobre todos vossos
32 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
vassalos e servidores, eu vos amo e vos sou o mais
obdiente e mais leal.
D'este cometimento do Infante ficou El-Rei descar-
regado e mui ledo
;
porque com elle se viu alivado
do grande peso e cuidado que para isso trazia, e por
sua humana e mui real condio, com tudo lhe pesava
grandemente partir-se d'elle o Infante agravado nem
descontente, e porm com palavras que pareciam de
muito agardecimento e amor lhe outorgou a licena,
e mais lhe mandou dar uma solemne quitao de todo
o tempo que por elle regera seus reinos, com aprova-
o de todo o que em seu nome at ento dera e fi-
zera. O que alguns quizeram depois contrariar, di-
zendo que devia antes ser revogao que aprovao
;
mas por ento sua contradio no aproveitou, pOr
que todavia passou com toda solemnidade e perfeio.
O Infante como teve licena d'El-Rei e aviou as
outras cousas que lhe cumpriam, se partiu de Santa-
rm para Coimbra no fim do mez de Julho; e porque
se receiou de gente que o conde em Ourem tinha junta,
quiz n'aquella travessa segurar sua pessoa com outra
gente sua que mandou perceber, com que at Tho-
mar foi mui honradamente acompanhado, e d'alli a
despediu e levou somente comsigo os de sua casa, e
dois seus filhos, D. Pedro o maior, e D. James que de-
pois foi Cardeal.
E como o Infante leixou a corte, logo o conde de
Qurem, e o Arcebispo de Lisboa, e o conde D. San-
cho com outros de sua opinio se foram a ella, onde
todo seu cuidado foi inventar com El-Rei novidades
e determinaes que fossem em nojo e abatimento do
Infante. E entre outras ordenaram que El-Rei para se-
gurana no somente de sua vida, mas da justia e fa-
zenda tirasse, como logo tirou todolos officios que os
criados de seu tio na corte tinham de qualquer cali-
Chronica d'El- Rei D. Affonso
V 33
dade que fossem, poendo suspeies e testemunhos fal-
sos, a uns que erravam na justia, e a outros que rou-
bavam a fazenda, e a outros que dariam peonha a
El-Rei, segundo a cada um em seus offitcios podia to-
car, e para parecer que o queriam provar, no falle-
ciam logo pessoas induzidas, que com medo de pena,
ou com esperana de galardo que lhe promettiam,
sua vontade o testemunhavam. Ajuntavam-se a isto
os criados da Rainha D. Lianor, que para mais agra-
varem suas querellas diziam contra o Infante por con-
selho de seus imigos muitas cousas verdade mui
contrairs. E o fundamento d'estes era semear contra
o Infante e contra os seus estas desleaes suspeitas;
porque o amor e affeio que por seus benefcios e
merecimentos El-Rei e o povo de Portugal lhe tinham,
e era razo que tivessem, o convertessem em dio e
desamor, com que celeradamente e sem se poder re-
medear lhe causassem a morte como fizeram
;
porque
sabiam que sua vida se muito durasse, no somente
impediria o effeito das cobiosas esperanas em que
para seus maiores acrecentarnentos andavam, mas ain-
da suas vidas ao diante no seriam isentas de perigo,
por saberem que alm da grandeza do Infante e grande
saber, a que seria mui deficil resistir, tinha muitos no
reino que por criao e por graas recebidas lhe ti-
nham grande amor, e des-hi que tinha filhos que se-
riam grandes senhores, e sobre tudo a Rainha sua fi-
lha, de cujo amor e fruito de gerao, se El-Rei fosse
ao diante vencido, como de sua edade e por suas vir-
tudes e perfeies se esperava, teriam para si mui du-
ros contrairos. E por tanto trabalhavam de poer El-
Rei por qualquer maneira
que podessem, no derra-
deiro gro de dio e imizade contra o Infante.
vor.. n fol.
3
34 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO XC
Como o Infante D. Anrique entendeu nas cousas do
Infante D. Pedro para seu favor, e assi o conde
cTAbranches
fARTiu-SE
El-Rei de Santarm para Lisboa, onde
o Infante D. Anrique que era no Algarve lhe
veiu fallar, e porque sentiu que a vida e honra
uu Infante seu irmo com maneiras falsas de seus
imigos era maltratada, e se despunha a destruio
e
perigo, atalhou a isso algum tanto, mas no com aquella
fortaleza e escarmento, que elle a seu irmo devia e o
mundo esperava, o que lhe fora bem possvel se qui-
zera; porque achou contra o Infante artigos formados
em que se afirmava que com cobia de reinar matara
El-Rei D. Duarte seu irmo, e em Castella dera or-
dem morte da Rainha D. Lianor, e assi do Infante
D.
Joo.
Com outras muitas abominaes de que se
tiravam inquiries, em que por seu sobornamento lhe
no falleciam testemunhas falsas com que parecia que
o provavam. Mas o Arcebispo e o conde d'Ourem com
outros de sua parcealidade, receiosos se o Infante D,
Anrique segundo era no reino poderoso e de grande
auetoridade pendesse banda do Infante D. Pedro,
que suas maginaes ficariam com damno d'elles muito
quem de seu propsito, trabalharam de fazer a El-
Rei suspeitosas suas muitas virtudes e segura lealdade,
afirmando-lhe que nas desculpas do Infante D. Pedro
o no devia crer. Porque na culpa do engano e des-
terro da Rainha sua madre, e em outros desmandos
que por morte d'El-Rei D. Duarte no reino se fizeram
foram ambos causadores e participantes, mas como
Chronica d'El Bei D.
Affonso
V 35
isto era falso, no damnava na limpeza do Infante D.
Anrique.
CAPTULO XCI
Vinda do conde dAbranches s cortes
P
este tempo chegou tambm a Lisboa, que vi-
nha de Ceuta, o conde d'Abranches, que so-
bre todos era grande servidor e muito ami-
go do Infante D. Pedro, e publico amigo do conde
d'Ourem, e em sua chegada no foi ento d'El-Rei
e de sua corte assi agasalhado e honrado, como
seus servios- presentes e merecimentos passados
requeriam. Porm o conde assi como era de no-
bre sangue, assi no fallecia n'elle uma graciosa sol-
tura de dizer, com mui esforado corao e singular
aguardecimento, com que ante El-Rei e os de sua
corte, no publico e no secreto defendia muito a hon-
ra e estado do Infante D. Pedro, com claros exem-
plos e vivas razes de sua mui louvada lealdade,
afeando muito com grande audcia os movimentos e
maldades que seus imigos to sem causa contra elle
moviam.
E como quer que El-Rei fosse induzido, que no
ouvisse o conde e o mandasse ir fora de sua corte,
poendo-lhe que em todas as culpas do Infante elle era
muito culpado, porm porque El-Rei era de alto co-
rao, aceso no ardor de autos cavalleirosos, suspi-
rando para grandes emprezas, folgava muito de o ou-
vir, e comeava dar-lhe de si muita parte e acolhimento,
especialmente porque o Infante D. Anrique ante El-
Rei muites vezes por cousas muito assinadas em que
o vira, dizia por elle, que no somente Portugal, mas
Espanha toda se devia de haver por honrada criar
36
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
tal cavalleiro. E porque os imigos do Infante viram
que a vontade d'El-Rei acerca do conde no terava
por elles como desejavam, lanaram-lhe amigos d'elle
lanadios, e pessoas de credito que com resguardo
de grande segredo o aconselhassem que se fosse fora
da corte, e no entrasse em um conselho publico que
se ento lazia, avisando-o manhosamente que n'elle
por cousas do Infante D. Pedro o haviam de prender.
Mas o conde com a cara cheia d'esforada segurana
lhe disse:
Amigos, certamente pelos muitos e grandes servi-
os que tenho feitos a esta casa de Portugal, eu lhe
mereo mais villas e castellos com que me acrecen-
te, que prises nem cadeias em que sem causa me po-
nha, e por tanto com todo o que me dizeis, sabei que
no hei-de fugir do conselho e servio d'El-Rei nosso
Senhor, pois leal e verdadeiramente sempre o segui.
E porm se tal cousa, e por tal causa se move con-
tra mim, sabei certo que em defender minha honra, e
limpeza d'aquelle Senhor, eu me mostrarei hoje dino
de ser confrade da Santa Garrotea que recebi, e es-
pero em Deus que sem ociosidade de minhas mos,
os que me quizerem visitar antes seja na sepultura,
que nos crceres nem cadeias, e por isso no hajaes
d nem compaixo de minha vida porque minha morte
honrada a far com louvor viver mui viva, e muito
mais honrada nas memorias dos homens para sempre.
Pelo qual o conde depois de com esta determina-
o despedir estes manhosos e dobrados conselhei-
ros
;
porque a hora do conselho se chegava a que de-
terminou ir, se vestiu de panos finos mui bem, e mui-
to melhor d'armas secretas, com que entrou no pao,
onde seus imigos vendo a segurana de sua pessoa,
foram claramente certificados do esforo e bondade
de seu corao.
Chronica d'El- Rei D. Afonso
V
37
E estando El-Rei na casa do conselho, onde eram
muitos senhores presentes e os principaes imigos do
Infante, o conde com cara que mais parecia que
ameaava que temia, lhe tocou em sua priso que lhe
fora revelada, e assi lhe fallou com muito repouso e
grande auctoridade nas cousas do Infante e suas, ap-
provando sua bondade e lealdade por termos, e com
razes a todos to manifestas, que se no podiam
contrariar ; concluindo, que quaesquer pessoas de
qualquer estado e condio aue fossem, que do con-
trairo tinham informado a El-Rei, eram com reveren-
a e acatamento de sua real pessoa, a Deus e a elle
e ao mundo mos e tredores, e que com licena e
consentimento de sua Senhoria os
combateria por ar-
mas, e em campo a trs d'elles os melhores junta-
mente.
A resposta d'El-Rei para o conde foi ento gra-
ciosa e branda, e com mostrana que lhe pesara de
o ouvir, que para o mo fundamento dos que trata-
vam a morte do Infante foram mui tristes sinaes, e
por arredarem El-Rei do Infante D.
Anrique e do
conde, que comeavam ser causa que de todo impe-
dia seu damnado propsito, o levaram a Cintra afor-
rado.
CAPITULO XCI1
De como o Infante D. Anrique se
foi
ver a Coimbra
com o Infante D. Pedro, e com elle o conde d* Abran-
ches, e das novidades que se seguiram
Eo
Infante e o conde d'Abranches vendo tempo
para isso, foram vr a Coimbra o Infante D.
Pedro, que com tal vesitao pela estima e re-
putao em que o Infante D. Anrique era havido,
38 Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
elle e os seus mostraram receber muita alegria e gran-
de favor.
Alli se juntaram os Infantes com alguns principaes
seus adeptos que hi eram, e fallaram algumas vezes
nas sem razes e agravos que o Infante D. Pedro ti-
nha nas cousas passadas recebidos, e assi no remdio
que se teria nos que se aparelhavam e estavam por
vir, para acrecentamento dos quaes foram alli certi-
ficados que El-Rei como foi em Cintra logo por en-
genho do conde d'Ourem e dos outros ordenara em
desfavor e quebra do Infante estas cousas. Uma foi
que escreveu a todolos fidalgos e a cavalleiros do
reino em que sentio que havia boa vontade para o
Infante, que sob pena de caso maior por qualquer
maneira o no fossem vr. A outra que mandou poer
e publicar ditos por todo o reino, que todolos cria-
dos que foram da Rainha D. Lianor, que de suas fa-
zendas e cousas por seu caso fossem privados, vies-
sem requerer suas restituies, para que foi dado por
juiz Lopo d'Almeida, que como quer que em todalas
outras cousas fosse havido por homem justo e de so
entender, n'esta a juizo de bons (por ventura, porque
o tempo assi o queria) no guardou a ordem direita
que devera; porque todo o que os damnificados por
simples petio pediam lhe era sem exame nem res-
guardado de justia julgado, e logo executado, em
que ajuntavam muitas cousas fora d'esta querella e
d'esta calidade, de que a muitos se seguiu sem causa
muito damno. A outra foi que El-Rei notificou ao In-
fante D. Pedro que o havia por degradado de sua cor-
te, e lhe mandava e defendia que sob pena de caso
maior sem seu especial mandado no fosse a ella
nem sahisse de suas terras.
E isto ordenaram assi os contrairos do Infante, por-
que se receiaram que elle com a vista e confiana do
Chronica d'El-Rei D. Afonso
V 39
Infante D. Anrique tomaria por ventura atrevimento
de se vir com elle corte, onde era certo que em pes-
soa alimparia ante El-Rei sua honra, o que a elles para
seu desejo fora mortal inconveniente.
Os Infantes descontentes e maravilhados da sem ra-
zo d'estas cousas acordaram de enviar sobr'ellas a El-
Rei, como enviaram Gonalo Gomez de Valladares,
commendador da Ordem de Christo. O qual como
quer que pelas cartas e instruo dos Infantes que le-
vava em todo cumprisse seu officio; porm porque o
juizo d'El-Rei por sua no madura edade, e pelas fal-
sas opinies em que o criavam andava de todo em-
nevoado, turnou-se aos Infantes sem alguma determi-
nada resposta nem concluso. Dilatando-a para outra
pessoa que El Rei disse que lhes enviaria, o que se no
fez.
Partiu-se o Infante D. Anrique para a villa de Soure,
e o Intante D. Pedro para Monte Mr-o-Velho, que
so lugares d'onde cada dia se podiam vr e avisar, e
o mais certo e mais so remdio que n'estas alteraes
o Infante D. Anrique achou para seu irmo, em se
d'elle despedindo lh'o leixou e encommendou, que foi
sofrimento e pacincia que havia por armas mais se-
guras para n'este caso elle sempre vencer.
CAPITULO XCIII
De uma
forma de concrdia que El-Rei
fez
em escripto
entre o Infante D. Pedro e o duque de Bragana e
d'outras cousas que contra o dito Infante
se, seguiram
Epara
mais acrecentarem cuidado e paixo ao
Infante, vieram a elle logo D. Fernando, que por
alcunha do povo se chamava Cagonho, e com
elle Ruy Galvo, secretario d'El-Rei, pessoas que des-
40 Bihlioiheca de Clssicos Portuguezes
cubertamente em todo desserviam e desamavam ao In-
fante, estes trouxeram em escripto com signal e sllo
d'El-Rei uma forma de concrdia e amizade com co-
rados fundamentos de bem, que sem saber nem con-
sentimento do Infante, El-Rei fez entre elle e o du-
que de Bragana, requerendo estes messegeiros ao In-
fante que mo direita do signal d'El-Rei pozesse
n'elle seu signal, e tambm seu sllo. Porque outro
tanto era ordenado que o duque havia de fazer da ou-
tra banda; porque o d'El-Rei ficasse por marco de paz
e segurana d'entre ambos. Mas o Infante pela forma
das palavras, que com pouca honra sua e muito aba-
timento vinham na concrdia, e pela condio dos
messegeiros que a traziam, claramente viu que eram
tentaes que seus imigos ordenavam para mais em
breve indinarem El-Rei para sua destruio, e porm
sem esperana que a concrdia fosse verdadeira, as-
signou n'ella e a mandou assellar assi como lhe fora
requerido e ordenado. Porque o parecer e crena do
conde d'Ourem, que isto inventou, foi que o Infante
D. Pedro por sua forte e altiva condio no obede-
ceria em assignar tal concerto, e que sua desobedin-
cia daria corada causa para El-Rei com mais razo ir
sobr'elle e o destruir e castigar como a desleal; por-
que ao tempo que esta concrdia se formava na corte,
se fizeram juntamente cartas de geraes percebimentos
de guerra, para todalas cidades e villas e pessoas prin-
cipaes do reino, salvo para o Infante e para seu filho
o Condestabre, com o fundamento que se a isso no
satisfizesse de irem logo sobr'elle; mas esta amizade
assi como sem vontade de todos nunca entr'elles se
guardou.
E porque isto por esta via no succedeu vontade
dos imigos do Infante, tentaram o negocio por outra
r
em que fizeram que El-Rei enviasse, como enviou ao
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 41
Infante, Diogo da Silveira, que depois foi escrivo da
puridade, o qual sem merecimento algum o reprendeu
em nome d'El-Rei de cousas em que o Infante nunca
tivera culpa, em especial lhe estranhou muito o aal-
mamento d'armas e mantimentos que se dizia que
contra servio d'El-Rei em seus castellos fazia, mas o
Infante confiando em sua innocencia, depois de verda-
deiramente se escusar das outras falsidades que lhe
assacavam, mandou alli logo em continente mostrar-
lhe todo o castello de Monte Mor, e assi o de Coim-
bra, que eram os principaes que tinha, em cujo des-
percebimento claramente viu a informao que se a
El-Rei fizera ser em todo falsa e maliciosa.
E porm como Diogo da Silveira tornou corte,
logo El-Rrei ou por no ser por elle verdadeiramente
informado, ou por outro algum respeito, tirou ao
conde d' Abranches o castello de Lisboa, e a Aires
Gomez da Silva o Officio de Regedor da justia na casa
do Civel, e a Luiz d' Azevedo o Officio de Vedor da
Fazenda, somente por serem amigos e servidores do
Infante, tendo-lh'os
j
confirmados por suas cartas. E
a D. Pedro seu filho pediu o conde d'Ourem o Offi-
cio de Condestabre, dizendo que era d'elle roubado,
e lhe pertencia de direito. Mas por no lhe fazerem
uma concesso to fea, sendo seu imigo, El-Rei o deu
ao Infante D. Fernando seu irmo.
CAPITULO XCIV
De como El Rei enviou requerer ao Infante D. Pedro
as suas armas, que tinha em Coimbra
J
Cl ps estas que para o Infante eram mortaes per-
1 seguies, lhe ordenaram seus imigos outra
maior, que foi enviar-lhe El-Rei com muita
estreiteza requerer entrega das armas do seu almazem,
42 Bbliotheca de Clssicos Portuguezes
que o Infante tinha em Coimba, onde ficaram ao
tempo que o Condestabre seu filho volveu de Castella,
quando foi em ajuda d'El-Rei D. Joo
contra os In-
fantes d'Arago, que tinha em Olmedo cercados,
como atrs
j
fica dito.
E do fundamento d'este requerimento se seguia
uma das duas concluses sem outro meio, ambas ao
Infante e a sua honra mui perjudiciaes, c se obede-
cendo entregasse as armas, ficava de todo com suas
mos e foras atadas sem alguma sua defensa, e se
denegasse a entrega, cairia em caso de rebelio e des-
obedincia, contra quem a indinao d'El-Rei em tal
caso pareceria justa e de mais razo. Mas o Infante a
que estes movimentos de seus imigos no ficavam por
entender, como quer que com receio d'elles se en-
viasse algumas vezes, e com muita razo e honesti-
dade escusar, El-Rei no lhe conheceu de suas escu-
sas, antes insistio em seu propsito e cada vez com
mais graveza. A que o Infante finalmente respondeu:
Que as armas em tal tempo no lh'as devia nem
podia dar, pois em seu reino e com seus vassallos no
tinha d'ellas necessidade, e muito menos com os es-
tranhos, com quem elle tanta paz lhe procurara, pedin-
do-lhe por merc pois as armas de sua innocencia,
que eram as mais fortes, com a contrariadade de seus
imigos ante elle o no defendiam, que estas materiaes
e de ferro lhe leixasse por algum tempo para defen-
so de sua vida e honra, e que no somente d'estas
mas d'outras mais, visto seu caso com seus mereci-
mentos lhe devia fazer merc; porque em seu poder
e para seu servio as teria sempre mais limpas e mais
certas que no seu almazenrf, e que se sua nobreza e
real condio comeasse de embicar n'elle em to pe-
quena contia, sendo a outros em outras muito maio-
res mui liberal, que de duas cousas uma houvesse
Chronica d'El-Rei D. Afonso V 43
por bem, ou lhe desse tempo conveniente em que lhe
fizesse trazer de fora outras tantas e melhores, ou
mandasse receber o preo d'ellas em dinheiro para
o almoxarife de seu almazem mandar comprar e tra-
zer outras sua vontrde.
Mas El-Rei d'algum d'estes no mostrou ser con-
tente nem satisfeito.
CAPITULO XCV
Como o conde a* Arrayolos veiu de Ceuta para con-
cordar o Infante com El-Rei, e as causas porque
se presumio que estas cousas se tktmnavam mais
conde d'Arrayolos a este tempo depois da
morte do coade D. Fernando era capito e
governador da cidade de Ceuta, onde por
ser muito amigo do Infante D. Pedro, sendo certifi-
cado do engano e malicia que n'estes feitos andavam,
desejando o servio d'El-Rei e doendo-se do Infante,
para cuja perdio todalas cousas se inclinavam, se
veiu d'frica corte como homem virtuoso e de jus-
ta teno, e como quer que seu pai e seu irmo ti-
vesse por contrairos, comeou de entender com mui-
ta diligencia na concrdia entre El-Rei e o Infante.
Mas o duque seu padre, e o conde d'Ourem seu ir-
mo anojados muito de seu propsito, no o podendo
d'elle desviar faziam com El-Rei que em muitas cou-
sas o desfavorecesse. Especialmente no o ouvindo
as vezes que o conde requeria e desejava.
E vendo elles com tudo que sua bondade no can-
sava, e que sem embargo das fortes contrariadades
que recebia tomava por fundamento trazer corte o
Infante para que per si mostrasse a limpeza de suas
44
'
Bibliotheca de Clssicos Portugiiezes
culpas, fizeram novas fingidas, e com cores e signaes
que pareciam de certeza, que os mouros vinham pode-
rosamente cercar, ou tinham cercado Ceuta, com que
o fizeram volver sem alguma concluso em Africa,
d'onde no retornou, salvo depois da morte do In-
fante. Porque ento leixou livremente a capitania a
El-Rei, que a deu ao conde D. Sancho.
E no foi o conde d'Arrayolos s a que esta en-
ganosa quebra d'El-Rei com o Infante parecesse assi
mal como era razo. Porque muitos outros bons s
vezes publica, e as mais secretamente, quizeram com
El-Rei em sua concrdia entender, mas os imigos do
Infante punham ao corao d'El-Rei com informaes
erradas taes defensivos, que a lembrana de seus
merecimentos para seu galardo e limpeza nun-
ca na memoria d'El-Rei podesse entrar. Pelo qual
o Infante apressado em sua alma d'estes continos pa-
decimentos, suspirando pelo conhecimento da verda-
de, que havia por mais principal remdio de sua sal-
vao, escreveu a El-Rei por seus confessores, e por
outras pessoas religiosas muitas vezes, pedindo-lhe
em todas por merc, com palavras de muita piedade
e com grande acatamento e obedencia que por tes-
temunhos e induzimentos de seus imigos o no qui-
zesse julgar nem to maltratar, e houvesse por bem
arreda-los de seus ouvidos, e assim manda-los sair de
sua corte, como a elle por menos causas fizera; por-
que sendo fora, elle no haveria seus mandados e
determinaes contra si por to graves nem to suspei-
tas como ento lhe pareciam, e as cumpriria sem
agravo nem escndalo, e lhe obedeceria com muito
amor e lealdade, e que lhe lembrasse a grande per-
feio e amor em que o criara, e a muita verdade e
acatamento com que o sempre servira, e ao pouco
que durando seu regimento em sua fazenda e estado
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 45
tinha acrecentado. E principalmente por confirma-
o de sua boa vontade lhe pedia que no se es-
quecesse que o casara com sua filha que tanto ama-
va, e no fora com
fundamento e desejo de apagar,
mas perpetuar sua vida e real gerao.
E com estas cousas que traziam fundamento de ra-
zo e verdade, e por a condio natural d'El-Rei ser
inclinada a todo razoado bem, muitas vezes se despu-
rvha a lhe pesar dos
procedimentos e agravos que con-
tra seu tio fazia, e certo parecia que as cousas de seu
damno e abatimento em que consentia eram confran-
gidamente e sem sua vontade. Porque algumas pessoas
dinas de f e autoridade
afirmaram, que uma das cau-
sas principaes porque estes feitos entre El-Rei e o In-
fante mais se damnaram, foi por entre.virem n'elles
cartas falsas
;
porque umas davam a El-Rei em nome
do Infante, que o Infante nunca mandara, e outras re-
cebia o Infante com signaes d'El-Rei, em que El-Rei
nnnca assignara, fazendo os contrairos do Infante poer
n'ellas as sustancias com que os coraes de uma parte
e da outra mais se damnassem.
E por certo presumir-seassi no era sem caso; por-
que cotejadas as cartas que n'este tempo se acharam
escriptas da mo d'El-Rei para o Infante com outras
muitas feitas por escrives que lhe mandavam, bem pa-
recia que as da mo d'El-Rei eram prprias, e de filho
para pae, e as dos escrives muito alheias
;
porque mos-
travam ser de Rei imigo para vassallo desleal, e em
tanta contradio de cartas de uma s pessoa para
outra, e em um tempo e sobre uma mesma sustancia,
claro se podia conhecer que aquellas em que parecesse
a boa vontade eram prprias e verdadeiras d'El-Rei,
e as outras eram acidentaes e postias, ou o mais
certo constrangidas.
46 Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO XCVI
De como El-Rei mandou vir o duque de Bragana
sua corte, e como o Infante D. Pedro determinou
que em auto de guerra como vinha no leixaria-o
passar por sua terra
EL-Rei
se partiu de Cintra no comeo cTOutu-
bro de mil e quatrocentos e quarenta e sete
para Lisboa, d'onde por suas cartas mandou
vir sua corte o duque de Bragana, de que o con-
de d'Ourem seu filho mostrou a El-Rei para seu con-
selho e servio grande necessidade, e o aviso secreto
que o duque de seu filho houve, foi que viesse mais
em auto de guerra que de paz; porque
j
tinham
commovido El-Rei para ir logo sobre o Infante D.
Pedro. O qual pelas espias que com todos trazia foi
logo certificado dos percebimentos de gentes e armas
que o duque para isso fazia, e como fazia fundamen-
to de vir e passar em tal auto, e sem prazer do In-
fante por suas terras, e sobre o que o Infante n'isso
faria, de resistir com fora sua passagem, ou a des-
simular com pacincia, teve com os seus conselho,
em que houve votos desacordados, e finalmente o In-
fante seguindo a opinio do conde d'Abranches e
d'alguns outros que com a sua conformaram, deter-
minou com armas lhe resistir, mostrando que recebia
de Deus muita merc despoer lhe assim de uma pes-
soa a elle to damnosa, vingana to bem aparelhada
e tanto desejada, pelo qual de Coimbra se foi sua
villa de Penella, d'onde as novas de seu fundamento
correram logo corte d'El-Rei que era em Santa-
rm, e com todo o desfavor do Infante alguns fidalgos
Chronica d'El-Rei D. Afonso V 47
seus amigos e servidores que eram na corte, sentindo
que em tal tempo teria d'elles necessidade, se vie-
ram logo para elle, assim como Aires Gomez da Sil-
va com Ferno Tellez, e
Joo
da Silva seus filhos, e
Luiz d'Azevedo, e Martim de Tvora, e Gonalo
d'Atayde, e outros muitos de menos condio, e n'es-
te caso lvaro Gonalves da Tayde conde da Atou-
guia e seus filhos, sendo criados e feitura do Infante,
pelo no irem servir n'esta jornada, foram como in-
gratos sua criao e bemfeitoria geralmente bem
reprendidos, especialmente que para sua encuberta
usaram de praticas, e fazendo-se manhosamente e por
suas astcias prender e impedir, para no irem acom-
panhar e servir o Infante, fazendo-o
j
desleal e con-
traifo ao servio e obedincia d'El-Rei.
O Infante D. Pedro, porque a este tempo ainda ti-
nha no Infante D. Anrique sobre todos grande es-
foro e' muita confiana, mandou logo a elle que era
em Thomar,
Joo
Pirez Diogo, seu cavalleiro, e por
elle lhe enviou notificar e trazer por extenso me-
moria os muitos agravos e desfavores que cTEl-Rei
por seus imigos tinha recebidos, e como lhe parecia
que estas cousas, segundo as via guiadas do dio e
viradas contra toda razo e justia, que apertavam
muito para sua destruio, avisando-o mesmo por
mais claro argumento d'isso, da maneira em que o
duque vinha, e como a seu despeito queria passar
por sua terra e com que fundamento, pedindo-lhe
que em tanta e to injusta pressa e angustia como
esta em que estava, elie por sua bondade e com seu
valor e auctoridade, pois era em sua mo, lhe quizesse
valer, afirmando se, porm, que seu propsito e de-
terminao era impedir por fora e sem escusa a pas-
sagem do duque, pois vindo em sombra de poderoso
e tendo outro caminho por que sem escndalo pode-
48 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
ria ir corte, determinava vir pela Louz, que era
sua villa, sem lh'o primeiro fazer saber.
E o Infante D. Anrique por ento lhe respondeu,
que do que ento em seu caso, e em tal tempo me-
lhor lhe parecesse, lh'o enviaria logo dizer. Como en-
viou uma vez por Ferno Lopes d' Azevedo, Comen-
dador Mr de Christus, e outra por Martim Loureno,
tambm Cavalleiro da Ordem, cuja concluso foi : que
o Infante D. Pedro no fizesse de si alguma mudana,
at elle Infante D. Anrique no ser com elle em pes-
soa, para que dizia que se aparelhava.
CAPITULO XCVII
Do recado
que o Infante
D.
Pedro enviou ao duque,
sendo
j
em caminho
Infante D. Pedro como era prudente, e por
no poer em seu propsito trabalhos escusa-
dos, e no fazer despezas baldadas e no ne-
cessrias, antes de o duque passar o Mondego, para
saber a teno com que vinha, enviou a elle primeiro
Vasco de Sousa, fidalgo de sua casa, e por virtude
de uma carta de crena que levava, em presena dos
que com elle vinham publicamente lhe disse
:
Senhor, o Infante, meu Senhor, soube de vossa
vinda, e d'este auto de guerra em que com tantas
gentes vindes, e certificado, que quereis assi, sem
seu prazer, passar por sua terra, de que muito ma-
ravilhado, assi por esta novidade de gentes armadas,
que sem necessidade d'El-Rei, seu Senhor, nem do
reino levaes, como por lh'o no fazerdes primeiro
saber, que pois assi o determinveis, que quer saber
de vs em que maneira vos ha de receber, e que se
Chronica d'El-Eei D. Affonso
V 49
houver de ser como irmo e amigo, como elle de-
seja, que queria que vos vades ch e pacificamente,
como sempre fostes, e que d'elle e em suas terras re-
cebereis aquella honra, prazer e gasalhado, que sem-
pre recebestes, e qqe se com este desacostumado es-
trondo d'armas quizerdes assi passar, que por quanto
pela quebra e rompimento em que com elle estaes,
a elle seria fraqueza e abatimento consenti-lo, saibaes
que vos hade receber no campo como imigo, mas que
n'este caso por escusardes os males e damnos que se
d'esta viagem podem seguir, deveis tomar outro ca-
minho porque vades, pois sem seu abatimento nem
muito trabalho vosso o podeis bem fazer.
E com isto Vasco de Sousa se despediu, e tornou
ao Infante.
CAPITULO XCVI1I
Da resposta do duqne ao Infante D. Pedro
JCl
ps o qual o duque enviou logo a resposta ao
Infante, que ainda era em Penella, por Martim
Affonso de Sousa, fidalgo de sua casa, que em
presena de todos lhe disse:
Senhor, o duque meu Senhor vos notifica por mim
em resposta do que lhe ora enviastes dizer, que de-
pois que nascestes, sempre vos teve por irmo e amigo,
a que desejou fazer prazer e servio, e que agora por
este vos tem, e no com menos desejo e vontade, e
que por cumprir o que El-Rei lhe mandou, vae a sua
corte por esta estrada publica, e que a gente que traz
no d'ajuntamentos nem d'alvoroo como vos fize-
ram crer, mas a que o soe de acompanhar, e que de
vir em acertamento seguido para a corte caminho di-
reito, haver de tocar vossa terra, que no sabe como
vol. n fol.
4
50 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
seja caso cTagravo nem escndalo vosso
;
porque n'ella
no ha de consentir que se faa damno, fora, nem
tomadia, somente pedirem alguns mantimentos se fo-
rem neeessarios, por seus dinheiros, como vs pode-
reis fazer em suas terras quando por ellas de vontade,
ou por necessidade quizesseis passar, e que por tanto
elle determina todavia seguir assi seu caminho sem ou-
tro desvio, que vos pede que o hajaes assi por bem.
E o Infante sorrindo-se fingidamente e com cara
cheia de verdadeira sanha, lhe respondeu
:
Martim Affonso, dizei ao duque, que no sou
to nscio nem elle to avisado, que com suas dissi-
mulaes haja de enganar minha pessoa, nem abater
minha honra; muitos dias ha que nos conhecemos, e
muitas vezes passou
j
por minha casa e por minhas
terras ; e me lembra bem a gente que trazia e a que
tem, e agora sei que traz mil e seiscentos de cavallo
armados, com outra muita gente de
p
que para esta
vinda ajuntou sua e alheia, o que no responde aos
tempos passados nem menos paz e amizade que
comigo quer ter. E no lhe declarando mais o fim
porque assim vem, pois elle o sabe, nem o abatimento
que n'isso recebo pois o deve entender. Finalmente
lhe dizei, que se elle no toma algum outro modo de
vir, porque a todos parea e seja notrio que elle por
minhas terras vem pacificamente e como irmo e ami-
go, saiba que vivo lh'o no hei de consentir.
E com isto Martim Aflonso sem outro mais re-
pouso se despedio.
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 51
CAPITULO XCIX
Do que o conde d
>
Qurem ordenou em
favor
do duque
seu pae para no leixar de proseguir seu caminho,
e dos recados que El-Rei ao Infante D. Pedro en-
viou
Eo
Infante D. Pedro vendo
j
por estas premis-
sas passadas que o recontro e peleja com o du-
que em concluso se no podia escusar, fez
para isso aquelles percebimentos de gentes, armas,
artelharias, mantimentos e cousas que sentio serem
necessrias, e com aquella trigana e diligencia que o
caso requeria. Das quaes cousas todas, como passavam
o conde d'Ourem foi logo na corte avisado, e por fa-
vorecer a parte do duque seu padre no sendo bem
seguro e confiado de muitos que n'aquella viagem o
acompanhavam, temendo que na maior affronta o lei-
xariam, fez crer ao Infante D. Fernando, irmo de
El-Rei, que por ser casado com a neta do duque, fi-
lha do Infante D.
Joo,
este caso era prprio seu. Pe-
dindo-lhe que aos que com o duque vinham quizesse
escrever e encommendar sua honra para que em tem-
po d'alguma affronta e necessidade se sobreviesse,
como fracos o no leixassem.
E de ter o conde este receio e desconfiana no
era sem causa
;
porque os mais dos fidalgos da com-
panhia do duque com que refizera tanta somma de
gente, no eram de sua casa mas vinham acostados a
elle por aquella jornada somente, e no com funda-
mento de tomarem por elle armas contra o Infante
D. Pedro, mas pelo terem na corte em sua ajuda e
favor para seus negcios e requerimentos que espera-
52 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
vam fazer. E o claro conhecimento que o duque na
vspera da affronta d'isto tomou, lhe fez no esperar
o dia que para ella se aparelhava, como ao diante se
dir.
E porm o Infante D. Fernando como era de mui
pequena idade em que o sangue fervia, no somente
satisfez ao conde com cartas que ordenou sua von-
tade, mas ainda se offereceu ir em pessoa em ajuda
do duque, e assi lh'o escreveu logo e aos seus, por
lvaro de Faria, que depois foi Commendador do
Casal, cuja ida por ento no houve effeito
;
porque
as guardas que o Infante nos caminhos trazia o tomaram,
e foi a elle trazido, e tomou-lhe as cartas e as leu, e
o fez tornar para Santarm, e posto que do Infante
nem dos seus no fosse em nenhuma outra cousa mal-
tratado, elle depois de ser na corte o no apresentou
assi, antes no desbarato e destroo da sua pessoa e
de seu cavallo, que de industria fingio, se mostrou
ser de todo por mandado do Infante despojado, affir-
mando que dissera sobre tudo algumas palavras mui
contrairs s verdadeiras, e no do reprender com o
despedio de si, com que poz os teitos contra o In-
fante em maior alvoroo e perseguio
;
porque El-Rei
mandou logo riscar de seus livros o assentamento e
todalas tenas que o Infante d'elle tinha, e deffendeu
aos almoxarifes que d'hi em diante mais lh'os no
pagassem. E assi escreveu ao Infante por
Joo
Rodri-
gues Carvalho, escudeiro de sua casa, defendendo-lhe
com grande estranhamento que no tivesse ao du-
que o caminho, e o leixasse passar livremente, pois o
ia servir. Do qual recado foi o Infante mui triste, e
mostrou grande sentimento, e sobre a sem razo de
seus agravos e perseguies fallou algumas cousas ao
messageiro que pareciam de aspereza, mas no to
feias nem assi malditas, que se no podessem dizer
Chronica d'El Rei D. Afonso V 53
de um agravado servidor a um Senhor mal informa-
do. Mas
Joo
Rodrigues como tornou corte, ou de
sua no boa vontade, ou por ser dos contrairos do
Infante assi induzido, afirmou que o Infante publica-
mente dizia que no era vassallo d'El-Rei de Portu-
gal, mas sbdito e servidor d'El-Rei de Castella, e
que assi como poder desterrar d'estes reinos a rai-
nha D. Lianor, que outro tanto saberia fazer aos fi-
lhos. Com outras enormes palavras mui contrairs
s que o Infante com elle fallou, com o teor das quaes
se
fizeram logo autos, e tomaram pblicos estromen-
tos, que para mais indinarem o povo contra o Infante,
logo foram pelo reino enviados.
Aps
Joo
Rodrigues, veio ao Infante D. Pedro de
mandado do Infante D. Anrique, o Bispo de Ceuta
D. Joo,
que com quanto tinha afeio ao conde de
Ourem por ser da criao do Condestabre, era porm
homem de grande prudncia e de s e justa teno.
E como quer que apontasse ao Infante muitas causas e
razes, porque catolicamente, e segundo a obedincia
em que a El-Rei era obrigado no devia impedir a
passagem do duque. Em fim no o pde mover da
sua determinao, aprovando-a o Infante com outras
razes de honra e cavallaria, e porm taes que no
desfaziam nada de sua lealdade a El-Rei, afirmando-se
que se o duque quizesse vir em forma de pacifico e
amigo como sempre viera, que elle o receberia e lhe
faria honra e acolhimento como a irmo e amigo, se-
gundo sempre fizera, e que d'outra maneira lh'o no
havia de consentir, como por Martim Affonso lhe
mandara dizer.
E estando as cousas n'este ponto, e esperando ain-
da o Infante D. Pedro em Penella pelo Infante D. An-
rique, como lhe tinha enviado dizer, soube que elle
sem lh'o fazer saber se partira para Santarm onde
54 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
era El-Rei e sua corte, de que o Infante D. Pedro re-
cebeu muita torvao. E no sei como esta virtude de
piedade falleceu n'este Prncipe para seu irmo, pois
em seu corao todalas outras parecia que sobejavam,
de que alguns disseram que El-Rei por enfraquentar
a parte do Infante D. Pedro, o mandara chamar sa-
bendo que o queria ajudar, e outros afirmaram que
elle fingira tal chamamento por no ser com seu ir-
mo, vendo
j
sua determinao de ir contra a defesa
d'El-Rei, e por fora d'armas resistir vinda do du-
que.
E no comeo do mez d'Abril d'este anno de mil e
quatrocentos e quarenta e nove, veiu ao Infante em
Penela Ferno Gonalves de Miranda com uma gran-
de instruo d'El-Rei, cuja concluso foi rstranhar-
lhe muito algumas cousas, em especial seus ajunta-
mentos e o movimento contra o duque, mandando-
Ihe em concluso que se tornasse a Coimbra, d'onde
sem seu mandado no saisse, e leixasse o duque sem
contradio passar assi como vinha. E que se o no
fizesse, que fosse certo que logo procederia contra
elle assi rigorosa e asperamente, como tamanha des-
obedincia merecia.
A esta embaixada d'El-Rei respondeu logo o Infan-
te, justificando com largas razes seu propsito, con-
cluindo que pois sua Merc o mandava contra sua
honra e estado tornar atrz, que outro tanto devia
mandar ao duque que primeiro comeara, e que pos-
to que na priminencia das pessoas de um e do outro
havia em tudo tanta diferena, como ao mundo era
notrio, que este caso d'ambos julgasse e houvesse
por igual, e ao menos o que defendia a um, no con-
sentisse ao outro. E que pois sua Merc por ento
no tinha de gente d'armas to eminente necessidade,
mandasse que o duque passasse por sua terra em mo-
Chronica d
y
El-Rei D. Afonso
V 55
do pacifico, e com a gente de sua casa
ordenada, e
que n'esta maneira o receberia como a irmo e ami-
go, e lhe faria e mandaria fazer muita honra e bom
acolhimento, como sempre fizera, e que em outra
maneira recebendo n'isso tamanha mingoa no o ha-
via por seu servio, pela grande parte e razo que
com seu real sangue tinha e com esta resposta o
despediu.
CAPITULO C
De como o Infante D. Pedro determinou impedir a
passagem ao duque, e se percebeu e partiu para isso
E
porque o Infante D. Pedro foi avisado que o
duque no leixava de proseguir o caminho que
comeara, deu logo grande trigana sua par-
tida, e teve conselho onde e como o esperaria, e al-
guns lhe aconselhavam, que para sua justificao o
leixasse primeiro entrar em sua terra, mas o Infante
disse que a todo seu poder o duque por aquella vez
no trilharia nenhuma pequena parte da herana que
possuia, e que fora d'ella o queria esperar. Pelo qual
de Penela moveu logo com sua gente e carriagem, e
se foi Lous, e d'hi logo a uma alda sua que se
diz Villarinho, onde soube que o duque era em Cja,
couto e lugar do Bispo de Coimbra, alli concertou e
proveu o Infante sua gente, e ordenou com muita
destreza suas batalhas, dando a avanguarda a D.
Ja-
mes seu filho e com elle o conde d'Abranches, e to-
mou a reguarda em que havia de ficar.
Alli foi ao Infante dada secretamente uma carta
com letra mudada e sem signal, em que o aconselha-
vam que logo movesse contra o duque porque o no
havia d'esperar, mas o Infante publicamente disse
56 Bbliotheca de Clssicos Portuguezes
que aquillo era em favor do duque assi lanado, e
para elle manifesto engano com que o queriam fazer
algum tal desmando, de que esperando victoria ficas-
se vencido;
porque bem cria que o duque que tan-
tos annos se intitulara de filho de tal Rei, e que de
tanta e to honrada gente, para qualquer pesado fei-
to vinha to bem acompanhado, antes conhecidamen-
te receberia morte, que tornar atrs nem consentir
em tal
fraqueza, sua honra e estado tanto contra-
ria.
CAPITULO Cl
De uma
falia que o Infante D. Pedro
fez
aos seus,
estando
todos a cavallo
Ju.1
fe. o Infante aos seus estando todos a ca-
1 vallo uma comprida falia, em que pareceu
pela muita prudncia e gravidade com que a
disse, que
j
havia dias que a tinha cuidada.
Foi sua sustancia alegrar-se primeiramente no es-
foro, despejo, e segurana que em todos para sua
honra claramente via e conhecia, e que no era sem
causa; porque todolos que entre si via, poderia contar
no amor por seus filhos e netos, pois todos eram seus
criados e filhos de seus criados, e assi disse mui par-
ticularmente todolos agravos e perseguies, e desfa-
vores, que d'El-Rei por induzimento do duque e do
conde seu filho, e dos de sua valia tinha recebidos,
com os quaes justificou as causas de sua querella, pa-
ra cuja emenda e vingana ali eram vindos, e que
no cressem que n'isto entrava dio nem escndalo
que tivesse d'El-Rei D. Affonso seu Senhor
;
porque
elle como mui leal seu vassallo e servidor, o reconhe-
cia por seu verdadeiro e ligitimo Rei e Senhor, e ou-
Chronica d' El-Rei D.
Affonso
V 75
tro algum no, porque Deus sabia que elle o amava
e era razo que amasse sobre todalas cousas do mun-
do. E que na criao que em sua real pessoa fizera,
e na governana, paz e conservao de seus reinos,
que dez annos por elle regera e defendera, quem sem
paixo o quizesse consirar, acharia d'isso prova mui
autorisada, e que o agravo que tinha no era da na-
tural inclinao d'El-Rei, mas da pouca edade sua,
com que madura e perfeitamente no podia conhecer
os enganos em que contra si seus imigos o traziam, e
que a principal causa da inimizade que seus imigos con-
tra elle tinham, no fora por lhes dar pouco
;
porque
do patrimnio real com honras e ttulos muito lhes
tinha dado
;
mas porque lhe no dera todo, especial-
mente por no dar ao duque a cidade do Porto e a
villa de Guimares, que muitas vezes com outras cou-
sas da coroa mui cegamente lhe pedira, e que o acres-
centamento que em si e em seus filhos fizera, fora
somente de muito amor e grande lealdade, e com
mui verdadeiro desejo de servir, em que ao mais leal
do mundo no conheceria avantag"em
;
porque da
herana da coroa de Portugal, no falando na que
El-Rei D.
Joo
seu padre lhe dera, ainda a primeira
merc e acrescentamento seu estava por receber, e
porque seus contrairos sentiram, que sua bondade e
seu livre conselho acerca d'El-Rei, seriam para suas
cobias e acrescentamentos cousas mui suspeitas e
perjudiciaes, trabalharam de o apartar d'El-Rei e a
El-Rei do amor que lhe devia ter, e credito que lhe
devia dar, e que a vinda do duque por sua terra, e
na maneira em que vinha, no era com verdadeira
necessidade de servio d'El-Rei, mas somente pelo
abater, ou por dar causa com que El Rei mais se in-
dinasse para sua destruio
;
porque se o assi leixas-
se passar sem resistncia, seria publicar fraqueza de
68 Bbliotheca de Clssicos Portuguezes
corao com seu vituprio e abatimento, o que a
elle seria grave pena e ao duque muita gloria, se lhe
resistisse indo corte, que lh'o reputariam a desobe-
dincia e deslealdade contra El-Rei, para o mais
asinha moverem para o que tanto desejavam. E po-
rm que por ser quem era, e decender de quem de-
cendia, finalmente o no havia de consentir, e que
tanto esforo teria de morrer sobr'isso vencido com
um s page, como ento tinha esperana de viver e
vencer, vendo-se acompanhado de tantos e to bons
amigos e criados, e que por isso era escusado esfora-
los para a vingana de suas injurias com exemplos de
feitos passados, pois os via para isso to esforados,
antes se o caso viesse a rompimento como esperava,
lhes encomendava a todos mais piedade que crueza,
e com os olhos alevantados ao ceo cheios de muitas
lagrimas pedio perdo a Deus com palavras de muita
devoo, e se encomendou a elle, e Virgem Maria
sua Madre, e feito isto mandou que se armasem e
percebessem todos.
CAPITULO CII
De outra
falia que o duque tambm
fez
aos seus em
seu favor contra o Infante, e de como lvaro Pi-
res de Tvora lhe respondeu
duque de Bragana no leixou de continuar
sua viagem at duas legoas da Louz, crendo
que o Infante D. Pedro com todas suas amea-
as no ousaria de lhe resistir, nem se moveria de Pe-
nella, assi por no quebrar o mandado e defesa d'El-
Rei que para isso tinha, como pela pouca gente de
que se percebera. E porm como pelas espias que
Chronica d'El-Rei D. Afonso
V
59
trazia, soube que o Infante estava
j
em
Serpiz, que
era cTelle pouco mais de uma legoa, e vinha com de-
terminao de peleja, foi posto em muito cuidado, e
mandou alojar sua gente com aquelle resguardo e se-
guridade que para o tempo e caso cumpria, e ajuntou
logo os fidalgos e pessoas principaes de sua compa-
nhia para ter, conselho sobre o que faria, ante os quaes
disse:
Ns somos aqui to acerca do Infante como sabeis,
e
j
devemos crer que vem com determinao de por
fora nos resistir, vede qual ser melhor, ou o espe-
rarmos aqui, ou irmos adiante busca-lo, ou por evitar-
mos as mortes e danos que d'este recontro se podem
recrecer nos tornarmos atrs e seguirmos outro ca-
minho, porque aqui por agora no dar outros meios.
>
Sobre o qual houve entre elles votos desvairados, e
em fim lvaro Pires de Tvora, disse:
Senhor, a mim parece que para quem soes, e
para a determinao com que partistes, e para a gente
que levaes, seria cousa mui vergonhosa, e para vossa
honra de grande vituprio, tornarde-vos atrs nem
uma s passada
;
porque em caso que para Deos fosse
razoada encoberta, dizerdes que por escusardes mor-
tes e outros danos o fazeis, o mundo com que agora
vivemos vo-lo no ha de levar n'essa conta, mas es-
timarvo-lo-ha como razo, por grande fraqueza e
assinada judaria ; soes grande imigo do Infante e elle
vosso, e as mais palavras e dissimulaes so escusa-
das. Porque a amizade que El-Rei entre vs ambos
assentou, bem sabemos que foi uma forma falsa de
palavras de que nunca soubestes parte, e assi nunca
a guardastes; porque depois sempre em vossas cousas
vos tratastes como imigos, e vs o sabeis, e que di-
gaes que El-Rei vos manda chamar, no o Infante
to privado do entender, consiradas as cousas passa-
60 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
das e o auto em que his, que no entenda que sem
fundamento de seu mal, e de o resistir e contrariar em
sua terra, sabei que como Prncipe e como Cavalleiro
tem razo e faz o que deve, e por tanto meu conse-
lho
,
que o que elle quer fazer vs o faaes primeiro,
que ser irmo-lo buscar, e nos desponhamos ventura
que nos vier.
E este conselho aprovou o duque por melhor, e
determinou ento de o seguir. Pelo qual porque soube
que o Infante o havia d'esperar no estremo e confins
de sua terra, a que
j
estava mui chegado, foi alli
com esses principaes ver o lugar de melhor disposi-
o para a peleja, e assi partir e escolher o campo
para elles mais seguro. E des-hi volveu a seu aloja-
mento, e fez ajuntar todolos seus, e com quanto era
de pouca fala, com a contenena grave e segura lhe
fez um razoamento n'esta maneira.
CAPITULO CHI
J)'outra falia que o duque
fez
a todolos seus, em que
determinou no leixar o seu caminho
*l *l OnradoS criados e amigos, eu sou aqui vindo por
ll
I mandado d'El-Rei meu Senhor, como vos
^y
disse, e por estas suas cartas o vereis
;
levo
comvosco este publico caminho sem danificar nem
agravar algum como sabeis, e ora sou certificado que
o
Infante D. Pedro contra defesa e mandado do dito
Senhor, vem por elle com propsito de por fora m'o
impedir, e porque eu por muitas causas que todos en-
tendereis, sou em determinao de todavia seguir
avante, eu vos rogo e encomendo, que para qualquer
trabaiho e afronta que sobrevier, por servio d'El-Rei
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 61
meu Senhor e minha honra esforceis os coraes, e
desenvolvaes as mos como de vs e de vossas bon-
dades espero. E sabei certo prazendo a Deos, que a
victoria nossa sem algum vosso perigo
;
porque, a
gente do Infante pouca para a nossa, e vem cons-
trangida e cortada toda de temor
;
porque alm de
conhecerem o dano a que se despem, sabem o erro
e deslealdade que cometem, vindo contra a obedin-
cia e mandado de seu Rei e Senhor. E por isso assi
por sem duvida, que todos estes na sombra do medo,
vendo-nos logo o leixaro. E por isso eu vos enco-
mendo que no sangue d'estes no solteis vossas mos
e terro a toda a crueza, pois em fim so christos e
vassallos de El-Rei meu Senhor, e verdade innocen-
tes, ainda que tenho grande receio vinda do Infante
D. Fernando, e do conde d'Ourem meu filho que vem
detraz, e na hora do nosso ajuntamento sero com-
nosco, que por ventura nas mortes e danos d'estes
no querero ter esse resguardo, mas Deos o perdoe,
ou acoime ao Infante D. Pedro, pois causa d'isso, e
este trabalho que por mim tomaes, eu sempre vo-lo
conhecerei, e El-Rei meu Senhor tambm vo-lo deve
e por meus requerimentos e intercesso vo-lo
satisfa-
r com honras e mercs, como a bons e leaes
vassal-
los que soes ; e com isto se recolheu a seu
alojamento.
62 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO CIV
De como o conde dAbranches
f
aliou ao
Infante,
aconselhando -o que desse no duque
Infante D. Pedro que era
j
no lugar de Ser-
piz, soube logo como o duque viera vr e re-
partir o campo, e assi da falia que aos seus
fizera, e porque de um a outro no havia
j
mais de
meia legoa, o conde d' Abranches assi armado como
chegou, sem mandado do Infante se apartou com al-
guns, e foi vr o arraial do duque
;
porque da gente
e assento d'elle se informasse para o que esperava,
e em tornando lhe perguntou o Infante com mos-
trana de lhe pesar d'onde vinha, e o conde lhe res-
pondeu :
Senhor, venho de vr vossos imigos, de que pra-
zendo a Deus e ao bemaventurado S. Jorge vos eu
darei hoje se quizerdes mui boa vingana, e peo-vos
por merc que a no dilateis para mais, e hi logo dar
n'elles
;
porque na desordem e tristeza em que esto,
do
j
certos signaes de serem cortados com medo e
meio desbaratados, e no percaes to bom dia
;
por-
que
j
em vossa vida nunca havereis outro tal, e no
alongueis a vida a quem se lh'a hoje daes, sabei que
a encurtar mui cedo a vs, tendo por certo que o
duque na maneira em que se repaira e afortaleza no
quer vir avante, e ou se tornar para trs como veiu,
ou
escondido se salvar por outro caminho.
E o Infante lhe respondeu: Conde, no creaes que o
duque por filho de quem
,
e acompanhado e acon-
selhado de to bons fidalgos como com elle vem, es-
pecialmente que assaz entendido, tome nenhum
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 63
cTesses sestros que abata sua honra ; antes pois
j
de-
terminou de vir, elle vir, e ambos como Deus orde-
nar esperimentaremos nossas fortunas, e por hoje
bem que repousemos e provejamos no que nos cum-
pre, e a elles demos lugar que para taes vistas se per-
cebam sua vontade. Ao menos porque com a culpa
de nosso salteamento e trigana, no se encubram e
escusem da fraqueza e leve resistncia, que prazendo
a Deus n'elles acharemos. E praza a Deus que ou se
tornem, ou desviem por alguma maneira como dizeis;
porque com guarda de minha honra eu os no veja,
e elles possam salvar suas vidas, c em fim patrim-
nio so d'El-Rei meu Senhor, em que me sempre pe-
sar minguar e fazer estrago.
CAPITULO CV
De como o duque no quiz esperar o Infante, e se
salvou atrevessando secretamente a Serra d* Estrel-
la, e do que o Infante sob/isso disse e
fez
duqne n'aquelle dia que era sexta-feira ante
do domingo de Ramos
;
porque soube que
corredores do Infante vieram vr seu arraial,
tambm mostrou que se provia e aparelhava, como
quem determinava no desistir de seu propsito, e me-
nos negar a peleja, e segundo o pulso que sua gen-
te tomou, no achou em todos aquella fortaleza e es-
foro, que para tal afronta se requeria
;
porque como
atrs disse muitos d'elles no eram prprios seus, e
vieram somente com elle pelo acompanhar pacifica-
mente at corte, sem esperana nem aviso de tal
recontro, especialmente contra o Infante D. Pedro, a
64 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
que muitos cTaquelles tinham afeio secreta, e dese-
javam servir.
Pelo oual, o duque vendo a fraqueza d'estes, com
que no convinha meter sua vida e honra a um to
certo e to chegado perigo, ou por ventura aconse-
lhado do pouco esforo de seu corao, em que por
ento foi mui culpado, determinou em si mesmo de
no seguir adiante nem cometer o Infante, nem me-
nos o esperar. E ordenou poer-se secretamente em sal-
vo como fez, e no se quiz tornar atrz como viera
;
porque foi falsamente certificado, que as pontes e
barcas do Mondego porque passara, eram por man-
dado do Infante
j
todas quebradas e tomadas, o que
no foi. Para o qual a mesma sexta-feira ante do do-
mingo de Ramos d'este anno de mil e quatrocentos
e quarenta e nove, o duque apartou alguns seus a
que revellou o modo de sua partida, e por se escu-
sar rumor nem algum sentimento d'ella, lhes man-
dou que um e um dessimuladamente se sassem do
arraial, e elle com duas ss guias que tomou, em se
cerrando a noite se sahiu a cavallo, e se foi com elles
ajuntar, que com mui grande perigo e trabalho dos
corpos e cavallos atrevessaram a Serra d'Estrella,
que lhes jazia mo esquerda
;
porque os montes
eram grandes e frios, e a serra estava ainda com ne-
ves dobradas, de qne o duque por ser
j
mui velho
recebeu to grande padecimento que foi em ponto de
morte, e porm da grande frialdade que padeceu ain-
da lhe ficou d'alli o pescoo e a cabea baixa em
quanto viveu.
E os seus que leixou, como souberam de sua par-
tida, que foi sendo
j
grande parte da noite passada,
foram postos em grande desmaio, e cada um como
melhor
pde se apressou de o seguir no sem grande
desmando e nenhum acordo, e com perda de muitas
Chronica d'El-Bei D.
Affonso
V 65
cousas que leixavam, crendo que o Infante ou sua
gente os seguiria. E assi passaram a serra do Bao
at descerem a outra banda de meio dia contra Co-
vilh, em que pela grande aspereza dos caminhos e
as muitas neves e regelos que n'elle jaziam, os ho-
mens suportaram frios e trabalhos incomportveis, e
assi morreram e atereceram muitos cavallos e aze-
molas, de que muitas ficavam. E se perdeu muita far-
dagem que os da montanha vieram recolher. E no
cimo da serra onde dizem Albergaria, acharam mor
tas de frio algumas pessoas a que no houve remdio.
As escuitas que o Infante sobre a gente do duque
sempre trazia, no houveram sentimento de sua partida,
salve depois que o geral rumor de todos todo lh'o
certificou, que foi a tempo em que o duque
j
teria
andadas quatro ou cinco lguas. E por se mais ver-
dadeiramente afirmarem do caminho que levara, no
trouxeram ao Infante certo recado se no em ama-
nhecendo, da qual cousa sendo o Infante certificado,
mostrou receber por isso tanta gloria e alegria, como
pareceu que os seus houveram de pena e tristeza, por
o duque se ir assi livrememente e sem contenda, e al-
guns requereram ao Infante licena para ainda lhes
irem seguir o encalo, mas o Infante o no consen-
tio, antes lh'o defendeo, dizendo que os leixassem ir
embora, e que de assi ser, dava por isso muitas gra-
as a Deus.
E porm a opinio dos mais foi que o Infante er-
rara muito, tendo o duque to acerca e em to boa
disposio para o cometer, no dar n'elle e o matar
se poder; porque quanto alongou sua vida, como o
conde d' Abranches lhe disse, tanto antecipou a morte
de si mesmo como depois se seguio.
E feito isto, o Infante porque a gente que tinha
j
lhe no era necessria por ento, fez ajuntar todalas
vol. n fol.
5
66 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
pessoas principaes que hi eram, e com aquellas pala-
vras que mereciam, os que para tal servio com to
boas vontades se offereceram e disposeram, lhes deu
a todos grandes agardecimentos, e os despedio com
sinaes de muito amor e obrigao, leixando somente
os continos de sua casa, com que passado o dia de Ra-
mos se tornou a Coimbra.
CAPITULO CVI
Como o duque se
foi
a Santarm onde era El- Rei, e
do que se
fez
contra o Injante
Eo
duque como da banda de Covilh acabou de
recolher a gente que o seguio, fez logo seu ca-
minho para Santarm. Onde por aviamento do
conde seu filho, foi de toda a corte assi grandemente,
e com tanto triunfo recebido, como se o merecera por.
batalhas campaes, que co/itra imigos vencera.
E isto foi por seus aderentes assi ordenado, porque
com esta face de fingida honra encobrissem ao mundo
o envs do verdadeiro abatimento que o duque em sua
vinda tinha recebido. Porque para o propsito com
que de suas terras o duque partira, e para a muita
gente que comsigo trazia, sempre os seus na corte
afirmaram que o Infante D. Pedro por sua pouca fora
no ousaria de o cometer, nem lhe defender o cami-
nho. Dando a entender que as mostranas de resis-
tncia que o Infante fazia, eram tudo rebolarias do
conde d'Abranches, porque n'estes feitos se governa-
va. E porm assi emprimiram todo o que quizeram no
novo e molle entendimento d'El-Rei, que a injuria
d'este caso lhe faziam crer que no era do duque, mas
prpria de sua pessoa real.
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 67
E porque no conselho em que ante El- Rei esto se
praticava, o Infante D. Anrique terou um pouco em
favor do Infante seu irmo, afirmando que no con-
sentiria dizer-se, que nenhum filho d'El-Rei D.
Joo
faria injuria a seu Rei e Senhor, fez no que contra o
Infante D. Pedro ento se requeria mui grande contra-
riedade, com que muitos do conselho se foram, e fol-
garam de o ajudar, crendo que o Infante D. Anrique
clara e descubertamente a seu irmo queria
j
valer,
e alegravam-se, desejando aproveitar ao Infante D.
Pedro terem-no para isso por cabeceira, sem o qual con-
sirada bem a disposio do tempo, e pelos contrairos
serem de grande condio no ousavam. D'onde se-
gundo a opinio dos prudentes e pessoas d'autoridade,
que d'estes feitos tiveram conhecimento, se creu que
o
Infante D. Anrique n'estes dias falleceu ao Infante
D. Pedro com aquelle verdadeiro amor, favor, e ajuda
que como a irmo e amigo lhe devia
;
porque com
muito seu louvor, e sem mingoamento de sua muita
lealdade lhe poder valer, por maneira com que a El-
Rei, e a sua coroa fizera muito servio, e ao Infante
seu irmo desviara morte to crua e to abatida como
recebeu, e sua to honrada casa no cahira de todo
como cahiu, segundo adiante se dir, e porque o In-
fante D. Anrique sobre suas muitas virtudes era ?ssax
prudente e discreto, bem de crer que esta piedosa
bondade para seu irmo, muitas vezes lhe tocaria e es-
pertaria a memoria, e para o no fazer, o mais ho-
nesto e seguro seria leixar a determinao em duvida,
salvo se a causa d'isso attribuissemos a algum oculto
Juzo
Divino.
E por tanto, porque a boa vontade do Infante D.
Anrique no perseverou no favor do Infante seu ir-
mo como logo ento atentou, foi a querella do du-
que ouvida d'El-Rei, e posta e crida no mais alto en-
68
Bihliotheca de
Clssicos Portuguezes
carecimento de fealdade, que contra seu servio e es-
tado se podia cometer. Pelo qual logo El rei comeou
publicamente declarar a irosa vontade e grande indi-
nao que contra o Infante D. Pedro tinha, a que por
aviamento de sens imigos tambm ajuntava o des-
terro e morte da Rainha D. Lianor, sua madre. E por-
que no recontamento de suas afeies, desamparo e
pobreza, que at morrer passara, o caso contra o In-
fante mais s'agravasse, faziam com as Infantes irms
d'El-Rei, que eram meninas, e com os criados da Rai-
nha, que de todas as partes faziam vir, que com la-
mentaes e forosos choros as apresentassem ante
El-Rei muitas vezes, pedindo-lhe por isso do Infante
D. Pedro justia e vingana, como de culpas e crimes
j
claros e manifestos.
CAPITULO CVII
De como El-Rei declarou o Infante por desleal, e man-
dou fazer geraes percebimentos de guerra para ir
sobSelle
Enviou
logo El-Rei cartas de percebimentos de
guerra por todp o reino, com declarao de
querer por desobedincia e deslealdade do In-
fante D. Pedro ir contra elle, e assim mandou poer
outras cartas publicas de perdo geral para todolos
humiziados, que por quaesquer casos andassem fora do
reino, se n'esta ida contra o Infante o viessem servir,
e
assim se fizeram outras de ditos porque mandava
a
todalas pessoas que eram com o Infante de qualquer
estado e condico que fossem, que a certas horas sob
pena do caso maior se partissem logo d'elle, e d'estas
algumas se pozeram nas praas publicas de Santa-
Chronica d' El-Rei D. Affonso
V 69
rem, e outras haviam de ser por notrios publicadas
em Coimbra onde o Infante era, e os primeiros que
para isso foram ordenados cometeram o caminho,
mas com receio no o seguiram e se tornaram, em cujo
lugar foi logo ordenado por El-Rei e enveado a Coim-
bra Loureno Abril, seu escrivo da camar, homem
mancebo e de bom entender, e como quer que no cami-
nho fosse das guardas do Infante impedido, houve po-
rm de chegar a elle com sua licena e prazer, e tanta
pressa se deu para a destruio do Infante, que o du-
que desapareceu de seu arraial em Coja, bespora de
Ramos como atrs fica, e estes ditos chegaram ao
Infante em Coimbra bespora de Pscoa. O qual de-
pois que foi e viu as cartas que Loureno Abril so-
brosso levou, lhe disse :
Loureno Abril, dizei a El-Rei meu Senhor, que eu
s tomo e retenho em mim esta sua proviso, e que
no hei por seu servio e minha honra publicar-se
em tal tempo. No por no querer que em seus rei-
nos e fora d'elles se cumpram e obedeam inteira-
mente seus mandados
;
porque saiba que eu sou um
dos braos mais fortes que tem para lhe ajudar a man-
ter e cumprir sua vontade e justia. Mas porque estes
procedimentos so de sua ira contra mim, eu apello
d'elle contra mim agora mal informado, para elle
mesmo de mim verdadeiramente e como deve depois
bem informado
E com esta resposta, e com outras palavras a estas
conformes se tornou Loureno Abril a El-Rei, que
logo comeou de fazer merc a quem lh'a pedia dos
bens e officios dos que eram com o Infante.
70 Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO CVIII
Do que o Condestabre
filho
do Infante D. Pedro
fez,
estando entre o Tejo e Odiana
Estes
dias com todalas torvaes e necessidades do
tempo, o Condestabre filho do Infante D. Pedro
nunca lhe acodiu, e no seria assi sem seu man-
dado, antes sempre esteve na comarca d'entre Tejo e
Odiana, onde tinha o Mestrado d'Avis com suas for-
talezas, e mais os castellos das villas d'Elvas e de Mar-
vo, contra o qual fizeram tambm a El-Rei suspeita,
e que se devia segurar d'elle. Especialmente que pela
liana e amizade que o Infante seu padre com o Con-
destabre e Mestre d'Alcantara de Castella tinha feita,
podia com entrada de gentes estranhas fazer a este
reino muito dano, pelo qual acordou El-Rei de enviar
sobr'elle, que estava ento na Villa de Fronteira, D.
Sancho, conde de Odemira como fronteiro mor.
E davam fama pelo reino para mais indinao do
povo, que o Infante D. Pedro tinha ordenado com
ajuda de Castella prender El-Rei e se senhorear do
reino, e assi lanar n'elle grandes pedidos, e outras
muitas opresses se o mais tempo regera.
E sendo o Condestabre d'esto certificado, vendo
que Fronteira no tinha fora nem disposio para
n'ella manter cerco nem esperar afronta, aconselhado
sobr'isso com bons cavalleiros e pessoas d'autoridade
que comsigo tinha, se passou a Marvo, onde confian-
do na bondade e segurana da fortaleza esteve alguns
dias. E porque o conde D. Sancho todavia se fazia pres-
tes para o ir cercar, esses cavalleiros que com o Con-
destabre eram vendo-o com alguma fantesia de resis-
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V
71
tencia, a que a nobreza e esforo de seu corao o in-
clinava, consirando que no somente sua honra no
cumpria faze-lo, mas que nos feitos do Infante seu
padre podia muito danar, lhe disseram :
Senhor, estas maginaes de defenso em que vos
vemos, ou de esperardes no campo esta gente que
vem, so por agora escusadas
;
porque a defesa der-
mas e homens que tendes nada em comparao dos
que vem sobre vs, se cuidaes dar-!he praa, e tam-
bm para quem soes, e para o sangue de que descen-
deis, sabei que seria grande abatimento vosso esperar-
des cerco, quanto mais to desesperado de socorro
como sabeis que este seria, principalmente cercando-
vos pessoa de menos condio que vs e com tanto
poder a que no podesseis resistir, em especial vindo
com nome d'El-Rei nosso Senhor, a que seria feio des-
obedecer, e mais se o assim fizsseis seria em todo
desacatar ao Infante vosso padre, e no cumprir sua
vontade nem mandado, pois vos deve lembrar que a
voz e nome, e o servio d'El-Rei nosso Senhor, sobre
tudo vos encommendou e encommenda cada dia, pelo
qual nosso conselho
,
que logo vos passeis aqui a
Valena, que do Mestre d'Alcantara, em que ha es-
perana d'achardes melhor acolhimento, e leixae em
vossas fortalezas vossos alcaides com a gente que as
guardem e tenham por vs, com mandado vosso, que se
El-Rei lh'as pedir ou enviar pedir, que descarregan-
do-os de vosso preito e menagem, lh'as entreguem.
As quaes levemente tornareis a cobrar se Deus pozer
os feitos do Infante vosso padre em bem e assesego,
como a elle praza que seja;
Ao qual conselho o Condestabre obedeceu e o cum-
priu, e leixou em Marvo por alcaide um Arthur Gon-
alvez, que por mandado d'El-Rei entregou a forta-
leza. E o Condestabre se passou a Valena, onde por
72 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
principio de suas fortunas comeou logo d'espremen-
mentar as grande malcias e sobeja ingratido do Mes-
tre d'Alcantara, que em tudo contrariou, e com nada
lhe respondeu muita honra e merc, favor e am-
paro, que em suas grandes necessidades passadas do
Infante D. Pedro poucos dias havia que recebera, como
atrs fica.
CAPITULO CIX
De uma carta que a Rainha enviou ao Infante D. Pe-
dro seu padre, sobre um conselho que acerca d'elle
se tivera para sua morte ou destruio, e do conse-
lho e determinao que o Infante
sobr^ella teve
Evolvendo
o processo ao Infante D. Pedro, es-
tando elle em Coimbra no sem mortaes pa-
decimentos, pela incertido que tinha do fim que
sua vida e feitos haveriam, foi-lhe dada uma carta da
Rainha sua filha, por Vicente Martins seu secretario,
porque lhe notificava, que em um conselho que so-
bre seus feitos ento se tivera, fora contra elle deter-
minado que El-Rei o fosse cercar, e que dando-se ou
tomando-se por fora, houvesse por pena de suas cul-
pas uma de trs cousas. Ou morto, ou crcere per-
petuo, ou desterro para sempre fora do reino, para
execuo do qual El-Rei partiria contra elle aos cinco
dias de Maios. E bem de crer que a Rainha lhe
no enviaria esta carta sem espresso consentimento e
mandado d'El-Rei, cujo bem e amor ella teve sempre
em tanta estima, que pelo conservar e no perder nem
minguar como mui virtuosa que era, nunca nos feitos
do Infante seu padre contra o gosto e contentamento
d'El-Rei se quiz entremeter. Esta carta foi dada pu-
blicamente ao Infante, que depois de sem alguma mu-
Chronica d
1
El Rei D. Ajfonso
V 73
dana nem torvao a lr, com quanto n'ella viu quee.
morte comeava
j
de bater s portas de sua vida, elle
a cerrou em sua mo e com a cara segura, e mais ale-
gre que triste, esteve um pedao perguntando ao mes-
segeiro por novas da sade e ba disposio d'El-Rei
seu Senhor, e por as cousas em que se desenfadava, e
porque as respostas redundavam todas em louvores e
perfeies d'El-Rei, o Infante mostrava por isso to-
mar muita gloria sem alguma mestura da mortal pena
que
j
recebera e tinha. E com este despejo se assen-
tou a comer, e depois de acabar se recolheu a sua
camar, onde fez logo vir esses principaes que com
elle eram, perante os quaes mandou lr a carta que
tinha, e como a sustancia d'ella era
j
espantoso pre-
go da ira d'El-Rei, ficaram todos mui torvados, mais
e menos segundo a bondade e esforo do corao que
cada um tinha. E o Infante no dissimulando
j
sua
infinda paixo e tristeza, com as mos e braos aber-
tos alevantou os olhos ao ceo cheios d'agoa
;
porque
nos taes casos quando fallava assi o tinha por condi-
o natural. E disse logo :
D'estes agravos e perseguies em que justia,
razo, nem humanidade no consente, eu primeira-
mente me queixo a Deos como a s e principal Senhor
de todalas cousas, e depois Real casa de Portugal
em que nasci e me criei, e a que at agora bem e
lealmente sempre servi. E assim casa d Inglaterra
em que de sangue tanta parte tenho, e finalmente me
agravo a vs meus criados, amigos e servidores como
a participadores d'esta minha desaventurada fortuna,
aos quaes como a companheiros de meus conselhos e
perigos, direi em breve n'este caso minha teno, que
tomar por melhor, mais honra e mais descano para
mim a derradeira parte d'esta determinao que a
morte
;
porque das outras de que uma ser desterra-
74 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
do, Deos nunca queira que- eu filho ligitimo d'El-Rei
D. Joo,
que com tanta honra uma vez sahi de seus
reinos, fazendo a muitos em muitas provncias e se-
nhorios estranhos grandes graas e mercs, haja d'an-
dar sobre minha velhice por reinos e terras alheias,
pedindo esmolas com muito trabalho e grande des-
honra minha. Pois da outra que ser preso, e que so-
bre cincoente e sete annos que hei haja de consentir
ferros de justia em minha carne, no sei a quem no
parea ser muito menos mal morrer, e este por mais
bem e maior honra escolho para mim, como disse.
Mas porque at agora em todas minhas cousas e alheias
que tratei sempre, me prouve ser bem aconselhado,
n'esta que me parece ser a derradeira, o devo e que-
ria ser melhor. E por isso vos rogo e encomendo, que
esguardadas bem todalas circumstancias d'esta fortu-
na, e a callidade e priminencia da minha pessoa, quei-
raes sobre tudo consirar, e cada um de manh me di-
zer seu parecer, lembrando-lhe que meus imigos se-
gundo esta nova determinao devem logo vir sobre
mim, e partir de l a cinco dias de Maio. E que diga
meus imigos, nunca por amor de mim, e por segu-
rana de minha limpeza entendaes que o digo por El-
Rei meu Senhor, nem que o meto n'esse conto. Por-
que em caso que sua merc venha com mostrana de
ira sobre mim, sempre crerei que seu corpo vir com
enganos de meus imigos forado, a que sua nova edade
no sabe nem pde resistir, mas que sua vontade sem-
pre para mim e minha honra ficar livre e s, como
se espera de Prncipe bom e agardecido como elle .
E porm meu primeiro movimento n'esse mesmo
dia partir d'aqui, e os ir buscar e esperar no campo,
c pedir a Deos e a El-Rei meu Senhor justia e vin-
gana d'elles, como de qnem to sem razo tanto
damno e perda me tem feito. E quando se por meus
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V
75
peccados assi no seguir, contentar-me hei acabar como
cavalleiro. E porm d'agora para em todo tempo e
sempre protesto, que seja com verdadeiro nome de
bom e leal vassalo, e servidor d'El-Rei meu Senhor.
CAPITULO CX
Dos conselhos desvairados que ao Infante sobre sua
proposio foram
dados
JCl
o outro dia foram todos juntos, e leixando al-
1 guns apontamentos que alguns n'este caso fize-
ram, finalmente no conselho houve trs con-
cluses sustanciaes e em si desvairadas, e para cada
uma no falleceram estas vozes. A primeira foi do
doutor lvaro Affonso, homem assaz prudente e bom
jurista, em que depois de muitas palavras sumaria-
mente concludio que o Infante como cavalleiro, e
principalmente como catholico e bom christo que
era, no devia por si ir buscar a morte, mas antes es-
pera-la, em que havia muitas esperanas de vida, e
quando sem razo lh'a quizessem dar, que com gran-
de fortaleza d'animo devia de defender sua vida e
honra, para que allegou muitos direitos e trouxe mui
autorizados exemplos, e que elle por mor resguardo
de sua lealdade e mais segurana de sua pessoa, se
devia fortalezar em Coimbra, e bastecer e prover der-
mas e gentes os castellos de Monte Mr o Velho e
de Penella, e aguardar El-Rei, ainda que com todo
seu poder o quizesse cercar, e que sendo a cidade to
forte, e tendo elle tanta e to boa gente comsigo, El-
Rei por fora o no poderia logo tomar, e que para
lhe poer cerco prolongado, ou leixar sobre elle fron-
teiros, no havia disposio nem possibilidade para
76 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
isso, e que com Monte Mr teria tambm a Foz de
Buarcos, que em suas afrontas se sobreviessem, sem-
pre seriam portas abertas para sua salvao, e que
por esta maneira no encurtaria como desesperado
sua vida, e como prudente alongaria o tempo, queem-
fim por sua condio tudo com honra remediaria, es-
pecialmente que El-Rei assi como crescesse nos dias,
assi iria crescendo e esforando seu juizo, com que
entenderia os enganos em que o traziam, a que sua
nova idade por ento no alcanava, quanto mais que
a Rainha sua filha estava em esperana de emprenhar,
e com a gerao que Deus lhe daria, El Rei se acha-
ria mais obrigado para o amar e honrar, e ella teria
mr atrevimento de em seus feitos o requerer. E que
o povo que com malcias alheias andava emnevoado,
cansaria e amansaria de seus alvoroos, e que em fim
por partido sempre lhe fariam o que elle quizesse, pois
com isso claramente parecia elle com medo da ira de
El-Rei, e por necessidade se defender, e no com von-
tade de o desservir nem desobedecer, pois todos sa-
biam que elle o tinha e amava por seu verdadeiro
Rei e Senhor. >
E com este voto e parecer se foram D. Fadrique,
Martim de Tvora, Aires Gomes da Silva,
Joo
Cor-
ra,
Joo
de Lisboa, secretario, e Diogo Affonso, e
Pedro de Tayde, Dayo de Coimbra, que eram todos
pessoas de bom entender, esforo, e autoridade.
Eram outrosi com o Infante n'estes conselhos Luiz
d'Azevedo, e Lopo d'Azevedo, irmos, e Martim Coe-
lho, e Pro Coelho, tambm irmos, os quaes por se-
rem entre si por casamentos liados seguiram todos ou-
tro acordo, dizendo que o Infante por maneira algu-
ma no devia esperar cerco, c no era honra, ao
menos por respeito da Garrotea que tinha, nem pro-
veito nem segurana, mas que leixasse suas villas e
Chronica d'El Rei D.
Affonso
V 77
fortalezas em bom recado, e que com a outra sua gente
se saisse de Coimbra, e passasse o Douro, onde n'aquel-
las comarcas teria a gente das terras de Lopo d'Aze-
vedo, e de Martim Coelho, e Ruy da Cunha, e doi-
res Gomez, e d'outros muitos, com que seguraria sua
pessoa e d'aquelles que o seguissem, e que d'alli po-
deria tornar Beira, e passar-se a riba do Diana, e
andar pelas terras do Condestabre seu filho
;
porque
El-Rei o no podia tanto seguir, que no andasse sem-
pre diante, ou desviado a seu salvo, aconselhando com
isto que no somente trouxessem a voz e nome d'El-
Rei seu Senhor, mas muito mais as vontades para o
bem e lealmente servir, e com a necessidade e fadiga
que os do reino todo por isso receberiam, conhecendo
a sem razo de suas perseguies, ousariam dizer a
El Rei a verdade e as falsidades com que seus imigos
o moviam contra elle, de que se seguinia que ou o lei-
xariam livremente, ou lhe fariam tal partido de que
fosse contente.
E com isto apontaram outras minguas, trabalhos,
despesas e pecados, que o cerco por sua condio tra-
zia comsigo, pelos quaes o devia fugir e avorrecer.
>
O conde d' Abranches tomou s outra. concluso, s
dos outros que apontei em todo contrair, allegando
e tocando com largas palavras, muitas causas, razes
e exemplos de Prncipes passados
,
porque no devia
esperar cerco, e outras tantas para no dever andar
pelo reino, especialmente com to pouca gente, que
muitas partes pela estreiteza dos passos, e pelo gran-
de poder d'El-Rei, se podia atalhar e acolher no meio
com muita deshonra sua, e assinado perigo seu e dos
seus. E concludio com a teno do Infante que foi
antes morrer grande e honrado, que viver pequeno
e deshonrado, e que para isso vestissem todos os cor-
pos de suas armas, e os coraes armassem principal-
78 Bibliotheca de Clssicos P.ortuguezes
mente de muita fortaleza, e que se fossem caminho de
Santarm, no como gente sem regra desesperada nem
desleal, mas como homens d'acordo, e que iam sob a
governana e mando de um tal Prncipe e tal capito,
que a El-Rei seu Senhor sobre todos era mais leal e
servidor mais verdadeiro, e que mandasse a El-Rei pe-
dir e requerer, que com justia o ouvisse com seus
imigos, que lhe to sem causa tanto mal ordenavam,
ou lhe desse com elles campo, em que de suas falsi-
dades e enganos, elle por sua limpeza e lealdade faria
que se conhecessem e desdissessem. E quando El-Rei
alguma d'estas cousas no houvesse por bem, e toda-
via quizesse vir sobre elle, que ento defendendo-se
morressem no campo como bons homens e esforados
cavalleiros.
CAPITULO CXI
De como o Infante se teve ao conselho do conde dAbran-
ches, que
foi
morrer
Eo
Infante depois de todos ouvir com muito
tento e repouso, e lhes dar por seus conselhos
muito louvor e grandes aguardecimentos, final-
mente se teve com o conde d'Abranches, que seguiu
sua primeira deliberao, e determinou quando me-
lhor no podesse ser, de morrer no campo, requeren-
do e bradando a El-Rei por sua justia. E para ella
se comeou logo de perceber, e tanta foi a fortaleza
e segurana do Infante, que n'estes dias com quanto
de cousas to rduas, e to chegadas morte se tra-
tava, nunca por isso leixou de ir caa e ao monte,
e ter seraus e festas com sua mulher e donzellas, assi
como no tempo de mais assessego e de maior prospe-
ridade que nunca tivera.
Chronica d'El-Rei D. Afonso V 79
CAPITULO CXII
Como o Infante D. Pedro e o conde d!Abranches con-
sagraram ambos de morrer um quando o outro
morresse
E
passados alguns dias depois d'estes conselhos,
o Infante no se esfriando em seu propsito,
apartou s em uma camar o conde d'Abran-
ches, e lhe disse :
Conde, sabei que eu sinto
j
minha alma avorre-
cida de viver n'este corpo, como desejosa de se sair de
suas paixes e tristezas, e consirados os feios comba-
tes que minha vida, honra e estado cada dia recebem,
com esperana de no minguarem, mas cada vez cres-
cerem mais, certo se as cousas n'esta viagem me no
sobcedem como eu desejo, e seria razo, eu todavia
determino morrer e acabar inteiro, e no em peda-
os, e como quer que tenho outros bons criados e
servidores, que por suas bondades folgariam e no se
escusariam de morrer comigo, porm em vs sobre
todos tomei esta confiana, assi pela irmandade que
comigo merecestes ter na santa e honrada Ordem da
Garrotea em que somos confrades, como por criao
que vos fiz, e principalmente pela certido que de
vossa bondade e esforo tenho ha muito conhecido, e
por tanto quero saber de vs, se no dia que d'este
mundo me partir, querereis tambm ser meu compa-
nheiro, e com isso lembre-vos para satisfazerdes aos
primores de vossa honra, que sendo vs to conhe-
cidamente meu criado e servidor, e to publico imi-
go do conde d'Ourem e Arcebispo de Lisboa, depois
de minha morte no podeis ter vida, salvo reservada
80 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
para com mos d'algozes a perderdes em lugares vis,
e com preges deshonrados.>
Senhor, respondeu o conde, para caso de tamanho
contentamento, como foi sempre e para mim viver
e morrer por vosso servio, muitas palavras nem os
encarecimentos no so necessrios, eu vos tenho
muito em merc escolherdes-me para tal servio, e eu
sou muito contente ter-vos essa companhia na morte,
assi como vo-la tive na vida, e se Deus ordenar que
d'este mundo vossa alma se parta, sede certo que a
minha seguir logo a vossa, e se as almas no outro
mundo podem receber servio umas das outras, a mi-
nha n'esse dia ir acompanhar e servir para sempre
a vossa.
E para mr confirmao d'este propsito o Infante
mandou logo chamar o doulor lvaro Affonso, que
era clrigo de missa, perante quem relatou a concr-
dia em que elle e o conde estavam, sobre a qual dis-
se que lhe desse logo o santo sacramento, e o doutor
depois de lhe fazer seus requerimentos e protestaes
para o no receberem (como a elle por sacerdote e
por letrado em tal caso cumpria) elle lh'o deu, e elles
o receberam com sinaes de muita devoo e contri-
o, afirmando ambos e cada um que como fieis
christos a Deus, e leaes vassallos a El Rei o rece-
biam, e por taes protestavam morrer quando mor-
ressem, e que seu fundamento no era offender, mas
defender com razo e justia a pessoa e honra do In-
fante. O qual derribando-se no cho scbre seu peito,
com os olhos cheios de lagrimas e com grande fer-
vor de contrio se feria e acusava de seus pecados,
e sobre a comunho tornaram a firmar solenemente
seus prometimentos, cujo segredo o Infante enco-
mendou muito ao doutor, de quem depois se houve
e
sta certido.
Chronica d'El- Rei D.
Affonso
V 81
CAPITULO CXIII
Como a Rainha houve d'El-Rei que perdoaria ao In-
fante
seu padre se elle lhe pedisse perdo, e assi Ih''
o
escreveu, e a causa porque no houve
effeito
\?)
endO e ouvindo a Rainha em Santarm tantos
jC
alardos e ajuntamentos de gentes com tantos
alvoroos e percebimentos para destruio e
morte do Infante seu padre; porque n'ella se encer-
ravam
em grande perfeio todalas outras virtudes,
esta de amor e piedade para elle tambm lhe no fal-
leceu, e assi porque esta natural divida de sangue sem-
pre a
espertava por seu remdio, com vivas lembran-
as de
muita dr e grande compaixo, como tambm
porque de sua innocencia d'elle era mui certificada, se
ps um dia ante El-Rei em giolhos, e com persevera-
das lagrimas lhe disse
:
Senhor, cesset ja?n nanus tua, e pois minha des-
aventura quer que na destruio do Infante meu se-
nhor e padre damnem as falsas culpas mais, do que
aproveitam seus merecimentos, nem o grande e ver-
dadeiro amor que vos tenho, peo-vos por merc, que
ao menos como Prncipe agardecido, vos lembre as obri-
gaes em que por sua to alta criao, e por outros
muitos seus servios lhe soes, cuja paga devia ser ou-
tra, e no esta morte e destruio to deshonrada, e
com isso para alguma mais temperana de tamanha
ira tambm vos no esquea que vos pode nosso Se-
nhor dar de mim filhos que sero vossos ramos, cujas
raizes para sua mais honra e louvor deveis desejar e
procurar que sejam antes limpas e ss, que magoadas
e sujas como ordenaes.
VOL. II
FOL. 6
82
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
E EI-Rei como era de mui perfeita humanidade,
allevantando-a do cho com grande acatamento, lhe
respondeu
:
tSenhora, de todo o que me dizeis eu sou em mui
inteiro conhecimento, mas como quereis que nas cou-
sas do Infante vosso padre eu me faa brando, sendo
elle em sua contumcia e para minha obedincia to
duro, de que se no quer conhecer nem arrepender,
antes cada vez o mais continuar. Mandei lhe muitas
vezes requerer minhas armas, no m'as quiz entregar,
outras tantas lhe encomendei e mandei que no impe-
disse o duque, que por meu mandado vinha a meu
servio, e por me desservir e anojar foi-lhe ter o ca-
minho com outras muitas desobedincias, de que eu a
elle nem ao Infante meu irmo no relevaria sem justo
castigo. Porm pelo vosso amor principalmente, e por-
que n'isso sintaes o bem que vos quero, se o Infante
vosso padre como quem errou me quizer mandar
pedir perdo, eu me haverei com elle por outra me-
lhor maneira d
p
que sejaes contentei.
A Rainha lh'o teve muito em merc, e d'El-Rei
houve logo licena para o assi escrever como escre-
veo ao Infante, o oual vendo a carta, porque acerca
d'ella no deliberasse nada sem conselho, depois de
aquelles principaes com que suas cousas consultava
serem juntos e verem a carta, todos sem contradio
concordaram ser bem e honesto que o Infante satisfi-
zesse com o perdo a EI-Rei na forma que elle que-
ria, pois em nada lhe perjudicava, c parecia deseja-lo
assi EI-Rei para defesa sua, contra aquelles que para
o contrairo o indinavam. E porm o Infante lastiman-
do-se muito dos agravos e desfavores d'El Rei, e con-
fiando muito em sua innocencia recusava muito de o
fazer, afirmando-se que to novo meio, segundo as
cousas estavam no era com fundamento de seu bem,
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 83
mas que El -Rei com astcia de seus imigos lhe lan-
ava esta cilada de mal, para que n'ella o tomassem
como perdo, nascido e causado da confisso de suas
culpas e crimes que elle no tinha, com que ao mundo
justificassem depois os males passados que lhe orde-
naram, e corassem os que ao diante lhe queriam fa-
zer. E que por isso antes queria morrer em que rece-
beria muitos benefcios; porque acabaria inteiro In-
fante duque de Coimbra, e em sua vida no veria a
outrem possuir nada do seu, nem elle como desaven-
turado seria constrangido andar por terras estranhas
pedindo o alheio. E que em. fim no lhe tirariam, que
a todolos bons que pelos tempos fossem no pesassem
de sua morte, a qual segundo sua vida era trabalhosa,
esperava que fosse grande descanso
j
para si mesmo,
e certa segurana da vida da Rainha sua filha. Com
outras muitas e boas razes com que se escusava
;
e
em fim vencido d'outras tantas e melhores, com que
seus conselheiros como a cavaleiro e christo o acon-
selharam e requereram, prouve-lhe pedir como pediu a
El-Rei o perdo por escripto, na forma que a todos
bem pareceu, e com que El-Rei se devesse satisfazer, e
tambm respondeu Rainha, apontando-lhe largamente
algumas cousas com que sua segurana devia ser acau-
telada.
E tendo
j
El-Rei recebido sua carta, mostrou se
com ella suspenso como arrependido do que tinha ou-
torgado, e porque na carta da Rainha que lhe ella
mostrou, entre outras eram umas palavras do Infante
que diziam e isto Senhora fao eu mais por vos com-
prazer e fazer mandado, que por me parecer razo que
o eu assi faa, El-Rei tomou d'ellas achaque para o
no cumprir, e rompeu logo a carta do perdo que o
Infante lhe mandara, dizendo que pois aquelle arre-
pendimento era fingido e no de vontade, que no
84
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
queria desistir do que contra elle tinha comeado, e
assi o fez, do que o Infante foi logo avisado. Porm
o que d'esta mudana e nova sanha d'El-Rei, verda-
deiramente se pde entender, foi se a vontade d'El-
Rei estivera de todo firme e s para o Infante, que as
palavras da carta da Rainha na forma em que vinham
lh'a no revolveram nem danaram contra elle, mas El-
Rei tinha
j
um dio calejado ao Infante, e mais pe-
jou-se por moo em que o espirito da honra
j
se le-
vantava, de parecer o que lhe
j
diziam, que se sob-
jugava Rainha mais do que era razo e ao Estado
de um tamanho Prncipe cumpria, e para no cum-
prir o que prometera, tomou aquelle que foi mais
achaque que causa verdadeira,
CAPITULO CXIV
Como os imigos do Infante D. Pedro "procuravam
haver antes dio que amor nem
afeio
entre El-
Rei e a Rainha sua mulher
V^/orque os contrairos do Infante, vendo que a
Rainha era
j
para elle a s esperana e re-
J
mdio de sua salvao, e que por suas perfei-
^es corporaes e muitas bondades, El-Rei lhe tinha
e teria cada vez mr afeio, com que a ella e a sua
vontade se daria mais, trabalhavam por todalas ma-
neiras de o apartarem d'ella, conselhando-lhe que
fosse muitas vezes caa e montes, dizendo-lhe que
a conversao continua de sua mulher em tal idade,
no somente era mui contrair sua sade, mas ainda
mingoa e grande quebra das foras do corpo e do en-
tendimento, e que ficaria afiminado e no dino nem
poderoso para soster o peso do Regimento e defen-
Chronica d'El-Rei D. Afonso V
85
so de seus reinos. E na capella e guarda roupa no
falleciam incitadores e ministros d'esta opinio, con-
vocando para isso mesmo fysicos, que para seu prop-
sito tinham bem ensaiados, que com livros e autori-
dades logo assi o provavam.
E taes conselheiros havia d'estes, que reprovavam
o ajuntamento do santo e legitimo matrimonio d'El-
Rei com a Rainha, que eram pblicos adulteres e des-
honestos concubinarios, jazendo como infernaes em
mui continuo e reprovado coito.
E porque este caminho no sobcedia de todo sua
vontade, cometeram outro mui errado e muito para
reprender; porque fizeram n'estes dias prender D. l-
varo de Castro, camareiro mr d'El-Rei, que depois
foi conde de Monsanto, assacando-lhe falsamente que
dizia amores Rainha, por tal que da pena de morte
ou desterro que elle por tal caso merecia nascesse in-
fmia Rainha com que a El-Rei de todo avorrecesse.
Mas o imigo da perdio que n'estes feitos andava por
medianeiro, no pde tanto danar, que mais no re-
medeasse o verdadeiro conhecimento que El-Rei tinha
das muitas e limpas bondades da Rainha, e da grande
lealdade do conde, com que o logo soltou e depois
muito honrou e acrescentou.
CAPITULO CXV
De um cumprimento que o Infante D. Pedro acerca de
sua innocencia por meio de religiosos
fez
com El Rei
Eo
Infante D. Pedro por muitas esmolas e bem-
feitorias que aos mosteiros e casas d'< rao sem-
pre fazia, era dos religiosos d'ellas sempre em
suas oraes e devoes muito encommendado a Deos,
86 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
em especial n'este tempo de sua tanta afflio, os quaes
sabendo a determinao errada e perigosa em que o
Infante estava de partir, recorreram muitos a elle, e
como officiaes da alma o amoestavam, e lhe reque-
riam da parte de Deos aquellas cousas de que sua
maior segurana e salv
r
ao se podia seguir, e princi-
palmente que no partisse nem fizesse de si alguma
mudana, e antes esperasse a fortuna, que acometer.
E ao Infante crendo que o conselho dos taes pode-
ria vir da vontade de Deos, prouve obedecer-lhe, e
quiz finalmente poer seus feitos em suas mos, e d'el-
les apartou um Frei Anto, prior do mosteiro de
Aveiro, e outro Frei Dinis que depois foi confessor
d'El-Rei, pessoas de grande doutrina e mui santa vida,
aos quaes disse os fundamentos que o moviam a sua
partida, e as razes que lhe contrariavam esperar cerco,
e menos andar como fugido pelo reino, e assi as inju-
rias e sem razes que d'EI Rei por induzimento de
seus imigos tinha por extenso recebidas. Porm que
lhes parecesse que isto podiam remediar, que elle so-
breseria em sua partida, e por maior cumprimento
com El-Rei e-mais sua limpeza faria o que elles orde-
nassem, e que para firme segurana de manter sem-
pre o que prometia, e que se fizesse d'elle justia se
a merecesse, que ante de ser ouvido lhe prazia mais
que todos seus filhos fossem entregues em poder d'El-
Rei.
Estes religiosos vendo tanta justificao, esfora-
ram-se acabar esta concrdia, crendo que no podia
ser homem to sem juizo, e to fora de humanidade
que a denegasse, e acordaram que com isto Frei An-
to por mais secreto fosse s a El-Rei, o qual partiu
logo com inteira crena e instruo do Infante, dando
graas a Deos por elle se someter a tanta razo, com
a qual esperava tudo acabar a servio de Deos, e d'El-
Chronica d'El Rei D.
Affonso
V 87
Rei, e bem de seus reinos e vassallos, mas este padre
por muito que apressou sua ida,
j
diante achou o imi-
go da razo e os contrairos do Infante, com que no
pde nem ousou dar a El-Rei as cartas do Infante, e
muito menos lhe talar; porque os imigos do Infante
de que El Rei em todolos lugares e todalas horas era
cercado, como sentiram que um religioso de tanta au-
toridade, que em tal tempo ia de mandado do Infante,
no podia se no levar cousas de muita concrdia
e
concluso, de que lhes muito pesava, no somente o
impediram e ameaaram para mais alli no estar, mas
ainda lhe defenderam que no tornasse com a resposta
ao Infante, pelo qual se foi triste e mui espantado para
o mosteiro de Bemfica, d'onde avisou de todo o In-
fante.
CAPITULO CXVI
Como El-Rei no tinha 'possibilidade de ir sobre o In-
fante como proposera, e como a partida do
Infante
de Coimbra
foi
causa da sua morte
Bl-rei
no sabendo da determinao do Infante,
que era partir de Coimbra, fazia fundamento
cerca-lo n'ella, o que pela muita gente que cres-
ceu e pelos mantimentos, e assi outras provises que
se no podiam haver ; e menos tantas bestas, bois,
e carros para as armas, artilherias e carriagem, que
para tal certo eram necessrios, parecia mui dificul-
toso ou impossvel faze-lo. Pelo qual muitos entendi-
dos se afirmaram, consirado o pouco provimento que
El-Rei tinha, e o muito que para tal empreza lhe era
necessrio que no poder haver, se o Infante no
sahira de Coimbra, que El-Rei por aquelle anno no
poder cerca lo, e que o mais de dano que lhe pode-
88
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
ra fazer fora comete-lo de passagem, o que ao Infan-
te segundo estava percebido, trouxera mais honra
que dano nem perigo.
Porm foi logo El-Rei certificado por um Louren-
o Affonso, procurador de Coimbra, que o Infante
se despunha a partir, e queria vir a Santarm, afean-
do o mais que pde sua teno, de que o duque e o
conde seu filho, como principaes da empresa foram
mui alegres
;
porque viram chegar-se o effeito de sua
esperana e desejo, que era a morte do Infante, cuja
dilao a elles poderia trazer perda e perigo. Pelo
qual El-Rei acordou de sobre ser at saber da certa
determio do Infante, e ento mandou poer frontei-
ros nos castelos d'arredor de Coimbra, receando que
o Infante queria por ventura guerrear o reino, e an-
dar por elle como lhe fora aconselhado, e foi Diogo da
Cunha a Thomar, e D. Duarte de Menezes a Pom-
bal, e o proto-notario Berredo a Leiria, e assi outros
a outros lugares.
O Infante dava grande pressa sua partida, por-
que no passasse de cinco dias de Maio que tinha
posto
;
porque n'esse dia fora certificado que El-Rei
movia contra elle como se disse, e porm de dinheiro
por suas muitas despesas tinha grande necessidade,
de que por emprstimos dos seus criados e servido-
res se proveu em alguma rftaneira. E porque a moeda
fallecia e no se podia haver, era conselhado para
trato e servio da gente, que da prata lavrada que
tinha se fizessem uns quadrantes, da lei e peso de
leaes que era ento moeda do reino, e que sem mais
outra letra nem figura valessem o preo d'elles. O que
o Infante no quiz consentir, antes o defendeu estrei-
tamente, e d'isto o reprenderam depois que se inti-
tulara de Rei, e mandara fazer moeda e justia, o que
foi assacado mas no verdadeiro.
Chronica d'El-Rei D. Afonso V 89
CAPITULO CXVII
Como o Infante D. Pedro partiu de Coimbra, e como
seguiu seu caminho at Rio Maior, e do conselho
que hi teve
W-,
endo o Infante prestes para cumprir sua opi-
1 Ul nio, fez a um domingo que eram cinco dias
/^"^
de Maio partir diante com sua gente ordena-
da D. James
seu filho, que foi dormir no campo logo
acerca de Coimbra, e essa noite ficou o Infante na
cidade em que com grande mostrana de muita ale-
gria mandou danar, e fazer festas como sohia. E
depois de ter suas cousas providas se foi S, e a
Santa Cruz, e a Santa Clara por serem casas em que
tinha singular devoo, e alli com sinaes de bom
christo se encomendou a Deus, e com a cara alegre
e mui descarregada se despediu de sua mulher, e dos
que com ella ficaram, e foi com toda sua gente dor-
mir ao lugar da gua, que cabea da comenda mr
de Christus, onde seriam com elle at mil homens de
cavallo, e cinco mil de
p,
com muita carriagem de
bois e bestas.
Com o Infante alm d'outros muitos e bons caval-
leiros e escudeiros, eram estas pessoas principaes :
D. James seu filho, o conde d'Abranches, Aires Go-
mez da Silva, e seus filhos
Joo
da Silva e Ferno
Tellez, Ruy da Cunha, Gonallo d'Ataide, Pro de
Lemos, Luiz d'Azevedo, e Lopo d'Azevedo irmos,
e Martim Coelho, e Pedro Coelho irmos, e Pro de
d'Atayde, e
Joo
Corra, e Ferno Corra, Ferno
d'Alvarez da Maya,
Joo
Peixoto, e Lopo Peixoto ir-
mos.
90 Biblotheca de Clssicos Portuguezes
E no arrayal do Infante se levantaram duas bandei-
ras, uma sua, e outra de seu filho, e em ambas iam de
uma parte umas letras que diziam Lealdade, e da ou-
tra Justia e Vingana.
E ao outro dia ante que o Infante abalasse, fez
ajuntar sua gente, que repartiu em capitanias, e a to-
dos fez uma fala, cuja sustancia foi saniar a boa ten-
o e limpeza de sua vida aque somente era como leal
servidor d'El-Rei seu Senhor, ir pedir e conseguir ante
elle justia. E assi em defender com razes de leal
portugus, que se no fizessem males nem roubos, e
que pagassem bem os mantimentos e cousas que to-
massem. E sobre tudo encomendou aos capites o cas-
tigo, ps, e assessego de sua gente, e principalmente
que se no escandalizassem nem alevantassem por cou-
sas
que ouvissem, em caso que parecessem contradi-
zer a suas bondades e muita lealdade.
E assi foi o Infante fazendo com muito resguardo
suas jornadas at o mosteiro da Batalha, onde o ve-
dor da obra d'elle que fora sollergio d'El-Rei D.
Joo
seu padre quiz com armas e artelharias poer o mos-
teiro em resistncia e defesa contra elle, mas os fra-
des lh'o no consentiram, e abrindo as portas manda-
ram dizer ao Infante que o receberiam na forma e com
as
cerimonias que elle ordenasse, mas o Infante no
quiz que fosse salvo como sempre fora, encomendan-
do-lhe que na procisso com qne a elle viessem, como
de costume tinham, cantassem devotamente por elle
o
salmo que comea.
Qui habitat in adjutorio altissimi in protectione Dei
celi commorabitur
Mello d'Azevedo
CHRONICA
DE
EL-REI D. FMSO 1/
POR
Ruy de Pina.
VOL. III
^o^
ESCRIPTRIO
I47=RUA DOS RETROZEIROS=I47
LISBOA
I902
CAPITULO
CXLI
De como se
fez em
Alcacere
a
coiraa
para
defenso
e segurana
da
villa,
e como
D.
Duarte,
capito
se
houvera
de
perder
EL-rei
entendeu
logo
no
fazimento
da
coiraa
d
Alcacere
por
cuja
mingua
quando
tornou
so-
br ella
de
Ceuta
a no
pde
soccorrer
nem
bas-
tecer
como
quizera
;
porque
era
mais
afastada
do
mar
do que
cumpria
para
navios
sem
empedimento
e con-
tradio
dos
de
fora
a
poderem
prover.
E tanta
or-
dem
e
d.hgencia
se
poz
n^isso
acerca
da
pedra
canta-
rta
e cal,
e
madeira,
e
officiaes,
e
cousas
a ella
ne-
cessrias,
e
assi
a
gente
de
guarnio
que
tudo
de-
endesse,
que
com
tudo
prestes
e enviado
a
Alcacere
a dita
coiraa
se
comeou
logo
segunda-feira
d
Ramos
xxii
dias
de
Maro
do
anno
de
mil
e
quatro-
centos
c.ncoenta
e
nove.
Na
qual
obra
D.
Duarte
de
noite
e de
dia,
para
bom
exemplo
de
todos
assi
'ser-
Ti
andTsi
qUC
qUa,qUer
Utr
P
bre
SerWal
^
Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
E em fim por fallecimento de cal
;
porque a obra
se
fundou maior e mais forte do que primeiro cuida-
ram, a dita coiraa no se acabou seno depois do S.
Joo
do dito anno, e foi ao tempo que D. Duarte era
j
bem certificado dos ajuntamentos e apuraes e con-
vocaes que El Rei de Fez em suas terras e nas alheias
fazia para vir outra vez sobr'elle como ficara.
E porque para execuo do propsito dos mouros
era grande impedimento a coiraa que se fazia de que
eram
j
bem avisados, por deterem e impedirem a
obra com dano e mortes dos officiaes que a lavravam,
acordaram de enviar para isso secretamente certos
alcaides, com mil e quinhentos de cavallo, e outra
muita gente de
p,
para que dessem n'elles e traba-
lhassem por desfazer a dita obra.
E com isto, porque D. Duarte com sua gente no
leixava d'entrar e fazer grandes cavalgadas e estra-
gos nas terras dos mouros, acertou -se que um dia
desavisado do ardil dos alcaides, determinou entrar
com a mais gente que nunca entrara. E estando
noite dois veladores praticando sobre o muro, acon-
teceu que por mo avisamento e pouco resguardo
d'elles, com vozes altas um descobriu ao outro a en-
trada de D. Duarte, declarando logo
por onde havia
d'entrar, e os lugares a "que havia d'ir, e tudo assi
apontado como que estivera determinao do caso.
E
acertou-se que um mouro almograve, que da lin-
goa dos christos tinha bom conhecimento e era mui
ousado, vindo-se de noite lanar ao
p
da barreira
por escuta, ouvio toda a pratica d'estes, com que
apressadamente logo partio, e foi logo avisar umas al-
deias, de que tomaram um mouro mais despachado,
que indo com grande trigana dar aviso a Tanger,
topou de recontro com os mesmos alcaides que vi-
nham sobre a coiraa, aos quaes o messageiro contoi
Chronica d
1
El-Rei D.
Affonso
V
o caso sobre que ia, havendo que era remdio que
lhes Deus a tal tempo enviava, e elles mui alegres
com tal nova lhe prometeram grandes honras e
acrescentamentos
;
porque lhes pareceu que leixariam
entrar D. Duarte, e sem alguma fadiga o atalhariam
e tomariam como quizessem, e assi sem os trabalhos,
mortes e despezas que se lhe aparelhavam, no so-
mente impediriam a coiraa, mas cobrariam a villa
em que no podia ficar gente que a defendesse.
E vieram-se os alcaides ao logar d'Anexanuz onde
estava um christo captivo, natural da Villa de La-
gos, a que chamavam o Talheiro, o qual tinha muita
amizade e pratica com um mouro, cujo nome era
Azmede, que
j
fora em Tavila captivo, e sabendo
bem o Talheiro o ardil e determinao dos alcaides,
pela qual a perdio de D. Duarte e da villa d'Alca-
cere com toda a gente se no podia escusar, doendo-
se d'isso como bom christo e leal portuguez, tanto
aperfiou com Azmede e tantas esperanas lhe ps na
bondade e verdade dos christos para sua honra e
proveito, que o houve de commover que de todo o
que era concertado logo aquella noite fosse como
foi avisar D. Duarte. O qual estando para partir e
vendo tal aviso e sendo certificado por Anto Vaz,
alfaqueque, que o mouro era homem de credito e
amigo dos christos, ps os giolhos em terra, e as
mos alevantadas ao ceo deu muitas graas a Deus, e
ao mouro deu logo e prometteu e fez ao diante muito
bem.
E ao outro dia mandou desaperceber os fidalgos e
toda a gente que para a entrada estavam
j
todos
prestes, que por isso ficaram tristes e muito mais
descontentes de D. Duarte, e mostrando no ser
menos irados contra o mouro, assacando-lhe que por
evitar o dano que a seus parentes estava aparelhado,
Bbliotheca de Clssicos Portuguezes
mais que por fazer bem a D. Duarte, se movera a tal
aviso, e uns o ameaavam com a forca, e outros com
o lume para o queimarem, mas o mouro confiado no
que certo sabia, tudo soffria rindo, dizendo que cedo
lhe dariam o contrario.
E sendo o capito por elle avisado dos lugares ena
que as cilladas haviam de jazer, mandou logo pela
manh descubrir a primeira, estando com toda a ou-
tra gente a recado e percebido; os mouros como vi-
ram os descobridores entenderam a verdade, e que tal
descobrimento orocedera d'algum aviso que os chris-
tos d'elles houveram, e que por isso no sairam da
villa, nem ousaram entrar em sua terra como tinham
ordenado, e sairam logo d'elles quatrocentos de ca-
vallo em cavallos armados e arreios, gente especial e
mui concertada. Sahiu D. Duarte com at cento e vinte
de cavallo a lhes resistir, em especial a recolher os
descobridores que tinha enviados que vinham mui per-
seguidos, e n'isto se travou de uma parte e da outra
mui crua peleja, em que D. Duarte tanto apertou com
os mouros que os fez fugir, em que morreram alguns
d'elles, todos homens entr'elles de boa estima, e ao
seguimento d'estes sahiu a outra cillada maior em so-
corro dos primeiros que maliciosamente mostravam
ir fogindo por tirarem os christos fora, e fizeram to-
dos uma volta sobre os christos, que por no pode-
rem resistir a tamanha fora lhe deram as costas, e
no encalo que foi curto, mataram dois e feriram mui-
tos.
E quiz Deus que na primeira esporada que D. Duarte
t'elles deu lhe quebraram as cabeadas do cavallo, e
em lh'as corregerem se deteve e mandou deter a gente
sua algum espao, que deu causa que o encalo da
volta que os mouros sobre os christos fizeram fosse
assi curta, que quasi os acharam sombra dos muros
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V
a que com sua segurana se acolheram
;
porque d'ou-
tra maneira segundo os mouros vinham azedos, e com
tanta sua avantagem, fora sem duvida para os chris-
tos grande perigo.
E n'este dia se lanou um moo christo com os
mouros, a que descobrio o aviso d'Azmede que deu
causa a se elle vir de todo para Alcacere, onde sendo
mouro deu aviamento a muita guerra e damno de sua
prpria terra, e *este se chamou depois Mafamede de
Alcacere, a que El-Rei D. ^.ffonso e depois El-Rei
D.
Joo
seu filho por seus servios fizeram muita
merc.
CAPITULO CXLI1
De como a villa d! Alcacere
foi
de segunda vez cercada
por hl Rei de Fez, e do que se passou rfeste segundo
cerco at que se alevantou
Era.
D. Duarte de muitas partes avisado como El-
Rei de Fez se aparelhava grandemente para no
comeo do mez de Julho vir sobre a villa, e
sendo logo sobr'isso certificado que era
j
em Tan-
gere, comeou de concertar e perceber suas cousas
como para taes hospedes convinha.
E a uma segunda feira, dois dias de
Julho
do dito
anno de mil e quatrocentos e cincoenta e nove, apa-
receu El-Rei de Fez sobre a villa com infindo poder
de gente, e naes mui desvairadas, e com carriagens
d'alimarias espantosas, que cobriam toda a terra.
E nos dias passados tinha D. Duarte enviado pedir
a El-Rei que lhe mandasse trazer sua mulher D. Isa-
bel de Castro, e seus filhos que eram em Portugal,
e
como quer que segundo os recados que tinha havia
10 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
muito tempo que esperava por ella, acertou se que em
El-Rei de Fez e os outros Marins e senhores come-
ando de cercar Alcacere, a no em que ella vinha
surgiu sobre e porto. E como D. Duarte houve d'ella
conhecimento, determinou com gente e fustas e ba-
teis que para isso ps em mui segura ordenana, de
a recolher, e elle a cavallo com outros, andaram na
praia resistindo aos mouros, at que muitos fidalgos
a
p
segura e honradamente a meteram pelas portas
da coiraa.
E certo no foi sem causa acertar ella tal dia em
que chegasse; porque segundo era de nobre sangue e
de muitas bondades e virtudes, bem merecia que em
sua chegada a recebessem tamanhos reis e senhores
dos mouros como alli eram.
Desceu-se D. Duarte e levou sua mulher egreja,
onde em viglia e por devoo dormio aquella noite,
e ao outro dia a meteu em um cubello do castello, de
que podia vr os combates e afrontas da villa.
E com a ida de D. Isabel a Alcacere foi a gente
toda mui leda, e receberam muito esforo e ousadia,
assi pelo repairo que os feridos e doentes em suas
curas d'ella recebiam, como pelo favor de suas don-
zellas com que os fidalgos fronteiros se favoreciam e
folgavam melhor de pelejar
;
porque ella tinha em sua
casa gentis mulheres filhas d'homens honrados, que
guardada em todo sua honra e honestidade, sabiam
bem fallar e tratar os homens como mereciam.
D. Duarte como aquelle a que em seus feitos no
fallecia grande devoo e esforo, depois de se en-
commendar a Deos com muitas lagrimas e palavras
de bom christo e singular capito de sua f, fallou
logo com muita prudncia e segurana a todolos fi-
dalgos e pessoas principaes da villa, repartindo-lhe
logo com muita alegria e despejo as estancias e guar-
Chronica d'El Rei D.
Affonso
V 11
das qne cada um havia de ter, e avisando-os em todo
como para a necessidade presente cumpria, em que
prometia honra e victoria.
El Rei de Fez e seu Marim e alcaides ordenaram
seus combates villa em torno, providos de muitas e
grossas artelharias, e d'espingardeiros e besteiros
sem conto, e d'escalas e mantas, e todo em grande
cumprimento
;
porque em tanto cargo e estima tomou
o cobrar d'aquella villa d'este segundo cerco, como
todo o reino de cuja privao foi dos mouros amea-
ado, se d'esta vez a no tomasse. E d'a!guns comba-
tes que os mouros deram villa e coiraa junta-
mente, eiles foram dos christos com tanto seu estrago
e
damno escramentados, que d'hi em diante
j
refu-
savam e no se queriam chegar como sohiam. Dizendo
a El Rei pela continua e grande mortindade dos seus
que os no mandasse assi chegar ao combate
;
porque
elle bem poderia fazer com seu grande poder, quando
quizesse, outra villa dez vezes maior que aquella, mas
que fazer elle e renovar outros tantos vassallos mou-
ros quantos alli perdia no podia, c era officio que
somente pertencia a Deus. E com isto punham todos
seu esforo e esperana nas bombardas, que de dia e
de noite nunca cessavam de lanar pedras.
Era El-Rei de Portugai em Lisboa ao tempo que
d'este cerco foi avisado, para que com grande trigana
mandou fazer prestes navios com gente, mantimentos
e armas, em que foram muitos fidalgos e pessoas prin-
cipaes do reino, alguns d'elles por especial percebi-
mento, e os mais de suas livres e louvadas vontades,
em que entravam pessoas de todas edades, c os
moos por ganhar e acrescentar honra, fugiam para
este cerco, e dos velhos por conservao da ganhada
algum no queria ficar.
No meio tempo do cerco chegaram ao arraial dos
12 Biblintheca e Clssicos Portiir/uezes
mouros as suas bombardas grossas, que por seu peso
e grandeza e pela aspereza da terra faziam suas jor-
nadas vagarosas, e em sua chegada no fizeram os
mouros menos festa e alegrias que na sua Pscoa que
ento celebraram. Foram logo com grande presteza e
alegria assentadas, e dos tiros primeiros que fizeram
comearam nos muros e cubellos de fazer com sua f-
ria tanto dano, que a muitos de dentro com receio de
maior mal
j
se mudavam as cores; porque alguns
cubellos foram em breve arrasados com os muros, que
em todalas partes tremiam, e faziam conta que se
elles sendo derribados no os defendessem, que a pe-
leja de pessoas com pessoas tanto seria perigosa,
quanto a gente e poder dos mouros era desegual. Mas
D. Duarte, cujo corao, esforo e segurana, d'estes
medos e d'outros maiores andava sempre priviligiado,
a tudo soccorria e repairava logo com to engenhosos
remdios, que aos mouros enfraqueciam os coraes,
havendo que to prestes e diligente repairo eram obras
de Deus mais que dos homens. Especialmente porque
claramente viam que a diligencia, trabalho e resistn-
cia dos christos lhes parecia sobre foras humanas.
Pelas quaes cousas, e assi porque os mantimentos fal-
leciam
j
aos mouros, houve no arraial dos mouros
grande rumor de alevantarem o cerco, de que D.
Duarte por mouros que na viila se lanavam foi cer-
tificado.
E D. Duarte e esses senhores e fidalgos que com
elle eram, no fartos de muita honra e louvor que
tinham ganhado, escreveram ao Marim apresentando-
lhe com palavras assaz cortezes quo covardamente
elle e seu Rei se tinham havido n'aquelle cerco, do
qual no se deviam assi partir com tanto seu abati-
mento e deshonra, pedindo-lhe que avergonhados disto
tornassem renovar os combates, para que ficavam
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 13
alimpando as armas, que no sangue dos seus tinham
j
todas sujas.
El Rei e o Marim mostrando ser d'esta carta mui
anojados, responderam a D. Duarte com palavras de
grande descortesia e muita villeza, reportando-se ao
mal do palanque de Tangere, e que
j
fizeram ao In-
fante tio do seu Rei cavar e alimpar os cavallos, e
que assi faria a elles, a quem D. Duarte largamente
replicou, reprendendo como devia suas villezas e co-
bardia.
E finalmente El-Rei de Fez com todo seu arraial se
alevantou de sobre a villa, dia de S. Bertholameu, xxiv
dias d'Agosto de mil quatrocentos e cincoenta e nove.
Durou este segundo cerco d'Alcacere outros liii
dias como o primeiro. Foram lanadas na villa duas
mil e quatrocentas e cincoenta e seis pedras grossas,
foram mortos dos christos at xxv, e dos mouros
muitos, de que se no houve o numero certo. O
que todo notificou logo D. Duarte a El-Rei, estando
em Santarm, que por o caso deu a Deus muitas gra-
as, e a elle muitos agardecimentos e louvores, e D.
Duarte mandou logo para o reino a gente que no
era em Alcacere necessria.
CAPITULO CXLIII
Como D. Duarte
foi feito conde de Vianua, e El- Rei
quizera outra vez passar em
Africa para que se
percebeu
jYj O mez d'Abril do anno seguinte de mil e
|J\
quatrocentos e sessenta, por prazer e consen-
^J timento d'El-Rei leixou D. Duarte por capi-
^^
to d'Alcacere Affonso Tellez, seu sobrinho, e se
veiu a Lisboa onde achou El-Rei, que d'elle e de toda
14 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
sua corte foi grandemente e com muita honra rece-
bido, e d'ali se foi El-Rei a Santarm, onde com so-
lemne arenga de seus servios e marecimentos, e com
devida cerimonia o fez conde de Vianna de Caminha.
N'este anno no mez d'Agosto falleceu de febre em
Thomar D. Affonso, marquez de Valena, filho maior
do duque de Bragana, sem casar, de que ficou um
filho natural, D. Affonso, que depois foi bispo d'Evora.
E n'este tempo pelas praticas que El-Rei sempre ti-
nha com o conde de Vianna sobre a guerra d'Africa,
a que El-Rei sobre todalas cousas do mundo natural-
mente era mais inclinado, desejando de a proseguir
determinou passar a Ceuta com dois mil cavallos e
gente de
p
a elles conveniente, para d'alli como ca-
pito, mais que como Rei fazer guerra aos mouros.
E tendo sobr'isso conselho foi de todolos princi-
paes muito em contrairo aconselhado, em especial do
Infante D. Fernando seu irmo, e do senhor D. Pe-
dro, que sobre isso lhe enviaram conselhos para o
caso mui excellentes, a que El-Rei no quiz dar cre-
dito, guiado
j
de seu apetito, inclinando-se s opi-
nio do marquez de Villa Viosa, que sendo em tudo
mui prudente, n'isto pareceu que desacordava. E
tendo para isso feita muita custa, com fundamento
de todavia passar, desistio da ida por causa de uma
grande e perigosa doena de febre em que cahiu e es-
teve morte.
E n'este anno de mil quatrocentas e sessenta, lasti-
mado o reino todo das grandes e apetitosas despezas
que El-Rei fazia, de que sua fazenda e as de seus vas-
sallos sem causa necessria se destruam, em umas
cortes que em Lisboa sobr'isso se fizeram, lhe pedi-
ram que as temperasse e quizesse ter mo mais firme
nas cousas da coroa ; com que sostevesse seu estado
como seus antecessores faziam, e no as dar com tanta
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 15
soltura e sem necessidade como dava, que se conten-
tasse arrecadar dos vassalos os antigos e velhos di-
reitos, e no agravar s.eu povo com novos pedidos e
imposies. E para o melhor poder fazer, lhe outorga-
ram cento e cincoenta mil dobras d'ouro, com que
desempenhasse e pagasse as rendas da coroa, que por
tenas e por casamentos, ou por outras dividas e obri-
gaes tivesse dadas, com juramento que fez de nunca
as mais dar, mas isto nem somente aquelle anno em
que se prometeu se manteve
;
porque na passagem
em Africa que logo fez se desordenou tudo, e com
muita mais soltura por mal da coroa real.
CAPITULO CXLIV
De como falleceu o Infante D. Anrique, e de seus
feitos, bondades, e virtudes
Eno
mez de Novembro d'este anno falleceu em
Sagres o Infante D. Anrique com sinaes e cum-
primento de fiel christo, em edade de cin-
coenta e sete annos, cujo corpo foi logo soterrado na
egreja da villa de Lagos.
E de hi no anno que vinha de mil e quatrocentos
e sessenta e um, foram seus ossos levados ao mosteiro
da Batalha por o Infante
D. Fernando, que tinha ado-
tado por filho, que foi por elles e os trouxe com grande
honra e muita cerimonia ao dito mosteiro, onde El-
Rei acompanhado de toda a nobre gente de Portugal
e muitos prelados sahiu aos receber com solemne pro-
cisso, e lhe fizeram honradas exquias.
O Infante D. Anrique foi em tudo Prncipe to per-
feito, que no razo que alguma de suas muitas e
16 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
louvadas virtudes se especifiquem
;
porque seria min-
goar nas outras todas, que d'elle como de uma fonte
clara e perenal todas nasceram. Porm a que pareceu
que em seus dias sobre todas abraou, foi inteira obe-
dincia e firme lealdade a El-Rei, e em seu corao
houve sempre fervente amor e continua devoo para
Deus, e uma singular humanidade e nobreza para os
homens, e um vivo esforo nunca vencido com que
em sua vida como magnnimo Prncipe e eforado
cavalleiro sempre emprehendeu rduas e mui excel-
lentes empresas, especialmente contra inimigos da f,
por seu marivilhoso engenho e muita prudncia e
grandeza de corao, e com innumeraveis gastos de
suas rendas e fazenda, no receando infindos traba-
lhos, mortes, e perigos de seus criados e servidores,
que muitas vezes via morrer e padecer, depois da to-
mada e descercos de Ceuta em que foi, mandou pri-
meiramente navegar e descobrir pelo mar Occeano,
onde se acharam logo e povoraram as ricas e fertiles
ilhas da Madeira, que foram as primeiras que no mar
Occeano estes reinos tiveram, e assi d'hi em diante
outras muitas de que elles e a christandade toda muito
bem e proveito recebem.
E assi o dito Infante como aconselhado e esforado,
j
por divina inspirao movido a isso, com respeitos
de magnnimo Prncipe e mui catlico christo, e como
mui leal vassalio dos Reis e da coroa de Portugal, de-
sejoso do acrescentamento, gloria, e louvor d'elles,
suspirando pela santa, honrada e proveitosa conquista
de Guin, mandou logo pedir e suplicar ao Papa
Martinho quinto, na Egreja de Roma presidente, que
em nome de Deus cujo poder tinha,
concedesse e fi-
zesse dita coroa e herdeiros d'ella para sempre,
como com acordo e approvao do
Sagrado Collegio
dos Cardeaes fez e concedeu solemne e perpetua doa-
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 17
o, e lhe deu o senhorio prprio de todo o que na
costa do dito mar Occeano, nos mares a ella ajacen-
tes dos marcos e cabos de Nam e do Bojador contra
o meio dia e oriente por elles e por seus sobcessores,
e por suas gentes pelos tempos em diante se achasse
e descobrisse at os ndios inclusivamente. A qual
doao e concesso do dito Papa Martinho depois o
Papa Eugnio, e o Papa Nicolo, e o Papa Sixto su-
plicao d'El Rei D. Affonso, e d'El-Rei D.
Joo
seu
filho confirmaram e aprovaram com sua graa e po-
der, com muitas graas e benes e liberdades aos
Reis de Portugal presentes e futuros que a proseguis-
sem, e com grandes excumunhes, graves censuras e
maldies a todolos christos que em qualquer ma-
neira, sem prazer e consentimento dos ditos Reis de
Portugal contra ellas fossem, como nas Bulas Apos-
tollicas que se d'isso concederam mais perfeita e cura-
pridamente se contm, as quaes sendo um divino fa-
vor e verdadeiro e ligitimo titulo para se a dita na-
vegao, descobrimento e conquista navegar e prose-
guir, o dito Infante logo primeiramente com o santo
e virtuoso principio de to aventurado fim a empren-
deu e proseguiu.
E com espantosos princpios e meios de que era
prasmado e nunca foi vencido em sua vida, mandou
adiante descobrir e tratar at a Serra Lia com muito
proveito do reino. E depois de sua morte em tempo
d'El-Rei D. Affonso o quinto seu sobrinho, alm do
descobrimento do Infante se descobriu a mina do
ouro, em que agora a cidade de S. Jorge,
que El-
Rei D.
Joo
o segundo mandou novamente edificar,
e assi se descobriu mais por El-Rei D. Affonso at o
Cabo de Santa Caterina, e depois de seu fallecimento,
como El-Rei D..
Joo
o segnndo seu filho o sobcedeu,
d'alli mandou por annos descobrir at dobrarem o
FOL. 2 VOL. III
18 Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
Cabo de Boa Esperana, e seus descobridores chega-
ram at o Rio do Infante, e d'alli sendo seu propsito
no cessar at descobrir a ndia, por sua doena e
morte, que se logo seguiu, cessou seu descobrimento.
E como depois o sobcedeu e reinou
aps elle
El-Rei D. Manuel o primeiro, nosso Senhor, como
Prncipe que em tudo quiz herdar a beno, reaes
costumes e ciaras faanhas de Reis e Prncipes to
gloriosos seus antecessores, por seu lo e com
seus capites, navios e gentes per
este caminho se
desecobriram, trataram e navegaram, com grandes
perigos e muitas difficuldades, e innuraeraveis desp-
zas outras novas ilhas e terras, e sobre tudo
a Arbia
e a Prsia, e a ndia com todalas especiarias, pedra-
rias, minas, riquezas, e thesouros orientaes que hoje
possue e tem com muita segurana e prosperidade,
fazendo-se pacifico Senhor de muitos Reis e senhores
que sua paz e senhorio compraram com ricos e cote-
dianos tributos, como em sua chronica far meno,
de que a elle e real coroa d'estes seus reinos de
Portugal e aos herdeiros d'ella, e a seus vassalos e
naturaes se acrescentou, e com a graa de Deus cada
vez acrescentar mais bem, maior honra, gloria, e lou-
vor, e ricos, honestos e mui grandes proveitos, com
os quaes pois seu principal fim e intento servir a
Deus e divulgar e exalar sua santa F sempre, por
isso seu grande poder ser muito mais poderoso, e no
somente a
elles este bem e proveito ser reservado,
mas ainda de suas mos e por seu meio a christandade
toda ser participante, com que a f de nosso senhor
ser por isso mais conhecida, louvada, e exalada, e
as seitas, idolatrias e foras dos imigos d
J
el!a de todo
minguadas e mui quebrantadas, e esta esperana no
est de todo em a esperarmos; porque com prspe-
ros e desejados effeitos tem cerc'a d'isto muitas ve-
Ckronica d'El Rei D.
Afonso
V 19
zes respondido, como em seus prprios tempos e lu-
gares melhor se dir, que sempre se atriburam
honra, memoria, louvor e merecimentos d'este vir-
tuoso Prncipe e Infante D. Anrique, como a causa e
primeiro inventor de tanto bem.
Foi mais o Infante nas roupas de seu corpo mui ho-
nesto e muito mais nas palavras de sua bocca, e por
maior sua perfeio foi em sua vida sempre casto, e
segundo o que s,e creu, virgem o cumeu a terra, que
d piedosa esperana de salvao de sua alma.
CAPITULO CXLV
De coma falleceu
o duque de Bragana, e sobcedeu sua
casa e herana o marques de \Zilla Viosa, e como
D. Fernando seu
filho
passou em
Africa, e devinda
foi feito
conde de Guimares
Eno
anno de mil e quatrocentos e sessenta e um
falleceu D. Affonso, duque cie Bragana, cuja
casa e titulo e herana sobcedeu D. Fernando,
marquez de Villa Viosa, seu filho segundo; porque o
marquez de Valena seu filho maior era
j
sem filhos
legtimos fallecido como
j
disse.
E entre os filhos que este segundo duque tinha, o
maior era D. Fernando, que por acrescentar em sua
honra, tendo para a dita passagem dos cavallos feita
muita despeza, pediu a El-Rei licena para se ir a Al-
cacere como foi no mez d'Abril do dito anno, com
duzentos de cavallo e mil homens de
p,
em que en-
traram muitos fidalgos e outra nobre gente da corte.
E d'Alcacere em companhia de D. Affonso de Vas-
concellos, que depois foi conde de Penella, e do conde
20
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
D. Duarte, a que o duque seu padre e elle tinham
grande affeio, entraram muitas vezes em terra de
mouros, e foram correr at s portas da cidade de
Tangere, onde se fizeram honrosos feitos d'armas, e
de que trouxeram grande numero de captivos e mui
grandes cavalgadas. E fizeram outras cousas, em que
D. Fernando ganhou bom nome e muita honra, com
qual se tornou a estes reinos logo no mez de Junho
seguinte. E El-Rei por seus servios e merecimentos
o fez primeiro conde de Guimares, porque depois
quando casou com a duqueza D. Isabel filha do In-
fante D. Fernando, por honra de to honrado casa-
mento foi em vida de seu padre feito e intitulado du-
que da mesma Villa de Guimares.
CAPITULO CXLVI
De como falleceu a Infante D. Caterina, sendo
j
con-
certada para casar
[
'este anno era tratado e concordado casamento
entre a Infante D. Caterina, irm d'El Rei, com
D. Carlos, Prncipe de Navarra e d'Arago ; e
porque o dito Prncipe falleceu, foi a dita Infante le-
vada ao mosteiro de Santa Clara de Lisboa, e sendo
concertado depois casamento entre ella e El-Rei D.
Duarte de Inglaterra, ella adoeceu de febre, e com nome
de mui honesta e virtuosa Princeza falleceu no mesmo
mosteiro, e foi seu corpo trazido ao mosteiro de Santo
Eloi de Lisboa, onde na capella da mo direita jaz
mui honradamente sepultada.
Chronica d'El-Rei D. Afonso
V 21
CAPITULO CXLVII
De como
foi
a ida dEl-Rei em Africa
cam os dois mil
de cavallo, e do escaliamento de Tangere
Eno
anno seguinte de mil e quatrocentos e ses-
senta e dois, se principiou e ordenou a ida d'El-
Rei em Africa, sobre o escalamento de Tangere,
que foi n'esta maneira.
Havia n'este tempo em casa d'El-Rei Diogo de Bair-
ros e
Joo
Falco, homens mancebos e fidalgos, que
desejosos d'acrescentar em suas honras pediram a El-
Rei licena, e lh'a deu, para irem ao soldo que El-Rei
de Fez ento apregoara em seu reino contra outros
mouros seus imigos e reveis, os quaes para melhor
seu aviamento se passaram a Andaluzia pedir cartas
ao duque de Medina Sidnia, com que o dito Rei de
Fez tinha paz e mostrana de singular amizade.
E o duque com respeito de servio d'El Rei no
vendo para isso sua carta se escusou, pelo qual con-
veiu a estes pedir a El-Rei que por sua carta lh'o en-
commendasse, e em tanto porque o conde de Viana
acertou d'entrar de Alcacere em terra de mouros,
foram estes com elle na entrada, onde por caso Diogo
de Bairros topou um
Joo
d'Escalona, de Tarifa, que
j
em Tangere foram ambos captivos e em poder de
um senhor. E praticando entre si sobre um cano que
era nos muros da cidade aberto e sahia para fora, se
por elle haveria disposio de entrar n'ella gente
:
acharam que em alguma maneira seria possvel, e com
isto tornando-se estes a casa do duque acharam car-
tas d'El-Rei, porque lhes revogou a licena e mandou
que logo se tornassem sua corte, o que cumpriram,
e acharam El-Rei em Cintra, onde a voltas da conta
22 Bibliotheca de Clssicos Portiigttezcs
que lhe deram de sua jornada, tocaram na pratica do
cano para se entrar Tangere, que no corao d'El-Rei
fez logo muita impresso. E com isso os tornou a man-
dar providos de merc e de cartas para o conde de
Viana, e asi para
Joo
d'Escalona, e para outro San-
cho Fernandez, de Tarifa, seu tio, que tinha um bre-
gantim e era bom piloto, que para o caso cumpria e
se no podia escusar.
Passaram todos em Alcacere, e recontaram ao conde
o propsito do cano de Tangere com que iam, o qual
anichillou de todo sua fantesia, e concordaram que se
no podia fazer, e acordado Diogo de Bairros d'outra
parte do mur' por onde a cidade melhor se podia es-
calar e mais a salvamento, depois de sobr'isso prati-
carem, foram por aviamento do conde com boa dessi-
muiao vr o dito logar, e com quanto a cidade se
velava, porm todos trs por uma escada de corda
subiram ao muro, por onde andaram, e sem algum al-
voroo nem sentimento colheram hervas d'elle, com
que se tornaram a Alcacere, e de hi a Portugal, e com
elles
Joo
d'Escalona, onde depois de a El Rei dize-
rem todo o que acharam e experimentaram, ficou muito
contente, e sebr'isso praticou logo com o Infante D.
Fernando seu irmo. E concordaram que para este
caso haver secretamente bom effeito, que o Infante
com desejo de honra e outros respeitos e obrigaes
que mostrasse ter para passar cm Africa, pedisse a
El-Rei para isso licena, porque com esta mostrana
este feito se poderia melhor e mais encobertamente
fazer, e assi se cumprio.
E porm a teno prpria e verdadeira d'El-Rei, em
caso que logo a no revelasse, foi ser tambm na pas-
sagem que outro si logo foi divulgada. Em cujos per-
cebimentos e apuraes se seguiram tantos estrondos
e alvoroos que os mouros, e principalmente os de
Ckronica d'El-Rei D.
Affonso
V 23
Tangere, como do dano de tal passagem mais receo-
sos foram de todo, e para todo logo avisados e per-
cebidos, o que El Rei por o conde de Viana logo soube,
pedindo- lhe que para cousa to feita como esta de
Tangere em seus comeos parecia, com semelhantes
estrondos a no desfizesse nem danasse, para que
abastaria no tanta gente como a de que se percebia,
que pouca e pouca podia dessimuladamente vir a Al-
cacere, e d'alli o feito se faria com segurana e salva-
mento.
E a este siso no obedeceu o apetito d'El Rei, para
que ajudou conde de Villa Real, que a este tempo
estava na corte, e com o conde de Viana no era em
muito accordo; porque envejoso da gloria e honra
que se a outrem aparelhava, por ter n'ella parte como
por seu nobre e esforado corao sempre desejou,
por seus meios e modos que por si e seus parentes
buscou, teve maneira que El-Rei o mettesse n'este feito,
em que lhe diziam no ser razo que por dito de dois
homens elle com seu reino se aventurasse, e que ante
de o
cometer convinha que tal pessoa como era o
conde de Villa Real com elles em pessoa fizesse jun-
tamente a mesma experincia. E que El-Rei para ser
desenganado era bem que estreitamente lh'o encom-
mendasse, especialmente que elle era tal que buscaria
em Tangere outros logares por onde a cidade melhor
e mais seguramente se cobrasse. Anichilando como sus-
peito o conselho do conde de Viana, atribuindo-lh'o
a
cautelosas manhas com que custa alheia queria sem-
pre ganhar honra e acrescentamento para si. E em fim
o conde de Villa Real foi d'El-Rei para isso rogado, e
elle acceitou a ida com encarecimentos de receber
morte e captiveiro por seu servio, pedindo-lhe que
se lembrasse em tal caso d'elle e de seus filhos. A.-
que El-Rei logo d'ante mo satisfez concedendo-lhe
24 Biblioheca de Clssicos Portiu/uezes
liberalmente custa dos bens de sua coroa, mui gran-
des e duvidosos requerimentos que com elle trazia.
O conde de Villa Real partiu de Lisboa no anno de
mil e quatrocentos e sessenta e trs, com elle Diogo
de Bairros e
Joo
d'Escalona, e no caminho se ajun-
tou com elles
Joo
Falco, e chegaram a Lagos onde
a
condessa sua mulher estava parida de D. Fernando
seu filho primeiro, e d'alli a levou a Ceuta, e d'hi com
achaque de buscar gente com que poderosamente en-
trasse em terra de mouros passou em Tarifa, d'onde
por mar foi vr o lugar do escalamento, a que no
sahiu do mar, nem foi n'elle por causa da muita tar-
dana que fizeram os que primeiro sahiram. A que
se juntaram mais Loureno de Cceres, adail, e Pe-
dro Affonso, os quaes acharam o lugar bem desposto
e sem alguma mudana, e com isso se foi o conde
mui alegre a Gibaltar, que o anno passado fora aos
mouros filhada, d'onde logo avisou El-Rei da boa des-
posio do feito, para o qual ficou alli precebendo
manhosamente a mais gente que pde para a passar
a Ceuta, como passou, em que foram cento e cincoenta
de
cavallo e quatrocentos de
p,
com fundamento
entre El-Rei e o conde
j
concertado, que no dia que
El-Rei por mar houvesse de ser no escallamento de
Tangere, a que havia de ir da banda de Castela, de
um
lugar que se diz Bollonha, esse mesmo dia en-
trasse o conde por terra e fosse sobre a cidade para
soccorrer e ajudar os que n'ella subissem e entrassem,
e
assi
impedir qualquer soccorro que aos mouros da
cidade de fora viesse. E porm na partida d'El-Rei e
do
Infante se ps tanta dillao alm do tempo que
tinham assignado, que o conde sem descobrir o caso
no
pde reter mais a gente estrangeira que sustinha,
c a despediu.
Chroniea d'El-Rei D. Affonso
V 25
CAPITULO CXLVIII
Da grande e danosa tormenta que El-Rei e o Infante
passaram no mar
El-Rei
e o Infante cuja passagem de todo era des-
coberta e divulgada, sendo prestes partiram de
Lisboa segunda feira sete dias de Novembro do
dito anno de mil e quatrocentos sessenta e trs, com
vento algum tanto contrairo para sua viagem, e
quarta chegaram a Lagos, e ahi recolheu El-Rei o
conde d'Odemira e o almirante, donde contra conse-
lho de todolos pilotos e mareantes, partiu com assaz
fortuna de tempo, o qual carregou tanto sobre a frota,
que El-Rei para salvar sua pessoa foi aconselhado
que se acolhesse ao porto de Silves, o que errada-
mente no quiz fazer
;
antes mandou
guiar a proa di-
reita de seu navio, porque sem torcer nem se deter
seguisse sua viagem, e sobre a noite a tormenta se
dobrou tanto, que os navios todos correram
grande
risco de se perder, e os mais por segurarem suas vi-
das alijaram com grande perda muita parte de suas
fazendas, salvo El Rei, que no consentiu que do seu
navio se alijasse com medo cousa alguma. Perdeu-se
n'esta tormenta o navio de D. Affonso de Vascon-
cellos, cuja fazenda e muitos nobres homens se ala-
gou, e as pessoas por milagre se salvaram, e assi
sossobrou de todo o mar uma caravella, em que se
perdeu grande fazenda de muitos.
E mais morreram Loureno de Guimares, e
Joo
Vogado,
escrives da fazenda d'El-Rei, e Gonallo
Cardoso, escrivo da camar, e um rei d'armas Por-
tugal, com outros muitos e bons homens e muita fa-
zenda, e n'esta tormenta andou El-Rei com o Infant
e
26 Biblioiheca de Clssicos Portugueses
seu irmo at o sbado, que s sem alguma outra com-
panhia entraram no estreito, e havendo o conde D.
Duarte conhecimento d'El-Rei pela bandeira real e
capitoa que o seu navio trazia, foi-lhe foliar no mar,
e com elle Pro d'Alcaova que a elle fora enviado
com o aviso e ardil de sua vinda, e depois de se El-
Rei lamentar pelo desaviamento de seu propsito,
que era no poder desembarcar da parte de Castella,
e o conde o confortar mais que reprender pelo erro
que fizera, El -Rei e o Infante se partiram para Ceuta,
onde poucos e poucos recolheram ao domingo seus
navios, e cada um com grande perda e muito destroo, e
assi o duque e seus filhos com outros muitos fidalgos,
que escapando da tormenta milagrosamente sahiram
todos em terra em camisas e descalos, e assi foram
em romaria a Santa Maria d'Africa, com que provo-
caram todos a grande devoo.
CAPITULO CXLIX
De como
foi
o primeiro cometimento do escalamento
de Taugere
E
depois d'EhRei declarar sua teno de tornar a
Tangere, por cuja fim ai li viera, se partio para
Alcacere d'onde enviou logo doze navios de
remo com gente escolhida para irem escalar a cidade,
cujo capito foi Luiz Mendes de Vasconcellos, homem
fidalgo, e nas cousas do mar bem entendido, com fun-
damento de El-Rei com seu poder os socorrer hora
do escalamento por terra, e porm o conde D. Duarte
ontradisse muito o cometimento por mar, pelas in-
rtides e perigos que tem, mas no foi crido, e Luiz
Chronica d'El-Rei D. Ajfonso
V 27
Mendes todavia partio bem avisado do que sahida
do mar e entrada da cidade havia de fazer.
El-Rei e o Infante e o senhor D. Pedro seu primo,
e o duque e condes e toda a outra gente partiram por
terra, e uma hora ante manh chegaram acerca de
Tangere, e os que foram nos navios rfora do des-
embarcar acharam o mar to bravo, que no ousaram
por aquelia vez sahir em terra, e ao recolher dos na-
vios havendo os mouros da cidade vista d'elles pelo
aviso que
j
sobre si tinham, fizeram almenaras na
cidade, e mandaram poer fogo s bombardas que pelo
muro tinham. E porque aquelle era o signal que se ha-
via de fazer quando a cidade se entrasse, foi E!-Rei
e todos os que com elle eram mui alegres, e assi aba-
laram logo rijamente e no sem devida
ordenana,
mas no tardou muito que foram em conhecimento
da verdade, que todo seu prazer converteu em tris-
teza, e toda esperana do feito em desesperao, e com
tudo El Rei com a cara mui segura como seu real
corao era sempre nos perigos, foi com sua gente
vista da cidade, que esteve olhando um pouco, e
em se recolhendo disse contra muitos, no me leixas-
tes crer ao conde D. Duarte, por ventura se o
fizera
esta vinda se empregara melhor, e ento se tornou
logo a Alcacere, e d'ahi para Ceuta, e com elle o In-
fante seu irmo.
CAPITULO CL
De como o Infante D. Fernando sem El-Rei entrou
d' Alcacere e correu a terra aos mouros
E
porque veiu nova que o conde de Vianna e o
conde de Guimares queriam fazer d' Alcacere
uma entrada em terra de mouros, quiz o In-
ifante ser n'ella, e pediu licena a El-Rei, que para
28 Bblioiheca de Clssicos Portuguezes
isso e para repartir e affrouxar o apousentamento de
Ceuta lh'a deu, e a El-Rei foi commettido que fosse
em pessoa, mas elle por algumas justas causas que
apontou o no houve por bem, e estimou por mais
sua honra e servio, antes em seu nome ir um seu ca-
pito to poderoso, e tal pessoa como era o Infante.
E aos quatro dias do mez de Dezembro o infante
partiu d'Alcacere com todolos senhores da hoste,
salvo o duque e o conde de Villa Real, que ficaram
em Ceuta, e foi correr umas aldas, que so na faldra
da serra de Benaminir, terra muito fragosa e muito
povorada, onde segundo fama vive a melhor gente
de peleja d'aquella frontaria, de que mataram at du-
zentos mouros, e trouxeram captivos duzentas e vinte
almas com muito gado e outro grande despojo, e se
tornou a Alcacere, e dos christos por mo resguardo
morreram at quinze.
Quiz o Infante haver, e houve para si o quinto
d'esta cavalgada, com muito aggravo do conde de
Vianna, e no sem algum prasmo e geral reprenso
do mesmo Infante, que por seu alto sangue e real
condio, saindo d'Alcacere devia em caso que lhe
pertencera fazer d'elle merc ao dito conde, quanto
mais que os quintos da villa de direito e por doao
pertenciam ao dito conde, a quem El-Rei o compoz e
satisfez depois com dinheiro de sua fazenda.
Chrontca d'El- Rei D. Afonso V 29
CAPITULO CLI
De como o Senhor D. Pedro,
filho
do Infante D. Pe-
dro, se
foi
de Ceuta para Barcellona, e se intitu-
lou Rei dArago
E
porque n'este tempo e da cidade de Ceuta se
foi para Barcellona o Senhor D. Pedro, filho
maior do Infante D. Pedro, que na mesma ci-
dade acabou intitulado Rei d'Arago, o fundamento
e causa que para isso houve foi n'esta maneira.
Por morte d'El-Rei D. Affonso, Rei d'Arago e de
Npoles, no ficou filho algum legitimo que o her-
dasse, e somente lhe ficou uni filho bastardo, D. Fer-
nando, que depois da morte d'El-Rei seu
padre, por
favores e grandes riquezas que lhe leixou, herdou e
teve o reino de Npoles
;
era irmo d'El-Rei D, Af-
fonso, D.
Joo
RH de Navarra, que herdara este
reino por razo da filha d'El-Rei D. Carlos com que
casou, de que houve uma filha, que foi casada com
El-Rei D. Anrique de Castella, de que no devida-
mente se quitou, quando casou com a Rainda D.
Joinna de Portugal, como atraz fica, e houve tambm
um filho que se chamou o Prncipe D. Carlos, e sendo
ainda Rei da Navarra viuvou, e por haver liana para
suas contendas, que em Castella e Arago tinha, ca-
sou com uma filha do almirante de Castella, de que
tendo
j
filhos sobcedeu por morte do dito Rei D.
Affonso seu irmo os reinos d'Arago e de Cicilia,
e o Prncipe D. Carlos seu filho, dizem que por mau
trato da madrasta, lhe pediu que lhe leixasse o reino
de Navarra para o reger, pois a elle in Slidum por
contracto pertencia, e porque o pae no disistia d'elle
andavam ambos em grandes desvairos, at que o
30 Bihliotheca da Clssicos Portuguezes
dito Prncipe falleceu, a tempo que seu casamento
era concordado com a Infante D. Caterina de Portu-
gal, como atraz fica, e de sua morte que foi julgada
por artificia], se deu muita culpa e causa Rainha
sua madrasta, poendo-lhe que o mandara sem tempo
matar, por tal que os reinos de seu marido
livremente
ficassem, como ficaram a D. Fernando
filho d'eila,
que depois foi Rei de Castella e d' Arago, de que os
povos foram mui tristes e anojados; porque
D. Carlos
era Prncipe de muitas virtudes, e lhes
dava es-
perana de ser bom Rei, pelo qual a cidade de Bar-
cellona, com todo o principado de Catelonha alevan-
taram a obdiencia a E-Rei D.
Joo,
e a deram a El-
Rei de Frana, que os deffendeu um tempo, at que
se concertou com El Rei D.
Joo,
que pelo no guer-
rear lhe leixqu o condado de Roselho pacifico, em
que entrou Perpinho, e anojados d'isso os de Barce-
lona tomaram por Senhor El-Rei D. Anrique de Cas-
tella, que com perda d'Arago tambm todos se con-
certaram.
E El-Rei
D.
Anrique mandou sair de Barcelona a
gente d'armas, que em sua defesa tinha, e sobre esta
concrdia dos Reis foram as grandes e famosas vistas
de Fonte Rabia, a que Lopo d'Almeida e o doutor
Joo
Fernandez da Silveira, que depois foi baro d'Al-
vito, foram em favor d'El-Rei D. Anrique enviados
por El-Rei D.
Affonso.
E porm os
regedores de Barcellona buscando
j
por caminhos desesperados alguma esperana de sua
salvao, trataram secretamente com o dito Senhor
D. Pedro, que como s e principal herdeiro que era
da casa d'Urgel, e assi a quem pertenciam de direito
os reinos d'Arago
quizesse intitular-se d'elles, e assi
receber logo em seu senhorio e poder o principado de
Catelonha com a cidade de Barcellona com cujo poder
Chronica
d'El-Rei D.
Affnnso
V 31
e
foras, se o crneas e saber lhe no fallecesse, co-
braria o mais que El Rei D.
Joo
tiranamente possuia.
Sobre o qual D. Pedro, em segredo se aconselhou logo
com seu confessor, que quanto a Deus
e ao mundo
lhe fallou e aconselhou o que devia. E assi fallou so-
bre o caso com alguns fidalgos e cavalleiros pruden-
tes de que se fiava, de que foi aconselhado, pospostos
muitos pejos (pie D. Pedro apontou, que no somente
devia desejar e d'aceitar cousa tamanha e to honrada
que assi livremente lh'offereciam, mas ainda que a de-
via trabalhar e requerer, e com eila antes morrer,
que v iver nos desfavores e desprezos e mingoas em
que vivia. Com as quaes cousas movido
o dito D. Pe-
dro, determinou aceitar a dita empresa, e
por seus
assinados e sellos assi o certificou e segurou dita
cidade.
E este negocio sempre andou secreto at esta ida
d'El-Rci a Ceuta, onde sobre concerto vieram arma-
das duas galls de Barcellona, com mostrana que vi-
nham a seu trafego d'armada.
D. Pedro fora com o Infante na dita entrada que
disse, e quando tornou a Ceuta achou hi as gals, de
cujos patres . regedores que n'ellas vinham, foi de
sua teno certificado, que era logo o levarem, e de-
pois de D. Pedro pedir a El-Rei, que perante o Infante
seu irmo, e o conde de Villa Real, e Paio Rodriguez,
Contador Mr de Lisboa o quizesse ouvir, elle com
palavras de muita obedincia e autoridade disse a El-
Rei todo o movimento passado, e que a este fim eram
vindas aquellas gals, pedindo-lhe para isso licena,
allegandodhe muitas razes porque o devra fazer, ao
menos por fazer Rei um seu vassallo, que como sua
feitura o havia sempre de servir e lhe obedecer.
E leixadas muitas alteraes que sobre isso houve-
ram, El-Rei por ento no se pde escusar, e lhe ou-
32 Bibliotheca de Clssicos Portaguezes
torgou a dita licena; e porque o conde de Villa Real
tinha grande afeio pela muita honra e merc, que o
Infante D. Pedro em regendo sempre lhe fizera, offe-
receu e deu logo ao dito Senhor D. Pedro, prata e
bons corregimentos de casa, e depois lhe enviou ca-
vallos e gente d'armas, o que outro algum do reino
no fez. E porm comeou El-Rei de dilatar a D. Pe-
dro o tempo da dita licena, com fundamento de se
querer ainda d'elle servir n'aquella vinda a que viera
de gentes e armas mui bem corregido, de que D. Pe-
dro tomava grande paixo, especialmente porque El-
Rei aparelhava vr-se com El-Rei D. Anrique, de que
receava que sua ida em Arago sendo revellada re-
ceberia total embargo, e com elle manifesta queda de
tamanha honra como parecia que se lhe aparelhava.
E uma noite querendo D. Pedro fallar a El-Rei so-
bre sua partida, presumindo El Rei a causa porque
seria, se escusou de o ouvir remettendo-o para o ou
tro dia
;
pelo qual D. Pedro logo aquella noite, por-
que os patres
j
mais no queriam esperar, se met-
teu nas gals e se foi com elles, e a El-Rei leixou por
escripto a causa porque assi se
partira, e a leal ten-
o que levava para sempre o servir. Mas n'esta pros-
peridade D. Pedro durou pouco
;
porque em breve
acabou com peonha sua vida dentro em Barcelona,
onde na Igreja maior jaz sepultado.
Ckronica d' El-Rei D.
Affonso
V 33
CAPITULO CL1I
De como o escallamento de Tangere se commelteu a se-
gunda vez pelo
Infante D. Fernando sem consenti-
mento dEl- Rei
Estando
El-Rei em Ceuta, algumas vezes com-
metteu entrar e ir sobre Arzilla, com desejo
e apparelhos de a tomar, e tantas contrarie-
dades recebeu para isso dos grandes invernos que
logo sobrevinham, que nunca seu desejo com seus
commettimentos poderam vir a algum effeito, e da
derradeira vez d'Alcacere se tornou El-Rei para
Ceuta, havendo que o escallamento de Tangere era a
elle desesperado; porque cria que aos mouros era
j
descoberto, assi por christos que captivaram, como
por mouros que fugiam, que todos lh'o diriam, em
especial pela gente sua que viram quando a primeira
vez sobre a cidade foi amanhecer.
E porm em se partindo disse ao Infante seu irmo
que por conselho e accordo dos condes, que com elle
eram, mandasse tentar a dita entrada ou outra al-
guma, porque a cidade bem se podesse filhar, e se
tal fosse o avisasse
;
porque quando no viesse com
toda sua gente e poder, ao menos como cavalleiro, e
com poucos, folgaria ser no feito.
O Infante sobr'isto mandou algumas vezes tentar e
experimentar o dito escalamento, que se achou e exa-
minou estar ainda sem alguma innovao, e para se
fazer como cumpria, pelo qual determinou fazer-lo
por si sem El*Rei. Dizendo que do sentimento que al-
gumas escutas dos mouros haveriam de sua vinda, po-
deriam os de Tangere receber tal aviso, com que o
feito de todo se perdesse, e porm ante de sua par-
VOL. III
fol.
3
34 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
tida, tendo conselho com muitos e principaes homens
que com elle estavam, Ferno Tellez lhe disse que
era presente
:
Senhor, n'esta determinao que tomaes, e em que
nos- pedis conselho, ante de dizer meu voto, queria
de vs saber primeiro duas cousas, a primeira se hou-
vestes licena d'El-Rei para s fazerdes o feito, e a se-
gunda se tendes para elle gente que vos abaste.
E o conde d'Odemira vendo que aquelles eram
pontos sustanciaes e que em todo contradiziam
vontade e propsito do Infante, pelo lisonjar para a
commisso de Mertola, e da Commenda Mr de San-
tiago, qne lhe ento requeria e houve, respondeu logo
a Ferno Tellez com palavras assi irosas e speras,
em que o Infante consentio, que no exemplo d'este
aprenderam os outros o que no caso diriam.
E porm o Infante, porque a pergunta de Ferno
Tellez acerca da gente lhe pareceu boa e necessria,
quiz saber de todos de que gente para o feito se per-
ceberia. Em que houve muitas sentenas, e com al-
guma o commtttimento do Infante (por lhe no des-
prazerem) se desfazia, anichillando cm todo a resis-
tncia e fraqueza dos mouros, salvo com a do conde
de Viana que disse :
Senhor, eu no sei como estes senhores entendem
isto que vos conselham, no querendo para acabar
este feito, uns dizem vinte, e outros ao mais cento
homens, pois eu Senhor no sou mais sandeu, e cer-
tifico- vos que me pesaria ser dos quinhentos que o
commetessem para o bem acabar
;
porque quem bem
consirar que por fora ha-de lanar fora de suas casas,
e de tal cidade como Tangere, a cerca de trs mil
homens de peleja que n'ella vivem, e lhe haver de
captivar suas mulheres e filhos, e roubar suas fazen-
das, em cujo amor se criaram e vivem, a razo lhe
Chronica d'El- Rei D. Afonso
V 36
ensinar a gente que lhe cumprir para vencer tantas
foras, quanto mais que esta gente no so alarves
com cajados por armas, mas bem armada, feroz e
ousada, e
j
se no ho d'espantar das mortes das mu-
lheres e filhos
;
porque
j
muitas vezes as viram e
padeceram, por isso Senhor vede bem primeiro o em
que vos meteis.
Mas o Infante pelo ardente desejo que para isso ti-
nha, pospostas todalas contradies, determinou de
o fazer, de que alguns tiveram que o Infante por seu
mui nobre e alto corao com que sempre suspirou
por grandes e rduas empresas, no se contentava fa-
zer nenhuma cousa, por boa e faanhosa que fosse,
sendo debaixo de mando e capitania d'outrem, ainda
que fora um grande Imperador.
E porm Diogo de Bairros, e
Joo
Falco tiveram
maneira que logo El-Rei fosse em Ceuta, como foi por
elles de todo avisado, e de noite como El-Rei houve
o aviso, logo a grande pressa mandou diante o Chi-
chorro com vinte ginetes, para que o Infante sobre-
sevesse em sua partida at sua chegada, mas o Chi-
chorro achou
j
o Infante partido, e El-Rei com gro
trigana partiu logo apz elles acerca de sol posto
com oito de cavallo e muita gente de
p,
que de can-
ada ficou em Alcacere. E assi apressou seu caminho
que ante manh chegou aos medos que so junto de
Tangere.
E porque no topou com seu irmo, que fora por
outro caminho e ficava atrs, houve por sem duvida
que elle era
j
dentro na cidade com o feito prospe-
ramente acabado, pela qual maginao elle e todos da-
vam muitas graas e louvores a Deus, e porm es-
tando assi com os ouvidos alerta, esperando a grita e
rumor da cidade, chegou a El-Rei o marechal, que o
Infante mandara correr a cidade, por dessimular o
36 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
escallamento a que com tempo devido no poder
chegar; porque como o Infante no caminho viu que
a noite lhe fallecia para n'ella chegar cidade, lan-
ou -se a duas legoas em cillada, e por dissimulao
mandou correr com fundamento de ao outro dia tor-
nar commetter o feito. Mas El-Rei com mostranas
mais da tristeza que d'alegria se tornou a Alcacere,
mui cansado e todolos seus
;
porque sem descer nem
repousar andaram as maiores, nem mais fragosas
quinze legoas que podem assignar, e o Infante onde
estava em cillada, como soube da vinda e desconten-
tamento d'El-Rei, partiu logo, e foi-se tambm a Al-
cacere anojado do conde D. Duarte, de quem suspei-
tou que o aviso d'El-Rei procedera. Mas o Infante
no pde escapar a uma grave e spera reprenso
que El-Rei seu irmo lhe fez pela perigosa ousadia
que sem sua licena e contra seu mandado commettera.
CAPITULO CLIII
De como o escallamento de Tangere se commetteu
final-
mente a terceira vez pelo Infante D. Fernando, e
do desastrado sobcedimento que houve
V^/artiu-se El-Rei para Ceuta, com fundamento de
se vr com El-Rei de Castella, que era
j
em
j
Gibaltar, e o Infante ficou em Alcacere, onde
**pelo conde D. Sancho foi incitado para com tudo no
desistir do mesmo escallamento que havia de todo
por acabado, e qne ento a empresa d'elle lhe vinha
melhor e com mais sua honra, pois El-Rei ia
j
d'elle
de todo desconfiado, e que tivesse maneira que o
conde D. Duarte no fosse com elle
;
porque alm de
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 37
no ser necessrio, segundo elle sabia entoar suas cou-
sas, cresse que todo o merecimento do feito quanto
se bem fizesse havia de atribuir a si mesmo.
E a teno de tal conselho bem parece que de in-
veja, ou d'alguma outra paixo ia propriamente guiada
e mais que da verdade, segundo a qual o conde D.
Duarte fora para conselho e ajuda de tal feito mui
necessrio
;
porque pelo acabamento de seus grandes
feitos era havido e confirmado por mui singular ca-
pito.
Com este propsito o Infante se foi a Ceuta e para
o escallamento, se se podesse fazer, pediu licena a
El-Rei, que lh'a deu, dizendo-lhe que segundo a fortuna
n'este caso se mostrara a elle to contrair o havia de
todo por perdido, e porm o leixava nas mos de Deus
e nas suas, e visse se por alguma maneira podia tomar
o lugar
;
porque posto que lhe prouvesse muito acer-
tar-se no feito; porm muito mais lhe pesaria perder-
se, se sem elle se podesse cobrar, e com isto se tor-
nou o Infante a Alcacere, sem o querer revelar em
Ceuta, receando no se poder escusar do conde D.
Duarte e cVoutros senhores, que o haviam para isso
de requerer. E depois de tornar e mandar firmar ou-
tras vezes a segurana do escallamento, aos Xix
dias de Janeiro de mil e quatrocentos e sessenta e
quatro partiu d'Alcere, e mandou levar quatro esca-
das, de que deu cargo quellas pessoas em que enten-
deu que havia saber e esforo para isso.
E na tristeza e pezo que todos levavam pelo cami-
nho, logo para bem do feito pareceu desaventurado
pronostico, especialmente que sendo sobre o cabeo,
que dizem d'Almenar, pareceu no ceu vista de to-
dos um espantoso cometa, que lanava de si muitos
raios de fogo em figura de drago. Ali disse ento
Gomez Freire, nobre fidalgo e de grande corao:
38 Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
Oh! noite m, para quem t'aparelhas, que ficou
em provrbio muito tempo acostumado.
E assi chegaram os primeiros com grande luar
junto com a cidade, onde porque a lua de todo se
pozesse, esperaram at trs horas ante manh. E logo
Diogo de Bairros, e
Job
Falco como principaes
movedores do feito, pediram e requereram a alguns
do conselho d'El-Rei e do Infante que hi eram, que
juntamente fossem com elles como testemunhas ver
como estava
;
porque se por algum caso se perdesse
ou desaviasse, elles ficassem por verdadeiros e livres
da culpa, e
Joo
de Sousa a que seu resguardo pare-
ceu bem acceitou sua companhia, antre os quaes foi
dado aviso que as escadas no se pozessem, salvo de-
pois que a guarda dos mouros descesse do castello
para fundo.
E aqui de saber que este lano de muro porque
o escallamento era ordenado, cerra no castello da
parte do serto em que ha cinco cubellos, em fim
dos quaes seguindo para fundo est uma torre que
se chamava de Gillahare.
E porque do castello havia sahida para o muro
por uma ponte levadia, acordaram os christos, que
por quanto os mouros do castello sentindo a gente
no muro poderiam sahir pela ponte e impedir e
damnificar os que subissem pelas escadas, que a
gente assi como subisse no muro, assi se mettesse
logo entre a dita ponte e as escadas, e uns resistissem
aos mouros que do castello quizessem sahir, e outros
corressem pelo muro a fundo para tomarem outra
torre que est sobre um postigo, que se chama de
Gurer, com que se cobravam duas cousas para o feito
mui necessrias e seguras. A primeira para a gente
poder de fora entrar mui livremente sem perigo nem
contradio dos mouros, e a segunda senhoreavam a
Chronica d'El Rei D. Afonso
V 39
escada do muro para que a salvo podiam descer e
entrar para a cidade.
E os dois principaes escalladores e guiadores, fo-
ram primeiramente no muro, e assi os outros que
aps elles haviam de seguir. E acertou-se que a roda
dos mouros havendo
j
d'elles algum sentimento es-
tava lanada entre as ameas d'aquella parte, para dif-
ferenar bem se eram os brbaros da serra, que s
vezes com suas cargas e bestas se lanavam ao
p
do
muro, ou por ventura christos, e tanto espao to-
mou para de sua duvida se certificar, que dos chris-
tos houveram sessenta lugar para subir, que por
pontos d'honra em taes tempos e casos mui prejudi-
ciaes, no quizeram guardar o que entre elles fora
concordado. Pelo qual
Joo
Falco vendo comeos
de tanto desmando, disse a
Joo
de Sousa que to-
masse ou matasse um mouro guarda que tinha ante
si. E
Joo
de Sousa como fidalgo acordado e de bom
corao remetteu a elle, o qual da sombra da morte
que comsigo viu, acabou ser desenganado de sua du-
vida e comeou de se poer em defesa, e em
Joo
de
Sousa correndo a lana nas mos para lhe dar, o
mouro em se retrahendo cahiu do muro contra a ci-
dade dentro em um pomar, d'onde comeou logo ^iat
grandes brados, senificando com elles o damno dos
christos que se aparelhava, e os christos como os
ouviram sem mais outra consirao, crendo que outra
sua grita ao menos para desmaio dos contrairos apro-
veitaria muito, logo a deram com altas vozes, e no
sem grande estrondo de trombetas que
j
eram em
cima, a que os mouros acordaram, e com muita tri-
gana acudiram por saber a causa de tamanho rumor,
principalmente os que guardavam a torre do muro
porque os christos haviam de passar. Os quaes assi
como viram os nossos estar no muro, assi se torna-
40 Bibliotheca de Clssicos Portugitezes
ram e pozeram porta da torre, de que podiam bem
defender aos christos a passagem do muro para o
no poderem descer para a cidade; porque com ss
paos sem outras armas, aos que por elle passassem,
segundo era estreito podiam levemente lanar d'elle
abaixo, e assi o faziam, e os christos no podendo
j
passar no leixavam por isso de subir; porque o
Infante era
j
ao
p
do muro, que a uns por amor,
e a outros com temor constrangia para isso, e assi
como subiam no podendo ai fazer assi se mettiam
por esses cubellos, e outros descendo para fundo no
podendo passar ficavam amontoados, sem poderem
aproveitar a si nem danar aos contrairos.
A cidade era
j
toda posta em armas e grande al-
voroo, e como o alcaide que se chamava Abrahem
Benaamet foi por si certificado que nas outras partes
da cidade no havia outro commetimento nem af-
frOnta que muito receou, salvo n'aquella, mandou logo
ali vir grande claridade de fogo, e com besteiros e
espingardeiros, que em grande numero mandou met-
ter no pomar que era defronte d'onde os christos
estavam, matavam e feriam muitos, e muitos em se
revolvendo cahiam do muro entre elles, que clara-
mente eram logo espedaados, e com gente que se
enadeu no castello, que sahiu pela ponte levadia,
tomaram as escadas postas no muro, ainda que no
foi sem grande peleja que sobr'isso houve, e foi de
maneira que do castello e de todalas partes, os mou-
ros sem algum seu perigo faziam um piadoso estrago
nos christos, porque sendo as escallas tomadas no
tinham algum remdio de salvao. O que todo bem
visto por
Joo
de Sousa, disse ao Infante de cima do
muro, que no mandasse subir mais gente; porque o
feito com a gente subida eram de todo perdidos, e o
Infante sobre esperana de tanta alegria, ouvindo re-
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 41
cado to certo e to triste, no menos anojado que
esforado arremetteu a uma escada de troos que
mandara armar, e quizera por ella subir dizendo que
o que fosse de to bons criados e servidores como
j
dentro eram, seria d'elle at com elles morrer. Mas
era hi o conde d'Odemira, e o commendador mr de
Christus com outros, que com palavras prudentes e
de bom esoro o detiveram, dizendo-lhe que aquella
gente por boa e nobre qu- fosse, em caso que Portu-
gal a perdesse, bem poderia cobrar outra tal e me-
lhor
;
mas no a elle que era tal e tamanho Principe,
que o reino teria d'elle para sempre muita mingua e
grande necessidade, e que no desse causa que Tan-
gere fosse tantas vezes sepultura d~ Infantes de Por-
tugal, e com estas e outras razes de conforto a estas
conformes a que o Infante obedeceu, vendo
j
o feito
sem algum remdio, se tornou para Alcacere.
E dos christos entre mortos e captivos ficaram
trezentos, todos os mais homens escolhidos e espe-
ciaes, duzentos mortos e cento captivos, e dos mortos
foram principaes, D. Gonalo Coutinho, conde de
Marialva, e D. Rodrigo seu filho bastardo, e Gomes
Freire d'Andrade, e D.
Jorge de Crasto, filho de D.
lvaro, que depois foi conde de Monsanto, e D. Joo
de Ea, e
Joo
de Taide, e Pedro Coelho, e Rui Diaz
Lobo, e Pro de Sousa seu irmo, Ferno de Macedo,
e Pedro de Macedo seu irmo, e lvaro de S, e Fer-
no Vaz Corte Real, Rui Paes, e Pro Paes, filhos de
Payo Rodriguez, Contador Mr, e assi outros muitos
e bons cavalleiros e homens de nobre sangue e bom
corao.
E dos captivos principaes, que aos cubellos se re-
colheram e preitejaram com os mouros, foi D. Fernando
Coutinho, marechal, Ferno Tellez, Ruy Lopez Cou-
tinho,
Joo
Falco, e Diogo da Silva, que depois foi
42 Biblioiheca de Clssicos Porttiguezes
conde de Portalegre, Garcia de Mello, D. lvaro de
Lima, filho do visconde D. Lionel de Lima; e outros
muitos at o dito numero, em cujos grandes resgates
alm das mortes de tanta e to nobre gente, o reino
recebeu uma durosa magua e grandssima perda, a
qual testemunhou bem com os grandes prantos e ge-
raes lamentaes que em todo elle por este caso se fi-
zeram, e na gloria da victoria que os mouros tinham,
praticando e examinando se entre os christos mortos
ou captivos seria hi o conde D. Duarte, respondeu
um velho e entre elles de grande auctorldade : no
busqueis hi o conde D. Duarte; porque na grande des-
ordcnana dos christos vi eu bem que n andava hi.
CAPITULO CLTV
Como El-Rei
foi
deste triste caso avisado em Ceuta,
o dia que tinha concertadas vistas em Gibaltar com
El-Rei de Castella, a que todavia
foi,
e o funda-
mento das ditas vistas
III
M Anto Vaz, alfaqueque, era n'este desastrado
J
UL
caso, e como viu o triste sobcedimento d'elle,
logo a grande pressa o veiu notificar condessa
de Viana, que era em Alcacere, a qual logo com grande
trigana por mar e por terra o fez saber a El-Rei,
cujos avisos, por impedimentos que no caminho hou-
veram, precedeu um outro, que o Infante em che-
gando a Alcacere logo lhe enviou por um seu escu-
deiro, que chegou a El-Rei ante manh, na hora que
estava de caminho para Gibaltar, onde por meio do
conde de Ledesma tinha vistas concertadas com El-
Rei D. Anrique de Castella que o
j
esperava.
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V 43
E El-Rei no quiz desfazer sua ida^, e porm des-
pachou o conde de Viana, que logo tornou ao Infante
seu irmo ao confortar e desapassionar do caso pas-
sado, que o cumpriu com muita prudncia e despejo,
e de que o Infante mostrou receber algum descano e
menos dr.
El-Rei em partindo avisou o escudeiro, que at no
ser no mar no dissese nada do caso, por no com-
mover a choro e tristeza os senhores que em sua com-
panhia tinha ordenados, que eram o conde de Guima-
mares, e D.
Joo
seu irmo, o conde de Monsanto,
o conde da Atouguia, o Prior do Crato, e muitos ou-
tros do conselho, e gentis homens fidalgos de sua casa,
com os quaes El-Rei passou a Gibaltar, onde El-Rei
de Portugal e El-Rei de Castella tiveram suas prati-
cas e concordias, cuja sustancia foi requerer El-Rei
D. Anrique liana a El Rei D. Affonso, para contra
os grandes de Castella, que com desleal alevantamento
d'El-Rei D. Affonso o moo seu meio irmo lhe que-
riam desobedecer, e que para ter mais razo de o aju-
dar, queria que a Infante D. Isabel sua irm casasse
com El-Rei D. Affonso; e D. Joanna
que ento era
havida por sua filha, e jurada por Princeza de Cas-
tella, casasse com D.
Joo
Prncipe de Portugal. E so-
bresto fizeram acordos promettidos e jurados nas mos
de D. Jorge,
Bispo d'Evora, que depois foi Arcebispo
de Lisboa e Cardeal. Os quaes principalmente pela
grande inconstncia do dito Rei D. Anrique, e por im-
pedimentos e contradies outras que se seguiram no
houveram effeito.
E no somente sobre estes casos os ditos Reis fize-
ram esta vez estas vistas; mas depois outras com mui-
tas embaixadas, e porque d'ellas nunca resultou con-
cluso que entre elles se executasse nem cumprisse,
no farei agora d'ellas nem depois muita meno.
44 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
CAPITULO CLV
De como El- Rei em pessoa correu o campo d' Arzilla
e 1.
ornou-se El-Rei a Ceuta, onde foi aconselhado
que por quanto a boa fortuna n'esta jornada
d'Africa ento lhe no terava sua vontade,
consirada isso mesmo a perda da gente com outros in-
convenientes assaz efficazes, que sem mais fazer nem
commetter outra cousa se devia de tornar ao reino, e dar
a seus vassallos algum po de paz e descanso. E po-
rm E-Rei sem embargo de todo determinou correr
primeiro o campo d'Arzila, e v-la, com desejo de a
tomar, o que logo ps em obra
;
porque partiu logo
para Alcacere, e de hi com o Infante passou a serra
pelo porto d'Alfeixe, e em amanhecendo deram em
umas aldeias, que com o aviso e medo da ida d'El-
Rei eram
j
despovoradas, e porm correram legoa e
meia per outras partes, e n'aquellas principalmente
que o Infante D. Fernando barrejou mataram alguns
mouros e captivaram muitos, e arrancaram muito gado
e outro despojo, com que
j
de noite passaram o rio
de Tagadarte, e junto com eHe da banda d' Alcacere
se alojaram aquella noite. Na qual sobrevieram tantas
chuvas, *e to spera tempestade com que a ribeira
encheu de maneira, que se a no tiveram passada e
ficando alem d'ella, se dispunham a mui certo perigo;
porque a infinda gente dos mouros que logo cresceu
deu d'isso ao diante claro testemunho.
E por esta causa no pde El-Rei vr Arzilla, de
que recebeu ento gram desprazer, e muito mais de-
pois que soube que os mouros da villa indo elle sobre
ella tinham determinado dar-lh'a, e virem ao caminho
entregar-lhe as chaves, e tornou-se a Ceuta onde os
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 45
cavallos e a gente por mau trato, e por aspereza dos
tempos lhe falleciam. E por isso logo comeou de de-
clarar sua vinda e despedir a gente ; e porm El-Rei
no era satifeito
;
porque em todo o tempo d'esta pas-
sagem se no vira em alguma travada peleja de mou-
ros, como elle desejava.
CAPITULO CLVI
De como El-Rei D. Affonso foi
correr a serra de
Beuafoc, e como
foi
em grande perigo, e como
mataram os mouros o conde D. Duarte., e a Diogo
da Silveira, escrivo da poridade
Estando
El-Rei com este descontentamento, que
de seu animo grande e esforado procedia, vie-
ram por caso a Ceuta quatro mouros, que o
metteram em grande alvoroo de grande cavalgada e
boa escaramua, que lhe dariam na serra de Bena-
cof, onde havia a mais guerreira gente d'Africa. E
El-Rei com um natural desejo que para isso tinha, e
com outra sede
j
de vingana, fallou com Loureno
de Cceres, adail, que foi vr, e lhe disse o caminho
que para aquelle podia levar.
Era em Ceuta o conde D. Duarte, e como quer que
alli viera aforrado sem cavallos, armas, nem gente para
somente despachar com elles seus negcios, El-Rei
mandou que fosse com elle, ao que obedeceu, e po-
rm com carregume e tristeza de sua morte, que a
-alma lhe adivinhava, e logo publicamente o disse, que
aquelle dia seria sua fim, especialmente porque um
Frei Luiz, D. Abbade do Mosteiro da Cerzeda, ho-
mem estrangeiro, e de juizos d'astrologo mui certo
lhe disse que havia de morrer sob alheia capitania.
46 Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
Partiu El-Rei com oitocentos de cavallo, e pouca
gente de
p,
e foi-se alojar junto com o castello d'Al-
munhacar, onde repousou o outro dia quasi todo, e o
Infante D. Fernando seu irmo era
j
partido para
Portugal, e porm com El-Rei eram capites e pes-
soas principaes o duque de Bragana, o conde de
Guimares, e D. Affonso que depois foi conde de
Faram, seus filhos, e o conde de Villa Real, D. Af-
fonso de Vasconcellos, que foi depois conde de Pe-
nella, e o conde de Monsanto, e o conde de Vianna,
e D. Anrique seu filho, e outros muitos fidalgos e
cavalleiros e nobres homens com que partiu e entrou
de noite na serra, que em todo para os de
p
era mui
spera e fragosa, quanto mais para cavallos to tra-
balhados, e como foi manh repartiram-se as gentes
em capitanias, e ventura comearam de correr a
terra, e os mouros que por almenaras eram
j
d'esta
entrada avisados, uns embrenhavam suas mulheres e
filhos nas mattas e serras que ali ha mui fortes e com
grande espessura, e outros com muita braveza e es-
foro vinham travar escaramuas e pelejas, que por
uns e por outros houve em muitas partes mui bem pe-
lejadas, em que dos mouros entre mortos e feridos
houve gram numero, e no sem muito dano dos
christos, de que muitos em offender mouros e de-
fender e salvar christos fizeram feitos mui assignados.
El-Rei andou pelo espigo da serra
;
porque a en-
cavalgou por um de dois espinhaos que ella faz, e
sahiu por outro, e foi ter a uma grande aldeia cabe-
ceira das outras, onde comeu e repousou um pouco.
E ento mandou a Lopo d'Almeida e ao adail, que
com a gente necessria levassem a cavalgada ao
p
da
serra onde o esperassem, e d'ali abalou El-Rei com
mais vagar do que o tempo e a terra requeriam, e de
um cabeo em que se ps, mandou aos espingardei-
Chronica d'El-Rei D. Ajfonso V 47
ros e besteiros e gente de
p,
que por mr despejo
se fossem diante caminho de Tutuam, onde aquella
noite havia de repousar, e depois de passado um
grande espao ainda com passos vagarosos seguiu
sua viagem, e aps elle sem muito alvoroo vinham
alguns mouros de cavallo, e sobresendo El-Rei disse:
Parece-me que estes mouros na maneira em que vem
mais querero paz que peleja, com os quaes esteve
falia, querendo d'elles saber se queriam ser seus como
os outros, a que os mouros pediram horas d'acordo
e consulta com outros seus visinhos, que em grande
somma eram postos em um cabeo que EI-Rei
j
lei-
xara
;
e porque a resposta tardava El-Rei abalou, e
com seu estandarte diante sobiu com os de cavallo a
um cerro alto e de pedras e barrocas mui fragoso;
era na reguarda d'elle o conde de Villa Real e bem
detraz, e o conde de Guimares pediu a El-Rei que
por quanto o conde seu cunhado ficava em grande
perigo o mandasse com espingardeiros e besteiros soc-
correr, para que
j
se no acharam, e El-Rei lhe man-
dou dizer que logo sem mais esperar se recolhesse a
elle
;
mas o conde como era esforado e singular ca-
pito, e nas manhas dos mouros assaz avisado, man-
dou dizer a El-Rei que lhe despejasse o porto e se
fosse embora
;
porque elle por seu servio se recolhe-
ria com sua honra e com dano dos mouros.
E certamente como quer que o conde de Villa
Real por sua bondade d'armas outras vezes mereceu
e ganhou grande honra e muito louvor, n'este dia em
especial o acrescentou muito mais
;
porque alm de
se recolher como cumpria a um singular capito, indo
como ardido cavalleiro, os imigos nas voltas e espe-
radas que n'elles muitas vezes fez receberam muitas
mortes e damnos.
Estando El-Rei n'aquelle teso, a sua gente cada vez
48 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
lhe mingoava mais, e a dos mouros crescia contra elle
em maior avantagem, e em vozes altas e iradas dis-
seram contra os christos:
Dizei a vosso Rei que no queremos com elle paz
se no crua guerra, e que saiba por estas barbas e cabe-
as que tocamos, que hoje o dia da nossa vingana.
E em se El-Rei decendo da serra carregaram os
mouros logo sobr'elle, e das ilhargas feriam mui mal
os cavallos, a que El-Rei com quatrocentos de cavallo
que com elle seriam, fez conrmuita destreza trs vol-
tas curtas, em que alm d'outros feriu e matou per si
um mouro com muito despejo e ardideza, e porque o
perigo sobre El-Rei recrecia cada vez maior, alguma
gente sua esquecida da lealdade e defendimento que
lhe deviam, lembrando-se mais de sua prpria salva-
o comeavam de o desamparar, e no aproveitavam
brados nem vozes, por b
a
.m que se n'elles altamente
afiasse a desleal vergonha com que em tal tempo lei-
xavam seu Rei com sua bandeira.
E vendo-se
j
El-Rei mui afrontado, sendo estreita-
mente aconselhado que ao menos das serras se sal-
vasse para o campo, chamou o conde D. Duarte e dis-
se-lhe :
Conde, ficai com estes mouros, porque lhe conhe-
ceis melhor as manhas, e acaudellai esta minha gente.
E o conde lhe respondeu :
Senhor, eu no quizera que em tal tempo me d-
reis este cuidado, especialmente porque no tenho aqui
minha gente que me conhece, c pois estes que so
presentes e vossos, no obedecem a vosso mandado,
menos cumpriro o meu, porm pois que o assi ha-
veis por vosso servio, hei por muito bem empregado
a mi mesmo em qualquer trabalho e perigo que me
acontecer, at morte.
E o conde no era em suas palavras enganado,
Chrontca d'ElRei D. Afonso V 49
por que como El-Rei moveu, assi o fizeram todos
aps elle, sem o conde poder aproveitar em nada,
antes seu cavallo logo lhe foi morto, e elle ferido,
sobre que acudiu o conde de Monsanto seu cunhado,
trabalhando de o poer em outro cavallo, em que se
acertaram os loros to compridos, que o conde com
a perna direita nunca pde vingar a sella, antes com a
espora feriu o cavallo nas ancas, que aos couces o
lanou logo no cho.
O conde D. Duarte no vendo
j
esperana de sua
vida, pediu ao conde de Monsanto que salvasse a sua
e o leixasse. E porm os mouros carregaram sobre
elle e leixaram alli seu corpo sem vida, e no sem
primeiro sentirem muita vingana de sua morte, sendo
j
primeiro junto coni elle morto um Nuno Martins
de Villa-Lobos seu criado, que como bom recebeu
aquella morte por lhe querer soccorrer com seu ca-
vallo de que se deceu.
E El-Rei com assaz afronta se recolheu por uma
lomba a fundo, onde seu estandarte nas mos de
Duarte d'Almeida, alferes, foi dos mouros muitas
vezes abatido, e fora tomado se o esforado acordo
do alferes e valentia de Ruy de Sousa o no salva-
ram.
Foram alli mortos Diogo da Silveira, escrivo da
poridade, e Ferno de Sousa, alcaide de Guimares,
e Luis Mendes de Vasconcellos, e Pro Gonalves,
secretairo, e outros que acabaram como bons e leaes
cavalleiros.
Deceu El-Rei ao
p
do monte ainda dos mouros
bem perseguido, e quizera fazer sobr'elles uma vol-
ta, para com elles em pelleja esprementar sua fortu-
na, mas por fora de nobres homens que hi eram,
vendo a disposio de tamanho perigo, o tiraram e
passaram alm de um rio, onde chegou a elle o conde
VOL. III
fol.
4
50
Biblioiheca de Clssicos Portuguezes
de Villa Real que sempre ficara de trs, que seu
brao e acordo escusou muito dano a El-Rei, que
em publico lhe disse: Conde a f ficou hoje toda em
vs, e de hi contra vontade de muitos, El-Rei se foi
aquella noite alojar a Tutuam, e. ao outro dia partiu
para Ceuta. E no caminho fez vir ante si D. Anrique
de Menezes, filho do conde D. Duarte, e o confortou
com louvores da honrada morte de seu pae, e com
esperana de grande acrecentamento. que por seus
servios e merecimentos lhe faria como fez, porque
alli o fez conde, e lhe deu todalas mercs que seu
pae tinha. Verdade que lhe tirou Vianna de Cami-
nha, e lhe deu depois Vallena com o titulo de conde
d'ella, e depois o de Loul.
CAPITULO CLVII
De como El-Rei se veiu a Portugal e
foi
em romaria
a Guadalupe, e se viu com El-Rei D. Anriqnc e
com a Rainha sua mulher
X
anto que El-Rei despachou suas cousas em Ceu-
ta, se partiu logo para o reino, e veiu desem-
barcar a Tavilla, e de hi foi ter a vora a
Pscoa d'este anno de mil e quatrocentos e sessenta
e quatro. Passada a qual se foi a Elvas, e d'hi com
alguns senhores e fidalgos escolhidos, secretamente se
foi em romaria a Santa Maria de Guadalupe. E de hi
para concerto
j
praticado se foi ao lugar da ponte
do Arcebispo, onde se viu com El-Rei D. Anrique, e
com a Rainha D. Joana sua irm. E alli tiveram as
mesmas praticas e acordos de Gibaltar sobre casa-
mentos e lianas, que em fim no houveram efeito,
Ckronica d'El-Rei D.
ffonso
V
porque a Infante D. Isabel de Castella, contra vonta-
de d'El-Rei D. Anrique, e por meio do Arcebispo de
Tolledo casou logo com D. Fernando, Prncipe
d'Arago e de Cicilia, que depois reinaram pacifica-
mente em Castella, e o Prncipe de Portugal casou
com a Senhora D. Lianor sua prima com irm, filha
maior do Infante D. Fernando, que depois foi Rai-
nha de Portugal.
N'este anno de mil e quatrocentos sessenta e qua-
tro, no mez d'Agosto, falleceu o Papa Pio, e sobce-
deu aps elle o Papa Paulo segundo.
CAPITULO CLVIII
De como houve em Castella grande deviso, sobre que
houve vistas na cidade da Guarda
com a Rainha
irm d'El-Rei
Eno
anno seguinte de mil e quatrocentos e ses-
senta e cinco houve em Castella entre El-Rei
D. Anrique e os senhores do reino grande
differena; porque alguns por vicios e erros que lhe
punham, lhe alevantaram a obedincia e a deram ao
Infante D. Affonso, que em moo alevantaram por
Rei, sobre a qual cousa a Rainha D.
Joana de Cas-
tella para pedir ajuda e socorro contra os revs a
El-Rei D. Anrique seu marido, e assi ainda sobre os
ditos e lianas veiu cidade da Guarda em Portugal.
Onde El-Rei tambm veiu, e fez cortes de todolos
grandes e povos de seus reinos, e todos a ellas vie-
ram salvo o Infante D. Fernando, que em vindo
adoeceu na sua villa de Covilh e no pde estar n'el-
las, nas quaes a Rainha em nome d'El-Rei e seu re-
52
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
quereu a dita ajuda, com fundamentos e causas que
pareciam de honra, razo e proveito, mas em fim co-
nhecida a condio varivel do dito Rei D. Anrique,
e outras cousas mui perjudiciaes a taes lianas, foi
El -Rei aconselhado que em tal discrdia e empreza
nem lianas se no antremettesse, da qual cousa com
a
mais honestidade que pde se escusou. Como quer
que nos primeiros movimentos sua teno foi dar-lhe
ajuda, para que antes d'estas cortes fez alguns perce-
bimentos. E segundo o muito desejo que para isso
tinha, no fora maravilha forar as prudentes vozes
e acordos de seu conselho, se o dito Rei D. Anrique
fora dos seus vassallos mais tempo desobedecido; mas
falleceu logo o dito Rei D. Affonso seu irmo e com-
petidor, por cuja morte todalas rebelies e alvoro-
os cessaram em Castella
;
porque os cavaleiros des-
obedientes no tendo cabea de seu alevantamento,
volveram logo a obedincia d'El-Rei D. Anrique.
CAPITULO CLIX
De como se concertou casamento entre o Prncipe D.
Joo com a Senhora D. Lianor
filha
do Infante
D. Fernando
as cousas que nos annos seguintes de mil e
quatrocentos sessenta e seis, sessenta e sete e
sessenta e oito, n'estes reinos de Portugal so-
bcederam, foi concerto que se fez do Prncipe D.
Joo,
filho d'El-Rei D. Affonso com a Senhora D.
Lianor, filha maior do Infante D. Fernando
;
porque
como quer que o dito Prncipe muitas vezes fora
d'El-Rei D. Anrique requerido para casar com a Se-
nhora D. Joana sua filha, Princeza que ento se dizia
Chronica d'El-Rei D.
Affonso
V 53
de Castella, e El-Rei D. Affonso era a isso inclinado
;
porque no tempo d'este requerimento sobreveio o
mau sobcedimento do escallamento de Tangere, de
que o Infante D. Fernando ficou mui anojado e triste,
e El-Rei D. Affonso seu irmo pelo confortar e ale-
grar como era razo, e tambm porque a dita Se-
nhora D. Lianor sua filha por seu real sangue, mui-
tas bondades, e gram perfeio era dina de um grande
Imperador, prouve-lhe que o casamento do Prncipe
seu filho se fizesse com ella. E que emquanto ambos
cumprissem a idade necessria para contraer perfeito
matrimonio, se houvesse a despensao Apostlica
como se houve do Papa Paulo. E porm ao tempo
que a dita despensao veio, que foi no anno de mil
e quatrocentos e setenta, o Infante D. Fernando era
fallecido como se dir.
CAPITULO CLX
De como o Infante D. Fernando passou por si em
Africa, e tomou a cidade de Anafee
Eno
anno de sessenta e nove, o Infante D. Fer-
nando como era de mui nobre corao, de
que nunca sahia um louvado desejo d'acre-
centar sua honra e estado, especialmente na guerra
dos mouros, que lhe
j
vinha por legitima sobcesso,
por licena e ajuda d'El-Rei seu irmo, com grande
frota e muita e boa gente passou em Africa onde di-
zem as praias, e sem muita resistncia tomou a cidade
d'Anafee, que na costa do mar; porque os mouros
vendo sobre si tamanha frota, com tanto poder a que
no podiam resistir, por salvarem suas vidas desam-
pararam a cidade, que foi logo entrada e roubada
;
e
54 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
porque era de grande cerca, cuja defenso seria mui
difficil, quizera o Infante manter com fronteiros o
castello, e finalmente depois de tudo bem consirado
;
porque na frota no ia gente e mantimentos que po-
dessem leixar e soprir deffenso da cidade, e baste-
cimento de tamanhas paredes, acordaram de em mui-
tas partes a desportilhar e derribar, e tornar-se o In-
fante ao reino, e assi o fez.
O infante D. Fernando depois d'esta vinda d'Ana-
fee adoeceu, e foi sua doena algum tanto perlongada,
durando a qual afirmou de todo com El-Rei seu ir-
mo o casamento do Prncipe com sua filha. E con-
certou outro da Senhora D. Isabel tambm sua filha
ligitima com o conde de Guimares, que por maior
ennobrecimento d'este casamento, El-Rei o fez duque
da mesma villa de Guimares, sendo ainda vivo o
duque de Bragana seu padre, por cuja morte sobce-
deu o titulo de dois ducados.
CAPITULO CLXI
Do fallecimento do Infante D. Fernando, e dos
filhos
que delle
ficaram
Eno
anno de mil e quatrocentos e setenta, a de-
zoito dias do mez de Setembro, o dito Infante
D. Fernando falleceu, e deu sua alma a Deos
em Setuvel, em idade de xxxvn annos, sendo El-Rei
seu irmo e a Infante sua mulher presentes, por cuja
morte fizeram claros sinaes de grande dor e senti-
mento; foi seu corpo logo enterrado no mosteiro de
S. Francisco da observncia, que junto com a dita
villa, e de hi foram depois seus ossos com muita honra,
e grande solemnidade, treladados ao mosteiro da
Chronica (VEl-Bei D.
Affonso
V 55
Conceio de Beja, onde jazem em sua mui honrada
sepultura, a qual a Senhora Infante D. Briatiz sua mu-
lher como Princesa em toda mui virtuosa, juntamente
com o dito mosteiro de novo fundou e edificou com
grandes suas despesas, e perpetuamente o dotou de
muitas rendas e singulares ornamentos.
Ficaram d'elle quatro filhos, e as duas filhas que
j
disse, e dos filhos o maior houve nome D.
Joo,
a que
El-Rei fez duque de Vizeu e de Beja, e lhe deu a go-
vernana dos Mestrados de Christus e Santiago, com
todo o mais que o Infante seu padre tinha, e logo em
moo falleceu, a que em todo sobcedeu o filho se-
gundo, que havia nome D. Diogo, salvo o Mestrado
de Santiago, que por prazer e consentimento da dita
Infante foi dado ao Prncipe, e este duque houve a
fim que a Chronica d'El-Rei D.
Joo
faz meno, e o
terceiro filho houve nome D. Duarte, que o Prncipe
recolheu para si, e criando-o em sua casa com muita
honra e grande amor como prprio filho, falleceu em
moo, e o quarto houve nome D. Manuel, que por
morte do duque D. Diogo o sobcedeu logo como se
dir. E depois por seus merecimentos e boa ventura,
por fallecimento de ligitimo herdeiro que d'El-Rei D.
Joo
seu primo ficasse, subcedeo os reinos de Portu-
gal, em que viva muitos annos para os fazer como faz
em ti.ulos e senhorios maiores, mais ricos e mais bem
aventurados.
E tambm houve D. Simo, que em moo falleceu
de sua dbena natural.
E a xxn dias de Janeiro do anno de mil e quatro-
centos setenta e um, em Setuvel, depois de vir a des-
pensao de Roma, o Prncipe D.
Joo
recebeu por
mulher por palavras de presente a Senhora Princesa
D. Lianor, entrando o Principe em idade de xv annos.
E por a morte do Infante ser ainda to fresca, no se
06 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
fizeram em seu recebimento as festas e prazeres que
em outro tempo fora razo.
CAPITULO CLXII
D
como tendo El- Rei determinado passar em Africa,
convertia a armada contra os inglezes pela tomada
das nos de Portugal, e desistiu cTisso pela morte
do conde Baroique, e se ordenou a ida sobre Arzilla
ErTeste
anno e assi no passado determinou El-
Rei de passar em Africa, para que teve em pes-
soa, e assi mandou ter praticas e conselhos em
Lisboa nas casas do conde de Monsanto.
E o primeiro desejo e movimento d'El-Rei foi ir
sobre Tangere. Mas porque para cercar e combater
tamanha cidade, por ento no se achou no reino o
soprimento que era necessrio, desistiu El-Rei d'este
propsito, e com fundamentos de bom conquistador,
e com evidentes razes que lhe foram apontadas, de
que se tambm ao diante no perdia a esperana do
cobramento de Tangere, assentou ir sobre Arzilla, que
logo por Vicente Simes, homem nas cousas do mar
bem esperto e entendido, e por Pro d'Alcaova seu
escrivo da fazenda e de que muito fiava, mandou
muitas vezes espiar e vr, assim no que cumpria para
o ancorar e desembarcar do mar como para o assento
da terra. Em que com fingidos negcios com que os
mouros tratavam, acabaram de ser certificados de todo
o que para uma cousa e para a outra era necessrio, de
que perfeitamente avisaram El-Rei, que logo mandou
fazer no reino e fora d'elle os percebimentos de na-
vios, armas e mantimentos para trinta mil homens,
Chronica d'El-Rei D. Affonso
V
com
que determinou passar, e estando El- Rei
j
casi
prestes, foi certificado que doze nos grossas de seus
reinos vindo em canal de Frandes foram tomadas, e
suas mercadorias roubadas por Facumbrix, cosairo,
capito e sobrinho do conde Baroique, que a este
tempo governava o reino de Inglaterra.
E sobre os agravos e lamentaes que* os mercado-
res e povo d'estes reinos acerca de seus damnos e per-
das fizeram a El-Rei, elle teve logo conselho com os
principaes de sua corte. E assi o enviou pedir aos
grandes e senhores do seu reino, que lh'o enviaram
por escripto. Dos quaes sustancialmente foi pela mr
parte aconselhado, que a armada d'Africa que era vo-
luntria, e convertesse por muitas razes esta contra
os
inglezes, que era obrigatria e necessria. E que
fosse grossa e de muito e boa gente, para que dal-
gum castigo d'estes nascesse receio aos outros muitos,
que a seus vassallos no fizessem no rnar os males e
damnos que cada dia e sem emenda lhe faziam. A
qual
parte El-Rei mais inclinado, ordenou armar grossa-
mente, e dava por capito d'armada D.
Joo
filho do
duque, que depois foi Condestabre e marquez de Mon-
temr-o-Novo, e com elle carraas e muitas nos gros-
sas, e outros navios pequenos em grande numero.
E estando tudo
j
quasi prestes, veiu certido a El-
Rei estando em Lisboa, no mez de Junho,
que o dito
conde Baroique, e o Rei porque governava Ingla-
terra, eram em batalha mortos por El-Rei Duarte,
que depois pacificamente reinou, pelo qual El-Rei foi
logo movido cessar da dita armada, que para emenda
e vingana do dito conde fazia, e a mudar no pri-
meiro propsito de passar em Africa, sobre que pri-
meiro se fundara. E que a entrega das nos e merca-
dorias de seus reinos remedeasse como remedeou, e
procurou por embaixadas, que com pessoas d'autori-
58 Bibliotheca de Clssicos Portuguezes
dade a Inglaterra e a Borgonha muitas vezes depois
enviou. E assi mandou pelo reino suas cartas de per-
cebimentos, com aviso que os condes e senhores so-
mente levassem cavallos.
CAPITULO CLXIII
De como El-Rei levou comsigo o Prncipe seu
filho,
e
como embarcaram, e com que gente e frota
eterminou El-Rei a requerimento do Prncipe
seu filho, e contra conselho dos mais princi-
paes do reino de o levar n'esta passagem com-
sigo, e leixou por inteiro governador, e com nome de
governador do reino o duque de Bragana, que escu-
sando-se por sua velhice de tal cargo, se convidava
para ir com elle guerra dos mouros, porque seu co-
rao e devoo no enfraquecia; porque a ella foi
sampre mui inclinado. E porque El-Rei era sabedor
que entre alguns grandes e pessoas principaes de seus
reinos, que para sua passagem eram percebidos, havia
dios e dissenses, e outros jaziam em publicas excom-
munhes, El-Rei com a s pena que ps de os no le-
var comsigo se no se concordassem e asolvessem,
elles por no ficarem se concordaram e satisfezeram e
se reconciliaram.
Encommendou El-Rei o cargo da gente d'entre Doiro
e Minho, e da frota do Porto ao duque de Guimares,
que se ajuntou com El-Rei em Lisboa no comeo do
mez d'Agosto do anno do nascimento de nosso Se-
nhor Jesus
Christo de mil e quatrocentos setenta e
um,
em que El-Rei houvera de partir, e por ventos
que no teravam de viagem, suspendeu sua partida
Chronka d'El-Rei D. Afonso
V 59
at dia da Asumo de Nossa Senhora, que aos
quinze dias do dito mez, em que depois de elle e o
Prncipe entrarem no mar com mui solemne procis-
so, e com maravilhoso e grande triumpho, sobreveiu
vento prospero e desejado, com que partiu de Restello
e chegou a Lagos, onde o
j
esperavam os navios e
gente do Algarve. E assi o conde de Valena que
viera d'Alcacere, com que sua real frota refez por to-
das numero de quatrocentas e setenta e sete vellas, e
at trinta mil homens. E alli depois de ouvir missa, e
para o caso uma devota pregao, e revellar a todos
sua ida sobre Arzilla, foram elle e o Prncipe com
uma devota procisso e grande estrondo de trombe-
tas e manistreis altos e baixos, mettidos nos bateis, e
de hi aos navios que logo fizeram vella, que com vento
bonanoso chegaram d'Avante dita villa d'Arzilla,
onde sua frota ancorou aos xx dias do dito mez,
j
sobre tarde, os mouros da qual como de dia houve-
ram vista d'ella; porque da passagem d'El-Rei tinham
j
muitos avisos, adivinhando com receio seu mal, se
comearam de prover como para tal necessidade e
afronta cumpria.
CAPITULO CLXIV
De como El-Rei tomou terra em Arzilla
Eno
outro dia em amanhecendo, depois d'El-Rei
ter conselho sobre sua desembarcao e filha-
mento da terra, mandou apparelhar e armar os
bateis e caravellas pequenas, e barcas de carreto para
logo na melhor ordenana, e que mais fosse possvel
tomarem terra. E como quer que o porto era mui
6U
Bibliotheca de Clssicos Portugueses
perigoso
;
porque o mar quellas horas andava mui
alevantado, e quebrava com muita braveza em um
arrecife de pedra que tem, com entradas ms de to-
mar, El-Rei todavia mandou com muito esforo e
presteza remar e tomar a terra, onde elle por maior
esforo de todos no quiz ser dos segundos, em que
se perdeu uma gal com outras caravellas e ba-
teis, em que no mar morreram at oito fidalgos, e da
outra gente at duzentos, em que eram alguns bons
cavalleiros e escudeiros.
E porm no primeiro bote sairam logo com El-Rei
muita gente, toda bem armada, sem alguma contra-
dio dos mouros em sua saida, e os outros que na frota
ficavam, com quanto viam ante os olhos sua clara per-
dio, no receiavam por isso com uma perfiosa bon-
dade d'entrar nos bateis e caravellas, como se em um
rb manso entrassem, at que aos trs dias com a se-
gurana e maior resguardo que foi possvel acabaram
de sair em terra.
E no dia em que El-Rei sahio, logo ps cerco
villa em torno de mar, cerrando e defensando seu
arrayal com alta cava
;
porque o palanque que levava,
pela braveza do mar no poder logo sahir.
E das muitas e grossas bombardas que El-Rei le-
vava, que com a tormenta das nos se no podiam
tirar, sairam somente duas pequenas, que em duas
partes da villa foram logo ensejadas. E comearam
apressadamente de fazer seus tiros, e assi os espingar-
deiros e besteiros no cessavam de combater, e porm
sem fundamento de ordenado combate
;
porque o ge-
ral e da maior affronta em que se punha toda a es-
perana da victoria, tinha El-Rei reservado para de-
pois que todas suas artilherias fossem assentadas. E
porm as bombardas desfizeram dois lanos do muro
at o meio, onde os mouros logo acudiram e repaira-
Chronica d'El Rei D.
Affonso
V 61
ram com muito esforo e no sem algum dano dos
christos, de que tambm com espingardas e bestas
os mouros eram mui danificados.
CAPITULO CLXV
De corno a villa
foi
entrada, e o Prncipe
foi
armado
cavalleiro, e morreram o conde de Marialva, e o
conde de Monsanto e outros
Eaos
xxiv dias do dito mez, que era dia de S.
Bertolameu, pela manh, D. lvaro de Castro,
conde de Monsanto, a que a estancia e guarda
do castello era encomendada, enviou dizer a
El-Rei que estava em sua tenda, que o Alcaide da dita
villa lhe queria ir falar sobre concerto, que era tal que
o devia aceitar. E ante de El-Rei dar final resposta,
tendo vontade de se concordar como aos mouros
j
escreveram e mandaram requerer, vieram logo vozes
emtoados por todos que a villa se entrava. O que a
vista prpria d'El-Rei que a isso com muita trigana
sahiu, fez mui certo e verdadeiro; porque como o ru-
mor correu que a villa era entrada assi concorreu
logo a gente do arraial aos muros, a que com muitas
escadas e engenhos que para isso eram ordenados,
sem alguma certa ordem de combate, logo com muita
ardideza subiram e entraram dita villa por todalas
partes.
E os mouros vendo-se entrados e perseguidos dos
christos, pelejando bravamente uns se recolheram
misquita, e outros, os mais honrados ao castello. E
com os da misquita ante de ser vencida, houve de
uma parte e da outra mui crua e sangoenta peleja.
Em que dos christos entre outros morreu principal
Bibliotheca de Clssicos Porugaezes
e como ardido e valente cavalleiro, D.
Joo
Couti-
nho, conde de Marialva, que com seu brao acompa-
nhou primeiro seu corpo d outros corpos vazios d'al-
mas imigas, e no sem grande tristeza que El-Rei e
o Prncipe e toda a corte por sua morte tomaram, e
no sem causa; porque era mancebo, e senhor de
grande e honrada casa, e em que se vivera pareciam
j
virtuosos sinaes d'haver n'elle para o reino um sin-
gular homem para armas e conselho.
E acabada a peleja da misquita, logo a gente re-
correu ao castello, que de todalas partes era mui
forte e defensvel, cujo combate por esforo d'El-Rei
e do Prncipe, que eram presentes, foi com tanta for-
a e ardideza cometido, que logo antes de algumas
escadas serem postas, os christos por lanas e pos
com muita desenvoltura sobiam s torres e muros, de
que os debaixo com uma louvada inveja de tanta
honra, esquecidos de todo perigo cometiam seus
corpos com armas pesadas a mui fracas toucas de li-
nho, porque os aliavam e subiam acima, onde nos
muros e torres que dos christos se entravam, e de-
pois no patim do castello houve to mortal peleja,
como parecia claro nos muitos mortos e feridos que
em todas partes jaziam.
Alli no castello alm d'outros nobres christos que
com ferro morreram, foi morto D. lvaro de Castro,
conde de Monsanto, camareiro-mr d'El-Rei, que sua
morte muito sentio; porque certo elle no campo e na
corte, na paz e na guerra era por seu siso, discris-
so e esforo, homem mui principal. E em fim assi
foram os mouros da villa e do castello cometidos,
que todos ficaram mortos e captivos sem alguma
excepo, cujo numero segundo comum oramento
seriam dos mortos at dois mil, e dos captivos at
cinco mil. E foi achado e tomado na villa mui gran-
Chronica d'El-Eei D.
Affnnso
V 63
de e rico despojo, que foi estimado a oitenta mil do-
bras d'ouro. Do qual todo El-Rei fez aos tomadores
escala franca, sem reservar para si quinto, nem outro
direito algum.
Acharam-se dentro cincoenta captivos christos, a
que a santa victoria deu livre redeno. E EI-Rei e o
Prncipe, assi no entrar da villa, como no soccorrer
e prover das muitas pelejas e afronta dos combates,
no somente por seu conselho e exforo usaram de
ofcios, que pareciam e eram de aprovados capites;
mas ainda por seus braos cometeram e acabaram
feitos como ardidos e valentes cavalleiros, sem algum
resguardo nem tento do que a suas pessoas e dini-
dades reaes se deviam, e certamente era grande glo-
ria vr aquelle dia na mo do Prncipe em idade de
xvi annos sua espada de bravos golpes torcida, e de
sangue de infiis em todo banhada, em cuja vista a
mor parte da alegria era d'El-Rei seu padre, que
n'aquella victoria e perigo o tomou por parceiro, ven-
do que em ajuda to necessria, e perigo to conhe-
cido no poclera no mundo escolher melhor compa-
nheiro do que gerara por filho.
E porm como El-Rei sentiu que o feito com de-
sejado vencimento era de todo acabado, foi logo
misquita dos mouros, onde sobre o corpo do conde
de Marialva achou
j
uma cruz, a qual por comeo
do servio e sacrifcio, que a Deus n'ella ao diante se
havia de fazer, logo beijou e adorou, e depois de fa-
zer orao, logo junto com o corpo morto do dito
conde, armou per si o Principe seu filho por cavaleiro,
com palavras de grandes louvores, e muitas bonda-
des e merecimentos do mesmo conde. E sendo am-
bos d'armas victoriosas vestidos, El-Rei no cabo de
auto to devoto e to glorioso, disse ao Principe, e
no sem algumas lagrimas :
64
Bibliotheca de Clssicos Portuguezes