1) O documento apresenta um prefácio e uma nota da editora sobre a obra e a vida do autor Aníbal Machado, um dos principais contistas brasileiros do século XX.
2) Aníbal Machado nasceu em Minas Gerais em 1894 e publicou suas primeiras obras na década de 1920, destacando-se como um dos principais nomes do modernismo brasileiro.
3) Sua obra mais conhecida é o livro de contos "A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histórias", publicado originalmente em 1944
1) O documento apresenta um prefácio e uma nota da editora sobre a obra e a vida do autor Aníbal Machado, um dos principais contistas brasileiros do século XX.
2) Aníbal Machado nasceu em Minas Gerais em 1894 e publicou suas primeiras obras na década de 1920, destacando-se como um dos principais nomes do modernismo brasileiro.
3) Sua obra mais conhecida é o livro de contos "A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histórias", publicado originalmente em 1944
1) O documento apresenta um prefácio e uma nota da editora sobre a obra e a vida do autor Aníbal Machado, um dos principais contistas brasileiros do século XX.
2) Aníbal Machado nasceu em Minas Gerais em 1894 e publicou suas primeiras obras na década de 1920, destacando-se como um dos principais nomes do modernismo brasileiro.
3) Sua obra mais conhecida é o livro de contos "A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histórias", publicado originalmente em 1944
1) O documento apresenta um prefácio e uma nota da editora sobre a obra e a vida do autor Aníbal Machado, um dos principais contistas brasileiros do século XX.
2) Aníbal Machado nasceu em Minas Gerais em 1894 e publicou suas primeiras obras na década de 1920, destacando-se como um dos principais nomes do modernismo brasileiro.
3) Sua obra mais conhecida é o livro de contos "A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histórias", publicado originalmente em 1944
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A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE E OUTRAS HISTRIAS
contos de ANBAL M. MACHADO
Orelhas
anbal machado - um mestre do conto brasileiro
M. CAVALCANTI PROENA: "EMBORA NACIONAL, at mesmo mineira, a obra de Anbal Machado est embebida de UNIVERSALISMO e, se necessrio restringir o conceito, diremos que esse universal vai da claridade francesa inteligncia da latinidade. Aquele "sens de Ia composition", de que Roger Martin, du Cartl s faz crdito ao seu professor Louis Mellerio, Anbal Machado o atingiu atravs de uma intuio autodidtica e de um perfeito domnio da linguagem. No final resultou um ESCRITOR CLSSICO, CUJOS TEXTOS SERVIRO PARA ENSINO 'DA TCNICA LITERRIA NAS ESCOLAS." OTTO MARIA CARPEAUX: "Quando se escrever, um dia, a histria da literatura brasileira moderna, ficar reservada uma pgina bem nutrida para o autor de A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histrias: pois foi ele UM DOS MELHORES CONTISTAS DO SCULO." JORGE AMADO: "Sua obra a de UM MESTRE DO CONTO BRASILEIRO. Nascido em Minas Gerais, foi, de certa maneira, um escritor carioca, pela temtica e tambm pela maneira de encarar a vida. Mas foi sobretudo o grande contista brasileiro do modernismo, aquele que realmente se realizou e trouxe uma contribuio ao desenvolvimento e ao crescimento de nossa literatura.,
A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE E OUTRAS HISTRIAS
LIVRARIA JOS OLYMPIO EDITORA Coleo SAGARANA
Volume N. 19
rua marqus de olinda n. 12 (botafogo) Rio de Janeiro - RJ A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE E OUTRAS HISTRIAS contos de ANBAL M. MACHADO 2.a edio publicada em 1969 (com fotografias). introduo de M. CAVALCANTI PROENA
nota da editora (perfil biobibliogrfico de A.M.M.) retrato do Autor por Lus JARDIM capa de EUGNIO HIRSCH ANBAL M. MACHADO A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE E OUTRAS HISTRIAS INTRODUO DE M. CAVALCANTI PROENA segunda edio LIVRARIA JOS OLYMPIO EDITORA Rio de janeiro
OBRAS DO AUTOR O Cinema e Sua Influncia na Vida Moderna Conferncia-Publicao do Instituto Brasil-Estados Unidos, Rio, 1941. Vila Feliz Novelas-Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1944. (Incorporado, com o texto revisto, a Histrias Reunidas-Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1959, o qual, por uma vez, passou a constituir o livro A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histrias, Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1965.) ABC das Catstrofes e Topografia da Insnia Ensaio poemtico-Edio Hipocampo (tiragem limitada)-Niteri, 1951. (Includo em 1957 no volume Cadernos de Joo.) Goeldi Ministrio da Educao: Servio de Documentao, 1955. Poemas em Prosa Coleo Maldoror-Editora Civilizao Brasileira (tiragem limitada)-Rio, 1955. (Includo em 1957 no volume Cadernos de Joo.) Cadernos de Joo Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1957. Histrias Reunidas (Contendo o texto revisto de Vila Feliz e 7 histrias inditas)-Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1959, esg. (Passou em 1965 a constituir o volume A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histrias.) Joo Ternura (Obra pstuma-Prefcio de Otto Maria Carpeaux, Introduo Biobiblio- grfica de Renard Perez, Balada de Carlos Drummond de Andrade) - Edio ilustrada. Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1965. 2.a edio, na Coleo Sagarana, Rio, 1968. Traduo em espanhol: Joo Ternura-Tradviccin de Ren Palcios More -Editorial Proyeccin, Buenos Aires, 1967. e outras histrias
Sumrio NOTA DA EDITORA . pginas X a XII
PREFCIO (M. Cavalcanti Proena) pginas XVII a XXXVIII 0 01 O INICIADO DO VENTO pginas 3 a 34 VIAGEM AOS SEIOS DE DULIA pginas 35 a 55 O DEFUNTO INAUGURAL pginas 56 a 68 O ASCENSORISTA pginas 69 a 98 O DESFILE DOS CHAPUS pginas 99 a 105 MONLOGO DE TUQUINHA BATISTA pginas 106 a 112 O HOMEM ALTO pginas 113 a 131 O TELEGRAMA DE ATAXERXES pginas 132 a 159 ACONTECIMENTO EM VILA FELIZ pginas 160 a 180 O PIANO pginas 181 a 199 TATI A GAROTA pginas 200 a 222 A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE pginas 223 a 233 APNDICE O RATO, o GUARDA-CIVIL E o TRANSATLNTICO pginas 235 a 248
NOTA DA EDITORA (MINI-PERFIL BIOGRFICO DE ANBAL M. MACHADO) ANBAL Monteiro MACHADO nascen em Sabar, Minas Gerais, em 9 de dezembro de 1894. Filho de Virglio Cristiano Machado e D. Maria Helena AL Machado (Marieta), descende pelo lado materno de fazendeiros e proprietrios rurais em Minas e Pernambuco; pelo lado paterno, de negociantes, armadores e pescadores de baleias em Santa Catarina. Fez os estudos secundrios em Belo Horizonte, no Colgio D. Vioso, e no Externato do Ginsio Mineiro, hoje Colgio Estadual. Iniciou o curso superior na Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro, transferindo-se depois para a de Belo Horizonte, onde se formou em dezembro de 1917. Ainda estudante, publicou sob o pseudnimo de Antnio Verde os seus primeiros trabalhos literrios na revista Vida de Minas, dirigida por Milton f rates. Promotor de Justia na comarca de Aiuruoca, sul de Minas, voltou, cerca de um ano depois, para Belo Horizonte, tendo sido nomeado, em maio de 1921, professor interino de Histria Universal no Externato do Ginsio Mineiro. Nessa poca subiu redao do Dirio de Minas para indagar quem era o cronista que se assinava Manuel Fernandes da Rocha, vindo a saber que se tratava do poeta Carlos Drummond de Andrade, e conheceu tambm o contista Joo Alphonsus, tornando-se amigo de ambos. Nomeado quinto promotor pblico adjunto no Distrito Federal, em fevereiro de 1924, renunciou ao cargo por no sentir vocao para as letras jurdicas, indo reger interinamente a cadeira de Literatura no Colgio Pedro II. A esse tempo, servia no gabinete do Ministro da Justia, Dr. Augusto Vianna de Castello, lugar de que. se demitiu em virtude dos acontecimentos polticos que antecederam o movimento revolucionrio de 1930. Foi pequena e espaada a sua colaborao em revistas e suplementos literrios: Revista do Brasil (2.a fase), Boletim de Ariel, Revista Acadmica, Para Todos. suplementos literrios do Correio da Manh, Dirio de Notcias, O Jornal. Publicou alguns ensaios e crticas de arte. Tomou parte na segunda fase da "Antropofagia", movimento chefiado por Oswald de Andrade. Publicou o primeiro conto na revista Esttica, de Srgio Buarque de Hollanda e Prudente de Morais, neto. Em dezembro de 1944, por iniciativa de Eneida, a que esta Editora deu pleno apoio, publicou Vila Feliz, coletnea de contos e novelas reeditada em julho de 1959, com os textos revistos e o acrscimo de sete fices, no publicadas em livro, sob o ttulo de Histrias Reunidas. A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histrias reestampa este volume, a que se juntou um conto tambm no publicado em livro. Eleito nesse mesmo ano presidente da Associao Brasileira de Escritores, organiza com Srgio Milliet o Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores realizado em So Paulo (janeiro de 1945), do qual resultou a histrica Declarao 'de Princpios, em que se preconiza "a legalidade democrtica como garantia de completa liberdade de expresso do pensamento, da liberdade de culto, da segurana contra o temor da violncia, e do direito a uma existncia digna". Figurou por duas vezes no jri do Salo de Belas-Artes, sendo a segunda em 1957, juntamente com os artistas Oswaldo Goeldi e Franck Shaeffer. Traduziu a pea Tio Vnia, de Checov, para o "Tablado", grupo de amadores teatrais cariocas. Juntamente com Roberto Alvim Corra, traduziu Dilogos das Carmelitas, de Bernanos, e com Wlly Kellcr, diretor teatral, traduziu a pea O Guardio do Tmulo, de Kafka. Membro fundador de "Os Comediantes", do "Teatro Experimental do Negro", do "Teatro Popular Brasileiro" e do "Tablado", grupo de amadores. Deixou uma obra indita, o lendrio "Joo Ternura, lrico e vulgar", como um dia Anbal a intitulou (retirando mais tarde os adjetivos). Exerceu cargo administrativo na justia do ex-Distrito Federal, e foi casado duas vezes, tendo tido seis filhas e numerosos netos. Anbal Machado foi condecorado com a Legio de Honra. Faleceu no dia 19 de janeiro de 1964, sendo enterrado no dia de So Sebastio. Rio de Janeiro, agosto de 1968.
"QUANDO SE ESCREVER, UM DIA, A HISTRIA DA LITERATURA BRASILEIRA MODERNA, FICAR RESERVADA UMA PAGINA BEM NUTRIDA PARA O AUTOR DO VOLUME. VILA FELIZ: POIS FOI ELE UM DOS MELHORES CONTISTAS DO SCULO... BEU PAPEL HISTRICO, S COMPARVEL AO DE MARIO DE ANDRADE, FOI O DE UM GRANDE ANIMADOR DAS LETRAS E DE UM LUTADOR PELAS BOAS CAUSAS. FOI UMA GRANDE INFLUNCIA, TALVEZ UMA INFLUNCIA DECISIVA." OTTO MARIA CARPEAUX In Leitura, n. 78, Rio, 1964. (9-12-1894 e 19-1-1964) Bico-de-pena de Lus Jardim, segundo fotografia de Sascha Harnisch. O clich acima reproduz o autgrafo do escritor.
INTRODUO
M. CAVALCANTI PROENA OS BALES CATIVOS O GERAL-I Ce quil y a d'admirable dans l fantastique: U riij a que l rel. (andr breton-manifeste du surralisme.)
-EMBORA NACIONAL, at mesmo mineira, a obra de Anbal Machado est embebida de universalismo e, se necessrio restringir o conceito, diremos que esse universal vai da claridade francesa inteligncia da latinidade. Aquele "sens de Ia composition", de que Roger Martin du Gard faz crdito ao seu professor Louis Mellerio, Anbal Machado o atingiu atravs de uma intuio autodidtica e de um perfeito domnio da linguagem. No final resultou um escritor clssico, cujos textos serviro para ensino da tcnica literria nas escolas. Imagino o professor diante da classe, analisando o artesanato do autor. Pode abrir, ao acaso, qualquer dos seus livros, escolher, ao acaso, um trecho qualquer. Este, por exemplo: "A espaos, ouvia o barulho do bondezinho rilhando nas curvas da colina, a exploso de um e outro foguete que subia da vertente de guas Frreas, seguida de latidos de ces e gritos indistintos." Neste ponto, pode interromper a leitura e mostrar o emprego dos abstratos incontveis, que no tm plural; por isso, l esto barulho e exploso, enquanto "latidos" e gritos" vm no plural, porque contveis e usados concretamente; os latidos so de vrios ces, de timbre vrio, e os gritos, de diversa espcie. Funo mltipla do adjetivo indistintos, de ampla qualificao, servindo a gritos, mas a latidos tambm. A explicao poder terminar com o elogio da preciso, de vocbulos: Rilhar, no dicionrio, "roer, ou ranger os dentes"; e a roda dos bondes, triturando a areia acumulada na ranhura dos trilhos, vai rangendo, como quem mastiga torrada, ou areia mesmo. Vertente completaria a prova da riqueza lxica do autor, pois no est ali para ornato da frase, mas pela necessidade de correspondncia entre pensamento e forma. Aqui termino o faz-de-conta, em que no houve inverdade ou exagero, nascido da definio a que se no pode fugir, ao falar de Anbal Machado: escritor clssico. Ao publicar Vila Feliz, sua primeira coletnea de contos, o ficcionista j se adonara de todos os recursos e processos de sua arte. J se cristalizara em sobriedade e bom gosto aquela imaginativa efervescente, que acumula originalidade, como se ver no conto "O Rato, o Guarda-Civil e o Transatlntico", onde rvores "ossudas e verticais como mulheres magras que nunca se casaram", "deixam cair no cho, (...) um cautchu elstico, o nanquim desaproveitado de sua sombra". Assenhoreado, seu instrumento de trabalho rende o que ele deseja, acompanha-lhe o pensamento, elegante e associativo: "E todas as manhs, enquanto a criada abria a meio as venezianas, para deixar sair a poeira da arrumao, Jos Maria as escancarava para fazer entrar a paisagem." Jos Maria, avatar de machadianos funcionrios pblicos, talvez aparentado com o pai de laia Garcia, na viagem de volta aos seios de Dulia "deixava que o velho rio lhe ficasse correndo entre os dedos", e, quando ouvia "os nomes dos lugares dormidos na memria -quase esquecidos, a coisa nomeada aparecia logo adiante, rio ou povoado". No "Desfile dos Chapus"-poesia a que voltaremos adiante-os que se vo embora aparecem ao autor, passam no horizonte: "todos os chapus de outrora, em formao completa, despedindo-se de mim... pela ltima vez, tirando-me o chapu." O autor transmite aos personagens sua sensibilidade msica, ao mistrio, ao calor da linguagem. Ataxerxes "experimenta a sensao fsica das palavras. Pena no ser como esses escritores famosos que lidam com elas..." At o menino que s conhecia a fala dos ventos, sabe que as palavras importam demais, e nomeia: "o vento forte, soprado pelos gigantes, chama-se ventania; quando fica escuro, chama-se furaco, pior ainda do que a ventania." A aventura maior no domnio das palavras a de Ta ti, atravs de quem o escritor busca reconstruir a experincia infantil na conquista da linguagem: Na Zona Sul, a menina j no ouve os trens, mas ouvia "to perto o mar que, na escurido, parecia que o quarto navegava". Enquanto a me dormia "as perguntas se acumulavam na sua impacincia". E o escritor recolhe e aproveita as metforas nascidas da insuficincia de vocabulrio, comum s crianas e ao povo; indocti e non sentientes para Quintiliano, que dava exemplos: gema, para o broto das vinhas, e sede das searas. Metforas de necessidade. Por isso, Tati quer o "canrio mais maduro", e, de tardinha, ao vir das sombras, avisa me que "o quarto est murchando". No s Tati, mas o escritor, ele prprio, tambm procura na metfora a preciso de linguagem, capaz de expressar os fatos, da forma como se apresentavam sua percepo de artista. Quando narra o crime de morte, na praa apinhada, em tarde de carnaval carioca, o estarrecimento geral encontra a expresso mais sugestiva na frase: "O crime do negro abriu uma clareira silenciosa no meio do povo". Difcil reduzir a exemplificao, pois cada perodo de Anbal Machado testemunha percia artesanal e artstica. s vezes, entretanto, como em certo momento de "O Piano", em vez de anlise e explicao, s nos ocorrem adjetivos: indizvel, intraduzvel. O caso de uma famlia pobre, precisada de vender um piano velho. Anncio em jornal traz os pretendentes e, entre eles, uma pianista que, na frente dos outros, comea a tocar, experimentando o instrumento. "Era como o julgamento d. A moa continuava a tocar, como se o estivesse pondo em confisso. Falhavam as notas, algumas teclas no existiam, outras se apresentavam descorticadas. Nem as cordas vocais de cantora decrpita ou de velho cardaco soariam com aquele timbre. Quando Doli investiu, aos latidos, percebia-se que era o pronunciamento da cachorrinha. E o mal-estar culminou. Havia como que um riso difuso pela sala. Entretanto, ningum estava rindo. A moa parecia tocar agora por maldade, acentuando cacofonias, martelando teclas tortas." Neste caso, Quintiliano falaria da translatio, palavra que nos permite no ficar em falta com termos que designam objetos. Esboo do que, mais tarde, se diria termo prprio ou justa expresso. No ficaria completa a revista, embora sumarssima, se no anotssemos, desde j, a presena da ironia, uma das constantes da obra de Anbal Machado. Para cultiv-la, chega a dominar o orgulho, a substituir a ira incivilizada por um sorriso ameno, a aceitar a imperfeio humana, transformando-a em divertimento perene. O exemplo poder estar no aproveitamento acumulativo de lugares-comuns do noticirio jornalstico. "Sinais de desequilbrio mental", "indignao popular", "rigoroso inqurito", "reina absoluta ordem", e outras criaes da reportagem; quebram o clima emocional ou docemente lrico criado pelo escritor, como que subitamente acanhado. A narrativa de Anbal Machado se desenvolve em terreno fronteirio, ora pisando cho de realidade, ora pairando nas nuvens do imaginrio, entre sonho e viglia, entre esprito e matria, verdade e mentira, relatrio e fico. Juanita personagem que representa bem essa caracterstica. Sempre fora assim. Uma vez, no stio, pegou "aquela mania de imitar o movimento das bananeiras". No Rio, com pai e me sofrendo amarguras, Juanita "subia e descia as escadas danando"; at que, certo dia, "comeou a danar sozinha diante do mar, em tempo de ser engolida pelas ondas. Tirou o sapato, a blusa, soltou os cabelos, comeou a juntar gente ( ). Os estudantes no queriam deixar que fosse presa." Vai o leitor se encantando com tanta imagem de beleza e mocidade-menina de cabelos soltos na praia, dana, mar, solidariedade generosa dos moos-, quando a me, que narra o caso a Ataxerxes, plantada na realidade, presa s convenes define: "Uma cena horrorosa na praia." A dana sonho, o sonho de Juanita, o que vem durante o sonho, o que vir quando ela for bailarina, dona de si. E tenta explicar a Esmeralda:-" to bom, mame, quando a gente esquece tudo, realiza tudo o que sonha..." - E, enquanto voltava a danar, a me-realidade "correu e fechou a porta, para que os hspedes no vissem." Juanita-sonho vivia sujeita a ausncias, durante as quais no podia "prestar ateno ao trabalho. Mais impossvel ainda era explicar s outras que o cheiro, a ondulao do milharal e das bananeiras, o rumorejo do moinho, as colinas, as reses-tudo que recordava Pedra Branca lhe estava invadindo naquele momento o corao, como se o stio perdido viesse despedir-se dela." Mas a pragmtica Esmeralda, at no delrio da agonia, quando involuntariamente levita, consegue encontrar o cho, pensando ironicamente nas filas. Sente o vento da morte como "ventinho fresco da montanha" e convida:-"Subam tambm... C em cima agradvel..." - Olhava para eles longamente. Comeou, depois a indagar-lhes onde era a fila de morrer", e o delrio a levou de volta ao stio. Companheiro levitante de Juanita o prprio Ataxerxes, para quem a forma literria do telegrama e a lembrana dos tempos em que convivera com o presidente so mais importantes que o emprego. claro, est pedindo, mas, afinal, nem tanto deseja. E o mesmo Ataxerxes encontrar essa zona fronteiria-sonho e realidade-dentro de uma vitrina de gravatas. Diante dela, viaja. "Enquanto seu esprito desembarca no pas estrangeiro, os olhos se voltam para as gravatas e mergulham nelas como num mar de sargaos. Algumas pendem como serpentes do galho de metal; outras parecem armar o bote aos transeuntes; outras se estiram no cho de veludo, como raparigas em repouso, numa alcova, outras circulam como peixes." A alegoria, quase alucinao visual, determina a compra de uma gravata. "Segura-a como a um objeto mgico. Em suas mos a gravata perde o fascnio; quer devolv-la zona hipntica da vitrina", o que impossvel, logo percebemos. Um gesto fez retornar a realidade: "J est paga". O telegrama, razo de ser do conto e do prprio personagem, no se sabe se foi passado. Ataxerxes no sabia precisar se o fato "se dera em seu pensamento ou na Agncia da Avenida Rio Branco". O nmero desses nefelistas no pequeno na populao dos contos de Anbal Machado. O amor de Oliveira pelo velh impede-o de perceber a zombaria, o sarcasmo do comprador, que "teria remorsos de compr-lo por to baixo preo", e afirmava que "cometiam um crime abrindo mo de to preciosa coisa". Cego pelo amor, Oliveira duvida:-"Estaria zombando ou falando srio? perguntou mulher.-'Parece um gaiato, observou a companheira.-'Talvez no, Roslia..." Outro nefelista o preto maltrapilho que resolve "tomar para si", e sai "hipnotizado pela idia de poder possu-lo, s para ser dono de alguma coisa-e logo um objeto de luxo-ele que no era dono de coisa alguma, seno de sua viola. Era sonho que podia ser realidade imediata." E, na realidade, o sonho murcha, esfria, desaparece:-"Mas, para onde lev-lo tambm? E para qu? Nem tinha casa, nem sabia tocar." Em "A Morte da Porta-Estandarte", mal corre, na Praa Onze notcia de que tinham matado uma moa, vrias mes se convencem de que a morta era a sua filha e logo abrem no choro. Uma chega a ver "crescendo, uma rosa vermelha, bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. D um grito, cai sem sentidos." Quando volta a si, j est calma, resignada, aceitando o irremedivel. "Comea, ento, a declamar a histria da filha com o criminoso: conheceram-se num banho de mar fantasia, na praia de Ramos..." Narrativa se alongando, triste, pormenorizada; no fim, o leitor fica sabendo que a morta fora outra moa, no a pranteada Odete. Nessa atmosfera chegamos ao final, em que o preto assassino, junto moa esfaqueada, entra em delrio manso. As reticncias separam o pensamento fragmentado, deixando entender para alm do sentido comum. Impreciso do ncleo dos significados, ampliao das faixas semnticas externas. Smbolos, Decorrncia natural do ambiente mtico, da oscilao do esprito como se fora um metrnomo, cuja normal a prpria linde que extrema o onrico e o real. Para o engenheiro, o menino, sua suposta vtima, se condiciona ao vento e com ele se identifica. E rememora:-"S o vento bastava. Toda vez que comeava a soprar mais forte, Zeca da Curva aparecia! De tal maneira que a figura maltrapilha do desaparecido se tornara para mim como uma promessa de vento." No caso d, h uma polissemia: para Oliveira, ele representa um parente; para a moa noiva, a cama de casal; nem para Roslia, a realista, continua um piano, pois, para ela, dinheiro, apenas dinheiro. verdade, pois, que o material dos contos de Anbal Machado tem origem sempre na imaginao e na sensibilidade. A "razo arrazoante" (raison raisonnante), como diria Claudel, intervm a posteriori, mas intervm decisivamente. Aquela declarativa reserva de "direito de administrar o prprio caos e de impor-lhe certa ordem na tranqilidade formal das palavras", no atitude tomada diante de uma pressentida posteridade fotogrfica. Essa vigilncia intelectual lhe vem da prpria maneira clssica de ser, caracterstica de uma entre as vrias definies do bipolarismo: clssico-romntico. Andr Breton revelou que Valery no admitia a possibilidade de vir a escrever: "A marquesa saiu s cinco horas"; e acrescentava polemicamente: "...se o estilo de informao pura e simples, do qual a frase precitada oferece um exemplo, circula quase unicamente nos romances, que, devemos reconhecer, a ambio dos seus autores no muito ampla." claro que Anbal Machado tambm se negaria a escrever a mesma frase, em portugus, isto , a enunciar o mesmo pensamento em frase que registra mero informe. Us-la-ia, porm, como fez com outras da mesma classe, espcie de amarras, para manter ligados terra os bales cativos tangidos pela fantasia, tmidos da livre associao imaginativa. Autor consciente e lcido, essa conscincia lhe aplaina e define a fase crtica, em oposio criadora. Impossvel no lembrar os franceses e, agora, o mesmo Valery, para quem "a desordem essencial criao", contanto que esta se defina por determinada ordem". E, como h parentesco desta "desordem" com aquele caos, poderemos continuar recitando Valery, quando doutrina sobre a inveno esttica: "Esta criao de ordem compe-se, por um lado, de formaes espontneas, que se podem comparar s de objetos naturais que apresentam simetrias e figuras em si mesmas "inteligveis", e, por outro, de um ato consciente (vale dizer que permite distinguir e exprimir separadamente um fim e os meios)". E a, sem aparente motivo, o crtico se lembra daquela elegia dcima, livro quinto, de Ovdio, e se v como aqueles brbaros, rondando as muralhas da fortaleza romana. Tentando entrar, vou apelando, primeiro, para as citaes e logo para as comparaes e metforas, que me permitam dar ordem e clareza ao que sentimento, nem sempre sem turbidez e opalescncia. Ocorre-nos, ento, aproximar os vocbulos poeta e cartesiano. Os atritos das conotaes que, de incio, se repelem, se vo apaziguar no binmio criao-crtica. O determinismo materialista rangendo em frico com o escolstico, o individualismo que, pelos carreiros da dvida, chega ao cogito na primeira pessoa, como "l premier prncipe de k philosophie que je cherchais"; o cepticismo de amplitude muito mais genrica do que especfica... E aqui interrompemos a digresso que surgiu da necessidade de explicar, em Anbal Machado, uma ironia s vezes arenosa, certo gosto pelo exerccio arriscado de aproveitar o anedtico. No fundo, a sua norma pode sintetizar-se, essencialmente, num caos gentico e num ofcio artesanal disciplinador. 2-OCORRE, ENTO, que a voluntria, e at buscada, tendncia ao fantstico deve ser, no destruda, mas ligada realidade. A ligao se faz pela autocrtica: o escritor ironiza, expe pormenores prosaicos, planta inesperadas couves entre roseiras. Uma coleta parcial, mas de todo suficiente, pareceunos ilustrativa: Na cena culminante do conto "Viagem aos Seios de Dulia, quando ambos se encontram, j velhos, a av D. Dudu reconhece o namoradinho da procisso, a quem, num gidiano gesto gratuito mostrara o seio. "A mulher, assustada, reconhecu nele o rapazinho de outrora. Fitou-o longamente. Passoulhe pelo rosto um lampejo de mocidade," O leitor vai em plena ascenso emocional, acompanhando o escritor, prevendo o clmax romntico. E, sem aviso, logo no pargrafo seguinte, a aterrissagem: "Voltou a cabea para o cho, enrubesceu, com quarenta anos de atraso", O defunto inaugural, cujo enterro quase uma festa, pois vai ser o primeiro no cemitrio recm-construdo do lugarejo, esse defunto histrico atrai curiosos. ele prprio quem conta: "Descobriram-me a cara. Era a primeira vez que viam defunto. Ante o meu dente nico, plantado na gengiva esbranquiada, puseram-se a rir. A maioria eram rapazes". E porque o morto lhes vai roubar o campo de futebol, tm raiva dele. A imagem reaparece, ento, pargrafos adiante, com duplo * sentido: "Eu estava, de fato, um defunto convincente. As crianas trepavam no estrado para espiar e recuavam de pavor, repelidas sempre pela ponta de lana do meu dente nico", imagem formal de arma de ataque, em paralelo com a translao do atacante em futebol. Outro defunto o que desce, com os parentes, pelo elevador do prdio, no justo momento em que falta energia; ficam todos, os vivos e o morto, trancados no escuro, na caixa de madeira, atade coletivo. Quando, enfim, chegam ao andar trreo, o ascensorista conta: "As duas filhas e uma sobrinha do falecido tiveram o ataque de praxe". Chico Treva, que j cumprira sentena na cadeia, presumido monstro, ttrica figura, "s aparecia no meio dos temporais, fulgurando entre relmpagos, era tido como feiticeiro na vila". O escritor o descreve ao entrar na igreja, o leitor acompanhando trao a trao o delinear da imagem. Sbito, o artista parece ter sentido que desenhara com fora em demasia a figura do monstro romntico; e logo, com certa ironia e alguma ternura lhe suprime a pompa macabra: "Chico Treva permanecia isolado, sinistramente majestoso, na clareira que o seu vulto abria entre os fiis, protegido pelo seu prprio mau cheiro, os olhos azuis fixando as imagens." Est no mesmo conto, o apaixonado no correspondido que evoca, em mitopia, a Curva-da-Grota e lhe implora a graa de matar, em desastre, o marido da amada. Acrescentando com antecipados remorsos: "Prometo rezar para que a alma dele v para o cu, contanto que Helena venha para mim". No carnaval da Praa Onze, a velha turista adverte a filha, embevecida pelos negros que danam e cantam:-"No chegue muito perto, minha filha, que eles avanam..." A mocinha loura, no convencida, pergunta ao secretrio da Legao: -"Mas eles so ferozes?" - "No, senhorita, pode aproximar-se vontade, os negros so mansos." Assinale-se que, na linguagem popular da regio centro-oeste, avanar significa morder. Aplicado aos ces de guarda. E sobre essa conotao que repousa todo o irnico, o sarcstico mesmo, do pormenor. Enfim, a me que, s por um pressentimento, sem base no real, est certa de que a moa assassinada a sua Odete, garante, entre choro e lamentaes, que o assassino foi o namorado: "Odete j devia estar numa poa de sangue, esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava olhos dos seios dela, aquele monstro... Dizia sempre que ela havia de ser sua. E tinha uma cara malvada (...) Aqueles seios! Bem no .queria, oh! que fossem to grandes" (...) Ultimamente era um desespero; a pobrezinha mal podia atravessar a rua, sentia-se perseguida pelos homens (...) Que gente mal-educada! (...) Que adiantou soutien de arrocho?... Foi pior". 3-NO s as coisas merecem ternura. Muito mais as crianas. No s Tati, a garota, e Zeca da Curva, surrealistas em decorrncia da idade, ncleos da narrativa, mas todos os meninos que passam, fugidios, minuto que seja, em outras estrias, vm ungidos da ternura de Anbal e conquistam a nossa. O ascensorista tambm as ama, pois conta, sem amargura: "Os meninos esconderam minhas muletas"; no lhes quer mal por isso, tem pena dos garotos de apartamento, "atrs das vidraas (...) espiando a vida (...). Apenas tm direito janela, onde ficam a apreciar os moleques livres, que fumam e brincam na rua." No elevador parado, em trevas, "uma criana comeou a berrar, enquanto os pais gritavam para cont-la"; parece que o escritor censura os pais impacientes, pois essa criana, todas as vezes que aparece no conto, vem cercada de um halo de ternura. Na fantasia potica-"O Desfile dos Chapus"-h uma piscina, "tmulo aberto minha espera". (...) Vrias crianas, j mortas e esbranquiadas, retirei dela..." Quando desfila uma cartola solene, "uma chusma de chapus arruaceiros (chapus de crianas) cercava a apario" e, na mesma piscina-sepultura "boiavam como folhas secas, boinas, bons, toucas de primeira idade." O menino empinava o papagaio de papel, feliz, "tenso como a linha que segurava. Parecia um perdigueiro amarrando a caa." A ternura que envolve menino e cachorro, espraia-se pelas coisas simples e humildes como crianas, pousa nas plantas de apartamento, que "procuram suavizar a dureza do cimento (...) pena no poder arborizar os corredores". com Anbal, amamos aquele coqueirinho de terrao de edifcio, que, ao crescer, estava "lavrando a sua prpria sentena de morte". Assim, o palacete dispnico, entre paredes de arranha-cus, com um co feroz e trs coqueiros, Anbal sofrendo a "agonia do velho sobrado e de seus fiis coqueiros". Ternura que ele pe at no assassino que, ajoelhado perto de sua vtima, "bebia-lhe mudamente o ltimo sorriso, e inclinava a cabea de um lado para outro, como se estivesse contemplando uma criana". Em "O Iniciado do Vento", o vento tambm criana, vento que se esconde nas grotas, cuja "lngua fininha entra pelos buracos da fechadura"; ventos zangados; vento que "passa baixinho e vem brincar no capim", "vento que ainda no cresceu", vento-menino. O ascensorista compara "a passagem do tempo com a do vento"; vento soprando do lado da praia, quando iam asfixiar ; vento que "fustigava as frondes que os relmpagos descobriam", talvez descendente de harpas elias, revoltado com o afogamento d. Vento associado a cavalo, "cavalo e vento", desde os tempos recuados, quando Breas, transformado em garanho de clineira negra, vai misturar-se s tropilhas de Eritnio. Assim contava Homero. E o vento, personalizado, atravessa os tempos. Continua soprando, senta no ombro das velas, espalha o segredo do rei Midas. Vento Norte, que vive no jardim do gigante egosta, de Oscar Wilde, em companhia da saraiva, da neve e do gelo, atrasando a volta da primavera. Vento carruagem do diabo, para o Riobaldo dos "Grandes Sertes", diabo viajante no redemoinho, no turbilho, no meio da rua. Ventos, a repblica dos ventos, descrita pelo engenheiro que no sabe apertar os prprios parafusos. O PARTICULAR-II O PIANO" conto que merece comentrio mais extenso, pois documenta duas fases da evoluo do escritor, de vez que a retomada do tema desenvolvido em "O Homem e seu Capote", publicado como captulo de Joo Ternura e, mais tarde, no aproveitado na composio do romance. O capote que tivera seu fausto, no ccorpo de um diplomata, chega s mos de um moo pobre; depois, nem este o quer mais, pois tempo de calor, no precisa de capote; procura desvencilhar- se de vesturio to incmodo; no consegue, ningum o aceita, e, no fim, at a polcia interfere, desconfiada do inslito homem que se quer desvencilhar de um capote. No segundo conto, as linhas gerais se conservam, mas a evoluo artesanal e o domnio da composio deram ao tema um aproveitamento sensivelmente melhor. De comeo, era uma famlia que pretendia vender um piano, a fim de "transformar a saleta em quarto para futuro casal", pois a filha estava noiva. Anncio nos jornais e, j com certa estranheza, "amanhecera engalanado de flores para o sacrifcio." E comeam a chegar os pretendentes, e todos desfazem do instrumento, magoando, pouco a pouco, a famlia Oliveira. O dono da casa padece como "se fossem para si as ofensas", que era relquia de famlia. At a moa se compadece, mas a me foi dilemtica:- "Um marido ou um piano? Escolhe". Nesse momento o mvel comea a humanizar-se. O homem se irrita:-"Ests tambm contra ele, Roslia? rugiu a voz de Joo Oliveira.-'Ele quem, Joo?'-'O noss.'-'Oh! Joo, tu me julgas capaz?..." J agora quem e no que, merece respeito, Roslia seria incapaz de estar contra ele. Oliveira, ao voltar do trabalho, passa-lhe a mo "pelo verniz, da madeira, como se acariciasse o plo de um animal." Os pretendentes que no entendem, no sentem, e continuam a depreci-lo; quanto mais o depreciam, mais ele se humaniza: "Joo de Oliveira tomando as dores pelo seu piano"; e o judeu que, de vez em quando, telefona para saber do instrumento, est "como a controlar as ltimas pulsaes de um moribundo." Comeam, ento, as gestes para coloc-lo entre gente da famlia, a ele, piano imprestvel, agora transformado em parente velho e incmodo. Oliveira o conforta:-"No sers rejeitado, ficars na famlia, no mesmo sangue! (...). Sei que no ficars constrangido na casa do Messias, continuao da nossa..." A moa, essa, toma-lhe dio, porque precisa da sleta para armar o seu quarto nupcial: ".. .piano enjoado para atrapalhar a minha vida". E quando Joo de Oliveira toma a resoluo suprema. Ento, seu rosto "endureceu, enquanto seus olhos umedeciam". Iria atir-lo ao mar. As mulheres se comovem, a filha protesta; Roslia, de incio preocupada com a opinio alheia ("esquisito um piano lanado ao mar"), afinal tambm se rende humanizao d: "Ah! Joo, que deciso horrvel voc tomou (...) Ele sempre nos acompanhou". E o escritor retoma o fio da narrativa: "Faziam-se os aprestos para o saimento". Tiram a os castiais de bronze, pedais e ornatos de metal, como quem tira anis, brincos, dentes de ouro de um defunto. Ou os paramentos das cmaras morturias. E quando se d o saimento, tudo lembra um enterro, com "alguns curiosos que avanavam para v-lo mais de perto. Roslia e a filha ficaram contemplando da varanda de cima, abraadas. Tristes. No tiveram nimo de acompanh-lo. A cozinheira enxugava os olhos com o avental." Desnecessrio prosseguir, pois, daqui por diante, a dvida, comovida ou irnica, estar oscilante entre um velho defunto e um piano morto. E que, ainda nos "ltimos estertores", ia "exalando gemidos". O dono, acabado o enterro, "passou, olhando para o cho, cercado de um respeito geral". Quando "comea a discorrer sobre a vida dele", sonho e realidade se interpenetram, passa a ser referido como vtima de afogamento:-"O noss nunca mais voltar, Roslia (...) Eu vi as ondas engolirem-no.' '-Chega, meu marido, chega -'ele ainda voltou tona duas vezes'.-'J acabou! No se pensa mais, Joo.'-'Eu no queria dizer para no passar por doido (...) mas, nessa hora eu percebi claramente que ele executava a Marcha Fnebre.'- Isto foi no teu sonho desta noite, lembrou Roslia.-'No, foi ali, no mar, agora h pouco, luz do dia'..." 2-CONTO DA maior importncia, a luminosa viagem aos seios de Dulia um caminhar para o nascente, em busca de uma adolescncia deixada longe, no serto, embalsamada com a cidadezinha remota e imvel. Toda a mesmice da vida burocrtica, que desarestara e polira e lixara o aposentado Jos Maria, a ponto de, mesmo bbedo, dizer improprios contra o "Senhor Ministro", lhe deu uma alma de lusco-fusco, opaca. Mas, l no fundo, h uma luz que se confunde com a sua prpria existncia anterior, com a mocidade: os seios de Dulia e as recordaes do passado longnquo. Gradual e progressivamente vo aparecendo os motivos da imaginstica recorrente. E, j que usamos terminologia de Caroline Spurgeon, usemos, tambm, a definio: "Imagens que desempenham papel no nascimento, evoluo, mantenimento e repetio do fenmeno emotivo (...) o que , at certo ponto, anlogo ao de um tema recorrente ou 'motivo' numa fuga musical ou sonata e, ainda, numa pera de Wagner." Quando dissemos a "luminosa" viagem aos seios de Dulia, tnhamos em pensamento a acumulao de imagens relativas luz, nas suas mais variadas modalidades, desde o "plido" na penumbra, at o farol dos automveis dentro da madrugada. Pois, em termos de luz e seus opostos (escurido, trevas, noite) se estrutura o conto que poderia chamar-se "em busca da adolescncia perdida". Esse humilde Jos Maria, subitamente a translacionar em rbita, atrado pela imagem solar da adolescncia, cria, sem formulao aparente, uma teoria de tempo e durao, em que o vilrio sertanejo, parado no progresso, teria um fluir cronolgico retardado, permitindo ao filho que retorna chegar a tempo de rever Dulia ainda jovem, espera dele, como a bela adormecida, de lbio em rosa para o beijo do prncipe. Ao deixar a burocracia, homenageado pelos colegas, e quem fala em nome da Seo a funcionria Adlia, que "usava decote longo"; discursando, Adlia se refere sua "exemplar austeridade", sem imaginar "o que ocorria na alma do antigo chefe, quando os olhos deste pousavam como um relmpago, pelo colo branco de sua subordinada". Aposentado, solitrio, relembra a perdida adolescncia, e sonha com Dulia, e rememora e reconstitui aquele gesto, "o mais louco e gratuito, com que uma moa pode iluminar para sempre a vida de um homem tmido". Quando resolve modificar os prprios hbitos, modificarse a si prprio, pensa em usar "roupa clara". A certeza da solido se associa, por antonmia, luminosidade. "O farol dos automveis apagava nas guas da lagoa o reflexo das ltimas estrelas. Um casal abraava-se debaixo de uma amendoeira. Sentiu-se mais s." O "interregno do Ministrio (isto , a penumbra das salas, oposta claridade das ruas, do mar, da montanha) agora que descobrira a paisagem, apagava-se-lhe, de repente, da memria". Assim, a paisagem que v da janela, as colinas sugerindo formas, a namorada, "seus seios reluzindo na memria, como duas gemas no fundo dgua". Descobre a prpria desatualizao, s lhe interessa o passado, a amada menina-ma. "Dias e noites evocava com a cumplicidade da paisagem. E, no fundo da sua contemplao, insistiam os dois focos luminosos. Ora se acendendo, ora se apagando." Resolve, pois, retornar ao passado, cidade de Dulia. Na vspera da viagem est contente. "Mulheres sorrindo, vitrinas iluminadas." Ao chegar a Minas, quando desce do trem, "o sol vinha esgarando devagar o vu de bruma que cobria as serras tranqilas". O presente poeira da estrada, fumaa de fbricas. O companheiro de banco, no nibus, quase adivinha, indagando se vai comprar crista. Desde Curvelo, "boca do serto mineiro", Jos Maria "se sentia dentro da rea do passado". No fim da viagem, vo em lombo de burro, ele e o camaradaguia, e penetram nesse passado, enquanto, fronteira do presente, "Curvelo desaparecia atrs, numa nuvem de poeira". O serto o mesmo passado. "Oh! Velho Rio das Velhas! exclamou Jos Maria. Sempre no mesmo lugar! E todo esse tempo me esperando." A mala, "lembrana dos ex-colegas", personagens do presente, cai nga e se afunda. E ele decide: "J que foi para o fundo do rio, que l ficasse." Os rios so "os seus rios", cujo murmrio era "o primeiro rumor de um passado que vinha se aproximando". Passado que chega na frase em latim com que o bbado lhe responde saudao. E Dulia, a luminosa, presente no vulto branco, dentro da noite, do outro lado do rio, parecendo fantasma. Ia chegando ao "ncleo do seu sonho". Na procisso, luz das velas, "o canto mstico perdia-se no cu de estrelas". Na penumbra de uma rvore, Dulia lhe mostra os seios, "plidos ambos", e repete o gesto, "mostra-lhe o outro seio, branco, branco". Ele sofrer um "alumbramento". Custava-lhe acreditar que estivesse agora se aproximando dessa "fonte de claridade". Entretanto, na paisagem ensolarada, de sbito aparece o presente, na forma de "uma boiada que lhe cobriu o rosto num turbilho de poeira". Est chegando, enfim, "regio de Dulia", onde o sol tinha estado a "reluzir nos afloramentos de pedra e mica". "Estrelas cintilavam pertinho", porque estava no "pas de Dulia". Surgem as "colinas" do local do sonho, o "riacho cristalino, com um ltimo faiscador", o termo retomando, no clima do conto, a conotao de luz, em chispas, acendendo, apagando. Na penso, a paisagem obscura do que era a sua "cidade luminosa", o primeiro anncio do apagar do sonho. Vai at a rvore da adolescncia. Mas no encontra "nem a luz exterior, nem a outra, subjetiva. Dulia no est ali. Vai ao seu encontro." O caminho, no entanto, "mais estreito", h "ausncia de claridade". Por fim a encontra. Seria o clmax emocional, mas o escritor passa de repente ironia, descrevendo os "cabelos grisalhos, a voz meio rouca, sorriso agradvel, apesar dos dentes cariados". E o clmax de ironia, quando "Jos Maria pousou o olhar no colo murcho, local do memorvel acontecimento". No mais o sol, estrelas, faiscaes. A preta empregada acendeu o lampio de querosene. Tudo se envolve na noite, s fica a lembrana daquele corpo de moa, "num relmpago de esplendor". a luz que se apaga para sempre, o passado que no conseguiu ressuscitar. Para captar a luz perdida, "ambos cerraram os olhos. Duas sombras dentro da sala triste". E Jos Maria, apenas um desconhecido, "desapareceu na escurido'. 3-EM "O Iniciado do Vento" podemos assistir criao de um mito, na sua mais velha acepo: a de narrativa ou conto, como resultado espontneo da conscincia irreflexiva e acrtica, e em que as foras da natureza se personalizam, ou quase, e, personalizadas, realizam tarefas sobre-humanas e sobrenaturais. Mito ligado, pois, a uma apreenso primria da natureza, nascido do inconsciente, expressando-se atravs de uma linguagem simblica. Aqui, o personagem central o engenheiro que acaba de construir uma ponte. No importa o inexpressivo nome do engenheiro, nem o do rio sobre o qual se estendeu a ponte; mas pode ser que a se encontre o primeiro smbolo: algum tentando ligar realidade e imaginao. O engenheiro viaja de trem e est quase chegando cidadezinha, onde deve ser julgado pelo assassnio de uma criana. noite. "Estava escuro. Pelo vento que viera ao encontro do comboio e o envolvia num turbilho, pressentia-se prxima cidade." Esta primeira metfora, do vento vindo ao encontro do viajante, fora enunciada desde o terceiro pargrafo, quando o personagem "deixou cair as folhas" do jornal com notcias de crimes, e, ao baixar os olhos, v "na folha esvoaante, as fotografias de um punguista e de um cften". Da por diante se sucedero as imagens relacionadas com o vento. Os coqueiros esto ainda "imveis". As famlias comeam a fechar as janelas, pressentindo "a ventania que no tardava"; o "vento famoso", de que j se falou, pois a definio realstica da cidadezinha "cabea de comarca" tira o encanto da regio "no alto da serra". No hotel, o quarto do hspede d para "o cemitrio e para a colina fatal, onde a vtima desaparecera para sempre". E o vento volta, "a empurrar as venezianas, como que forando a entrada", ento j revestido de formas palpveis, de atributos e de sentimentos.' "Pelo que dele escapava nas frestas-lminas frias, finas-podia imaginar-lhe o mpeto veloz." E, alm do mpeto, "a noturna impacincia". Mas, da a pouco, quando o engenheiro se despede do advogado que viera oferecer-lhe defesa, o vento que sopra l fora, j aquietado e tranqilo, do "tipo retrico e banal, o que corre em toda parte, sem a menor afinidade com o outro, que era todo malcia, mocidade, fecundao". Pouco a pouco passa a agir como pessoa. Vagamente, de incio. Comea antes do depoimento do engenheiro, que deve ser tardinha, no foro, quando uma lufada quebra uma vidraa do prdio depois de entrar pelo quarto do acusado, fazendo "tudo vibrar" To diferente do vento comum, que o homem se perturba com "aquela invaso brusca e amistosa". Logo que inicia o depoimento, comea' a configurar-se o mito potico e simblico. O menino, "filho do vento"; o vento, que se associa a cavalo, como palavra e como imagem. Vento que sopra dentro do seu prprio sono. Mito a desdobrar-se em toda a sua fora potica. Infncia de menino e poesia do adulto se encontrando, a fundir-se, acima da vigilncia intelectual do escritor. A este resta, apenas, o recurso de conter, de vez em quando, os exageros lricos, pondo, aqui e ali, um trao de irnica realidade. Assim, ao menino sublimado pela iniciao, d o nome de Zeca da Curva; no meio da polifonia, ou, melhor, anemofonia, consegue fazer ouvir um "som de lata velha"; e, se no logra arrancar a aura potica do herizinho, consegue surpreend-lo urinando no vento: "com o perdo de palavra, ele mijava". Tambm as personagens apresentam caractersticas simblicas. Aquele juiz, "algo volumoso dentro da roupa preta", sugerindo um Sancho utilitrio, de caracterizao vacilante,-pois nem sequer se consegue saber se, durante o depoimento, lia a Bblia ou o Cdigo Penal. Pretende-se juiz infalvel, pois adota o princpio de julgar os casos e no as pessoas; e para no fugir quele princpio, evita emocionar-se, quer permanecer neutro. "Houve um frmito geral. S o rosto do juiz no acusava a menor alterao." Para ele a vida se apresenta como abstrao e generalidades, enquanto o escrivo a sente concreta e particular, individualizando cada caso. Os dois temperamentos colidem at em detalhes mnimos. O escrivo formalstico, e sempre que o ru diz-Vossa Senhoria, o Senhor, "seu" Juiz-ele emenda:-Vossa Excelncia. Pelo meio da narrativa, o magistrado, com discreto gesto, censura a exigncia, "fazendo sentir ao escrivo que aquilo no tinha importncia". que, pouco a pouco se fora integrando na atmosfera mtica que envolvia o depoimento. Olha para o acusado "com expresso desconhecida. Sua aparente indiferena sofreu alterao visvel". Sente-se qu quer fugir ao ambiente encantatrio, quando ordena:-" acusado no precisa voltar a falar do vento. Queira limitar-se aos fatos." Intil a tentativa de banir o vento da sala de audincia; ele "forava as janelas", parecia querer participar do interrogatrio, despertando o promotor que, mais sensvel, estivera quase em estado hipntico. O juiz, ento, j fora conquistado e acreditava no mito, como Sancho, no blsamo de D. Quixote. At o escrivo, incapaz de alar vo, chumbado realidade, parece tocado pelo encanto, pois, j no ufano, mas triste, que reafirma sua fidelidade ao senso comum. "-Para mim, vento vento e nada mais... concluiu com melancolia o escrivo, acenando com a cabea." E, desde ento, na cidade, "o vento comeou a existir". Note-se, entretanto, que, em Anbal Machado no h, como j se disse, o desejo de uma fantasia levitante, sem ps na terra. No. Fantasia e realidade so uma e s coisa, interpenetram-se, indelimitam-se. Os da espcie do escrivo, capazes de manobras mesquinhas, que escapam "aos olhos do juiz, sempre voltados para o mais alto e mais longe", podem ver que o engenheiro no andava senhor de todo o seu raciocnio lgico, traumatizado pela morte dos operrios; para eles, o menino Zeca da Curva deve ter fugido, para ver o mar, sozinho, escondido no bojo da locomotiva, onde o maquinista prometera lev-lo. Em todas as pginas se podem ver as cordas do balo, amarradas em estacas profundamente cravadas na terra. Os pormenores, em campo paralelo da ironia, integram os dois planos da narrativa. Exemplifiquemos: O povo espera, hostil, a chegada do engenheiro, acusado de corrupo e morte de um menino. "Ao aviso do microfone, as mes apanharam as crianas, adormecidas na grama do jardim, e se aproximaram da estao." J no comeo do depoimento, o engenheiro comea a hiperbolizar a figura do vento e fala das palmeiras, "aquelas que esto ali na frente, na praa". E o pormenor, recortado realisticamente: "Apontou para fora, todos olharam". Ao terminar, quando o mito atinge o clmax, o denunciado perora: "Um crime um crime e impe respeito; mas a narrativa, em juzo, de uma aventura com o vento, h de parecer coisa inventada e absurda. Eis por que falei tanto no vento. V. Ex.a me desculpe. Se algum culpado houve, Sr. Juiz, no caso, foi mesmo o vento. Eu quero esclarecer que me refiro a um que sopra todos os dias, e, neste momento mesmo, j comea a agitar as palmeiras l fora." Nesse ponto, imparcial, o autor se limita a observar friamente: "Toda a assistncia, menos o Juiz, voltou os olhos para a praa. As rvores principiaram a balanar". Assim integrados, o natural e o sobrenatural, o conto desliza para o desenlace, com o vento, j agora, transformado num ente vivo, merecendo dar testemunho Justia. E, no alto da colina, onde o menino desaparecera, tem um encontro com o juiz, desfolha o processo e carrega, tambm, Sua Excelncia. Para Anempolis. CONCLUINDO HORA de retomar, em sntese, o contista Anbal Machado. E de novo o apelo s citaes e aproximaes que indicam a dificuldade de situ-lo num sistema de classificao. Desde o incio se apresentaram as componentes surrealistas, sem que, entretanto, se possa reconhecer uma ortodoxa adeso ao lema de todos os caminhos "que no sejam os racionais". A sua convergncia com Valery pode ser acrescentada de outra com Mallarm, pois que em Anbal Machado a novela no imita o desordenado caos da vida e o artista continua, como na poesia, "o organizador de um sereno universo de imagens eleitas que transportam as contingentes impresses humanas para o domnio do eterno". O trecho citado de acordo com Bre e Guiton, fornece uma boa definio para os contos de Anbal Machado em que h material copioso de poesia, apresentada no ritmo livre da prosa. A sua concepo de arte como reconstruo, muito mais que imitao da realidade, aparente em toda a sua obra, caracterizada por um equilbrio entre imaginao e raciocnio. A fora antittica desses elementos foi que nos sugeriu a imagem dos bales cativos pelos quais se processa uma incurso no espao imaginativo e onrico, sem desfixar do solo as amarras de um esprito crtico atento, anti-romntico, mas sorridente. Homem do seu tempo, tinha a conscincia de que a arte no a pura expresso de uma desordenada fantasia, nem, apenas, o reflexo de conceitos intelectuais, mas o esforo criador da interao de ambos. E o que, alm disso, continua indefinvel Anbal Machado. M. C. P.
REFERNCIAS Bre, Germaine & Guiton, Margaret-1957-An Age of Ficiion, Rutgers Univcrsity Press, New Jersey, USA. Breton Andr-1963-Manifeste du Surrealisme, Galhmard, Paris. Claudl, Paul-1963-R/Zexions sur Ia, Posie, Gallimard, Paris Mallarm, Stphane-1951-GStwres Completes, Bibl. nrf de Ia Fleiade, Gallimard, Paris. ' , ... , Martin du Gard, Roger-GEwres Completes, Bibl. nrf de Ia Heiade, Vol. I, Gallimard, Paris. Ovidii Nasonis, Publii, Tristes. Quintilianus, M. Fabius, De Institutione Oratria, Lib. VIII. Valery, Paul-1962-"L'Invention Esthtique" m (Euvres, Bibl. de Ia Pliade, Vol. I, Gallimard, Paris. Rio, dezembro de 1964.
A SELMA a joo cabral de melo neto
O INICIADO DO VENTO
QUEM poder dizer que amanh mesmo aquele passageiro no esteja na manchete principal dos jornais como heri dos acontecimentos que o levam agora cidadezinha de... no alto da serra. A locomotiva ofegava entre margens de bananeiras. O passageiro abandonou o jornal, deixou cair as folhas. Lera os crimes de outros, passaria em breve a ler o seu... crime. Baixou os olhos: na folha esvoaante, as fotografias de um punguista e de um cften expulso. Amanh seria a sua fotografia. .. Lanada que fosse a notcia aos quatro ventos, no adiantava mais restabelecer a verdade, gritar sua inocncia. A que ficar reduzido depois da provao da publicidade, depois do temporal? No momento-pior que a revolta contra a injustia-era o sentimento de pudor ferido, de invaso do seu silncio. Olhou pela janela: ainda faltavam duas estaes. Mais inquieto agora, quase chorando, disse adeus ao futuro... a certa imagem de seu futuro que insistia nos sonhos da mocidade. Estava escuro. Pelo vento que viera ao encontro do comboio e o envolvia num turbilho, pressentia-se prxima a cidade. O viajante no reconhecia nesse vento o mesmo que soprava naquelas altitudes quando, concluda a ponte, buscara a estncia de repouso levando ainda nos ouvidos o barulho do concreto a despejar-se nos caixes, e o rumor suave dacorrenteza na aresta dos pilares. Fora um trabalho arrasador; meses e meses ao sol, com os operrios; e noite, dentro da barraca, os clculos no papel, a conversa com os trabalhadores; depois, os cigarros, a insnia, e a leitura at alta madrugada, - vcio a que no sabia resistir. Afinal, a obra fora inaugurada dentro do prazo. E era uma bela ponte, ele prprio o reconhecia. Gente e mercadorias j deviam estar transitando entre as duas margens. Antes assim. Um pensamento amargo tirava-lhe porm o gosto dessa evocao: ia desembarcar no mais na capital do vento, seno numa cidade irreconhecvel, cabea de comarca e sede da administrao da Justia. Perante esta fora intimado a comparecer para ser interrogado. O processo correra at ento sua revelia. Seria mesmo crime o que praticara? Os homens inventam leis, modificam vontade os cdigos. Como saber o momento preciso em que os nossos atos passam da inocncia ao crime, se a gente no distingue bem a linha divisria. -Serei mesmo um criminoso? A imagem do desaparecido sorria-lhe de longe, como que respondendo. Mal se ouvira o apito do trem, a multido que se deixara ficar at tarde da noite na praa encaminhou-se para a estao, enquanto o alto-falante anunciava: "Aproxima-se com o atraso habitual o trem que vem conduzindo a esta cidade o engenheiro Jos Roberto, o qual ser interrogado amanh pelo crime de que acusado. O Meritssimo Juiz da Comarca recomenda a todos que se mantenham calmos, respeitando a pessoa do acusado e aguardando a deciso serena da Justia." Embora sede de comarca, era to pequena a cidade que um grito ou gargalhada forte a atravessavam de ponta a ponta. Assim, no seria exagero supor que toda a populao se achava reunida ali, quela hora. Ao aviso do microfone, as mes apanharam as crianas ador mecidas na grama do jardim, e se aproximaram da Estao. No cinema, o pblico, trocando o final de um filme sonolento pela chegada do engenheiro, abandonou a sala de projeo e se dirigiu para a sacada do prdio. Dali apreciaria melhor a passagem do acusado. Os coqueiros da praa ainda se mantinham imveis. Mesmo que comeasse a ventar, no era razo para que as famlias se recolhessem, insensveis que eram, de to habituadas, quele vento famoso. A pequena locomotiva foi entrando mais devagar, como convinha, batendo demais o seu sino. Era uma mquina antiga, 4 e meio cmica quando apitava com estridncia desproporcionada ao seu tamanho. A autoridade policial e o agente da estao abriram caminho, pedindo a todos que se afastassem. Cada qual queria ser o primeiro a ver a cara do engenheiro. Este, calmo e alto, surgiu na plataforma do vago. No sabia que viajara com algum personagem importante; mas logo, pela convergncia geral dos olhares em sua pessoa, compreendeu tudo. E empalideceu. Algum teria dado o aviso de sua chegada. Houve o silncio de alguns instantes para a "tomada" de sua figura; em seguida, rompeu um murmrio indistinto mas hostil, cortado pelas slabas tnicas de alguns palavres conhecidos, se no de palavres sussurrados por inteiro. -Para o Hotel Bela Vista? interrogou o delegado. -Sim, respondeu o acusado numa voz firme que reconheceu no ser a sua. Ao passar pela ala das moas, uma delas no se conteve: -Ah, ele bonito! exclamou. E depressa, arrependida, tapou a boca com a mo. Alguns o tinham visto, meses atrs, sem lhe guardarem bem a fisionomia. Era ento, como tantos outros, um veranista de passagem. Agora, no. Vinha com a aurola do crime, ligado quela terra por um processo judicirio, por um escndalo. Os moleques tinham combinado uma vaia com busca-ps que o perseguissem durante o trajeto at. o Hotel. Maltrapilhos e abandonados, brigavam sempre entre si, mas o fato de ter sido um deles a vtima, unia-os agora no dio comum ao engenheiro. Disso tirou partido o prprio escrivo do crime com uma parcialidade que a populao aplaudia, e que o juiz da Comarca, severo, mas sempre alto e distante no desempenho de suas funes, ignorava. De tal juiz se dizia que era bom demais para aquele burgo. Seu vulto, seu saber e dignidade moral, suas nobres maneiras estavam a indicar-lhe o aproveitamento nalgum Tribunal superior, a que presidisse com beca romana e frases latinas. Nunca porm o quiseram elevar quelas cumeadas. Sempre elogios, jamais a promoo. A poltica negava justia a quem melhor a distribua. Era voz geral que, desgostoso, pedira contagem de tempo para aposentadoria. 5 Mediante manobras mesquinhas que escapavam aos olhos do juiz sempre voltados para o mais alto e o mais longe, o seu esperto escrivo conseguira prestgio e se fazia temido na cidade. Conduzia os processos, influa nas testemunhas. A vida e a liberdade de muita gente estavam em suas mos-sobretudo agora, com um promotor sentimental, sempre no stio do fazendeiro, por cuja filha se apaixonara. Por artes do escrivo, fora desrespeitada a recomendao de se preservar a pessoa do ru. O engenheiro vai subindo a ladeira entre busca-ps que lhe passam raspando pelas pernas. O hotel apresentava-se iluminado, todas as vidraas abertas. Parte da populao, apenas curiosa, seguia o hspede a certa distncia. As famlias retiraram-se, enquanto as janelas comeavam a se fechar para a ventania que no tardava. Queimados os ltimos busca-ps, os moleques transformaram o resto da noite em passeata carnavalesca, esquecidos do colega morto e de seu indigitado assassino. A este reservara a hoteleira o mesmo quarto onde o hospedara a primeira vez, dando vista para o cemitrio e para a colina fatal onde a vtima desaparecera para sempre. J o vento corria forte. Mas o engenheiro evitava qualquer pensamento ou evocao que no se prendesse sua defesa. A maneira como o receberam era um aviso. Agora que se fechara no quarto, sentia o quanto lhe perigava a liberdade. Sentado numa poltrona roda, perplexo diante do absurdo, fumava sem parar e pensava no que devia fazer. s vezes, uma onda maior de revolta cobria o seu caso pessoal, ia alcanar os fundamentos da sociedade e da condio humana em geral, o que lhe produzia certa embriaguez momentnea em que se reconhecia profeta e vociferador. Chegava a achar-se cmico nessa vertigem, mas no queria nem podia perder-se em' diva gaes: o caso concreto estava ali, como a ponta de um punhal aproximando-se de seu corao. Amanh mesmo se acharia perante a Justia, de seus olhos vendados, de sua cara falsa e fria. Enquanto fazia essas amargas reflexes, o vento no cessava um minuto de empurrar as venezianas, como que for- ando a entrada. Pelo que dele escapava nas frestas-lminas frias, finas-podia o engenheiro imaginar-lhe o mpeto veloz e a noturna impacincia. Uma pancada suave na porta, e aparece a dona do hotel. Pousa no hspede os olhos calmos e negros. A corrente de ar do corredor, entrando pelo quarto, agita ao mesmo tempo os cabelos da mulher e o cortinado das janelas. Vem com a bandeja. Traz ch e frutas. -O senhor deve estar lembrado de mim. -Sim, como no? -Vinte e tantos dias o senhor foi meu hspede, no verdade? Colocou a bandeja na mesa. O engenheiro permanecia silencioso. A mulher d um jeito ao travesseiro, passa o pano pelo aparador. - bom ir tomando antes que esfrie. Reclina o corpo para firmar o trinco de uma veneziana, o que faz com propositada lentido. -Foi pena ter acontecido aquilo... A hoteleira no leva a mal o mutismo do hspede. Estava triste e preocupado, era natural. Relanceou o aposento. No encontrou mais nenhum pretexto que a fizesse demorar ali por mais tempo. Ao sair, lembrou-se de dizer: -H um advogado l embaixo, na sala, querendo falar-lhe. A estas palavras, o engenheiro acordou de sua cisma: -Hein?... Faa-o subir, tenha a bondade. -Tome o ch antes. O senhor deve estar fatigado. Se precisar de mim s apertar o boto. Disse e retirou-se, deixando atrs, a relembr-la, um perfume insinuativo. O advogado entrou ofegante. A porta bateu-lhe atrs com estrondo. Vinha oferecer os seus servios profissionais. Ali, naquela terra, tirante o juiz, "fique certo seu doutor, ningum mais presta, nem eu mesmo!" disse com nfase, batendo no peito.-Sou um homem acabado... Minha mulher fugiu, meu filho no d notcias. Desde estudante, com a graa de Deus, fui sempre uma criatura... Ouviu-se nesse momento um grito l fora:-Morra o criminoso! 7 O causdico interrompeu o relato de sua vida" para dizer; -Est ouvindo?!... No se fala em outra coisa na rua. Acho imprudncia o senhor sair hoje. -A que horas o interrogatrio? perguntou calmamente o engenheiro. -Ah, pois no] Trs da tarde, no edifcio do Foro, segundo andar, sala de audincias. com a cara quase encostada do engenheiro, foi-lhe segredando aos ouvidos, na sua linguagem profissional: -O processo um amontoado de infmias e incongruncias. A denncia apia-se em indcios fracos. E o cadver que foi visto descendo o ribeiro nas divisas do Municpio, dez dias depois, era de um jovem de cor branca, no podia ser do Zeca da Curva. No se atemorize. Havemos de pulverizar as testemunhas. Ao sentir-lhe o hlito de sarro de charuto e cerveja, o engenheiro recuou. -H testemunhas? perguntou. -A principal o senhor conhece. -Como? -Trouxe-lhe o ch ainda h pouco. Acabou de sair deste quarto. O engenheiro no deixou transparecer por palavras o seu pasmo; apenas pela expresso do olhar e um ligeiro tremor de ombros. Aproximando-se, o advogado relanceou a porta e disse baixinho: -Ela influenciada pelo escrivo que lhe salvou o hotel de uma falncia. Dizem que sria, no sei. Duvido... O que se murmura por a, boca pequena, que ele tem uma paixo secreta por ela. Criatura m... Veja o que fez comigo: quase duas horas me deixou l embaixo na sala, com esse frio! Esquisitssima! No est ouvindo ? Pois ela... No h hspede que agente. Ficou assim desde que perdeu o marido... Mas vamos ao'principal: meus honorrios no so de assustar. Prefere negar o crime ou alegar alguma dirimente? -No houve crime! exclama o engenheiro. -Sim; compreendo... -disse o bacharel com cnica reticncia--Tambm era o que faltava se o senhor fosse confessar o crime... Mas comigo, em particular, o senhor poder abrir-se. 8 segredo profissional, saberei guard-lo. Perante o jri, sim, deve negar o fato. Dir, por exemplo, que no conhecia o menino... -Mas eu conheci o menino! Privei com ele durante vinte dias. -E o lado sexual? pergunta o advogado. -Que lado sexual?! exclama o engenheiro levantando-se com mpeto. -Est no processo. Se no me engano, no depoimento de madama... -Que madama? -A que lhe trouxe o ch, e est tocand. -Vamos cham-la! O advogado mexeu-se na cadeira, reacendeu o charuto. com esse gesto, despedia-se do ar subserviente com que entrara. Entre baforadas ressurgiu o profissional desembaraado e loquaz. -Quer um conselho? No o faa. O escrivo deve estar l embaixo. Visita-a quase todas as noites. um homem perigoso, simulador. Servil ou autoritrio, conforme a convenincia. Deixemos para esclarecer tudo em juzo. Ao que consta, essa mulher tem paixo por outra pessoa. -No me interessa... -Conforme. Se essa pessoa o prprio denunciado, convm tomar o caso em considerao. -Por mim?!. . . -Sim. E talvez o senhor nem tenha percebido. Est-se vendo que muito jovem, ainda no tem experincia. Se quiser passar agora a procurao... -No. Eu me defendo sozinho. -Sozinho! exclamou o advogado. E ainda desse jeito, confessando tudo!... Ah, meu caro, no brinque com a Justia... Est muito moo para suicidar-se. Chegou janela e olhando para a noite, comeou a dizer: -Ningum faz idia do que seja a cadeia desta cidade! Ali no entra luz, a gua mina das paredes. Venta noite e dia! Ali s os ratos e vermes so felizes!... 9 Era uma advertncia que o engenheiro achou declamatria e extempornea. Pediu desculpas ao advogado, estava cansado, precisava dormir, amanh lhe diria qualquer coisa. -Mas defenda-se, meu jovem! Por mim ou por Doutro advogado, defenda-se, disse o bacharel despedindo-se com uma emoo que o hspede no ficou sabendo se era sincera ou simulada. Mergulhou o rosto no travesseiro. Estava quase a soluar. L fora o vento guaiava. Era agora um vento de tipo retrico e banal, o que corre em toda parte sem a menor afinidade com o outro, que era todo malcia, mocidade, fecundao. A discriminao gratuita entre as duas famlias de vento prendia-se no esprito do engenheiro s impresses deprimentes da chegada. Vestido como estava, dormiu. Acordou antes da cidade. Abriu a janela. No lusco-fusco da madrugada, a cidadezinha era um amontoado triste de casas. Despertada dentro de algumas horas, ela comearia a desprender seus venenos, faria andar seu aparelho de compresso. J decidira o engenheiro o que ia fazer: tudo confessar, nada esconder. Que sabia da Lei? nada. Que sabia do fato? tudo! Batem porta, a hoteleira apresenta-se. Plida, contrafeita, os olhos quebrados pela insnia. -Desculpe-me. Vim eu mesma trazer o caf. Essas criadas de hoje no se pode confiar nelas. Quebram tudo, servem mal os hspedes. O piano o incomodou? -No, minha senhora. -Fiz o possvel para tocar baixinho, fechei as portas. a minha reza da noite. No posso dcitar-me sem tocar nem que seja um pouco. J tenho perdido hspedes por causa disso. Esta noite pensei muito no senhor. O engenheiro no sabia como definir as intenes daquela mulher. Impressionado embora com as palavras do advogado, sentiu que era preciso resistir doura de maneiras com que ela procurava envolv-lo. Manteve-se num silncio cauteloso, cortado apenas por monosslabos de estrita deferncia. A mulher olhava para o retrato colocado sobre a mesa de cabeceira. - a sua noiva? -. 10 -Eu tambm j fui moa feito ela. Os anos correm to depressa. .. Retirou da mesa a bandeja da vspera, colocou a nova, cheia de frutas, queijo, po e caf recendente: -Convm alimentar-se bem. O senhor vai ter o que fazer. No h de ser nada. Essa gente aqui muito m. Felizmente nosso juiz... J conhecia o advogado? -Vi-o ontem, pela primeira vez. -No se entregue a ele, o que lhe aconselho. Vive de combinao com o escrivo. Eu mesma... A mulher empalideceu, hesitou, deixou sair uma lgrima em vez da confisso que parecia querer soltar. Abrandou-se o nimo duro do engenheiro: -A senhora ia dizer que... -Nada... nada.. -atalhou a mulher. Retirou as rosas de uma jarra, atirou-as pela janela: -Veja s, murcharam depressa... A audincia est marcada para as trs horas, no ? Apanhou o roupo azul, colocou-o no cabide:-Bonita cor, bom tecido. Circunvagou a vista pelo aposento:- engraado, quando entro para arrumar o quarto na ausncia do hspede, eu sei logo se ele velho ou moo, solteiro ou casado. At o cheiro diferente... O engenheiro se mantinha mudo, na poltrona. -No se preocupe, Nossa Senhora h de lhe ajudar. s no excitar o nimo da populao. O menino era muito estimado. Se precisar de alguma coisa, pode me chamar. A porta de meu quarto est sempre aberta... Ante a expresso calada do engenheiro, um ar de dio transfigurou o rosto da mulher:-No meu depoimento, eu s contei o que sabia... O homem encarou a mulher. Estaria diante de uma criatura diablica? Ou de alguma incompreendida, disposta a queimar naquele hotel e lugarejo os anos maduros de sua vida, como se a renovao dos hspedes lhe diminusse a solido e tornasse possvel o encontro com algum que de repente viesse mudar-lhe o destino? -No passa de uma megera! pensou. 11 Por um momento chegou a pressentir nela uma possvel aliada. Mas logo reagiu contra esse sentimento, receando novas ciladas. A cidade ia dentro em pouco receber o vento; o sintoma era aquela sbita imobilidade e- anemia no cu. J penetrava pelo quarto e fazia tudo vibrar. Era o mesmo que o engenheiro conhecera ali, meses atrs, quando em frias. Nada queria com ele, porm. Pelo menos por enquanto. Viera cuidar de sua defesa, de sua liberdade. Precisava ter a cabea fria. Aquela invaso brusca e amistosa s vinha perturb-lo. Veja-se o que acabou de fazer l embaixo, justamente no edifcio do Foro, onde, dentro em pouco, ia proceder-se ao interrogatrio: soprou to forte que quebrou a vidraa lateral, ferindo com os estilhaos uma mulher e um ciclista. -Mandaram dizer para o senhor comparecer s trs horas, - veio informar um empregadinho que ficou a olhar para o hspede. s trs e um quarto o acusado entrou no Foro. Ali funcionavam vrias reparties municipais. Havia menos gente que na vspera, sua chegada. Passou por entre duas filas de curiosos. Relanceou a vista pela praa. Bastou um grito que veio de longe e que, ouvido pela segunda vez, lhe parecia um slogan d vingana "eh, doutorzinho! chegou tua hora!", para que tivesse a medida do dio contra a sua pessoa. Parou perplexo, como espera de um guia. Suportou os olhares reunidos de quase toda a Cmara Municipal, do Foro e da Coletoria, que tudo funcionava no mesmo prdio. Era a condenao prvia. O oficial de justia indicou-lhe a escada, acompanhou-o at a sala de audincias. No trajeto entre o primeiro degrau de pedra do saguo e o fim da escada, j no segundo andar, foise-lhe definindo na alma, apertando-lhe o corao, um sentimento que at ento no imaginava to atroz: o de ser o renegado, o maldito. Para ele todo aquele aparato. O silncio, as caras fechadas, a troca de olhares oblquos, as folhas de papel que mudavam de mesa, o reabastecimento dos tinteiros, a campainha, o Cristo de madeira, as idas e 12 vindas do oficial de justia e do advogado da vspera, os sussurros deste aos ouvidos do escrivo, e uma risadinha geral subentendida, quando no explcita,-tudo contra ele, tudo para sua desgraa. Ao entrar o juiz, o silncio se fez maior. Aquele vulto alto e cansado, algo volumoso dentro da roupa preta, trouxe-lhe certo alvio. Sem o querer, associou o trio juiz-promotor-escrivo, j sentados mesa sobre o estrado, imagem das bancas examinadoras mais exigentes do seu curso de engenharia. Como fazer com que sua verdade tivesse mais poder do que a mentira armada com os aparelhos e o cerimonial da justia? O que aconteceu e precisava contar era, de sua natureza, to inverossmil que no seria compreendido pelo tribunal popular, caso o juiz o mandasse a jri. Acabara de ouvir a leitura da denncia. Homicida!... Ser possvel? E, alm de homicida, pervertido sexual! Assim dizia a denncia do promotor. Era como se o punhal estivesse perto, doendo-lhe j no corpo. Sentiu necessidade imediata de dormir, escapar pelo sono. Mas reagiu. Tirou um cigarro, acendeu-o rapidamente; o escrivo observou que no era permitido ali. A sala foi-se enchendo. Todos, menos o juiz, o fixavam com interesse. O escrivo olhava espantado para a assistncia. Achava exagerado o nmero de moas no recinto, fato inexplicvel num simples interrogatrio; e absurdo, irritante mesmo, o tom de piedade que transparecia dos olhos delas. -At agora no constituiu advogado, nem quis ver o processo! disse o escrivo aos ouvidos do promotor. Ser liquidado. Ou ento louco! O juiz ficara lendo num livro que no se sabia bem se era a Bblia ou o Cdigo Penal. Quando finalmente levantou para o acusado os olhos congestionados e calmos, no era, a bem dizer, para enxergar nele a pessoa do engenheiro; era para o conhecimento de um caso a mais que ia apreciar como magistrado. com voz pausada, fez as perguntas de praxe. Ao declarar o ru a sua idade, uma exclamao ao fundo da sala: " uma 13 criana!", suscitou um psiu! do escrivo que se voltara irritado para o lado das moas. -Tem alguma declarao a fazer? perguntou o juiz. O denunciado respondeu que sim. Ia contar tudo, sem mesmo saber se estava se acusando gu se defendendo. No lera o processo. E dispensara o advogado. No por desprezo ao profissional que o procurara na vspera; nem por desateno Justia. Mas porque "o que vou narrar a Vossa Senhoria, Sr. Juiz... -A Vossa Excelncia, emendou o escrivo. -... O que vou narrar a Vossa Excelncia, Sr. Juiz, no poderia constar no processo. Aqui uma nuvem escura envolveu-lhe o esprito. E quase toda a sala desapareceu. Do escrivo sobrenadava a gravata vermelha, depois o rosto liso, os olhos claros. A inibio do engenheiro foi demorada. E, para a prpria assistncia, difcil de suportar. Perdido o impulso inicial que continha os germens de tudo o que ia dizer, parecia-lhe haver soobrado no momento mesmo de salvar-se. Sentiu num timo a alma danada do homem que forjicara o processo, aquele tipo que agora o encara com sarcasmo. S voltou a si, quando a voz do Juiz: -Vamos! Pode continuar. Sua conscincia ia-se turvando outra vez, quando um novo "vamos!" do juiz o despertou. Ao fazer meno de prosseguir, a sala experimentou certo alvio. Recomeou a falar com uma calma que no sabia bem de onde vinha. -"Senhor Juiz, o menino achava-se realmente comigo, no momento em que desapareceu." Houve um frmito geral. S o rosto do juiz no acusava a menor alterao. "...Mas que eu o tenha matado ou me prevalecido dele para torpezas, no verdade, oh! no verdade! vou contar tudo tal como se deu, desde o momento infeliz em que desembarquei nesta cidade. No sei se o que vou dizer significa a minha defesa ou a minha acusao, mas a expresso do que aconteceu. E o que aconteceu, advogado nenhum saber explicar. Talvez nem eu prprio. Eis a razo por que o dispensei, 14 embora Vossa Senhoria... Vossa Excelncia tivesse nomeado um para me assistir no processo. Poder algum acusar-me; defender-me, impossvel. Porque o fato se deu: o menino est (desaparecido ou morto. Talvez eu tenha sido cmplice involuntrio de uma tragdia. Mas se h no caso algum criminoso, esse criminoso no pode ser responsabilizado. Oh! impossvel ser responsabilizado! Impossvel, Sr. Juiz. S contando..." Houve uma pausa longa, aflitiva. Depois comeou a falar, como algum que se achasse sob estado de hipnose: "Senhor Juiz, sou engenheiro construtor de pontes. Procuro viver de coisas positivas e, tanto quanto possvel, explicveis. No cultivo a atrao do abismo. E o absurdo me aborrece. Se de meus pais herdei certa tendncia para o sonho, eles prprios me preveniam contra as ciladas da imaginao. Tambm no sou amador de fatos estranhos da vida, posto que sempre aconteam. J disse que sou engenheiro e construtor de pontes. Sr. Juiz, h cerca de trs meses desembarquei nesta cidade em busca de repouso. Estava esgotado, precisava refazer as foras. Desde criana, ouvira dizer que aqui ventava muito. E o nome deste lugar ficara-me na memria ligado idia de vento, como o de outros lugares idia de crime ou de tranqilidade colonial. "Durante a subida, no pensava em outra coisa. Tanto assim que ao desembarcar, ainda um pouco atordoado, interpelei logo o primeiro sujeito que se aproximou:-Onde o vento? "No preciso dizer que ele me deixou sem resposta; mas tambm no se espantou, habituado que devia estar aos modos dessa gente que chega pela primeira vez montanha, ainda com os tiques e esquisitices da cidade. "Olhei em redor. As rvores imveis, a poeira no cho e, por cmulo, abertas as vidraas. Ento no h vento algum, pensei. Era lenda. Ou talvez eu tenha descido numa hora de calmaria. Podia no estar ventando no momento e ter ventado muito, antes. "Procurei os vestgios. A iluminao escassa no me per- mitia um exame profundo. Pela disposio das frondes prximas e na pele dos raros transeuntes talvez eu pudesse descobrir sinais de sua fustigao constante. No havia; ou, se havia, era de difcil reconhecimento. Notei, verdade, as 15 pedras rodas nos alicerces, e escoriaes no reboco das paredes. Mas no era o suficiente. Foi quando dei com as palmeiras. Aquelas que esto ali em frente, na praa." Apontou para fora, todos olharam. Depois prosseguiu. "Tudo ento se esclareceu. Tinham a copa entortada para o sueste; o tronco tambm. E cicatrizes de palmas arrancadas. Vento, portanto. "No me enganara. Era pois este lugar a capital do vento. Ou pelo menos, uma cidade ventada. Enchi-me de alegria, vendo confirmar-se minha expectativa. At na figura do garoto que me esperava segurando as malas-um menino de cabelos lisos, olhos espantados, pele bronzeada, e uma mobilidade extrema na fisionomia-eu via um filho do vento. possvel, Sr. Juiz, que eu exagerasse, que visse vento em tudo. Trazia a imaginao livre e os nervos um pouco desgovernados pelo cansao. "-Voc daqui mesmo? perguntei. "-Sou, sim senhor, respondeu o garoto. "-Voc descendente de ndio? "-Minha av... i "A estao j se tinha esvaziado. "-Mas cad o vento? perguntei. "-Daqui a pouco ele comea. pr Bela Vista que o senhor vai? "-Sim. "Subimos a ladeira. Apressei os passos. No desejava ser surpreendido pelo vento ainda na rua. No me sentia preparado. "-Ele vem sempre? "-Ah! todo dia... "O pequeno carregador parecia arquejar, perguntei-lhe se queria largar a maleta no cho para uma pausa. Respondeu-me que no; estava habituado. "Um casaro apareceu todo iluminado. "- ali o Bela Vista, disse o menino. "-Voc gosta de vento? "-Gosto. Quando ele no vem eu fico aborrecido. "Falava aos arrancos, a respirao difcil. Tinha o corpo inclinado, como contrapeso mala maior.-Acho que o que eu gosto mesmo... do vento. .. 16 "J no hotel comeavam a fechar-se as vidraas. Compreendi logo: o vento no tardaria. "-O senhor tambm gosta? "Respondi com um aceno. "-Ento, se quiser, eu posso lhe arranjar um cavalo amanh para o senhor apreciar l de cima. O aluguel barato.. "Combinei a conduo com o menino. "A associao de cavalo e vento me exaltara subitamente. Parecia resgatar em mim todos os males que a fadiga acumulara. Eu falo em cansao, mas no era s isso. A imagem de cinco operrios mortos retirados do fundo da ensecadeira quando faltou a bomba-de-ar tambm no me saa da lembrana. Como ia dizendo, combinei com o menino; ele traria cedo o animal. "Entrei, mostrara-me o aposento que mal pude reparar como era. Adormeci, aflito para que amanhecesse logo. Foi um sono espesso, profundo, interrompido s vezes pelo barulho de uma ventania que eu no sabia bem se era do sonho-pois ventava tambm dentro do meu sono-ou se era a que rodava l fora. Cavalo e vento..." O engenheiro, aqui, parou de repente o relato. Qualquer fora estranha interferira em seu esprito. -No sei, Sr. Juiz-continuou como que voltando a si de um estado sonamblico-se estou contando coisas inteis. Se posso dizer tudo, se o senhor quer me ouvir at... -Se Vossa Excelncia quer me ouvir-corrigiu o escrivo. Gesto discreto do juiz fazendo sentir ao escrivo que aquilo no tinha importncia. -No sei, senhor Juiz, se o senhor quer ouvir-me at o fim. -Sim, sim, continue-disse o magistrado. -Onde mesmo que eu estava? Toda a sala se preparava para escutar o resto da histria. -Eu estava... eu estava... Ficou suspenso, tentando reatar o fio do relato. -com o cavalo e o vento... -soprou uma voz feminina junto do balastre que separa as duas metades da sala. "-Ah! sim. No dia seguinte, cedo, me levantei. No era o engenheiro fatigado da vspera; era um homem despreocupado, 17 espera de um menino com um cavalo. Eu ia descobrir os arredores, e j recebia as primeiras viraes da manh. " porta do hotel uma onda de bem-estar fazia de mim o homem mais feliz do mundo. A ponte voltou-me ao pensamento, mas sem a recordao das canseiras e problemas da construo, e j na sua imponncia de coisa concluda, til a toda uma regio. A imagem da ponte completava a minha felicidade. Foi quando apareceu o menino. "Vinha de longe, rindo, montado no cavalo, a puxar o outro que me era destinado. Aproximou-se, quis saber se tinha escutado o vento daquela noite. Eu disse que no.-Pois o senhor perdeu. Mas no foi dos melhores. O bom mesmo, o senhor vai ver hoje. "Perguntei-lhe como se chamava.-Me chamam aqui de Zeca da Curva. "-Que nome! "Passou a mo pela crina do animal e explicou gaguejando: "- porque ns sempre moramos l em cima, na volta da estrada... "Dentro de alguns minutos, j fora da cidade, eu ia pouco a pouco entrando na intimidade da paisagem. O garoto parecia contente de se ver promovido de carregador a cicerone de turista. Deu-me o nome das colinas principais, mostrou-me as corredeiras, o vale. Contou que uma vez tinha havido um incndio horroroso na fbrica, a fumaa cobrira tudo, at parecia noite, depois que veio o vento a cidade amanheceu de novo. Susteve o cavalo e ficou a olhar para o cu. "-Acho que ele j vem vindo. '"-Ele quem? "-O vento. "-Como sabe que vem? "-No corpo, uai... "-Mas o ar est parado. Que que voc sente no corpo? "-Uma coisa... "Suas narinas farejavam os longes. Alguns instantes depois, ele tinha a cabeleira em desalinho, e o meu chapu fora atirado distncia. No era ainda o vento forte que eu esperava. Parecia a vanguarda de outro, maior, que vinha avanando atrs. E medida que aumentava de velocidade, ia 18 mostrando uma qualidade diferente daqueles que correm em outros lugares. Parecia soprar da minha infncia, trazendo o que havia de melhor e de mais antigo no espao. "Viramos os animais para receb-lo de frente. Era como se cada um de ns estivesse na proa de um pequeno barco. Subitamente se animou a paisagem. Todas as rvores se manifestaram. Principalmente as bananeiras do vale e os bambuais da colina, que tambm so vistos daqui no espigo daquela serra." O denunciado apontava para a serra que se deixava ver atravs da vidraa. Ante a maneira natural com que fazia a sua narrativa, a assistncia foi perdendo a preveno e comeou a ouvi-lo com simpatia. Continuou: "-Agitavam-se de tal maneira que o apito de um trem que partia no momento ficou abafado no barulho. "-No falei que vinha? gritou o garoto, orgulhoso do seu vento. "E comeamos a correr... O que era uma delcia! "Cavalo e vento!... "com o sol no znite, voltei ao hotel. J o vento tinha cessado. O menino me perguntou quando que eu queria mais; disse-lhe que me procurasse depois. Deixou o meu cavalo pastando nas ervas da rua e desapareceu num galope. "Entrei na sala de refeies que era limpa e cheirava a cho encerado e pratos guardados. Os poucos hspedes comiam em silncio. Pareciam chocados com a minha entrada. Mandaram-me olhares furtivos, antes que os meus os rechaassem. Esses hspedes tinham o ar tristonho e pareciam desejar que ningum lhes perturbasse a paz. Eu tambm alimentava o mesmo desejo. A dona veio colocar em minha mesa uma jarra de flores silvestres, privilgio, segundo me dissera, dos hspedes recm-chegados. "Voltei ao quarto para a sesta. Meu primeiro contato com aquele vento deixou-me o corao preparado para uma aventura maior. No se pode dizer, Sr. Juiz, que eu j estivesse dominado por ele, mas dormi com seu rumor nos ouvidos, por que no dizer na alma. com o vento e tambm com a paisagem que ele transfigurara. 19 "Durante dias e dias foi a minha obsesso. Nem cheguei a retirar da mala os livros de leitura com que pretendia encher o tempo. S o vento bastava. Toda vez que comeava a soprar mais forte, Zeca da Curva aparecia. De tal maneira, que a figura maltrapilha do desaparecido se tornara para mim como uma promessa de vento. "Entre mim e ele se estabeleceu curiosa camaradagem, na qual um expandia o seu esprito infantil e o outro, eu, o adulto em frias, procurava distrao para as horas de cio. S que no podia esperar, Seu Juiz, que dessa brincadeira inicial resultasse desfecho to triste: um homem perante a Justia e uma criana desaparecida ou morta. O que comeou como passatempo acabou em desgraa. "Preciso contar, Sr. Juiz, como se foi formando entre ns esse estado de esprito. Eram encontros e dilogos quase dirios em face e dentro mesmo das correntes de ar que percorrem esta cidade, onde a vtima era tida como um vagabundo, fazedor de biscates. Talvez um solitrio e, por certo, um incompreendido. Eu trocava pela sua intuio potica a minha experincia de adulto e meus vagos conhecimentos de meteorologia. "A princpio cheguei a pensar que ele estivesse alimentando os meus caprichos, em busca de gorjetas ou de qualquer proteo de minha parte. Depois... depois que vim a descobrir nele um verdadeiro iniciado do vento. "Se de fato morreu, e espero em Deus que no, ningum mais do que eu deplora essa morte. ramos vistos sempre juntos, hora da ventania. E pelo que vim a saber ontem, posso bem imaginar toda a sorte de suposies maliciosas que essa intimidade despertava nos habitantes da cidade, especialmente os hspedes de meu hotel. A dona me perguntou que graa eu achava em tal companhia. Eu no podia responder em dois minutos o que vou tentar explicar ao Senhor... a Vossa Excelncia, sem saber se o conseguirei. "Zeca da Curva e eu saamos todos os dias para estudar o vento, segundo a direo, a hora, a velocidade, o cheiro e as diversas coisas que ele faz bulir. Quase sempre deixava que o menino falasse; quando emudecia, era eu que o provocava com noes tericas ou invenes gratuitas. 20 "Logo na primeira vez, aproximando-se com seu cavalo, fz-me uma pergunta: "-Onde que ele comea, hein? "-No sei, respondi. "-Mame disse que Deus que faz soprar o vento no mundo. "Respondi que tambm no sabia. O garoto ficou decepcionado; insistiu em que eu sabia, mas no queria dizer. "-O senhor no reparou esta noite? Teve um vento danado ... Corria de um lado para outro, empurrava tudo que era porta e janela. Acho que ele no sabia bem o que queria. Fiquei o tempo todo espiando pelo buraco da fechadura; a lngua fininha dele entrava no meu olho. O senhor no sabe aquela bananeira que ns vimos l em cima, perto da caixa d'gua? pois parecia que estava pegando fogo. Acho que ela sofreu um bocado." O interrogado fez aqui uma pausa. "-Estou-me esforando, Sr. Juiz, por conservar o jeito especial de o garoto falar, mas vejo que no possvel, perco o que havia de mais saboroso na sua linguagem. "O segundo encontro foi na estrada do Cruzeiro. Alimentei a conversa: "-Ontem eu vi quando ele se escondeu na grota, disse-me o menino enquanto subamos. "-com certeza pernoitou l. "-com certeza o qu? perguntou, fazendo uma careta. "-Pernoitou l, repeti. "-O que que isso, pernoitou l, pernoitou... pernoitou? "-Passou a noite, expliquei. "-Ah, que palavra gozada! "-Olha l... as nuvens, eu disse. Todas na mesma direo e frisadinhas. Quer dizer que o vento est correndo muito alto, voc est vendo? "-Estou, mas eu gosto quando ele passa baixinho e vm brincar no capim. "-com certeza est indo para o mar. "-Pr mar! Como que sabe? "-Porque a costa atlntica para aqueles lados... "-Costa o qu? 21 "-A costa que d para o oceano chamado Atlntico, nunca ouviu falar? "-Ah, agora to me lembrando, a professora falava nesse nome... O vento que corre para o mar diferente, no ? "-Conforme. s vezes vai com grande velocidade, sessenta, setenta, noventa quilmetros a hora... "-Como que sabe? "-A gente pode tomar a velocidade, h aparelhos para isso. "-Pois sim, vou acreditar! - respondeu em tom de zombaria. A gente toma a velocidade do vento nas rvores e na roupa dos varais. E o que que o vento vai fazer no mar? "Respondi que no sabia, mas achei melhor dizer qualquer coisa, dar largas imaginao do meu interlocutor. "-Ajudar os veleiros, respondi. Animar as guas, preparar os temporais. Voc j viu o mar? "Sua testa franziu-se. Era, creio, a segunda vez que lhe fazia tal pergunta e ele desconversava. Passou a cismar. Depois, em tom de justificativa:-O maquinista prometeu me levar escondido na mquina, mas mame disse que me bate, que se eu for, ela no vai mais querer saber de mim. "Parou a cismar. "-L o vento corre vontade, no ? No tem parede, no tem morro, no tem nada para atrapalhar... Assim, fcil... "-L ele vira ventania, lembrei. "-Aqui tambm ns temos ventania, uai! O ms passado houve uma na hora mesmo da procisso. Atrapalhou tudo, ns corremos, o padre ia na frente, o andor caiu, foi uma coisa danada! Pergunta Espiga de Milho! O vento faz cada uma! "-Quem Espiga de Milho? "-Minha namorada. Mas escondido, ouviu? mame no sabe. "com o correr dos dias, comecei a me apaixonar por esse jogo. Dei ao menino algumas noes elementares sobre deslocamento de massas quentes e frias da atmosfera. No acreditou; desconfiava que eu estivesse dizendo bobagens. Falamos sobre diversos tipos de vento. Eu levava comigo um esboo de classificao para o qual me servira dos dados que ele mesmo me fornecera. Escrevera as notas durante a noite, 22 no quarto do hotel. Pode parecer pueril, mas eu o fazia tanto para a recreao do menino como para a minha prpria. "Assim, segundo a nossa classificao, havia ventos maliciosos e ventos desordeiros, ventos calados e ventos que cantavam, ventos compridos, de grande velocidade, e ventos miudinhos, desses que comeam a correr sobre a grama e logo desanimam aos ps do primeiro arbusto. Confessou que apreciava muito esse tipo de vento, chamado brisa, filhote do grande, que movimenta as nuvens; , dizia ele, uma virao "que no d nem para suspender as saias das moas mas serve para levantar os gravetos do caminho e os papizinhos da calada". "As grandes rvores nem se mexem, pois no do confiana a essa brisa, mas as plantinhas midas ficam felizes." "Fizemos outras hipteses e nos despedimos depois de acertarmos umas tantas idias sobre o assunto. "Animado com a conversa, trouxe-me no dia seguinte uma hiptese nova. Disse que esteve pensando muito durante a noite: aquele negcio de massas frias e massas quentes, de que lhe falara na vspera, achava que era bobagem. O ventoafirmou- soprado por gigantes enormes escondidos atrs da cordilheira; se muito forte, chama-se ventania; quando fica escuro, chama-se furaco, pior ainda do que a ventania. "-Se o vento no tem cor, interrompi, por que diz que o furaco escuro? "-Porque escuro mesmo, respondeu. Eu acho que ele assim porque passa com as lanternas apagadas. E continuou: -Ventania danada pra virar canoa e destelhar casa. Desarruma tudo. O pessoal fica aflito quando ela vem, e eu fico s gozando... "-E os outros ventos? "-Ah, sim, tem o ventinho de todo o dia, respondeu. E apontando com o queixo:-Este que est passando a, por exemplo ... Muito bom para refrescar a pele e empinar papagaio... Parece que no vale nada, no ? Mas depois que chega uma festa... Olha l os bambuais como ficam! Olha o miIharal!... "-E a brisa? perguntei. "-Ah! essa sai da boca dos filhotes do gigante. Gosta muito de apostar corrida com o rio. 23 "S para excit-lo, procurei qualquer definio especial para a brisa e disse:- um vento que ainda no cresceu. "Olhou para mim, reflexivo:-Isso mesmo! "Sem querer, liguei no meu esprito a inveno do menino s coisas da mitologia, de que vagamente me lembrava. Na expresso do meu rosto teria ele notado o efeito de sua descoberta. Parecia orgulhoso. Deixei ficar. "A nossa intimidade, Sr. Juiz, foi assim crescendo base de vento. Encontrvamo-nos sempre. Um dia, eu subia a estrada que leva colina de onde se avista a cidade e a ala esquerda do hotel. Sobre as casas pairava a faixa de fumaa deixada pela locomotiva. Eu caminhava devagar. Mais devagar vinha descendo o garoto. Pela primeira vez aparecia penteado. Ia com certeza encontrar-se com Espiga de Milho. Falou-me:-Pensei que o senhor tivesse ido embora. "Olhou entristecido para a cidade e depois para a paisagem: "-Ele hoje no veio... "-Mais tarde, com certeza, respondi. "-O mundo fica sem graa, no ? Tudo parece fotografia. "Circunvaguei a vista. Tudo parecia mesmo fotografia. Ar parado, rvores imveis, inaltervel ainda a faixa de fumaa. Pensei comigo: "-Este garoto est hoje diferente... Fora de seu natural. preciso ventar para que ele comece a viver. "Corria nesse momento um ventinho de ensaio, as rvores maiores nem se mexiam. O garoto observou, apontando para algum:-Olhe que gozado o ventinho nas barbas daquele velho!... "Atirou com o bodoque uma pedrinha ao cho, disse at logo, e continuou a descer. J se achava longe, quando gritou; -Olha, olha, l nos bambuais!... "No olhei para os bambuais. Olhei para o menino que voltava correndo. Sua cabeleira estava desfeita, ele mesmo todo diferente, subitamente transformado em perSonagem do vento. Mas este foi logo diminuindo e cessou. Zeca da Curva assumiu um ar escabriado. Sem jeito, virou-se para os lados do vale: "-Daqui a um pouquinho ele volta. Quer apostar? 24 "Alguns segundos depois as janelas comearam a bater, as roupas arrancaram-se dos varais, desfez-se a plumagem de fumo. Apareceu uma menina ruiva com uma garrafa de leite. "-Vem, Espiga de Milho! Vamos aproveitar! "Ela atendeu. De mos dadas, sumiram-se os dois na curva. Fiquei de longe, a ver se repontavam mais adiante. Mas o cu comeou a enfarruscar. Entrou outro tipo de vento, o vento de chuva, diferente do. que nos interessava. Ns no gostvamos da chuva que atrasa a corrida do vento, sempre aflito por desembaraar-se de suas malhas. "Alguns dias depois encontrei Zeca da Curva chorando. Estava indignado. "-Mame me bateu. "-Vai ver que voc fez alguma arte. "Confessou, amuado, queixando-se: "-O vento levanta a saia das moas, e a gente que leva a culpa, ora essa! S porque fiquei espiando... "Pensei logo em Espiga de Milho com as pernas descobertas e os sinais da puberdade se arredondando debaixo da blusa. E para faz-lo esquecer a mgoa, apressei-me em voltar ao tema do vento. Inventei que nele correm tambm meninos invisveis, os mensageiros. Sabia que essa idia ia excit-lo. "-Os qu? inquiriu logo. "-Mensageiros, repeti. "-Ah! mensageiros, mens... "-So alados, completei. "-Que negcio esse, alados? "-Que tem asas. "- verdade? "Senti um frmito perpassar-lhe o corpo. "-Sim, verdade. "-Bem que eu desconfiava... "Fez uma pausa: "-E no furaco? tem crianas tambm? "-No furaco passam os guerreiros terrveis, inventei. "-Por isso que ele faz tanto barulho, no ? "-Exatamente, respondi. "-Quando venta muito forte, eu sempre desconfio que est acontecendo muita coisa que ningum sabe... 25 "-Onde? perguntei. "-A por este mundo... O vento muito importante, no ? "-Ento? No sabe que ele ajudou a descobrir o Brasil? "-O vento?! "-Sim, o vento. "-Puxa! "J havia esquecido a coa materna. Fazia inspees pelo cu. "-Est vendo aquelas nuvens l? "-Estou. "-Pois amanheceram na mesma posio de ontem. Ficaram encalhadas. Ontem o vento andava mais devagar do que o rio. -Bateu na testa, lembrando-se de qualquer coisa:-Espera a... Est na hora da chegada do trem. "Partiu voando para a Estao. Ia pegar as malas, fazer o seu biscate. "Esqueci-o por algum tempo; voltei s minhas leituras. Quando pensava nele, era para duvidar de sua sinceridade. Cheguei a supor que, talvez para me ser agradvel, talvez para chamar a ateno sobre si, ele forava o assunto e simulava atitudes. No estaria exagerando? Ou apenas se divertia? Ou procurava mesmo impor-se amizade do turista para merecerlhe favores? "Achei pouco provvel a suposio, to extraordinrio e espontneo me parecia ele. Eu mesmo lutava comigo para no me deixar arrastar por uma iluso. "A dona do hotel me perguntava se eu tinha esquecido o garoto. No respondi. "Na verdade, espacei os nossos encontros e j comeava a duvidar da sua paixo pelo vento. Certa manh, no incio de um temporal, cheguei janela levado pela curiosidade de saber como se comportava o menino diante daquelas lufadas. Se era sincero fora de minha presena. Minha janela abria-se para os barracos da colina, onde ele morava. Meti o binculo, o seu casebre se aproximou. Logo avistei Zeca da Curva no terreno, a pular. Tirara a roupa, ficara nu no meio do vento. Correndo de um lado para o outro, esbarrou numa lata e rolou pelo barranco. De repente, ei-lo de braos abertos e olhos 26 fechados, gozando, aspirando o espao. Assim permaneceu alguns minutos, imvel, feliz. "Agora, pensei comigo, j no tenho dvida: ele mesmo o enfeitiado do vento. Acertei melhor as lentes e percebi, Sr. Juiz, claramente percebi o que o menino fazia: mijava! com o perdo da palavra, ele mijava, Sr. Juiz! Gritei. No me atendeu. Nem podia, tamanha era a barulheira. A urina diluase em gotas cristalinas. Misturando ao ar um lquido de seu organismo, tive a impresso de que procurava sentir-se mais ligado aos elementos." Aqui, o denunciado perdeu o impulso com que vinha falando. Cochichos da assistncia e uma troca de sorrisos entre o promotor e o escrivo t-lo-iam devolvido a um plano em que lhe seria impossvel continuar com a mesma fluncia e candura. Olhou para o Juiz, como que o consultando. Este lhe fez com a mo um aceno favorvel. Que prosseguisse. Encorajado, continuou: -" possvel, Seu Juiz, que o que estou contando no tenha relao real com o processo. Mas tem com a verdade. Muitas vezes se chega verdade pelos caminhos mais absurdos. Desde o momento em que verifiquei como procedia Zeca da Curva quando se viu s com o seu vento, comecei a acreditar mais nesse menino. Imaginei-o incompreendido entre os companheiros; incompreendido e calado, para no ser objeto de zombaria. O pequeno maltrapilho era o meu mestre de vento, o verdadeiro iniciado. E eu, o discpulo, no me vexo de confess-lo. Da por diante, s o compreendia dentro mesmo do vento. De tal maneira que, sem a sua companhia, eu me tornava indiferente a qualquer virao. Mas evitava que ele percebesse o meu estado de esprito, e dentro de mim mesmo lutava contra as imagens delirantes, lembrando-me da advertncia de meus pais. "Os hspedes do hotel deviam achar-me cada vez mais esquisito. Minhas frias estavam a terminar, eu j pensava em arrumar as malas. "Certa manh, acordei com a pancada seca de um objeto no espelho. Era uma goiaba atirada da rua. Cheguei janela. Reconheci o menino embaixo:-Isso modo de despertar algum? 27 "-Hoje vai ter! gritou-me ele. "-Como que sabe? "-Uai! a gente sabe sem querer... O corpo avisa. Os meninos j esto passando... "-Que meninos? "-Isso que o senhor falou outro dia... Os meninos do vento! J esto bulindo nas folhas... "-Ah! sim... os mensageiros... respondi sorrindo. Mas para j? "-No. Vai ser de tarde, disse consultando o cu e mordendo uma goiaba. Olha as rvores grandes... por enquanto esto quietas, mas o senhor vai ver mais logo. "A camaradagem entre mim e o garoto crescera at o ponto de que dava idia esse episdio do projtil no espelho. Por volta de trs horas, subimos a colina, lugar habitual de nossos encontros. L em cima, ele me foi indicando a pista do vento. E apontando para o horizonte:-Olhe aqui, ele vai partir de l, quer apostar? e correr nesta direo. "com o dedo ia traando a direo provvel do vento no espao. "Ficamos esperando algum tempo. O cu era de uma cor neutra, meio amarelada, tonalidade que para ns indicava lufada iminente. O garoto parecia desassossegado, com medo de ser desmentido. Afinal o vento comeou. No ainda na plenitude de sua fora, mas j amplo e gostoso. "-Depois vai ficar melhor, disse o garoto; por enquanto, so as primeiras amostras. "Mas j vinha com o cheiro de mato e de rebanho. Ganhasse um pouco mais de espessura e o agarraramos com a mo. Era- como um animal invisvel, mas perto. Ficamos mudos, a sentir o perpassar de sua cauda interminvel. "-Este de hoje est bom! exclamou, deliciado. "Mantinha os braos abertos e os olhos fechados. Seus cabelos assanhados prolongavam a animao das frondes e pastagens. "Fixei-lhe a fisionomia, curioso de verificar-lhe as mutaes. Tanto vale dizer que larguei o vento pelo menino. Mas, tomado tambm pela fora da correnteza, dentro em pouco ramos dois a experimentar a mesma embriaguez. No meio da 28 polifonia, ouvia-se um som de lata velha. E uma mulher, espcie de bruxa desgrenhada, do alto da cafua chamava o garoto para a janta. "Bruscamente afastado de seu vento, o menino seguiu contrariado. Mas logo a corrente aumentava de velocidade; e se transformava em ventania, categoria mais alta segundo a nossa classificao. Devia vir da floresta, sua matriz longnqua. com certeza recebera no trajeto afluentes que a enriqueceram, viraes de campina, brisas de lagoa. Para mim, era naquele cu, por cima das montanhas, que se operava a combinao de sopros mltiplos, emanao da terra, extrato de paisagens percorridas. "Retido pela velha, o menino ia perder aquele momento. Sem a presena dele, o espetculo no seria o mesmo. Sentindo porm a atrao do vento, no resistiu e voltou. "Eu me agarrara ao tronco de uma rvore para no ser levado. Zeca da Curva parecia embriagado. Arrancou a camisa, estendeu os braos. Permanecia imvel, tenso. De repente, ouvi-lhe a exclamao:-Com este eu vou! "Abalou-se pela rampa, saltou o valado, atravessou uma sebe, ganhou a vrzea, diluiu-se na bruma... E reapareceu diminudo, l para os lados de uma macega, correndo, correndo sempre, at sumir-se no longe. Fiquei s no meio do turbilho. com a sensao de que ele me abandonara. "Pudesse eu fazer aquilo! Faltava-me a fora e a pureza do menino. Fui tomado de um sentimento estranho: senti-me rebaixado perante mim mesmo. "-Ele tem doze anos! disse comigo, tentando anular meu despeito. "s rajadas aumentavam empurrando-me para o espao, como que me desafiando a imitar a proeza do pequeno companheiro. No. Eu, no! Sou engenheiro, no sou criana! Construo pontes, tenho os ps fincados na terra... Loucura, querer emular-me com o garoto, disputar com ele os mesmos direitos perante o vento. Tratei de sair dali. Amanh, pensei, amanh saberei onde o largou a ventania. "J ento, Sr. Juiz, s restava do vento a cauda leve e comprida. Passara o turbilho, o lugarejo reapareceu calmo, lavado. Acendiam-se as lmpadas. Uma a uma as vidraas se o iniciado do vento 29 abriram. Fui descendo a ladeira. Na portaria do hotel, mal fechei a porta, a dona espantou-se:-Mas o senhor l fora, com um tempo destes! "Eu disse que gostava de tempo assim.-Sempre com o menino, no ?... "No respondi pergunta reticente. No dia seguinte, voltei para o Rio sem maiores apreenses. Porque estava certo de que o menino tornaria. E j o supunha reintegrado em sua cidade e no seu vento, quando vim a saber por uma carta annima que me acusavam de seu desaparecimento e de prticas infamantes. "E foi tudo, Sr. Juiz, o que se passou entre mim e Zeca da Curva!... "Estes, os fatos. So simples demais para serem acreditados. Minha amizade com a malograda criana foi, como disse, unicamente na base do vento, assim como o meu encontro com ele foi o vento que propiciou. Encontro que ser tambm com a desgraa, se Vossa Excelncia, senhor Juiz, no quiser admitir que, alm dos fatos habituais de nossa vida cotidiana, outros h, ntimos, que ocupam a parte maior de nosso ser; mas que temos vergonha de confessar para no parecermos infantis ou loucos. So justamente os mais secretos, e o senso comum se recusa a consider-los." Nova pausa do engenheiro. O olhar aflito da assistncia parecia implorar-lhe que prosseguisse. "H de parecer tolice o que contei; mas sei que no crime. No pode ser crime dividir com quem quer que seja um entusiasmo maior pela chuva, pelo fogo ou pelas plantas... "No tipo de intimidade que mantive com o desaparecido entrou muito de nossa imaginao e, de minha parte, certa vontade de espairecer-me. Envergonho-me de ter sido obrigado a contar num ambiente imprprio para que me acreditem coisas que parecem inverossmeis, e que no poderiam constar de processo algum. Um crime um crime, e impe respeito; mas a narrativa em juzo de uma aventura com o vento h de parecer coisa inventada e absurda. Eis por que falei tanto no vento. V. Ex.a me desculpe. Se algum culpado houve, Sr. Juiz, no caso, foi mesmo o vento. Eu quero esclarecer que me 30 refiro a um que sopra quase todos os dias e neste momento mesmo j comea a agitar as palmeiras l fora." Toda a assistncia, menos o Juiz, voltou os olhos para a praa. As rvores principiavam a balanar. " um vento especial, morno, de um teor diferente, rico de qualidades... eu ia dizer de intenes." O juiz voltou-se pela primeira vez para o interrogado. Fixou-o com expresso desconhecida. Sua aparente indiferena sofreu alterao visvel. Disse com certa dificuldade: -O denunciado no precisa voltar a falar do vento. Queira limitar-se aos fatos. "eu queria com isso, Sr. Juiz, explicar a influncia exagerada que ele exerceu em mim e no menino. No nego certa conivncia da minha parte. Fizemos dele um emprego abusivo, confesso. O que comeou em brincadeira acabou em revelao. Eu no podia prever tal desfecho." Enquanto o acusado parecia chegar ao fim, o vento forava as janelas. Vinha com aquela impacincia com que se comporta ante os obstculos de vidro. Depois mudou de rumo e conseguiu uma brecha. Entrava s lufadas pela vidraa lateral, a que se havia partido de manh. E por essa fresta, logo ampliada, invadiu o prdio. Levantava os papis, fazia bater as portas. Dava a impresso de que queria participar do final do interrogatrio. Impresso que vinha da natureza da narrativa e do ambiente que se criara. O promotor ficara todo o tempo embevecido numa cisma remota. Ouvia-se um barulho na escada. E ainda as ltimas palavras do engenheiro: -"E quem pode afirmar com segurana, Sr. Juiz, que Zeca da Curva esteja morto? Por que no admitir que ele tenha vindo com este vento e j esteja subindo pela escada?" Houve um siispense. A interrogao traduzia um comeo de alucinao que contaminava a assistncia. Todos olhavam em direo escada. Ouvia-se um sussurro aumentado pelo vozerio l embaixo, no saguo. Deu o juiz por terminada a audincia. Pouco a pouco a sala recuperou a atmosfera forense. O promotor descruzou as mos sob o queixo, e voltou realidade. Foi quando se fez ouvir a voz do escrivo. Queria saber se era para tomar por termo tudo aquilo e como. Mal pde 31 disfarar um travo de ironia nessa pergunta. Ao que o magistrado respondeu que no era necessrio, e que lhe fizesse subir o processo. A sala foi se esvaziando. Duas moas deixaram-se ficar sentadas ao fundo. O Oficial de Justia veio pedir-lhes que se retirassem, ia fechar as portas. Perguntaram se no dia seguinte ia ter mais. Mostraram-se contrariadas ao saber que no. Era como se tivessem interrompido a contragosto a leitura de um romance. Ganhando a praa, o engenheiro respirou livre. O peso na nuca, o peso que parecia querer guilhotin-lo, desapareceu. Que a mquina da Justia viesse a fabricar-lhe a condenao, j no se importava, sentia-se livre. 'Chegou o nibus da tarde com os jornais do Rio. Esperava-se o noticirio do escndalo, tal como o redigira o prprio escrivo a pedido do correspondente. O denunciado comprou uma das folhas, verificou, ele mesmo, o que pressentira. No se abateu nem se revoltou; apenas sentiu a vontade de abandonar depressa aquele lugar. Populares deixavam-se ficar nas imediaes do Foro. Era porm impossvel trocarem impresses. O vento no deixava. Comeou arrancando o jornal das mos do promotor; depois, o chapu de alguns. Aumentando de velocidade e enrolando-se em redemoinhos poeirentos, derrubou a prateleira do engraxate. Folhas de revistas espalhavam-se pelo cho e desintegravam-se no ar, enquanto as mulheres prendiam fortemente as saias. Ningum conseguia ler a notcia at o fim: ou a ventania carregava de novo o jornal ou a poeira turvava a vista dos leitores. Das sacadas altas do Foro descia uma nuvem de escrituras, certides e editais. Pairavam no ar antes de virem pousar nas frondes. Era o arquivo que se desmanchava. A praa assumiu um ar festivo. Os moleques se atropelavam na disputa dos papis. No longe, a caminho do hotel, o engenheiro contemplava aquilo e se emocionava. Queria resistir, manter-se impassvel. Lembrou-se da recomendao paterna ("no se perder em devaneios", "tratar s com a realidade"). Como porm recusar a evidncia do que estava acontecendo? 32 No precisava que o vento viesse assim to estabanado, pensou. Mas que maravilha! Ser que ningum percebia? Era de um tipo novo, menos descarnado e musical. com algo de rebelde e desordeiro. Pena que ali no estivesse o Zeca da Curva. O engenheiro tinha certeza de que ele continuava vivo. Voltaria escondido, para uma busca naquelas grotas de montanha. Ou ser que ia encontr-lo expatriado do seu vento, vagando triste pelas ruas da Capital? Eis agora o vento nas pernas do Meritssimo!.... Oh, vento, respeita o varo austero. Por que empurr-lo assim, por que atirar-lhe ao cho o chapu? Um juiz-juiz no pode, no deve correr... Nem olhar para trs, nem apanhar o que caiu... Um juiz de verdade s caminha de cabea erguida, a passos firmes como quem vai de braos com a Justia. O pretinho veio correndo pela ladeira para dizer que no Bela Vista a dona estava chorando, trancada no quarto. E o escrivo? L embaixo, no bar, sem querer conversar. Seus amigos compreendem-lhe o silncio. Um deles ameaa: -Aquele tipo no h de botar mais os ps aqui. O outro:-S serviu para virar a cabea do povo. O escrivo olha para fora, pe-se a cismar. V o engenheiro, de mala na mo, tomar o nibus da tarde. Sente-se derrotado, confuso. Ento aquilo era maneira de se defender? As rvores comeam a sossegar. -Para mim, vento vento e nada mais... concluiu com melancolia o escrivo, acenando com a cabea. A dona do hotel nunca mais se apresentara a seus hspedes. Nem acolhera o escrivo. Dizia-se que depois da meia-noite seu piano tocava em surdina. Eram tantos os quartos vazios que no havia quase ningum para ouvir. O juiz no mais compareceu s audincias. Nem despachou processo algum. Qualquer coisa havia mudado na fisionomia moral da cidade. O vento comeou a existir. Descobriram-lhe um sentido novo. Algo de estranho passara-se na conscincia do magistrado. Transferido ou aposentado, desapareceu da comarca dias depois, sem nada dizer, sem se despedir de ningum. 33 A ltima vez que fora visto, vagava pela colina de onde Zeca da Curva partira para sempre. Notaram que sobraava o calhamao de um processo. E que falava sozinho. Qual fosse esse processo ningum sabia. Sabia-se apenas que o vento soprava no calhamao com fora desconhecida e, uma a uma, arrancava-lhe todas as folhas... a carlos drummond de andrade VIAGEM AOS SEIOS DE DULIA 34 DURANTE mais de trinta anos, o bondezinho das dez e quinze, que descia do Silvestre, parava como burro ensinado em frente casinha de Jos Maria, e ali encontrava, almoado e pontual, o velho funcionrio. Um dia, porm, Jos Maria faltou. O motorneiro batia a sirene. Os passageiros se impacientavam. Floripes correu aflita a avisar o patro. Achou-o de pijama, estirado na poltrona, querendo rir. -Seu Jos Maria, o senhor hoje perdeu a hora! H muito tempo o motorneiro est a dar sinal. -Diga-lhe que no preciso mais. A velha portuguesa no compreendeu. -V, diga que no vou... Que de hoje em diante no irei mais. A criada chegou janela, gritou o recado. E o bondezinho desceu sem o seu mais antigo passageiro. Floripes voltou ao patro. Interroga-o com o olhar. -No sabes que estou aposentado? -U!... -Sim, Floripes. Aposentado. -E que vai fazer agora, patro? -Sei l, Floripes... Sei l! -Mas o almoo ser sempre servido mesma hora, pois no? -Tanto faz. Pode ser s nove e meia, onze, meio-dia ou quando voc quiser. Minha vida de hoje em diante vai ser um domingo sem fim... Debruado janela, Jos Maria olhava para a cidade embaixo e achava a vida triste. Sara na vspera o decreto de aposentadoria. Trinta e seis anos de Repartio. 35 Interrompera da noite para o dia o hbito de esperar o bondezinho, comprar o jornal da manh, bebericar o caf na Avenida, e instalar-se mesa do Ministrio, sisudo e calado, at s dezessete horas. Que fazer agora? . No mais informar processos, no mais preocupar-se com o nome e a cara do futuro Ministro. Pela primeira vez fartava a vista no cenrio de guas e montanhas que a bruma fundia. Inmeras vezes o fizera, mas sem perceber o Po de Acar e a baa, as ilhas e os navios, o Corcovado e as praias do Atlntico, sempre se interpondo entre seus olhos e a paisagem uma reminiscncia molesta, lembrana de antigo aborrecimento ou de contrariedades na repartio. Se algum navio transpunha a barra e vinha crescendo para o porto no ritmo calmo da marcha, seu corao amargava-se contra o sobrinho Beto que embarcara como radiotelegrafista de um navio do Lide, e nunca mais dera notcias; se o Cristo do Corcovado se erguia de um pedestal de nuvens, vinha-lhe memria aquele triste fim de tarde, l em cima, em que pela primeira vez na vida se conduziu de maneira vergonhosa, embriagado que estava, a dizer improprios contra a Repblica e contra um ato injusto do "Sr. Ministro", at ser detido por um guarda. Aposentado agora, continuava a ligar os diferentes aspectos da natureza a acontecimentos que a deformavam. com os trinta e seis anos perdidos na Repartio, teria perdido tambm o dom de viver? Muito prximo se achava ainda desse passado para- no lhe receber a influncia. A manifestao de despedida fora ontem mesmo. Cobriram-lhe a mesa de flores; saudou-o em nome dos chefes de servio o diretor mais antigo, seu ex-adversrio; falou depois um dos subordinados, estudante de Medicina; por ltimo, uma funcionria, a Adlia, que usava decote largo, se referiu " competncia e exemplar austeridade do querido chefe de quem todos se lembraro com saudade". Uma menina, filha do arquivista, fez-lhe entrega de uma bengala de casto de ouro, com a data e o nome. E o Ministro mandou um telegrama. 36 Foi s. Estava encerrada a etapa principal e maior de sua vida. Os decnios de trabalho montono, de "austeridade exemplar" como dizia Adlia, forjaram-lhe uma mscara fria. Atrs dela se escondeu e de si mesmo se perdera. Como fazer desaparecer-lhe os vestgios? Como se reencontrar? Adlia no podia imaginar o que para ele representava a "exemplar austeridade". Adlia jamais saber o que ocorria na alma do antigo chefe quando os olhos deste passavam como um relmpago pelo colo branco de sua subordinada; talvez nem ela pressentisse. Austero coisa nenhuma: desajeitado apenas, tmido: gostaria de poder fazer o que censurava nos outros. Floripes admirava a bengala procurando decifrar os dizeres do casto de ouro. - o que me resta, Floripes, dos trinta e seis anos. Isso e um telegrama do Ministro! -O que me est a dizer, patro? -Nada, Floripes. "Ora veja! Estou livre agora, livre!... Mas livre para qu?" Ao clarear do dia seguinte escancarou a janela para a baa. Procurava sentir a manh de sol como a deviam estar sentindo quela hora os moradores' da bela colina. Mas nada lhe diziam os barcos a vela flutuando longe, nem os castelos de nuvens que se armavam no cu. Ia experimentar a cidade, andar sem destino. E sem chapu. A ausncia do chapu seria a primeira mudana exterior em seus hbitos, um comeo de libertao. At ento, a moda lhe parecera ridcula, alm de fonte de resfriados. E se envergasse uma camisa esporte? Poderiam rir-se dele: a pele do pescoo perdera a consistncia; e a marca circular do colarinho duro l estava, firme como uma tatuagem. Na rua, um colega veio dizer-lhe que os jornais deram a notcia; alguns at com elogios ao velho servidor. O amigo abraou-o. E logo recuou com certo espanto:-O seu chapu, Z Maria? -Ah, no uso mais!... 37 -Felizardo! Vai comear a gozar a vida, hein? J at parece outro homem, disse, interpretando a ausncia do chapu como o primeiro passo para um programa de rejuvenescimento. O aposentado livrou-se do importuno. "Livre! Estou livre!" Namorou vitrinas, tomou caf, repetiu caf, tomou chope, foi, voltou, viu, tomou caf outra vez, cumprimentou... O tempo no passava. Mais lento ainda do que na Repartio. A ttulo de despedir-se de alguns companheiros e de apanhar uma caneta-tinteiro, lembrou-se de chegar at l. Na verdade, sentia-se impelido por um desejo ambguo, como o general reformado que vai paisana em visita a seu antigo regimento. Era tarde, porm; o rush se avolumara. Achou melhor voltar para casa, postar-se na fila do bonde. "Livre! Estou livre!" Durante a subida, a brisa fresca f-lo sentir a falta do chapu. Via-se como que despido. Floripes serviu-lhe o jantar, deixou tudo arrumado, e retirou-se para dormir no barraco da filha. Mais do que nunca, sentiu Jos Maria naquela noite a solido da casa. No tinha amigos, no tinha mulher nem amante. E j lera todos os jornais. Havia o telefone, verdade. Mas ningum chamava. Lembrava-se que certa vez, h uns quinze anos, aquela fria coisa, pendurada e morta, se aquecera voz de uma mulher desconhecida. A mquina que apenas servia para recados ao armazm e informaes do Ministrio, transformara-se ento em instrumento de msica: adquirira alma, cantava quase. De repente, sem motivo, a voz emudecera. E o aparelho voltou a ser na parede do corredor a aranha de metal, sempre calada. O sussurro da vida, o sangue de suas paixes passavam longe do telefone de Z Maria... Como vencer a noite que mal comeava? Fechou o rdio com desespero, virou dois tragos de vinho do Porto, deitou-se. A espaos ouvia o barulho do bondezinho rilhando nas curvas da colina, a exploso de um e outro foguete que subiam da vertente de guas Frreas, seguida de latidos de ces e gritos indistintos. Ingeriu outra dose de vinho. E adormeceu. 38 O telefone toca. Quem ser? Quem se lembraria dele? Algum convite? Trote? -Al, meu bem! -Al! aqui fala Jos Maria. - engano, proferiu secamente a interlocutora. Era engano! Antes no o fosse. A quem estaria destinada aquela voz carregada de ternura? Preferia que dissesse desaforos, que o xingasse. A boca feminina j devia estar dizendo frases de amor na linha procurada. Era um triste aparelho telefnico! Atirou-se de bruos na cama. E sonhou. Sonhou que conversava ao telefone e era a voz da mulher de h quinze anos... Foi andando para o passado... Abriu-se-lhe uma cidade de montanha, pontilhada de igrejas. E sempre para trs -tinha ento dezesseis anos-, ressurgiu-lhe a cidadezinha onde encontrara Dulia. A parou. E Dulia lhe repetiu calmamente aquele gesto, o mais louco e gratuito, com que uma moa pode iluminar para sempre a vida de um homem tmido. Acordou com raiva de ter acordado, fechou os olhos para dormir de novo e reatar o fio de sonho que trouxe Dulia. Mas a imagem esquiva lhe escapou, Dulia desapareceu no tempo. medida que os meses passavam, foi tomando horror expresso "funcionrio pblico aposentado", que lhe cheirava a atestado de bito. Jurou nunca mais freqentar a "Mo do Salvador", instituio de caridade, cuja sede, com seus mveis severos e gente sem graa, lembrava o ambiente atroz da Repartio. Chamava Floripes a todo momento, queria saber mincias do passado dela. Ia dar incio a profundas modificaes em sua pessoa. Comearia pelos trajes: roupa clara, moderna, no mais aqueles ternos escuros cobrindo a eventual austeridade. Seu fsico de homem empinado e enxuto no parecia de todo desagradvel. Entraria de scio para algum clube; e se encontrasse um professor discreto, talvez aprendesse a danar. Essas providncias seriam a sua toilette exterior para a nova fase da vida. 39 Semanas depois, aliviado do colarinho duro, era visto pelas ruas em trajes mais leves, sorrindo forado para os conhecidos. Tornou-se scio de um clube da Lagoa. Sozinho porm nunca punha os ps l, at que um dia se fez acompanhar pelo Lulu, bom atleta e pssimo funcionrio, que apresentara como "velho servidor do Estado" s principais beldades do bairro. Como dialogar com elas? No conhecia futebol nem equitao, no sabia jogar baralho, no guardava nomes de artistas de cinema, ignorava os escndalos da sociedade. Tentou manter conversa, no conseguiu. Parecia-lhe que zombavam dele. Se algumas moas lhe dirigiam a palavra, era como se lhe atirassem esmola. Acabou a noite s e triste, agarrado ao seu copo de usque. Quase nunca provava essa bebida; achava-a at ruim. Como fazia parte do rito social, no custava virar o copo. Deixou o Lulu com as moas, e saiu fazendo uma careta. "Velho servidor do Estado..." O farol dos automveis apagava nas guas da Lagoa o reflexo das ltimas estrelas. Um casal abraava-se debaixo de uma amendoeira. Sentiu-se mais s. A vida era para os outros. Antes tivesse ainda algum processo a informar; estaria ocupado em alguma cousa. No! Um comeo de soluo contraiu-lhe a garganta. Chamou um txi. No dia seguinte postou-se, como outros de sua idade, numa das esquinas da Rua Gonalves Dias, local preferido pelos militares da reserva e aposentados de luxo, gente saudosa do passado. Notou que eles se compraziam em adejar perto dos doces da confeitaria, e ver passar as damas elegantes de outrora. Ali se perfilava, de terno branco, um velho Almirante de suas relaes: -Olhe, faa como eu: nunca se convena de que aposentado. Adquira algum vcio, se j no o tem. Evite os velhos. Um pouco de exerccio pela manh. Hormnios s refeies, no mau. Quanto a conviver, s com gente moa. Ele aprendera na vspera o que era conviver com gente moa. . . Para rematar, e como ndice de otimismo, contou-lhe o Almirante uma anedota pornogrfica. O funcionrio riu com esforo, e despediu-se enojado. Entrou numa livraria. Buscaria a soluo na leitura dos romances. 40 Pediu um, escolha do caixeiro. Tentou ler. Impossvel passar das primeiras pginas. No compreendia como tanta gente perde horas lendo mentiras. Ao atravessar, dias depois, o Viaduto, deixou o livro cair l embaixo, sentiu-se livre daquilo. O melhor mesmo era ficar debruado janela. E todas as manhs, enquanto a criada abria a meio as venezianas para deixar sair a poeira da arrumao, Jos Maria as escancarava para fazer entrar a paisagem. Dali devassava recantos desconhecidos, ilhas que jamais suspeitara. Acompanhava a evoluo das nuvens, comeava a distinguir as mutaes da luz no cu e sobre as guas. Notava que tinha progredido alguma coisa na percepo dos fenmenos naturais. Comeava a sentir realmente a paisagem. E se considerava quase livre da uria burocrtica. Esse noivado tardio com a natureza f-lo voltar s impresses da adolescncia. Dulia!... Toda vez que pensava nela, o longo e inexpressivo interregno do Ministrio que chegava a confundir-se com a durao definitiva de sua prpria vida, apagava-se-lhe de repente da memria. O tempo contraa-se. Dulia! Reviu-se na cidade natal com apenas dezesseis anos de idade, a acompanhar a procisso que ela seguia cantando. Foi nessa festa da Igreja, num fim de tarde, que tivera a grande revelao. Passou a praticar com mais assiduidade a janela. Quanto mais o fazia, mais as colinas da outra margem lhe recordavam a presena corporal da moa. s vezes chegava a dormir com a sensao de ter deixado a cabea pousada no colo dela. As colinas se transformavam em seios de Dulia. Espantava-se da metamorfose, mas se comprazia na evocao. No ignorava o que havia de alucinatrio nisso. Chegava a envergonhar-se. Como evit-lo? E por qu, se isso lhe fazia bem? Era o afloramento sbito da namorada, seus seios reluzindo na memria como duas gemas no fundo d'gua. S agora se dava conta de que, sem querer, transferira para Adlia a imagem 41 remota. Mas Adlia no podia perceber que era apenas a projeo da outra. Mesmo porque, temendo o ridculo, Jos Maria jamais se deixara trair. Disponvel, sem jeito de viver no presente, compreendeu que despertara com muitos anos' de atraso nos dias de hoje. No'encontraria mais os caminhos do futuro, nem havia mais futuro nenhum. Chegara ao fim da pista. De Beto, no havia mais notcias. Da velha cidade que restava? Onde o Rio de outrora? As casas rentes ao solo, os preges, o peixeiro porta? A cada arranha-cu que subia-eles sobem a todo momento-a cidade calma de Jos Maria ia-se desmanchando. Sentiu que sobrava. Impossvel reatar relaes com uma cidade irreconhecvel. Pediu que o cancelassem do clube da Lagoa; desistiu da aula de dana. S lhe fazia bem desentranhar o passado. Dias e noites o evocava com a cumplicidade da paisagem. E no fundo da contemplao, insistiam os dois focos luminosos. Ora se acendendo, ora se apagando. Odiava recordar-se da Repartio. Nem sabia explicar como, nas tardes de movimento, mais de uma vez suas pernas o largaram nas imediaes do Ministrio. Comeava a sentir-se livre. Para outra direo o chamava o que havia de mais excitante em sua vida. Ao apelo pstumo, nem tudo de seu passado parecia perdido. Sabia agora o que ia fazer. Trauteando uma cano, tomou o bondezinho. Entrou em casa com o corao palpitando. Reviu-se mais jovem ao espelho. Quando Floripes chegou de manh cedo, encontrou-o de p. Lamentava no ter tempo de encomendar um terno novo para apresentar-se melhor ao seu passado... -Floripes, tu tomas conta do apartamento. Eu vou viajar Meu procurador te dar dinheiro para as despesas. Se Bete aparecer, dirs que eu parti... Dirs tambm que... No, no precisas dizer mais nada. Se quiseres, traze para c tua filha e o netinho. Floripes parou espantada. -Ser que o patro vai se embora? -vou, Floripes. 42 -Para no voltar mais? -No sei, Floripes. -E se chegar alguma carta, patro, para onde devo mandar? -No haver cartas para mim. Ningum me escreve... -E se algum telefonar? -Oh, Floripes, por favor... O que transpirava de solido e amargura nessas palavras, compreendeu-o a velha Floripes que se absteve de novas perguntas. Descendo cidade, Jos Maria comprou malas, preveniu passagens. Outro homem agora, alegre quase. No precisaria mais fazer esforo para ser o que no era. Difcil coisa querer forar a alma e o corpo a uma vida a que no se adaptam. Agora, sim, ia ser feliz. E se alvoroava como o imigrante que se repatria. Fazia uma tarde bonita. Pela primeira vez Z Maria achara agradvel estar na rua. Mulheres sorrindo, vitrinas iluminadas. Parecia que a cidade, ltima hora, caprichava em exibir-lhe alguns de seus encantos. Assim procede a mulher indiferente, ao ver partir o homem a quem fez sofrer. Comprou um mapa do pas. S com apert-lo ao peito sentiu-se livre e j fora do Rio. Voltou para casa. Abriu-o em cima da cama, seguindo com a ponta do lpis os meandros do corao montanhoso do Brasil. -Aqui! marcou. Era perto de uma cordilheira no centro-sul. A cidadezinha enchia-lhe o corao, embora insignificante demais para constar na carta. Estranhou o apito fanhoso da Diesel hora da partida. Voz sem autoridade, mais mugido que apito. To diferente do grito lrico da locomotiva que h mais de quarenta anos o trouxera do interior. Entristeceu. Muita coisa haveria que encontrar pela frente, modificada pelo progresso: a locomotiva por exemplo; o trem de luxo em que viajava. Seu desejo era refazer de volta, pelos meios de antigamente, o mesmo roteiro de outrora. Impossvel. Estradas novas vieram substituir-se aos caminhos que levam ao passado. com o corao inundado de reminiscncias, preferia evitar Belo 43 Horizonte. Receava que a viso da cidade nova viesse aumentar-lhe a sensao do envelhecimento pessoal. Pela madrugada, o trem parou horas entre duas estaes. O viajante despertou com o silncio. S ouvia o sussurro do ventilador. Toda a composio de um cargueiro tinha tombado mais adiante, entornando mangans pelo vale. Preparava-se a baldeao. Jos Maria aproveitou para descer, e sentir o cheiro de Minas. O sol vinha esgarando devagar o vu de bruma que cobria as serras tranqilas. Anoitecia j em Belo Horizonte, quando chegou com atraso. Disseram-lhe que era preciso tomar, no dia seguinte, a "jardineira" para Curvelo A nova Capital, mesquinha cidade poeirenta h quarenta anos, era agora um grande centro onde ningum se lembraria dele. Para que ento sair rua, ver arranha-cus, caminhar entre as novas geraes de desconhecidos? Prefervel fechar-se no quarto de hotel at que chegasse a hora da "jardineira". Agradvel na manh seguinte o percurso numa rodovia que no era de seu tempo. nibus e caminhes escureciam as estradas de poeira. Ao p de uma serra calcria, que conhecera intacta, as chamins de uma fbrica de cimento emitiam rolos de fumaa escura. Mais adiante, os fornos de uma siderrgica. Cansado, adormeceu. Despertou com um coro longe, de vozes, coro que subitamente cresceu e passou, lanando-lhe no corao um jacto de poesia. Era uma "jardineira" repleta de mocinhas, colegiais de uniforme azul e branco que desciam do serto para a reabertura do ano letivo na capital. No banco ao lado, um passageiro queimado de sol parecia esperar que Jos Maria acordasse para encetar conversa. -Pois . Estamos em fins de fevereiro e nada de chuva! Em toda parte agora tem Cear. Se aquilo l desaba-apontou para uma-nuvem escura - porque Deus que me ajuda: t mesmo em cima de minha roa. Mas no desaba, no!... Olhou fitamente para Jos Maria. Teria achado nele um tipo estranho regio. -Vosmec tambm vai compra crista, no ? -No, respondeu Jos Maria. -T indo pr Rio S. Francisco? -No. Estou indo para um lugar chamado Pouso Triste, 44 -Pra c de Monjolo? Ah! conheo por demais... J botei roa l perto. -Ouviu por acaso falar em Dulia? -Dulia... Dulia... Espera a... Dulia... Ah! o senhor queria dizer D. Dudu, no ? Conheo muito. Jos Maria sentiu um estremecimento. Arrependera-se da pergunta. Calou-se. A deformao de um nome to doce como Dulia horrorizava-o. Devia ser outra pessoa. Era melhor no prosseguir na conversa. O homem queimado compreendeu, e calou-se. Ao entardecer, apitava- uma fbrica de tecidos e uma vitrola esganiava a todo pano, quando a "jardineira" encostou porta do hotel principal de uma cidade. Era Curvelo, boca do serto mineiro. Jos Maria j se sentia dentro da rea do passado. Da em diante a viagem se faria nas costas de um burro. Tudo como quando tinha dezesseis anos. Tratou um "camarada" que o gerente do hotel lhe indicara. Na manh seguinte, cedinho, partiu rumo de leste. -Se no cai tempor, nis chega dereitinho, patro-disse-lhe o camarada, enquanto Curvelo desaparecia atrs, numa nuvem de poeira. O velho funcionrio ao mesmo tempo que sentia a delcia de montar um animal e respirar o ar puro, receava lhe voltassem aquelas pontadas que o atormentavam na repartio. Soero, o camarada, desconfiava estar seguindo um homem importante; mas no ousava perguntar. -O Rio das Velhas vem vindo por a, anunciou depois das primeiras horas de caminhada. Pouco depois, o rio fiel aparecia ao viajante.-Oh! velho Rio das Velhas! exclamou Jos Maria. Sempre no mesmo lugar! E todo esse tempo me esperando! Achou-o tranqilo, mas um pouco emagrecido. Soero foi chamar o balseiro, enquanto Jos Maria, agachado na areia, deixava que o velho rio lhe ficasse correndo longo tempo entre os dedos. Embarcaram as alimrias, e foram deslizando de balsa para a margem oposta. 45 De p, o funcionrio parecia estar sonhando. A bengala desamarrou-se da mala e caiu na correnteza. Soero quis mergulhar.-Deixa, deixa! gritou Jos Maria. Preferia no perd-la. Era afinal, uma lembrana dos ex-colegas. Mas j que foi para o fundo do rio, que l ficasse. Almoaram e retomaram a montaria. -Agora vem Dumb. Oito lguas, disse o camarada. -E o Parana? reclamou o viajante, recordando-se. -Ainda temos que atravess. Tudo era deslumbramento para o viajante. medida que ouvia esses nomes quase esquecidos, a coisa nomeada aparecia logo adiante, rio ou povoado. As lguas se estiravam, a noite ia longe. Ou porque a escurido fosse maior com a lua minguante, ou porque a correnteza engrossasse de repente, o Parana surgiu mudado e agressivo. Nem parecia o rio que os viajantes atravessam a vau. Soero explicou que devia ter chovido muito nas cabeceiras, da aquele despropsito de guas; mas baixariam depressa, esses rios magrinhos enfezam por qualquer pancada de chuva, depois se aquietam que nem crrego manso. -Se vosmec no quis cheg at o arrai, a gente espaia os burro e arrancha por aqui mesmo. Apearam-se. Soero desceu os arreios e a cangalha, amarrou o cincerro ao pescoo do cavalo-madrinha, e deixou os animais pastando perto. Deitado no couro, Jos Maria escutava o sussurro das guas. Pouco se lhe dava o corpo modo, a dor nos rins. Nunca se imaginara deitado ao relento, a cabea quase -encostada a um de "seus rios". Ficou a escut-lo. Era como o primeiro rumor de um passado que vinha se aproximando. Cobrindo-se com a manta, adormeceu. Soero fumava e se persignava, a olhar desconfiado para a outra margem onde um vulto branco parecendo fantasma esperava pelo abaixamento das guas. De madrugada o Parana voltou ao natural. Soero saudou o vulto de branco com quem cruzou no meio do rio. O homem respondeu em latim. Jos Maria se espantou ao ouvir frases latinas em cima daquelas guas, naquele ermo... Perguntou 46 o que era aquilo. Soero disse que no sabia, sempre o encontrava bbado pelos caminhos. -Dizem que sabe muito e ficou maluco. As alimrias seguiam agora em trote mais animado para a Rancharia do Dumb, onde, a conselho do "camarada", devia o viajante descansar o resto da tarde e passar a noite, antes de encetarem a travessia mais difcil da Serra do Riacho do Vento, na Cordilheira do Espinhao. A Rancharia pouso forado para quem atravessou ou vai atravessar a Cordilheira. Reconheceu-a de longe o viajante, pelo p de tamarindo. O mesmo de sempre. O pernoite ali, enquanto os animais recebiam rao mais forte de sal e capim, ia permitir ao metdico funcionrio a recuperao das foras exauridas. Viagem violenta demais para um sedentrio. Ficara-lhe nos ouvidos o Parana com o barulho de suas guas. No era o desconforto da cama nem a pobreza do aposento que lhe tiravam o sono; nem o latido dos ces, nem o relinchar dos burros; nem uma sanfona triste que parecia exprimir toda a solido l fora: era o fato de se achar mais perto, dentro quase daquilo que no precisava mais evocar para sentir. Mais algumas lguas e tocaria o ncleo de seu sonho. O que mais o espantara no gesto de Dulia-recordava-se Jos Maria durante a insnia, agarrando-se ao travesseiro-foi a gratuidade inexplicvel e a absurda pureza. Ela era moa recatada, ele um rapazinho tmido; apenas se namoravam de longe. Mal se conheciam. A procisso subia a ladeira, o canto mstico perdia-se no cu de estrelas. De repente, o squito parou para que as virgens avanassem, e na penumbra de uma rvore, ela d com o olhar dele fixo em seu colo, parece que teve pena e com simplicidade, abrindo a blusa, lhe disse:-Quer ver?-Ele quase morre de xtase. Plidos ambos, ela ainda repete:-Quer ver mais?-E mostra-lhe o outro seio branco, branco... E fechou calmamente a blusa. E prosseguiu cantando ... S isso. Durou alguns segundos, est durando uma eternidade. Apenas uma vez, depois do acontecimento, avistara Dulia. A moa se esquivara. Mas o que ela havia feito estava feito, e era um alumbramento. 47 Custava acreditar que estivesse agora se aproximando dessa fonte de claridade. Sentiu bater mais depressa o corao. E desejou que o dia raiasse logo. Puseram-se de novo a caminho. Horas depois, galgavam a serra. Salvo nos capes onde a quaresma e o pequizeiro se destacavam, a vegetao ia-se fazendo mais pobre: canela-deema, coqueiro-ano, cacto-enquanto o panorama se ampliava, e a vista abarcava os longes. Por um segundo, essa paisagem cruzou no pensamento de Jos Maria com o panorama de Santa Teresa. Um segundo apenas, pois logo apareceu uma boiada que lhe cobriu o rosto num turbilho de poeira. Faltava o trecho maior para se chegar ao Arraial de Camilinho. Os burros suavam na subida penosa.-Daqui a pouco vem o Chapado, avisou Soero. A essa palavra, Jos Maria animou-se. Tal como na antevspera, ao ouvir o nome Rio das Velhas. Pela altitude, pelas suas lguas de pedra e vento, pelo seu silncio, esse chapado do Riacho do Vento lhe surgira como entidade autnoma e orgulhosa, que dava passagem ao homem mas lhe negava abrigo para morar e pastagem para o gado. Era o trecho mais imponente e difcil no acesso regio de Dulia. Por ali transitara h mais de quatro decnios, fazia uma noite escura, s pelos relmpagos podia suspeitar o panorama irreal que se desdobrava de dia. Ia ento fazer os preparatrios em Ouro Preto, e caminhava cheio de medo para o futuro; seu pai e um caixeiro-viajante o acompanharam at a primeira estao da Estrada de Ferro. L o puseram no carro. Foi quando comeou a ficar s no mundo, e pela primeira vez chorou o choro da tristeza. O velho funcionrio no dava uma palavra. Contemplava. esquerda, as extenses lisas das "gerais" do S. Francisco; direita, as colinas arranhadas pelas mineraes da bacia do alto Jequitinhonha. Estranhava o ar parado numa serra que trazia o nome de Riacho do Vento. Entre os trilhos quase apagados que confundiam o viandante, quem dava a direo era o cincerro do cavalo-madrinha. J o sol deixara de reluzir nos afloramentos de pedra e mica, e ainda havia lguas pela frente. Como fica longe o lugar do passado! 48 Abatido, o olhar vago, o viajante parecia estar seguindo os caminhos do prprio pensamento. O cansao aumentava. Onde o fim do Chapado? Imenso Brasil. Era ento por esses ermos sem fim que corriam ofcios e papis da administrao pblica?! Quantos, ele mesmo, Jos Maria, fizera despachar sem a mais, vaga idia das distncias que iam cobrir! Mergulhava em reflexes. Infinita a distncia entre a natureza e o papelrio! De repente, dirigindo-se ao camarada: -Voc conhece Dulia? Soero no ouvira bem, ou no compreendera a pergunta que vinha perfurar um silncio de horas. Esperou que o patro a repetisse, mas o grito de um pssaro desmanchou o comeo do dilogo. E tudo ficou por isso mesmo. Depois de seis lguas de marcha batida, Soero sentiu que o homem misterioso no agentava mais. -Acho que de uma vezada s at Camilinho, um bocado de cho pra vosmec. Props uma pausa. Pouco adiante, descobriu uma grota para o pernoite. Num crrego de guas frescas, os animais desarreados mataram a sede. Os dois homens jantaram o que traziam nos bornais. Os couros foram novamente estendidos. Jos Maria, amedrontado, perguntou a Soero se havia onas por ali. O camarada tranqilizou-o. Enquanto para este era aquela uma noite de rotina, para o velho funcionrio repetia-se, a cu descoberto, a aventura excitante das margens do Parana. Doam-lhe tanto os membros e era tal o cansao, que j no podia contemplar por muito tempo as estrelas que cintilavam pertinho. Mergulhou no sonc pesado. s onze horas do dia seguinte, entrava no Arraial do Camilinho. A se dispunha a refazer as energias para a etapa final. Tudo o que vinha percorrendo j era pas de Dulia. Agora sim, no precisava ter pressa. A bem dizer, do alto do Riacho do Vento para c, a moa parecia ter-lhe vindo ao encontro. Era como se ela viajasse na garupa do animal. O resto da tarde e a noite passou-os Jos Maria na penso da Juvncia. A velha nem se lembrava de que ele ali estivera, adolescente, ao deixar Pouso Triste: tambm ela o supunha 49 algum emissrio norte-americano atrs de minrio para a guerra. Jos Maria preferiu passar incgnito. Absteve-se de pedir informaes. Mais seis horas e estaria naquela cidadezinha, face a face com a mulher sonhada. No imaginava agora fosse to fcil aproximar-se do que to longe lhe parecera no tempo ou no espao. Detinha o burro a cada momento; olhava, hesitava. Nem mesmo se inquietara com a nuvem de chuva que vinha avanando do nordeste. Soero estranhou a indiferena do patro. O aguaceiro caiu, molhou a ambos. Jos Maria tinha medo de chegar. Passou a chuva, veio o sol, borboletas voejavam sobre a lama recente. E Pouso Triste se aproximando... perfil de colinas conhecidas... o riacho cristalino com um ltimo faiscador... o stio do Janjo. Agora, o cemitrio onde dormem os seus pais... "Estarei sonhando?" -Pouso Triste! Olhou confrangido. Era ento aquilo!... E a cidade? Trazia na memria a-viso de uma cidade: surgiu-lhe um arraial!... Pobre e inaceitvel burgo, todo triste e molhado de chuva!.,. Foi descendo devagar. Passou em frente igreja, entrou na praa vazia. Fantasmas desdentados conversavam porta da venda. A brisa agitava as folhas da nica rvore gotejante. Tinha sido ali... A penso. Parou e entrou. Pediu um banho, mudou de roupa. Srdido chuveiro. Foi para a janela. Povoado lgubre! Como compar-lo cidade luminosa que erguera em pensamento para santurio de Dulia? Teve raiva de si mesmo. Nenhum parente, ningum para reconhec-lo. Melhor assim. Fixou a rvore. Era a mesma... Pelo menos aquilo sobrevivera. Saiu para v-la de perto; deixou-se ficar debaixo de seus galhos. Reviveu a cena inesquecvel... Mas no encontrou o mesmo sabor. A rvore parecia indiferente. No se conformava com a falta de claridade. Nem a da luz exterior, nem a outra, subjetiva, que iluminava a cidade ideal onde se dera a apario da moa. 50 Pertinho, bem perto devia estar ela. To perto que assustava. Dentro de poucos instantes-o seu rosto, a sua voz, os seios!... Mas aquele marasmo, o torpor das coisas-o envelhecimento da rvore e da paisagem, tudo prenunciava a impossibilidade de Dulia. Timidamente, pediu notcias dona da penso. A velha fez um esforo de memria. E tal como o passageiro da "jardineira", respondeu:-Dulia?... Dona Dudu, no ? Uma viva? Ah! sumiu daqui j faz tempo. Ouvi dizer que est de professora no Monjolo. Ainda que mal lhe pergunte, vosmec parente dela?-No, disse Jos Maria. E para desarmar a curiosidade da velha: -Trago-lhe umas encomendas; Deixou passar alguns instantes. Perguntou por perguntar: -Sabe dizer se tem filhos? -Filhos? Um horror de netos!... Que Deus me perdoe, o marido era uma peste. No quis saber do resto. Despediu-se de Soero, o bom camarada; pagou-lhe bem o servio. Seguiria sozinho at Monjolo. Conhecia a estrada. Pouco mais de trs lguas. Lguas que se tornaram difceis, pois a lama era muita, e o burro mal ferrado patinhava. A viagem se arrastava sem o encantamento da que terminara na vspera. No desejava que a decepo de Pouso Triste influsse na sua chegada a Dulia. Tudo agora parecia pior, o caminho mais estreito, mais aflitiva a ausncia de claridade. Sentiu o deserto no corao. Sua alma deixou de viajar. Fazia-lhe falta a presena muda de Soero. Fez parar o animal. -Ser que Dulia... Novamente lhe viera o terrvel pressentimento. Como aceitar outra imagem dela seno a que guardara consigo: a namorada eterna, fixa? A imaginao delirante no cedia evidncia da razo. A poucas horas da amada, Jos Maria tremia de medo. O burro comeou a andar por conta prpria. Os ltimos quilmetros o viajante os fez como um autmato. Monjolo se anunciava por um som de sanfona que parecia o gemido constante do fundo do Brasil. 51 Foi surgindo pela frente um arraial ainda menor e mais pobre que Pouso Triste. Os urubus no freqentavam o cu, quase se deixavam pisar pelas patas da alimria. Jos Maria engoliu um soluo. Tomados de espanto, os poucos moradores espiavam o estrangeiro. O letreiro "Escola Rural" aparecia em tinta esmaecida. Uma casinha modesta, com chiqueiro no poro. A sala de espera limpa, com gravuras de santos enfeitados de flores de papel, e que tanto servia Escola como residncia, nos fundos. As carteiras escolares estavam quebradas. O viajante apeou-se, bateu porta. Uma senhora, muito plida, veio atend-lo em chinelos. -Eu queria falar com Dulia... Dona Dulia... corrigiu. A senhora f-lo entrar e sentar-se. Pediu licena, deixou a sala. Momentos depois, voltou mais arrumada. Seus cabelos eram grisalhos, a voz meio rouca, o sorriso agradvel, apesar dos dentes cariados. Ainda no tinha sessenta anos, e aparentava mais. -A senhora tambm professora? Duas crianas gritaram da porta:-Dona Dudu! Dona Dudu! Ela respondeu:-Vo brincar l fora. E virando-se para o estranho:-No se pode ficar sossegada um minuto. Esses meninos acabam com a gente. Jos Maria sentiu como que uma pancada na nuca. Baixou as plpebras, confuso. A professora ficou esperando que ele se identificasse. Notou-lhe a fisionomia alterada, um comeo de vertigem. -Est-se sentindo mal? Saiu e voltou com um copo d'gua. -No foi nada. O cansao da viagem. J passou. Olhava para ela, estarrecido. A mulher, aflita por que o desconhecido desse o nome. -Veio a passeio, no ? -No. No vim propriamente a passeio... -Um lugar to distante... Ultimamente as jazidas tm atrado muitos estrangeiros para c. 52 -Eu no sou estrangeiro-respondeu o visitante. Sou brasileiro ... E daqui... de bem perto daqui. Sou tambm de Pouso Triste... Uma expresso de surpresa e simpatia clareou o rosto da professora. Jos Maria encarou-a com dolorosa intensidade. Subitamente empalideceu. Chegara o momento culminante. Fechou os olhos como se no quisesse ver o efeito das prprias palavras. A professora pressentiu que algo de grave trouxera at ali o sombrio visitante. Atordoada, esperou. Jos Maria principiou a falar: -Lembra-se de um rapazinho, h muitos anos, que a viu numa procisso? A mulher abriu os olhos. -Ns tnhamos parado debaixo de uma rvore... lembra-se? Ela ainda est l... no morreu. Eu olhava como um louco para voc, Dulia... Ao ouvir pronunciar seu nome com intimidade cmplice, professora teve um arrepio. O homem no sabia como continuar. Hesitou um momento. -Depois... depois eu larguei Pouso Triste. Nunca mais me esqueci. E s agora... Parou no meio da frase. Tremia-lhe o queixo. A mulher, assustada, reconhecera nele o rapazinho de outrora. Fitou-o longamente. Passou-lhe pelo rosto um lampejo de mocidade. Volvendo a cabea para o cho, enrubesceu com quarenta anos de atraso... Quedaram-se por alguns momentos. O vazio do mundo pesava sobre o sossego do povoado. Grunhiam os porcos embaixo. Um cheiro de lavagem e de goiaba madura entrava pela janela, e parecia a exalao do passado. Jos Maria suspirou fundo. Aquela mulher, flor de poesia, era agora aquilo! Fantasma da outra; runa de Dulia.... Dona Dulia... Dudu! A mulher interrompeu a longa pausa: -Tudo aqui envelheceu tanto! disse, erguendo a cabea. Que veio fazer neste fim de mundo, seu Jos Maria? 53 Ouvindo-a por sua vez pronunciar-lhe o nome, sentiu-se Jos Maria menos distante dela. Parecia que davam juntos o mesmo salto no tempo. -Vim procura do meu passado, respondeu. -Viajar to longe para se encontrar com uma sombra! E volvendo-se para si mesma:-Veja a que fiquei reduzida. Jos Maria pousou o olhar no colo murcho, local do memorvel acontecimento. Aquilo que ali estava poderia ser a me de Dulia, da Dulia que ele trazia na memria; jamais a prpria. -No devia ter feito isso, advertiu a mulher, como que despertando da profunda cisma. -O qu? -Voltar ao lugar das primeiras iluses. "Sim, verdade, pensou o homem, no devia ter vindo. O melhor de seu passado no estava ali, estava dentro dele. A distncia alimenta o sonho. Enganara-se. Tal como Ferno Dias com as esmeraldas..." Ergueu-se, chegou janela. A tarde caa depressa. Os casebres se fundiam na cinza suja. Uma preta entrou e acendeu o lampio de querosene. No tinha mais tempo para criar novas iluses. Nada mais a esperar. Ficaria por ali mesmo... Floripes fizesse o que entendesse da casinha de Santa Teresa.. Felizes os que ainda desejam alguma coisa, os que lutam e morrem por alguma coisa. Felizes aquelas meninas que desceram cantando para Belo Horizonte. A ele, Jos Maria, s lhe restava encalhar naquele buraco, dissolver-se por ali mesmo, agarrado aos ltimos destroos do passado. Sentiu falta de ar. Bem a seu lado se achava algum que se dizia Dulia, espectro da outra. Espectro tambm, Pouso Triste; e aquele mesquinho arraial l fora... e tudo o mais que a noite vinha cobrindo! Sbita raiva transfigurou-lhe as feies. Voltou a ser o estranho, o que invadira a manso de misria e paz da velha professora. Teve mpeto de espanc-la, destruir aquele corpo que ousara ter sido o de Dulia. Desse corpo de que s vira um trecho, num relmpago de esplendor... 54 Ante o silncio sombrio do visitante, a professora teve medo. Procurou aliviar-lhe o desespero contido. -Vai voltar para o Rio? Ao ouvir a voz mansa, Jos Maria enterneceu-se. Sentia-lhe no timbre a ressonncia musical da antiga. Sentou-se de novo; e fechando o rosto com as mos, caiu no pranto. Achou-se ridculo, pediu desculpas. Dulia, compassiva, tomou-lhe a mo, procurou consol-lo. Um sentimento comum aproximava-os. Espantou-se a professora ao se dar conta do que estava fazendo: dar a mo ao quase desconhecido de h pouco. Por longo tempo, as duas mos enrugadas se aqueceram uma na outra. Mudos, transidos de emoo, ambos cerraram os olhos. Duas sombras dentro da sala triste... O homem no se conteve. Ergueu-se, saiu precipitadamente. A professora correu atrs: -Jos Maria! Senhor Jos Maria!... A voz rouca mais parecia soluo do que apelo. -Jos Maria! Os moradores se alvoroaram: -O que ter havido com a professora? -Foi depois que chegou aquele estrangeiro alto! -Quem ser esse indivduo? E j se preparavam para perseguir o intruso, munindo-se de pedras e pedaos de pau. Mas o desconhecido desapareceu na escurido. Parada no meio do largo, Dulia arquejava. Ningum lhe ouvia mais a voz nem lhe distinguia o vulto. Alguns soluos cortaram a treva. 55 a rodrigo m. f. de andrade O DEFUNTO INAUGURAL Relato de um fantasma VAMOS subindo devagar. Quando alcanarmos o espigo, poderei saber para onde. Saber, no: desconfiar. Mas os homens no falam; apenas exalam um ou outro gemido nas rampas mais fortes. Eu no sou to pesado assim. Pelo contrrio: tantos dias exposto ao ar livre, o sol reduziu-me bastante, curtindo-me as carnes. Conheo estes caminhos. Muitas vezes, bbado ou vencido pelo cansao, deixei-me ficar encostado cangalha, sobre o pedregulho do leito, enquanto o meu cachorro farejava os bichos e a mula aproveitava o capinzinho das margens. S acordava quando trovejava l em cima e me vinha o medo de ser arrastado pelas enxurradas; ou ento quando se aproximavam esses caminhes enormes que comeam a invadir a serra depois que se abriu a estrada que vira para a encosta de l. A garoa afastou-se do vale. No sei por que os galos ainda cantam. Chegamos ao alto onde o p de coqueiro joga uma sombra curta para o lado das jazidas. Deve ser pouco mais de meio-dia. Tomara que o nosso rumo seja no sentido contrrio ao dessa sombra. Conquanto para a minha pele seja indiferente sol ou chuva, prefiro a vertente de c, onde deve ter ficado o molde irregular das patas da alimria. Os homens param. Depois se decidem: ser mesmo pela estrada nova! Tal como eu queria. O dia clareou bonito. Nunca o vira assim. Estou feliz. Circulo nele agora, participo-lhe da atmosfera. 56 Vem subindo Josefina com a criana ao colo. Eu queria dar-lhe bom dia, mas no posso. Se ela soubesse quem vai aqui! Passou sem desconfiar. . . Na ponte provisria um dos homens falseia o p, e meu corpo rola. Vo pesc-lo mais adiante. Tive receio de que o deixassem seguir com as guas. J comeo a ser menos indiferente ao destino de minha carcaa. Ao longe-mancha de sangue na vegetao-uma bomba de gasolina. A primeira instalada nestes ermos de montanha. Depois, a estalagem. O dono grita, ao dar com os meus despojes: -Que h l em cima que esto niandando defuntos c para baixo? J o segundo!... Os homens no respondem. Desanimaram no sei por qu. Querero largar-me ali mesmo, nalguma grota, tal como me encontraram. Se fosse antes, no me importaria. Mas j agora nasce em mim um capricho: chegar primeiro, ganhar a corrida. Eles prosseguem mais soturnos. A que distncia andaria o outro? houve um tropeiro que informou mais adiante:-Cruzei com ele h coisa de duas lguas da Igrejinha; levantei o leno. Imagine quem era? O Anto, caador de parasitas. Catingando j, coitado.. E reconhecendo a qualidade da mercadoria que ia na rede: -Se vosmecs querem chegar na dianteira, carece andar ligeiro. A festana vai ser de arromba. S esto esperando o material. Parece que pagam bem. Comprar defunto pra cemitrio, foi coisa que nunca vi! concluiu o tropeiro soltando uma gargalhada. E depois de relancear o meu corpo embrulhado no lenol: -ia! o p dele t aparecendo!... Agora sim, compreenda por que, e sei para onde me esto carregando: fizeram cemitrio nalgum lugar, mas faltou defunto para inaugur-lo. Da o pedido s redondezas. Que cemitrio ser? O dia vinha escurecendo. Os homens tinham agora pela frente uma plancie animada de sapos e pirilampos. -Engulam a cachaa, disse eu, j impaciente. E toquem depressa! 57 Minha voz no ressoa, mas produz efeito. Tanto assim que os homens empunham logo o pau da rede e me erguem aos ombros. E eu vou seguindo, o rosto voltado para a primeira estrela. Um era careca, o outro tinha bigode. Atravessaram o pntano. Se no conhecessem to bem o caminho, ficaramos os trs atolados na lama. Quase no se falavam. -Espanta a varejeira da testa, gritei para o careca... Isto , quis gritar. O homem sacudiu a cabea. -Por menos de quatrocentas pratas, ns voltamos com ele, disse o de bigode. - -At trezentos, a gente fecha o negcio, responde o careca. -Vosmec v que ele nem t cheirando!... Era a minha vantagem sobre o concorrente. Pelo que percebi da conversa deles, e pela marcha batida em que vnhamos, o outro devia ser alcanado na curva do Bananal, antes de o sol raiar. A esse pensamento, trocaram-me de ombro e apressaram a marcha. Surgiram na cerrao as primeiras mulheres que se encaminhavam para o eito. Ao darem comigo, caram de joelhos, persignando-se. A mais moa fez uma pergunta, a que s de longe o careca respondeu: -Foi tiro, no; morte de Deus. -Toca depressa, toca! gritava eu sem poder gritar. Receavam os homens que outros cadveres, alm do que seguia frente, estivessem afluindo ao mesmo tempo para o Arraial Novo. Morrer, sempre se morre por estas terras abandonadas. Mas com a friagem dos ltimos dias e o advento dos caminhes, contando-se bem, fcil encontrar defunto apodrecendo pelos caminhos, ou dentro da mata. O interesse dos que me carregavam era chegar primeiro e negociar depressa os, despojes; o meu, era ganhar a corrida com o colega que ia na frente. -O outro j deve estar perto, diz o de bigode. T largando catinga... Surge ao longe um bananal oscilando suas folhas tostadas de vento frio. Experimento certo bem-estar, como nunca na vida. No propriamente um bem-estar comum, mas o sentimento, 58 quase apagado em mim, quando me apanharam na grota, de que ainda vagueio e vaguearei algum tempo pelas imediaes de meu corpo. Mais de quarenta anos tem esta carcaa. frente dela vou seguindo, como a projeo de uma luz distanciada mas no excluda de sua lanterna. Que bom este passeio! Tudo to fluido que posso perceber o que se faz e acontece na rea mais prxima de meu corpo. E l vai o tropeiro Fagundes-eu me chamava Fagundes (Fagundes?)-descendo de rede para o cemitrio do Arraial Novo!... Por que, nesse arraial, tanta pressa em inaugur-lo? Por que no esperar pelos defuntos da localidade? A vida l boa, eu sei. Tem aguadas, milharais, moinhos; terras frteis e homens fortes. Ningum h de querer morrer ali, s para estrear cemitrio!... -Eh, Bigode!... Eh, Careca! Depressa!... No Ribeiro das Mulatas alcanamos "os outros. Vo perder a partida. Alm do mais, a mercadoria que oferecem apodrece to depressa que ser capaz de ser recusada, mesmo que chegue em primeiro lugar; ao passo que meu corpo, magro e curtido, parece intacto. E os meus homens passaram silenciosos. Os do outro defunto olharam com raiva. Meus fluidos atravessaram depressa aquela rea, como que fugindo ao mau cheiro... Ao avistarem o arraial que sorria ao longe, no meio do arvoredo, os dois homens suspiraram. Fui recebido por um bando de crianas em meio do latido geral dos ces. Colocaram-me num estrado que me esperava no centro da igrejinha. Correram a avisar a professora rural, enquanto os meus carregadores, porta, discutiam o preo. Os curiosos foram chegando. Descobriram-me a cara. Era a primeira vez que viam defunto. Ante o meu dente nico plantado na gengiva esbranquiada, puseram-se a rir. A maioria eram rapazes. -Agora o cemitrio vai ser cemitrio mesmo, dizia um. -L se vai o nosso campo de futebol! suspirava o outro. 59 -Acho que no se devia recorrer a defunto de fora, opinava um terceiro. -Uma vergonha para nossa terra! Entrou um cachorro. Dentro da pequena nave ecoavam-lhe os latidos. Entrou em seguida uma velha que se ajoelhou junto de mim, impondo silncio aos rapazes e ao cachorro. Ao se retirarem de leno ao nariz, os moos tropearam na escadaria com um fardo que cheirava mal, envolto em jornais e folhas de bananeira. Era o outro. com bastante atraso, numa carrocinha, vinha chegando o terceiro concorrente. Trs defuntos ao todo. Os rapazes indignaram-se. Era a invaso do Arraial por gente podre. Revoltante, aquilo. Foram queixar-se ao Fundador: na pressa de inaugurar o cemitrio as mulheres inundam o povoado de cadveres! Um, ainda passava. Mas tantos assim!... No acha um perigo, Fundador? Assim chamava todo mundo a esse velho robusto, trs vezes casado, figura principal e dono de quase todo o povoado, que enchera de filhos e netos. -Vocs se entendam com as mulheres. Elas que inventaram esse negcio de cemitrio. Eu, por mim, quando chegar a minha hora, vou morrer sozinho l em cima, no mato, j disse. Um dos jovens entristeceu subitamente. -No se amofine, rapaz, disse o Fundador batendo-lhe no ombro. Mandarei fazer outro campo para vocs. -No estou pensando no campo. Me refiro aos defuntos. -Ele est fingindo, Fundador! interveio o companheiro. Est com o sentido no campo mesmo. No pensa noutra coisa. Eu tambm. Nosso clube foi desafiado, o senhor sabe. Estvamos treinando todos os dias. Agora, depois desse enterro, como que vai ser? E com certa astcia:-O senhor no acha que um s defunto pouco para dar quilo um ar de cemitrio? Ainda mais um sujeito que ningum conhece... que nem cidado do Arraial. -Isso mesmo, isso mesmo! ciciava eu aos ouvidos do rapaz. Mas ele no me ouvia, nome podia ouvir... -So vocs os culpados, disse o Fundador. Eu mandei abrir um cemitrio, vocs fizeram um campo de futebol. -Saiu sem querer, Fundador, saiu sem querer... 60 -At as medidas so iguais, me disseram! Calou-se o primeiro rapaz, a fisionomia transtornada. E num impulso de paixo que lhe venceu a timidez, dirigiu-se ao velho: -Fundador, ns nunca tivemos disso aqui! Ningum falava em morte. Todo mundo s pensava em trabalhar e viver. O senhor bem que podia salvar o nosso time. O jogo est marcado para o fim do ms. Vir gente da redondeza. Nosso clube novo, mas a vitria certa. Vai ser uma honra para o Arraial. Se o senhor deixar, ns damos um jeito no cadver, adia-se a inaugurao e em trs semanas fazemos outro cemitrio. Talvez at melhor do que este... -Agora tarde, respondeu o Fundador. Realmente, era tarde. As velhas j me tinham lavado e agora me vestiam. Nunca me vi to bem trajado. Larguei os trapos; enfiaram-me um casaco impreciso e negro, entre jaqueto e fraque. Fiquei um defunto bem passvel. Pelo menos, limpo. A professora assumiu um ar doloroso. Vestida tambm de preto, a face chorosa, embora sem lgrimas,-era a dona do enterro. Cercavam-na outras mulheres. Conduzia-se como se fora a minha viva. Notaram os rapazes nos modos reticentes do Fundador certa indiferena pelos preparativos do enterro. Combinaram no comparecer. Faziam mesmo trabalho surdo contra a cerimnia da inaugurao. Serviam-se de dois argumentos: um, que eu no era do lugar; outro que, enchendo-se o povoado de cadveres, uma epidemia era iminente ali. Se algum duvidasse, fosse perguntar aos doutores da cidade vizinha. O Fundador invalidou o ltimo argumento mandando fechar as estradas e enterrar logo os defuntos restantes. outra razo responderam as mulheres que ningum sabe quando o nosso dia chegar. Que destino se daria ento nossa carne? Os rapazes ouviram desconcertados. Jamais cuidaram de tal coisa. -Sim, porque vocs so moos, no pensam nisso, insistiam as mulheres. Saibam que no s de velhice que se morre neste mundo. Vamos pensar um pouco no futuro. Lembrem-se de que a morte anda pegada nossa pele. 61 E como os sinos comeassem a repicar forte anunciando o meu enterro para o dia seguinte, os rapazes se retiraram desanimados. Desceram at a pracinha. Um sentimento novo amargava-lhes o corao. -Tudo perdido. Temos que mandar avisar que o jogo foi adiado. Que azar! Na conversa junto ao chafariz, circulavam uns termos at ento desconhecidos no Arraial: "esquife", "fretro", "funeral" e outros, lanados pela professora. As moas no pareciam tristes. Iam perder o futebol, verdade; em compensao, o enterro valeria a pena como festa. A primeira cerimnia pblica desse gnero que se ia realizar no Arraial. Muitas ficaram em casa, preparando os vestidos. Vendo-me de preto entre crios e mulheres que rezavam ou fingiam rezar-os rapazes se impressionaram. Ecoava neles a advertncia fnebre da velha, reforada agora pelo sino que no parava de tocar. Desistiram da campanha contra o enterro. A cancha ia mesmo virar cemitrio... Eu estava de fato "um defunto convincente. As crianas trepavam no estrado para espiar, e recuavam de pavor, repelidas sempre pela ponta de lana de meu dente nico. No dia seguinte, o povoado acordou cedo. Fora uma noite diferente, noite em que cada um se deitara com a convico de que eu estava presente a seu lado. Os ces ganiam a cada minuto. Ningum punha o rosto janela. Para todos, eu era um defunto imenso e difuso, presidindo noite do Arraial. Na verdade, no passei um minuto sequer junto a meu corpo. Quem se incumbira disso fora a professora e uma velha. Flutuei por cima dos telhados, penetrei de mansinho nos lares. Quedei-me junto de vrias criaturas, acompanhei-lhes os movimentos ntimos. Como toda essa gente simples, a portas fechadas! De alguns que dormitavam toquei-lhes de leve a nuca. Apenas toquei. O suficiente para apreciar-lhes o estremecimento de pavor. Ningum me viu. Senti no poder apresentar meu vulto em forma de vapor, como no tempo em que se acreditava em fantasmas. Nem mesmo consegui apagar as lamparinas 62 acesas por minha causa. Talvez porque meus fluidos estivessem enfraquecendo, talvez porque no tardasse a desintegrao de meu corpo. Estou reduzido ao mnimo, pensei. Mas posso perfeitamente dar uma chegadinha at o cemitrio, onde vo instalar-me hoje tarde. O porto foi colocado, os muros caiados de novo. A cova est aberta. Retiraram as traves do gol. Foi pena. Aquilo tinha mesmo formato de cancha de futebol, mais que de campo-santo. No sei como vo se arranjar agora os rapazes. O sino comea a badalar. Os cachorros pem-se a latir. Est chegando a hora. Eu me recolho aonde se acha meu cadver para assistir ao saimento. L est a mesma mulher. (- Mas a senhora no me larga, professora!) Ah, se eu pudesse articular as palavras. Que olheiras as dela' que maneira suspeita de olhar para um corpo morto. J vou sendo levado. O ambiente festivo. Todo mundo me acompanha, exceto o Fundador. Alegou que precisava cortar uns toros l em cima, deixou Dona Maria doente e grvida na cama, sumiu-se. No quer saber de nada com a morte; diz que no gosta de cemitrio. Eu tambm no gosto. Principalmente nas condies em que estou sendo enterrado, com esse pssimo sino que mais parece batucada confusa e sem ritmo. Nunca vi tocar to mal a finados. A populao me acompanha com relativa decncia. Pelo menos, faz o possvel. Os rapazes compareceram, afinal. Friamente. Sob a aparncia fnebre, as senhoras escondem certo entusiasmo. Algumas quase sorrindo. Estou perto, e estou vendo. De vez em quando se lembram e simulam consternao. Consternao verdadeira, porm, reina atrs, perto da bandinha de msica, onde os rapazes deploram ainda a perda do campo. Como compensao, namoram as moas. -Aqui no, diz uma. Olha o morto! -Deixa, deixa que ele te aperte, moa,-insuflo aos ouvidos dela. No te preocupes com o que vai l na frente; aquilo apenas um corpo abandonado, arranjo de velhas que s pensam na morte. Parece que a moa me atendeu... 63 O prstito atravessa o porto de ferro. Meu caixo colocado perto de seu lugar definitivo. Comeo a achar aborrecido o papel a que me obrigaram. Despertar tantas idias tristes numa aldeia to despreocupada!... No reclamo nenhum respeito pelo meu corpo. Ser, que j est descendo sepultura? Um momento. Deixem-me voar at l... O padre terminava as palavras em latim. Referiu-se depois ao significado da cerimnia: entregava aos futuros mortos do Arraial Novo a sua verdadeira morada; e exortava o povo "a que pensasse sempre na morte!". Quando terminou, todos olhavam para o cho e simulavam tristeza. Ouviu-se em seguida a voz bonita do vereador distrital. Disse que ali se enterrava um dos ltimos tropeiros do nosso amado serto, "raa que se extingue ante a avanada progressista dos caminhes"; que me conhecera (onde? como? se nunca me viu, se nunca votei!) e tinha importante declarao a fazer: "Eu no era um defunto estranho ao local, nascera ali mesmo!. .." Baixa demagogia... Pois se o Arraial no tinha trinta anos! Os rapazes sorriram. E resolveram, baixinho, expulsar do clube o sujeito amarelento que se prestara ao papel de coveiro. A professora avana e d instrues. As moas me cercam e eu me surpreendo numa onda de alegria indefinida. Aura de juventude emanando delas! Que fazer de tanta primavera desaproveitada? Meus fluidos roam-lhes o colo. Somente os fluidos. A invisvel carcia arrepia-lhes a pele, enquanto a musiquinha toca uma coisa triste debaixo das rvores. Que se passou com elas que enrubesceram de repente? Algumas cruzam os braos ou tapam com o xale o busto arrepiado; outras se escondem, perturbadas, no meio do povo. Est na hora de eu ir para o fundo. Quem que me aparece boca do buraco? A mula com a cangalha! mulinha, ainda bem que no esqueceste o antigo dono. Coitada! Meio desmanchada, como um brinquedo abandonado... Logo atrs, sorrindo com os dentes brancos, a metade do corpo comida pela sombra, quem vejo? Isabela! -Tu te lembras, pretinha, daquele banho no ribeiro? o nico momento bom de minha vida. Ah! agora no posso, 64 mulinha!... Agora no posso, Isabela! Pois vocs no vem que estou muito ocupado, inaugurando?! Os rojes explodem, rejubilam-se as velhas. S no conseguem chorar. E com frenesi atiram sobre o meu corpo uma chuva de ptalas. Em seguida, torres de terra, como se me apedrejassem. Abraam-se e despedem-se felizes. Tinham arranjado sede para os seus despojos. O porto foi fechado. E eu fiquei l dentro, como ovo de indez. espera dos mortos que ho de vir... Fiquei, modo de dizer; saa sempre. A idia de corpo sepultado sossegou a princpio os meus fluidos. Durante dias perdi a memria; alguma interrupo, talvez mergulho mais demorado no vazio. O fato que reapareci depois. E ainda h pouco dei um giro at pracinha. H l um arbusto onde gosto de ficar. Uma moa que passava perto parou de repente, assustada, olhando para mim, sem me ver. Tratei de voltar logo ao cemitrio. E foi bom, pois um vira-lata, o mesmo da chegada, o que mais latiu na igreja e rosnou todo tempo no enterro, o cachorro de sempre, esgravatava com fria o meu tmulo em direo aos ossos! E eu, pensando em seus dentes, experimentava a sensao de mal-estar anloga que em vida se chama pavor. Afinal de contas, mesmo ao meu corpo que perteno; dele no devo afastar-me muito, sem risco de me dissolver para sempre. Francamente, o que no me agrada ser o usufruturio nico deste local. Se uma s andorinha no faz vero,-disseram os rapazes-uma nica sepultura no devia fazer cemitrio. Deram para chegar atrasados e abatidos ao eito. Pemse a sorrir quando encontram as velhas. Elas no compreendem, sentem-se satisfeitas com o seu cemitrio. O Fundador desconfia, mas finge que no sabe. E para ter a certeza, usa um estratagema: -Para apanhar? -Que jeito! No temos onde treinar... -Ento? Ficou de p o desafio? -Ns jogaremos assim mesmo. 65 -Por que no falam com a professora? Ela tem a chave do porto. -Mas s abre quando vai rezar l dentro. -Para um morto que no conhecem... acrescentou o outro. - isso mesmo, exclama o Fundador. Inventaram a morte no Arraial Novo! As velhas, de fato, no largam o cemitrio. Entram ao cair da tarde e se ajoelham. No rezam por mim, rezam pelo futuro defunto, rezam para a morte. H pouco, entrou a professora. Debruada sobre a sepultura no fez seno murmurar: -Jos, meu Jos... Ora, eu no me chamo Jos... Esqueci meu nome, verdade; mas sei que no era Jos... Razo tem o Fundador. O esprito da morte apoderou-se do Arraial. Ainda ontem senti isso quando estive pousado nos arbustos da pracinha. Todo mundo silencioso e triste, aguardando a abertura da igreja. S no vi os rapazes. o cemitrio, pensei; a minha presena! De alguns dias para c, se uma parte da populao se entrega aos trabalhos de rotina, a outra se ocupa em interrogar a alma. As velhas dizem que se alguma dvida houver, s passar a noite pelas imediaes. Ouvem-se barulhos estranhos, estrupidos de correria. E se no fosse o rumor dos moinhos, todo o arraial poderia escutar. Ao saber disso, tomou-se a populao de certo orgulho: j havia fantasmas no cemitrio do Arraial Novo! Um defunto extranumerrio, um simples tropeiro tivera a fora de transformar em campo-santo uma rea terraplenada, logradouro inexpressivo antes. Que todos respeitassem agora o cemitrio com as almas que nele transitam!... Essas almas eram quase sempre vinte e duas, fora as que permaneciam a certa distncia, olhando apenas. Escalavam o muro e, uma vez l dentro, vestiam depressa os cales. As lavadeiras que passavam perto mal ouviam o barulho, saam correndo. Se tivessem coragem de verificar, poderiam reconhecer vultos familiares sob o projetor da lua cheia. 66 Eu adorava ficar ali. Acompanhava o movimento do jogo. Torcia. Metia-me no meio dos jogadores. S faltava gritar. No sei como ningum dava pela minha presena. A bola saltava s vezes o muro e ia aninhar-se no capinzal de fora. Um dos jogadores cobria-se de uma capa escura e saa a busc-la. O jogo ento recomeava forte. De repente, fora de propsito, parava. -Que houve? quem apitou? Ningum apitara. Era eu que soprara no apito do juiz. Muitas e muitas vezes intervinha sem que ningum soubesse, s para animar, s para mostrar que me achava ali, vendo, participando. Substitudo o juiz, as marcaes continuavam desencontradas. Ningum desconfiava. Antes de raiar a madrugada, esvaziava-se o campo. Os "fantasmas" seguiam para o eito e eu ficava... Ficava... Era bem triste, hora quente dos comentrios, continuar sozinho ali. Deliciava-me s de pensar em novas noites de jogo. s vezes os rapazes demoravam, e eu me tornava impaciente. Primeiro, atiravam a bola. Sabia ento que estavam perto, preparando-se para a escalada. A bola corria at parar junto de minha sepultura. Despertado do sono, eu subia depressa no muro e, sem garganta, sem voz, punha-me a cham-los. Iniciava-se ento mais uma partida animada. Evitei repetir a proeza do apito, no s porque podia afugentar os jogadores, privando-me do espetculo, como pelo receio de submeter a uma prova infeliz a fora cada vez menor de meus fluidos. As velhas j desconfiavam. No todas. E, por certo, nenhuma, se a professora no deparasse com a minha cruz de madeira cada ao cho. Culpa dos rapazes que se esqueceram de recoloc-la quando, da ltima vez, fugiram do sol que raiara depressa. -Fantasma no faz isso, disse a professora, suspeitosa. Quem teria sido? As mulheres foram de novo queixar-se ao Fundador: -Isso no comigo. Falem com D. Maria, mas depois que nascer a criana, pois a minha velha j est em dores. 67 -Mas jogaram uma bola na cruz! uma profanao! exclamava a professora. -Deve ter sido algum fantasma, explicava um dos rapazes. -Ou ento chutaram de fora, disse outro. -O muro no deixa, insistiu uma das mulheres. -S se foi um tiro de parbola e aqui ningum sabe chutar assim... -O Zequinha, lembrou o coveiro, chuta suspendendo a bola. Ora, todo mundo sabe que Zequinha fugiu com a mulher do vereador. Jogava to bem, que ela fugiu com ele... Os rapazes s contavam agora com a mediao de Dona Maria que no estava bem, depois que lhe nascera a criana. Da por diante, nunca mais se bateu bola no cemitrio. Reforada a vigilncia, meus fantasmas no apareciam. Fiquei mais triste. Agora, nem para voar at o arraial tenho fora. Para nada, alis, tenho mais foras. J no percebo bem o que se passa atrs dos muros. A paisagem se dissolve ao meu olhar que est se apagando. Parece que ainda resta para os ouvidos um canto de lavadeira batendo roupa. To longe... Mas est acontecendo qualquer coisa l na entrada. O porto se abriu todo! O povo chegando!... Ah, a senhora?! Pois entre, a casa sua... Eu, sozinho, j no podia responder por todo este cemitrio. Estou sumindo ... O espao endureceu. Meu prazo terminou. S vejo figuras opacas imobilizadas no gesto de chutar a bola. E essa coisa fixa, mancha final de luz remota que deve ser o Sol, Entre, Dona Maria. Sirva-se de seu cemitrio...
O ASCENSORISTA 68 ESTAS notas que vou escrevendo ao acaso no so contra o meu arranha-cu. No fundo, eu gosto dele. E no saberia ser cabineiro de nenhum outro, nem mesmo daquele, todo envidraado, que surgiu em frente e vai botando o Lua Nova na sombra. Coisa curiosa gente velha. Como comem! Esse pessoal do 12, pelo menos a rnaioria, de velhos. Descem comendo biscoitos, sobem comendo biscoitos. Vivem reclamando contra o papagaio da cartomante que no os deixa dormir durante o dia. Em compensao, como abusam do rdio! Precisam de barulho, tm horror solido. Logo que me empreguei de ascensorista, o que mais me aborrecia era ouvir conversa em lngua estrangeira. Outro dia, dois sujeitos olhavam para as minhas muletas sem que eu pudesse saber se falavam bem ou mal delas. Nem em que lngua. Distraidssimo o laboratorista do 8. andar. Toda a noite de sbado para domingo, escorreu gua pelas frestas de sua porta. E como os ralos estivessem entupidos, o lquido desceu pelas escadas at ao 7., da para o 6., inundando consultrios e escritrios comerciais, e finalmente foi molhar os tapetes da cartomante no 5.. A dona saiu descala pelo corredor a gritar por um nome desconhecido, e a pedir que chamassem o Corpo de Bombeiros. Pedem por exemplo o 3., e depois dizem "no, o oitavo". E ficam no quinto! So uns indecisos. Ou ento, no conhecem bem o edifcio. Alis, tambm eu no posso dizer que o conhea 69 todo. Principalmente o andar das firmas estrangeiras. o mais difcil. O 1001 est sempre de luz acesa durante a noite. apartamento freqentado por um grupo alegre de cavalheiros que se dizem oficiais do Exrcito. H pelo menos um major mais assduo (uma ou duas vezes o vi fardado), que sobe sempre com garrafas de usque e discos de vitrola. Tipo sangneo e musculoso. Espirra altssimo. Parece que passa as noites l; pelo menos comigo, durante o meu planto, nunca desceu. Dizem que a moradora protegida da polcia, e at senadores recebe. Por isso, ou porque seja de fato muito bonita, no d bola para ningum. Nunca pontual nos pagamentos. Outro dia, porque eu demorasse em chegar com o elevador, o homem que a acompanhava-no era o major-s faltou agredir-me. Dei as explicaes que devia, o homem acalmou-se, e ofereceu-me uma nota de duzentos cruzeiros para que eu descesse diretamente com os dois. Recusei; disse-lhe que havia chamados em outros andares, bastava olhar para o painel todo aceso. Tiveram que descer apertadinhos, recebendo o bafo dos outros, todo mundo olhando para a mulher. Foi a minha vingana. Por muito tempo ficou o perfume dela na cabina. de fato bonita. E orgulhosa a mais no poder. No sei por qu, amanheci hoje com predisposio para a melancolia. Comecei servindo com certa indiferena, sem atentar bem no que fazia. Mais parecendo uma sombra conduzindo sombras. Ser que a minha sina ficar subindo e descendo gente at o fim da vida? E esse prdio? Daqui a cem, duzentos anos, que ser dele? Ter aquela mesma velhinha se repetindo janela? E que espcie de gente, que paixes, que negcios entre suas paredes? Homens e mulheres de sempre, fazendo a mesma coisa, com outras caras, outros nomes?... Perguntas bestas... O que me d vertigem o estado d'alma que as inspira. E que espero no se repita. Estive fazendo os clculos: com mais de oito anos de servio, j passei cerca de vinte mil horas encurralado neste tnel. duro! Sobretudo no vero, com um ventilador que s funciona quando quer. O passarinho na gaiola tem, pelo menos, 70 a paisagem para contemplar. E ns? O que nos distrai mesmo so os passageiros de alguns segundos. Trazem no rosto os reflexos do mundo l fora. Por incrvel que parea, esses passageiros aumentam o espao da cabina. Sobem e descem com a marca de suas paixes, s faltam dizer o que fizeram, o que vo fazer. Quando os homens no falam nem gesticulam (h um minuto de silncio quando usam o elevador), a alma deles parece que aflui mais depressa flor da pele. O senador desceu com a dentadura definitiva. Estava eufrico, sorrindo toa. com a provisria, era impossvel fazer oposio. "Foi por isso. que fiquei calado todo esse tempo." Disse que hoje mesmo vai abrir a boca contra o governo. Quantas vezes tenho notado o ar de constrangimento e repugnncia dessas pessoas que descem de seus automveis de luxo e so obrigadas a viajar alguns segundos perto do mais sujo maltrapilho ou do pior inimigo!... O elevador o nico transporte gratuito e igualitrio da cidade. Acho isso extraordinrio. No a primeira vez que a moradora do 1204 dorme com a torneira aberta. J tem havido reclamaes. Essa velha ricaa anda sempre empetecada. Mora sozinha, e vive comendo bombons. a maior freguesa do Instituto de Beleza, do dcimo andar. Completamente gag. Um bonito que chegou do Sul e que parece candidato sua herana, visita-a duas vezes por semana. Ela vem traz-lo porta do elevador, e o bonito deixa-lhe sempre um beijo entre as rugas do rosto. Tenho pressentimento de que qualquer dia vai haver um crime no 1204. A cartomante obstina-se em no tirar o papagaio. O diabo da ave anda impossvel neste comeo de vero. Queixam-se os homens de negcio de que no podem tratar de seus assuntos, porque o papagaio atrapalha. Reclamam tambm os mdicos: mal podem auscultar os doentes. O curioso que os moradores do edifcio puseram-se ao lado da ave, a qual conta com o apoio unnime do dcimo-primeiro e dcimo-segundo, afora alguns simpatizantes esparsos. 71 Duas vezes por semana a Senhora L. serve-se do meu elevador para subir ao seu dentista, no stimo. Sempre bem vestida e intensamente perfumada. H trs meses me evita. Prefere esperar o carro dos pavimentos mpares, sabendo embora que o meu pra em todos os andares. Aborreceu-se comigo uma vez quando, ao entrar na cabina, me pediu dissesse ao marido, caso ele aparecesse, que ela ainda no tinha chegado. -Mas como? respondi. Se a senhora est subindo para o seu dentista! Alm do mais, no conheo o seu marido. Ela fechou a cara. E com razo. No admitia se desconfiasse que estava subindo para o amante. Moro s, no terrao. Tolerncia do encarregado do prdio, de quem sou uma espcie de ajudante, em considerao minha perna paraltica. agradvel, mas venta forte aqui em cima. Quantas vezes o meu chapu foi parar l embaixo, no asfalto da Avenida. Aos domingos, as crianas do dcimo-primeiro costumam subir at c. Olham para a baa, espiam as mquinas, as antenas de rdio, e depois vm pr a mo nas minhas muletas, fazendo-me perguntas. J expliquei a um que ca do trem de ferro, quando estudante de Medicina. A me que se aproximara e ouvira a conversa, exclamou:-"Ah! ento o senhor j estudou Medicina?" Eu respondi que comecei, mas no acabei.-"Como que est aqui neste emprego?" E olhoume com certo desprezo e piedade.-"No to mau como a senhora pensa", eu disse:-"Meu marido mdico."-"Ah!..." Eu sabia. o Dr. Favnio. O maior unha-de-fome deste edifcio. Dali no sai um centavo sequer para os ascensoristas. Ontem os meninos esconderam minhas muletas. Tive que me arrastar com as mos para assumir o posto. Parece que vi um disco voador. Apareceu entre Vnus e o Po de Acar. Passei o resto da noite no terrao, esperando que voltasse. Coisa mais triste ver criana mofando janela. Outro dia, sa um pouco para fazer compras e verifiquei, ao voltar, que atrs das vidraas do Lua Nova h sempre crianas espiando 72 a vida. No tm onde brincar, nem com quem. Nos corredores, proibido; nos jardins, falta quem as acompanhe; e a rea s para automveis. Apenas tm direito janela, onde ficam a apreciar os moleques livres que fumam e brincam na rua. Agora compreendo aquele levante de outro dia. Eram oito ou nove, a que se juntaram uns dois ou trs do morro (no posso compreender como conseguiram burlar a vigilncia do porteiro). Chutando bola e dando pontaps na porta dos vizinhos, invadiram os corredores, aos gritos; quebraram lmpadas, esmurraram a porta dos elevadores, desceram, pela escada, aos andares inferiores, fazendo soar todas as campainhas. Recebemos ordens de ca-los. Os quatro elevadores, inclusive o de servio, saram em perseguio. Mas os demnios, mal ouviam o barulho das mquinas, passavam-se para outros andares, at que afinal conseguimos enquadrar alguns. As mes, muitas vestidas apenas de combinao, vieram recolher os outros no htt. Esses homens que entram diariamente no Edifcio tm em geral o ar grave e angustiado. Ser to importante assim o que os preocupa? E por mais srio que seja o motivo, no estar em desproporo com a cara fechada com que se apresentam? Hoje noite vai haver coisa no 1001. Subiram rapazes levando garrafas. O major levou um violo. O coqueirinho que plantei no terrao cresceu que uma beleza. Meu maior desejo agora colocar umas bananeiras. Acho que vou tentar. J no agento mais com tanto cimento. Agentes de polcia deram batida no 703. No havia ningum, mas carregaram com todo o material de propaganda subversiva, e um mimegrafo. Andam agora procura do dentista. Ningum conhece esse tal Dr. C. K. Field, da tabuleta. Deve ser algum personagem fantstico. Ou ento dentista sem clientes. Esto sendo ouvidos seus colegas do stimo andar. Nenhum se lembra de t-lo visto. 73 A moa Jacinta, aluna do Curso de Lnguas, no faz muito tempo, descia chorando, a queixar-se de um colega, o Armandinho, que a desrespeitara no escuro do corredor. Eu disse que no podia fazer nada, e que se dirigisse ao diretor, ou a algum responsvel. Hoje desceram abraadinhos, beijando-se na boca. A est um resultado animador para uma falta de respeito... Como se d em relao aos avies, h pessoas que no viajam de elevador. Preferem a escada, como outros o tremde-ferro. No sei por qu, sinto-me ofendido quando me acontece atender um chamado e ouo algum dizer: "Entre voc que eu deso pela escada. No ando nesse troo." Horrvel quando nos foge por momentos o gosto de viver, e no espao vazio cresce inesperado remorso. Quantas vezes tem subido superfcie de meu ser o que eu pensava j houvesse sido expelido da memria! Deixar que o melhor da vida se sacrifique por uma obsesso, absurdo. Ser isso o famoso castigo? Mas em meu ntimo no vejo como possa ter remorso. Agi como qualquer o faria, as circunstncias me ajudaram. Por que me invade s vezes esta sombra? O jeito praticar coisas simples: irrigar plantas, limpar algum objeto, apanhar pessoas no saguo, distribu-las nos pavimentos, e vice-versa. Achar prazer nas coisas bem cotidianas, bem imediatas, dificultar o esprito nas incurses a lugares onde s reina mal-estar e asfixia. vou regar meu coqueirinho. A pendenga entre a famlia do 1207 e a que mora logo embaixo resolveu-se com o convite das duas mocinhas do andar superior para que o bancrio, pertencente famlia de baixo, participasse tambm das danas semanais. Queixavam-se os pais do bancrio de que no podiam dormir com o sapateado no cho e a vitrola aberta at madrugada. Sabedores, porm, de que o filho, rapaz tmido, coopera tambm no barulho, j no mais reclamam. Esto empenhados em que o rapaz se case, conforme lhe prescreveu o psicanalista. O filho tmido namora uma delas. Os pais preferem que a escolha 74 recaia na de cabelos castanhos, que menos escandalosa e no tem aquele remelexo do andar da outra. Fiquei admirado ao surpreender em conversa cordial aqueles dois homens que deixei hoje no nono. H menos de cinco dias, s faltavam atracar-se. Parece que um interesse comum os reaproximou: no sei se a austraca que retiraram da Ilha das Flores, ou se uns terrenos (isso me disse o advogado do 408) que esto comprando e querem lotear na barra da Tijuca. Eis o pequeno dilogo entre uma moa chamada Julinha e outra cujo nome no peguei:-"Voc no fica excitada, Julinha, quando entra num arranha-cu? -Fico. Parece que vai haver encontros... propostas... crimes, voc no acha? -Eu penso logo em aventuras. -Eu tambm. Mas no acontece nada... -. No acontece nada. -Engraado, no ?... -Engraado..." s vezes me acontece conduzir espectros do passado. Esta mulher gorda, amulatada e coberta de jias, pode no ser um espectro para os que a viram descer do dcimo; para mim, . Deve ter vindo do Instituto de Beleza, pois cheira a loo fina e tem os cabelos de um loiro recente. Se no me engano, chama-se Jovita. Conheci-a h mais de trinta anos, quando eu fazia a reportagem carnavalesca nos "Democrticos". Estvamos os dois meio bbados, e nos conduzimos de maneira to indecente, que s no nos expulsaram do clube em considerao ao jornal que eu representava. Vim a saber, depois, que largara o marido, suboficial do Batalho Naval, por um relojoeiro que a cobriu de jias. Depois abandonou o relojoeiro por outros. Ser que ela me considera tambm espectro do passado? Pelo modo com que evitou o meu olhar e pela pressa de sair, no tenho dvida de que tambm me reconheceu. Arrancaram a tabuleta do Dr. C. K. Field. Verificou-se que ele no existe. 75 O Dr. Leandro alugou o consultrio de um colega. S para os dias pares. Passa o tempo todo lendo histrias em quadrinhos, sem um cliente sequer. Duvido que haja inquilino mais desanimado no Lua Nova. Ultimamente, deu-lhe a mania de decorar letras de samba. Na roa, os vizinhos que brigam tm quase sempre a separ-los morros e rios, quando no lguas de mato e plantao; aqui, ouvem-se uns aos outros pisando no cho, e arranhando paredes. E se divertem interpretando maldosamente os movimentos midos da famlia adversria. S os estrangeiros sabem viver ao lado dos outros sem necessidade de virar-lhes a cara nem de sorrir quando os encontram. a segunda vez que me acontece conduzir defunto. Foi o Lebro, que morava no dcimo-segundo. Alis, esse andar prdigo em defuntos. Se no me engano, o quinto em oito anos, o que se explica pela quantidade de gente velha que nele habita. O corpo desceu pelo elevador de servio; e como faltasse o cabineiro, fui eu que manobrei. Por sinal que a energia falhou no meio do caminho, e passamos uns momentos desagradveis. Parecia que amos ficar sepultados ali, alm do defunto, eu e seus parentes. E o Lebro j no estava cheirando bem. Chegamos ao saguo com dois minutos de atraso. A, as duas filhas e a sobrinha do falecido tiveram o ataque de praxe. O dcimo andar, quem por ele passa a primeira vez supe que est havendo algum crime: ouvem-se gemidos e gritos lancinantes. Parece lugar de torturas e suplcios. Mas no nada; so os solfejos da Escola de Canto. As alunas entram na cabina cantarolando trechos. Vm terminar aqui os exerccios, o que muito me chateia. O diretor da revista sobe sempre com uma moa bonita. Que danado! No perde tempo. um camarada alto, simptico, de fala mole, e muito feio. No sei como as mulheres tanto se agradam dele. Quando sobe com uma, j sei: na semana seguinte sai o retrato dela na capa; depois aparece 76 com outra, e vem-lhe o retrato na capa. E assim por diante... O diretor est fazendo a sua vida amorosa base de capa de revista. Ontem, subiu e desceu com a cantora de rdio. Disse que foi lev-la ao especialista de garganta, para uma fumigao. Agarrando a mulher pelo brao, sorriu para mim e me perguntou quando que eu ia entregar as Memrias de um Ascensorista, que me havia pedido. Eu disse que muito breve; estava fazendo a cpia de meu caderno de notas. Mas mentira. No vou entregar, no. com a proliferao de revistas, rdios, cinema e televiso, todo mundo hoje chamado a aparecer, a falar, a dar palpite. At eu. a tcnica a servio do exibicionismo. Ningum fica annimo. E eu preciso ficar annimo. No meu tempo de rapaz no havia disso, no. a segunda vez que o mesmo homem, visivelmente agitado, me pede que o conduza ao stimo pavimento dos dentistas. Ser o marido da senhora L.? Acham todos que o Edifcio Esplendor, inaugurado quase em frente, mais bonito do que o nosso. Pode ser. Pelo menos noite, quando suas vidraas se iluminam. Em compensao, eu no queria trabalhar nos elevadores de l, com aquela velocidade que d vazio na barriga e faz mal ao corao. Prefiro o meu velho "Atlas", que tem trs velocidades e a gente pode graduar vontade. Ainda outro dia, eu subia toda, quando uma velha comeou a empalidecer; passei logo para a primeira e a velhinha se aliviou. Talvez que no Edifcio Esplendor ela chegasse desmaiada ao dcimo. Reabriram-se as hostilidades entre a famlia do 1207 e a do 1109. Valendo-se da superioridade topogrfica, a famlia de cima arrastava mveis e deixava cair objetos pesados. Foi o sinal. A famlia de baixo respondeu com pancadas de cabo de vassoura no teto, e o rdio aberto ao mximo. Depois, a luta prosseguiu no escuro, com as crianas de ambos os lados atirando batatas, cascas de laranja e demais resduos de cozinha. A coisa 'ficaria nisso, se uma das batatas, desviando-se do alvo, no fosse atingir a cabea do Almirante, no momento em que o simptico velhinho tirava a sua sesta na poltrona. 77 O Almirante deu queixa ao Distrito, e a famlia do 1109 reforou-lhe a queixa com novas acusaes. Acabaram-se as danas de sbado. Ou estou muito enganado ou aquele senhor elegante que deixei no stimo andar o Dr. Muniz, famoso cirurgio. O rosto confere com as fotografias que costumam sair nos jornais, e com a sua cara na televiso. Eu me lembro perfeitamente daquela cicatriz no lado esquerdo da boca. Quando entrou e disse: "-Stimo, faz favor", era quase a mesma voz de antigamente, um tanto rouca pela idade, ligeiramente modificada pelo tom de importncia social. Estava longe de adivinhar quem era o seu cabineiro do momento. Foi um mau colega. Tinha o apelido de Tico. Devia ter achado esquisito o olhar que lhe mandei-pois eu s via nele o Tico-, enquanto o dele para mim, um tanto irritado, era o do prprio Professor Muniz. No me agrada lembrar o passado. Talvez tenha razes para isso. Cedo me acostumo s coisas novas. Vi subirem os primeiros arranha-cus da cidade. Trabalhando num deles, no encontro motivos para aborrec-los. Hoje, domingo, passei toda a manh no terrao, a contemplar aquela rea de terra para onde deslocaram o Morro de Santo Antnio. Pensar que no meu tempo do Boqueiro do Passeio, ali onde passam agora milhares de veculos, eram guas que eu singrava com a minha iole a quatro! Entram precipitadamente na cabina certas pessoas irradiando tamanha felicidade e alegria, que me vem vontade de perguntar-lhes o que houve. Nada, com certeza. Deve ser coisa gratuita, inexplicvel. De vez em quando, eu tambm fico assim. pena no ser sempre assim. O sndico j proibiu empinar papagaio no terrao. ordem que eu fao cumprir bem constrangido. Ontem, por exemplo, o vento estava timo. Vi um, todo vermelho, no azul do cu. Francamente, no tive coragem de cortar a linha. Ah, isso no! O garoto estava feliz. E tenso como a linha 'que segurava. Parecia um perdigueiro amarrando a caa. 78 Coisa triste a Avenida l embaixo aos domingos. Parece que a cidade passou para as mos de outros. Tomara que chegue o dia de amanh. Abrirem-se as portas, ver gente chegar, os elevadores circulando, e o meu Edifcio animas-se todo para a celebrao de mais um dia!... O fato se deu h dias, mas s hoje posso registr-lo. Foi o seguinte: Velha e pobre lavadeira saiu do 908 com enorme trouxa. Era a roupa suja de uma pequena famlia, roupa de trs semanas. A mulher, como de costume, dirigiu-se para o elevador misto, que por acaso no estava funcionando. Apelou para o de passageiros, e ns nos recusamos a embarcar o fardo. Estaramos entretanto dispostos a faz-lo s treze horas, logo que amainasse o movimento. Mesmo que quisssemos ajud-la, o regulamento probe, e os passageiros protestam. E ainda por cima, aquela manh, as filas de subir e descer eram imensas em todos os andares, todo mundo parecia impaciente, pois o carro de nmeros pares no funcionava bem, e ia entrar em reparao. Alm do mais, a trouxa exalava mau cheiro. Volta ento a lavadeira para o 908, mas encontra fechada a porta. Os moradores naquele momento mesmo acabavam de sair. Sentada, deitada quase sobre a trouxa fatal, ps-se a preta a esperar. O tempo corria e veio a fome. As pessoas que passavam perto tapavam o nariz. O pessoal do Instituto de Beleza, gente em geral de narina sensvel, mandou uma delegao incumbida de investigar a procedncia do mau cheiro. Tudo isso, e mais o calor, a fome, a necessidade de pegar conduo para o subrbio longe, aumentava a aflio da pobre lavadeira. Pelas escadas no desceria; sentia-se velha demais e cardaca para carregar com aquilo pelos oito andares. Seu desespero devia ter culminado alguns minutos antes das treze horas, pois nesse momento mesmo a enorme trouxa caa na calada da Avenida, abrindo-se toda. Pela posio e estado em que ficou, logo se viu que fora atirada de nosso Edifcio. Aliviada, a lavadeira desapareceu depressa pelas escadas, enquanto a multido, rala a princpio e j tomada do maior espanto, engrossava em torno do monturo flcido, fazendo comentrios. 79 Pensava-se em crime, devido a certas manchas de sangue no linho. Alguns, com a ponta do guarda-chuva, comearam a remover as peas, na esperana de encontrar algum objeto de espanto-arma do crime ou feto de criana. Compareceu, por fim, a polcia. E fez-se o cordo de isolamento. Nesse nterim, chega de volta a famlia. No querendo expor-se irriso pblica, e para fugir a provveis sanes penais, nega-se a dizer que era a dona da roupa suja, conformando-se com o prejuzo. Por sua vez, ouvidos pela polcia, no podiam os moradores se responsabilizar pelo acontecido. A trouxa foi reajuntada, lacrada e recolhida ao Distrito para exames posteriores. Procurados pelos investigadores, nos ascensoristas declaramos ignorar o fato, o que fizemos em ateno pobre lavadeira. O inqurito prossegue. Dizem que havia no meio uma cala de moa com as iniciais M.S., e que as manchas de sangue foram para o Laboratrio de Anlises. Afinal, para que levar to longe as investigaes? A famlia j teve o seu prejuzo (todos sabem que qualquer pea de linho ou algodo est hoje pela hora da morte), e inocente no caso. Quanto lavadeira, talvez lhe caiba alguma culpa: no se atira impunemente roupa suja pela janela em logradouro de tamanho movimento. Reunida porm em trouxa, vira coisa macia, e est longe de comparar-se a esses blocos de pedra que se desprendem com freqncia de nossos morros e vo derrubar casebres e esmagar gente desprevenida nas encostas. O Almirante desceu pelo elevador, no saiu, subiu, desceu outra vez, subiu de novo, e finalmente pousou no seu andar. Perguntei ao velhinho se desejava alguma coisa. Respondeu que no: "estava apenas dando uma voltinha". E me agradeceu a conduo. Descobri um casal de namorados que h muito vinha marcando encontros no fim do corredor do sexto andar, o local mais escuro do prdio. Ambos pareciam tmidos e se vestiam com modstia. O rapazinho me disse, tremendo, que a mocinha era- sua noiva, e que ela vinha fazer aplicao de ondas 80 curtas.-Por que no vo fazer aplicao de ondas curtas no banco do jardim? perguntei. A moa ps-se a chorar. Eu disse que no havia de ser nada, e desci com eles. No saguo, despediram-se de mim, entre encabulados e agradecidos. Quando me deitei noite, pensei neles. Esse papel de policiar o amor me repugna um bocado... At ento, que eu saiba, nunca houve suicdio neste prdio. Pelo menos, depois que sirvo nele. Era isso motivo de orgulho para os proprietrios do Lua Nova. O mesmo no se pode dizer do Edifcio Magirus, onde j trabalhei. Prdio sinistro, aquele. Rasta olhar-lhe a fachada. Errado desde a construo. Sem sol, sem gua, sem alma. Sempre de m cor: ou sangue coagulado ou amarelo bilioso. Edifcio infeliz. No admira que seus moradores sejam, quase todos, neurastnicos e inimigos entre si. A maioria, estrangeiros exilados da ltima guerra, gente calada, que vive botando carta no correio. S sei dizer que as coisas nunca vo bem por l, e que de suas janelas se atiraram nada menos de trs inquilinos. Inclusive um violinista lituano. O que ontem aconteceu aqui de cortar o corao. Esto dizendo que foi da janela do psicanalista que ela se atirou. Nunca vi criaturinha to bonita. H cerca de um ano que a vinha deixando no nono andar, para tratamento com o psicanalista. Como se uma coisinha assim precisasse de psicanlise! com aquele rostinho e aqueles olhos, parecia que tinha tudo. Eu chegava a retardar a marcha do elevador, e a abrir a porta fora de propsito, s para poder apreciar mais tempo aquela flor de sonho. Que desespero a teria levado a matar-se? Como que pode? Eu apenas vi, quando os fotgrafos bateram flash, uma bola de sangue, carne e vestido branco. Pensar que tudo aquilo era a moa que at ontem sorria e se chamava Jurema! ... Pobrezinha! Se houvesse outro mundo, tudo faria, depois que morresse, para saber onde ela estava, s para lhe perguntar:-Mas por qu, menina? Por que foi fazer aquilo?!... Toda vez que eu abria a porta para apanhar gente, aquele homem de cicatriz no rosto pensava que era o trreo: 81 empurrava os outros, chegava mesmo a sair; depois se dava conta do equvoco e voltava. Nunca vi sujeito to afobado. Parecia estar fugindo de algum. E estava mesmo. Mal chegara em baixo, dois agentes de polcia o agarraram, enquanto uma mulher loira, muito exaltada, gritava que no o prendessem... que era o Joseph... "um herri"... "combateu na guerra!"... E saiu correndo atrs. No auge da alegria, ningum tem pacincia para esperar elevador; todos se precipitam pelas escadas. So as pernas que reagem primeiro e comeam a andar. Assim aconteceu ao Ferreira, o encerador. Desceu s carreiras desde o dcimo-segundo, e veio contar-me c embaixo, quase sem flego, que recebeu a notcia de que lhe morrera um tio em Portugal, deixando-lhe enorme fortuna. Abraou-me vrias vezes, beijoume na testa, disse que ia comprar uma quinta. Perguntou se eu no queria seguir com ele. Disse-lhe que era impossvel: ia ficar por aqui mesmo, no meu ioi, subindo e descendo gente... Deve ser um suplcio para aquele asmtico andar de elevador. No porque tenha fobia desse meio de conduo, seno pelo terror que sua asma causa aos outros. Mal entra no carro, vem logo a crise. Todos pensam ento que o homem vai morrer, ou que sofre de molstia contagiosa. E se apertam nos cantos, fugindo-lhe ao contacto. Uma senhora nervosa, que pedira o dcimo, ficou no terceiro. Quando o aflito desceu, os poucos passageiros que havia, j estavam de costas para ele... O porteiro recebe sempre queixas de que jogam porcarias do dcimo-primeiro. Um senhor deu-se ao trabalho de juntar algumas para mostrar ao comissrio de polcia.-"Elas no caem, chovem l de cima." Informou que muitas dessas porcarias procediam das janelas de fundo do Instituto de Beleza. E entrou no elevador. Quis abrir o embrulho para os passageiros. Eu tive que impedir. Disse-lhe que devia ter descido pelo elevador de servio. Ofendeu-se; achou que era desconsiderao a um antigo morador. Eu expliquei que no era por ele, mas pelas porcarias. E chegamos em paz ao trreo. 82 De ficar to perto dos passageiros, to colado alma deles, a gente chega quase a perceber o que se passa no ntimo de cada um. verdade que, aps um dia de trabalho, a maioria s pensa na conduo que deve tomar, ou no jantar que vai comer. Nem todos, porm. Aquela senhora, por exemplo, que fora ao escritrio do advogado tratar do desquite, desceu hoje com visveis sinais de que pretende vingar-se do marido. No quero vangloriar-me de to triste previso, mas eu tinha a certeza de que ia suicidar-se aquele homem da radiografia; assim como evidente que o corretor que desceu comigo do nono devia ter feito alguma safadeza: estava eufrico, mas a sombra de um remorso passava-lhe pelo rosto. Na certa, lesou algum. Enfim, o prdio est vazio. Acho que j desceram todos: o porto de ferro vai ser fechado. vou levar-me a mim mesmo e ao elevador para o descanso de ambos. Pegar na minha viola. Boa noite. Dia movimentado. Desde cedo, comeou a transfuso. Trabalhamos sem interrupo, com os trs elevadores a injetar gente no Edifcio. No sei o que est havendo. Estrangularam a ricaa do 1204! Desde o comeo do ano passado, quando comeou a freqent-la o bonito do Sul, j se pressentia o terrvel acontecimento, Foi o estafeta dos Correios quem deu o alarma. O crime devia ter ocorrido h dois dias. Desde domingo que o telefone da velha no atendia, segundo informa o pessoal do Instituto de Beleza. Uma multido enorme se ajunta em frente ao prdio. Interditaram o apartamento, esto sendo ouvidos os moradores do dcimo-segundo. Neste andar s entram as autoridades, os reprteres, e os fotgrafos. Contou-me o "tira" que o corpo foi encontrado de braos sobre a cama, revelando sinais de luta; a cabea pendida para o cho, como se estivesse olhando uma jarra cada; os mveis fora do lugar, e o telefone desligado; atirado a um canto-ainda o "tira" quem conta-uma caixa de jias vazia. Praticamente suspensa a atividade dos escritrios. As suspeitas recaem, naturalmente, no bonito que desapareceu e est 83 sendo procurado. Ns os ascensoristas fomos interrogados; de elevador o criminoso no subiu, pois ningum se lembra de t-lo levado ao dcimo-segundo, ou a qualquer pavimento. Teria com certeza subido pela escada, durante a noite, servindo-se da chave que a velha lhe haveria confiado. Dizem que as paredes do apartamento dela esto cheias de retratos de atores famosos de cinema. Era de fato uma velha estranhssima. Todo o pessoal do Instituto de Beleza est de mos no queixo, pelo corredor, a perguntar como foi, como foi. As manicuras choram; sabia-se que a vtima quase diariamente fazia massagens ali, jamais se referindo porm ao homem do Sul. Um fato destes vai abalar a reputao do Lua Nova. Nunca tivemos disso. O corpo ser removido para o Instituto Mdico-Legal. A Avenida continua apinhada. Daqui a pouco os jornaleiros estaro apregoando o crime. Quando cheguei ao 5. Distrito para depor, l estavam Madame Jane, o sndico e a cartomante. Esta no se fartava de dizer que tinha visto tudo na bola de vidro, e que o assassino, tal como lhe parecia na bola, era um tipo alto e moreno. O Almirante pediu ser ouvido em primeiro lugar, por causa das hemorridas. Submetida a uma inquirio mais rigorosa, a datilgrafa da firma norte-americana teve um desmaio. Ela passa por ter sido a maior amiga da estrangulada. No Distrito, eu s pensava na confuso que devia estar reinando no Lua Nova, sem cabineiros para manejar os ascensores. O sndico reeleito quer saber se os inquilinos que alugaram apartamentos para escritrios so os prprios ocupantes. Disse que est cansado de administrar desconhecidos, gente cujo nome no consta dos contratos de locao, ou ento gente que assina contrato e nunca aparece, como o dentista-fantasma, Citou tambm o caso das duas salas alugadas para uma seita do Oriente, e que serviam de depsito para enorme quantidade de meias de nilon, garrafas de usque e peas de aparelho de televiso. Tudo contrabando. Ao que parece, a mulher do 1001 no estranha ao fato. Muitas caras misteriosas que freqentavam o edifcio desapareceram como por encanto, depois de uma batida da polcia. 84 O que falta aos arranha-cus folhagem. O regulamento probe plantas. E grande a luta dos moradores por coloc-las no patamar das janelas e nas portas que do para os corredores. Querem a todo transe fazer jardim ou ter a iluso de jardim onde no possvel. Procuram suavizar a dureza fria do cimento. Procuram e no Qonseguem. pena no se poder arborizar os corredores. O proprietrio do apartamento 1008 um senhor de certa idade, e de maneiras distintas. Anda sempre de preto. Eu soube pelo encerador que tendo perdido a mulher e a filha nica, desmanchou o lar e vendeu a casa. Hoje leva a vida de solitrio. Homem calado e estranho. Sempre com o seu Jornal do Comrcio debaixo do brao. o nico que ainda tira o chapu quando h senhoras no elevador. Ningum faz isto mais. Tambm no h mais chapu para se tirar... O chefe de famlia que mora num dos apartamentos do prdio vizinho, veio reclamar contra uns rapazes que, durante o dia, se renem num dos escritrios do nono ou oitavo andar, e ficam a espiar de binculo as moas, na hora da ginstica. -"Minhas filhas so muito sriazinhas, graas a Deus. Mas sempre se esquecem de baixar as cortinas... O senhor no podia dar um jeito?" O sndico respondeu que nada podia fazer. O homem se aborreceu.-" porque o senhor no sabe o que ser pai, hoje em dia, de trs moas bonitas! Ainda mais numa cidade como esta!" E retirou-se num suspiro. Por que no manda baixar as cortinas?... Que necessidade tinha aquele homem de me dizer que levava as fezes da amante para exame de laboratrio? A mulher, constante freguesa de meu elevador, uma das mais elegantes da cidade. Ser que mostrou o vidrinho s para humilh-la e exp-la ao ridculo? Ou pensa que tudo dela adorvel?... Parece que no , mas . com o estrangulamento da milionria, o Lua Nova ficou ao mesmo tempo famoso e desmerecido. Alguns inquilinos pensam em passar o contrato; e uma das moradoras do dcimo-segundo est anunciando a venda 85 do apartamento. So decorridos trs meses do crime, e o Edifcio ainda continua na berlinda. No fundo, isso me di... Aquele comerciante-comerciante ou banqueiro, no sei- tinha afinal certa razo para estrilar. Eu devia ter dado logo na mancula, pois o carro estava lotado e o pessoal s esperando a partida. Mas fiquei to abatido com a leitura daquele gol contra o Flamengo, que me esqueci completamente. Lembro-me que durante o percurso, s fiz bobagens: deixei de parar onde devia, e, por fora de um hbito antigo, saltei os andares mpares. De fato, eu estava meio desatinado, no pelo desaforo daquele cara (mandei que ele fosse se catar), mas pelo frango que o meu clube engoliu. Imaginem se perdemos o campeonato!... Essa mania de acompanhar futebol como se eu mesmo estivesse jogando, acho que vem de minha perna paraltica. Muito triste a partida do papagaio. O oficial de Justia que deu cumprimento sentena do Juiz ofereceu-se para ficar com ele, o que no chegava a ser consolo para a cartomante. Ela vinha atrs, toda em prantos. Acompanhou a ave at o saguo, sendo confortada por alguns moradores do prdio. Fora afinal uma vitria do pessoal que trabalha nos escritrios. O. papagaio s dizia "ai, ai, ai". E foi desaparecendo pela Avenida, nos ombros do oficial de Justia... Os que chegam de cara fechada; os que entram cantando; os que sobem indiferentes: os que trazem a voracidade nos olhos... Assim so eles. Nos que sobem pela manh, a expresso predominante de avidez; nos que descem no fim do dia, o ar de cansao. S os alemes sobem e descem completamente neutros. com eles difcil fazer exerccio de interpretao de fisionomia. Andam dizendo que o "homem do Sul" botou barbas e est freqentando o Edifcio. Deve ser inveno das costureiras. S serve para aumentar o descrdito do Lua Nova. Acho que evitei um crime de morte. Aquele polons que subiu levava a idia de matar algum, tenho quase certeza. 86 H tempos, vira-o a discutir com a mulher do rumeno, a propsito de atrasos de aluguel. Hoje, tomou o elevador com ar feroz e uma palidez suspeita. Pediu o dcimo andar, onde o rumeno tem escritrio. Voz soprosa. Como eu estivesse certo do que ele ia fazer (havia espuma em seus lbios, as mos lhe tremiam), passei por aquele pavimento sem abrir a porta. O homem resmungou, eu fiz que no ouvi. No dcimo-scgundo, chamei o varredor e disse-lhe aos ouvidos que avisasse o rumeno do que estava por acontecer. Os passageiros reclamaram contra a demora; eu menti, dizendo que tinha havido pequeno enguio na mquina, e que pedira uma chave de parafuso. Os passageiros saram para esperar outro elevador. Enquanto isso, dei tempo a que o rumeno desaparecesse. O polons levantou o brao para exprimir sua contrariedade. Vilhe nesse momento o cano do revlver. Tenho a sensao de que hoje ganhei o dia... Foi a empregadinha do laboratrio quem me contou: um cliente subiu com a papeleta na mo para esfregar na cara do doutor. Estava escrito nela o resultado positivo de um exame para cncer, quando exames posteriores de outros laboratrios deram negativo. -Eu no tenho nada! disse o cliente enfurecido. O senhor que inventou cncer em mim. Explique-se. O laboratorista, o mesmo que costuma esquecer a torneira aberta, no se apertou:-Ah! formidvel... Parabns! O senhor teve uma sorte nica... Mais alegre do que indignado, o cliente aceitou o abrao do doutor. E desceram ambos ao bar para comemorar o acontecimento com uma cervejinha. -Abaixo o cncer! disse o cliente. -Abaixo o cncer! respondeu o outro levantando o copo. E saram abraados, cantando um samba. Detido ao entrar no elevador um sujeito que dizia ser o dentista C, K. Field. A polcia tomou-lhe os papis. Verificou-se que no se trata do dentista-fantasma. Entre os papis, encontrou-se um documento sobre a explorao do urnio em Minas 87 Gerais e-o que estranho-um poema de amor escrito em rabe e dedicado a uma mulher egpcia. Assim me contou o "tira" que sempre destacado para sindicncias neste prdio e que j funcionou no caso da milionria. O diretor da revista prepara uma grande reportagem com a fotografia de uma de nossas mulatas que deve figurar de egpcia, e uma fotocpia do poema. Os namorados tm vindo mais cedo boca do Edifcio esperar a sada das datilgrafas e alunas da Escola de Canto. o vero que est comeando... O terrao, c em cima, nas horas de folga, ponto ideal para se sentir o tempo passar. Venta muito. No sei por qu, misturo a passagem do tempo com a do vento. Melhor que recordar esquecer e olhar para a frente. Por que fui lembrar-me agora do que ningum sabe e jamais saber? Escondi um fato importante de minha vida, e to bem escondido ficou, que durante meses e anos adormeceu no fundo da memria. verdade que no tenho remorsos do que fiz, tenho pesar do que aconteceu. E por que me vem isso lembrana? Talvez porque ouvi ontem, de novo, a palavra "Tocantins". Espero no estar delirando, e que haja algum ou alguma firma 'neste prdio a ocupar-se realmente com coisas desse rio. Foi nas margens dele que matei um homem. Ou melhor: um homem ali se matou por minhas mOs, morreu por meu intermdio. .. O pior dos homens! Ningum sabe, ningum saber. Fugi da Justia para no ser esmagado na sua engrenagem. Para que revelar o segredo da minha perna paraltica, e a histria da virada brusca do destino que deu comigo numa cabina de ascensorista? Eu nem aqui estaria se confessasse o crime. E os homens no compreenderiam. vou, portanto, rasgar esta pgina. A campainha est chamando. hora de recomear o servio, subir com a primeira leva de gente. -bom dia, seu Lus. -bom dia, doutor. -Friozinho hoje, hein? -. Tempo virou. 88 Hoje, sexta-feira, conduzi um louco varrido agarrado pelos guardas. Disse que j tinha pedido audincia ao Getlio, que os guardas iam pagar; que se recusava a trabalhar no fundo da mina (supunha estar descendo para uma mina). Algum lhe disse que Getlio tinha morrido. E ele a gritar que era mentira das agncias telegrficas a servio do imperialismo. Aqui, a vida vem ao meu encontro. No preciso sair para me sentir dentro do mundo. Para um perneta que no pode estar sempre a vagar pela cidade, este Edifcio uma soluo. Que afinal o Lua Nova, que o Edifcio Esplendor, que so esses novos e altssimos prdios que nos fecham a vista s colinas da paisagem, seno o local-arena do monstruoso espetculo da luta pela vida? A mim, ascensorista, s cabe transportar os figurantes s suas clulas de trabalho. De tanto fazlos subir e descer, alguma coisa vou descobrindo em cada um: a cupidez, a voracidade, o ridculo, os sofrimentos... -traos que deixam transparecer aos poucos, e que nem por isso me fazem am-los menos. A datilgrafa da firma Pound and Sons sonhou esta noite que tinha sido agarrada no corredor pelo "homem do Sul". O ginecologista, no elevador, queixou-se a um colega do excessivo barulho da cidade: "H dias, sobretudo pela tarde, em que no consigo escutar o feto." Todo mundo comenta que funciona duas vezes por semana uma sesso esprita no escritrio de uma firma inglesa, l no quinto andar. Pelo menos, Mr. Right, seu inquilino, homem esquisitssimo. Mora aqui h trs anos e nunca o vi dirigir a palavra a quem quer que seja. Se com algum conversa, com os mortos. Mais estranha ainda a sua mulher, que j tem jeito de fantasma. Nada de admirar que s se ocupe com coisas de outro mundo. A mdium, segundo me disseram, uma preta que mora em Caxias aonde vai busc-la noite o carro de Mr. Right. H tambm um professor de Matemtica, vivo recente, que freqenta as sesses para conversar com a esposa; e uma senhora que nas quintas-feiras mantm animada 89 palestra com o filho, morto num desastre de avio. Ontem a mdium chegou num carro do Ministrio da Fazenda. O novo locatrio do apartamento 1204, indignado porque no lhe disseram o que ali acontecera, preferiu pagar a multa, e rescindiu o contrato. Vai casar-se brevemente, e no est disposto "a passar a lua-de-mel no quarto de uma estrangulada!" O Almirante pediu-me que chamasse o mdico logo que ouvisse a campainha soar. Sua presso subiu a vinte e quatro. J est olhando para mim e para as coisas com o ar meio alucinado de quem pode deixar de faz-lo de um momento para o outro. A convite de um colega que conheci no sindicato, fui hoje ver por dentro o Edifcio Esplendor. Limpo, reluzente e glacial como uma sala de cirurgia. Quando voltei, achei o meu Lua Nova um tanto sujo e usado. Mas com um calor humano que o outro est longe de ter! A interrupo da eletricidade o pesadelo do ascensorista. No pelo fato em si, mas pelo pnico dos passageiros. Quanto a mim, no posso queixar-me: apenas uma vez, ao descer com o corpo do Lebro, a mquina parou; dois minutos apenas, e parecia uma eternidade. Imagine-se agora o que foi ontem: seis pessoas-comigo sete-fechadas mais de uma hora na escurido, entre o stimo e o sexto pavimento, bem nas entranhas do edifcio. Ns ascensoristas sabemos que no h o menor perigo, mas qual o passageiro que se convence disso? Grita-se contra a asfixia, grita-se contra a escurido, grita-se contra a iminncia de arrebentar-se l embaixo, no poo. E nada disso tem razo de ser, exceto a escurido. No incidente de ontem, o primeiro quarto de hora que foi penoso. Depois, houve como que uma exausto geral. Mal o carro parou com as luzes apagadas, uma criana comeou a berrar, enquanto os pais gritavam para cont-la. Descia tambm a mulher bonita do 1001, que se atracou a mim dizendo que ia morrer. O rapaz que a acompanhava, calmo a princpio, mostrou-se 90 depois terrivelmente excitado e inconveniente. Eu risquei um fsforo, e foi pior: atravs das grades viam-se as paredes brancas e lisas, o que teria despertado emtodos a sensao de estarem enterrados numa sepultura. O desespero ento aumentou. Um senhor quis saber se era possvel dar notcias famlia. O rapaz que acompanhava a mulher bonita gritava que eu devia tomar uma providncia qualquer, que aquilo era uma vergonha que s acontecia no Brasil. -Meu marido est sentindo falta de ar! exclamava a senhora casada. -No falta de ar, minha senhora, a escurido, expliquei. -Ento por que no se acende a luz? -Porque no h eletricidade. Um velho queixava-se de que suas pernas estavam bambas, mal podia suster-se de p. Ofereci minhas muletas. E disse que todos deviam esperar sentados, havia espao suficiente. -Mas esperar por quanto tempo ainda? indagava o acompanhante da mulher bonita. - horrvel! horrvel!... gemia esta aos meus ouvidos. -E o ventilador? reclamava uma voz. -Parado, naturalmente. -No se pode chamar o Corpo de Bombeiros? perguntou o rapaz, acovardado. -Para qu? respondi. -Ento que se vai fazer? -Nada. Esperar que volte a energia. -E se no voltar? Morreremos todos asfixiados? insistiu o rapaz. A hiptese de asfixia fez crescer o pnico. Gritavam todos. No meio da escurido, era preciso impor minha autoridade quele grupo de aflitos. Gritei com toda a fora: -Calem-se! Eu aqui sou o comandante! No h perigo algum! Seguiu-se'prolongado perodo de calma. A mulher colava-se a mim, dificultando-me os movimentos; seu perfume confundia-se com o suor dos corpos. Ouvia-se uma reza baixinho, que devia ser do casal e do velho. Quando risquei novamente o fsforo vi que todos estavam sentados, menos a mulher; o 91 casal e a criana, abraados no canto, formavam um bloco de pavor; o velho fechara os olhos. E o suor escorria pela face de todos. Atravs do tnel, vozes indistintas procuravam comunicar-se conosco: diziam estar providenciando, e pediam calma. Os passageiros tinham esgotado as energias. Parecendo resignados, estavam apenas vencidos. Eis que subitamente o carro se ilumina e o ventilador comea a funcionar. As duas mulheres choram de alegria, enquanto a criana jazia como morta, no colo da me. E ento, o meu velho "Atlas" deslizou suavemente at o saguo, onde havia muita gente nos esperando. E a mulher bonita foi muito abraada pelos seus admiradores civis e militares. E ainda me mandou um adeuzinho de longe. E tudo acabou bem... Ns, os pernetas, somos um pouco como pssaros depenados: no podemos ir muito alm do lugar em que nos arrastamos. Foi por isso que recusei hoje o convite para um passeio a Paquet. Fazer o que naquela ilha se no posso correr pelas areias e me faltam pernas para bicicleta?! Crescendo desse jeito, o meu coqueirinho est lavrando a sua prpria sentena de morte. O sndico no se importa, mas o fiscal da Prefeitura no tarda em descobri-lo. Desafio que haja coqueiro igual por esses terraos. De noite, quando venta, ele faz um barulho de praia do Nordeste... Dia nublado. Todos os escritrios de luz acesa. O edifcio inteiro funciona. Vejo-o de cima para baixo, pela rea interna, no momento em que as datilgrafas esto batendo mquina, os mdicos auscultando, os dentistas mexendo na boca dos clientes. L no terceiro, o advogado discute; no dcimo, os alfaiates cortam o pano e provam a roupa; os espertalhes do "Paraso Terreal" vendem terrenos. O milionrio do 1002 e o juiz aposentado do 1104 lem histrias em quadrinhos janela. Dezenas de pessoas falam ao telefone. Esto entrando as alunas da Escola de Canto. No Instituto de Beleza, as freguesas, imveis, tm a cabea metida num globo de metal. Ouo um grito: o Dr. Soero acabou de extrair um dente a uma senhora; ela vira o busto para o lado e cospe. Os 92 empregados dos escritrios conferem contas, assinam papis, mostram plantas. S as janelas do 1001 esto de venezianas abaixadas: o ninho da pecadora. Um rapaz desenha numa prancheta. Uma cliente est se despindo para o Raio X; esqueceuse de fazer correr a cortina. H muito tempo no via o prdio funcionar com tamanha plenitude. Quanta gente diversa em suas entranhas! Amo-o sem me preocupar com o que ele me possa dar de volta. Dele fao parte. Nele sou encarregado de um elevador. J alguma coisa. o bastante. Senti uma onda de perfume que veio de trs. Era a mulher do 1001. "Olhe, ouvi dizer que o senhor toca viola muito bem. Um dia subo l para ouvi-lo." Ai, ai, ai!... Sempre que posso, evito pensar no passado. No entanto, pedaos dele quase sempre me refluem memria, quando no vm subir comigo, de elevador. Um desses pedaos desprendeu-se hoje do passado, na pessoa de Valentina, que eu levei ao sexto pavimento. Sim, Valentina. Em carne e osso, tenho quase certeza. Principalmente em ossos. Valentina, magrinha agora, e sem jias. Essa mulher tinha o demnio no corpo. S queria saber de pessoas famosas. De tal maneira, que se aparecia algum com mais evidncia no cartaz social, eu logo conjeturava que Valentina j o tinha farejado e vinha se aproximando para o bote. Imagino o que seria a mocidade dela, se em seu tempo houvesse rdio e televiso, onde todo mundo hoje gosta de aparecer de corpo inteiro e com a prpria voz. Nunca se viu Valentina danando com homem importante sem flertar, por cima dos ombros do parceiro, com outro que ela desconfiava pudesse ser mais importante ainda. Partia ento para o outro. E enjoava depressa. As pessoas de quem ouvia falar lhe pareciam sempre mais interessantes do que aquelas com quem estava falando. Virou a cabea a uma boa parte do Congresso; levou falncia um banqueiro. Um diplomata entendido em Ticiano dizia que a carnao de Valentina lhe recordava as figuras desse pintor. Conheo Ticiano de ouvir falar; e o corpo de Valentina, s por deduo. 93 O que sei que esse corpo tem hoje a cobri-lo modesto e severo vestido, espcie de burel da Ordem Terceira. Valentina vive agora a pedir auxlios para instituies de caridade. Em ateno ao que ela foi para os homens, ningum se nega a contribuir. Valentina sempre socializou o seu corpo. Ao avistar-me no elevador, no me reconheceu, ou fez que no. Razes h para isso. Ns ambos temos algo a esquecer. Sobretudo ela, na piedosa tarefa a que est dedicando os derradeiros anos de sua vida. Ao deparar comigo quando ia tomar o elevador, preferiu esperar pelo outro. Foi melhor assim... Findo o servio, chego ao terrao e sou tomado por uma sensao de montanha. Eu sei, a solido... o medo da solido. Isso que leva muita gente rica a trocar suas casas de residncia pelo apartamento. Principalmente, os velhos e celibatrios. S faltam dizer que amam e no dispensam o barulho, o calor, a falsa intimidade das grandes aglomeraes. Fechados embora nos apartamentos, sentem menos o terror de morrer sozinhos. Sabem que perto, mesmo ao lado, h gente se mexendo, gente de quem se escutam os passos no teto, de cuja respirao uma simples parede os separa. Desconhecida quase, inimiga talvez, mas gente! Gente, e no fantasma... O sndico veio pedir que eu ficasse no lugar do porteiro, que se acha muito doente, imprestvel para o servio. -O senhor o mais antigo na casa, e o mais respeitado, alegou. Olhei para as minhas pernas, disse-lhe que os colegas eram igualmente respeitados. -Sim, mas o senhor mais. E h razo para isso... Fixou-me profundamente nos olhos. Mudou de tom, e chegando-se aos meus ouvidos: -Corre aqui uma lenda a seu respeito. Senti como a passagem de uma pluma pela espinha. Minha muleta escorregou, tive que me apoiar parede. -Que o senhor cometeu um crime de morte, h muito tempo. Todo mundo sabe disso, mas evita comentar. 94 Eu disse que no; mas a expresso de meu rosto, a minha prpria voz alterada me desmentiam. Lembrei-me ento que no era delrio quando ouvia, em ocasies diferentes, a palavra Tocantins. Meio confuso, silenciei. O sndico notara-me a perturbao. -No faz mal, disse-me. Isso at lhe d mais autoridade. Por causa dessa fama todos o respeitam, o que de vantagem para a boa ordem do Edifcio. Se no criminoso, deixe-se passar por tal, agora sou eu que lhe peo. E despediu-se dando-me tapinhas no ombro. Depois da revelao do sndico, tenho a sensao de que o crime me saiu para sempre da garganta, e que respiro melhor. Na verdade, com o recuo do tempo, j me parecia que o criminoso era outro. Agora me vem esse homem, e no s me aviva a memria, como tambm me pede que no abra mo do... privilgio! Uma indignidade. Receio que de agora em diante no sejam as mesmas as relaes entre mim e o Lua Nova, Ento sou considerado aqui s porque matei?! Acaso isso ttulo? Se me respeitam, porque me respeito a mim mesmo. Nunca pensei que a pecha de homicida viesse um dia a me valer. Se escondia um crime, foi pelo temor de que os juizes no reconhecessem as condies em que fui levado a comet-lo. E, agora, o proprietrio principal, sndico de um edifcio, serve-se de mim justamente porque matei um homem e adquiri a aurola de criminoso!... Como quer que seja, sinto-me mais leve, respiro melhor... Ou muito me engano, ou aquele palacete, l embaixo, est nas ltimas. Ulcerado e sem cor, nem sei como agenta chuva. Vi sarem-lhe do porto de ferro as ltimas carruagens que sobreviveram queda do Imprio. Que resta dos antigos moradores? Apenas uns poucos descendentes que no se conformam com a vida moderna. Refugiaram-se nas dobras da Serra do Mar, a pelas imediaes de Petrpolis, onde vivem numa solido orgulhosa, procurando consolo no manuseio dos lbuns de famlia e nos raros e evocativos encontros com os restos da nobreza europia. Nobre e envelhecida residncia. Seu piano de cauda j foi vendido; os cristais, tapetes, lustres e mveis de jacarand para que mos se teriam passado? 95 Esmagada entre arranha-cus poderosos, aquela decrepitude colonial ainda resiste, com os trs coqueiros frente, e um co feroz que late para gatunos e desconhecidos. Corretores de terrenos e firmas construtoras apenas esperam que cesse a pendenga entre os herdeiros, a fim de entrarem com as propostas,-o que s serve para prolongar a agonia do velho sobrado e de seus fiis coqueiros. Contei o meu segredo costureira que costumava visitar-me c em cima (no lhe escrevo o nome porque se trata de viva de certo recato que tem filha normalista). A mulher abriu uns olhos enormes, persignou-se, disse que nunca mais queria saber de mim. Por mais que lhe explicasse como foi, declarou que sou e serei sempre assassino perante Deus. Como que pode?... Portas e janelas fechadas ou se fechando. A cidade acabou de esvaziar-se, mas ainda guarda o calor da febre e a marca da violncia dos homens. Depois de se terem servido dela, retornaram todos a seus bairros e subrbios. No asfalto cuspido, pontas de cigarro, pedaos de papel, e poeira-ltimos vestgios da passagem deles Daqui de cima que se sente como a alma das casas s comea a expandir-se depois que a multido abandona as ruas. O cu j no comprime os telhados com o peso da luz solar; na penumbra, amaciam-se os cubos de cimento. Uma voz de mulher, no apartamento vizinho, ordena que as crianas desliguem o rdio, hora de dormir. As venezianas esto descendo e uma onda de paz vem rolando dos morros. Numa zona maior de treva e brisa, adormece o mar. A mquina em reparaes, e eu dois dias c em cima, desocupado, a contemplar a cidade. Se fecho os olhos, comeo a subir... descer... subir... Peguei um cacoete. Manquitola, manquitola As noites de lua eu passo Escutando no terrao A voz de minha viola. 96 Capengando, capengando, volto do passeio de domingo e me encaminho para o Lua Nova. J o vejo de longe, e me sinto feliz. Quase todo apagado, sem vida, sempre com aquela eterna velhinha a espiar pela janela. Amanh, quando eu tiver que pegar no servio, o prdio ser outro. E outro serei tambm. O primeiro a entrar vai ser o dentista; depois, os alemes silenciosos do 704; depois, com aquela cara de ressaca, a mulherzinha do Instituto de Beleza; depois, os homens de negcio, os doutores, os contabilistas, as datilgrafas, os tcnicos, os estudantes, e... os desconhecidos. Elevadores, telefones, mquinas de escrever, tudo comear a vibrar. E surgiro nos corredores caras conhecidas e desconhecidas, voltaro as vozes e passos de gente. E o meu Lua Nova vai animar-se todo! Dizer que h mais de nove anos ele me recebeu como ascensorista e agora me aceita como assassino... Ah, tomara que amanh chegue depressa! Dois sujeitos, l embaixo, a apontar demoradamente para o Lua Nova. Conversam, gesticulam, depois param olhando, olhando. Que estaro notando no Edifcio? Minha vontade descer, indagar-lhes o que querem com o Lua Nova. Aqui no h nada de novo, tudo vai bem. Sigam o seu caminho e deixem o meu prdio sossegado... Pra que essa impacincia? Ficam a esmurrar a porta toa. Esto cansados de saber que quando no paro porque a lotao est completa. Emocionante aquela viagem de hoje. H muito eu no descia noiva para casar. A Zildinha, do dcimo-primeiro. Um pouco plida, mas bonita como sempre. Pediu-me que rezasse por ela; eu disse que no sabia rezar, mas que ia dar um jeito. Vinha acompanhada da tia, da madrinha e algumas amigas. Todas com muito cuidado para no lhe amarrotarem o vestido. A cabina ficou perfumada. Se eu soubesse, teria feito nela uma limpeza em regra. 97 Recusei o lugar de porteiro. O sndico no gostou. Afinal, seria indecente de minha parte aceitar aquele cargo pelas razes que me deu. Ficarei aqui mesmo, com o meu "Atlas". -Para que andar, cavalheiro? -Dcimo-primeiro. -E o senhor? -Quinto, faz favor. -Oitavo. -Nono. -Dcimo-terceiro. Vamos subir...
a rubem braga O DESFILE DOS CHAPUS 98 O comparecimento de todos os chapus de minha vida - os que tive e usei-no posso precisar se comeou no sonho e a terminou, ou se no sonho teve incio e prosseguiu no estado de viglia. Apresentando-se em fila indiana ou em grupos, esses chapus se deslocavam com movimentos prprios, o que tornava ainda mais bizarra sua apario. Os que vinham em grupo voavam baixo num cu de chumbo - cu que se explica na viso onrica pela leitura dos jornais da vspera, carregados mais que nunca de acontecimentos nefastos. E o sonho daquela noite deixara de ser um armistcio "de repouso. Eu sabia que das peas de indumentria o chapu a que mais transforma a figura do homem, a que mais de perto priva de sua intimidade-conseqncia da vizinhana prxima do crebro, do qual absorve as irradiaes. Enquanto novo, um protetor, se no elemento decorativo; depois de usado, vira documento moral. A recordao da lenda tibetana de um chapu que o vento arrancara a algum e projetara longe, numa campina, onde o deixaram ficar, a se transformando num ser vivo e demonaco-essa recordao de antiga leitura teria tambm infludo como "contedo latente" do sonho que se vai referir. Foi o caso que me senti levado, no sei como, a uma regio severa onde entrei com a certeza de que "no era ali". Cheguei mesmo a repetir alto:-"no aqui! no aqui!" No era ali, o qu? Pois no poderia ser ali?... Eu vagava numa paisagem fora de uso, com massas de sombra e rvores despidas. Qualquer coisa de cemitrio abandonado, com movimentos e rumores-assobios fininhos, 99 cochichos, comeos indistintos de vaia-em desacordo com a sua tranqila grandeza. Havia mesmo em tudo uma malcia difusa, secreta inteno de fazer mal, zombar da gente... Ao fundo, colunatas e uma esttua de mrmore num espao desolado como nos primeiros quadros de Chirico. Ao lado, como sempre, uma piscina-piscina que se coloca freqentemente no teatro dos meus sonhos, tal um tmulo aberto minha espera. Vrias crianas j mortas e esbranquiadas retirei dela... Passeava eu ento distrado. A campina era florida. No sei bem se campina, corredor de casaro colonial ou praa pblica, pois o cenrio mudava sempre, posto que sempre a mesma fosse a atmosfera. Eu procurava informaes debaixo das pedras, atrs das colunas, no alto das rvores. Queria saber onde se conspirava contra mim. E como ventasse de maneira esquisita, pareceume que qualquer resoluo j havia sido tomada, tanto assim que um de meus antepassados vinha chegando, ouvindo-se bem os seus passos. Ao perceb-lo, reclamei que nada mais eu tinha com ele, que a vida agora era outra coisa; que at faria melhor se voltasse para o tmulo donde no devera nunca ter sado. S passou a minha aflio quando o vi retirar-se resmungando ... Devia 'estar ressentido com as minhas palavras, mas que fazer? A piscina me olhava sem parar. A luz baixou at mudar de substncia e confundir-se com a do silncio. Tudo estava preparado para alguma coisa. Foi quando passou o primeiro chapu, ligeiro como um ratinho. Estranhei-lhe a ligeireza, quando sabido que os fantasmas caminham devagar e que as coisas do passado reaparecem lentamente como as cidades exumadas, e as velhas recordaes. O chapu seguiu na direo no sei bem se das docas de um porto invisvel, ou se de alguma igreja em runas. Mal desaparecera, lembrei-me de que o seu jeito era familiar, e o reconheci depois de ter passado. No foi com certeza o primeiro que ganhei, mas era dos mais antigos. Usei-o at o fim, na fase capital da adolescncia, 100 quando a cabea que cobria abrigava idias confusas, que me perturbavam. Lembra-me de que no o havia tirado para ningum. Eu era ento ousado e rebelde, e a vida parecia intacta ainda, pronta a me ser oferecida. Atrs do primeiro, outros chapus iam aparecendo e desmontando o meu passado. com um deles enterrado at s orelhas-aquele de feltro sovado que l vai rolando atrs do veculo-andei pensando dias e noites numa soluo que afinal no tomei, porque o barranco era alto e me faltou coragem. Certa vez, e ainda me ardia a juventude, no resisti tentao de saber o fundo do mistrio. Mas do barranco fatal que ia servir de passagem, recebi a advertncia: "agora no, bobo! Nem h espao para ti; experimenta primeiro a vida... ainda no tens direito morte". Seria de fato um absurdo: se nasci foi mesmo para viver. Atirei apenas o palhta. E voltei para a vida. Deram-me outro chapu, e esse que vem se aproximando com movimento de dana, enfunado como vela que impele os barcos. Debaixo dele que te pude apreciar melhor, sombra enorme do mundo. Sob as suas abas meus olhos se dilataram de espanto, minando uma gua que era resina do ntimo fervor. A cabea que ele ento abrigava acendia-se como lmpada que via sem ser vista. (Foi no tempo em que era fcil conversar com as pedras, ouvir as rvores, privar com os rios, os animais, o vento-tempo em que as imagens do mundo se descobriam pela primeira vez. Inaugurao do universo!... Eu ainda nem sabia a linguagem dos homens!) Esse chapu presidira ao meu casamento com as coisas. Mas outros estavam surgindo. Passavam perto, davam uma voltinha. Havia um vento de combinao com eles, que soprava sem direo certa, empurrando-os ou recolhendo-os. Cada qual tentava mostrar um trecho de biografia, um momento do que por mim fora pensado e vivido. No conseguia mesmo saber se era com esprito cordial que faziam essa exibio retrospectiva, ou se vinham com ar de 101 sarcasmo ridicularizar um passado que afinal nem valeu a pena. Chapus bem sujinhos e miserveis, os desse tempo... O que se passa no homem, debaixo de seu chapu!... Desde o comeo, o ambiente era mais de vaia do que de apoteose. Tu, por exemplo, cartola, que vieste fazer aqui? Caste -da lua? Algum dia te botei?... Ah! botei sim, uma vez... Eras apenas um simples aparelho de produzir autoridade. Eu vivia ento contra mim. O que te ofereci foi uma cabea vazia. Ento me sentia importante e, inefvel imbecil, sorria para a multido que aplaudia os grandes da arquibancada, dentre os quais eu era tomado como tal. Nem sei como foi aquilo... Como havia excesso de grandes homens naquela tarde, mandaram-nos para o poro e o telhado, de onde ouvimos o hino cvico. Nessa tarde, uma chusma de chapus arruaceiros (chapus ou crianas?) cercava a apario da cartola. No meio, sobressaa um palhta impossvel. O chapelinho magricela no deixava em paz a velha cartola. Depois, quando esta virou casca de inseto, as formigas a foram transportando para um cemitrio de cartolas, que os urubus sobrevoavam no fundo da paisagem. Surgiram em seguida os chapus que andei tirando para todo mundo. Pareciam aborrecidos da vida. Reuniam-se em torno de. um velho guarda-chuva que era s pele e ossos. Esse grupo vinha em romaria ao seu antigo dono. Eu era ento o falecido. E estava explicada, assim, a presena ali da piscina-sepultura, sobre a qual boiavam, como folhas secas, boinas, bons e toucas da primeira idade. Depois disso (ser que j vivi tanto?) chapus em profuso, todos os chapus do passado apareceram em vagas sucessivas. O cu coalhara-se deles. Soltavam-se de cabides invisveis, vinham planando dos horizontes. Nos que passavam perto e devagar eu me reconhecia. "Olha aquele com que fiquei esperando a resposta; o que me ajudou a chocar a idia maluca; o que fiz de travesseiro; o com que neguei o cumprimento a certos sujeitos; o com que matei a sede num crrego; o que fez sombra para um pensamento libertrio; e este, ainda molhado de chuva, com que esperei a amada no porto; e este outro, que me deu um 102 ar to bestinha; o que enterrei com raiva na cabea, o que me ajudou a fugir, de madrugada; o que durante a perseguio me serviu de barraca e esconderijo; o que amarrotei nas mos trmulas, ao fazer o pedido; o com que conspirei no fundo do bar; o que voou pela janela do trem; o que joguei como um corao arrancado aos ps da amazona, no circo. E esse outro que um dia tirei com alegria, para saudar a vida!" Ah! chapus... com as cicatrizes do vento, do suor, das chuvas, das lgrimas!... Aquele, furado, que vem oscilando como um bbado, cheguei a estend-lo a um rico, numa tarde de chuva. E, envergonhado, ele se recolheu a si mesmo antes de recolher a esmola. "Chapus dos maus e bons momentos, refazendo a histria de uma vida revogada-a cabea que um dia cobristes vira-se agora para o lado onde nascem as coisas, onde a vida recomea. A gente aprende enfim a transformar a dor em alegria, e incorporando-se a tudo e tudo absorvendo, acaba confundindo-se, anonimamente, na substncia da criao. tempo, chapus, de fechar-se o ciclo da estupidez, tempo tambm de o "eu", cabina infecta, libertar-se das insignificncias que tiranizam a criatura. Quem quiser salvar-se, destrua antes o seu inimigo privativo, esquea-se de si mesmo. Chapus, a vida comea enfim a valer a pena!" Mal iniciava eu este discurso, certos movimentos me fizeram suspeitar que outra vez os velhos chapus comeavam a zombar de mim. Pelo menos, brincando estavam. Debaixo de cada um se colocava uma imagem de minha figura segundo as metamorfoses da idade. Diversos manequins risveis, em farndula, puxavam a minha forma precria at o presente;-eu, alvoroado, descendo a ladeira a caminho da cidade; subindo-a depois, de cara fechada; eu aflito, ridculo, querendo chorar, pondo de novo o chapu para outras partidas; saudando os amigos; parado na esquina, como um basbaque; na praa; caminhando para o encontro proibido; querendo entrar nas festas; nos enterros; sonhando nos bancos; esperando a moa; eu, envaidecido a dizer e ouvir bobagens; com o chapu do conflito; com o chapu que enchi de frutas; com o chapu com que fui vaiado... 103 chapus da adolescncia e da maioridade, variaes de meu ser moral e histrico, desdobramentos esquecidos de minha figura... Cada um de ns se inscreve nos objetos que usa. Estou tambm nos meus chapus. E os meus, antigos, esto compondo numa s imagem as diversas imagens do homem que ora assiste passagem deles. Uma cidade nublada. Entro numa rua sem nome. -Madame, aqui 6 o 29? Esqueci o meu chapu... no se assuste, minha senhora... um simples chapu... no nenhuma bomba. Por favor... est sentindo alguma coisa? A senhora parece desgraada, to triste... E to bonita... Meu Deus!... No querer fugir no meu chapu? Seremos felizes... -Olha o chapu, cavalheiro, a procisso est passando... -No est ouvindo? o Hino Nacional. Vem a o Chefe. Tira o chapu, seu idiota! Havia tambm chapus no 71 e no 138. De que rua e cidade no sei dizer. E chapus que foram esquecidos nos cafs, nos bondes, nos bancos de trem de ferro, nos consultrios, nas praias. Chapus que vinham dos subrbios e dos campos. E esses que no tomaram parte no desfile e se deixaram ficar pelas pontes e beira de viadutos, na mesma posio em que foram abandonados? Chapus de suicida, se eu estivesse perto agarraria o desesperado pelo brao: "Homem, no ser preciso tanto; escureceu um pouco em ti, mas foi um minuto; porque a claridade est se abrindo mais adiante; corre para l, pega o teu chapu. A vida continua." Outros eram modos sob rodas de caminho, ou fugiam pelo asfalto afora, os donos atrapalhados correndo atrs. O grosso deles, porm, fazia evolues. Vi-os escorrendo por um watershoot, ondulando num vago de montanha-russa, correndo pelas estradas:-chapus da mocidade. Pode ser que me enganasse, mas nesse momento mais pareciam borboletas, s faltavam gritar de alegria. Quereriam dar-me nova lio de vida? 104 Chapus da era otimista, podeis chegar! Eu tambm mudei. J disse que aprendi com a vida. Estou livre, no me escondo mais, tirei para sempre o chapu... Mas eles me evitam. No precisam mais pousar na cabea de ningum. Brincam se atropelando uns aos outros. Livres, tambm! Abandonado agora numa plancie sem fim. E os chapus? pergunto. Sumiram-se. Sumiram-se tambm as piscinas e colunatas. Fiquei esperando. Um mar, um mar escondido na neblina desde o princpio, comea a subir lentamente. E superfcie afloram detritos do passado, velhos sapatos, roupas usadas. Coisas sujas, vergonhosas coisas vm chegando de mais longe na gua de gosma e ptridos ref lexosr A neblina se dissipa. No fundo, coqueiros, ndios construindo malocas, garimpeiros explorando rios. Espao da memria ancestral, mergulho os olhos em teu vazio. E eis, no horizonte, todos os chapus de outrora, em formao completa, despedindo-se de mim... pela ltima vez "tirando-me o chapu 105 MONLOGO DE TUQUINHA BATISTA a eneida No, Mundinha pra Zona Sul eu no vou j disse que no vou pra l no Betsy que no quero me perder e c no meu subrbio eu sou Tuquinha Tuquinha Batista. meu nome em toda parte eu quase choro agradecida T. B. nos muros T. B, no tronco das rvores no mamoeiro na porta da igreja como largar minha gente ficar longe das letras de meu nome no Mundinha no me tentes mais estou quase noiva isto no estou mas meu noivo vem vindo j apareceu na bola de cristal a cartomante disse que por enquanto ele aparece s pra ela todo dourado nadando num fundo azul e que parecido com Clark Gable mas eu queria que ele parecesse com aquele que viajou no pingente uma vez na vspera do Ano-Bom ele me olhava de fora pela vidraa e o trem dava cada solavanco e ele se equilibrava a cara bonita atrs rindo tentando a gente rindo e cantando parecia at um demnio eu de repente fiquei apaixonada e at hoje quando vejo vidraa olha aquele lindo me tentando querendo se apossar da gente nunca mais que apareceu s a lembrana do rosto dele sorrindo sempre vai ver um pilantra feito aquele "fala-macio" que levou Raimunda para Copacabana dizendo que l sabiam apreciar uma morena feito ela que ela ia virar girl e arranjava um bom contrato que o subrbio era triste e tia Milu uma chata no sei como voc permitiu que esse atrevido ofendesse nossa tia querida e que aconteceu depois voc passou de mo em mo mudou at de nome antes era Raimunda na gua benta do vigrio Mundinha pra ns e agora Betsy na televiso Betsy com ipicilone meu Deus e aquelas pernas e os peitos todos se mostrando se a titia visse apanhavas uma coa e voc ainda veio me dizer ontem no telefone que os homens hoje s gostam disso que sem-vergonheira. 106 Mundinha pra l no vou j te disse que no vou tinha at graa no eu virar Betsy de jeito nenhum aqui sou a T. B. pra todo mundo a Tuquinha dos rapazes e at do barulho dos trens eu gosto passam tantos debaixo da minha janela eu vejo os passageiros num relmpago tem um maquinista que diz adeus da janelinha nas noites de sbado os rapazes vm me buscar e vamos seguindo o rumo de uma batucada l em cima o morro uma beleza depois vm me trazer com todo o respeito tem alguns que querem me apertar me abraar eu quase deixo depois eu entro correndo tiro a roupa pra dormir e eles ficam na esquina cantando abre a janela formosa mulher e eu durmo gostoso que nenhum trem me acorda mais do sonho ah Mundinha enquanto isso voc est de Betsy em Copacabana usando piteira fingindo de tarada parecendo at mulher da vida com aquele decote que s indecncias e eu tive de esconder pra titia no morrer de vergonha ela viu nem percebeu graas a Deus que ela est enxergando mal embaixo estava escrito Betsy mas se via que era Mundinha mesmo coitada estavas at bonita Deus me perdoe eu acho que pecado d uma animao no corpo um feitio danado at que a Zona Sul embeleza as mulheres a luz da boca do inferno e as moas daqui ficam s perguntando qual foi o filme que voc apareceu ouviram dizer que voc agora estrela de cinema ah eu queria tanto ser estrela estrela de verdade l no cu eu disse que no sabia Mundinha no me conta nada no telefone est s me tentando pra eu ir pra Copacabana perguntou se eu j vi a revista e que eu deixasse de ser boba minhas pernas ainda eram mais bonitas que as dela e eu devia de aproveitar pois hoje o que vale mesmo perna bonita eu hein Rosa no Mundinha j disse que no vou pra Zona Sul ah no vou elas l s fazem botar biquni se rebolar na areia depois o mar que leva a culpa de jeito nenhum pra aqueles lados eu no vou nem de caixeirinha nem de costureira ficam insistindo que precisam de dactilgrafa eu disse que no sei eles 107 respondem que at melhor assim eu sei bem o que eles querem trabalhar no ento voc trabalha Mundinha me diga francamente na fotografia s te vejo rindo rindo voc est rindo por demais e que dentes bonitos mudou tambm de dentes tudo mudou na minha irmzinha querida agora Betsy na boite Betsy no Arpoador Betsy de motocicleta na garupa dos blue-jeans sorrindo prs fotgrafos Deus me livre s querem saber do corpo por que que o "fala-macio" no quis levar a Mariazinha do bordado que sabe tanto e trabalhadeira outro dia mesmo falou um tempo com uns americanos na lngua deles s porque desmilinguida de corpo ah eu sei o que eles querem eu sei o que est valendo praqueles lados os meus ps eu l no ponho mais quando menos se espera a desinfeliz t dentro de um carro que uma beleza de carro subindo pra Tijuca com msica no rdio e uma poro de mos agarrando a gente o que eles querem s pegar pegar no comeo at que a gente gosta depois d uma raiva uma aflio tenho at nojo dos homens minha tia sempre me preveniu que l a gente perde a alma como aquela sem-vergonha da Luisinha que Deus tenha coitada bebeu formicida e se arrebentou na calada em frente ao posto quatro toda descomposta e agora o que ficou dela ah pra l no vou no vou neem vou me ficando por aqui mesmo perto dos meus canteiros e do mamoeiro ouvindo o barulho desses trens que um dia me acabarei debaixo de um se Deus me abandonar e esta vida no prestar mais pois voc no v Raimunda que impossvel tinha at graa Tuquinha de vedete os gavies avanando querendo arrastar T. B. para a barra da Tijuca e o empresrio chegando logo com a fita mtrica no peito nas coxas pra tomar as medidas vou l me deixar pra Zona Sul Mundinha nem que eu morra e pelo amor de Deus no mande mais o "fala-macio" me procurar que ele sempre me deixa quebranto e eu amanheo 108 amolengada aborrecida vai-te satans que eu sou moa de princpios isto no sou mais mas vou me arrepender o vigrio limpa tudo na alma de uma conspurcada fita mtrica so os braos de meu bem quando ele me abraar oh quando ser que ele vem tomara que o rosto seja parecido com o louro da vidraa me espiando me namorando os cabelos soltos na velocidade at Madureira ah eu quero amar muito amar pra valer muito mesmo estou at apaixonada antes da hora sem saber ainda quem seja e eu gosto tanto quando deso pr trabalho de manh cedinho ouvir o pessoal dizer T. B. al Tuquinha e depois na retreta os rapazes cavando votos pra mim no que eu faa questo de ser rainha no comeo eu queria s pra fazer raiva Guitinha que quis tomar meu namorado e andou dizendo que eu era irm de uma prostituta mas agora no me importo afinal de contas depois que a gente fica rainha de alguma coisa acho at que vai dar enjo chegam os fotgrafos da cidade querem que a gente v logo mostrando as pernas depois telefonam fazendo propostas indecentes no toa que esto dizendo que tudo agora no mundo perna s perna no sei como isso vai acabar no maninha pra Zona Sul jamais jamais meu bem eu vou l s querem saber do corpo mesmo quero s ver o dia que Deus castigar e o teu corpo envelhecer ningum mais vai ler esse nome nas revistas enquanto T. B. est aqui no tijolo dos muros T. B. a canivete no tronco das rvores ah meu Deus tem horas debaixo do caramancho quando a lua bate em cima dos trilhos que eu fico cismando casar para qu ser que Betsy tem razo o "fala-macio" disse que ainda espera a minha resposta s vezes eu fico quase aquele sem-vergonha que pena ser to bonito nunca vi olhos assim to negros nem sabe se comportar no automvel deixou a mo boba cada na minha barriga eu dei um tapa larguei ele empalidecido no meio do caminho ah acho que eu quero mesmo chorar tem horas neste mundo que tudo fica triste triste sofrer da vida eu tambm estou convencida hoje Tuquinha no est boa 109 carece de um consolo eu ligo o rdio e cad a voz de ngela Maria s minha tia rezando e os trens passando tudo to triste aquele demnio o pessoal est combinando uma surra nele quando vier caar vedetes aqui no subrbio minha irmzinha eu gostaria tanto se tu me dissesse que Betsy infeliz Tuquinha ficou to triste mas j est passando o melhor no pensar o louro da vidraa foi s um relmpago e no quero me lembrar mais vou dar um jeito no vestido que o Dr. Santos proibiu que a filha usasse e ela me deu de presente e eu fui com ele no baile e fiquei que nem Lolobrgida que lindeza quase ganhei meu noivo aquela noite todo mundo queria ser mais eu no dei bola pra nenhum fiquei soberana acho que foi nesse momento que nasceu a idia de me fazerem rainha tanto assim que no jogo de domingo me chamaram pra dar o primeiro chute e eu s ouvia as palmas e o pessoal gritando nas arquibancadas Tuquinha Tuquinha T. B. a maior j ganhou v l Betsy se tem disso na Zona Sul eu sei que nunca mais voltars maninha nem pra ver tia Milu se acabando mas eu gosto de voc assim mesmo ouviu gosto at ainda mais depois que voc foi se embora e est levando essa vida desbragada meu consolo pensar que seu corpo um e voc outra seu corpo de Betsy e voc a irmzinha querida eu s vezes tambm fico tentada pensando abraos imaginando coisas mas tomo logo um banho de chuveiro e passa outras vezes eu pego naquele vestido que voc mandou pra mim nem parece que foi usado mas no vou bot-lo no quem disse voc me desculpe Mundinha ele tem um perfume escuro esquisito que quando eu fui cheirar eu vi voc nuinha dentro dele parece coisa que o vestido estava me chamando me chamando prs pecados da Zona Sul e pra l eu no vou j disse cjiie no vou tou pensando num que vai ficar uma beleza no caso de eu sair eleita e quase certo esto dizendo at que a Guitinha vai desistir graas a Deus que o nariz dela grande demais mas eu no quero ser injusta ela dana melhor do que eu 110 e a danada tem uma voz bonita ah isto tem sejamos justa eu fico to aflita faltam apenas trinta e poucos dias e o desfile vai ser esplendoroso estou na dvida mas acho que eu vou de organdi mesmo eu queria musselina azul-celeste que mais macia e torna a gente mais vaporosa quando o vento bate nas formas mas o dinheiro no vai dar que hei de fazer minhas amigas vm ajudar as amigas aqui so amigas de verdade na Zona Sul no tem disso no tia Milu pediu pra eu no ir de tomara-que-caia mas esta noite estive pensando muito em botar uma faixa da cintura at s cadeiras por causa das curvas pois essas curvas eu j notei ajudam bastante o galeio do corpo na dana e os homens ficam impacientes na fila esperando a vez no deixam a gente descansar nem um minuto no sei ainda a cor eu acho que vai ser solferino e l lils ainda vou pensar a costureira disse que se a faixa for bonita demais ningum vai olhar pr meu busto que o que eu tenho de mais bonito como j disse aquele sonso do "falamacio" que Deus te livre e eu nem quero pensar nele mais pois no sou serelepe feito a Betsy que graas a Deus tenho conscincia e sou de boa formao o meu corpo eu no vendo nem pr Ali-Khan h trs meses deixei de jantar pra poder comprar o diadema a prestaes talvez nem seja preciso no caso de eu sair rainha isso depende do resultado porque a ento eles oferecem a coroa que vai ser uma maravilha os s rapazes vo fazer um comcio monstro com a bateria na frente e uma poro de faixas com T. B. escrito j tem at uma letra de samba rimando com T. B. e a linda palavra corao no fim eu acho que estou eleita mesmo depois vou me esbaldar at cair tonta no meio das serpentinas que na batida do pandeiro ningum sofre e eu no fico to triste e hei de me lembrar (por todo o sempre dessa noite que para ela s faltam trinta e poucos dias Virgem Santssima trinta e poucos dias e estou at com medo parece o expresso da manh que vem avanando e ento vai ser a vitria e eu tenho que sorrir o tempo todo e jogar beijos sem conta pr povo ai meu Deus at que a vida aqui bem boa e eu vou sair agoririha mesmo aproveitar o solzinho l fora e comprar os aviamentos que esta 111 manh de to bonita s ela j d pra a gente ser feliz no Mundinha no Betsy de jeito nenhum pra Zona Sul nem morta eles me levam nncaras o que eu quero amar amar de verdade mas muito muito mesmo e eu tinha tanfo que te contar minha irmzinha oh volta Raimunda volta meu bem." 112
a dante milano O HOMEM ALTO DESDE muito me vinha preocupando o problema da minha estatura. Os anos passavam, e para cima eu no ia. Aos quinze, encalhei para sempre em um metro e quarenta e cinco. Tinha apenas essa idade e altura, quando meus pais me largaram sozinho no mundo. Morreram quase ao mesmo tempo. E eu fiquei a pensar: como conciliar to mesquinho tamanho com as exigncias da vida moderna? Como enfrentar a luta? Ah! por que no puxei a meu pai, tipo enorme?... Ser que no sou filho dele? Tive ento que lutar dobradamente para compensar-me do que me faltava. Enquanto isso, homens altos e serenos passavam pela rua. E dizer que ramos da mesma raa!... Desde criana achava que devia ser bom parecer com eles. Perderia a leveza, claro; mas ia ocupar todo o vo da porta, impor-me aos outros, olhar de cima. Foi no jogo de volley, quando pulava para cortar a bola e recebia aplausos, que comecei a sentir os primeiros efeitos de viver nas alturas. At ento admirava os gigantes que tarde deslizavam pela calada. Depois, quando perdi a esperana de crescer, tomei raiva deles. ramos um reduzido grupo de cinco ou seis, a partilhar os mesmos sentimentos. Todos de ridcula estatura. E todos querendo compensar a deficincia anatmica com atitudes que ainda mais a agravavam. A princpio, silencivamos sobre a nossa condio corporal; depois a formulvamos abertamente, no falvamos seno dela, e j em termos de defesa contra os grandes, de revolta contra 113 o nosso destino. Era essa a base moral, para no dizer fsica, de nosso convvio. Reunamos-nos no bar do Nestor. Praticamente ramos os donos do bar. Tivemos porm que larg-lo, devido a uma frase infeliz do gerente, referindo-se a ns:-"Os tampinhas, hoje, ainda no apareceram." Gorgulho, o mais exaltado, sugeriu uma ao punitiva contra o boteco, propondo-se revirar as mesas e cadeiras e atirar garrafas na cara do Nestor. Fagundes e Espadim queriam acompanhar Gorgulho, mas Vtor, mais ponderado, achou que no ficava bem, que nos iramos cobrir de ridculo. Josias e eu concordamos com Vtor. Adotamos ento o bar da Nicete, ex-amante e agora inimiga de Nestor. Ali passvamos em revista os tipos de nosso tempo de adolescncia; tipos que j foram de nosso tamanho e que ultrapassaram de muito o gabarito do grupo. Sabamos que todos eles, mais pelo fsico do que pelo valor real, estavam bem na vida. Se acaso nos viam, evitavam falar conosco. Temiam a nossa lngua. Ou talvez nos desprezassem. Cada um de ns se mostrava mais irritadio e corrosivo, alm de pessimista. Espadim, o intelectual do grupo, parecia o mais infeliz, com os seus quarenta e oito quilos de amargura. Diante de pessoa alta, no sabamos disfarar nosso despeito. Tornvamo-nos agressivos, falsamente enrgicos. Bastava ver a conduta de Josias para com o Jango, o nico sujeito grande mais ou menos tolerado em nossa roda. Sempre de ponta contra ele, Josias gastava os nervos, gastava as palavras, enfezava-se. No se conformava em que o outro fosse alto; se pudesse, cassava-lhe o direito de ser grande. Exagerada e injusta atitude. Mas explicvel. No tinha raiva da pessoa de Jango; odiava-lhe apenas a altura, a serenidade. Jango tambm no tinha culpa. Nascera alto, morreria assim. Sua sorte estava lanada. Foi o maior tamanho jamais aparecido no colgio. Juntvamo-nos cinco ou seis para bater nele. Defendia-se meio brincando, meio com raiva. No se importava quando o machucvamos. Se porm acontecia machucar a um de ns, vinha ele prprio tratar os ferimentos, e s faltava chorar. O professor chamava-o ao quadro-negro, e fazia-o sentar-se dizendo 114 que era vergonha um manguaro daqueles no saber o que fosse um decimal. Como se ns tambm o soubssemos!... Jango no desconfiava que sua presena no bar da Nicete nos punha em cmica desproporo com a dele. Josias o alvejava com os seus remoques. Gorgulho tambm. Era este o menos conformado com o seu tamanho, pois queria seguir a carreira das armas. Irritava-o mais do que aos outros o fsico desaproveitado de Jango. Chegou mesmo a provoc-lo para uma briga. Jango no aceitou, ps-se a sorrir, espantado. Humilhado pela recusa do outro, Gorgulho caiu no pranto. Depois comeou a embriagar-se. Embriagamo-nos todos. Espadim amoleceu e caiu; Jango ia saindo com ele a tiracolo, no que foi impedido por ns. Nessa noite, chegamos a concluses pessimistas:-Ns, os baixinhos, somos irrequietos e malvados; os grandes possuem a serenidade confiante, passaporte especial para o futuro. -Voc j notou, Espadim, disse Fagundes, como eles quase no gesticulam? Raramente levantam a voz. -Porque no preciso, disse Josias. Realmente-pensvamos-mesmo discutindo futebol e poltica, discusses que nos levavam a excessivo consumo de gestos, o homem alto pouco se altera. Seus braos nunca se agitam alm da conta. Os movimentos, de impressionante economia, morrem-lhes nos ombros, possibilitando ao corpo uma atitude imponente, entre esttua e torre. ramos tambm acordes em achar que em roda de discutidores, quem sempre tinha razo era o mais alto. Se vamos algum adolescente em excessivo crescimento de braos e pernas, fazamos predies:-Aquele j est com o destino traado; no passar despercebido, nem ser pisado pela multido; onde se reunirem homens, faro dele o chefe por tcita escolha; onde houver mulheres, ser o noivo ideal. E a inveja nos amargava. Haja vista o caso do Joca. Triunfante carreira vem ele fazendo. E que valor tem esse bobo? Nenhum. grande e basta. No sabe o que fazer dos membros, nem onde coloc-los. Cresceu como coqueiro de praia. Seu sexo o assustava, no sabia tambm o que fazer com ele. Gingava sem ritmo, equilibrava-se mal nas alturas. com o tempo, foi notando que as 115 moas da mesma idade o olhavam embevecidas, com visvel desejo de serem amadas, tanto gostam elas de se abrigar nos braos de homens grandes; notava tambm que pessoas de idade provecta o ouviam com especial ateno, como se ele j fosse algum. S muito tarde Joca veio a compreender o que representa um corpo grande... Hoje fala de cima. Seu prestgio passou do quarteiro para a cidade. Em pouco tempo, chegamos concluso de que havia duas raas inimigas no mundo: a dos altos e a dos baixos. Arredondar, crescer para os lados, poderia atenuar nossa exigidade corporal, mas parecia-nos uma ignomnia: iramos nos assemelhar a bacorinhos. Tal soluo nos repugnava. Gorgulho era o nico a aceit-la, e fazia regime para engordar. Os grandes, naturalmente, no tomavam conhecimento dessa guerra. Atrs do seu copo de cerveja, o sutil Espadim procurava enganar-se a si mesmo:-Pois eu j no me importo. Eles tambm sofrem, os "girafas"! No sabem onde por as pernas... So os primeiros a levar tiro nos conflitos. E tm tendncia melancolia... -Ah, sim... so melanclicos. -E como do na vista! acrescentou Josias. -O mais gozado quando esto danando com as pequenas. As pobrezinhas ficam l embaixo!... Grotesco mesmo! -Qual! At que elas gostam, exclamou Fagundes. Riram todos. Espadim: -De agora em diante vou aprender lnguas estrangeiras e violino. S de raiva. -E as aulas de jiu-jitsu? Desistiu? A pergunta era de Vitinho a quem acenvamos que no fizesse isso. Espadim amargurava-se quando se falava em jiujitsu. -E voc, que pensa a respeito? disse Gorgulho', virando-se para mim. A pergunta me assustou. O pior, estava eu pensando, no consiste tanto em sermos pequenos quanto no exagero moral de nossa condio. Parecia-me natural em todo mundo o desejo de variar, de ser outro. Quem no se aborrece da fixidez de seu fsico? Quem no se enfara de seu tipo? No nosso 116 caso, porm, no estvamos enfarados; estvamos mal satisfeitos, revoltados. amos comear o jogo da vida, e j mal servidos de corpo, derrotados de nascena. Mas eu no queria insistir nessas coisas para no desanimar os companheiros, principalmente Gorgulho. Dias antes se agastara comigo por causa de dois centmetros a mais que eu me atribura, e que o faziam mais baixo do que eu. ramos assim no bar da Nicete... Certa vez subia eu uma escada que ligava o poro, onde se danava, a uma sala onde se comia. No me lembro bem do local nem do nome da rua, to nublada aquela noite de setembro em Copacabana. Sabia apenas que era uma bote. Ao parar nos ltimos degraus da escada para conversar com algum que conhecia, dei com uns ps enormes ao nvel de meus olhos. De quem seriam? A que massa corporal estariam servindo de base? No levantei a cabea. De acordo com as nossas normas estabelecidas no bar da Nicete, evitava olhar para cima quando perto de pessoas altas. Elas que se agachassem. Meus olhos porm no se despregavam daqueles ps. O interlocutor queria saber se eu estava sentindo alguma coisa. -Que acha desses sapatos? perguntei-lhe abruptamente, apontando para o que via. -Um tanto exagerados, respondeu. -Ento, vamos sair daqui! Samos. Passamos rente ao gigante. Eu devia estar plido de emoo. Na sala de cima, a fumaa tornava mais espessa a penumbra. No pude distinguir as figurinhas de Vtor e Espadim que bebiam na mesa do fundo; mas logo lhes reconheci a voz que me chamava. Sentei-me mesa deles. Ali se achava uma mexicana rouca e uma prostituta de Montes Claros. A prostituta mostrava mexicana uma cicatriz de faca; a mexicana exibia-lhe, em troca, uma de bala. -Veja se aquilo possvel, disse Vtor apontando para o gigante. Era uma massa humana enorme e bem vestida. O homem olhava para a sala, que parecia vigiar. Sereno como um deus. 117 De vez em quando, o gerente dizia-lhe coisas baixinho. A mexicana mandou-lhe o endereo num pedacinho de papel; a mulher de Montes Claros, dispnica de to aflita, s perguntava quem era aquele bonito. -Uma tonelada de estupidez! informou Espadim. Agravada pelo interesse das duas mulheres, a hostilidade entre ns e o gigante passou a manifestar-se de maneira mais agressiva. No eram apenas dichotes contra o adversrio adotivo. Eu atirava-lhe amendoim; Vtor, pedaos de gelo. -Por que fazem isso? veio dizer-nos o gerente. -Por nada, respondeu Espadim.-Porque ele grande demais! Quando o gerente ameaou chamar o prprio gigante para pr-nos para fora, Vtor lanou o primeiro cinzeiro. O gigante recebeu impassvel, na cabea, a chuva de cinza e pontas de cigarro. Essa indiferena magnfica ainda mais nos exasperou. Logo em seguida, mandei um prato de sanduches. E quando Espadim atirou o copo de usque, o gigante, a um aceno do gerente, caminhou para ns. Viramos logo as mesas, como preparao de campo. E investimos os quatro (apareceu neste momento o Fagundes, no se sabe como) contra o gigante. com um brao, ele imobilizou a mim e ao Fagundes que procurvamos arranhar-lhe o rosto. Vtor conseguiu acertar-lhe na testa uma saladeira, investiu de novo, e o brutamontes o mandou sem sentidos para o colo de uma dama, longe. Logo a seguir, um de ns passava pelo ar. Era o Espadim, que foi cair, desacordado, entre o saxofone e a mquina registradora. Por fim, sustentando-me numa das mos e ao Fagundes na outra, o gigante atravessou a sala e nos depositou com a maior delicadeza na porta da rua. Antes tivssemos tambm perdido os sentidos: no sofreramos a gargalhada geral com que comemoraram a nossa expulso. Grande falta nos fez Gorgulho na ocasio. A mexicana e a mulher de Montes Claros mandaram dizer ao Fagundes que no queriam mais saber de ns. Que ramos uns nanicos imbecis. Tentei ainda forar a porta para reclamar a devoluo de Vtor e do Espadim. Disseram-me que ainda dormiam. E que uma inglesa cuidava deles. 118 O episdio da bote deixou-nos abatidos por muito tempo. Acirrou o nosso dio contra os altos. Dirigindo-se ao Fagundes, disse Josias: -Fagundes, no est certo. Afinal de contas, eles no tm culpa de ser grandes. E ns, se nascemos desse jeito, no podemos esbofetear os nossos pais. Esta guerra absurda. E virando-se para o Espadim: -Voc mesmo j disse uma vez que era preciso ser alto por dentro. - inveno sua, nunca disse tal! Voc est traindo os nossos compromissos. -Esse negcio de ser alto por dentro, eu no entendo, disse Gorgulho. -Somos pequenos, mas no fugimos luta! exclamou o Vtor. -Que luta? Luta contra quem? perguntou Josias. -Contra os nossos inimigos. -Que inimigos? -Os altos! disse Espadim, quase soluando. Retiraram-se aos poucos. No os vi quando desapareceram. Ns, os baixinhos, desaparecemos depressa na multido. Pusme a refletir. Josias tinha alguma razo! Fagundes no queria compreender. Nem ele nem Gorgulho, nem Vtor; nem o terrvel Espadim, de olhos fuzilantes, o mais intransigente. Nas reunies do bar da Nicete discutimos diversas medidas e tomamos vrias decises. Era preciso traar novos planos, fixar comportamentos que atenuassem o nosso drama. Vi com alegria que as ponderaes de Josias' amainaram a intransigncia do grupo. Descemos ento a detalhes. Nada de esticar o pescoo, de falar alto demais, de equilibrar-se na ponta dos ps para ver o que se passa longe. Tambm no gesticular demasiado. Se o nosso chapu estiver muito em cima, no cabide, nunca utilizarmos a cadeira para apanhlo. Calar discretamente; o salto exagerado s serve para tornar mais risvel a nossa condio. E nunca discutir com sujeitos altos, uma vez que falam sempre de cima. Providncia importante seria deixar o Rio de Janeiro. O Rio cidade ingrata para pessoas de pouca estatura. Suas montanhas s fazem acentuar a nossa pequenez. Criam em relao 119 a ns uma escala de medida que nos reduz quase ao tamanho de formigas, como homens na praia vistos de avio. Assim conclumos, depois dessas consideraes um tanto aberrantes. Mas largar o Rio seria difcil; mais difcil ainda encetar vida nova noutro lugar. No devamos tambm sair em grupo; sentados, ningum notava; andando juntos, daramos a impresso de uma famlia de anes de circo. Ao lado de tipos mdios, v l; mas estes, que formavam o grosso inexpressivo da multido, no nos interessavam. Aplicando nossas concluses a casos isolados, achamos que o Espadim devia ser advertido para que no insistisse em danar com mulheres grandes, como era de seu hbito. Nunca me saiu da memria o corpinho dele a esvoaar por cima das mesas aquela noite na bote... J no nos inquietava mais a procura de uma base fsica maior. Inventamos compensaes. E relativa tranqilidade desceu sobre o grupo. Dispersamo-nos por algum tempo. Cada qual procurava seu rumo na vida. Soube, mais tarde, que Gorgulho, sonhando sempre com a carreira das armas, arranjara com certo deputado do Norte uma lei que alterava os regulamentos no tocante s exigncias mnimas de estatura. Fagundes empregara-se numa fbrica de biscoitos onde o apelidaram de Fininho; Josias, com quem me encontrei um ano depois, preparava-se para um concurso de radiotelegrafista da Panair. Desejava viver nas alturas... Espadim, com o pseudnimo de Atlas, escrevia num vespertino crnicas agressivas contra todo mundo; aprendia violino e jiu-jitsu. Vitinho embarcara para o Sul, sem dar notcias. Eu me deixei ficar por a mesmo sem rumo certo. Sonhava... Sonhava naturalmente que era um gigante. Noites sucessivas acordei com razovel estatura. E durante horas a sensao se prolongava. Vingava-me nos sonhos. Depois, o estado de viglia ia-me reconduzindo s propores primitivas, e o meu sofrimento aumentava na razo da delcia anterior. Mas os sonhos voltavam. fora de se repetirem, fui-me sentindo grande, mesmo fora do sonho. Por fim, comecei a convencer-me. 120 Mudei de maneiras. Soube que de raro em raro alguns dos antigos companheiros ainda apareciam no bar, onde se estranhava a minha ausncia. Na verdade, no podia freqent-los. J me sentia maior do que eles, embora no muito seguro de meu crescimento. Esses fatos extraordinrios tornavam-me inapto a qualquer espcie de convvio. Procurava lugares ermos. Estranha metamorfose estava-se operando dentro de mim. Que ningum me perturbasse. Dentro, s? No. Fora tambm. Conto isso, sabendo embora que ningum acredita. Alucinao ou o que fosse, eu estava crescendo... Tal como uma rvore ou chama subindo. Um prodgio. Os ps cresciam; os braos e o tronco tambm. O corao batia-me forte. Era porm nas pernas que se passava o principal. Ossos e tendes se estiravam por um impulso que vinha de baixo para cima. Minhas fibras pareciam estalar. Os quadros de parede chegavam-me altura do nariz. Dentro em pouco, eu deixaria o patamar da janela ao nvel dos joelhos; e chegaria a avistar um trecho de baa, coisa que dantes s conseguia trepando na cadeira. O corpo atendera minha vontade. Ser que ningum percebia? Veio-me a vontade de estrear publicamente a minha altura. Precisava sair. Vesti-me. Mas a roupa era a mesma que usava antes! Decepcionado, dirigi-me ao espelho. E o espelho me tranqilizou, devolvendo-me o tipo alto em que acabara de me tornar... Eis-me finalmente instalado num corpo grande. Ningum pode imaginar o que seja a delcia de sair pela primeira vez rua exibindo a estatura sonhada!... Adeus, figurinha enfezada. vou comear vida nova. Meu gabarito, naquele momento, devia ter atingido mais de metro e oitenta. Era esta pelo menos a altura com que me sentia... Atravessei a multido. Quedei-me diante das vitrinas. Como no havia ainda articulado qualquer palavra, receei pela minha voz. E se sasse fina? Prendi-a por algum tempo, depois fui 121 pronunciando "houm! houm!", com certo temor. Vi que ela se ajustava ao corpo. Fiquei satisfeito. Meu primeiro pensamento foi passar em frente janela das antigas namoradas. Era a nova verso corporal que estava inaugurando. Caminhava em estado de levitao. De surpresa em surpresa. Devolvi com ligeiro aceno de cabea a saudao de um homem imponente. Nunca o vira. Pouco importava: era algum da mesma seita. Entrei numa loja, as caixeirinhas acorreram sorrindo. Disputavam o privilgio de servir-me. -O senhor deseja uma camisa de pescoo... trinta e quatro, no assim? -No, senhorita. Quarenta e um! (Minha voz aqui falseou um pouco.) Uma delas sussurrou aos ouvidos da outra, envolvendo-me com o olhar: - "Como ele se parece com..." Mas no peguei o nome, parecia ser o de algum ator famoso do cinema norteamericano. "Puxa, como bom ser alto!"... pensei, embevecido. Agora sim, compreendo o orgulho com que "eles" singram a multido. Vitoriosos, serenos!... Como cisnes de lago. E eu pertencendo a essa casta de privilegiados! O vento desmanchava-me a cabeleira, enquanto eu estremecia em longa vertical. Prossegui. Mostrei-me em ruas de mais movimento. Estava deliciado. Abria-se-me uma viso risonha do mundo. Foi quando dei com Fagundes. Fagundes me aparecera na hora mais imprpria. Sua presena fz-me subitamente descer estatura odiada. estatura que Deus me deu. Queixou-se da vida, contou-me que estava mal satisfeito na fbrica de biscoitos. Era preciso evitar Fagundes. Despedi-me depressa. Apenas recomeava a tomar o tamanho ideal, divisei uma figurinha conhecida, rente ao solo, quase ningum entre os transeuntes. Era o Espadim. Ia com certeza encontrar-se com Fagundes. culos de aro grosso, cabeleira despenteada. Assumia propositadamente um ar feroz. com isso, buscava certa compensao: apagava-se menos no meio dos outros. Quebrei a esquina antes que me visse. 122 Da Praa Tiradentes at minha casa, caminhei com dificuldade, indeciso, e sem altura definida... Minhas idias baralhavam-se. Descobri ento que o meu tamanho no era fixo: aumentava ou diminua segundo as circunstncias, a maior ou menor intensidade de meu desejo. Aos olhos de meus companheiros, por exemplo, no conseguia sequer um centmetro a mais. Passei a dispor de duas atmosferas, conforme me fazia alto ou baixo. Manter-me na primeira, onde preferia ficar, exigia esforo, s vezes me cansava. No encontro com Olvia, cheguei mesmo a descobrir que nem sempre a muita altura favorece-concluso de que eu queria dar cincia, a ttulo de consolo, aos antigos companheiros do bar. O caso foi o seguinte: achava-se Olvia desgostosa deste mundo, junto muralha do cais, no Flamengo, quando a abordei. Ningum na praia. Eu usava o meu tamanho habitual, to distrado me achava. Olvia era grande, com algo de maternal nas maneiras e na voz. Conversamos at o cair da noite. Seguimos por uma rua escura. Depois, abraamo-nos demoradamente, e prometi voltar. Pareceu-me que naquele encontro eu demonstrara mais ardor do que ela. "Na prxima vez vou me apresentar com a minha nova estatura", pensei comigo. "E ela vai ficar completamente cada: terei, assim, assegurado por mais tempo a fidelidade de Olvia..." Recebeu-me num sbado de chuva. Eu lhe surgira outro homem. Mais calmo, mais decidido. E grande,- oh! grande, que como todo amoroso deve apresentar-se mulher amada. -Outro dia te achei mais interessante, disse-me ela. Por que agora esse ar grave, essa cara de homem cruel? Est at me lembrando o Isaas. Ih! nem quero me lembrar... Aquilo s tem tamanho... Assim se frustrou o meu romance com Olvia-inesperado desfecho para a primeira aventura amorosa de um homem alto. No bar da Nicete j no se contava mais com a minha presena. Eu era o desertor, o renegado. Recebi um bilhete de 123 Espadim: "Que que anda fazendo? Ser que ficou tambm importante? Virou por acaso homem alto? Sujo!" No podia ensinar-lhe a minha frmula. Nem a ele nem aos companheiros. Rir-se-iam de mim. Alm do mais, receava que, perto dele, se repetisse o fenmeno verificado no Largo da Carioca, quando de meu encontro com Fagundes. Eu vivia de vender s farmcias pomada para a pele e vermfugos, e de entregar amostras aos mdicos. Mofava horas nos consultrios. Aos primeiros sinais de meu novo fsico, a coisa mudou. No esperava o intervalo das consultas; entrava de cara, abria a pasta, e ningum saberia dizer quem era o vendedor, quem o doutor. Foi com a nova altura que entrei nos escritrios da firma Richard & Cia. disposto a obter, e certo de que obteria, o lugar de vendedor de seus produtos. O gerente olhou para mim e disse: -No precisa apresentar documentos. Venha amanh cedo. A sua mesa aquela-e apontou para uma mesa de ao com arquivo ao lado e telefone em cima. Nesse aparelho conversei com as pessoas mais importantes e as mais belas mulheres da cidade. Pelo tom de minha voz e maneira de conduzir o assunto, percebiam logo os interlocutores o meu peso e autoridade. Tal poder me conferiam os quarenta e mais centmetros complementares que me acrescentava quando queria. Fui logo promovido a chefe de vendas. Os anos passavam. Pensei em deixar o Rio de Janeiro. Fixara-se em mim a idia de que se fica menor quando se tem perto alguma colina ou montanha. Poderia agora parecer desnecessria tal providncia,, mas estaria obrigado a fazer uso constante de meus novos podres. As pessoas que no Rio me conheciam no acreditariam. Perto delas, a metamorfose no se produzia. E eu teria que voltar ao homnculo de metro e quarenta e cinco. Apenas isso... E j no podia mais suportar o humilhante retrocesso. Mudei-me para S. Paulo. L cheguei em pleno gozo de minha nova estatura. Pela manh, exibia-me nos parques e jardins; tarde, nas artrias principais. Sempre calado, como convm aos altos. 124 Nunca, at ento, conseguira atravessar as ruas de qualquer cidade com to deliciosa sensao de calma e imponncia. Muito mais seguro de mim que no Rio. Era como se caminhasse nas nuvens. Eufrico, predisposto a qualquer ato de grandeza; e onde houvesse injustia e brutalidade, decidido a correr em auxlio do mais fraco. Era o meu momento D. Quixote. A imagem desse heri galvanizava-me. No iria mais acovardar-me ao ponto de no intervir, como aquela vez, na praia de Copacabana, quando vi dois atletas massacrando um pobre homem cado e desarmado que me pedira socorro, e eu nada mais pude fazer que xing-los de longe. Farejei as ruas apinhadas, a ver se havia alguma injustia a reparar. Nada. Foi quando descobri, numa praa, uma multido de crianas fazendo fila porta de um parque de diverses. Era um sbado, tarde. Um homenzarro, de uniforme, retardava a abertura do porto. As crianas gritavam. A viso da roda-gigante girando iluminada exacerbava-lhes a impacincia at ao choro. Dirigi-me ao porteiro e ordenei: -Deixe que entrem todas! No sei o que deu no porteiro; tocou respeitosamente no bon, e franqueou a entrada a toda a turma. Explico: estava na plenitude dos meus cento e oitenta e tantos centmetros! Minutos depois, dentro do mesmo parque, minha proeza com uma das mquinas de experimentar fora deixou todo mundo estarrecido. Consistia o brinquedo em empurrar pelos trilhos de metal uma pesada pea parecida com ferro de engomar, at que alcanando a extrema altura, fizesse explodir uma espoleta l em cima. Pois duas vezes impeli a pea at o ponto final, faanha que no fora conseguida por nenhum dos tipos enormes que a haviam tentado. Ao retirar-me, ouvi algum dizer:-Como pode um homenzinho desses fazer explodir a espoleta? O comentrio me deixou perplexo. No era a primeira vez que se levantava dvida sobre a visibilidade de meu fsico. Mas a espoleta explodiu. Ser que meu corpo no chegava a exteriorizar-se? Se eu tinha a certeza que sim! Que graas a isso a vida me corria fcil! 125 A prova que se sucediam convites para festas e comemoraes; a prova que insistiam para que eu dirigisse empresas, para que jantasse com Fulano e Sicrano, para que fizesse parte da diretoria deste e daquele clube!... Eu no sobrava para nada. Escandalosa a opo da sociedade pelos tipos altos. Mas no podia estar usando sempre o meu fsico de gigante: forava-me demais a natureza. Meus hbitos de sujeito mido eram enraizados, datavam de mais tempo. Tinha porm a certeza de que, na proeza do Parque de Diverses, eu no podia deixar de estar no gozo de minha nova fora e estatura. Sim, a espoleta explodiu!... Tantos eram ultimamente os convites e honrarias, que me vi obrigado a recus-los. s vezes me fechava no quarto, estirava-me na poltrona, esquecido de mim, reduzido a quase ningum. S quando tinha de sair que, no corredor, retomava o novo fsico, reassumia a minha importncia. E no hall do Hotel eu era um hspede imponente. Na verdade, o esforo me cansava. J no me sentia to feliz no novo figurino. A princpio, eu me enchera de orgulho; agora, no me entusiasmava tanto. Tive impulsos de revogar a nova estatura, conformar-me definitivamente com a antiga. Mas era tarde demais. E viriam as complicaes. Talvez a firma Richard me dispensasse do servio... O que ocorreu na assemblia-geral do Sindicato dos Vendedores de Drogas (para o qual fui eleito presidente por imposio da poderosa firma Richard & Cia.) serviu para mostrar que no se deve descuidar um minuto sequer. No dia da primeira reunio a que devia presidir, eu me achava na cama, despojado de minha altura, gozando o bemestar antigo. Abri as venezianas, meti o pijama, e pedi usque. O telefone bateu. Avisavam-me que o pessoal estava h muito tempo minha espera na sala de sesses. Vesti-me e sa precipitadamente. L cheguei com uma hora de atraso. A maioria nunca me vira, votara sem me conhecer. Senti o frio, a decepo geral. Algum teria duvidado da minha identidade, 126 pois ouvi nitidamente a frase: "Mas foi este homenzinho que elegemos!" Assumi a presidncia entre cochichos e sussurros. S faltava ouvir a vaia. Foi quando dei com a causa: tinha-me esquecido de adjudicar ao fsico o meu suplemento de altura, mais que necessrio naquele momento. Tratei de corrigir o lapso, o que no seria fcil operao a realizar em pblico. E se falhasse? No sei por que mutaes passou a minha figura, nem que contraes eu fiz para fazer nascer de mim o homem grande; o fato que, a poder de esforos e extrema concentrao, senti que comeava a esticar. Vinha-me de baixo o fluxo do crescimento. Mal posso imaginar o espanto da assemblia naquele instante. A verdade que-outra pessoa ento-pude conduzir as discusses com calma e segurana. Impus silncio balbrdia, garanti minoria a livre manifestao de pensamento. Agigantei-me. Recoloquei em cima do estrado o homem grande reclamado pelas circunstncias. Desci entre aplausos. No saguo do hotel um vulto enorme me esperava. Mal vestido, triste. -Voc, Jang! Jango nunca tomara conhecimento da importncia de ser grande. Modesto, fazia-se corcunda para no dar na vista. Disse-me que trabalhava na portaria do Hotel Cau, onde fora admitido pelo seu fsico. No desgostava do servio. Mas a mulher do gerente comeou a fazer-lhe propostas indecorosas; o gerente, enciumado, ofendeu-lhe a me e ele teve que arrebentar a cara do gerente. Fora despedido. No sabia agora o que fazer. Para Jango, seu corpo desmesurado era como um castigo. Recordamos os companheiros do bar da Nicete. Contou-me que Vitinho morrera no Sul, deixando viva muito mais alta; Espadim sossegara, e trabalhava agora de secretrio no gabinete de um Ministro. Sempre o via na missa aos domingos. Algumas senhoras mandavam olhares admirativos para Jango. Era de fato impressionante o seu tamanho. Ao ver entrar um hspede cambaleando com a mala pesada, levantou-se automaticamente para ajud-lo. Contido por mim, sentou-se de novo. 127 Perto desse homem simples, no me lembrava mais que estatura eu tinha. Parece que a primitiva, a de nossos tempos. Nesse momento, sentou-se ao lado um hspede que eu conhecia de vista e era nome de projeo nos meios industriais. Virando-se para Jango, comeou a dissertar sobre os problemas do Brasil. Jango encolhia-se todo e apontava para mim, como que lhe fazendo sentir que era comigo, no com ele Jango, que devia ser mantida to transcendente conversa. O homem afinal levantou-se. Mandei servir uma bebida ao meu amigo, pedindo-lhe que me procurasse no dia seguinte, no escritrio da firma, onde lhe arranjaria uma colocao -Mas amanh feriado nacional, dia da Independncia. -Venha ento depois de amanh. Assistindo parada ao lado das autoridades do governo, na arquibancada, usava eu a altura adequada ao momento. A esse nvel, mesmo que no se queira, nosso vocabulrio fica diferente: mais sbrio, mais preciso. Era, pois, com certo apuro lingstico que eu me dirigia ao Secretrio da Sade. Acabavam de tocar o Hino Nacional. Depois desse hino, h sempre um prolongamento cvico de silncio que dura alguns segundos, e os estadistas fecham a cara. Nesse momento, no convm dirigir-lhes a palavra. Fechei tambm a cara. As tropas recomearam a desfilar pelo vale do Anhangaba. A jibia reluzente se movimentava. As damas assestaram os binculos. Foi quando vi aparecer,, no alto de um cavalo alazo, o Gorgulho! Ele mesmo. com barba e trs estrelas nos ombros... Encarei-o com insistncia. Tive mpeto de gritarlhe o nome, dizer-lhe: "Veja s, Gorgulho: voc a cavalo, de capito, e eu aqui, nas arquibancadas, de sujeito importante. Foi muito bom ter posto a barba. Muito bom mesmo!" Gorgulho avanou um pouco mais o cavalo; nossos olhares se cruzaram. Eu sorri, quase ia soltando um grito. Ele parece que me reconheceu, esboou tambm um sorriso. Era como se dissssemos: "Ento! Melhoramos muito, no ? Mas nem por isso!..." A um toque de clarim, Gorgulho prosseguiu na marcha Era o capito mais capito da parada. 128 A apario de Gorgulho, o encontro de Jango na vspera, e agora o toque de clarins ao longe, levaram-me o pensamento ao bar da Nicete e ao nosso grupo de "tampinhas". "Se alguns se perderam no anonimato, como dizamos, porque no encontraram a frmula", pensei. com muito de energia, a. voz grossa e um pouco de barba, eis Gorgulho capito. E como a guerra futura, se houver, ser totalmente invisvel, poder at comandar exrcitos, sem necessidade de mostrar a sua figurinha, nem o risco de ser desacatado por insuficincia corporal. Enquanto fazia essas consideraes, passavam os ltimos carros de assalto e, a seguir, as ambulncias de socorro. Era o fim da parada. Esvaziavam-se as arquibancadas. E me esquecera do principal: falar ao Secretrio da Sade sobre a nova proposta de fornecimentos da firma Richard & Cia. Talvez fosse melhor no ter falado, pensei. Essa proposta estava condicionada a um acordo com a firma escandinava, e eu ainda no havia procurado a dinamarquesa. Miss Elin comunicara-me pelo telefone que a maior parte do estoque j se achava na Alfndega. Poderamos assinar o contrato, faltava apenas acertar alguns detalhes. Era o fornecimento de maior vulto que a firma ia fazer ao Estado. Fora um dia atarefado aquela quinta-feira. Longos telefonemas com o Secretrio de Sade e com o chefe da firma no Rio mal me permitiam atender ao Jango, que empreguei provisoriamente como zelador do prdio. Da matriz do Rio telefonavam-me de novo, encarecendo a importncia do contrato, e reiterando a confiana no resultado da minha tarefa. Em caso de xito, prometiam-me boa gratificao, e eu j sonhava trocar meu carro por um novo. Dirigi-me sem demora ao Jaragu' onde se hospedava Miss Elin. Claro que devia usar a minha estatura mxima, dada a natureza do negcio. Mas distra-me, e entrei neutro, praticamente sem estatura definida. A dinamarquesa recebeu-me com simplicidade e distino. H dias vinha procurando avistar-se comigo. Expressava-se em espanhol. Pediu-me desculpas de estar um pouco vontade, devido ao calor. Um robe azul-esmaecido, em cima da combinao. Adorava o Brasil. Sentia uma atrao estranha pelo 129 Po de Acar. Voltaria para o Rio, logo que acertasse os negcios. Achava-me muito jovem; eu lembrava um sobrinho seu, na Dinamarca. Quis entrar logo no assunto, mas Miss... (Miss o qu? esqueci-lhe o nome quando mais precisava dele)... a dinamarquesa prolongava-se numa introduo amena aos nossos entendimentos. Era mulher grande, suave e lenta de movimentos. Lembrava um pouco a outra, a da aventura frustrada, no Flamengo. Perguntou se eu aceitava sorvete ou algum refresco. Preferi usque.-No lhe vai fazer mal? Acho-o um pouco plido. Expliquei-lhe que vinha trabalhando muito nos ltimos dias. "Que eu ento cuidasse bem da sade. Seu pas no tem bom clima." Sobre a mesa e o div espalhavam-se amostras de vrios produtos farmacuticos e objetos curiosos. -Estou autorizado a assinar o contrato hoje mesmo, disse-lhe. Nada respondeu. Entrou o garom e serviu-nos usque. Tirei da pasta a procurao e demais papis. A dinamarquesa, ligando a vitrola, consultou-me sobre se havia inconveniente em tratarmos o negcio ao som da msica. Achei que no, seria at melhor, o acordo se faria mais depressa, em perfeita harmonia. -So canes de minha terra, disse-me. Quando as escuto, lembro-me de meu sobrinho que morreu. Eu olhava para um objeto de vidro e borracha, fora de uma caixa coberta de inscries que pareciam em alemo. -Ah! para tirar leite das parturientes. Um sistema novo, mais suave que os outros, disse Mm Elin (viera-me ento o seu nome). Apanhou o aparelho, mostrou-me o dispositivo: -A parturiente no precisa inclinar-se no leito. s uma ligeira presso. -Mas o leite pode entornar-se, eu disse. -No, meu filho. assim. D licena... Descobriu o colo: "No repare no!" E fez a demonstrao. A ponta rosada do seio insinuara-se pelo gargalo do vidro. -Veja! Adere bem e no machuca. S falta sair a gota de leite. 130 Nesse momento a vitrola tocava uma msica de embalar. Atravs das venezianas piscavam os anncios luminosos nos edifcios distantes. Tentei ainda lembrar-lhe o nome, identificar em Miss Elin a representante de uma fbrica estrangeira. Ela encarnava no momento a mulher impessoal e absoluta, uma presena sem nome. Minha vista se turvou. Senti-me dentro de um turbilho macio. Vi a firma Richard & Cia. recuar para um horizonte sem fim de nuvens brancas e geleiras, at desmoronar-se toda. Quando dei por mim, a mulher, tendo-me encolhidinho em seu colo, batia-me docemente nos ombros. E, oom olhar longe, cantava uma cano de ninar... 131 O TELEGRAMA DE ATAXERXES a jos paulo moreira da fonseca
ALTAS horas de uma noite nublada de dezembro. Ataxerxes lembrou-se de uma coisa e comeou a caminhar agitado pelo quarto. Pisava forte, esbarrava nos objetos, rasgava estrepitosamente os jornais; mas sua mulher, exausta pela trabalheira do diaconsertos de estacas, irrigao de plantas-nunca mais voltava de seu sono de camponesa. Tinha pressa Ataxerxes em' dar-lhe a notcia naquele instante mesmo. Receando aborrec-la com um apelo direto, esperava despert-la com os barulhos que promovia. Escancarou a janela, deixou entrar o vento; abriu a torneira, fez jorrar a gua. J os ces latiam, as galinhas cacarejavam assustadas. Nos vales prximos, ouvia-se a resposta de outros bichos. 'A casinha de Ataxerxes animava-se toda. Como dorme Esmeralda! No quarto vizinho, Juanita acordava. -Que foi, pai? Alguma desgraa? -Nada; tua me que dorme. -Que queria voc que ela fizesse? -Que acordasse. -Que idia. Para qu? -Uma notcia. -Boa? -Maravilhosa. Juanita se ergueu num salto lesto. -Diga, pai, diga depressa. A gente fica neste fim do mundo esperando toda vida uma notcia! E voc disse que a sua maravilhosa. Conte, pai, conte logo... -Espera que tua me acorde. Esmeralda! Esmeralda!-gritou. A mulher se mexe ronronando.-Uma notcia sensacional para ns! 132 -Sorte grande? pergunta ela numa voz empapada de sono. Fecha primeiro essa janela, homem de Deus! -Quase, Esmeralda. Um achado. -Diamante? tornou ela de novo, com mal definido toque de sarcasmo, virando-se contra a parede. -Escuta, Esmeralda, escuta... Nossa vida vai mudar. Olha para mim... E prosseguiu, enftico:-Acabo de descobrir que o Chefe da Nao foi meu colega! Colega de colgio. Estamos feitos na vida. Era Zito o apelido dele. Meu Deus, como que s agora pude me lembrar! Deixa eu te abraar... Iremos para o Rio. Vamos viver agora! Salvo Esmeralda, nenhum ser vivo dormiu mais aquela noite no pequeno stio. E enquanto Ataxerxes traava planos para o futuro, Juanita, no corredor, danava de alegria, pensando no mar e na grande cidade que ia ver pela primeira vez. Sete dias depois, desciam os trs as rampas da Mantiqueira e da Serra do Mar, rumo ao litoral. Ataxerxes pensava no esboo do telegrama que ia enderear ao presidente; Juanita, janela, esperava as curvas em que a locomotiva se exibia de corpo inteiro, a puxar o seu comboio; Esmeralda, o nariz esmagado na vidraa, olhava para as colinas pontilhadas de reses e se lastimava, cheia de apreenses: "ah, justamente agora o milho estava granando, trs vacas esperando bezerro!..." O marido interrompeu-a:-Nem sei, Alda, como explicar: aquilo me bateu de repente na cabea, e eu acordei com a imagem de Zito!.. . noite, j o expresso deslizava entre praas e ruas iluminadas. Cruzava outros trens, apitava. Esmeralda assustando-se com o estrpito louco nos viadutos e pontilhes. Juanita observava tudo com avidez. Desde que entrara no carro at quela hora, no deixara um instante de acompanhar as mutaes da paisagem, o pitoresco das estaes e lugarejos. Intimamente, foi-se fazendo amiga do trem que a conduzia. Um sonho tudo aquilo. Ruas apinhadas, bondes, a campainha dos cinemas de subrbio, as moas de roupas coloridas; amanh mesmo ser 133 uma delas a andar pelas ruas. Ataxerxes chega janela, comovido. A grande metrpole vai aparecendo grandiosa e feia. Nela, o trono de Zito. A cidade sorri pelas mirades de janelas de seu casario aceso. Faris, anncios luminosos. Dali o Chefe da Nao irradiava o seu poder, mandava e desmandava. Ataxerxes ser um dos favoritos de sua corte. O amigo retardatrio do presidente prepara-se para desembarcar. Est plido. Esmeralda persigna-se, guarda o rosrio. O trem vai perdendo as energias e se deixando morrer na plataforma. Logo depois, pela janela do vago, saem sacos, cestos e velhas malas da fazenda. Em seguida, pela porta de trs, os Ataxerxes. janela da penso Estrela do Norte, onde se instalaram, Juanita ficou at altas horas a contemplar a metrpole. Como comear? A que apelos atender, em que mistrios se iniciar? Mas onde estaria mesmo a cidade? Ali apenas um trecho lvido e deserto de quarteiro, escondendo o crime, escondendo o amor. Pe-se a imaginar no homem desconhecido que atravessar a sua vida. Ele chega, quer abra-la, ela foge.-"Mas por qu, meu bem? Olha para o jardim... Cada rvore tem debaixo um casal se abraando. A nossa...-No te conheo, vai-te embora.-O meu abrao te informar de mim... -No; tu s um estranho... no posso.-Para que vieste ento?-No sei como vim... Nem sei se vim a teu chamado. Vai-te embora. -Por que ento ests chorando?..." Mas logo se interrompe o colquio, a imagem do namoradofantasma se dissipa. E longo calafrio passa pelo corpo de Juanita. Vultos l embaixo se distinguem .luz dos combustores; chega de longe um barulho difuso, e Juanita imagina que a hora de o mar espraiar a sua alma pelo cu da cidade... De baixo sobe um cheiro nauseante da cozinha. Cessou a discusso nos fundos de uma casa ao lado. A moa continua debruada janela e sente envolver-se numa nuvem de melancolia. 134 Depois se agita. Faz meno de descer e mergulhar nas ruas mais prximas, curiosa de saber onde elas iam acabar. -Vai-te deitar, Juanita. Isso so horas, menina? grita-lhe a me. Ela se assusta e obedece, "Amanh! amanh!" disse consigo, metendo-se debaixo dos lenis. No dia seguinte, ao grito das buzinas, ao prego dos vendedores, e ao rascar das portas de ao se abrindo-a cidade fazia presso nas janelas de Juanita, entrava-lhe pelas frestas com os raios do sol e um cheiro desconhecido. Veste-se num minuto e sai a descobri-la, enquanto a me procura a igreja mais prxima. A moa vai sem direo, como que embriagada. Entre cubos de cimento o sol se despejava. Juanita caminha... Quando suas pernas a conduzem para os pontos mais quietos, fica aflita por encontrar os de mais movimento. Que cidade essa que tanto se assemelha que vai surgindo do fundo de sua memria? Estaria pisando alguma calada de rua do Oriente onde os seus antepassados paternos negociaram, ou realmente no Rio de Janeiro com que sempre sonhara? Juanita caminha... E aparecem as praas. Pra extasiada, a v-las encher-se da multido que desgua de todos os quadrantes. Para onde se dirige essa gente? E que vai fazer com tamanha pressa? Era esbelta de linhas e rija de corpo. Se no fosse to ligeira, no se sabe o que seria dela aquele dia ante a ameaa de tantos veculos. Perambulou por todos os cantos, at exaurir-se. Entrou tarde. Esmeralda no sabia como comear a repreend-la. Acenou para o marido, a pedir reforo. Ataxerxes fazia modificaes no telegrama.-Larga esse papel, Xerxes. V se isso hora de nossa filha chegar! Mas o contentamento de reencontrar Juanita, que supunha perdida ou morta, encheu-lhe os olhos de lgrimas. No podendo ralhar, abraou-a.-Cuidado com a cidade, minha filha. Quase morri de aflio. Nunca mais repitas isso. Ests suada, cansada. 135 E Juanita, o rosto febril, as olheiras acusadas, responde: -Mame, uma maravilha! J aprendi quase tudo (citava as avenidas e praas principais). Iremos juntas agora. Acho que mexeram muito comigo, mas eu fui passando. O que no encontrei ainda foi o Palcio onde est o amigo de papai. A essas palavras, Ataxerxes estremece. Sabe que daquela penso reles ao Palcio a que acaba de referir-se a filha, seria a distncia encurtada por um telegrama. Era justamente do que estava tratando. O telegrama capital de sua vida. J o vinha concebendo desde a noite da revelao, no stio de Pedra Branca. Ao sinal do jantar, a famlia desce para a sala de refeies. Esmeralda caminha de m vontade para aquela experincia difcil. Os hspedes eram gente indistinta, pessoas em geral de meiaidade, algumas crianas-e um tipo estranho na mesa do fundo, a ler os crimes, em frente sopa fria. A comida devia ter o mau gosto do cheiro que trescalava. E como todos pareciam enjoados dela, Esmeralda pensa que por hostilidade aos recm-chegados. Juanita se escandaliza com a lepra da ferrugem que roa os espelhos. Ataxerxes pe os culos e comea a percorrer o menu. O papel manuscrito que levara ficou-lhe ao lado do copo. Esmeralda sente-se mal vestida. No sabe que prato escolher, parece que todo mundo os observa. Exaspera-se na indeciso. Acha que a luz devia apagar-se ou, pelo menos, ser reduzida. Todos iro v-la comer. -Xerxes, eu queria que voc me arranjasse uns culos pretos. Me sentirei mais vontade atrs deles. O garom, ao lado, baixa os olhos ao papel. No tinha inteno de l-lo. Mas o vai percorrendo distraidamente, aos pedaos. Deve ser a minuta de algum telegrama. Os termos so afetuosos. D com o endereo, e como que acordando do estado de torpor, arregala os olhos. O Chefe da Nao! Aquele fregus estava se dirigindo ao Chefe da Nao!... E em termos da maior intimidade! Alguns minutos depois, quase toda a sala olhava para a mesa dos Ataxerxes. porta reponta o rosto, cheio de espanto, da dona da penso; depois o do marido que surge, ainda mais espantado. 136 Joo Ataxerxes fitava o retrato do Presidente colocado em destaque na parede, ao lado da gravura de uma odalisca a sair do banho. Comentava qualquer cousa a respeito, movimentando as mos gravemente. Que estaria dizendo? Ficam intrigados os hspedes. O garom quem devia estar ouvindo as palavras correspondentes quela gesticulao. Era para produzir efeito em todos e ser ouvido pelo garom que Ataxerxes discreteava sobre a infncia do Presidente, em face mesmo de seu retrato. Agora, a dona da penso que vem em pessoa servir a sobremesa. No passou despercebida aos demais hspedes a significao daquela gentileza. Dona Cacilda comea a sorrir para eles, como que pedindo entrada na conversa. Acaba tomando parte nela: -Ah, ento o senhor o conhecia? -Pois se fomos companheiros de infncia, minha senhora! -Ahn! exclamou boquiaberta. Dentro em pouco, outros hspedes foram se avizinhando da mesa, e, ao caf, estavam todos ouvindo Ataxerxes, enquanto a mulher e a filha saam para o hall. Dois casais, alm dos donos e a filha, um rapaz vistoso e alguns senhores de fisionomia abatida bebiam-lhe as palavras: -Desde menino se revelara de uma inteligncia peregrina. Falava pouco, usava um casaco de l que ns invejvamos muito... Oh, h quantos anos isto L Parece que o estou vendo ainda, a correr atrs da bola, no futebol de nosso tempo!... s vezes, passava horas inteiras num mutismo misterioso, afastado dos colegas, como se pressentisse a responsabilidade do futuro. O Zito!... O Zito!... Vivia perdendo a escova de dentes. Uma vez, escorregou no banheiro e fraturou o brao. Sempre magro. Nesse ponto, o retrato no confere com o tipo da criana. Nossas camas eram quase pegadas. Hoje est calvo, mas possua bela cabeleira. Esses detalhes, sobretudo o da escova de dentes e o do banheiro, davam aos ouvintes a sensao de que tambm eles estavam entrando na intimidade do Presidente. -No acha melhor irmos aqui para a sala? props uma senhora, entusiasmada com a conversa. 137 -Seus olhos, prosseguia Ataxerxes sem atender, eram de um castanho-claro; sei que agora esto completamente azuis; naturalmente com a idade e o exerccio do poder tudo isto vai mudando... E todos contemplavam o retrato a que o homem se reportava a cada momento, como um professor de geografia que recorre ao mapa. -Aquele ombro de l, o esquerdo, do lado da odalisca, sempre foi um pouco cado; mas, como vem, um fsico de chefe! com desagrado de todos, um chamado de Juanita interrompeu a palestra. -E que corao! disse Ataxerxes em voz alta, ao retirar-se. E j na soleira da porta:-Com o tempo lhes contarei outros episdios, prometeu despedindo-se. Acompanhando a mulher e a filha, saiu a passear pelas ruas iluminadas. Havia muitos anos que no vinha ao Rio. Esmeralda e Juanita, era a primeira vez. Ataxerxes foi-lhes explicando as transformaes da Capital. Estava muito diferente.- o cimento armado, Esmeralda; o cimento armado um demnio! Sentiu uma nsia de incorporar-se imediatamente cidade, ser algum naquele turbilho. Falou no telegrama, esperava conclu-lo dentro de poucos dias.-Que de Juanita?... Menina!-gritou-lhe o pai-voc vai logo correndo e se desgarrando da gente. E para a mulher, baixinho:-No sei o que d nela; fica aflita a querer danar na frente dos outros.-Sempre foi assim, Xerxes, respondeu Esmeralda. Voc no se lembra, no stio, aquela mania de imitar o movimento das bananeiras? Antes que voltasse a Esmeralda a evocao de Pedra Branca, o marido chamou-lhe a ateno para as vitrinas e para a multido que acorria s diverses:-Imagine voc que sempre assim, Esmeralda. Todas as noites essa animao. E ns perdendo isso! -No sei como no se cansam e no enlouquecem, observou a mulher friamente.-Meu Deus, l vai Juanita fugindo outra vez! Gritou:-Juanita! Juanita!... 138 Sonhavam os donos da penso com um emprstimo na Caixa Econmica. No era apenas o interesse material de transformarem a Estrela do Norte num luxuoso hotel com elevadores e jardim de inverno; era sobretudo por questo de capricho: Pietro Zamboni, cunhado de D. Cacilda, tivera tambm uma penso reles como a Estrela do Norte; de repente prosperara. Entre os irmos Zamboni havia velha rivalidade que D. Cacilda, mulher temperamental, transformava em dio de famlia. Miguel acusava Pietro de gatuno e aventureiro; afirmava ser seu hotel um antro de contrabandistas e mulheres suspeitas. Por sua vez, Pietro e a mulher telefonavam aos hspedes de Estrela do Norte, recomendando-lhes que se acautelassem com a comida: muita gente sara, ali, da mesa de refeies para a do necrotrio. Presentemente, Pietro quase no dava sinal de si. Instalado no ltimo apartamento do arranha-cu que possui em Copacabana, com terrao de onde contempla de binculo o oceano, j no se preocupava em perseguir Miguel, mas este, incitado pela mulher, sonha vingar-se altura e v a sua vingana concretizar-se em vrios andares de cimento armado subindo, subindo, at que ele possa, do ltimo, cuspir no terrao de Pietro. Para isso, seria necessrio fazer um emprstimo. Ataxerxes cara-lhe do cu: com o prestgio de ntimo do Presidente, seria fcil o negcio. -vou arranjar-lhe um aposento melhor do lado do sol, veio dizer a dona da penso a Ataxerxes. No pagar mais por isto. Ataxerxes, apoiado o cotovelo na mesa da sala de espera, a mo na testa, no queria ser interrompido no momento. Seu telegrama j devia ter seguido e ainda estava em elaborao, o papel todo riscado. Era penosa a procura de alguns adjetivos; os advrbios chegavam com dificuldade, as frases no se articulavam direito. O telegrama precisava ser redigido de forma a produzir efeito fulminante na alma do Presidente. Pela primeira vez Ataxerxes experimenta a sensao fsica das palavras. Pena no ser como esses escritores famosos que lidam com elas e sabem manipular todos os sentimentos. Agora, por exemplo, precisava suscitar no Presidente uma impresso de volta infncia; em seguida, de poder pessoal-o que seria fcil; depois, de piedade pelos fracassados da vida; a ento, j na fase final, o corao do Presidente estaria preparado a 139 receber a semente do pedido. Mas as palavras resistiam; s vezes vinham dceis,' como que minando do papel, e Ataxerxes se alegrava. Seu esforo agora era mais de artista do que de candidato a emprego. Lembrou-se, porm, de que D. Cacilda ainda se achava ali perto, imvel, espera da resposta e do agradecimento:-Pois no, disse com atraso, pode fazer a mudana. No conseguiu mais escrever. A gentileza da dona interceptara-lhe a inspirao. Atrapalhou-se. Enquanto isto, o vento do corredor ia levando as folhas manuscritas para a porta da rua. Ataxerxes corre, inclina-se para apanh-las; mas o vento veio de novo, as folhas escapuliram. Uma delas pousou no asfalto mido, a outra ficou adejando entre as mesas de um caf em frente. Ataxerxes entra no caf, recolhe o telegrama ainda no ar, depois de atropelar os fregueses e virar duas mesas; quando ia apanhar a outra folha, apareceu um caminho veloz, a roda passou por cima e foi levando-a colada ao pneumtico para os lados da Rua Larga. Ataxerxes disparou aos gritos:- o meu telegrama! Pra! pra!... Mas era tarde. Quedou-se desesperanado... Parecia-lhe que naquela roda que fugia com o telegrama, fugia tambm o seu ideal. Volta desconsolado para o hotelzinho. Narra o sucedido mulher que procura consol-lo:-Para que se amofinar? Voc far de novo a outra parte. -Isso o menos, Esmeralda. E se a cidade vem a conhecer certos detalhes privados, o apelido, as antigas manias do Chefe da Nao?! Passava a mo na cabeleira, aflito:-Quando penso que todas essas cousas ntimas esto rolando agora pelas ruas, parece que tra o meu amigo. Fui colega dele na infncia; sou alguma cousa, portanto; devo honrar esta amizade. Voc j pensou bem, Esmeralda, o que ter sido colega do mais alto magistrado de um pas?! -Mas o papel desaparece, Xerxes, vai parar no lixo... - um engano! Vai parar nas mos de algum, o que voc devia dizer. De algum aventureiro... Parece at que o estou vendo; apanha o rascunho, completa-o, faz um pedido, 140 assina depois o nome... Ah, o impostor... Vai ter uma alta colocao! Olha para a chuva, atravs da vidraa:-Talvez a que me estava destinada... Esmeralda encarou-o condoda. E como se advertisse a uma criana:-Xerxes, estamos velhos demais para recomear a vida. Vamos voltar, vamos! Tudo poderia passar pela cabea do marido; aquele pensamento, no. Voltar!... Tinha graa... -Oh, Esmeralda, o telegrama nem seguiu e voc j cuida em voltar, gritou-lhe o marido, depois de uma pausa de espanto. Nesse momento, entrava Juanita, de fisionomia murcha. -Ah, papai, hoje eu vi o mar de perto! -Por que ento esse ar triste? -Tive uma decepo. No o que eu esperava... -Como querias que o mar fosse, minha filha? -Diferente da gua sem vida que partia de meus ps. Oh... aquela extenso calada! Nunca supus... Pai e me interrogam a filha com o olhar, sem compreend-la. -Queria que ele se mexesse, mame; que fosse mais soberbo! Dona Cacilda apareceu com a empregada. Vinha fazer a mudana para um apartamento mais condigno. Era a primeira homenagem prestada a um amigo do Presidente. A vida comeava a sorrir para os Ataxerxes. Hspedes e donos cercavam-nos de atenes. Esmeralda parecia indiferente. Metida sempre na igreja, rezava para que o marido fosse bem sucedido, para que a filha no se desencaminhasse.-"Juanita parece querer fugir de minhas mos, pensava; o pai no quer trabalhar, s confia no acaso, j esqueceu Pedra Branca. Esta cidade cheia de tentaes. Que nela no se perca a minha Juanita." Foi descendo os degraus lentamente. Contemplava o panorama do alto da escadaria. A cidade cinzenta pontilhava-se de luzes. Do Arsenal de Marinha espalhavam-se centenas de marinheiros, como de um colgio ao fim das aulas. As ilhas semeIhavam capes de mato no chapado da baa. 141 com o tempo, cresceu a roda de Ataxerxes. De toda parte apareciam-lhe amigos. Caras novas. Figuras vorazes, rpidas, de olhos ardentes. Alguns o levavam aos cassinos onde travava conhecimento com homens prsperos e ativos, pessoas amveis propondo negcios que no entendia bem, devido ao barulho do jazz e ao esplendor das girls. Pagavam-lhe a ceia, conduziam-no de carro at a porta da penso. Eram cavalheiros obsequiosos, corretamente vestidos, todos muito apressados. Alguns tinham cimes dos outros. Meses assim viveu Ataxerxes sombra do telegrama, esperando resposta. T-lo-ia passado?... A dvida inesperada fez refluir-lhe o sangue ao rosto. Sensao aflitiva de quem esquece o prprio nome ou o ano em que vive. Cada vez que chegava pela madrugada, lamentava o tempo perdido na provncia. Olhava-se ao espelho, sentia-se grisalho e ruguento. Dava depois com o vulto da mulher dormindo, achava-a ridcula nessas horas. Fora de Pedra Branca, Esmeralda como que murchava. " esquisito: l eu gostava dela, aqui um estorvo." E pondo-se a fumar na cadeira, donde a apreciava, descobria no corpo imvel da companheira as linhas rgidas de um cadver. Sacudia a cabea para espantar o mau pressgio; mas, quando adormecia, a mesma imagem voltava, cercado agora de uma ronda de girls seminuas que acendiam crios. Despertava agitado, a conscincia doda. -Alda! Alda!-acordava-a, com o sol j inundando o quarto. -Estive pensando que "magnnimo" fica melhor que "bondoso", no ? "Magnnimo" tem mais dignidade, qualquer coisa de romano; vai bem para um chefe. Bondoso sugere fraqueza. vou botar "magnnimo". -No entendo, Xerxes... -Estou dizendo que em vez de chamar o Presidente de "bondoso", resolvi botar... -O qu! exclamou Esmeralda, o telegrama ainda no seguiu?! Ataxerxes tem receio de dizer-lhe que no. Permanece indeciso, envergonhado. No sabe como, foi deixando correr o tempo sem que mandasse o tal telegrama. Ou passou?!... Est na dvida... Lembra-se de que havia entrado mais de uma vez nos Telgrafos. Ah, mas fora para um telegrama de 142 felicitaes pelo aniversrio do Zito. E estava meio bbedo. Pouco antes havia tomado a defesa dele e brigado. Pe-se a puxar pela memria. Tudo nublado. "Gente, ser que ainda no fiz seguir o tal telegrama?" J o havia relido a vrios conhecidos, disso se recorda bem. Orgulhava-se de poder mostr-lo aos outros. Parecia que s essa demonstrao de prestgio lhe bastava. T-lo-ia esquecido nalgum caf? Ergueu-se febril, vasculhou os bolsos do casaco. Ah, l estava ele! O seu telegrama, o seu destino! Mentiu cinicamente mulher:-Este o segundo, Esmeralda; mais completo... Saiu rua. Estava quase convencido agora de que no passara nenhum telegrama. Fora at melhor; ter ocasio de fazer ainda algumas modificaes. Mas ser mesmo necessrio? pensou. J se sentia criatura da casa do Presidente. Nos bares, na penso, na polcia, quando ali fora regularizar os papis, em toda parte-era tratado e reconhecido como pessoa "chegada ao Catete". Cicios agradveis o lisonjeavam. Para que telegrama? Se j foi, bem; se no, talvez nem seja preciso. O Chefe da Nao j devia ter conhecimento de sua estada na capital. Qualquer dia o chamaria. Vai caminhando embriagado pela vida borbulhante das ruas. Subitamente pra diante de uma vitrina. Gravatas! Quantas gravatas, meu Deus! E no s gravatas. Muitos objetos de toilette, caprichados, bons de pegar. E malas. Viajar! Decide ampliar sua ambio. Ao invs de inspetor de qualquer cousa ou chefe de repartio-ministro no Estrangeiro! Era das malas que vinha este apelo. Sua alma viaja... O vapor atracando, apitos, lenos acenando, cabecinhas louras no cais, msica, uniformes... - Monsieur Ataxerxes! Mister Ataxerxes... o novo representante do Brasil, etc., etc. Enquanto seu esprito desembarca no pas estrangeiro, os olhos se voltam para as gravatas e mergulham nelas como num mar de sargaos. Algumas pendem como serpentes do galho de metal; outras parecem armar o bote aos transeuntes; outras se estiram no cho de veludo, como raparigas em repouso, numa alcova; outras circulam como peixes. Todas coloridas, maliciosas, oferecendo-se... Trmulo de emoo, Ataxerxes compra uma. Segura-a como a um objeto mgico. Em suas 143 mos a gravata perde o fascinio; quer devolv-la zona hipntica da vitrina. Mas j est paga. Sai. O dia belo, esplende ao sol a baa, os avies rumorejam, passam mulheres perfumadas. Delicioso mundo, para que esta guerra? Como bom ser amigo do rei... -Ento, seu felizardo, vai ser troo, hein? - diz-lhe um sujeito interrompendo-lhe o arrebatamento, se no exaltando-o ainda mais. Que tal? Vamos almoar juntos? No no Bar Azul, ali s d fracassados... Ataxerxes vai sendo levado pelo brao do "amigo". No sabe bem quem seja. Algum que deve ter influncia no meio e goza da grande aventura da cidade. Almoa com o quase desconhecido. Presta-lhe mais ateno na gravata do que na conversa. O homem devora pratos, entusiasta de cavalos e mulheres, corre vrias vezes ao telefone, conversa em diferentes idiomas; fala em cmbio negro, numa certa Gisle cujo navio foi torpedeado, e num tal Armandinho que deve ser procurado no cassino. E termina:- "Tudo depende da naturalizao do judeu." Que judeu, que Gisle, que Armandinho? Ataxerxes atrapalha-se. Diminudo e ridculo sob o chuveiro de perguntas e informaes do desconhecido, pensa em aproveitar-se de uma das idas dele ao telefone e fugir. Como complexa a alma de um homem de negcios! Aqueles olhos vidos, aquele nariz de quem fareja petrleo no ar... Acabada a refeio, indaga-lhe o desconhecido, em voz gutural, se j foi recebido pelo Presidente:-No, estamos de relaes cortadas-responde Ataxerxes em tom apagado. Deu-lhe essa resposta como uma vingana. Mas o desconhecido vira-lhe as costas com desprezo, nem se despede. Esperava-o porta uma mulher to bela, to delicada, que Ataxerxes quase tomba de xtase. As lanchas largavam a amurada do mercado. As barcas da Cantareira soltavam apitos graves. S, no cais, Ataxerxes pergunta a si mesmo se a gente da cidade era sempre assim, se as mulheres eram como aquela com quem o eventual companheiro de almoo desaparecera de automvel. 144 Fica triste, com raiva dele, com d delas. Por que lhe propem negcios esses homens? No; nada de coisas escusas. Seria incapaz de comprometer a honra de Zito. A aragem cheirava a peixe e galinceos. Ataxerxes deixou-se ficar horas num bar. De l se levantou e ps-se a caminhar. Parou na esquina da Avenida, quase boca da noite. Foi quando lhe veio vindo uma sombra cabea. O enigma do telegrama!... Mandou ou no mandou? Todo o mundo que passa parece satisfeito, tem certeza do que fez. Custa-lhe reconhecer um rosto que se aproxima sorrindo: -Ento, pai, no me conhece? a primeira vez que v sua filha integrada na vida das ruas. Pensa com orgulho: "uma das moas que atravessam a Avenida agora Juanita, minha filha..." Chegara a esquecer-se dela. Juanita apresenta-lhe as colegas de curso. Uma delas se atreve a uma pergunta:- verdade que ela nunca aprendeu dana? As "outras silenciam, espera da resposta. Ataxerxes informa que nunca.-Por qu? indaga sem alcanar a razo da pergunta.- Oh, parabns, respondem em coro as moas. O professor est espantado. Todas ns, alis... Ataxerxes, perturbado, o chapu na mo, murmura qualquer cousa. Segura sua Juanita e despede-se.-Adeus, Juanita! -Adeus, Pavlova! exclamam as moas, dispersando-se na calada.-Que querem dizer com isso, minha filha? pergunta o pai. Voc metida com essa bobagem de dana! Vamos para casa. Acompanhava-os uma prima de Zamboni que viera no grupo. Por ela Juanita descobrira o curso. Dirigiam-se os trs para a Estrela do Norte, quando notaram a ateno dos transeuntes voltada para os lados da Praa Mau. Um incndio. Juanita arrebata a companheira e parte para aquelas bandas. Queria v-lo de perto. Ataxerxes voltou sozinho.-Como que a filha se mete num curso de dana sem autorizao da gente? pergunta mulher. Voc vai ver que ela acaba se corrompendo. H quanto tempo isto, Esmeralda? -Sei l, Xerxes, quem pode ter mo nela? A menina parece que anda com o capeta no corpo. Sei de nada... Nem dela, 145 nem de voc. Estou s... cada vez mais s...-E a ltima frase se desmanchou num soluo. Ataxerxes, o semblante constrangido, aproxima-se da companheira, pe-lhe o brao nos ombros, acalmando-a.- por bem de Juanita, voc bem sabe. - a primeira vez que voc se interessa por ela, desde que chegou... -Escuta, meu amor, disse beijando-a. -... a primeira carcia que me faz depois de tanto tempo! ... pronunciou a mulher, numa queixa que era tambm uma reclamao. Abraaram-se e desceram tarde para a sala, sem a companhia de Juanita. A rivalidade entre os irmos Zamboni, ou melhor, entre as respectivas esposas, recrudesceu. Dona Cacilda, ao receber uma bela fotografia da casa da cunhada, compreendera logo a provocao. Por sua vez, ela e o marido arranjaram meios de levar ao conhecimento de seus inimigos de Copacabana que tinham como hspede algum chegadssimo ao Presidente da Repblica, o que representava um trunfo nas mos; e que, por via desse hspede, j negociavam um emprstimo na Caixa Econmica. Iam tambm construir o seu arranha-cu. Era preciso cultivar os Ataxerxes, mesmo estando eles com atraso de muitos meses na penso. Miguel, empurrado pela mulher, diversas vezes subira com a conta at o quarto de Ataxerxes; mal chegava, porm, porta, respirava com dificuldade, perdia a coragem. Sempre que o italiano indiretamente aludia ao assunto, a insinuar que a vida estava difcil, tudo caro, Ataxerxes tocava no nome de Zito. E Zamboni empalidecia. No era pequena honra ter como hspede um dos amigos mais ntimos do primeiro magistrado do pas. O prprio hspede h muito sentia os efeitos disso. O Catete se conservava silencioso. com certeza, l se estava conjeturando o que seria reservado a Ataxerxes. Da a demora. Zito no falharia. Ataxerxes via-o passar s vezes em grande velocidade, precedido de batedores de motocicleta. Vinham-lhe neste momento 146 mpetos de atirar-se frente e gritar:-Sou eu, Zito, o teu amigo Ataxerxes. Quase na misria, como vs... Mas a imponncia e a rapidez do espetculo deixavam-no perturbado. Contentava-se, ento, em bater palmas de longe. s vezes, o nico a faz-lo... Estas demonstraes de aparato iam pouco a pouco transferindo para um domnio de maior prestgio a imagem outrora familiar de Zito. Ataxerxes sentia-se esmagado ante as exteriorizaes de esplendor e majestade que marcavam a passagem de seu antigo colega. Como ele subira alto! Um deus quase invisvel. No mais continuaria a cham-lo pelo apelido. Quem sabe no o teria ofendido com o tom demasiado ntimo do telegrama!... "Telegrama... telegrama... teria seguido mesmo?" O temor religioso de seus antepassados acordava na alma tmida de Ataxerxes. Zito era quase divino... Num esforo de memria-e no mais aos outros, para armar ao efeito, como aquela vez na sala da penso, mas a si mesmo, -procurava evocar o que na infncia do Presidente prenunciasse o homem do destino. S lhe chegavam, porm, fragmentos inexpressivos ou prosaicos: os arrotos de Zito, aquela mania de enfiar o dedo no nariz... Oh, no! o cidado Ataxerxes, necessitado e entusiasta, pedia uma coisa ao passado e o antigo colega de Zito, irreverente, fornecia-lhe outra. Os amigos improvisados foram desaparecendo.-Uma galinha morta, j diziam dele. Ataxerxes admirava essa raa de homens brilhantes e cruis. Mesmo na penso, sua importncia caiu. Zamboni, porm, incitava-o a agir, a procurar o Presidente. No tanto agora pelo emprstimo em perspectiva, mas para saldar a dvida. Mais trs meses de espera, e nenhuma resposta do Palcio. Todas as manhs, a leitura ansiosa dos atos ministeriais, seguida de uma decepo. Ataxerxes era j a decepo em pessoa. Dezenas, centenas de nomes contemplados com cargos da mais variada natureza. Ele, nada! 147 Comeava a impacientar-se. Dona Cacilda j lhe fechava a cara. Esmeralda acompanhava o sofrimento do marido sem nada dizer. Mas se sentia menos vexada depois que passou a usar culos pretos. Juanita subia e descia as escadas danando, alheia quele drama. Um dia, Esmeralda falou timidamente ao marido:-Xerxes, no melhor desistirmos?... Quem liga para ns nesta cidade? s esse calor, essa barulheira. .. E fila para tudo. -Zito h de recordar-se de seu antigo colega, respondeu. A questo ser visto por ele... -Est alto demais para enxergar voc. -No desisto, Esmeralda. - uma aventura, Xerxes. No fique zangado com o que vou dizer, mas voc sempre foi assim, meu marido. Vive contando com o acaso. No comeo, foi com os diamantes; por causa de um que encontrou por acaso, o nosso quintal ficou l todo revolvido; depois, voc se meteu com o zebu, lembra-se? e foi aquele desastre; depois com o cristal; agora, com o Presidente. Que da resposta ao telegrama, Xerxes?!... O marido no respondeu. Esmeralda continuava a queixa: -O nosso stio est hipotecado; nem sabemos como anda aquilo l. Por que no voltarmos? A terra sempre mais fiel... Volvia de novo ao esprito de Ataxerxes a questo do telegrama. Um mistrio, aquilo! Ultimamente, durante a noite, convencia-se de que o havia inandado; ao amanhecer, acordava com a dvida horrvel. Em seu esprito tudo passava facilmente do real para o imaginrio, do sonho para a realidade. s vezes no tinha bem certeza de que estava casado e, casado, se era Esmeralda sua mulher. E Juanita? Quantas vezes, ao v-la, experimentava um choque. Seria mesmo sua filha, ou alguma desconhecida a chamar-lhe pai, pai! com relao ao telegrama lembra-se de ter entregado o papel ao guich e tomado o recibo taxadora; no estava seguro, porm, se isso se dera em seu pensamento ou na agncia da Avenida Rio Branco. Enviar de novo o mesmo telegrama, seria despropsito, se no grosseria; fazer outro diferente, com aluso ao primeiro de existncia duvidosa, sem o principal que era a histria em resumo da infncia de ambos no colgio, ficaria incompleto e daria impresso de coisa de manaco. Alm do 148 mais, s tinha confiana no texto primitivo, o nico eficaz. To eficaz que, ao reler-lhe a cpia, se sentia na pele do Presidente. Figurava ento a cena: o Presidente, depois de abralo comovido, comeava a recordar a infncia em comum; em seguida, mandava chamar o ajudante-de-ordens com uma lista enorme e dizia ao amigo: "Agora escolha, Ataxerxes... Mas que prazer em rev-lo! H quanto tempo, hein?.. ."-E ao despedir-se: "Olhe, estou c em cima, mas no esqueo as antigas amizades. So as que valem... Aparea de vez em quando para um cafezinho..." Ele ento saa e o pessoal do Palcio ficava olhando, estarrecido... Essas conjeturas embriagavam Ataxerxes. Decidiu dirigir-se pessoalmente ao Palcio. No o fizera antes porque contava ser chamado. Muitas vezes, de bonde, passava em frente e olhava, olhava... L estava a sede majestosa do governo; era dali que Zito comandava o pas. Entrou dando bom dia aos soldados da guarda. Anunciou-se ao porteiro e se sentou, srio, a esperar. Observou a princpio os mveis, os quadros, os smbolos e sinais do poder. Seu pulso batia alm do normal. Depois, passou a observar as pessoas que entravam e saam. Eram os homens pblicos. Essa expresso "homem pblico" metia-lhe medo. Vinham ouvir o Presidente, receber-lhe as ordens. Conversa grave nas portas, movimento de papis, de contnuos,-tudo com luxo e respeito, mas um tanto triste. Qualquer cousa de cmara-ardente. Ataxerxes fumava, fumava... Tinha a impresso de que Zito estava dirigindo o pas direitinho. Comeava a anoitecer. Sob os lustres de cristal acesos, circulavam as altas patentes militares. Quanto poder!... Ataxerxes sentiu-se possudo de certo temor. E se entendessem de tom-lo por um espio? Entre ele e o Presidente havia apenas uma ou duas salas apenas. Se gritasse pelo amigo, estava certo de que Zito acudiria do outro lado. Um dos contnuos parecia querer fulmin-lo com o olhar. Ataxerxes baixou a cabea e achou prudente recolher o toco de cigarro que havia deixado cair distraidamente no cho lustroso. Desagradavam-lhe as pontas de baioneta na porta. Sentiu um frio na barriga. Um ajudante-de-ordens veio dizer-lhe que voltasse no outro dia. 149 -Trata-se, respondeu gaguejando, de um telegrama que enviei h tempo ao Sr. Presidente. -Seu nome? perguntou o ajudante-de-ordens. -Queira ter a bondade de dizer a S. Ex.a que se trata de Joo Ataxerxes, seu antigo colega de infncia... O Xerxes... V. S.a poder dizer-lhe que o Xerxes. -Ento o senhor far a gentileza de deixar o endereo e aguardar a resposta em casa. Ataxerxes voltou para casa tarde e faminto. Ps-se a comer. No quis conversa com a mulher. Mas Esmeralda precisava contar-lhe o que ouvira de Isabela, a prima de Zamboni, a respeito de Juanita:-A nossa filha parece louca, Xerxes. Sabe o que ela fez ontem? Uma cena horrorosa na praia. Comeou a danar sozinha diante do mar, em tempo de ser engolida pelas ondas. Tirou o sapato, a blusa, soltou os cabelos. Juntou gente; Isabela disse que todo o bairro assistiu. Um escndalo. A polcia teve que intervir. Ela parecia maluca. Os estudantes no queriam deixar que fosse presa. Soltava-se das mos dos guardas e continuava a danar. Ah, Xerxes, que ser de nossa Juanita!... Ataxerxes suspendeu o garfo, espantado. As impresses da longa espera no palcio dissiparam-se-lhe da memria para darem lugar imagem da filha diante das ondas. "Bem que ela me disse, pensou, que um dia seria capaz de danar o mar." Mandaram chamar Isabela. A companheira de Juanita ainda acrescentou alguns detalhes com sua voz quente:-Uma vez ela quis danar tambm um incndio!... aquele da Praa Mau, o senhor se lembra, Sr. Ataxerxes? Ah, hoje no curso ela estava uma maravilha! -Chame essa menina! -No, deixa-a quieta dormindo, respondeu Esmeralda. Pai e me cada vez mais desconheciam a filha. Em Ataxerxes, essa perplexidade se misturava admirao. Ameaaram tir-la do curso. Ela respondeu que continuaria l de qualquer maneira;- seria desgraada se no danasse. Quando viu que a me fitava complacente, alegrou-se:- to bom, mame, a gente esquece tudo, realiza tudo que sonha. A dana ... 150 No podendo exprimir o pensamento com palavras, comeou a formul-lo com os movimentos do corpo. Esmeralda correu e fechou a porta para que os hspedes no vissem. Que iriam pensar de sua filha? Iam correndo os meses sem a resposta prometida do Catete. Conseqncia do racionamento de guerra na comida da penso, andavam plidos os hspedes, ora a tossir, ora desarranjados dos intestinos. Esmeralda fora a maior vtima. A humilhao e os vexames de credora agravaram-lhe o estado de sade. Costurava para a filha de Zamboni, ajudava D. Cacilda. Ataxerxes, conquanto sem o entusiasmo dos primeiros tempos, no desanimava. Acabara de ser promovido, mediante recomendao sua, um funcionrio pblico, o de cabeleira e coriza que mora no fundo do corredor. Se o Presidente tomara em considerao um pedido seu para outrem, o que no faria para ele, Ataxerxes? -Ah, Esmeralda, te garanto que fui nomeado com outro nome. Tenho quase certeza de que aquele sujeito se serviu de meu telegrama. -Que sujeito? perguntou a mulher. -O tal que o apanhou. No te lembras daquela vez que o papel foi levado pela roda do caminho? -Isso no possvel, Xerxes; h quanto tempo! respondeu a mulher cobrindo-se toda sensao de um arrepio de febre. A notcia de que o funcionrio fora promovido a pedido de Ataxerxes levantou subitamente o prestgio deste na penso. Zamboni no s impedia que sua mulher falasse em pagamento, como adiantava clandestinamente certas quantias ao hspede. Apenas se queixava de que ele no sabia tirar partido de uma situao privilegiada. Dos lados de Copacabana no cessava a ofensiva da mulher de Pietro, o que tornava Miguel ainda mais impaciente. * "Vexames de credora", na verdade, corresponde a "vexames de devedora". Conservou-se o texto, sem alterao, tendo em vista as normas da ecdtica e considerando as conotaes muito mais ricas de "credora".-Nota de M. Cavalcanti Proena. 151 Certa vez, Zamboni e Ataxerxes entreolharam-se com emoo ao verem chegar um telegrama. Ataxerxes segurou-o como se fosse abrir uma fruta saborosa. Era um despacho de Pedra Branca. Anunciava que as vacas estavam morrendo de peste e a lavoura prejudicada pela inundao. Vinha assinado pelo encarregado do stio. Ataxerxes escondeu a notcia sua companheira. - do Palcio? perguntou Zamboni vivamente. -No, respondeu Ataxerxes, lacnico e dilacerado. Suas visitas sucessivas ao Palcio tornaram-no ali figura conhecida entre os funcionrios subalternos. Era o esfria. Esperava horas. De vez em quando, aproximava-se de algum contnuo para dizer o quanto era ntimo do Presidente; falava sobre a guerra, mostrava o retrato de Juanita; e voltava a sentar-se com dignidade. Levantava-se de novo para repetir que ele e o Chefe da Nao tinham sido colegas de infncia; que at o tratava por Zito.-No acredita? levem-me presena de S. Ex.a para provar que no minto,-respondeu, ferido na sua dignidade. O porteiro e os contnuos estavam habituados a essas histrias de pedintes. Um deles sorri com sarcasmo, Ataxerxes se ofende, vai saindo um general. H o calor, vem a vontade de fumar, h um amigo ali pertinho, atrs da parede, e h uma opresso indefinida no ambiente de rostos duros. Ataxerxes perde a cabea e xinga. Os homens retiram-no dali, fazendo uso de uma tcnica ao mesmo tempo discreta e implacvel. Nem foi preciso que os soldados se mexessem. Posto na rua, exclama:-Vocs vo ver depois! porque ele no ouviu a minha voz!... Um dia ho de saber quem sou eu! Afinal, isso aqui ou no uma democracia?.. Canalhas! saibam que o Presidente meu amigo... Vagou pela calada:"-Canalhas! Canalhas!" E foi beber numa taverna, onde se acalmou. Esperava-o na penso um indivduo vagamente conhecido que lhe viera pedir pistolo para o Lide Brasileiro. Atordoado, Ataxerxes desculpa-se alegando j haver feito vrios pedidos. Oportunamente o atenderia. Sentiu que seu prestgio, anulado na sala do Palcio, reaparecia maior, quando longe. 152 Espantou-se de haver tratado o pobre candidato ao Lide com o mesmo ar importante com que fora atendido pelo ajudante-de-ordens. Da por diante, a pessoa do Presidente passou a ser algo de inacessvel. A todo momento ouvia-lhe o nome gritado nos rdios; por toda a parte, o retrato dele. Vira-lhe uma vez a imagem luminosa pairando no cu, numa noite de fogos de artifcio. Olhava para o alto e se perguntava:-Ser ele mesmo, o meu amigo, o meu antigo colega?... Zito! Um astro que brilha longe... S por telepatia poderia comunicar-se com ele, dizer-lhe: "-H mais de um ano estou aqui perto, acompanhando a tua glria, Presidente. Querendo, precisando falar-te... Mas esses miserveis no deixam avistar-me contigo, que que posso fazer?..." Juanita trabalhava numa loja elegante e seguia o seu curso de dana noite. A beleza de seu tipo, a vivacidade de seu esprito facilitavam-lhe tudo. Mas ficou compreendendo o preo que pediam por essas facilidades. Crescia-lhe o nojo da maior parte dos homens, contra os quais se protegia. Entretanto, em certos momentos, tinha vontade de abraar a todos. O estado de sua me agravara-se. A esta poupou Ataxerxes o desgosto de comunicar que Pedra Branca, tendo ido praa, fora arrematada em leilo por um desconhecido. A mulher parecia ter pressentimento do acontecido, to depressa se acabava. Para Ataxerxes, importava-lhe menos perder as suas terras do que abrir caminho at o Presidente. Inesperado fora o choque de Juanita ao saber do fato. Atrapalhou-se toda na loja.-Onde est hoje sua cabea, Juanita? Leia a os preos, dizia-lhe uma caixeirinha.-O que a freguesa est pedindo no isto, menina, advertiu-lhe outra. Impossvel moa prestar ateno ao trabalho. Mais impossvel ainda saberem as outras que o cheiro, a ondulao do milharal e das bananeiras, o rumorejo do moinho, as colinas, as reses-tudo que recordava Pedra Branca lhe estava invadindo naquele momento o corao, como se o stio perdido viesse despedir-se dela. Alegou indisposio de sade, e retirou-se mais cedo. 153 Intimamente, ia o seu corpo reproduzindo os movimentos da paisagem da infncia. Andava pelas ruas como se estivesse percorrendo os vales da meninice. Aproximava-se de casa, quando lhe saiu ao encontro o seu pai. -Vai ver tua me depressa, Juanita. Disse e caiu no pranto. Juanita entrou, plida. Parou ante o corpo de sua me que esfriava lentamente nas extremidades. Ataxerxes se aproxima tambm do leito. Ajoelha-se. Esmeralda reconhece-o, passa-lhe a mo pela cabea e murmura:-Pobre Xerxes, ele nem sabe que voc existe... que ns existimos... E foi perdendo o flego. Juanita nunca vira ningum morrer e pensava que sua me fosse eterna. Tomou-se de um acesso nervoso:-No! com ela, no! Deixa mame!... deixa! E alongava os braos no gesto de quem empurra alguma sombra invisvel. Entravam neste momento Zamboni, a filha e o hspede que fora promovido. Esmeralda apenas os reconheceu. Insistia que estava tomando um ventinho fresco de montanha:-"Subam tambm... C em cima agradvel..." Olhava para eles longamente. Comeou depois a indagar-lhes onde era a fila de morrer:-" aquela, ?... Como est comprida, meu Deus!... Ah! l vem o carro. Juanita, olha o milho para os patos... Ch... Cho..." Quase toda a penso lhe acompanhou o enterro no dia seguinte. O funcionrio promovido perguntou se o Chefe da Nao se fizera representar. Foi-se assim a fazenda, e foi-se a mulher de Ataxerxes. Juanita teve que adiar a sua festa de estria. O professor achava prematura qualquer exibio pblica. A moa parecia-lhe ainda demasiado instintiva. Mas a vontade de danar se exasperara nela depois da morte da me. Esmeralda e o stio no lhe saam do pensamento. O russo procurava conter a discpula rebelde. Mal disfarava o seu zelo por ela. Chegava a querer policiar-lhe a vida, aconselhava-a a que no se deixasse levar por nenhum dos apaixonados, como acontecera a tantas outras, mais amantes do que danarinas. Era a maravilha que viria dar cartaz ao seu curso. Juanita, por sua vez, 154 temia que a amizade desinteressada dos homens se queimasse logo no desejo de possu-la. Fez-se quase irm e me de um jovem que se quis matar por ela. s vezes, seus olhos pisados e certo langor na voz e nos movimentos denunciavam-lhe os desejos profundos. Ela desviava essa corrente, fazia-a explodir na dana. Ia assim adiando o encontro com o parceiro inevitvel. Uma inglesa rica do Leblon, me de uma colega, oferecera-se a proteg-la; queria-lhe a companhia para alegrar sua viuvez. Beijava-a de uma maneira esquisita, dizia que ela se parecia com as figuras de Burne-Jones. Juanita no sabia quem era Burne-Jones. Ataxerxes falou a Zamboni:-Miguel, voc tem sido meu amigo, me emprestado dinheiro, no devo pesar-lhe mais. vou mudar-me para algum aposento barato. H de chegar o dia em que hei de falar ao Presidente, tenho certeza; nossa vida vai melhorar; subiremos juntos. Explicou-lhe que a dificuldade era atravessar a trincheira de guardas, contnuos e secretrios que segregam o Presidente. -"Estou certo de que ele tambm quer me falar, mas no consegue. O meu pobre amigo! Prisioneiro dos outros!... Tambm natural que assim seja, Miguel... Quem pode dirigir este pas seno ele? Olhe o telegrama que lhe mandei-disse, mostrando-lhe um papel. Ataxerxes ia declamando para o amigo as passagens que lhe pareciam mais expressivas.-Belo! Belssimo!-exclamava Zamboni. Que telegrama, santo Dio! E vinha a tal dvida... Ataxerxes entristecia, caa no mutismo. Zamboni, pensando que fosse saudade de Esmeralda, dor de vivo, retirava-se. Misto de bondade e velhacaria, Miguel Zamboni, que se comovia facilmente, sentiu que essas demonstraes de confiana ligavam definitivamente o seu destino ao de Ataxerxes. Permitiu, entretanto, devido presso de D. Cacilda, que o hspede se mudasse para um quartinho miservel em Catumbi. No se conformava, porm, em que um amigo ntimo do Presidente ficasse abandonado numa pocilga. Ia v-lo freqentes vezes, acompanhado de Isabela, admiradora de Juanita. 155 Levava-lhe queijo, cigarros e macarro s escondidas da mulher; acabou abrindo-lhe pequeno crdito no armazm mais prximo. Ao cair da tarde, Ataxerxes passava meio bbedo. com o tempo, os moradores da rua vieram a saber que aquele bbedo era pessoa da estima do Presidente. Se andava desleixado, quase maltrapilho, era porque fizera voto de humildade. Tratava-se de um excntrico. Seu aposento se enchia de candidatos a empregos. Verdadeiras audincias. At doentes vinham solicitar-lhe internamento nos hospitais; outros, pedir explicaes sobre os impostos. Dava cartas de recomendao ao prefeito, ao chefe de polcia, a diversos diretores de servios pblicos. Alguns desses pedidos surtiam efeito. O governo continuava a atender a seus pedidos! Mistrio!... -Est vendo! exclamava Zamboni; est vendo! Acompanhado de Zamboni, ia rondar as imediaes do Catete. Colocava-se em pontos discretos, receoso de que o tomassem por malfeitor. E l ficava namorando o Palcio. Pela porta lateral entravam os automveis reluzentes. Os estadistas desciam com grandes ares. Ataxerxes assistia a tudo. "Ah, se ele chega o rosto vidraa um tiquinho!..." L dentro, tudo respirava a mesma calma e dignidade. O que atrapalhava eram as caras antipticas dos guardas. Ataxerxes, amargurado, voltava para Catumbi. Fazia-lhe bem o simples fato de namorar o Palcio. Por trs ocasies passara ante seus olhos a figura do Presidente; mas cada vez mais longe, e em maior velocidade. Sempre como um deus inatingvel, uma estrela longnqua... Certa vez, na inaugurao de um edifcio pblico em festa, sentiu no meio da multido que o olhar do amigo pousava no seu rosto, como que o reconhecendo. No se conteve e gritou: -Ziiito!... E foi logo abotoado por dois brutamontes que o empurraram para dentro de um carro forte, ao som do Hino Nacional. No lhe ficou mgoa disto; persuadiu-se de que o Presidente estava mesmo proibido de falar aos amigos do peito, condenado a dirigir a Repblica. O nico sujeito capaz de salvar a nao. 156 Arranjaria um meio de encontrar-se com ele s escondidas, fora da vigilncia do Estado. Tentou vrios telefonemas. Intil. Chegou a admitir a inexistncia de Zito... J no pretendia mais nenhum lugar, contentava-se apenas em receber um abrao dele. -Acho que na residncia d mais jeito, Zamboni. Se ele me vir, capaz de receber-me at de pijama. Esperaram a noite e tocaram para l. Encostaram-se ao muro. Xerxes trepou nos ombros do italiano. -Cuidado. Suba por aqui! -No! Me levanta um pouco mais... Aquelas rvores me atrapalham. Agora! Estou vendo tudo! Ali deve ser o escritrio ... Que beleza este parque... Entrou uma menina; deve ser Clotilde, a filha. -E o homem? -Espera! espera! No faa barulho... Psiu! Ai que ele vem entrando!... Meu Deus, estou pertinho dele! Como emagreceu! Sentou-se. Acho que est triste... acendeu um charuto!... -Voc est distinguindo bem? sussurra Zamboni. Eu tambm estou com vontade de espiar. -Voc no, Zamboni, que pode atrapalhar. At os seus olhos azuis estou vendo!... Mas como ficou calvo!... De tanto se preocupar com a Ptria, no , Zamboni? -Ah, sim... com certeza! -Acho que vou dar um assobio. -No faa isso, voc est louco? -Coitado, agora est descansando... trabalha tanto!... Estou quase ouvindo a respirao dele. -Cuidado! no fale alto. melhor descer... -No; s transmisso de pensamento... Zito! Zito!... - chamou de novo num cicio.-To simples que ele ... Meu amigo!...-Olhou para as alamedas:-Que silncio no parque! Zito! Zito! Adivinha s quem est aqui!... Houve um tiro seco. Ataxerxes rolou. Zamboni correu. A noite prosseguiu calma. Auxiliada pela viva inglesa e alguns rapazes de suas relaes, conseguira Juanita, no dia seguinte, descobrir o cadver 157 do pai. A polcia tomou-lhe o depoimento e do Zamboni. Fora logo afastada a hiptese de que se tratava de um malfeitor. -O Presidente veio a saber? perguntou Zamboni autoridade, na presena de Juanita. -No, respondeu o agente. Para que incomodar S. Ex.a? A guarda avistou um desconhecido a saltar o muro e cumpriu o seu dever. Lastimo o ocorrido, senhorita-terminou, fazendo uma vnia filha de Ataxerxes. Devolveram moa os objetos e papis do morto, e ela partiu nos braos de Zamboni. Fechada em casa, Juanita abriu o pequeno embrulho. Na carteira de identidade, o retrato de Ataxerxes apresentava aqueles mesmos olhos grandes e mansos, a cabeleira atirada para trs, o rosto glabro e mole, dois leques de rugas se abrindo da extremidade das plpebras. A cara simptica dos velhos atores. Correu a fechar a porta a chave. Comeou a examinar os papis: cautelas de casas de penhor, recibos de tintureiro, listas de jogo de bicho, uma fotografia do Presidente, uma carta de Pedra Branca, um retratinho de Esmeralda. Bilhetes corridos de loteria espalharam-se pelo cho. Havia tambm um charuto inacabado. Abriu duas folhas manchadas de gordura e suor: o telegrama. Leu-o, releu-o demoradamente. Suas narinas palpitavam. A inglesa e a filha vieram cham-la para o almoo. No se tocou no fato. Mas a viva beijava-lhe a testa de vez em quando, reverenciando-lhe a dor. Juanita aparentava uma doura triste e grave. Voltou ao quarto onde passou horas, os olhos negros cravados no azul do mar. No se separava do telegrama, onde quer que andasse. Relia-o sempre. No emaranhado de palavras riscadas, linhas assimtricas, rabiscos ora fortes, ora esmaecentes, desenhava-se o rosto de Ataxerxes sorrindo tristemente para ela. Naquele papel sujo, ia decifrando o mistrio da vida de seu pai-o drama de Ataxerxes; simultaneamente, aparecia-lhe a imagem de Esmeralda morrendo. Saiu a vagar pelas ruas. Via tudo diferente. Em cada rosto, no mais uma promessa de alegria, s a confisso de uma 158 esperana perdida. Como se enganara! Vontade de acudir aos outros, de fazer-lhes algum bem. Emudecera durante meses. Achavam-na cada vez mais estranha. A inglesa e sua filha receavam por ela. Aquele mar perigoso em frente, aquele terrao to alto... -Por que no choras, Juanita? sugeriu a viva. preciso desabafar, darling. Chorar, ela no chorava. Assim permaneceu longo tempo, como se caminhasse para alguma catstrofe irremedivel. Afinal, seguiu ou no seguiu o telegrama? inquiria. E que lhe adiantava saber? O homem no se cansa de dirigir mensagens a um deus que no responde. H distncias infinitas; h o silncio, o egosmo; h paredes, leis e carabinas embaladas de permeio. Quem nunca teve no bolso ou no pensamento um telegrama com o pedido impossvel? mesa-de-cabeceira de seu quarto, Juanita colocara os retratos de Zamboni e da viva inglesa, ao lado do de Esmeralda e Ataxerxes. Ataxerxes sempre com aquela cara doce, meio aparvalhado, de quem ainda espera resposta... 159 ACONTECIMENTO EM VILA FELIZ a rachel de queiroz Ao invs de se abrigarem logo contra o vento de leste, que podia resfri-las, as velhas se deixaram ficar pelas esquinas, espera de Heleninha. -Parece que agora ela! -Ela, sim! Heleninha vinha vindo, toda orgulhosa de seu ventre que j se arredondava. As velhas avanaram, alvoroadas. -bom dia, minha filha. N. S.a do Parto lhe d uma boa hora. At que enfim a mais bela flor da Vila ia ter a sua criana. Grande vinha sendo nos ltimos anos a safra de recm-nascidos em Vila Feliz. S faltava a contribuio de Helena. Eis que o primeiro filho dela se anuncia agora, depois de longa espera em que a maledicncia do povo chegara a insinuar desentendimentos possveis do casal, se no dvidas sobre a integridade fsica de um dos cnjuges. As amigas de Helena, cada qual arrastando pela mo trs ou quatro crianas, sempre que a avistavam, interpelavam logo: -Ento! O seu quando vir? E era como uma punhalada... Como se algum lhe dissesse: "Aqui esto as crianas que concebemos; olha como so robustas; tu no tens nenhuma, nem nunca ters; ns somos fecundas; tu, estril; que adianta parecer to forte o teu marido, que adianta seres a mais bela da cidade?" E Helena voltava para casa, ia chorar no fundo do pomar. As velhas se aproximam, tomam-lhe as mos. -Chega mais perto, filhinha, quero beijar teu rosto, dizia uma. -Deixa-me tocar teus ombros... -Que frescura de corpo. H de ser um prncipe o teu filho. 160 E Helena corava toda, pedia desculpas e, mais perturbada que agradecida, se desembaraava delas. Mas Vila Feliz tinha mgoa de Helena. Habituara-se a v-la passar com aquele jeito de quem se reservava para algum. E a moa, sem que se decidisse por qualquer rapaz, alimentava em cada um a esperana de possu-la. E mais fascinante se tornava na maneira de esquivar-se aos pretendentes. Sua pureza tinha algo de diablico. Por que fora ligar seu destino a um estranho, quando, na cidade mesma, seus apaixonados se contavam s dezenas? Dois se atiraram da ponte; um bebeu por ela sete anos; e ainda bebe; outro pensou em mat-la. E cada qual se prendia a Helena por um encanto diferente. Quando, certa noite, a ouviram cantar no fundo do vale, perto da Fonte Seca, todos se perguntavam como que Vila Feliz pudera dar aquilo? E se encantavam por ela, e por ela se desgraavam. Jos Diogo, por exemplo, virou um trapo. Era natural que Vila Feliz receasse a unio de Helena com algum estranho. Entretanto, apenas surgira ali o agrnomo Mrio Silvano, todo mundo pressentia: " bem possvel que os dois se casem... quase certo!" Mrio e Helena ainda nem se haviam avistado, e as velhas, meio bruxas, meio sibilas, j proclamavam com segurana: -"Quem no est vendo que o prncipe dela chegou?" O "prncipe" tinha sido designado pelo governo para dirigir o Aprendizado Agrcola, a cinco lguas da Vila. O casamento, meses depois, tivera assim o carter de uma fatalidade. E que maneira de casar! Sem festa, quase sem testemunhas-um desacato s tradies da terra. Mrio passou a ser o usurpador que viera de fora. E Helena ... oh! no lhe perdoavam ter feito o que fez. Dois anos haviam passado, e como no nascia filho deles, dizia-se que a prpria natureza se recusara a sancionar aquela unio. As mulheres da Vila passavam ento debaixo da janela de Helena exibindo acintosamente as ltimas amostras de crianas. "Bem feito! pareciam dizer: os moos de Vila Feliz esto vingados. Que adianta pertenceres a esse homem que te arrancou de ns e finge desprezar-nos, se no s capaz de ter um 161 beb para alegrar tua casa! Que adianta seres a mais bela? Por que no te casaste, como ns, com qualquer homem da Vila? Bem feito, aventureira! Criana no ters..." Mas eis que Helena se apresenta grvida, e no se comenta outra coisa no lugarejo. Jos Diogo, depois disso, parecia mais alto e mais magro, ruminando o seu desespero. No o havia abandonado o sonho de Helena vir a pertencer-lhe um dia. Odiava o agrnomo. E tanto mais quanto no encontrava nele o que pudesse justificar o seu rancor. Horas e horas permanecia triste no meio da praa, junto ao busto de um benfeitor da localidade de quem se sussurrava ser ele descendente esprio. O corpo comprido, arrematado pela cabeleira frondosa, dava-lhe o ar de um coqueiro, e, como tal, plantava-se diante da vidraa da casa de Helena. -"Pacincia, meu filho, dizia-lhe sempre a cartomante a quem consultava aos sbados. Eu vi um tmulo se fechar e, em seguida, correndo para o teu lado, uma mulher de blusa aberta. ela! A bola de cristal no mente. A mulher de Mrio h de ser tua um dia..." Comentava-se baixinho e com certo respeito a paixo infeliz de Jos Diogo, paixo que exalava cheiro de morte. Os amigos procuravam distra-lo e evitavam que ele parasse muito tempo na ponte.-Jos Diogo, voc acredita em disco voador? E Jos Diogo se afundava num mutismo sinistro. O nascimento de um filho de Helena com um tipo estranho ao lugar era-lhe mais importante do que qualquer fato' extraordinrio do Universo. O filho ia consolidar a unio do casal. A desgraa de Jos Diogo ia ser agora completa, as cartomantes mentem. Ouviu-se nesse momento a voz de Marta chamando o marido:-Que que tens com esse rio que ficas a o dia inteiro olhando para a correnteza? Tu tens que te arranjar comigo mesma, Raimundo!... J ando cismada com esse namoro com as guas... Disse e sorriu com hipocrisia para Olvia. Mas esta lhe enterra as unhas no brao redondo:-Olha quem vem a, Marta! As duas professorinhas apressam o passo, tomadas de pnico. - um crime deixarem um homem desses vagando pela rua. Vo quase correndo pela ladeira. 162 -Parece que sinto as mos dele me estrangulando, Olvia! Era Chico Treva que vinha vindo. Alto, vermelho, sujo. J tinha cumprido pena pela terceira ou quarta vez, e como vivia no mato e s aparecia no meio dos temporais, fulgurando entre relmpagos, era tido como um feiticeiro ou duende da Vila. A polcia ia busc-lo quase sempre na floresta. No interrogatrio aceitava tudo o que lhe atribuam. Se entrava na igreja, as beatas se afastavam. Chico Treva permanecia isolado, sinistramente majestoso, na clareira que o seu vulto abria entre os fiis, protegido pelo seu prprio mau cheiro, os olhos azuis fixando as imagens. No havia desastre, inundao ou morte em Vila Feliz sem que sua figura no acudisse logo ao pensamento de todos. Quando o caminho apanhou a sobrinha do negociante, fora visto no meio da poeira, a recolher as vsceras da moa. Por causa dele, as famlias fechavam bem as portas, as crianas na cama se cobriam at a cabea. Chico Treva o gnio do mal da redondeza. Que Paquita o receba s vezes e o ponha a trabalhar na horta, ningum compreende. Tambm, na Vila, quem queria relaes com essa espanhola? Que ela faa boa parceria com o monstro. Desde que por ela se matou o fazendeiro, vive isolada na chcara, beira-rio, guardada por ces ferozes. Como fora essa mulher, sobra da revoluo de Espanha, dar em Vila Feliz, ningum explica. Que danara nua na praia para enfeitiar o amante, todos sabiam, pois havia luar, e dois camponeses, de longe, contemplaram, estarrecidos, o prodgio. As recm-casadas da Vila rezavam para que os santos lhes resguardassem os maridos da tentao de Paquita. As duas professorinhas respiraram desafogadas depois que Chico Treva, com o saco s costas, desapareceu no fim da ladeira. -Ele tem mesmo cara de quem est fora da lei, no tem, Marta? Convm prevenir Heleninha. Um susto pode ser fatal. -Ah! tanto melhor, disse Marta dando de ombros. Trocaram olhares maliciosos. Ambas tinham despeito de Heleninha. Olvia, porm, quis dissimular. -Que malvadeza, Marta. Deixa a pobrezinha ter a sua criana. 163 -No fundo, voc tambm no deseja outra coisa, Olvia: que ela no tenha nunca um filho. Ao menos, assim, levaramos essa vantagem. Todo mundo vive a elogi-la. Parece que s existe Helena nesta Vila. No lhe bastou ter agarrado o nico homem interessante que apareceu por aqui? -Mas ela to boa, Marta. No tem culpa, coitada. -O que pior ainda. Odeio aquela carinha de anjo. Pode ficar certa: nossos maridos ainda pensam nela, s casaram conosco porque no havia outro jeito... E agora vem voc querendo que ela ainda ganhe um beb... O desabafo de Marta fizera grande bem a Olvia. Acabara de ouvir da companheira o que h muito sentia e no tinha coragem de dizer. Que se podia falar contra Heleninha seno que a sua perfeio incomoda e a sua bondade desconcerta? Dela s se ouvia dizer bem. Marta, maligna, expande agora o seu despeito, atira a primeira pedra no dolo! E Olvia quem se desabafa, atravs da companheira mais forte, em cujos ombros se reclina, reconhecida. -Que de teu marido, Marta? -Aquele sonso vive na ponte. Olha l ele! Para ali acorriam tambm Jos Diogo e outros melanclicos do lugar. Pouco a pouco a ponte foi se tornando depsito dos desgraados da Vila. Perto de Jos Diogo ningum tocava em Helena. S com Raimundo, marido de Marta, que ele se abria; ou se fechava no mesmo silncio. Esto os dois juntos: -Tomaste j tua beladona? perguntou o farmacutico. -Joguei tudo no rio. Triste coisa ter que recorrer a alcalides para iludir o destino. Mulher serpente mesmo, uma desgraa... Preciso ir embora daqui, morrer... Plulas, plulas ... Oh! por acaso toda a tua farmcia, Raimundo, conseguiu modificar a tua filosofia? -Marta diferente... - o outro lado da mesma mulher, da mesma desgraa. Mudos, ficaram olhando para a correnteza. As guas vivazes rolavam com ligeireza graciosa. Vinham de muito longe, atropelando-se umas nas outras, e fugiam em correria pelo 164 vale afora, brincando sempre. O sol matinal excitava-as, perseguindo-as com mil flechas luminosas de que escapavam aos gritinhos e gluglus, dos quais s ficava a espuma. Parecia a imagem da felicidade despreocupada. Jos Diogo cuspiu em cima... Marta e Olvia vm agora subindo, abraadinhas. De repente, olham para o cu: -Uai! eles nunca passam por aqui... aquele est fora da rota. -Mas, como vai macio!. .. Deve ser bom, Marta, l em cima... -Quatro mil metros, no mnimo!... -Que beleza! Quisera eu estar l! Longe daqui... l no cu!... -Deus me livre. -com certeza esto nos vendo. Vendo Vila Feliz!... -Vendo o qu, Olvia? Quem se lembra de ns c embaixo?. . . Nem ao menos avistam a Vila... Isso aqui uma coisinha -toa. Era de fato uma coisinha -toa, Vila Feliz... -bom dia, Heleninha. Ento! Para quando?... Ela sorri e agradece. Atrs das venezianas tem gente espiando e cochichando. Um espetculo para a Vila a passagem de Helena com o seu ventre se avolumando; dir-se-ia que criana em embrio j pertence Vila.-Meu Deus, que principezinho vai sair dali! exclama uma preta contemplando-a. As mulheres humildes levam-lhe frutas verdes para os caprichos do paladar, as velhas presenteam-na com amuletos propiciatrios e rendas para o enxoval. Helena devia estar radiante com a realizao prxima de seu sonho. E - esquisito! - no estava. Isso que ningum compreendia. Umas senhoras que lhe foram levar sapatinhos de l para o beb estranharam o atraso do enxoval. Outras que a foram visitar levando camisas de cambraia bordadas a mo, notaram que ela mudava de assunto toda vez que se referiam ao 165 esperado. Mais ainda: que no se manifestara to agradecida quanto era de esperar, ela, to delicada sempre. -Gente-, essa moa no tem experincia!... A criana nasce a qualquer hora e o inocente vai ficar nuzinho nesse frio da Vila. -Helena est de fato muito modificada, disse algum. -Ns, mulheres, mudamos de carter com a gravidez, explicou uma entendida. -Nada disso, contestava um senhor. o marido. Aquilo um cavalo. No quer filho, contra a famlia, contra religio. Regozijavam-se todos com os ataques ao agrnomo. Mrio Silvano no era estimado na Vila e parecia no tomar conhecimento dela. Partia cedo no seu Ford para o Aprendizado e s voltava noite. De Vila Feliz s se serviu para arrebatarlhe Helena.-"Helena j nem parece mais nossa", dizia Marta. Jos Diogo levantou-se, afastando-se da roda. Era a sua maneira de protestar. -Vejam como ele est se acabando, observou algum. Pobre homem. Largou as aulas, j nem manda correspondncia para os jornais. A Jos Diogo s lhe dava prazer o que ouvia contra Mrio; no admitia porm que falassem mal de Helena; tambm no gostava que a elogiassem. Unicamente ele podia referir-se a Helena. S de ouvir-lhe o nome, sentia um estremecimento, parava de respirar; e noite, sussurrava-o baixinho, at dormir, como quem se sepulta sob a inscrio da palavra mgica. Era o seu nico consolo, pois contempl-la no podia: os olhos se lhe turvavam, fugia-lhe o cho e vinham-lhe nuseas em seguida, nuseas vergonhosas. s vezes, despertava com uma raiva surda. Vontade de que ela morresse, e ele tambm... e tudo acabasse. Estava pior do que nunca naquele dia. Retirou-se da casa de Marta, foi para a ponte a prosseguir o seu dilogo com as guas. L encontra de novo Raimundo que lhe d conselhos: -Voc no faz mais nada, Z; est pior do que eu; por que no escreve sobre os anes que seguiram para o Rio? Na Vila ningum sabia explicar o que estava havendo com a mulher do agrnomo. Nem parecia a mesma. Fria s vezes, de repente dava-lhe uma aflio, ficava a olhar com aqueles 166 olhos de sonho para alm das pessoas, para alm das distncias. Ainda h pouco chegou uma mocinha casa de Marta e disse que acabou de surpreend-la chorando atrs da vidraa, a morder o leno com impacincia, o olhar cismarento posto longe. -Que teria havido com ela? Egosta aquele marido, metido sempre no Aprendizado! com certeza ignora o que se passa com a companheira. Vai ver que nem sabe o que seja uma mulher, quanto mais uma mulher grvida. -Ns, quando estamos assim, disse uma mulher se lisonjeando, carregamos a centelha divina. E concluiu:-Precisamos ajud-la, coitada. Decidiram ento tomar conta de Helena. Quiseram lev-la ao mdico, ela se recusou; fizeram-lhe quase todo o enxoval, e ela parecia indiferente; escolheram-lhe o nome para a criana, e ela no fez a menor objeo. Helena se deixava levar. -E esse pamonha de marido que nem se mexe? indagava o sobrinho de Olvia. Pensou-se em levar-lhe um padre e ela se recusou a conversar com o vigrio. -Gente, Helena mesmo outra! O que que teria havido? -Ah, mas evidente: Helena est assim porque tem medo. - isso, Olvia! Como que ningum tinha percebido! Pavor. A pobrezinha! com certeza lhe foram dizer que em Vila Feliz a maioria das mulheres tm a bacia estreita, e morrem ao largar o primeiro fruto. isso: medo! Coitadinha... Uma luz de esperana abre passagem no desespero de Jos Diogo. Essa luz ainda irradiava da bola da cartomante. Fechado no quarto, o infeliz deseja como nunca a morte de Mrio. Pois no to perigosa a curva da Grota? A soluo bem que podia vir dali. Duas vezes por dia o homem passa por ela em disparada. Onde, ento, o seu poder fatdico? Jos Diogo se concentra. E, sem o querer, formula o seu desejo: "Tantos caminhes tm rolado por aquele precipcio, tantos corpos se arrebentado nas pedras l embaixo... Ah, uma derrapagem providencial!" "Curva to perigosa-foi sussurrando de si para si-quanta, gente que no devia morrer j tens 167 levado! Por que no matas a Mrio, marido de Helena, um que passa todo dia em disparada a poucos centmetros da perambeira, como que zombando de teu poder... No que eu lhe queira mal, Deus me perdoe, eu sou cristo, mas quero bem a ela, mais inacessvel agora com a semente de seu homem na barriga... Prometo rezar para que a alma dele v para o cu, contanto que Helena venha para mim... Curva da Grota-finalizou tremendo-apenas trinta centmetros de derrapagem... o nico desastre que peo." Terminada a orao, Jos Diogo leva as mos ao rosto e, com o pensamento ainda na Grota onde devia produzir-se a viuvez de Helena, completa, de olhos fechados, uma indicao necessria: "O agrnomo Mrio Silvano passa todos os dias s dezenove e quinze, mais ou menos, conduzindo um Ford meio estragado com as iniciais M.A., quase sempre est de botas e cala de montaria; tem uma cicatriz na testa." Os meses foram passando, mais de cem vezes o agrnomo voltou correndo para a companheira sem que o tenebroso apelo fosse atendido. Sozinha no quarto, Helena mirava-se ao espelho, reparava nas novas linhas de seu corpo, sorria; de repente, cortava aquele enlevo de maternidade prxima com uma gargalhada a que se seguia o pranto perdido. -Leninha-disse-lhe Mrio antes de partir para o servioque h contigo? Quando penso no que fste j quase no te reconheo mais. Pois no est para chegar a criana que querias? No entanto, ests sempre triste. H cinco meses te sinto outra, afastada de mim, estranha, com os olhos de quem acabou de chorar. Queres que fique contigo, queres? Faltarei ao Aprendizado. -No, Mrio, quero que vs sempre ao teu trabalho. bom ter a certeza de que ests fazendo alguma coisa de srio, de verdadeiro. -E a criana que vai nascer no tambm alguma coisa de srio, de verdadeiro? Helena desvia a cabea. Mrio acaricia-lhe os cabelos: -Por que ests chorando? Medo? Fica tranqila, eu te levarei para fora, onde haja mais conforto. Ir contigo a tua tia e um de teus passarinhos. Olha como aquele est dobrando. 168 o que vai cantar na hora de o garoto nascer. Garoto ou garota?.. . -No caoes de mim; deixa-me ficar s. E impeliu-o docemente. -Caoar de ti?... Helena, estou te desconhecendo... Durante quatro anos no falavas noutra coisa seno nessa criana; agora que ela vem vindo, parece que no queres mais saber dela. At nos teus hbitos para comigo ests mudada. No assim que se espera o primeiro filho. A mulher contraiu a fisionomia, teve um estremecimento. Fez meno de que ia dizer alguma coisa, mas conteve-se. Levou as mos ao ventre de um modo to desajeitado e brutal, que parecia querer atir-lo fora. O marido a repreendeu com o olhar:-No assim, Leninha. No assim! Tu te esqueces de que vai fazer mal a ele, l dentro... -Mrio, acho que sou louca. E depois de uma pausa: -No sei por qu, estou com pouca f nessa criana. Parece que no vai nascer... que vir fora do tempo. Ou ento (quase soluando)... que vai nascer uma coisa diferente... Olhou, assustada, para o marido. -Por que falas assim, gritou-lhe este. H de nascer, sim! e direitinho, por que no? -Pra, Mrio! A mulher desatou num pranto perdido. Enxugou as lgrimas, ergueu-se de sbito. -Vai, Mrio... Vai para o teu trabalho... O agrnomo tomou o carro e pisou. Quanto mais tentava decifrar o mistrio de Helena, mais acelerava a velocidade. No sabia ler bem no corao das mulheres. Na curva da Grota, esteve a pique de precipitar-se. Mas a derrapagem no correspondeu aos desejos de Z Diogo. Era assim, direto, amava sua mulher sem procurar compreender-lhe a alma. Passou-lhe pela mente uma hiptese absurda, mas logo a repeliu. Encostou o carro porta do Aprendizado, e foi logo cercado pela meninada que vinha saudar o diretor. Helena deixou-se ficar fechada em casa. Estava vencido o prazo para a criana. Pessoas com ar de mistrio passavam-lhe debaixo da janela, espiando cautelosamente, na expectativa de ouvir choro de criana nova. Apenas a criada sara do 46. 169 Que fora fazer a preta na chcara de Paquita? indagava a populao intrigada. Ento Heleninha mantinha relaes com a espanhola?... com certeza viera dessa influncia m a mudana de seu carter. A tarde foi caindo eesfriando. Os rdios expandiram a AveMaria no espao limpo. Toda a Vila, sensvel poesia fcil, ficou suspensa s notas do canto vesperal. Na rua passava Chico Treva entre duas praas. Helena estava adormecida quando Marta lhe bateu porta. Entrou com espalhafato: -Olha, filhinha, no di, no... Fica tranqila. Bota este amuleto debaixo da combinao, bem em cima da pele, que dentro de poucos dias estars livre, empurrando o carrinho do teu beb. E saiu apressada. A inveja de Marta desaparecia ante o sofrimento visvel da mulher do agrnomo. Houve mesmo certa ternura geral das conhecidas, misturada de piedade, no tanto por ela, a favorita da Vila, quanto pela mulher que ia agora igualar-se s outras no drama do parto, pelo corpo frgil que iria dilacerar-se e sangrar. Desse dia em diante, Vila Feliz compreendeu a razo por que Helena se modificara tanto. Mrio comunicou companheira que devia voltar mais tarde, pois haviam chegado as sementes e novas mquinas. Se houvesse qualquer sinal, mandassem cham-lo logo. Estava certo, entretanto, de que ainda era cedo, teriam tempo de viajar. Notou-a mais encorajada, beijou-a longamente na nuca, com o cuidado de no lhe encostar no ventre. Este lhe parecia sempre de uma flacidez anormal. Mal partira, entrava Paquita sem ser percebida. Fecharam-se as duas no quarto. Bem que a cozinheira suspeitara alguma coisa. No sabia porm que Dona Paquita era parteira. Foi ferver gua por conta prpria. A bela espanhola, com ar misterioso, tomava diversas providncias. Perguntou-lhe a cozinheira se o Dr. Mrio estava avisado. -J mandamos portador. -E a patroa est sofrendo muito? -No. Tudo muy bien, informou Paquita. 170 -Quando vosmec quiser gua, s falar-disse a preta. Aqui est a bacia. Saiu e foi rezar. A "parteira" se fechou novamente no quarto de Helena. Estava se passando qualquer coisa de extraordinrio l dentro: nem Helena gemia, nem a criana chorava. -Que houve? perguntou a preta, ao avistar Paquita. -Nasceu morta. Chorou ento a preta. Nem deixaram que ela visse o anjinho. Do fundo da cozinha, ficou rogando pragas parteira, a culpada. Quando entrou o caixozinho branco, j toda a Vila estava informada do acontecido. No adro, na ponte, nas esquinas, lamentava-se a sorte de Heleninha. Geral a indignao contra o marido:-Pois ento se abandona a companheira num momento destes! Jos Diogo, mal recebera a notcia, encheu-se de esperanas. Se o marido no veio, porque houve algum acidente. Ligou a profecia da cartomante hiptese de que o agrnomo viesse, chispado, na estrada escorregadia para receber o filho. com certeza na curva da Grota, o carro... ah! estava certo disso! Fora eficaz a orao!... com a imaginao a ferver, largou a ponte. Desandou a caminhar. Subiu ladeiras, desceu ruas, cruzou a praa, galgou at o alto da Caixa-d'gua, enveredou pela campina. "Ela agora est livre! Mas foi demais! No precisava ter perdido o filho. Bastava s que o marido se arrebentasse..." A casa de Heleninha enchia-se aos poucos. As amigas ficaram edificadas com a resistncia moral de que dera prova. -No acham que ela devia estar mais triste? perguntou um. Num transe desses! -No, respondeu outra. Precisamos aprender com ela a ser fortes. Heleninha, de fato, no se mostrava abatida. Dir-se-ia pronta a conceber novo filho. Apenas preocupada, mexendo-se muito na cama com uma ligeireza que no parecia de parturiente. Algumas moas se ajoelham, rezam ante o caixozinho cheio de flores. Rezava-se mesmo em todos os cantos. -E o marido? Esse marido no vem! 171 Informam que j haviam seguido mais dois portadores a galope. Receava-se tivesse havido algum desastre. -Coitada de Heleninha! Logo no primeiro filho!... Sem me, com aquela tia paraltica... -Ela se recusa, a mostrar a criana. - natural. Que'adianta mostrar coisa morta?... Olha quem est ali. Paquita, a tranar no meio das outras, como algum da famlia, era uma ofensa sociedade de Vila Feliz. Viam-na com maus olhos. Mas era tal a piedade pelo sofrimento de Helena que as amigas chegaram a tolerar-lhe a presena. Tratada de perto, no parecia to antiptica assim; era at gentil. Por outro lado, a ausncia demorada do marido restitua provisoriamente Helena famlia da cidade. E mesmo Paquita era aceita. Homens graves da localidade, vestidos de preto, foram chegando. Helena, na cama, recebia psames das senhoras.- Valha-te Deus, minha filha! diziam. Admiravam a palidez de Helena, a sua beleza que no descaa. Mas sentiam estar faltando qualquer cousa ali no quarto: aquele ar de natividade, o cheiro de desinfetante, de sangue coagulado, de alfazema. .. O perfume das'flores se ia acumulando na sala. Marta e Olyia, sem que a tivessem visto, diziam que a criana era um amor... Para dezessete horas o enterro. Todos olhavam em vo para a estrada do Aprendizado. Nada do marido. O cemitrio longe e o dia vai escurecer depressa. Era preciso sair. porta j se tinham enfileirado as crianas da Associao de, S. Tarcsio, meninas de vu branco e grinalda, virgens vestidas como Santa Teresinha. Havia um sussurro de respeito, e um geral acabrunhamento. As amigas de Heleninha, modas de remorso, lastimavam-lhe a sorte. Marta e Olvia, em prantos, surgiram porta, carregando o minsculo caixo que mais parecia uma jia reluzindo aos ltimos raios do crepsculo. Alguns parentes remotos de Heleninha vinham atrs, e, em seguida, todo o grosso do 172 acompanhamento. Dobravam os sinos. O coro das virgens entoava o canto. Pobre Helena!... Toda a Vila lhe segue o filhinho morto. S o pai no vem, s o pai ainda no sabe de nada. Leve halo de simpatia pela primeira vez cercou a figura ausente de Mrio Silvano. A espanhola voltou para casa, a preta seguiu com a fita de filha de Maria ao pescoo. Helena ficou s, na casa fechada. Livre, enfim! "Ah, meu Deus, exclamou. Terminou o pesadelo!" O dobre dos sinos levou-a janela. As vozes mais altas do canto ainda lhe chegavam aos ouvidos. A grande fila branca e negra subia e quase dobra- a serra. Toda Vila Feliz estava presente. Helena leva o rosto vidraa e v desaparecer o fantasma do filho. Combve-se e chora. Um choro ambguo que termina em risada nervosa. Quando lhe chegar o marido? S pensa em abra-lo. Sabe que vai soluar muito nos ombros dele. O squito j deve estar chegando no cemitrio. Quantas flores! Como boa. a gente da Vila!... J os sinos cessaram de tocar e se ouve de novo o barulho do rio. Olhou para a colina. Ser possvel que j estejam voltando? Fixou bem a vista. Na sombra da tarde ainda se podia distinguir a multido. No mais agora em marcha hiertica de acompanhamento. Ao invs de prosseguir, a procisso voltava. Mas voltava desmantelada, em desordem.-Ser possvel? Manchas brancas e negras rapidamente se desfazendo. Seria perturbao da vista? Gente gritando e acenando. Vila Feliz inteira voltava correndo. Helena compreendeu. Vinha vindo depressa o castigo. Deu um grito, sentiu-se afundar. Os estilhaos de vidraa na sala da frente fizeram-na acordar. Pedras inmeras choviam-lhe sobre a casa. E logo a seguir, os gritos e assovios. E a vaia geral ganhou a praa. Tudo perto, quase em sua pele. E, ao mesmo tempo, longe e irreal... 173 No adro da igreja algumas famlias apreciavam o espetculo. No meio delas, o parteiro da Vila, o que no conseguira tocar o corpo de Helena, parecia presidir assuada. Alguns populares pulavam de alegria, festejando o sobro moral da mulher do agrnomo. As pedras vinham terrveis, os assovios mais cortantes do que as pedras. -Meu Deus! eu sou culpada do que fiz, mas no fiz mal a ningum, exclamou Helena. Desabasse a casa, mas se algum forar a porta, ela sair pelos fundos e se afogar no rio. Arrastou-se at janela; espiou pela fresta. Quedou-se assistindo sua prpria desgraa. Um senhor de fraque gesticulava enfurecido; mulheres descabeladas uivavam improprios; mais longe, porta do caf, um grupo soltava gargalhadas. Frases esparsas: "Mame, vem dar de mamar ao nenen." "Cad o fiIhinho que estava aqui?" "Gato comeu." "Viva D. Paquita, a grande parteira"-cortavam-lhe a alma. O mdico, de bengalo e charuto na boca, soltava baforadas e gozava o espetculo. As Meneses, o Coronel Firmino, o Juiz de Paz, o dentista, as costureiras da Rua Baixa, todo mundo que at h pouco tinha tanta considerao por Helena, estava ali! Marta e Olvia eram as mais salientes. Helena, ao reconhec-las, deixou-se tombar na cadeira, sem foras. Renovam-se insultos e dichotes sarcsticos. Passa um sujeito carregando um vaso de avenca. O vaso de avenca que a parteira pusera no caixo para fazer lastro. -"Olha o ariano que nasceu, que engraadinho!" -"D chupeta pra nenen no chorar!" E uma rajada de gargalhadas enche a praa. Quando a noite se ia fechando, os ltimos moleques chutavam o caixo e ainda havia gente em frente casa. As virgens j se tinham recolhido, s risadas. Jos Diogo protestou, querendo tomar a defesa de Helena. - o apaixonado dela, gritaram. o pai da avenca! Cai fora, Romeu! - E Jos Diogo avana contra o grupo. Helena pensa no marido. Receia que ele chegue antes que se consume a sua infamao pblica.-Se aparece agora, vai lutar sozinho contra a Vila, pensou. E ser morto. 174 Vindo do escuro da cozinha, um vulto aparece que a deixa aterrada. Recusa-se a acreditar no que os seus olhos viam. A noite de horrores comeava com aquela viso de pesadelo. Parecia a imagem de Chico Treva. O vulto tenta falar-lhe alguma coisa. Helena ouve-lhe as palavras pausadas:-Dona Paquita me mandou aqui, Sinhzinha, para levar vosmec. A mulher cobre o rosto, grita. O vulto se conserva imperturbvel. Chico Treva, agigantado e grave, repete:-Dona Paquita me mandou pra salvar vosmec. A barca j est encostada no fundo do quintal. O ar respeitoso do homem, o tom suave de suas palavras atenua o terror da mulher. Helena tem agora a certeza de que um barco est no fundo do pomar para lhe dar fuga, e que esse barco lhe fora mandado por pessoa amiga. Hesita ainda, fixando o rosto sombrio de Chico Treva. Aceita enfim o seu destino. Ser conduzida por aquele monstro. L fora a populao rugia ainda s portas de sua casa. Helena corre ao quarto, bota uma capa e segue o homem. A luz da lanterna de azeite fora apagada. A canoa comeou a deslizar. O taciturno piloto no dizia palavra, enquanto a mulher, encolhida no fundo da embarcao, soluava em surdina. Rio sem margens, devido escurido da noite. As guas pareciam se estender por toda a terra. E a noite asilando Helena era assim como um interminvel rio em que a paisagem se confundia. Nalguns quintais latiam os ces passagem do barco invisvel. Um tiro se ouviu ao longe. Era com certeza o dono da mina de nquel, velho usurrio, dando a ver aos que se aproximavam que estava sempre alerta. Ou porque as ltimas luzes da Vila Feliz desaparecessem, ou porque o disco da lua j cintilasse, Helena respirou com mais desafogo. Distraiu-se a contemplar as montanhas, os primeiros reflexos da lua na gua. Esqueceu por instantes as tormentas do dia. Como era bela a noite, e grandiosa. As rvores reapareciam mais ntidas, a claridade restirua as margens. Tudo que acontecera mulher foragida parecia agora ter sido com outra Helena. Tinha a sensao de estar descendo 175 um rio encantado, numa noite de sonho... devia ser um prncipe a figura que remava na proa... Mas era Chico Treva, o monstro da Vila! -Meu Deus! Caiu em si, fitou o homem, meio assustada, meio reconhecida, os olhos midos de lgrimas. Queria dizer-lhe alguma palavra, dar-lhe acaso a impresso de que o absolvia de todo o mal que pensava dele. Mas faltou coragem, e o silncio era espesso demais. Olhou ansiosa para a estrada que bordejava o rio. Mrio no devia tardar em seu automvel. O farol o denunciaria. J por duas vezes parecia ter ouvido gritos de algum que chama de longe, como quem pede socorro. Agora, esses gritos chegavam de mais prximo. De que margem, ela no podia precisar. As vozes crescem: "Helena... Helena... Leninha!" Chico Treva fuma impassvel, atento ao deslizar do barco. As bananeiras movimentam as folhas lerdas. Helena se enche de pavor. Ser que ainda h gente escondida nas margens para vai-la de novo, atirar-lhe pedras? -A chcara de Dona Paquita vem por a adiante, informa o barqueiro. -Eu queria encontrar o meu marido, respondeu Helena, tremendo na voz. O farol de seu carro no tarda a aparecer. Os gritos recomearam mais claros: -Helena! Helena! As frases vinham carregadas de um sentido inesperado:-Fica comigo... Eu te salvo... te darei tudo! voz rouca de algum que vinha cansado. Outra vez o grito suplicante:-Helena! Helena!... A mulher tiritava de medo. O eco de seu nome esvaa-se pela capoeira, at desaparecer nos grotes. Tinha pressa em prestar contas ao marido. Julgava-se livre de tudo, e agora esse grito! Nova aflio comeou. Jos Diogo vinha correndo pela escurido como louco. Em vo lhe gritara Raimundo, da ponte, que no fosse atrs da mulher, que mulher era serpente, e como serpente Helena fugira pelas guas. Em vo... Sua figura vinha suja de lama e rasgada de espinhos. Gritava mais alto toda vez que a sombra amada desaparecia nas curvas. 176 Helena a princpio desconheceu a voz que a paixo alterara. Acabou divisando a sombra alta de Jos Diogo, a romper como alucinado a vegetao da margem. Jos Diogo est agora bem perto, quase ao alcance da canoa. Pode falar fugitiva em tom de dilogo. Helena olha para o barqueiro como a lhe pedir proteo. -Fica comigo, Helena, fica... Te farei feliz... Respeitarei a memria de teu marido... Responde, Heleninha, responde! Uma corredeira precipitou a marcha do barco. Jos Diogo foi ficando para trs. Chico Treva continuava a mesma sombra impassvel, o remo suspenso na mo. "Respeitarei a memria de teu marido!..." Helena tem sobressalto. Mrio teria ento desaparecido? T-loiam matado? A voz de Jos Diogo, longnqua, parecia estar se sumindo, com o seu corpo atolado na lama. Mas a fora da clera imprime-lhe ainda alento forte. Houve qualquer mutao na alma do perseguidor. Helena sente na nuca uma corrente desfavorvel, aragem de maldio, num tom diferente. Eram pragas que lhe chegavam agora aos ouvidos. -Vai, peste!... Cadela!... Me de fancaria! Vai-te, impostora! Hei de contar pelos jornais o que fizeste; fugindo com um criminoso, vais viver com um monstro. Some-te, amaldioada! Rugiu outros insultos e foi se distanciando, enquanto o barco avanava. Quando desapareceu, j o silncio reocupara o vale. Helena ofegava em silncio, o corao transido. Um farol irradiou no alto da serra. Desapareceu, tornou a surgir. Chico Treva, a pedido da mulher, encosta o barco praia. Helena salta, rasga o vestido na cerca de arame, posta-se no meio da estrada, espera. Era um caminho que vinha chispado. Decepcionada, deixa-se tombar na relva. Solua baixinho. Olha para Chico Treva sentado no barco e ainda seu nico amparo ali. Outro feixe de luz no alto da Serra irrompe da escurido. Helena se reanima. Momentos depois, os freios rangem perto, enquanto os faris iluminam um vulto inesperado para o agrnomo. 177 Mrio Silvano desce, e sua mulher com ele se abraa aos prantos. Chico Treva viu o homem empurrar a mulher e atir-la ao cho; viu-a erguer-se e gesticular diante do marido imvel; viu-a depois aninhando a cabea nos ombros dele. Nada mais tinha que fazer ali. Desamarrou a barca e seguiu rio abaixo, em direo chcara de Paquita. Ningum dormira aquela noite em Vila Feliz. Ficara a populao at tarde a comentar os desmandos de Helena. As virgens do enterro nem chegaram a mudar de roupa, como se estivessem de prontido para outro acontecimento inaudito. Enlouquecera a pobre Heleninha! dizia-se. H muito vinha com sinais de loucura. O demnio fora escolher a mais pura alma do lugar para desencaminh-la. Simular o parto, organizar a mentira, promover o enterro, renegar o marido, e, coroando tudo, fugir com Chico Treva! Pobrezinha!... O vigrio permitiu que se conservasse aberta a igreja durante a noite. Rezavam as velhas na penumbra. Devia andar solto o tinhoso. Era preciso esconjur-lo antes que escolhesse outras vtimas. Intimamente, receava-se por Marta e Olvia. Satisfeitas a princpio com a danao de Helena, as duas professorinhas enchiam-se agora de remorsos. Quanto a Paquita, acreditava-se que irradiava malefcios. Falava-se em organizar uma caravana, com tochas e o vigrio frente, para expuls-la do municpio. De Jos Diogo adiantavam que se havia suicidado. No dia seguinte, Chico Treva foi detido na floresta. Interrogado, declarou que havia deixado Helena beira da estrada. A pedido de algumas senhoras, a autoridade perguntou com insistncia se havia feito mal a ela. E ele se fechava num mutismo alarmante. Por via de dvidas, recolheram-no priso. Foi intimado a depor o colchoeiro da Rua Baixa, que fornecera paina para o ventre. Quase no funcionou o comrcio da cidade. As pessoas mais sisudas afluram casa do juiz municipal. Por toda parte, grupos parados a fazer comentrios. A respeito do agrnomo, 178 corria tambm que havia sido trucidado por Chico Treva, mas como esse j se achava agarrado, predominou a verso de que Mrio estaria vivo, tendo dado um desfalque no Aprendizado e fugido com a mulher. A populao se aborrecia medida que os acontecimentos iam perdendo as cores sinistras dos primeiros boatos. A polcia interditou a casa do casal. Grupos de curiosos passavam-lhe em frente, espiando com assombro. A casa assumira um ar de mistrio. Mal continha o povo o desejo de ver e examinar a roupa, os objetos, tudo que pertencera ao casal. Algumas senhoras reconheceram as peas do enxoval que elas prprias haviam presenteado infeliz Helena. Procurava-se especialmente o ventre de paina. Murmurava-se que j se achava na casa do juiz para ser fotografado e examinado pelos peritos. Outros diziam que fora reclamado pelo vigrio, uma vez que j lhe havia sido administrado o sacramento da extrema-uno. Raimundo e Jos Diogo largaram a ponte e foram vistos bbedos, a tropear pelas estradas. Gente das imediaes chegava a cavalo para se informar do acontecido. -com Helena?!... Mas logo com Helena?!... Preparava-se o vigrio para benzer a casa. As crianas evitavam passar debaixo de suas janelas. Na escurido das esquinas ou a portas fechadas, os moradores deixavam-se ficar at tarde, em comentrios. Os boatos se contradiziam. Por tcito acordo aceitou-se mais tarde, como verso oficial dos fatos, a que veio, dias depois, na segunda pgina de um matutino carioca, com estes ttulos em negrito: "UM ACONTECIMENTO EM VILA FELIZ Uma senhora da melhor sociedade simula um parto e foge de casa com um monstro. O marido, engenheiro agrnomo, abandona o servio de que era diretor, depois de praticar um desfalque. Trata-se, ao que parece, de antigo lder comunista. Indignao popular. Outros detalhes." 179 Seguiam-se os pormenores: "A herona, tipo de grande beleza, h muito vinha apresentando sinais de desequilbrio mental. O marido, que a espancava freqentemente, revelara-se sempre um homem esquisito e intratvel; eram conhecidas as suas atividades subversivas. Tendo-se suicidado, como tudo leva a crer, ficava a sociedade livre de to perigoso indivduo." Vinham mais adiante referncias ao "tipo asqueroso de Chico Treva" e uma "tal de Paquita, aventureira espanhola"; e, finalmente, informava-se reinar absoluta ordem na Vila, estando aberto rigoroso inqurito. No meio, uma linda fotografia de Helena com um buqu de flores na mo, e outra, da casa do casal. E foi o primeiro fato importante a entrar para a histria de Vila Feliz. Apenas Jos Diogo no queria saber do que ele prprio forjicara. Colou-se de novo, cada vez mais taciturno, ao balastre da ponte. E a, cidadezinha, por alguns dias, conseguiu certa projeo no noticirio federal. Do que muito se orgulhava. To cedo, talvez nunca mais, haveria outro fato de sensao para a conversa das tardes cinzentas. A populao ter que se contentar com as novelas de rdio, resignar-se aos dias montonos que iam vir. A no ser que Jos Diogo se atire da ponte, como se espera. O que no tardar a fazer. Pois cada vez mais se enamora daquelas guas... 180 a maria rosa oliver O PIANO
- RosLIA, gritava Joo de Oliveira. Toquei para fora o homem!... Insolente! Veio dizer que no valia nem quinhentos cruzeiros. -O conserto? respondeu l de cima a voz da mulher. -No. O piano! E ainda saiu rindo... -Tinha graa!... Voc no v que isso jogo! O que ele queria ficar com dado, para depois vend-lo por qualquer preo. assim que essa gente enriquece... Roslia e Sara desceram assustadas. E a famlia acercou-se com respeito do velho mvel como a querer consol-lo do ressentimento deixado pela avaliao mesquinha. -Havemos de vend-lo ainda por bom preo, voc vai ver, anunciou Oliveira, fitando-a com emoo confusa. No se fabrica mais desse tipo. -Bota anncio, que esta casa vai ficar assim de pretendentes, disse Roslia, juntando os dedos da mo. Pena ter a gente que se separar dele. -Ah, um amor de piano! Parece at que s de olhar para ele a gente ouve msica, resumiu Oliveira, acariciando-lhe a caixa de carvalho. -Ento vamos botar anncio, Joo. Custear o enxoval de Sara com a venda; transformar a saleta em quarto para futuro casal,-teriam que dispor dele de qualquer maneira. Trs dias depois o velho piano amanhecera engalanado de flores para o sacrifcio, e a casa preparada para a recepo dos pretendentes. O primeiro candidato a aparecer foi uma senhora acompanhada da filha. Esta, mal avistara o mvel, avanou logo para ele, abriu-o, tentou uma frase no teclado. -Ih, mame, mas est todo estragado... 181 A senhora levantou-se, olhou para as teclas descascadas. Escandalizou-se. Pegou a filha e retirou-se resmungando: -Andar tanto para ver uma porcaria dessas!... No houve tempo de a famlia Oliveira magoar-se, porque mesma porta por onde saram a mulher com a filha chegaram outros pretendentes: uma senhora de idade, cheirando a defunto rico; uma mocinha de culos escuros com a sua pasta de msica; e um judeu ruivo, de roupa sovada. O dilogo entre a velha dama e a mocinha mais parecia um princpio de discusso: -Eu no fao questo, alegava a moa. Vim porque mame me pediu. H de haver, outros venda. O, que queria dizer que j estava batendo na campainha da porta quando a senhora desceu do nibus. Entramos juntas, mas eu cheguei primeiro. A discusso pela conquista do piano lisonjeava os Oliveiras. Entretanto, acharam prudente pr termo ao mal-entendido, oferecendo caf e sorrindo a todos. A moa dirigiu-se em seguida ao piano, que o judeu avaliava de longe com o olhar frio. Entrou, nesse momento, uma senhora conduzindo uma colegial. Sentaram-se desconfiadas. De repente, toda a sala ficou suspensa s notas que a mocinha tirava do teclado. Sons desafinados, metlicos, horrorosos. Era a prova. A recm-chegada fez uma careta, apertou a mo da menina; mostrando-se mais tolerante, a dama perfumada mandava um olhar indulgente para a velha caixa de msica. Os Oliveiras procuravam ler com ansiedade na fisionomia dos outros. O judeu conservava-se impassvel. s vezes, todos se entendiam pelos olhos. Era como o julgamento do piano. A moa continuava a tocar, como se o estivesse pondo em confisso. Falhavam as notas, algumas teclas no existiam, outras se apresentavam descorticadas. Nem as cordas vocais de cantora decrpita ou de velho cardaco soariam com aquele timbre. Quando Doli investiu aos latidos, percebia-se que era o pronunciamento da cachorrinha. E o mal-estar culminou. Havia como que um riso difuso pela sala. Entretanto, ningum estava rindo. A moa parecia agora tocar por maldade, acentuando cacofonias, martelando teclas mortas. Situao aflitiva. 182 -Esse piano tem uma coisa, tentava explicar Joo de Oliveira. muito sensvel, muda muito com a temperatura... A moa largou-o de repente, parou, de p, para repintar os lbios, e tomou a pasta: -Nem sei como o senhor teve coragem de pr anncio para essa carcaa, disse lanando olhar de desdm para Roslia, como se fosse Roslia a carcaa. E saiu. Joo de Oliveira suportava tudo calado. Era como se fossem para si as ofensas ao velho mvel. Sentia-se, todavia, na obrigao de declarar que se tratava de uma relquia de famlia. -No se constri hoje igual, acentuava. Igual no se faz mais... Houve um silncio perfurado logo pela pergunta do judeu, pergunta que fora feita no momento em que mais claudicava a reputao do pobre piano: -Quanto pede por ele? vista do acontecido, Joo de Oliveira receou dizer o que pensava. Baixou o preo que trazia em mente. -Quinze mil cruzeiros, respondeu com timidez. E olhou para todos, a ver o efeito. Ningum riu, ningum disse nada. Mas tinha-se a sensao de hilaridade geral. Foram-se preparando os pretendentes para sair. Era a resposta muda. Oliveira esfriou. Teria dito alguma monstruosidade? S a velha fora delicada: disse que ia pensar. Mas por que aquele ar to piedoso que deixava transparecer o seu verdadeiro juzo sobre o piano? perguntava a si mesmo, Oliveira. Na porta da rua os que desistiram cruzaram com um senhor que queria entrar. -Veio pelo piano? perguntaram. Ih! o senhor vai ter uma... Mas a voz animada de Oliveira interrompeu logo: -Entre! ele est aqui perto. J tem vindo muita gente. Era um homem de meia-idade, cabeleira grisalha e abundante. Abriu a tampa da mquina, examinou-a demoradamenfe. Devia ser professor. No pediu preo, disse que ia pensar, e despediu-se: -Depois conversaremos. . . A casa ficou vazia. Os moradores se entreolharam decepcionados. 183 -Ningum est compreendendo o valor dele, comentou Joo de Oliveira com tristeza. A vend-lo por qualquer preo, prefiro deixar como est. -E o enxoval de Sarita? objetou Roslia. -Farei um emprstimo, -Como? Se teu ordenado no d pra nada? -Adiaremos o casamento. -Mas eles esto apaixonados, Joo! Querem se casar de qualquer jeito... Ouvia-se nesse momento a voz de Sarita gritar do quarto que se casaria apenas com duas combinaes novas, e mais algumas roupinhas indispensveis. -A questo, prosseguia Roslia, que esta casa uma caixa de fsforos. Onde iremos alojar o casal? Teremos que sacrificar de qualquer maneira para dar espao. Nossa Senhora! Todo mundo hoje quer espao, precisa de espao!. -No, no! gritou a filha l de dentro. Deixe quieto o nosso piano. To bonito que ele . -To silencioso, atalhou a me. Tu mesma o abandonaste. Vives na vitrola. A velha abriu a porta do quarto para falar mais de perto filha. Estranhava que ela se pronunciasse dessa maneira. Lanou-lhe o dilema: -Um marido ou um piano? Escolhe. -Ah, um marido, respondeu Sarita com voluptuosa convico. Lgico... E abraando-se ao travesseiro: -O meu maridinho, uai! -Ento!... -Ests tambm contra ele, Roslia? rugiu a voz de Joo de Oliveira. -Ele quem, Joo? -O nosso piano. -Oh, Joo, tu me julgas capaz?!... No dia seguinte, mal chegara do trabalho, Joo de Oliveira foi indagando: -Muita gente hoje, Roslia? 184 -Sim, alguns pedidos de informao pelo telefone e um senhor que veio pessoalmente e ficou olhando muito para ele. E tambm o judeu de ontem. -Disseram alguma coisa? -Nada. -Prometeram? -Tambm no. Mas olharam muito, muito mesmo... -Ah! olharam? com interesse, com admirao? -Isso no sei dizer. -Olharam sim, mame, interveio Sarita. O velho principalmente. S faltava comer com os olhos. Joo de Oliveira comoveu-se. J no fazia questo do preo. Queria apenas que seu piano fosse tratado com certa ateno. Ao menos isso. Podia no valer muito dinheiro, mas merecia considerao especial. Lamentava no estar presente, mas pelo que a filha dissera da atitude respeitosa do velho, sentia-se consolado da m impresso da vspera. Devia ser algum sensvel alma dos velhos mveis... -Deixou endereo, Sarita? No? Ah... mas voltar na certa. E se levantou para rondar a pea antiga. Namorou-a longo tempo. -Meu piano! disse baixinho, correndo-lhe a mo pelo verniz da madeira, como se acariciasse o plo de um animal. Nenhum candidato no dia seguinte. Apenas uma voz de sotaque estrangeiro queria saber se era novo. Roslia respondeu que no, mas era como se o fosse, to conservado estava. -Amanh sbado, pensou Oliveira; com certeza h de vir muita gente. No dia seguinte, desceu de uma limusine um senhor com uma menina. Defrontando com a casinha modesta dos Oliveiras, perdeu a vontade de entrar, e informando-se na porta mesmo da marca e da idade do objeto, tratou de voltar sem querer v-lo. -Muito obrigado. No preciso, respondia s insistncias do dono. Eu pensava que fosse coisa moderna. Passar bem... Joo de Oliveira tomava as dores pelo seu piano. Desde que recebera aquela herana de famlia, guardava-a com cuidado, sem pensar que seria forado, num momento extremo como 185 esse, a abrir mo dele. Ningum, entretanto, queria reconhecer-lhe o valor. Ningum! Mas... e aquele indivduo que apareceu na quarta-feira, e lhe fez tantos elogios arrebatados, disse que era uma maravilha e se recusou a adquiri-lo declarando que teria remorsos de compr-lo por to baixo preo, e que ele Joo, e mais Dona Roslia cometiam um crime abrindo mo de to preciosa coisa? Oliveira no entendeu o que pretendia esse homem. -Estaria zombando ou falando srio? perguntou mulher. -Parece um gaiato, observou a companheira. -Talvez no, Roslia...
Mais depressa que seu marido, perdera Roslia as esperanas. Sua preocupao agora, quando o via entrar, era atenuarlhe o aborrecimento. -Quantos, hoje? -Ningum. Dois telefonemas No deram os nomes mas ficaram de vir, disse-lhe a mulher com voz calma. -E o judeu? -Acaba voltando na certa. Durante dias ficara esquecido. Como quem gosta de ver pessoa amiga perder o trem s pelo prazer de gozar-lhe mais tempo a companhia, assim estava Joo de Oliveira em relao ao seu velho mvel. Sentava-se perto dele, gozava-lhe os ltimos momentos, apreciava-lhe a dignidade do aspecto, confidenciava-lhe coisas. Trs geraes tocaram ali. A quanta gente fez sonhar, fez danar! Tudo passava. O piano ficava. O nico objeto que falava da presena dos antepassados. Meio eterno. Ele e o oratrio. -Vem, Sarita. Aquele trecho de Chopin, v se te recordas. -Ah, papai, impossvel; para se tocar nele uma desgraa. No d mais nada. -No fales assim, sussurrou Roslia. No vs como anda teu pai... Toda vez que o olhar de Sarita pousava sobre ele, transformava-o em cama de casal em que ela se revia abraada ao seu tenente de artilharia. 186 Durante dias e dias no apareceu nenhum pretendente. Apenas, de vez em quando, o telefonema espaado do judeu, como a controlar as ltimas pulsaes de um moribundo. O anncio fora retirado. Roslia fazia sentir ao marido que o casamento era para breve. -Como h de ser, Joo? -Como h de ser o qu, Roslia? -O piano!... -No vou vend-lo mais, gritou Joo decidido. Esses canalhas querem explorar. Prefiro d-lo de graa, mas a algum que o preserve, que saiba o que ele representa. Andava agitado pela sala. Uma expresso nova desenhou-se-lhe no rosto. -Escuta, Roslia; liga para os nossos parentes na Tijuca. Roslia compreendeu, satisfeita, o que o marido queria. Joo de Oliveira acorreu ao telefone. -Pronto! Chame o Messias. J saiu? Ah! a prima?... Olhe, venho oferecer-lhe o nosso piano de presente... Sim, de presente... No estou doido, no... pois ... Justamente!... isso mesmo... No sair da famlia... hein? Ah! sim. Muito pequeno mesmo. Ento mandam buscar depois, no ?... Absolutamente... Oh!... Voltou-se depois para a mulher: -Veja s! Pensou que fosse primeiro de abril. No acreditou. Roslia exultou com a idia. Joo encaminhou-se depois para o velho mvel, como a consult-lo sobre o que viera de fazer. -"Minha conscincia est tranqila", pensou. "Tu no sers rejeitado, ficars na famlia, no mesmo sangue. As filhas de minhas filhas te respeitaro, ainda tocars para elas. Sei que no ficars constrangido na casa do Messias, continuao da nossa..." -Quando viro busc-lo? interrompeu Roslia, disposta j a arrumar o quarto nupcial de Sarita. No dia seguinte, Messias, pelo telefone, pede confirmao aos parentes de Ipanema. Um piano de presente era muito, era demais. Estava perturbado e agradecido. Nem tinha acreditado. 187 -Mas a verdade, Messias. Voc sabe, no ? a nossa casinha uma casca de noz. O piano no pode continuar aqui, e Joo no quer que ele v para mos estranhas. Ficando com vocs, como se estivesse conosco. Pode busc-lo quando quiser, sim? Passaram-se alguns dias. Os carregadores no vieram. O casal Oliveira estranhou o silncio do pessoal da Tijuca. -Houve alguma coisa. Telefona, Roslia. Atendeu a prima. Estava embaraada. Cobravam uma fortuna pelo carreto. -Vocs compreendem... com essa falta de gasolina, no ?... Esperem mais alguns dias, o Messias est providenciando. Estamos contentssimos. S pensamos nele, Roslia... A ltima frase soou falso aos ouvidos da mulher. Ao cabo de uma semana, Joo de Oliveira interpelou o primo pelo telefone: -Quer ou no quer, Messias? Do outro lado da linha chegara a rplica em palavras gaguejadas: - parente, no imaginas como estamos desolados aqui. Ganhamos o presente e no podemos receb-lo. Pedem um dinheiro pelo transporte. E por cima de tudo, ns aqui tambm no temos espao. um desespero essa falta de espao! Somente agora pensamos nisso. Miquita est inconsolvel. -Quer dizer que no fica com ele, no ? -Isto , fico... ou melhor, no fico, mas... Joo de Oliveira desligou secamente. J estava compreendendo. -Est vendo, Roslia! Nem dado querem saber do nosso piano, nem dado! -Que se h de fazer, Joo! Todas as coisas acabam assim... Ficaram tristes os dois. Sarita abriu-se num pranto sufocado. A me amparou-a: -Que , filhinha? No faz mal, havemos de vend-lo por qualquer preo. -Eu quero que ele saia quanto antes, mame. Faltam poucos dias e meu quarto nem est arranjado ainda! No vejo nada para o casamento. S esse piano enjoado para atrapalhar a minha vida, esse piano que ningum quer... 188 -Fala baixo, minha filha, teu pai est ouvindo. - para que oua mesmo, exclamou a moa no ltimo soluo, enxugando os olhos. Joo de Oliveira passou a noite quase em claro a meditar sobre a vida. Reflexes confusas, melanclicas em geral. Saiu cedo. Deixou-se ficar num botequim prximo a conversar com um e outro indivduo. "Que andaria fazendo seu marido por l?" indagava Roslia a si mesma. Joo nunca tivera esse hbito. A casa distava trs quarteires da praia. Dali no era visvel o mar, de que se sentia apenas o cheiro e o barulho. E para alm da avenida litornea ainda havia largo trecho de areia at se alcanarem as guas. Joo de Oliveira entrou acompanhado de um preto e de dois portugueses robustos em camisa de trabalho. Mostrou-lhes logo. Os carregadores acharam que era grande demais. Experimentaram-lhe o peso. Seriam precisos mais trs homens. Roslia e a filha tomaram-se de espanto. A mulher perguntou: -Encontrou comprador? -No, mulher; no h comprador para esse piano. -Presente? -No, mulher; no h mais quem queira receb-lo de presente. -Ento, que que vai fazer, Joo? Que que est fazendo? interrogou Roslia, pressentindo-lhe o gesto. O rosto de Joo de Oliveira endureceu, enquanto seus olhos umedeciam. -Atir-lo ao mar?!... -Sim, mulher. vou atir-lo ao mar... -Ah! isso no, papai. Isso no! Que loucura! exclamou Sarita. Os homens esperavam. -Que coragem, Joo! Que crueldade! No haver outra sada? interveio a mulher. Pense bem. Fica esquisito um piano lanado ao mar... -Que que voc quer, Roslia! No se afundam tantos navios? A objeo do homem fez calar a mulher. E ele se animou. 189 -Pessoal! ordenou aos homens. Carreguem com ele. Vamos! ... Um dos portugueses adiantou-se para dizer humildemente que no podia fazer aquilo. O patro que o desculpasse. DoaIhe na conscincia jogar tamanha coisa ao mar. Seria um crime. -O patro por que no faz um anncio? O piano est ainda perfeito! -Sim, eu que sei! respondeu ironicamente Oliveira. Podem retirar-se. Retiraram-se os homens. Um deles, o preto maltrapilho, concebeu uma coisa enorme: tomar para si. Estava ali, disposio de quem quisesse. Saiu olhando para o mvel, hipnotizado pela idia de poder possu-lo, s para ser dono de alguma coisa-e logo de um objeto de luxo-ele que no era dono de coisa alguma, seno de sua vida. Era sonho que podia ser realidade imediata. Mas para onde lev-lo tambm? E para qu? Nem tinha casa, nem sabia tocar... Roslia encostou-se, chorosa, aos ombros do marido. Joo de Oliveira tinha uma expresso de crueldade no olhar. -Ah, Joo! que deciso horrvel voc tomou! -Mas se ningum o quer, e se ele no pode continuar aqui... -Sim, Joo. Mas a gente sente... Ele sempre nos acompanhou. E fica esquisito, no fica? depois de tantos anos, joglo ao mar!.. . Olhe como est sem saber nada do que vai acontecer. H quase vinte anos ali, naquele canto, sem fazer mal a ningum... -Agora voc que est sentimental, Roslia! A mulher olhou para o marido: -Est bem, Joo: faa o que voc quiser. Na praia do Pinto e na Latolndia agrupam-se casebres miserveis donde partem negrinhos para incurses nos bairros ricos, em bandos maltrapilhos, mas alegres. Assim, fcil encontr-los ora a pedir tosto para sorvete, ora admirando cartazes de cinemas, ora se espojando nas areias do Leblon. 190 Aquele dia o Atlntico amanhecera enfurecido pela ressaca. O piano estava tranqilo como sempre. E imponente na severidade de suas linhas. Faziam-se os aprestos para o saimento. Joo de Oliveira pediu mulher e filha que o despissem das peas que podiam ser aproveitadas. Foram retirados os castiais de bronze. Arrancaram-se depois os pedais e ornatos de metal. Em seguida, a tampa de carvalho. -Eu acho que no se devia tocar nele, opinou Roslia. -Ih, j est to transfigurado! disse Sara. Os moleques que Joo de Oliveira recrutara sem nada dizer famlia ficaram na porta impacientes, espera do aviso. Oliveira mandou que entrassem primeiro os mais fortes. Eram quatro e vinte da tarde quando comeou o saimento. Uma multido de gente abria alas na calada. O piano vinha vindo com certa dificuldade. Alguns curiosos avanavam para v-lo de mais perto. Roslia e a filha ficaram contemplando da varanda de cima, abraadas. Tristes. No tiveram nimo de acompanh-lo. A cozinheira enxugava os olhos com o avental. Ao chegar a procisso esquina da rua transversal, indagaram os moleques: -Para onde? Todos queriam segurar o esquife ao mesmo tempo. E quase tombava. -Para onde? perguntava-se de novo. -Para o mar! gritava Joo de Oliveira num assomo de comandante. E apontava o Atlntico. -Para o mar! para o mar! repetia a meninada, em coro. Da por diante os moleques perderam o respeito. Compreendendo que iam dar sumio a uma coisa respeitvel, tomaram-se de sbita excitao e faziam algazarra. A todo momento tocavam a cachorrinha Doli, que saltava em cima e latia furiosa. Das sacadas apinhadas de gente os moradores se espantavam: -Que ser aquilo, Me do Cu? Um piano!... Ele j vinha voltado para o lado da praia donde soprava o sudoeste. 191 -Saiu do noventa e um! gritou um pretinho informando as famlias. -Oh! da casa de Sara. - da casa de Joo de Oliveira. Um conhecido saiu rua para interpel-lo: -Que foi isso? Ser possvel, Joo? -No nada, no nada! Eu sei o que estou fazendo. No me atrapalhem. -Mas por que no o vendes? -vou vend-lo, sim... ao mar... olha l... ao mar... E afobado, com ar de carrasco, retomava a tarefa, dando ordens. -Mais para a esquerda, pessoal... cuidado, seno ele tomba... fiquem s os mais fortes. Vinha aos baques, exalando gemidos. De vez em quando um moleque metia o brao no labirinto da mquina e corria a mo pelas cordas, provocando-lhe os ltimos estertres. Uma senhora, da sacada, gritou para Joo de Oliveira: -O senhor no o vende, por acaso? -No senhora, no vendo. Dou de graa. Quer?... A senhora enrubesceu, sentiu-se ofendida e entrou logo. Joo de Oliveira, como um louco, oferecia de um modo geral: -No haver por a quem queira um piano? Aceitou-o mais adiante, no quarenta e trs, uma famlia de exilados poloneses. Aceitou, cheia de espanto. -Ento podem ficar de uma vez com ele, gritou Joo de Oliveira. Os poloneses desceram, acercaram-se do velho mvel, hesitantes: -Ns ficaremos com ele... isso no h dvida, mas... nossa casa muito pequena, queramos um prazo. -Ou agora ou nunca! Ele j est na rua. No querem, no ? Pessoal, toca o bonde!... Os moleques se assanharam de novo. E cada vez mais se aproximava do mar. Balanava como barata morta levada por formigas. Joo de Oliveira mal percebia que das portas e janelas de todas as residncias partiam exclamaes confusas. -Mas isto uma loucura! bradava algum de outra sacada. 192 -Loucura, no ? volveu Joo de Oliveira sarcstico, olhando para cima. Ento fica com ele, fica... Mais adiante, ao passar por outras janelas, repetia-se a cena. Todo o mundo achava que era loucura, todo mundo queria; bastava, porm, que o dono o oferecesse de graa, assim queima-roupa, para que todos se descartassem, embaraados. Quem est preparado para receber de supeto um piano? Joo de Oliveira j no dava mais explicaes a ningum. Prosseguia resoluto, acompanhado por um sussurro de vozes e lamentaes. A procisso parou por ordem de algum. Motociclistas da polcia cercaram o velho mvel. Joo de Oliveira dava agora explicaes demoradas. Exigiram-lhe os documentos. Foi a casa busc-los. Achou que eram naturais as exigncias da polcia, devido ao estado de guerra; com relao, porm, ao que estava fazendo, ponderou que era em virtude de deciso tomada em famlia, uma coisa ntima, de que no tinha que dar satisfao a ningum. Estava fazendo uso de um direito: jogar fora o que entendesse. E pondo a mo sobre o seu piano como quem acaricia a testa de um amigo morto, comoveu-se, comeou a discorrer sobre a vida dele: - uma pea antiga, das mais antigas que existem. Tinha sido de seus avs, gente que prestara servio ao Imprio. Ficou a contempl-lo. -bom piano, podem acreditar. Msicos famosos tocaram nele. Diziam que para Chopin no havia igual. Mas que vale isso? Ningum o aprecia mais.. Os tempos esto mudados. Sara, minha filha, vai casar-se, morar comigo. A casa pequena ... Que se pode fazer? Ningum o quer. No h outra soluo. E acenava para o mar. Estava acabrunhado. Os carregadores improvisados impacientavam-se com essas interrupes. Queriam v-lo quanto antes afundar-se nas guas. Carrocinhas de po, entregadores de volumes, estafetas, senhoras e crianas completavam a massa dos acompanhantes. Os policiais examinaram-no por dentro, nada encontraram de grave e, restituindo os papis ao dono, recomendaram-lhe 193 que andasse depressa com aquilo, o trnsito no podia ser perturbado. Formou-se um grupo e um fotgrafo bateu a chapa. Joo de Oliveira saiu ao lado numa pose triste. Acabou impacientando-se tambm com essas paradas que prolongavam os momentos finais do seu piano. Anoiteceu rapidamente. Um guarda observou que depois das dezoito horas no era permitido. S no dia seguinte. E o mar ficou esperando... Dispersaram-se os pretinhos. Seriam gratificados depois. Estranhou-se que no bairro, aquela noite, aparecessem tantos moleques com teclas nas mos, ossos de algum extinto. Ficara o mvel na rua, tal como o deixaram, adernado entre o meio-fio e o asfalto. Posio ridcula. Cercaram-no logo os transeuntes, rapazes e moas do footing, a fazer comentrios. Joo de Oliveira voltou para casa, aborrecido. Algumas amigas de Sara vieram perguntar o que tinha havido. Pela madrugada, Joo de Oliveira e a mulher acordaram ao barulho forte da chuva. Vento e chuva juntando-se ao rugido da ressaca. Acenderam a luz. Entreolharam-se. -Eu estava pensando nele, Roslia... -Eu tambm, Joo... O pobrezinho! Desabrigado, apanhando chuva... com esse frio! -E as guas a entrarem pela mquina, a estragarem tudo. a camura, as cordas... que coisa horrvel, hein, Roslia? -Afinal, foi uma ingratido o que fizemos, Joo. -No quero nem pensar, Roslia... O vento fustigava as frondes que os relmpagos descobriam. Joo de Oliveira adormeceu de novo num sono agitado. Despertou logo em seguida. E comeou a contar mulher que ouvira o prpri repetir tudo o que se havia tocado nele... Mas com muito mais alma!.. . -Uma poro de mos, Roslia... Mos diferentes, de diversas mulheres. As de minha av, as de minha me; as tuas; as de minhas tias, as de Sara. Mais de vinte mos, mais de cem dedos brancos ferindo o teclado. Nunca ouvi msicas to bonitas. Uma coisa sublime, Roslia. Certos acordes as mos mortas tiravam melhor que as vivas. Muitas moas de outras 194 geraes estavam atrs, a ouvir. Perto, nossos parentes se namoravam, pediam-se em casamento. No sei por que, todos olhavam para mim com certo desprezo. De repente, os dedos se retiraram; ouviu-se a Marcha Fnebre; se fechou a si mesmo.. tomou a enxurrada... deslizou para o oceano... eu gritei... mas j era tarde, no me atendeu mais. Parece que partiu ressentido, Roslia!... E me deixou na rua, s, com vontade de soluar. Joo de Oliveira arquejava. O misterioso concerto deixara-o extasiado. E com remorsos. Esperou que a madrugada rompesse. Cessada a chuva, saiu a recrutar de novo os moleques. Desejava agora que tudo se consumasse depressa. O vento agitava a bandeira vermelha do posto e o oceano rumorejava como se fizesse a digesto do temporal da noite. Os meninos compareceram em nmero menor. Havia homens grandes, no meio. Joo de Oliveira, com voz rouca, reassumiu o comando. Na areia, rolou com mais dificuldade. Finalmente o lambeu a lngua comprida das ondas. Algumas famlias, de longe, na calada, assistiam ao espetculo. Era preciso empurr-lo mais, at que a fora da arrebentao se incumbisse de arrast-lo para o fundo. Dois vagalhes enormes se despejaram sem resultado sobre ele; o terceiro f-lo estremecer; o quarto levou-o para sempre. Joo de Oliveira, acabrunhado, permaneceu boquiaberto, em tempo de ser levado tambm. Sentiu um silncio enorme no mar. Ningum percebeu que chorava, tanto as lgrimas no seu rosto borrifado se confundiam com as gotas do mar. Viu Sara de longe reclinar-se nos ombros do tenente. Doli estava ao lado, de focinho suspenso; dormia sempre debaixo daquele piano. Foi bom que Roslia no viesse. Muita gente se juntava depois na praia, a pedir informaes. Que teria havido? Constou a princpio que uma famlia inteira de poloneses se havia afogado; depois, que fora uma criana. Alguns afirmavam que no: era uma senhora que se suicidara, desiludida do amor. S mais tarde se soube que se tratava de um piano. A vizinhana de Joo de Oliveira postara-se janela: -L vem o homem! anunciou algum. 195 Oliveira passou olhando para o cho, cercado de um respeito geral. Entrou em casa. -Ele se foi, Roslia. Dessa vez, definitivamente! -Vai primeiro mudar a tua roupa, Joo. -O noss nunca mais voltar, Roslia!... -Claro que no-, foi para isso mesmo que o atiraste ao mar. -Sabe l se ainda vai dar em alguma praia? lembrou a voz de Sara. -No se pensa mais nele. Acabou. Est acabado. Sara, chegou a vez de arrumarmos teu quarto. Houve uma pausa. Joo de Oliveira prosseguiu ainda na lamentao: -Eu vi as ondas engolirem-no... -Chega, meu marido. Chega!... - ...ele ainda voltou tona duas vezes! -J acabou! No se pensa mais, Joo. -,. .Eu no queria dizer, para no passar por doido..'. todo o mundo agora deu para pensar que sou doido... talvez eu seja o homem mais equilibrado do meu quarteiro... mas, nessa, hora, eu percebi claramente que ele executava a Marcha Fnebre. -Isso foi no teu sonho desta noite, lembrou Roslia. -No, foi ali no mar, agora h pouco, luz do dia... Tu no ouviste tambm, Sara? Depois... depois... uma espumarada horrvel cobriu-o todo. Fez com a cabea um aceno de quem defronta o irremedivel. E ficou conjeturando: -"Deve estar longe a estas horas. Sempre debaixo das guas... Passando por coisas estranhas. Destroos de navios. .. submarinos... peixes. Um mvel que nunca saiu desta sala... Daqui a anos vai dar nalguma ilha. E quando Sara, Roslia e eu estivermos mortos, ele andar ainda recordando as msicas antigas. Em que mar, em que costa?"... Sarita passeava o olhar pela saleta vazia e se detinha no pedao de cho h quase trinta anos ocupado pelo piano. Toda vez que o fazia, as linhas do velho mvel se estiravam e convertiam-se em macia cama de casal. Comeava a perturbar-se com esses devaneios, quando algum bateu porta. 196 Entrou um sujeito com uma ultimao. Havia suspeitas que dentro do afundado se escondesse alguma estao de rdio clandestina, a que seu pai quisesse dar sumio. Que cie comparecesse ao distrito policial para prestar esclarecimentos. Era medida aconselhada pelo estado de guerra, que se podia fazer? Oliveira consumiu o resto do dia no interrogatrio. Voltou tarde. -Que vida, Roslia! disse, caindo desanimado na poltrona. Que vida! No se tem o direito nem de atirar fora o que nosso. Permaneceu calado, sentindo a opresso de tudo. Fez-se um silncio. Meditou algum tempo e falou: -Voc j reparou, Roslia, como a gente custa a se desembaraar das coisas antigas? Como elas agarram? -No s as coisas antigas, ponderou Roslia. Tambm as velhas idias. Doli farejava o antigo local.. Uivou surdamente e dormiu. Tocou de nvo a campainha. Entrou um cavalheiro que tirava papis da pasta. Disse vir da parte da Capitania do Porto. -O senhor Joo de Oliveira? -Sim, sou Joo de Oliveira. -Que que o senhor atirou ao mar esta manh? Oliveira, estupefato: -Mas isto aqui no mais porto, meu senhor. oceano... -Por acaso o senhor pretende me ensinar a diferena? O homem renovou a pergunta e acrescentou-lhe uma advertncia para ajudar a resposta: -Hoje no se pode estar assim dispondo do mar para qualquer coisa. O senhor tinha licena? Oliveira humildemente perguntou se tinha sido mal aquilo que fizera. -Pois o senhor no sabe que estamos em guerra? Que as nossas costas precisam ser protegidas? Que os nazistas no dormem? -Mas foi um simples piano, meu senhor!... -Pouco importa. E teria sido mesmo um piano? O senhor est bem certo disto? 197 -Eu acho que estou, balbuciou inseguro de si mesmo, a olhar para a filha e para a mulher. No foi um piano, Roslia? No foi, Sara? -Onde que ests com a cabea, Joo? exclamou Roslia. Ento no sabes que foi? A dvida do marido surpreendeu a todos. Oliveira ficou cismando. Depois disse: -Eu pensava poder jogar no mar o que entendesse. -No senhor! Era s o que faltava... Ergueu-se como alucinado: -E se eu quiser jogar-me no mar a mim mesmo, posso? -Isso depende, respondeu o homem da Capitania. -Depende de quem? S de mim, ora essa! Eu sou livre. Disponho de minha vida... -Muito menos do que parece. Bem. No estou aqui para discutir tolices. Comparea amanh Capitania do Porto. Treze horas em ponto. Retirou-se. Sarita v entrar o tenente e corre a abra-lo. -Olha onde vai ser o nosso quarto, querido. Ficou bom agora, no , Lus? bom mesmo. -. Ficou bom. E onde vo botar o novo? -O novo?! -Sim; pois no vo comprar outro? Sara e a me entreolharam-se com espanto. -Eu sou louco por piano, confessa-lhe o noivo. Vocs no imaginam como a msica me descansa. Tiro de canho, toque de corneta, vozes de comando... isso acaba arrebentando os ouvidos... j no agento mais! Sara teve um acesso de tosse. Joo de Oliveira, mal cumprimentara o futuro genro, foi caminhando at a porta. Sentia-se sufocado. Precisava respirar a noite. Quem mais surgiria do seio dela a pedir-lhe satisfaes, a fazer novas exigncias? Como poderia supor que um piano, escondido de todo mundo, vivendo vida annima, fosse coisa pblica, protegida pela vigilncia dos outros, pelas leis da cidade!... Para que fora bulir nele? Estava longe agora, viajando milhas ... Longe... A caminho dos mares do Sul... E livre. Mais que ele, que Sara, que Roslia. Quem se sentia 198 abandonado agora era ele, Joo de Oliveira. Ele e sua famlia. O piano, no. Partira para a aventura. Mudara de ambiente. De carter, com certeza... Antes, era de casa, s para a famlia. Agora, j no mais seu piano. Uma coisa solta no mundo. Cheia de vida, de orgulho... Que se move debaixo dos mares. Que ressoa... Que abraada por todas as guas e pode ir para qualquer direo. Para que fora bulir nele? Na sombra do arvoredo, em frente, os negrinhos esperavam gratificao suplementar. Fizeram muita fora aquele dia. Mal se lhes distinguiam na escurido as cabecinhas rapadas. No meio deles, o vulto de algum que no era desconhecido e que, abrindo o porto do jardim, pedia licena para entrar. Joo de Oliveira a custo reconhecera naquele vulto o judeu, mas nada percebera da proposta que ele lhe fazia e em que se falava de um piano. -Um piano!... Que piano?... 199
TATI A GAROTA a ribeiro couto VENDO que era mesmo impossvel, Tati desistiu de pegar o raio de sol estendido no cho. Os dedos feriam a terra inutilmente: o reflexo no tinha espessura. Seu capricho agora era com a gua. Queria ver se retirava ao menos um pedacinho do tanque, mas o lquido suspenso em suas mos vira uma coisa diferente que se desmancha logo, cintilando entre os dedinhos. E na superfcie do tanque no ficava a menor cicatriz!.. a primeira vez que Tati brinca na gua com inteno de agarr-la, de sentir-lhe o mistrio. Fica to absorta, que os apelos "Anda, Tati! Larga isso, menina!", que vm da janela, nem chegam a ser ouvidos. Logo depois, comea a ventar. Mas, com o vento era diferente: Tati j sabia que ele nunca se deixa agarrar nem ver, embora viva sempre em toda parte dando demonstraes de sua presena. Esse vento!... Antes de subir, joga gua em si mesma, apressadamente, borrifando-se no rosto, no vestido, como mulher que se perfuma. Chegando a noite, Manuela atira-se cama, sem responder a algumas perguntas que lhe faz a filha, sempre intrigada com a gua. Debaixo das cobertas, Tati ainda balbucia os ltimos pedidos: um carrinho e um patinho igual ao que viu nas mos de outra criana. -Esse menino que tinha patinho, no sabe, mame? comia cada bombom que s voc vendo!... O papel era uma beleza! Aqui, eu acho que todo mundo come muita bala, tambm... -Dorme, Tati. -Aqui bom. -Dorme. 200 O mar seria visto em toda a sua extenso se no fosse o arranha-cu. Os outros personagens da vida de Tati, as amiguinhas do subrbio, de onde a me se mudara, baralharam-se-lhe naquele momento na memria. Uma poro de crianas sumindo-se na poeira, na neblina, dentro da noite... Quem mais necessitava do sono era a costureira. Exausta, s no dia seguinte trataria de pr em ordem o aposento. O bairro era outra coisa agora, bem diferente de h seis anos atrs, quando costurava para uma famlia rica, j grvida de Tati. O rapaz se casara e partira para a Europa. Para que pensar em coisas tristes?... -Mame esse barulho mar, no ? -. No tenhas medo, no. Dorme... A me se enganou. Tati no estava com medo; estava era louca por que o dia amanhecesse depressa e ela pudesse correr at praia, chegar bem perto das ondas. Enquanto a me dormia, Tati, ainda acordada no quarto escuro, sentia estar num lugar muito diferente, muito longe de tudo. Os trens do subrbio no passavam ali. Ouvia-se tanto e to perto o mar que, na escurido, parecia que o quarto navegava .. Quando, na manh seguinte, a menina abriu os olhos, uma faixa de sol cortava ao meio o corpo da costureira. Tati ficou esperando que ela acordasse. Em vez de despert-la diretamente, comeou a fazer barulho, como se fosse sem querer. As perguntas a fazer-lhe estavam se acumulando na sua impacincia. O corpo de Manuela dividia a cama em duas metades, como uma muralha branca. Tati imaginou que o outro lado seria o melhor; deu uma cambalhota e passou-se para o outro lado. Gostou e riu. Quis repetir o salto e transps novamente a colina de carne no vale da cintura.-Ih! esta mame no acorda. Era grande sua me. Como ela comeasse a despertar, Tati se alvoroou, agarrou-se a seu rosto, aos beijos, cascateando frases e perguntas: -Mame, voc pode ter um filho patinho?... Eu j acordei, j fui at l longe, no fim do corredor... Essa casa engraada. Deixa eu ir ver o mar agora? Logo depois, a figurinha da criana se perdia entre as pernas dos pescadores de arrasto. 201 O bairro tinha agora mais aquela garota. Pediam-lhe cachos de cabelo, mexiam com ela, davam-lhe restos de frutas na quitanda. Duas vezes, a me pensou que ela tivesse sido raptada. Os motoristas do "ponto" levavam-na como mascote. A costureira, a pjincpio, se assustava, depois se habituou. -Olha, se foges para o meio do arrasto, os pescadores um dia te pisam, e te botam no balaio, pensando que s peixe. Tati est ouvindo com ateno. Ser jogada no balaio, de mistura com os peixes!-"E depois, mame?"-"Depois... eles te vendem aos fregueses." A garota, emocionada agora, sente-se vendida. Estava quase a chorar, imaginando o seu destino: cortada, frita ou cozida, explicou-lhe a me.-E servida, depois, nalgum pastelo ou mayonnaise, voc vai ver. Os gritos de dois garotos na calada interrompem-lhe a angstia. Tati desce depressa, aos trambolhes. L de baixo ainda faz uma pergunta:-No vou ser vendida, no! No , mame? Era a hora combinada para uma concentrao de bonecas num love vazio. Chegaram algumas crianas timidamente, cada qual sobraando uma boneca pavorosa. Tati, a mais despachada, ia-as colocando de maneira a que formassem uma grande famlia. As bonecas de pano, pretinhas, se misturavam no terreiro com as brancas, de loua, com as ndias e mulatas de palha de milho. Uma menina, que se conservava longe, agarrando a sua, acabou aderindo. Mas a que ficou solitria, no sexto andar do apartamento, apenas olhava, cheia de inveja. De baixo, as crianas gesticulavam para ela: -Vem brincar tambm, boba! Vem! A ama, quando a mame sara a passeio cidade, tivera ordem de no deixar. A garota estava louca de vontade. Um moleque que apreciava a festa de longe, gargalha: -Olha aquele l, sem cabea! Que gozado!... Era o Gere, guilhotinado o ano passado numa janela. Esse boneco no devia figurar no meio dos outros. Mas Tati votava-lhe estima particular. Sujo, esventrado, arrastado pelos cachorros, tantas vezes encharcado pela chuva e salvo da lata de lixo, Gere vinha tendo quase a mesma idade e era o companheiro inseparvel de Tati. 202 -Espera a, que vou buscar a cabea dele! disse Tati, correndo. No achou a cabea. Na janela do apartamento, a menina solitria exibia uma boneca maravilhosa, que seria a rainha no meio das outras, se descesse. To imvel parecia a menina da janela e bem vestida, que no se distinguia bem qual das duas era a boneca. Tati, ao voltar, explicou que Gere era assim mesmo: de vez em quando, caa-lhe a cabea; as pernas, as tripas, j foram mudadas. -Vocs no esto vendo este brao aqui? Pois foi mame que botou. Mame vai dar agora um beb de verdade. Quando papai chegar, ele vai colar a cabea. -Voc tem pai? -Tenho, uai! Tenho at muitos... As crianas se riram. Tati ficou desconcertada. -A gente tem um pai s, boba! explicou uma lourinha. Tati ficou imaginando que ter mais de um, ter muitos, era at mais vantajoso. Mas as crianas continuaram a rir. Ento, pensou Tati, com certeza era porque s se podia ter um pai... e o dela, nesse caso, devia ser .. quem? O seu Vicente, com certeza, que a levou a Niteri tantas vezes, que lhe compra brinquedos, que a acompanha Feira de Amostras-o melhor lugar que j se viu no mundo... Mas ficou na dvida. Parecia-lhe que a me lhe havia dito, h muito tempo, que o pai tinha viajado-viajado ou morrido, no se lembrava bem. Outros pareciam "pai", mas desapareceram logo, Tati se esqueceu deles. Um, com quem simpatizara, que passeara com ela num domingo, j era pai de outra menina, estava ocupado... Precisava, entretanto, arranjar pai, cada amiguinha tinha o seu, que era visto todo dia saindo cedo e voltando com embrulhos, com certeza de bombons. Ficaria ento sendo o seu Vicente mesmo, nome que lhe acudira assim de momento. -Eu acho que meu pai o seu Vicente... disse sem convico. As crianas sorriram. -Ento voc no sabe quem seu pai?... Que isso?... Apertada pelas perguntas, Tati achou melhor correr para casa. Sua me que devia saber tudo. Ao passar debaixo do 203 arranha-cu, recolheu, maravilhada, uma caixa vazia de bombons atirada l de cima. Pediu me os esclarecimentos. No compreendeu nada, mas deu-se por satisfeita. -... Enfim, teu pai, no sei se voltar, disse-lhe Manuela. Tambm para que ter pai? -As outras usam, mame... -Tua boneca tem pai, tem? Ento!? Tati deixou cair uma cortina sobre esse mistrio. Mas devia ser aquilo mesmo: boneca no precisa ter pai... Tinha me, que era ela, Tati. porta parou uma garotinha sobraando Gere e Carolina, os dois bonecos que ficaram esquecidos no brinquedo. Carolina apresentava uma inchao no brao:-"Acho que foi escorpio que mordeu ela, l no mato, mame!... Eu posso ir na praia?" "Quando nenen nascer, eu levo ele l para brincar comigo. Voc deixa, no deixa, mame? Carolina tambm vai." Uma hora depois Tati voltava em pranto, toda suja de' areia, indignada com um avio que passou baixinho por ela, quase lhe levando a cabea. -Garanto que foi de propsito, mame. Garanto... Eu xinguei ele e ele voltou com mais raiva ainda... Contou ento que ela e a pretinha, quando perceberam o avio voltando, se haviam deitado na areia; pois no que o bicho ainda esvoaou mais baixo, mesmo em cima delas, como um gavio enorme!...-Uma coisa medonha, mame! Horas montonas, depois que todas as amiguinhas seguiram para a escola. Que fazer? Ningum quer brincar. No h ningum para brincar. A filha do tintureiro no se mexe, quase nem fala. com a pretinha Zuli que Tati se arranja. J plantaram feijo e milho na areia. Feijo e milho de verdade. Tati deseja tambm ir para a escola, carregando a maleta cheia de objetos. Alis, a escola tinha menos importncia, o principal era a maleta com os objetos. Fica horas rabiscando porta de entrada, aprendendo sozinha. Comea a conceber uma carta para o beb que ia nascer. Queria dizer-lhe que viesse depressa, o novo bairro era uma maravilha, o mar pertinho mesmo. s vezes, sua maneira, cantava o "Ouviram do Ipiranga", e se imaginava na escola. 204 -Vai chamar mame, disse-lhe uma freguesa ao chegar porta. -No posso. -Uai! Voc to boazinha! Vai. -Voc no v que estou trabalhando! Ficou sria. Depois de algum tempo, levantou para a desconhecida o papel: -V se saiu algum negcio a. A mulher finge ler alto qualquer cousa na folha rabiscada. Tati se levanta, exclama exaltada:-Pois isso mesmo que eu tinha escrito! E, logo depois, subiu ao primeiro andar:-Mame, eu aprendi sozinha a escrever. Sabe como que a gente faz? A gente esfrega bem o lpis no papel, esfrega bem e pronto! Sai logo uma coisa; l isso aqui. A me sorri, olhando para o papel. Depois pergunta:-E esses rabiscos? -Isso o Brasil... A menina tomou-lhe de novo a folha e, deitada no cho, continuou rabiscando:-Mame, acho que tem uma moa chamando voc l embaixo... -Por que no me disse logo? -Me esqueci. Tati s deixava de ser alegre quando dormindo. Mesmo assim, se tocassem nela, a garota sorria. E amanhecia sempre rindo, como o sol. Quando lhe perguntavam por ela, a me respondia:-Sei l! Anda por a pulando... As pessoas da vizinhana assustavam Manuela:-"A senhora ainda perde sua filha. Esses choferes no tm entranhas, os caminhes so malucos!" Que podia ela fazer? No tinha quem tomasse conta da filha. Prend-la, impossvel... Brincava sempre na calada do lado esquerdo do arranhacu. O lado milagroso. Era de l que caam os objetos. Depois que descobriu esse segredo, a menina passava horas ali, na expectativa. Constantemente entravam embrulhos no edifcio. Tati imaginava que l dentro se passava muito bem. Uma espcie de paraso. De vez em quando descia uma nuvem de papis multicores que ela apanhava depressa, maravilhada. Sempre do lado esquerdo. Uma mulher loura, que devia ser uma fada, tinha mania de jogar fora objetos de pouco uso. De propsito j atirara aos ps de Tati uma bonequinha e 205 um vidro vazio de perfume. Certa vez, a garota entrou na casa com um porta-seios amarrado cintura. Tinha-o encontrado no capinzal do outro lado do arranha-cu. Achou esquisito que aquilo houvesse chamado a ateno de todo mundo. De outra feita, apareceu com uma seringa de borracha, mas sua me lhe arrebatou imediatamente das mos o estranho objeto. Tati ficou sem compreender. Sua me era formidvel, mas fazia muita bobagem. Que que tem seringa?... J h muito no cai nada do lado esquerdo. com certeza a fada se mudou. Enquanto espera o vulto de cabeleira loura, joga "amarelinha" com a preta. Avista o Po de Acar e diz pulando na corda:-"Eu vou l um dia." Olhando para o stimo andar:-"O arranha-cu hoje est ruim. Quando eu subir o Po de Acar, vou jogar pedra nos navios que passam embaixo; tem um homem que largou mame e que foi-se embora num navio..." No caa mesmo nenhum brinquedo do arranha-cu. O calo de Tati secava-lhe no corpo e do mar ventava frio. No dia seguinte voltou na esperana de encontrar ainda alguma coisa. Mas no podia olhar para cima, para o apartamento da fada, que a cabea lhe doa. Uma vizinha gritou para Manuela que viesse depressa carregar a criana. Se no queria v-la morta!... A portuguesa da quitanda tapava a cara para no presenciar o esmagamento. -Parece at criana enjeitada... Mas os motoristas faziam a curva com agilidade, os pneumticos cantando, e Tati continuava dormindo no asfalto, quase no meio da rua. Manuela desceu, arrecadou a filha. A menina estava febril, respirava mal. Mudaram-lhe a roupinha, limparam-lhe a cara. Dessa vez, no achou sabor no passeio de nibus. Mal teve tempo de agarrar Carolina no tumulto da sada. Foi levada num turbilho para a cidade. Apearam-na, meteram-na num elevador, tudo num turbilho. Num turbilho foi embrulhada no lenol, deram-lhe injees, arrancaram-lhe as amgdalas. Dias depois, mal pde recordar-se do que lhe sucedera. S se lembrava dos dois brutos de avental que a agarraram, do sangue que saa pela boca e molhava a bacia. No compreendia como que sua me, to poderosa e to boa, houvesse 206 consentido em tamanha estupidez. Ficou ressentida durante dias, soluando s vezes; mas, com os sorvetes sucessivos que a me lhe dava, convenceu-se que ela continuava a ser a mesma. Narrava com orgulho a outras crianas a proeza em que estivera metida. -Voc agora no saia de perto de mim, ouviu? Tati aceitou. com a condio de ganhar mais sorvetes. Seu lugar ficou sendo a janela. Passava horas quietinha l em cima, espiando a vida. Que graa tinha aquilo? Domingo pau! Viu uma onda enorme crescendo para. se arrebentar na praia. -"Mame, chegou agora uma onda do tamanho do arranhacu. Eu pensei que ela fosse levar a nossa casa..." Continuou espiando. No acontecia nada, no passava ningum. De repente, observou:-"Mame, subiu um homem de preto!..." A costureira nada respondia, mais atenta ao rumor ntimo de seus pensamentos do que ao barulho da mquina e voz da filha. O tempo passava. O tdio pesava. At o mar parecia dormir. Tati tambm quase dormia no parapeito. De novo a voz dela:-"Mame, mame! Desceu outro homem de preto..." Fez uma pausa.-"Isso engraado, no ?" TVIanuela, com o pensamento longe. A mquina parou o movimento. A costureira agora se assusta, porque os gritos que vm da janela so fortes.-Mame, mame!... -Que , minha filha? Que foi?... Manuela receava que a menina estivesse a precipitar-se. Entrou atemorizada no aposento.-Mame, perguntou-lhe Tati, baixando a voz, quando que eu vou ficar grande?... -Assustando sua mame!... Da janela, apontando para os horizontes do mar, pedia explicaes: -Pra l, o que que tem? - o mar ainda. -E depois? -Depois, a frica. -E pra l? -Pra l a Tijuca. -No! Eu pergunto: pra l, o que que tem? -Ah! minha filhinha, no sei no, sua me tem mais o que fazer. 207 -E pra l?-insistiu ainda, virando-se para outro lado - o resto do Brasil. Depois a Amrica do 'Norte. com ar de interpelao: -E o mundo mesmo, onde que fica? -Uai, bobinha, o mundo isto tudo!... O que Tati quereria fazer se no estivesse presa era abrir um tnel na areia, brincar de casinha, e depois subir o elevador do arranha-cu para ver melhor o mundo que Manuela lhe vinha explicando. Mas sua me estava ruim aquele dia, proibiu tudo e agora jogou-a na cama. Sem ao, sem sono, comea a imaginar e faz perguntas:-Mame, filho de elefante j sai daquele tamanho? Por que que bicho no fala, hein?... Voc no sabe o Zequinha? Ele moleque mesmo... Outro dia ele quis suspender a minha saia, eu dei um soco nele. Eu tambm tenho muque, no tenho, mame? Quem tem mais muque que eu sei o seu Vicente, mas o muque de Popeye ainda muito maior... O muque de Deus, ento nem se fala, no , mame?... Era o defeito de sua me, refletia Tati: quase no conversa. Quando conversa com gente grande sobre costura e doenas: -S bobagens. Saltou no colo dela. Era quente esse colo. Tati esperava amanhecer para se dirigir ao mar. O mar estava sempre em seu pensamento, diante do olhar ou nos ouvidos. Louca por ele. Respeitava-o como sua me. Ambos eram at parecidos, no sabia bem por qu. Grandes, poderosos e macios, podendo enraivecer de repente, podendo mat-la se quisessem. Misteriosa, sua me era tambm; mas perto dela, como agora, Tati se sentia abrigada, ao passo que o mar era terrvel, oh! terrvel. .. -No brinca muito longe de casa, recomendou-lhe Manuela, quando o sol do dia seguinte clareou a praia. A criana respondeu que tinha pensado num brinquedo muito bom para no ir longe: o de horta. Num canto do terreiro abriu com a pretinha uns buraquinhos, atirou dentro gros de milho e feijo. Uma empregada da lavanderia disse que pegava. Os dias iam passando. -Quando voc for na cidade voc me leva, mame? 208 Delcia era ver as vitrinas. A princpio Tati queria possuir tudo que aparecia nelas. Custara a compreender como que as pessoas no furtavam aquelas maravilhas. Agarrada ao dedo de sua me, ia ouvindo as razes por que no se podia fazer isso. A explicao no a convence, tanto mais que outros mostrurios belssimos de frutos, brinquedos e objetos bonitos vo sucessivamente se oferecendo e provocando. -Eu acho que neste mundo tem tudo, no , mame? Impressionada com uma vitrina de queijos, pergunta qual a rvore que dava aquilo. Alguns manequins, parecendo gente de verdade, a irritavam; tinha vontade de atirar pedra neles. A me se demora nas compras, a garota aproveita as quadras do passeio para jogar amarelinha. Indiferente aos empurres, vai sendo arrastada para longe, pela onda de transeuntes apressados. Meu Deus, em que casa mesmo entrou sua me? Tati j est longe, mais absorta no jogo do que amedrontada. Mas sua me est demorando. De que porta sair Manuela? Sente-se perdida, angustiada, a querer gritar pela salvadora, quando u'a mo aflita a agarra e lhe d um belisco. Viera assustada sua me. A garotinha chora. E como pede entre lgrimas um automvelzinho, a me no sabe se est chorando pelo belisco ou pela falta do brinquedo. A costureira consulta a bolsa. O dinheiro no d. porta de uma casa de pssaros, Manuela no tem foras para arrancar a filha do xtase que a deixara ali boquiaberta. Os canrios cantavam e saltavam. Tati foi logo escolhendo com avidez: -Eu quero aquele, mame; aquele que est mais maduro ... E os peixinhos no aqurio agora!-Ai! que coisa mais linda do mundo, voc um dia me d aquilo, mame? Tati quase perde a respirao diante do aqurio. Mais adiante, entrada da Policlnica, lembra-se de dizer que est sentindo o "cheiro do Dr. Almeida", o que a operou. Aqui, seus olhos se levantam com terror para o rosto de Manuela. Estaria sendo conduzida para algum novo sacrifcio? Ficou caladinha, sua mame prosseguiu, entrou em outras casas, cumprimentou gente, discutiu preos. O perigo passou... Tati respirou. Sua mame sempre desembaraada e corajosa, 209 os homens a olharem para ela e ela firme, sem se perder na floresta da cidade! Era mesmo formidvel sua me! Tati a admirava. As meninas do bairro, s vezes, apostavam quem tinha me mais importante, mais bonita. Foi quando estacionara na calada uma senhora trajada com luxo, que uma das garotas gritou orgulhosa:-"Aquela ali que minha me, olha l!" A mulher impressionava pela riqueza da toilette. As outras meninas olhavam com respeito. Tati ficou a contempl-la, meio triste. De repente, abriu um sorriso, deu um grito:-"Mas quem fez o vestido dela foi mame, ta."-Foi nada! prosa sua!-Foi, sim! Qu v?-Atravessou a avenida e fez a pergunta:-"No foi mame que fez o seu vestido, moa?" A senhora se atrapalhava com a bolsa, o lorgnon, e as luvas.-"No foi mame que fez, moa?" Um nibus foi parando, a senhora embarcou depressa, um tanto perturbada. Tati ainda exclamou atrs do veculo:-"Foi mame, sim, foi mame!" Como a discusso terminasse em briga, Manuela prendeu a garota. Estranhou que ela ficasse quieta tanto tempo e foi ver. Tati se achava diante do espelho, colocando grampos nos cabelos, em atitude de grande dama, pondo-se rouge e fazendo ademanes de estilo. Manuela se ri. Tati, despertando de seu sonho, recebeu um susto, comeou a chorar. Chorou bastante. manha. A vida estava ficando montona. As bonecas esto quebradas, as amiguinhas no aparecem. Ser fome? No. sono. Tati dorme. Desperta algumas horas depois, a ouvir uma conversa esquisita entre sua me e outra mulher. Faz uma pergunta, Manuela responde que mais tarde, quando ela for grande, explicar tudo. J era enorme a quantidade de coisas que Tati iria saber quando ficasse grande. As amas impeliam os bebs nos carrinhos, hora matinal. Tati chegava perto para acarinh-los, mas era repelida por causa das mos sujas. Ento ia brincar com as ondas. De repente, a praia comeou a ficar vazia de crianas. Os carrinhos atravessavam a rua e se recolhiam precipitadamente. 210 Algumas amas que costuravam nos bancos ao lado dos bebs levantavam-se e fugiam. Depois, outras; e, assim, todas se foram. Algum viera anunciar que Febrnio, o "monstro", havia fugido da priso e passeava ali pelas imediaes. A notcia ainda assustou mais devido ao cu que escureceu subitamente, e ao vento que comeava a encapelar o mar. As vidraas batiam, fechando-se. O monstro j devia estar presente por ali, a pegar crianas. ms de agosto O vento sopra L vem Febrnio Corre, gente!... Fechem as janelas Que l vem Febrnio L vem que nem um maluco 'Todo barbado Na frente da ventania Corre, gente!... Tati ficou sozinha, pensando fosse alguma coisa que viesse do mar. Quem pode saber tudo o que vem do mar? Todas as crianas se foram, ela se sentia abandonada, querendo soluar. At as ondas pareciam correr atrs, expulsando-a das guas. Uma criada explicou-lhe:-Febrnio est solto, menina! Depressa pra casa! -Que , minha filha? perguntou Manuela, ao v-la chegar plida de terror. -Febrnio, mame, Febrnio!... Diz que fugiu... Ele o papo!... Deixa eu ficar no seu colo? Um tiquinho s... Manuela carregou-a ao colo, mas quase no podia mais, porque o "outro" no deixava lugar. Um dia, sem que Tati pedisse, todos insistiram para que fosse brincar. Quando voltou, uma senhora que ela mal conhecia dera-lhe merenda com recomendao de que continuasse a brincar. Sempre brincou, ora essa! Por que que aquele dia todo mundo estava fazendo questo? 211 Era o irmo que ia nascer. Ao perceber o que se tratava, assumiu aspecto grave, no quis muita conversa com as companheiras. Enfim, chegara o dia! No matinho do terreno baldio ficou colhendo umas flores para o irmo, espera do aviso. A cegonha estava demorando muito. J tarde foram dizer-lhe que podia vir. Voltou correndo, a respirao cortada. No quarto se discutia a melhor maneira de dar a notcia. -Eu acho que a senhora quem devia explicar, disse uma velha dirigindo-se parteira. -Eu no. No gosto de dar m notcia a ningum. -Olha, decidam depressa que a menina j vem subindo. -Eu no digo. -Nem eu. -Eu acho que a senhora, como tia, quem devia contar. Manuela murmurou com a voz sumida:-Mas preciso dizer com muito jeito. Os passos iam crescendo. -Ih, ela vem vindo!... J est subindo as escadas!... -Como que h de ser, gente? .. Ela vem reclamar o irmo. Como vai ser?... Os passos de Tati eram fortes. Subia com o ramalhete. Achou tudo diferente no quarto. Figuras estranhas, caladas, e um desagradvel cheiro de desinfetante, aquele "cheiro do Dr. Almeida". Reparou bem no teto, nas janelas. Nenhuma abertura. Por onde teria passado a cegonha? Quando virou o rosto para o bero, as mulheres se entreolharam, comovidas. Foi primeiro pelo olhar que ela fez a interrogao muda. E, em seguida: -Cad nenen?... -Fala a senhora em primeiro lugar, insistia algum, baixinho, com a parteira. -Cad nenen?... repetiu menina, deixando cair as flores. Manuela tapou o rosto com o lenol para no assistir cena. -Cad nenen! reclamou ainda, com um crescendo soluante na voz. A pergunta fora feita agora com a vista baixada sobre o bero vazio. Uma senhora levou-a ao canto para explicar: -Escuta, minha filha, no fica triste no. Papai do Cu levou nenen, mas vai trazer outro, ouviu? 212 Para que foram dizer! Tati caiu no pranto. Esbravejou, sacudiu-se no cho onde se espalharam as flores. Xingou Papai do Cu, no admitiu que ningum a tocasse. As mulheres se limitaram a emudecer presenciando o desespero de Tati. Aps alguns momentos, levantou-se grave, a fisionomia desfeita, e se dirigiu me. Sua me quem devia responder. -Cad nenen, mame? Fala de verdade. Manuela apenas beijo-a, sem dizer palavra. A segunda fase do desespero de Tati foi em tom de manha e tinha a forma de uma reivindicao: "eu quero nenen! eu quero nenen! eu quero nenen!" De repente interrompeu o protesto. Encaminhou-se novamente para sua me e, solene, props uma soluo: -Voc podia repetir o nenen, mame. -Posso, meu bem... -Mas pode ser para amanh?... Antes de ela perceber o sorriso de Manuela, ouviu os gritos da pretinha Zuli, anunciando-lhe que as plantas tinham nascido, que viesse ver depressa o milho e o feijo. Desceu como louca as escadas. Viu que o feijo e o milho tinham nascido de verdade. Pegaram! Estavam vivos! Ficou contemplando as hastes tenras brotando da terra. E pulava de alegria. Deu a mo pretinha, e ambas danaram em torno. Durante dias, Manuela j de p, distraa-se a garota acompanhando o desenvolvimento dos vegetais. Entusiasmava-se; saa calada, chamava os transeuntes para ver. Um ingls, que se encaminhava cedo para o servio, deixou-se arrastar pela mozinha dela e teve que entrar. A me disse: -Esses homens no acham graa, minha filha. Eles vo sempre muito ocupados... E essa ventania agora? Manuela indo fechar as vidraas, encontrou Tati e a pretinha agachadas no terreiro. -Suba depressa, menina! -Deixa o vento passar primeiro, mame. -Mas por causa do vento mesmo. -Voc no est vendo que o vento quer quebrar o meu milho!... 213 Tati de ccoras, imvel, segurava as hastes do milho com ambas as mos. A pretinha se incumbia de proteger o feijo. O vento afinal passou, o milho estava salvo. Tati subiu com vontade de lev-lo consigo para que continuasse a crescer junto de sua cama, debaixo dos seus olhos. A costureira teve de trabalhar dobrado para acudir s despesas do parto. As encomendas de vestidos para as festas do fim do ano faziam com que ela fosse mais procurada pela freguesia. Todas tinham pressa. Algumas levavam as filhas vestidas como bonecas. Tati ficava admirando, convidava-as a brincar, a ver o milho. Elas nada respondiam, permaneciam imveis. Tati estava certa de que eram meio bobas. Costurando ou debruada sobre os figurinos, Manuela pouco se lembrava da filha, que lhe parecia algumas vezes um obstculo e que era, agora, como se no existisse. Mas Tati ia vivendo a seu modo. O negcio do irmozinho, to esperado, e que no veio, ficou ainda meio obscuro na sua idia. Ah! se estivesse brincando com ele! Mais outro mistrio aquilo... No era tarde e o aposento entrou na penumbra. Tati se espanta. -O quarto est murchando, mame.-A costureira acendeu as luzes, Tati achou engraada aquela noite prematura. Como era fcil improvisar-se uma noite! Ficou um pouco agitada: -Vamos brincar de dormir, mame? S de pndega!... Seria possvel que sua me recusasse uma ocasio como aquela? Manuela nem responde. "Essa mame no gosta nunca de brincar com a gente." Por que que Tati est chorando agora, to sentida? A culpa foi de Manuela, que soltou uma risada quando a filha lhe apresentou a boneca de barriga grande e lhe informou que "Carolina tambm estava esperando nenen". Pois se estava esperando de verdade, pensou a garota, como que sua me podia duvidar? Tati no gostava se fizesse brincadeira com coisas srias. Aps o parto e apesar das labutas excessivas, voltaram ao corpo de Manuela as formas e linhas habituais. Uma vontade maior de viver, de expandir-se. Dezembro vinha chegando, 214 ia-se entrar num perodo diferente. O vero que se anunciava, as roupas estivais, o Natal, o reveillon, as praias cheias, os primeiros sinais do carnaval prximo,-tudo lhe transmitia uma exaltao que ningum lhe notava no rosto calmo. -Agora, minha filha, hora de dormir. Deitou a criana, cobriu-a. Fora, abria-se uma noite fria e bela, a primeira aps a invernada. Manuela terminou algumas arrumaes no apartamento e foi sentar-se junto mquina de costura. Estava farta de costuras. Viu um barco de pesca atravessar a zona de luar e apagar-se na de sombra. Sua vontade era sair aquela noite de sbado, divertir-se um pouco. Os namorados ressurgiram de novo na praia, depois da temporada de chuva. Parecia terem ficado escondidos na neblina, parados, esperando pelo tempo, at poderem continuar o eterno passeio. Quando estaria a filha em idade de colgio? Manuela s teria alguma liberdade depois que a internasse. Mas a pequerrucha tem apenas seis anos. Criana sempre um embarao. Desfazer-se dela no seria difcil, se a entregasse tia do subrbio. Que fazia o pai? Abandonou a menina, nem mesmo chegou a conhec-la. A costureira pousou o olhar na cama de Tati e sacudiu a cabea, afastando um pensamento sombrio. No, isso no faria... A criana no tinha culpa, entreg-la tia feroz, seria maldade. Nem tia, nem ao juiz de menores. Abriu a bolsa ao acaso, tirou um caderno de notas. Muitos nomes e endereos. Os homens!... com a sua brutalidade, o seu egosmo, a fria de gozar as mulheres e passarem para diante, deixando-as cadas no caminho. Manuela era dessas muitas mulheres desiludidas do amor e que, entretanto, se guardam toda a vida para um homem desconhecido. Esperava sempre o amor, e os anos lhe iam chegando como comboios vazios. Tinham os seus grandes olhos uma luz indireta; luz que no ia buscar as coisas onde elas se achavam, como a dos holofotes; as coisas mesmas que pareciam se vir banhar na claridade deles. Quando caminhava pelas ruas, os homens que acaso a fitavam deixavam-se ficar sob a difuso dessa claridade. Os que no lhe conheciam a 215 voz imaginavam-lhe um timbre veludoso como correspondncia doura desse olhar lento e absorvente de grande amorosa, pelo qual tudo mais dela se acertava,-o busto, o andar, as maneiras. O corpo era delicado at cintura; da para baixo, porm, e medida que se aproximava do cho pelas pernas, ganhava fora, era mais apto a receber as correntes que vinham a terra. A decepo com um homem no a tornara menos amorosa. Apenas se fechava mais, usava maior prudncia antes de dedicar-se a algum. Era enorme o amor disponvel que trazia, mas secreto e cauteloso; no to secreto, porm, que impedisse o transeunte sensvel de pensar ao v-la: ali vai uma mulher que parece transbordar de amor. Aquela noite, enquanto Tati dormia, pensava em sair sem destino pela cidade. Valeria a pena aceitar algum convite? Ficou examinando as propostas, os endereos: Capito Xavier... um belo tipo, pensou, mas com qualquer coisa de estpido, de desagradvel; desses que s apaixonam as mulheres a distncia, perto do enjo; grupo numeroso. Dr. Bastos... este parece um homem fino, mas envaidecido de sua situao social, de sua clnica; no fundo, bem tolo e cheio de preconceitos. Heitor... atleta, rico... um tanto imbecil...- meu Deus, exclamou baixinho, ser que uma pobre mulher no encontra a quem confiar o seu corao?... Antnio... continuou, examinando os endereos.-Ah! esse, sim; aqui est um que eu topava... Se dependesse de mim, ele nunca seria infeliz... Onde andar a essas horas? Que camarado! To sincero, to espontneo... Era capaz de am-lo... passear com ele por esta noite afora, at a madrugada. -Mame, voc gosta de mim? Manuela se assustou. Nem se lembrava de que a filha existia. Que idia de fazer-lhe Tati essa pergunta! -Voc no estava dormindo, minha filha?... -Mas voc gosta de mim? Sua me estava to misteriosa aquela noite! -Dorme, menina. Olha: Carolina j est sonhando. -Mas gosta, no gosta? Tati abraou Carolina e continuou a fingir que dormia. Manuela comeara a despir-se. Sua me era mais bela fora da 216 roupa, notava agora. Mais bela que todas as freguesas que vinham provar vestidos. Sua me era divina... Dela lhe vinha tudo. Quando tiritava de frio, saltava-lhe ao colo e era logo aquele calor! Pena que s gostasse de conversar com gente grande. A menina, deslumbrada, prosseguia na inspeo do corpo que a gerou:-Ah, verdade, antigamente havia uma barriga enorme... com certeza, foi Papai do Cu que levou tambm aquilo... Est a, isso foi bom... No dia de Natal a praa amanheceu vibrante de campainhas, atravessada por dezenas de bicicletas novas, luminosas. Nenhuma criana quis emprestar a sua a Tati. Sentada no banco, olhando com inveja para as que se divertiam, estava indignada com Papai Noel que no lhe trouxera nada. Desde o ano passado guardara essa mgoa. O velho s botava brinquedo para as outras crianas. Resolveu queixar-se sua me, levando pela mo a pretinha Zuli, que tambm no ganhou nada. Na praa, j se tinha acamaradado com outras que ficaram chupando dedo, de longe. Sua me, sendo to poderosa, devia ter conseguido de Papai Noel alguma coisa. Uma freguesa prometera um brinquedo que nunca mais chegava. Mas o ideal de Tati. o que ela desejava mesmo, era uma bicicleta. No a tendo obtido, retirou da gaveta Carolina e Gere e arranjou-se com os dois. Manuela sentiu a solido da filha. Amargurou-se ao v-la brincar com Gere, todo esfrangalhado, como sempre. Levou-a ao alto de Santa Teresa. L em cima, um portugus veio brincar com a menina, enquanto a me contemplava o oceano. Ao descerem do bonde, noitinha, j a criana dormia no colo. Na verdade, quem descia de bonde era s Manuela, porque a filha vinha descendo de bicicleta, uma linda e macia bicicleta, como no havia igual na praa. As outras crianas faziam ala para v-la passar... E Tati passava fazendo vibrar as campainhas com orgulho, um pouco plida, os cachos do cabelo esvoaando... Sentia uma delcia enorme naquela corrida. O bondezinho chegou ao Viaduto, a me teve que acord-la para a baldeao prxima. Foi o nico trecho que Tati viajou de bonde, dormindo logo em seguida para retomar a sua 217 bicicleta macia e velocssima. Zuli, a pretinha, viajava na garupa... Decorreram mais alguns dias. A noite de S. Silvestre estava quase... Nas ruas reinava alegria, tamanho o alvoroo da populao s portas do Ano Novo. Compras, abraos, encomendas, convites, presSa. Parecia certo que desta vez a cidade inteira ia mesmo ficar feliz dentro de poucas horas. As freguesas de Manuela exigiam que ela terminasse depressa os vestidos a fantasia. A costureira trabalhava dobrado, ela mesma adiantando a compra dos aviamentos, escolhendo os figurinos. Tati demorava-se muito no parapeito da janela vendo o mar, vendo a vida. No arranha-cu entravam centenas de embrulhos de encomendas. Que haveria dentro deles? interrogava. Que vontade de abri-los para ver o que tm dentro! Na calada, nos nibus, nos bondes, desfilavam os gigantes, gente que no brincava, ocupada sempre com qualquer coisa que Tati no compreendia e que era um mistrio. As mulheres que passavam na praia pareciam-lhe divindades... Algumas dessas divindades no costumavam pagar as contas. Manuela teve prejuzo. A dona da casa sabia disso. Entretanto, veio declarar costureira que no podia esperar mais, o atraso j era grande: -A senhora compreende, no ? Eu no quero desconfiar de ningum... Longe de mim... Mas os impostos esto cada vez... A senhora sabe... Alm disso, estamos no fim do ano, vem a o reveillon, as minhas filhas precisam se divertir, tudo so despesas... A vida est difcil. Tati, chegando da praia no momento, interveio na conversa das duas mulheres: -Fizemos uma montanha de areia, mame, que s voc vendo... -Espera, minha filha, deixa tua me conversar. - ...E l em cima pusemos, sabe quem? Carolina... -Em todo caso, prosseguiu a proprietria, ainda posso esperar uns trs dias. -Depois, continuava por sua vez Tati, fizemos um buraco que eu acho que vai sair na Europa... -No atrapalha, menina! gritou a costureira, afastando a filha. E virando-se para a proprietria: 218 -Mas a senhora podia deixar que eu levasse ao menos a mquina para terminar algumas costuras. -S se deixar a vitrola, como garantia. A proprietria ficou satisfeita, as filhas teriam vitrola para danar. E Manuela deixou correr uma lgrima. . Como a receberia sua irm, em Deodoro? Comeou a arrumar as tralhas, no se esquecendo de embrulhar alguns mantimentos para os primeiros dias. Telefonou a algumas freguesas pedindo pagamento, mas ou elas no se achavam em casa, ou no podiam pagar. Acabou vendendo, no dia seguinte, uma jia mulher do trreo, para as despesas de carreto e passagem. A jia que Tati tinha pedido "quando ela morresse". Terrvel o estrpito de trens e veculos da noite, ressoando aos ouvidos da criana, relampagueando pela janela aos seus olhos. Tati sentiu que a cidade no acabava mais; S sua me nunca se perdia naquela floresta. Sempre formidvel, sua me!... Mas to silenciosa!... Aconchegou-se bem ao colo dela. Viu passar coisas estranhas pela vidraa. Anncios luminosos. Cinemas borbulhantes. Para onde estaria sendo levada dessa vez? Haver criana no lugar aonde ia? Haver mar? Que lhe estaria reservando sua me? Tati inesperadamente teve a sensao paradisaca de um lugar por onde passara, onde vivera entre delcias. Onde esse lugar, no se lembrava bem... Mas havia estado, l, acordada ou dormindo... Quanto tempo? No era nos subrbios, no era tambm na praia. Parecia-lhe que foi h muitos anos. Talvez no fundo do mar, debaixo das guas... Antes de nascer. Passaram Engenho Novo, Meyer, Piedade, Encantado, Cascadura... Manuela silenciosa, humilhada, fazia conjeturas amargas. Nunca mais voltaria a Copacabana. Da primeira vez perdera l a virgindade, agora j ia ficando a mquina de costura. As freguesas, quela hora, j se estavam preparando para o reveillon, muitas delas vestindo a fantasia que ela, Manuela, fizera com suas mos, sem ter sido paga. E, agora, num carro de segunda classe, a caminho do subrbio, l se ia para a casa de uma irm geniosa, a implorar-lhe favor, levando aquela criana, aquele tramblho! A noite dos subrbios apresentava aquela vez um aspecto diferente, meio pnico. Trens-apinhados, correria, grupos 219 gritando. Algum levante militar? Ou a busca da alegria, a corrida apressada para as festas? Manuela est triste. Tati, irrequieta. A menina descobriu qualquer coisa ou algum no banco do lado esquerdo. A todo momento se levanta, olha e ri.-Toma modos, minha filha! Mas a pequena no se corrige. A me impacienta-se, d-lhe um belisco. Seu pensamento estava muito longe da filha, estava mesmo contra ela. Tati comea a chorar. Menos pelo belisco do que pela hostilidade to estranha que comeava a pressentir na fisionomia de sua me. Como se a sua maior amiga pensasse em abandon-la naquele momento. Tati est mesmo magoada. O carro de segunda classe tem pouca luz. -Voc ruim, mame... -Voc no tem nada que estar olhando assim para essa mulher, repreendeu Manuela. Tati se explica ento entre soluos:- a maminha dela, mame. A maminha dela nasceu no pescoo!... -Fala baixo, que ela ouve. Aquilo no maminha, minha filha, papo... -Como ento que a gente pode mamar ali? Manuela ri-se. Que bola! Ri muito, abraa a filha..Criana! Sente-a pela primeira vez. Que animalzinho feliz, despreocupado-sua filha! To viva! Enchia uma casa, um bairro; poder encher uma cidade inteira. Olhou demoradamente para ela, encarou-a bem, como se fosse pela primeira vez. Tinha cachos, a boca fresca, os olhos grandes. E era linda! Tati! Ainda pode ser tudo na vida. Como que no a descobrira antes? S agora se rendia sem luta filha que a vinha conquistando h tanto tempo, sem esforo. Pega de novo a rir. Esquece tudo. Nem sabe qual o subrbio que passou pela janela. A menina no se espanta mais com o papo da velha. O que a espanta o riso convulsivo de sua me. Est at com medo dela. Os passageiros pensam que a mulher enlouqueceu. Manuela aperta a filha ao peito, beija-a muitas vezes, rindo, chorando... Caram-lhe os embrulhos ao cho. Os cacarecos esto sendo sacolejados. Alguns legumes rolaram, saram pela portinhola. Uma mulher vem entregar-lhe uns paninhos:-Isso no da senhora? 220 Manuela continua rindo, a olhar para a filha, a passar-lhe a mo pela cabea. -Eu adoro voc, minha filha. Vem se aproximando um estafeta do correio com um objeto na mo: -Olha a sua caneca, minha senhora. Manuela nem se lembra de agradecer. Estava-se passando dentro dela um acontecimento enorme. Outros objetos foram sendo entregues pelo pessoal da segunda classe. Sob a bota de um portugus, Carolina est sendo pisada. Boneca infeliz, Carolina... A bota no era brinquedo. Tati d um grito, corre at l, salva Carolina. S agora, vencida pela filha, a me comea a achar-lhe graa nos menores movimentos. E cheia de felicidade, envolve-a de novo no abrao. Quem vem chegando agora, na direo de Manuela, um operrio: -Olha a sua batata, minha senhora. Manuela agarrada com Tati, Tati com Carolina-dormiram as trs, at que a locomotiva apitou para Deodoro. A costureira desce com cuidado, sobraando a filha, Carolina e os embrulhos. Era preciso que a criana no acordasse. Tomou um caminho escuro. O que ia dar casa da irm. Tati abre um pouco os olhos, espia a espessura da noite. Est com medo. -Tem Febrnio, mame?... E adormece de novo. Passava ao longe um grupo com estandarte. Mas o caminho que a costureira trilhava era deserto. -No v arranjar outro filho por esses matos a, moa! gritou-lhe um soldado. Agora hora dos bailes... A mulher caminhava sem sentir cansao. Outro dichote injurioso bateu-lhe apenas no ouvido:-To sozinha, meu bem!... No ia sozinha. Ia com Tati. A menina acordou de novo, ao som de uma cano que a me lhe cantava. As duas se entreolharam sorrindo. A primeira vez que Manuela sorri de fato para a filha. Ouviu-se uma zoeira enorme, ao longe, cortada de bombas e foguetes. 221 O ano virava. 1938. Manuela galgou uma pequena colina. Chegou ao alpendre do bangal da irm. Tudo fechado e de luzes apagadas. No trinco da porta havia um escrito: "Fomos ao baile; pode bater que tem uma velha no fundo, tomando conta." No bateu. A noite de cu alto estava clara. Relanceou a vista pelos longes. De todos os horizontes vinham rumores e reflexos de festa, como se houvesse naquele momento uma tentativa universal de esquecer guerras, perseguies e misrias. O armistcio do Ano-Bom. Manuela se esquece tambm de tudo, as agruras passadas e as que ainda prometiam. Sai a caminhar pelas estradas. Uma vaga de esperana enche seu corao. Tati est vendo o cu. -Aqueles furinhos todos so estrelas, mame? Todos?... Sobre a relva da campina, Manuela comea a danar como louca: - o Ano Novo, Tati, meu passarinho, meu tesouro... Precisamos tambm comemorar... A costureira ergue Tati aos ombros. E, dentro da noite, comemora a entrada do Ano Novo, empunhando sua filha. E continua a danar, carregando-a ao ombro, como um cntaro cheio de vinho. -Daquele lado ainda tem mais estrelas, mame. Olha l... 222
A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE
QUE adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da Central? Madureira longe e a amada s pela madrugada entrar na praa, frente do seu cordo. O que o est torturando a idia de que a presena dela deixar a todos de cabea virada, e ser a hora culminante da noite. Se o negro soubesse que luz sinistra esto destilando seus olhos e deixando escapar como as primeiras fumaas pelas frestas de uma casa onde o incndio apenas comeou!... Todos percebem que ele est desassossegado, que uma paixo o est queimando por dentro. Mas s pelo olhar se pode ler na alma dele, porque, em tudo mais, o preto se conserva misterioso, fechado em sua prpria pele, como numa caixa de bano. Por que no se incorporou ao seu bloco? E por que no est danando? H pouco no passou uma morena que o puxou pelo brao, convidando-o? Era a rapariga do momento, devia t-la seguido... Ah, negro, no deixes a alegria morrer... a imagem da outra que no tira do pensamento, que no lhe deixa ver mais nada. Afinal, a outra no lhe pertence ainda, pertence ao seu cordo; no devia proibi-la de sair. Pois ela j no lhe dera todas as provas? Que tenha um pouco de pacincia: aquele corpo j lhe foi prometido, ser dele mais tarde... Andar na praa assim, todos desconfiam... Quanto mais agora, que esto tocando o seu samba... Est sombrio, inquieto, sem ouvir a sua msica, na obsesso de que a amada pode ser de outrem, se abraar com outro... O negro no tem razo. Os navais no so mais fortes que ele, nem os 223 estivadores... Nem h nenhum to alinhado. E Rosinha gosta dele, se reserva para ele. Ser medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que fica maravilhosa, "rainha da cabea aos ps"? Sua agonia vem da certeza de que impossvel que algum possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. E nem de longe admite que ela queira repartir o amor. O negro fica triste. E est at amedrontado com as ameaas da noite, com essa Praa Onze que cresce numa preamar louca. A Praa transbordava. Dos afluentes que vinham ench-la, eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros que traziam maior caudal de gente. O cu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fuso de centenas de pandeiros, de cucas gemendo e de tamborins metralhando. O negro, indiferente alegria dos outros, estava com o corao batendo, espera. S depois que Rosinha chegasse, comearia o Carnaval. O grito dos clarins lhe produz um estremecimento nos msculos e um estado de nostalgia vaga, de herosmo sem aplicao. Praa Onze, ardente e tenebrosa, haver ponto no Rrasil em que, por esta noite sem fim, haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aqurio reboante e multicor em que as casas, as pontes, as rvores, os postes parecem tremer e danar em conivncia com as criaturas, e a convite de um Deus obscuro que convocou a todos pela voz desse clarim de fim do mundo?... A Praa inteira est cantando, tremendo. O corpo de Rosinha no tardaria a boiar sobre ela como uma ptala. O povo d passagem aos blocos que abrem esteiras na multido, entre apertos e gritos. -Isso no assim bea, Jernimo! Cuidado com essa a! virgem. .. Rompem novos cantos. Os "Destemidos de Quintino", os "Endiabrados de Ramos" esto desfilando. H correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mes, as crianas se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E pela ondulao dessas flmulas que os que no podem se aproximar deduzem os movimentos das porta-estandartes. 224 No se v o corpo delas, v-se-lhes o ritmo dos passos no pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, to fiel a imagem delas na agitao das bandeiras. -Oh, aquela l, que colosso!... pena no se poder v-la; mas mulata, te garanto... -Ih, como deve estar danando aquela do outro lado!... Dezoito anos com certeza... Coxas firmes... Meio maluca... -A que est empunhando o estandarte que vem vindo a que deve ser do outro mundo. Preta com certeza... Veja s como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela... -Pelo frenesi, a gente conhece logo. Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam, paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam... -Imagino como esto tremelicando os seios daquela, l longe; aquela diaba deve estar suando... ta gostosura de raa! -Cala a boca, Jernimo... Voc acaba apanhando... Os cordes se entrecruzam, baralham-se os cantos. Vem crescendo agora um baticum medonho de tambores. Um bloco formidvel se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafricos do estandarte que est entrando pelo lado da Praa da Repblica. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situao de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se o canto do seu cordo. A barulheira grande. Algumas notas so do hino... Sente um arrepio. Ela vir com aquele vestido? Se entristece mais, medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glria, entre alas do povo. Se quiser agora sair daquele lugar, j no poder mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuca prxima ressoa-lhe fundo no corao.-Cuca de mau agouro, vai roncar no inferno... Ser ela, meu Deus!... O negro est tremendo. Mas no pode ser ela. Rosinha, quando aparece, ningum resiste, um alvoroo, uma admirao geral. . . No v que assim. . . At o ar fica diferente. E o estandarte que vem vindo de veludo azul, tem a imagem de So Miguel entre estrelas e as insgnias do cordo. Ainda no o bloco de Madureira. - -. O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim. Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na 225 oficina do Engenho de Dentro, se sentir leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntarem por que no apareceu, dir que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Est mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem... Se Rosinha desobedecer e vier Praa, no faz mal. Est tambm disposto a no se importar... Nem indagar se ela fez sucesso, se algum mais se apaixonou por ela, se o Geraldo continuou com aquelas atenes, aquele safado. Amanh, no trabalho, recomear a vida, ser livre novamente. Rosinha que venha procur-lo depois. Ele homem e forte. O que vale no homem a vontade. Alm disso, uma noite corre depressa. Enfiar a cabea debaixo do travesseiro e a desgraa passar. Apelar para o sono. J est at com vontade de dormir. Entretanto, no seria mal que casse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir frente do cordo... Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casas, param os bondes e trazem uma desmoralizao geral. No fundo est at com dio do Carnaval... Perto, esto tocando um samba de fazer danar as pedras. Todos se mexem. S quem est imvel ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam rente, cheias de dengue; sorriem, dizem palavras. Hoje ele no topa. Se sente mesmo envergonhado de estar to diferente. Nunca foi assim. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi de certo tempo para c que uma coisa profunda e estranha comeou a bulir e crescer dentro de seu peito, uma influncia m que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se esta tivesse alguma culpa. Rosinha no tem culpa. Que culpa tem sua namorada?-essa que a verdade. E est sofrendo, o preto. Os felizes esto se divertindo. Era prefervel ser como os outros, qualquer dos outros a quem a morena poder pertencer ainda, do que ser algum como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de t-la, por maior que seja, no to grande como o medo de perd-la. O negro suspira e sente uma raiva surda do Geraldo, o safado. Era este, pelos seus clculos, 226 quem estaria mais prximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era o Armandinho, mas esse era direito; seu amigo, de fato, incapaz de tra-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicvel pelo Armandinho. Suas pernas o vo levando agora sem direo. No se acha a caminho de casa, nem se sente completamente na Praa. Alguns trechos de sambas e marchas lhe chegam aos ouvidos, pousam-lhe na alma: O nosso amor Foi uma chama... Agora cinza, Tudo acabado E nada mais... Tudo acabado, tudo tristeza, caramba!... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraas. Nunca viu tanta dor de corno. No nasceu para isso, nem tem vocao para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que no est danando como os outros? O negro est hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira capaz de no vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetculo a distncia, e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando:-"No chegue muito perto, minha filha, que eles avanam... "-A mocinha loura pergunta ento ao secretrio da Legao se h perigo:-"Mas eles so ferozes?"-"No, senhorita, pode aproximar-se vontade, os negros so mansos."-A baiana dos acarajs se ofendeu e resmunga desaforos:-"Nis que temo medo de vancs, seu cara de no sei que diga; nis no bicho, 'gente!. Passa rente aos olhos da miss umrtorso magnfico de bano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretrio, tremendo na voz:-"Eu tinha vontade de danar com um... posso?"-"You are crazij, Amy!.. ."-exclama-lhe a velha, escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praa, uma correria e comeo de pnico. Ouvem-se apitos. As portas de ao descem com fragor. As canes das Escolas de Samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espao 227 poeirento. A inglesa velha est afobada, puxa a famlia, entra por uma porta semicerrada. -Mataram uma moa! A notcia, que viera da esquina da Rua Santana, circulou depois em torno da .Escola Benjamim Constant, corria agora por todos os lados alarmando as mes. -Mataram uma moa! - comentava-se dentro dos bares.-Mataram, sim, mataram uma moa!... -Que maldade matarem uma moa assim, num dia de alegria! Ser possvel?... -Mas mataram, sim senhora, garanto que mataram!... -Como o tipo dela? O senhor viu? -Me disseram que morena, de uns dezenove anos, por a... -Morena? Dezenove anos!... Ai, meu Deus! capaz de ser a minha filha!... Diga depressa como o resto do tipo dela... Outra senhora cheia de pressentimentos se aproxima do informante: -O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?... E tinha uma cicatriz? Ai! se tinha, no me diga mais nada... no me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!... Nenucha! Nenucha! Cad Nenucha?... As mes todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multido, varam os cordes, gritam por elas. Os noivos so ferozes, os namorados prometem sempre mat-las. A animao da Praa atravessada agora pelo grito das mes aflitas. A me de Nenucha, porm, a primeira desgrenhada que se levantou, j est de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecaes: -"Laurinha, eu bem te disse que no viesses, o malvado furou que te matava. Virgem Me, mataram minha filha... Eu sei... Eu nem quero ver." A me de Nenucha transfere o seu desespero para a me de Laurinha e se acalma. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez me de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operria de fbrica. A fera tinha sido presa. 228 Distante do tumulto mortfero, as outras mes que j haviam arrecadado as filhas seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas.-"Mariazinha, que susto tua me passou! No vai l mais no, ouviu? melhor irmos embora, teu namorado est rondando..." Outras mes, cheias de maus pressgios, partem ainda procura das filhas. Uma senhora que recebia a corte de um portugus debaixo do coreto, ao ouvir a notcia, larga-se aos berros, ainda toda embrulhada em serpentinas, procura de sua Odete. Era Odete, com certeza... Nem tinha dvidas. . . Dava encontros, punha a mo na cabea, corria. O povo achava graa imaginando fosse alguma farsante bbeda. Odete j devia estar numa poa de sangue, esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro... Dizia sempre que ela havia de ser sua. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinha de sua Odete... Aqueles seios!... Bem no queria, oh! que fossem to grandes. Odete tambm no queria, j estava amedrontada. A me corria e soluava, perguntando a todos onde se achava a filha morta. Era Odete, sim, tinha quase certeza! Caminhava como uma sonmbula. Falava sozinha, soltando lamentaes. Onde que Odete estaria cada? E no tirava do pensamento que a desgraa foi por causa dos seios da mocinha... Quem no estava vendo? Ela mesma, como me, reconhecia que aqueles seios chamavam demais a ateno. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. At os passageiros dos bondes cheios se viravam para aprecilos, quando Odete parava na calada. Odete a princpio, coitada, to inexperiente, se sentia faceira com eles... Depois, cresceram mais do que se esperava, e ela prpria teve medo. J produziam escndalo... Fora o demnio que tomara conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero: a pobrezinha mal podia atravessar a rua, sentia-se perseguida pelos homens. E no eram dois nem trs que olhavam, no: da porta dos cafs, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito sriazinha, a sua Odete. . . Que gente mal-educada... 229 Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?... Foi pior. "Ah, meu Deus, haver me que possa dormir tranqila vendo os seios da filha crescerem assim dessa maneira?..." Quando Odete caminhava que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistrio. Da o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre apareciam primeiro e na frente, como a proa dos navios'... A mulher tremia e soluava. Ah! Odete no tem culpa. Foram os seios, foram... Tanto desejava lev-la para longe desses brutos. Agora, l vai como louca, procura do corpo da filha. Caminha e v crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. D um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. J outras mes vinham de volta, trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mos. Deram-lhe ter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter sado de um banho de resignao. Calma. Como se tivesse se conformado com tudo o que acontecera. Comea ento a declamar a histria da filha com o criminoso: conheceram-se num banho fantasia, na praia de Ramos; ele parecia distinto a princpio, tinha emprego, dava presentes. Depois... o malvado comeou a ameaar a pobrezinha, a fazer-lhe exigncias. No queria que fosse aos bailes, que usasse blusa de malha. Dizia que ela remexia demais as cadeiras quando caminhava. Proibiu-lhe trazer flor na cabea, conversar com os amiguinhos. -Mas a senhora tem certeza de que foi sua filha? interrompeu um mascarado. -Se j estou vendo o cadver!... Ah, meu Deus, que dor! No! No! Eu quero contar a histria dela. Isso me consola... Fez uma pausa. Recomeou depois, mais pattica: -Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina... Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela... Me ajudava tanto. Um sujeito, vestido de Hail Selassi, escutava comovido. Pouco a pouco, a pobre senhora foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, alm de um Mefistfeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus servios. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparies 230 do reino do pesadelo. Fixou-os de olhos esbugalhados, deu um grito de horror. Eles compreenderam, tiraram as mscaras. De dentro das mscaras surgiram fisionomias cheias de compaixo, que se voltavam para ela, querendo consol-la. Algum disse que a vtima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordo. A mulher no acreditava. Era intil iludi-la. L fora, um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa: Cad Maria Rosa Tipo acabado de mulher fatal? E anunciava que ela tinha como sinal Uma cicatriz, Dois olhos muito grandes, Uma boca e um nariz. A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabea. Um mascarado tirou a mantilha da companheira, dobrou-a, e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que no tocassem nela. Os olhos no estavam bem fechados. Pediram silncio, como se fosse possvel impor silncio quela Praa barulhenta. A ltima das mes aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadver, solta um grito de alegria: -Ah, eu pensava que fosse a Raimunda! Graas a Deus que no foi com minha filha! Escapaste, Raimunda! Saiu satisfeita. Alguns malandros, de cavaquinho nas mos, foram se afastando, meio desajeitados. Um deles dava opinio: -Dor eu no topo, franqueza.. Sou contra o sofrimento. Tentaram pedir silncio novamente. Uma rapariga comentava, enxugando as lgrimas: -S se voc visse, Bentinha, quanto mais a faca enterrava, mais a mulher sorria... Morrer assim nunca se viu... O crime do negro abriu uma clareira silenciosa no meio, do povo. Ficaram todos estarrecidos de espanto vendo Rosinha fechar os olhos. O preto ajoelhado bebia-lhe mudamente o ltimo sorriso, e inclinava a cabea de um lado para outro 231 como se estivesse contemplando uma criana. Uma Escola de Samba repontava no Mangue. Ainda se ouviam aclamaes turma da Mangueira. Quando o canto foi se aproximando, a mulata parecia que ia levantar-se. E estava sorrindo como se fosse viva, como se estivesse ouvindo as palavras que o assassino agora lhe sussurra baixinho aos ouvidos. O negro no tira os olhos da vtima. Ela parecia sorrir; os curiosos que queriam chorar. A qualquer momento ela poderia se erguer para danar. Nunca se viu defunto to vvo. Estavam esperando esse milagre. Ouvia-se uma cano que parece ter falado ao criminoso: Quem quebrou meu violo de estimao? Foi ela. . Ainda apareceram algumas mes retardatrias rondando de longe a morta. A morta no tinha me nem parentes, s tinha o prprio assassino para chor-la. ele quem lhe acaricia os cabelos, lhe faz uma confidencia demorada, a chama pelo nome: -Est na hora, Rosinha... Levanta, meu bem... o "Lira do Amor" que vem chegando... Rosinha, voc no me atende! Agora no hora de dormir... Depressa, que ns estamos perdendo... O que que foi? Voc caiu? Como foi?... Fui eu? Eu?... Eu, no! Rosinha.,. Ele dobra os joelhos para beij-la. Os que no queriam se comover foram se retirando. O assassino j no sabe bem onde est. Vai sendo levado agora para um destino que lhe indiferente. ainda a voz da mesma cano que lhe fala alguma coisa ao desespero: Quem fez do meu corao seu barraco? Foi ela... Que ningum o incomode agora. Larguem os seus braos. Rosinha est dormindo... No acordem Rosinha. No preciso segur-lo, que ele no est bbedo... O cu baixou, se abriu... Esse temporal assim bom, porque Rosinha no sai. 232 Tenham pacincia... Largar Rosinha ali, ele no larga no... No! E esses tambores? Uii que ventania... guerra... ele vai se espalhar... Por que esto malhando em sua cabea?... Na bigorna do Engenho de Dentro assim... Se afastem que ele est lutando por ela. .. Ele bamba. .. No se massacra um operrio dessa maneira. .. Esto atrapalhando o seu caminho para Rosinha... Se apitam assim, acordam ela... Ela j no est mais presente... Deslizando no ter.. . Deixem ele passar... Os outros fiquem no cho... Fiquem por a... Ele vai tirar Rosinha da cama... Ela est dormindo, Rosinha ... Fugir com ela, para o fundo do pas... Abra-la no alto de uma colina... 233
APNDICE -conto publicado na revista Esttica (direo de Prudente de Morais, neto e Srgio Buarque de Hollanda), janeiro-maro de 1925, Rio, pgs. 167-184.) O RATO, O GUARDA-CIVIL E O TRANSATLNTICO para o alvaro moreyra ALGUMA cousa segredavam-se quela hora o cais e o transatlntico recm-chegado. Estavam atracados. Quase deserta, a praa inunda-se de um sol tal que debaixo dele, guardando o molde dos ps transeuntes, o asfalto se faz dcil. Que sol! E que fazem as rvores que no intercedem a favor da gente? Apenas algumas, de poucos recursos vegetais, deixam cair no cho, j agora um cautchu elstico, o nanquim desaproveitado de sua sombra. So ossudas e verticais, como mulheres magras que nunca se casaram. O paquete viera de atravessar o Atlntico, mas no dava mostras de cansao. Era um colosso. E o guarda-civil, seu admirador principal, ficara a contempl-lo a respeitosa distncia. Dele se desprendiam acordes de orquestra, como se lhe fosse musical a fumaa das chamins. O monstro havia entrado alta noite em silncio e todo iluminado; desde a madrugada conservava-se assim em intimidade com o cais. Passageiros de binculo olhavam do convs para o Brasil e recebiam de chfre nas retinas a agresso das cordilheiras. Um jovem esteta alemo, negociante de motores, largara o chope e viera ao convs para fazer o diagnstico: "Cubismo 235 nas montanhas, pontilhismo no mar e arrivismo na cidade. Natureza virgem, imprevista, brbara, etc., etc.... Populao gesticulante. Pigmento vrio. Sol. Material para teorias estticas. Este pas precisa de maquinismos e de filosofias. Przf." Suspenso o flerte de bordo, seguiam-se as exclamaes em diversos idiomas: X:-Charmant pays!... Y:-Dio mio, como e bello!... X:-What a good nature!... Z:-Wunderbar H:-Caramba! Que hermozo! Es otra vez Andalucia... Todos:-Oh\ oh! ohhh... Um surdo-mudo, que s tomou parte na ltima exclamao, impossibilitado de explicar o seu entusiasmo, atirou-se ao mar. No sabendo se Brasil se escrevia com s ou z, um ingls escrupuloso sentiu-se incomodado e no quis desembarcar. Havia festa. O mundo inteiro uma festa! J o guarda anda desconfiado disso. Sua imaginao andou para trs no tempo e evocou a catedral parecida com aquilo, em que costumava entrar na infncia para rezar. Ele moreno, ar infantil, olhos mais sonhadores do que vigilantes tem a preguia no corpo, mas brioso de nimo. No fundo, repele a farda e prefere, por exemplo, ir-se embora naquele navio. Quando no est de servio, l romances de engraxate e de estradas de ferro, dentro dos quais vive mais que na vida. com a emoo da chegada, a bronquite que grassava na 3.a classe comea a fazer um grande barulho, semelhante ao protesto dos colegiais nos internatos. O paquete de uma s vez trazia um mundo de cousas, tanta cousa junta que s a carga dessa viagem dava para despersonalizar o Brasil inteiro. O casco do navio estava impregnado do universo! ( meu pas, cada vez que toca em teu litoral um transatlntico, sinto que estremeces como o corpo virgem s mos do sedutor. Dia vir em que h de ser um s cais febril a tua infinita costa!) Cais e transatlntico continuavam atracados confidenciando-se. Os passageiros aproveitavam o idlio para descer, e o navio, 236 que podia perfeitamente interromper aquele desembarque e partir pelo oceano fora, deixava-se ficar, no se importava... Como soltasse gua pelos orifcios competentes, parecia ter arrebentado alguma veia. Mas o guarda no receou pela sorte dele, porque j notara essa diurese marinha em outros companheiros, transatlnticos daquele tamanho quase. - pena-refletiu-nenhum fica... Deixam depois o cais e vo-se embora... So todos assim. Fazem com o cais o que fez Sebastiana comigo... Sebastiana!... De uma rua que d na praa eis que desemboca um grupo em rixa. A lei estava violada. O policial interveio, providenciou e restabelecida a ordem inefvel, voltou a seu posto para enamorar-se do transatlntico. -Sim, senhor, que colosso!... E to mansinho! Mas dizem que no mar alto ele feroz!... Um dia embarco tambm... Ele observava admirado as criaturas que desembarcavam. Homens de negcio, mulheres complicadas, americanos avermelhados, turistas, gente difcil que a nave arrebanha pelos portos deste vasto mundo. Depois, imigrantes famintos, cftens vorazes, e anarquistas melanclicos. O navio paternalmente deixava a todos sair. Ao lado, diante de umas malas de cabine, uma francesa sorria, achando fcil a vida. Sorria para todos e para tudo, como faz h muitos sculos. E o guarda tambm sorria para ela, enquanto um estivador musculoso olhava com fria para o pomernia algodoado que ela acariciava nas mos sem anis. -Um dia embarco tambm... Num grupo destacou-se um senhor de incontestvel importncia que parou para ser fotografado, sorriu e foi fotografado com flores na mo e cavalheiros atenciosos ao lado. -Aquele est bom para presidente, opinou o guarda. Por ltimo as malas... Dentro delas os produtos, a moda, as idias, cousas novas para o pas novo. Vinham ulceradas de letreiros indecifrveis. Dormia l dentro o mistrio. Contratos escandalosos, inventos, emprstimos, cartas de amor, planos de guerra, livros anarquistas, jias falsas e de vez em quando um cadver de milionrio ou de mulher fatal-os reputados maiores segredos do mundo cruzam os mares dentro de malas e valises. - possvel haja uma grande confuso pelo outro lado refletiu o guarda ante a algaravia poligltica dos letreiros. Ao longo do cais, os guindastes desocupados pareciam-lhe girafas a olhar. Havia no ambiente uma atividade entre mundana e alfandegria. Afinal, quando nada fosse, tratava-se de um grande navio que se encostara ao Novo Continente... O choque de dois mundos abrandado pela ternura do cais... chegada de um comboio ou de um paquete sempre se espera ver descer um conhecido. Tem-se mesmo a necessidade de adotar um amigo para abra-lo perante o pblico. Lembrara-se o policial de que, quando criana, seu av lhe mostrara o retrato de um amigo, cujo filho, Pantaleo Bellini, havia seguido para a Europa e se ficara por l. Quem sabe estava ele ali em meio de tantos estrangeiros? O guarda procurava Pantaleo Bellini... Debaixo de um sol inamovvel, a praa teve alguns minutos de vida cosmopolita. O asfalto gravava novos moldes de ps. Mulheres que se aposentaram no Velho Mundo afluam de Varsvia, de Npoles, de Paris e de Moscou busca da revalidao sexual na Amrica. Vinham algumas cobertas de jias, outras cheias de sabedoria, todas com o Wassermann positivo e rigorosamente vestidas. O guarda j apaixonado pela francesa que sorria incansavelmente junto s malas, conjeturava o que podia fazer por ela. Divina! Seu corao pressentiu um escndalo, um rapto, um desfalque, um homicdio, pelo menos... Viu a morte nos olhos da tentadora internacional e comeou a rezar... Homens de maneiras frias, e o adunco judaico do nariz na cara semtica desciam para fazer negcio, montar casas de penhor e, conforme as leis, tentar o comrcio branco. Vinha a luxria no corpo das primeiras; no esprito dos outros a astcia. Dentre vrios turistas hipocondracos, alguns, no se tendo suicidado em tempo, desciam com esperana de curarem em novas terras a neurastenia contrada nas velhas civilizaes. 238 Britnicamente entediados, fechavam a boca que s dava entrada ao charuto e sada para a respectiva fumaa. Entrevistados pela reportagem dos trpicos, negavam-se a dizer qualquer cousa, e, como fossem polidos, ofereciam charutos aos rapazes jornalistas que ficavam satisfeitos. Um mutilado relatava a um reprter a histria patritica de seu brao direito levado por um obus na batalha do Marne; outro, com lgrimas nos olhos, contava a mesma cousa da perna esquerda que se ausentou do tronco em companhia de algumas falangetas da mo direita. Um russo, que se dizia pintor e amigo de Strawinsky, afirmava ter-lhe cabido a honra do primeiro tiro em Rasputin. O guarda sentiu abalos na sua estrutura moral. A chegada daquele navio, o desembarque, as malas, as frases em estrangeiro, a francesa-tudo o perturbava e parecia querer corromplo. E foi presa de um acesso nativista. - um desaforo! descem para fazer uso da nossa ptria... O navio estava agora a ss com o cais. Parecia que ansiava por esse momento. Vazio o ventre daquelas gentes e bagagens que ele trouxera de fora e que acabavam de ser despejadas na terra de Santa Cruz, sentia-se leve e alteado pelas prprias ondas. -Olha que so oito milhes de quilmetros quadrados!- referia a meia voz um imigrante a outro imigrante que se chamava Carducci e que estava desanimado. -Enfim-consolou-se o guarda-o pas precisa entender-se com o resto do mundo. Os navios no tm culpa... L vem a francesa. Que ainda estar fazendo ali a francesa? Sorrindo... O guarda junta as imagens mais doces que sabe e atribui-as francesinha que o est enfeitiando. -Iara, leva-me em teus braos. -Guarda, deixa-me pecar fora das leis. A praa, passada a agitao do desembarque, fica mais erma ao sol do meio-dia. Parece um ringue de patinao logo aps um grande desastre. quela hora dava-se na cidade um fenmeno trmico-social, to comentado como os maiores escndalos. Era o calor, que se combate nas sorveterias, debaixo dos chuveiros, nas casas de chope; o calor de que se maldiz desejando-o voluptuosamente 239 nas praias de banho; o calor que expe o corpo das mulheres, multiplica os delitos carnais, e inspira idias monstruosas aos imaginativos. O calor longe do giro' unnime dos ventiladores, endoidecendo a populao nas praas cheias de labaredas. -bom ficar dentro da gua como o navio... O guarda a um tempo suava e imaginava e, depois que foi autorizado pelo termmetro, comeou a sentir calor oficialmente. Instalara-se a preguia no cu. Tempo ideal para um Congresso de pio. As rvores no auge da cancula suspenderam o fornecimento de sombra. Um absurdo, pois todo mundo quer viver sombra de algum ou de um chapu-de-sol. O grito do sorveteiro lana no ar uma hiptese de frescura. De um quinto andar uma rapariga quase despida reclina o busto para espiar... Tenta ler: "Cap... Cap... Cap..."- mas o sol turva-lhe a vista e derrete as outras letras que se fundem. . . E o navio fica-lhe sendo apenas um grande navio sem nome. O guarda olha para os lados, e furtivamente arranca do bolso uma brochura. Simbad, o Marujo. Leu. Tirou depois um caderno de modinhas. Declamou. Como no havia nada, s lhe restava cochilar. Cochilou Parece que o transatlntico tambm. Silncio!... Ouviam-se acordes da harmonia universal. Tripulante retardatrio, passageiro annimo, eis surge no alto da escada, risonho, mas cauteloso e com visveis sinais de quem quer descer, vim rato. Um rato e nada mais. Bem o divisara o guarda da sua sen-sonolncia atordoada. Ergueu o focinho ao cu e deslumbrou-se da claridade que o enchia. Quanta luz! Que pas ser esse, maravilhoso assim? O cheiro de cereais que o vento levava dos armazns vizinhos para o seu olfato acordara-lhe o instinto profissional exercitado nos emprios europeus. Diante de to imperiosa solicitao resolveu ficar. 240 Desceu a escada com muito jeito, com calma, certa elegncia de maneiras e bastante esperana. Desceu com a dignidade imprpria de um rato. O transatlntico nada percebia, distrado com o cais. O guarda que via tudo. Acompanhou os movimentos do minsculo imigrante e ficou desconcertado. Notou o espanto quase humano que se desenhou no rosto dele quando do alto da escada contemplando a cidade cheia de luz, orlada de montanhas. Ficou quieto. Quieto, porm reflexivo. Desandou a imaginar... Fazia consideraes que a cancula concorria para tornar imprecisas, se no absurdas. Esteve horrorizado com certas concluses de um raciocnio... Era o calor... Formara-se grande atrapalhao em sua cabea. Aquele rato no podia deixar de ter qualquer coisa de anormal... O ar malicioso, o olhar inteligente... Certamente, era um rato de tratamento, desonesto como todo rato, mas fino e especioso, com o dom do raciocnio e noes gerais sobre as coisas. Bastava a circunstncia de ser passageiro de um transatlntico de luxo... Fosse como fosse, havia qualquer coisa de espantosamente humano em sua maneira de olhar, de gesticular, de saltar com prudncia e de cheirar com volpia. Alm do mais, era europeu, e da Europa, como de Nova Iorque chegam diariamente coisas fantsticas... Quem lhe poderia assegurar que com aquele mamfero displicente no aportava ao Brasil uma coisa fantstica? A superstio confirmava as hipteses da. imaginao. Diante do desconhecido, o guarda ficou mais humilhado que curioso. O homem enfatuado humilha-se de reconhecer as suas maneiras num canguru, num macaco ou num sapo. E o rato assimilava modos de Homo sapiens. O novo hspede pisou o territrio nacional. Sentiu uma emoo esquisita. Olhou depois para os lados e certificando-se de que no havia gatos em torno, baixou o focinho ao cho religiosamente, mas f-lo com tal respeito e frenesi que mais parecia um beijo. O beijo com que recolhera no original o primeiro cheiro da terra brasileira. 241 Ao olho agora bem estatelado do guarda no passou despercebido o gesto gentil do roedor europeu. No! positivamente ... aquilo era um camundongo especial, um rato de categoria. Poderia vir imbudo de idias anarquistas, de princpios prematuros soprados de Moscou sobre a Amrica do Sul. E o guarda fora instrudo de que caminhavam pelo planeta idias diablicas. Algumas delas j haviam chegado at ns, mas caram como corredores ao termo da prova. A terra move-se sob o signo da Extravagncia, cuja influncia j desce ao Brasil inocente e comea a atordoar o policial desprevenido. Assim considerando, deliberou deter o animal. Teve mpeto de mat-lo a cassetete, mpeto apenas, porque depois recuou da imprudncia com supersticioso receio. No, pensou consigo, trata-se de um rato de cerimnia, europeu provavelmente e incontestvelmente passageiro de um transatlntico; talvez nem seja rato, tendo deste apenas o fsico mido e o plo inequvoco; talvez venha cumprir um destino no pas. O guarda no sabia se devia esmagar o animalzinho sob os ps, ou se ador-lo como uma divindade nova. Saem tantas coisas absurdas de um transatlntico!... O hspede ouve o rumor da cidade e deseja conhecer coisa nova. O asfalto arde-lhe tanto nos ps que o faz danar contrariado. V frente, sua disposio trs ruas como trs destinos que se lhe abrem. Dirige-se para o guarda. O gesto de quem vai colher informaes. A meio caminho, pra como quem posa para o fotgrafo. O policial j no tem mais dvida. Arrepia-se; sbita sensao de frio de quem chega a Petrpolis. Iria prestar informaes a um rato, iria admiti-lo como interlocutor humano... Mas enquanto este se concentra', o guarda cai em transe filosfico... Pensa nas coisas, tolera tudo e quase j admite o rato como fenmeno plausvel, filho de um sculo de absurdos. Desconfia que vai por este mundo de Deus uma festiva animao e quer tomar parte em tudo. So os hotis, so as mulheres, so os navios que no param quietos, so os aeroplanos 242 que voam; a dana, a msica por toda parte. Na terra uma quermesse, no mar uma festa veneziana. O guarda achou tudo admirvel. Seus lbios preparam-se para deixar passar um conceito dissolvente. Mas ele prudente, nada dir; sete anos de servios, e um reumatismo incipiente j lhe vm despertando as primeiras covardias. Sentindo, porm, que ningum o percebe, abre um sorriso mole, combinao feliz entre o da Gioconda e o de Carlito. Momentos depois, entre os lbios dilatados pelo sorriso, o conceito sai, como bala atrasada depois da detonao: "uma festa este mundo!... Franqueza..." O pronunciamento filosfico-policial era profundo, apesar de vulgar, e como se verificou a 39 sombra de um guardachuva, e diante de um transatlntico de muitas toneladas, no podia deixar de ser peremptrio. Definido assim o mundo, o guarda voltou ao rato. Mas voltou menos alarmado, quase tranqilo, como o amante ao lado da mulher na noite em que pensa t-la compreendido. Era j o Signo da Extravagncia irradiando plenamente em lugar do Cruzeiro do Sul... Tudo tinha explicao, menos aquele rato e o telgrafo sem fio. Era certo que na vida do guarda o sorriso de Sebastiana tinha-se. tambm consumado uma coisa misteriosa. Mas o mais... tudo se explica. Por exemplo, as mulheres que desembarcaram do navio antes do rato, estando alegres e bem vestidas, vinham com certeza para animar a Nao, distraindo os congressistas e distribuindo carcias ao alto comrcio. O prprio navio se ali estava parado era por causa do cais. Tudo se explica, refletiu o guarda. O sol, se brilha, para que no haja escndalos na rua, como nos cinemas, e as montanhas, se so altas, por causa do panorama que delas se descortina -mas aquele rato estava 'na obrigao de ser rato e nada mais que rato. J que assim no era, seja admitido como um rato de exceo. E seja entre ns bem-vindo um rato providencial. Ele ou ela? Rato ou rata? Dos ratos em geral ficara-lhe na memria uma reminiscncia gramatical da idade escolar: "-rato, substantivo masculino, singular... singular..." Era o que sabia de rato, noo que o no habilitava a precisar o sexo do que desembarcou. Tambm que adianta hoje o sexo? 243 A cidade est cheia de rapazes to lindos e de raparigas to esportivas, que s os podem diferenar os mdicos-legistas e nunca os estetas. O que descera do navio era, pois, um substantivo masculino, singular. A alguns metros do guarda ainda quedava o insigne roedor. Era evidente que estava raciocinando, formulando um programa, o programa da entrada. Eram trs ruas em frente, escolha. Saltaria nalgum txi por causa do calor; entraria na cidade de txi. Foi quando-lhe ocorreu a idia de voltar para despedir-se do transatlntico, que o trouxera a to imprevisto mundo, e guardar-lhe a quilha branca na retina. E olhou saudoso o quieto paquete... Na verdade no lhe correra bem a viagem. Em Biscaia muito mar com enjos; dias depois quase o mata o salame de bordo; no Havre escapou de ser frigorificado s ordens do comandante; pouco antes de Vigo, um capitalista com evidente maldade, atira-lhe na cara as cinzas do charuto. Durante nove dias seu olho direito ficou camoniano. Finalmente, ao entrar na baa, pisado de boa-f por uma prima-dona de companhia lrica. Nem por tudo isso se magoara com o transatlntico. Por sua vez, o policial considerava no destino que o fizera guarda-civil. No nascera para isso, nascendo para diplomata. O programa do seu ideal falhara nesse ponto. Quanto fazenda de caf em So Paulo, ainda tinha esperana de adquiri-la. Enfim, era guarda-civil em carter provisrio, esperando h sete anos coisa melhor. A sorte parecia sussurrar a este otimista: "tem pacincia, espera um pouco, mais sete anos ou quinze; vai continuando assim mesmo, policial ou coisa pior, pouco importa, sers tudo depois..." De repente ao contemplar o cassetete teve uma rpida sensao de que era autoridade, como o sportsman nu que, aps o exerccio, diante do espelho, obtm dos msculos intumescidos o direito de afirmar:-"eu sou um colosso!" Era autoridade, estava ali para manter a ordem, fazer respeitar a lei, cumprir o dever. Iria cumprir o seu dever. Mas preferiu dormir. Dormiu e sonhou. 244 Sonhou que viajava naquele mesmo paquete, deixando ao pas sete anos de servios, e levando consigo uma danarina russa de meio sangue Romanoff, muito friorenta. Viu outros portos e metrpoles encantadas. No convs brigou com um argentino, danou com uma chilena, discutiu com um alemo e foi roubado por um turco. Viu sereias do tempo de Ulisses encantadas com o jazz-band universal que se est ouvindo agora pelos oceanos e descobriu o velho Netuno escondido sob o casco de um navio velho, envergonhado de no saber danar. Cruzou no mar alto outros paquetes iluminados, sonoros de apitos, de orquestras e cantos. E concluiu que este mundo uma festa. . Tudo dana sobre a terra, sobre o mar danam todos os navios... Enquanto o guarda viaja, o rato procura pr em prtica o seu melhor mtodo de entrar numa cidade. Aos poucos se foi informando das instituies, dos comestveis, dos grandes nomes nacionais. Convinha instruir-se previamente acerca das coisas da terra. Para tranqilidade sua, assegurou-se de que o clima era bom, de que no havia muitos gatos. Depois, como apelo hereditrio, um desejo diablico de roer, como quem, roendo sempre, aqui viesse cumprir um destino. E, no tendo encontrado txi, entrou satisfeito na cidade, em passos de foxtrote acelerado que o asfalto quente ainda tornava mais vivaz. Eram quatro horas e vinte cinco minutos da tarde. Machucara-o numa das esquinas a vassourada de um caixeiro lusitano. No estava sendo bem recebido. Pouco lhe importava. Ele 'trazia o destino de roer, ele queria encontrar o que roer. J pretendia farejar os in-flios da Academia e os queijos mais frescos da Repblica; ansiava pelos casacos mais velhos da Monarquia, dentro dos respectivos mveis coloniais; ia deliciar-se com as fardas que restavam do Paraguai; ia, enfim, iniciar a santa roedura de tudo o que nesta terra virgem no estivesse exposto aos raios diretos do sol e da vida. Tudo seria minuciosamente rodo. No era s pela terra. Era pelo desejo de roer, sem motivo, risonhamente... A francesa ainda persistia sorrindo ao lado das malas. Algum fazia perguntas, que ela no entendia. 245 -Sua profisso? -Femm'e fatale. Sonhando incorrigivelmente, o policial prosseguia na viagem com o mar diante dos olhos e a bailarina dentro dos braos. Recebeu a carcia de todas as cousas, e a melhor carcia que da gua, achando o mundo uma maravilha. Navegando, viajou at Xangai. Quando, na remota cidade chinesa, estendia a mo risonha vtima dos sovietes para descerem juntinhos, foi acordado s sacudidelas por um cidado que reclamava os seus servios. E como chegara a hora de algum atentado ao pudor, era precisamente disso que se tratava. O guarda teve que regressar urgentemente da China para abrir os olhos na Praa Mau. -Pois o senhor no compreende que eu estou chegando da China!... Espere um pouco, tenha pacincia... Como longe a China!... Fez esforo a fim de no misturar sonho e realidade, baralhados em seu esprito cheio de ressonncias martimas. Depois de uma operao mental complicada, conseguiu isol-los e ficar com a parte de realidade, de que precisava para responder ao queixoso. At o ltimo momento antes de deliberar qualquer cousa, a russaznha dos Romanoff ainda o atrapalhou. Acendeu o cigarro. fumaa compareceram o transatlntico, a danarina, a francesa, o rato e um panorama parcial de Xangai. Parecia fumaa de cachimbo chins, de to concorrida. Acabou conseguindo restabelecer em si a unidade moral, desagregada pelas emoes e dissolvida pelo calor. Quis experimentar se estava em condies: "Frana, capital Paris... 7 e 7, 14... Minha me se chamava Balduna, meu pai, Romero... Devemos amar a ptria... No se deve cuspir no cho nem desejar a mulher do prximo... Rockfeller milionrio, eu, no; eu sou guarda-civil..." Verificou que podia. E recaiu no fenomenismo profissional. Dilatou a vista para o cais. Que do navio?... Sem nenhum motivo o transatlntico abandonara o cais. Ingrato!... No disse?... Todos vo-se embora... Pobre cais!... 246 com grande exibio de fumaa e disposto a ganhar o oceano, o paquete ia fugindo veloz. Nada o fazia voltar. Estava resoluto e de ar avalentoado. Corriam-lhe atrs as ondas, que depois desistiam, como ces que correm latindo ao comboio em velocidade. J navegava longe, mas ainda era grande e visvel como um anncio de dentista. -O oceano dentro em pouco ia devor-lo. O cais voltava sua nostalgia especfica. Embarcaes ligeiras encostavam-se a ele com doura, procurando consol-lo. Mas ele repelia esses contatos e j esperava ansiante outro transatlntico que vinha chegando barra adentro, carregado de promessas... Os cais agora s querem saber de transatlnticos. A nave desertora j entrara na jurisdio do almirantado ingls. Sumira-se. O guarda lembrou-se das montanhas que desapareceram atrs da garupa do seu cavalo, quando partiu da terra natal. Montanha, parto da montanha... ah! onde estaria o rato, o seu rato? O Signo da Extravagncia exercia-se agora com alarmante intensidade. -Mas, afinal, o senhor no me atende! um absurdo. No se tem garantias neste pas-gritou o queixoso ao guarda impassvel. com uma grande inocncia nos olhos, o policial fitava o cais e no se mexia. O vento atirava-lhe o quepe para longe. Que importa o vento! Alheio a tudo, dizia cousas baixinho, devagar e quase cantando: -Oh! estava chegando em Xangai... Xangai... Como interessante o mundo!... Eu no sabia que era assim. Ningum nunca me disse que o mundo era assim... Eu bem desconfiava ... To longe, Xangai!... -!!... -com danarina russa, nunca mais! nunca mais!... Romanoff... Voronoff... Roskoff... off... -!?... 247 -... rato, substantivo masculino, singular... singularssimo... sing... -!!!!.., -Coitado do cais! nunca mais! nunca mais... masculino, singular... Xangai... Xang. .. O senhor tem calos? S tem calos quem quer... "Quem o pai da criana? Eu no sabia que o mundo era assim... Que beleza este mundo!... Teve a sensao de que era coquetel, depois que era ventilador, quilha de navio, rato e finalmente que no era nada. Fazia contraes com os dedos estrangulando Lus XVI e em seguida uma criana. Ouviu o Padre Vieira e passou-lhe uma vaia. Tomou sorvete ao lado de Landru, Clepatra e Sete Coroas. Pisou no calo de Mussolini e interveio na poltica inglesa assobiando a Gigolette. Deixou a cachoeira de Paulo Afonso pingar dentro de seus olhos e, logo depois, jogou pquer com Napoleo. Acabou fumando o cassetete... Mas, como estava uniformizado, continuou guarda-civil at s sete da noite, hora em que recebeu ordem de partir com urgncia para o Hospcio, onde acordou no dia seguinte, fazendo apreciaes sensatas sobre a China... para onde seguia num luxuoso transatlntico em companhia de uma poro de ratos maliciosos 248 ESTE LIVRO FOI CONFECCIONADO NAS OFICINAS DA COMPANHIA GRFICA LUX, NA RUA FREI CANECA, 224, GUANABARA PARA A LIVRARIA JOS OLYMPIO EDITORA S. A., NA RUA MARQUS DE OLINDA, 12 (BOTAFOGO), RIO DE JANEIRO, EM ABRIL DE 1969 - ANO DO 250. ANIVERSRIO DE PUBLICAO DO LIVHO ROBINSON CRUSO, DE DANIEL DEFOE - DO 500. ANIVERSRIO DE NASCIMENTO DO ESCRITOR MAQUIAVEL (NICCOL MACHIAVELLI) (s 3-5-1469 f 22-6-1527) - DO TRICENTENHIO DA MORTE DE REMBRANDT ( 15-7-1606 t 4-10-1669) - DO 50. ANIVERSRIO DA INICIAO DE ALCEU AMOROSO LIMA (TRISTO DE ATHAYDE) COMO CRTICO LITERRIO (17-6-1919) - E 38. DA FUNDAO DESTA CASA EDITORA.