O documento discute como a urbanização afeta processos ambientais globais através da expansão das manchas urbanas e dos padrões de atividades dentro das cidades. As cidades contribuem para alterações climáticas através de emissões de gases de efeito estufa e influenciam biodiversidade e recursos em larga escala através de redes complexas de fluxos entre cidades e suas regiões. As práticas das cidades, sejam materiais ou simbólicas, participam de uma "ecologia sombra" que extrai recursos de longas
O documento discute como a urbanização afeta processos ambientais globais através da expansão das manchas urbanas e dos padrões de atividades dentro das cidades. As cidades contribuem para alterações climáticas através de emissões de gases de efeito estufa e influenciam biodiversidade e recursos em larga escala através de redes complexas de fluxos entre cidades e suas regiões. As práticas das cidades, sejam materiais ou simbólicas, participam de uma "ecologia sombra" que extrai recursos de longas
O documento discute como a urbanização afeta processos ambientais globais através da expansão das manchas urbanas e dos padrões de atividades dentro das cidades. As cidades contribuem para alterações climáticas através de emissões de gases de efeito estufa e influenciam biodiversidade e recursos em larga escala através de redes complexas de fluxos entre cidades e suas regiões. As práticas das cidades, sejam materiais ou simbólicas, participam de uma "ecologia sombra" que extrai recursos de longas
O documento discute como a urbanização afeta processos ambientais globais através da expansão das manchas urbanas e dos padrões de atividades dentro das cidades. As cidades contribuem para alterações climáticas através de emissões de gases de efeito estufa e influenciam biodiversidade e recursos em larga escala através de redes complexas de fluxos entre cidades e suas regiões. As práticas das cidades, sejam materiais ou simbólicas, participam de uma "ecologia sombra" que extrai recursos de longas
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Urbanizao e Mudanas Ambientais Globais
Henri Acselrad *
Os processos de urbanizao afetam as dinmicas ecolgicas em funo dos padres de distribuio das cidades no espao, dos padres de distribuio das atividades no interior das prprias cidades e da dimenso atingida pelas manchas urbanas. A expanso destas manchas provoca alteraes de cobertura vegetal e aterramento de mangues, impermeabilizao de solos, movimentos de terras em margens de cursos dgua e, eventualmente, ocupao de fundos de vale. Em sua relao com os processos ambientais ditos globais1, a urbanizao pode ser fator de alterao na biodiversidade, pela interrupo de corredores ecolgicos que interligam ecossistemas e permitem fluxos genticos, e no clima, atravs da emisso de gases-estufa e de mudanas que podem provocar na radiao solar, na temperatura, na velocidade e direo dos ventos, nos ndices de precipitao e umidade 2. Os impactos da urbanizao podem, assim, ser caracterizados a partir da configurao material das cidades em sua relao com os processos ecolgicos que lhes so imediatos como os acima descritos. Mas a natureza destes impactos pode ser tambm discutida de forma bem mais ampla e relacional se considerarmos o processo de urbanizao como crescentemente constitutivo de uma rede-arquiplago de grandes metrpoles, de ns de encadeamento de mltiplos fluxos de produo e de trocas. Pois estas so as tendncias da urbanizao em contexto de reestruturao produtiva e financeirizao do capital como o configurado nas ltimas dcadas do sculo XX: as redes de cidades apontam cada vez mais para arquiteturas logsticas mais centralizadas, onde todos os fluxos de moeda e informao, mas tambm de matria e energia transitam para plataformas centrais menos numerosas, embora dotadas de maior alcance econmico e territorial em suas dinmicas 3. Nesta perspectiva, fica extremamente difcil estabelecer de forma clara a separao entre o que seriam os impactos ambientais associados ao fato propriamente urbano daqueles originados na dinmica mais geral dos prprios modelos de desenvolvimento que tm
* Professor do IPPUR/UFRJ e pesquisador do CNPq. 1 Segundo Vitousek, mudanas ambientais globais so aquelas que alteram os envoltrios do sistema terrestre e, desta forma, so experimentadas globalmente, e aquelas que ocorrem em reas mais restritas, mas por serem muito difundidas, adquirem carter mais global, cf. Vitousek, 1992, apud U. Confalonieri et alii, Mudanas Globais e Grandes Empreendimentos, in I Seminrio Nacional Sade e Ambiente no Processo de Desenvolvimento, srie Fiocruz, Eventos Cientficos, RJ, 2000, p.35. A possibilidade de uma caracterizao objetiva dos processos ambientais considerados globais questionada, por sua vez, em V. Shiva. The Greening of Global Reach, in W. Sachs (ed.), Global Ecology a new arena of political conflict, ZED Books, London, 1993, p149 - 156 e L. Lohman, Local versus Global Ecology: two ways of looking at the conflict, mimeo, s.d., 18 p. 2 cf. S. Mota, Urbanizao e Meio Ambiente, ABES, RJ, 1999, 352p. 3 cf. P. Veltz, Tempos da Economia, Tempos da Cidade: as Dinmicas, in H. Acselrad (org.), A Durao das Cidades Sustentabilidade e Risco nas Polticas Urbanas, DP&A Ed., RJ, 2001,p.149. 2 nas metrpoles os plos irradiadores de processos econmicos e impactos ambientais. Isto porque podemos considerar que nos principais ns da rede-arquiplago de metrpoles desencadeiam-se processos que produzem alteraes ecolgicas evidenciveis muito alm do permetro imediato das cidades, incluindo aquelas consideradas como pertinentes ao que poderiam ser chamados de impactos biosfricos. Pois em analogia com os chamados povos ecossistmicos e povos biosfricos na definio de M. Gadgil e R. Guha, podemos considerar que as formas sociais de apropriao da base material do desenvolvimento podem tambm ser divididas em ecossistmicas e biosfricas ou seja, respectivamente fundadas na explorao de recursos locais ou promovidas por agentes econmicos cujo poder lhes permite drenar recursos provenientes de longas distncias 4. As cidades, em particular, abrigam parte significativa das prticas sociais de apropriao biosfrica do meio ambiente. Pois o debate sobre o impacto ambiental das cidades coloca necessariamente em questo os fluxos em provenincia do hinterland rural responsveis pelo fornecimento de mercadorias para a satisfao da demanda urbana. Como o fluxo destes recursos tende a ser contnuo de modo a manter a cidade em funcionamento, eles podem acarretar, com significativa freqncia, a ruptura dos fluxos materiais, assim como das culturas extra-urbanas cuja existncia liga-se reproduo dos ecossistemas onde encontram- se situados tais recursos5. A extrao de insumos de localidades cada vez mais remotas pode assim provocar inclusive o deslocamento espacial de grupos sociais ecossistmicos para as periferias pobres de grandes cidades, tornando-os consequentemente tambm dependentes, ainda que em escala quantitativamente pouco expressiva, dos sistemas econmicos biosfricos.
Processos similares podem surgir da imposio de valores e prticas simblicas citadinas a espaos sociais extra-urbanos que se pretenda, inclusive por razes ambientais, preservar. Levy et alii e Adams, por exemplo, assinalam que concepes estetizantes de origem urbana, quando aplicadas a paisagens que se quer, por razes ambientais, transformar em parques e reservas, podem ter efeitos dramticos e disruptivos sobre os povos afetados por sua implantao 6. Os perigos da permanncia de uma compreenso colonial continuada dos recursos, do meio ambiente e da Natureza acrescenta Willems-Braun - ligam-se diretamente considerao imprpria de um ambiente separado da cultura, de
4 cf. M. Gadgil R. Guha, Ecology and Equity: the use and abuse of nature in contemporary India, London, Routledge, 1995 5 John Vidal cita o episdio do suicdio em massa do povo UWa frente ao desenvolvimento dos campos de petrleo da Shell na Colmbia como consequncia do crescimento da pegada urbana associada civilizao do automvel, cf. J. Vidal, A Tribes suicide pact, in Manchester Guardian Weekly, october 12, 1997, p.8- 9, apud S. Dalby, Ecological Metaphors of Security - World Politics in the Biosphere, in Alternatives, 23 (1998), p. 310. 6 cf. A.Levy C. Scott-Clark- D.Harrison, Save the Rhino, but kill the people in Manchester Guardian Weekly, march 30, 1997,p.5 e J.S.Adams-T. O. McShane, The Myth of Wild Africa: conservation without illusion, Berkeley:University of California Press, 1996, apud S.Dalby, op.cit., p.308. 3 um rural separado do urbano e de assentamentos urbanos civilizados tidos como separados da Natureza7.
Assim, as cidades, seja por suas prticas materiais ou simblicas, tm participado do que MacNeill, Winsemius e Yakushiji chamam de uma ecologia sombra8, da qual os principais centros urbanos dos pases economicamente mais poderosos constituem pontos centrais que habilitam as naes ocidentais a estribarem-se no capital ecolgico de todas as outras naes para fornecer alimento s suas populaes, energia e materiais para as suas economias e, inclusive, terra, gua e ar para absorver seus subprodutos e detritos 9.
certo que antes do sculo XVII, a urbanizao esteve limitada por uma relao metablica bem especfica estabelecida entre as cidades e seus hinterlands produtivos, assim como pelas possibilidades de extrao dos excedentes que sustentavam as aglomeraes urbanas. Segundo Harvey, as cidades medievais assemelhavam-se ao que os ambientalistas contemporneos julgariam ser formas virtuosas biorregionalistas10. A estabilidade das economias das cidades dependia ento crucialmente de sistemas metablicos localizados, com suas qualidades ambientais de sustentao e seus produtores potenciais de excedentes, aptos a serem transferidos para as cidades. At o incio do sculo XIX, a hoje chamada pegada ecolgica da urbanizao na superfcie da Terra teria sido relativamente reduzida. O que ampliou essa pegada foi a onda de novas tecnologias que permitiu a superao considervel de barreiras espaciais e temporais que at ento opunham limites acumulao capitalista nas cidades 11.
Foi assim que o desenvolvimento de uma rede global de cidades ligadas a uma variedade de hinterlands permitiu, a partir de meados do sculo XX, um processo de crescimento urbano agregado radicalmente maior do que aquele possvel para cada cidade isoladamente 12. por essa razo, sugerem-nos os estudiosos da Ecologia Global, que importante tentar entender os processos ambientais contemporneos, inclusive os urbanos, em termos biosfricos, no limitando as anlises aos ecossistemas
7 cf. B. Willems-Braun, Buried Epistemologies: the politics of nature in (post)colonial British Columbia, in Annals of the Association of American Geographers 87,n.1 (1997): pp.3-31, apud S. Dalby, op.cit., p.308. 8 Em essncia, a sombra ecolgica de um pas e constituda pelos recursos ambientais que ele extrai de outros pases e dos bens comuns globais, cf. J. MacNeill et alii, Para alm da Interdependncia A relao entre a Economia Global e a Ecologia da Terra, Jorge Zahar ed., RJ, 1991, p. 71. Analogamente M. Wackernagel e W. Rees chamam de capacidade de pegada ecolgica a rea de terreno requerida para proporcionar os recursos e assimilar os rejeitos de um grupo determinado de pessoas - , habitao, cidade ou pas, cf . M. Wackernagel, La Huella Ecolgica de las Ciudades Como Asegurar el Bienestar Humano dentro de los Lmites Ecolgicos?, mimeo, Mexico,11p. 9 cf. J. MacNeill et alii, ibidem. 10 cf. D. Harvey, Justice, Nature & the Geography of Difference, Routledge, New York, 1996, p.411. 11 cf. D. Harvey, ibid. 12 cf. D. Harvey, op.cit., p.413. 4 individuais ou Estados Nacionais, mas procurando apreender as interconexes entre os diferentes tipos de processos, independentemente de convenes geogrficas ou de meras distncias fsicas. No contexto destas dinmicas ecogeogrficas geradoras de conseqncias em distncias mltiplas, as prticas ambientais dos agentes podero ser entendidas no somente na perspectiva da extrao de recursos situados distncia, mas tambm como pertinentes a decises de localizao de rejeitos txicos e perigosos em contexto de relaes de vizinhana global, abrangendo prticas de tipo NIMBY (Not in my Backyard), pelas quais as elites urbanas procuram se distanciar das conseqncias ecolgicas danosas de suas prprias aes 13. Como sabemos, a exportao de impactos ambientais indesejveis no os elimina da superfcie terrestre. Ao contrrio, lembra-nos Harvey, a crescente e ruinosa competio interterritorial (entre naes, regies e cidades) associada necessidade suposta das mesmas (em nosso caso, das cidades) venderem a si prprias ao mais barato custo, para o bem da mxima mobilidade do capital na Terra, s tem feito aumentar o grau de descoordenao entre os processos decisrios dos capitais individuais, e, consequentemente, os riscos da ecloso de impactos globais incontrolados14. 1. Cidade e Mudana Ambiental Global
O debate sobre mudanas ambientais globais apresenta significativas dificuldades relativas separao entre as dimenses naturais e sociais da mudana ambiental. A agenda da pesquisa sobre mudanas globais tem sido dominada pelos esforos de elaborao de modelos de tipo preditivos. Para a modelagem global que usa as teorias das Cincias Naturais, o clima, por exemplo, precisa assim ser traduzido em um grande nmero de equaes matemticas destinadas a prever as interaes complexas entre a atmosfera, os oceanos e a superfcie terrestre tendo por base princpios fsicos validados por uma vasta e ainda imperfeita gama de observaes 15. Calbo et alii, por exemplo, procuram estabelecer as interaes dos aspectos globais e urbanos das emisses antropognicas na qumica troposfrica. Tal pesquisa tenta enfrentar as dificuldades de articulao parametrizada entre diferentes escalas espaciais e temporais, pois enquanto o fenmeno do efeito estufa requer trabalhar-se com o dimetro terrestre e um horizonte de 30 anos, os estudos de poluio atmosfrica nas cidades do-se em escalas muito menores 16. M. L. Bell, por sua vez, tenta explorar as relaes em sentido inverso, atravs da hiptese de que a
13 cf. S. Dalby, op.cit., p.306. 14 cf. D. Harvey, op.cit., p.413. 15 cf. S. Boehmer-Christiansen, Global Climate Protection Policy: the limits of scientific advice, in Global Environmental Change, 1994, 4 (2), p.141. 16 cf. J. Calbo W. Pan, M. Webster R.G.Prinn G. McRae, A Parametrization of Urban-sacle Photochemical Smog for its Use in Global Atmospheric Chemistry Models, MIT, Joint Program on the Science and Policy of Global Change, Report 20, julho 1997. O sismlogo Thomas Heaton se interroga, por exemplo, sobre como podemos pretender prever eventos passveis de acontecer nos prximos 1000 anos, 5 mudana climtica pode alterar as concentraes de poluentes atmosfricos, acarretando significativos impactos sobre a sade humana. Para tanto, procurou integrar dados de sensoriamento remoto, modelagem mesoescalar e dados epidemiolgicos 17.
Na perspectiva dialtica de autores como Harvey, porm, a mudana ambiental permanente e a questo, por via de conseqncia, no seria propriamente a da caracterizao de um evento urbano concorrente para uma mudana entendida como abandono da estabilidade, mas a da busca de correlao entre o sentido do processo de urbanizao e o sentido do que se entende por mudana ambiental. Assim que pela considerao do risco, inclusive do risco do consumo energtico para as mudanas ambientais globais, a questo ambiental veio se tornando um meio de expresso de um mal estar social geral, constituindo uma dimenso central de novas prticas espaciais institucionalizadas. Como as preocupaes com o meio ambiente surgem das mltiplas facetas da experincia social e se interconectam na constituio das agendas ambientais urbanas, um novo conjunto de fundamentos vem surgindo como esboo de mudanas na direo do planejamento das cidades18. Assim, a pesquisa e o debate sobre mudana ambiental global podem ser vistos como capazes de fornecer um certo nmero de justificativas para as opes relativas a alteraes no modelo de desenvolvimento urbano, seja no que diz respeito sua matriz energtica, de transportes, ao padro locacional de atividades, mas tambm no que concerne s formaes sociais subjacentes configurao do modelo urbano. Sonja Boehmer- Christiansen mostrou, por exemplo, como, na Inglaterra, a Sra. Thatcher converteu-se causa ambiental e, em particular do aquecimento global, em 1984, por suspeitar que os ambientalistas estivessem usando o problema ambiental para atacar o capitalismo: acreditando que um debate cientfico livre, por si s ofereceria meios de superar as ameaas ambientais afirma Boehmer-Christiansen, a Sra. Thatcher via no investimento em Cincia uma parte da batalha contra a poltica ambiental socialista que entendia ser repressiva 19. Ademais, como partidria da energia nuclear e inimiga implacvel das organizaes sindicais dos mineiros do carvo, Mme. Thatcher s pode ver-se atrada por prescries que propugnavam o fim da queima do carvo 20.
quando nossas idias normalmente no se sustentam nem por 20 anos, cf. M. Davis, Ecology of Fear Los Angeles and the Imagination of Disaster, Vintage Books, New York, 1998, p.35. 17 Cf. M.L.Bell, The Impact of Global Climate Change on Urban Air Pollution and Human Health, John Hopkins University, STAR Program, in http://es.epa.gov/ncerqa_abstracts/fellow/99/belmi.html 18 cf. P. Brand, The Environment and Postmodern Spatial Consciousness: a Sociology of Urban Environmental Agendas, in Journal of Environmental Planning and Management, 42 (5), p. 646. 19 cf. S. Boehmer-Christiansen, op. cit., p.177. 20 cf. S. Boehmer-Christiansen, ibid. 6 Algumas indicaes de efeitos de mudanas climticas globais sobre as cidades podem ser inferidas dos estudos efetuados sobre as repercusses dos eventos climticos El Nino e La Nia no Brasil 21. No perodo 1982-83, o El Nio ocasionou precipitaes superiores s consideradas normais, com transbordamentos de rios e inundaes de baixadas nas regies Sul e Sudeste do pas. Entre os anos 1997 e 1998 foram registradas temperaturas mais elevadas no incio do vero nas regies Sul, Sudeste, Centro Oeste e sul do Nordeste. No que se refere s suas repercusses sobre o meio urbano, o El Nio pode ser responsabilizado por chuvas abaixo das mdias e, consequentemente, crise de abastecimento de energia eltrica no Norte e Leste da Amaznia; por escassez de gua e poluio de mananciais, com a conseqente migrao de populao para as grandes cidades na faixa litornea do Nordeste e a sobrecarga de demanda sobre os servios urbanos locais; por enxurradas e enchentes em cidades do Sul. O fenmeno La Nia, por sua parte, foi responsabilizado pela ocorrncia de chuvas anormalmente abundantes no norte e leste da Amaznia e por diminuio anormal das precipitaes no Rio Grande do Sul entre os meses de setembro e fevereiro22. Ao alterar significativamente os padres climticos e meteorolgicos de grandes reas urbanas, provocando, alternativamente, secas , chuvas abundantes o aumento de temperatura, fenmenos climticos do porte de El Nio e La Nia colocam condicionantes novos e inescapveis s polticas pblicas relativas s infraestruturas urbanas de fornecimento de gua, saneamento e energia 23. Brando, por exemplo, para o caso do Rio de Janeiro, sustenta que a expanso desordenada da cidade, que resultou na ocupao de reas que deveriam ser preservadas, tais como as encostas dos macios e os diversos morros e as reas ribeirinhas, faz com que a cidade fique cada vez mais vulnervel aos eventos climticos anmalos, passando a aumentar os riscos de episdios de enchentes e inundaes24.
Com base em dados da SEHAB e da FIPE/USP, Marcondes menciona que em 1991 existiam 24551 domiclios integrantes de 298 favelas instaladas em reas de mananciais na cidade de SP 25. Segundo
21 O fenmeno El Nio caracterizado pelo aquecimento anmalo e o subsequente resfriamento das guas superficiais do Oceano Pacfico Equatorial Oriental, durante um perodo de 12 a 18 meses, provocando mudanas na circulao atmosfrica e na precipitao em escalas regionais e global. Cf. M. A. V. Freitas M. Santos A. Hamada, Vulnerabilidade Climtica e Consumo de Eletricidade em Grandes reas Urbanas, 2000, mimeo. 22 Cf. M. A. V. Freitas M. Santos A. Hamada, , op. cit., pp.4-5. 23 Pesquisadores do INPE esto comeando a estudar tambm a hiptese de que o aumento da poluio atmosfrica em cidades como Rio de Janeiro, So Paulo e Belo Horizonte estaria favorecendo o aumento da frequncia e da intensidade de raios, com a consequente derrubada de rvores, interrupo de trnsito e outros acidentes. Cf. A. L. Azevedo, Poluio faria raio afetar mais o Rio, in O GLOBO, 20/11/2000, p.29. 24 Cf. A.M.P. M. Brando, As Alteraes Climticas na rea Metropolitana do Rio de Janeiro: uma provvel influncia do crescimento urbano, in M. de A. Abreu (org.), Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esporte, RJ, 1992, p.183. 25 cf. M. J. A. Marcondes, Cidade e Natureza Proteo dos Mananciais e Excluso Social, FAPESP/EDUSP/Nobel, 1999, p. 165. 7 Figueiredo 26, em 1994, na cidade de SP, 808 favelas localizavam-se s margens de cursos dgua, estando quase um tero das mesmas sujeitas a enchentes. Em terrenos com declividade acentuada e com elevada incidncia de eroso, contavam-se ento 466 favelas. Entre 1987 e 2000, a capital de SP perdeu 30% da cobertura vegetal em virtude da expanso urbana, notadamente dos loteamentos clandestinos de populao pobre deslocada de reas centrais por impossibilidade de pagamento dos elevados aluguis 27. Segundo Ermnia Maricato, enquanto os imveis no tm valor como mercadorias, ou tm valor irrisrio, a ocupao ilegal se desenvolve sem interferncias do Estado 28. As ocupaes tendem assim a se realizar em reas desprovidas de interesse e possibilidade de explorao econmica pelo capital imobilirio, como as encostas, os mananciais, as reas de proteo ambiental de maneira geral. Como resultado de uma urbanizao que segrega, continua Maricato, estimava-se que em 1999, viviam em reas de ocupao irregular 20% da populao do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, assim como 28% da populao de Fortaleza. No incio dos anos 90, a FIPE/USP estimava em quase 20% a populao favelada do municpio de So Paulo. Dados do IBGE apontavam para Recife a cifra de 40% de moradores em favelas29 .
Pelo fato das vtimas das catstrofes climticas serem, via de regra, os grupos sociais que habitam as periferias, encostas e beiras de rios como resultado da urbanizao excludente, h pouca propenso a que se forme um consenso social favorvel reformulao do padro urbanstico. Mike Davis j assinalou, para o caso de Los Angeles, como o fato de todas as maiores enchentes e terremotos do sculo XX terem coincidido com conjunturas recessivas contribuiu para que as dimenses socio-polticas dos desastres urbanos fossem obscurecidas: alm de nenhum ciclo expansivo de negcios ter sido interrompido, as providncias keynesianas de corte anti-cclico, convenientes em perodo marcado por recesso, foram amplamente justificadas tendo por base a necessidade de recuperao dos danos 30.
26 cf. R.B. Figueiredo, Engenharia Social, solues para reas de risco, SP, Makron Books, 1994, 251p. 27 cf. Atlas Ambiental de So Paulo apud Radiografia Completa da Paulicia, in Pesquisa FAPESP, n. 60, dez. 2000, So Paulo, p. 44. 28 Cf. E. Maricato, O Urbanismo na Periferia do Capitalismo: desenvolvimento da desigualdade e contraveno sistemtica., in M. F. Gonalves (org.) O Novo Brasil Urbano impasses, dilemas, perspectivas, ed. Mercado Aberto, Porto Alegre, 1995, p.269. 29 Cf. E. Maricato, As Idias Fora do Lugar e o Lugar Fora das Idias Planejamento Urbano no Brasil, in O. Arantes C. Vainer E. Maricato, A Cidade do Pensamento nico Desmanchando Consensos, Ed. Vozes, Petrpolis, 2000, pp. 153-154. 30 Cf. M. Davis, Ecology of Fear Los Angeles and the Imagination of Disaster, Vintage Books, New York, 1998, p.38. 8
2. Forma urbana e Ambiente Global
A expanso urbana e os sucessivos aterros que a costumam acompanhar reduzem os leitos dos rios e, juntamente com a eroso das encostas desprotegidas pela retirada da cobertura vegetal, transforma pequenas vazes em grandes torrentes nos perodos de chuvas intensas e concentradas. Muitas das curvas dos rios so eliminadas por obras de retificao e canalizao que reduzem a infiltrao da gua contribuindo para aumentar a velocidade da vazo31. A concentrao de elementos poluentes na atmosfera, por sua vez, juntamente com a densidade construtiva das cidades, conduz formao das chamadas ilhas de calor, responsvel pelo chamado desconforto trmico urbano32; a ilha de calor associada impermeabilizao da superfcie pelo asfalto e o concreto favorece o fenmeno das inundaes; o desconforto trmico provocado pela ilha de calor estimula, por sua vez, a intensificao do uso de aparelhos de ar condicionado, levando a um contraste entre o microclima interno aos prdios e as altas temperaturas externas aos prdios. A poluio ambiental e o desconforto trmico tendem a atingir com maior intensidade os espaos residenciais de baixa renda, onde ocorrem simultaneamente carncia de arborizao, proximidade com fontes de poluio e emprego de materiais de construo que emitem mais calor33.
As cidades so, por outro lado, reconhecidamente grandes consumidoras de energia. Nos pases da OCDE, as cidades consomem de 60% a 80% do balano energtico. Segundo pesquisas correntes, o consumo de gasolina seria inversamente proporcional densidade urbana34. No Canad, EUA e Inglaterra, estudos teriam mostrado que uma duplicao da densidade da populao ou das habitaes traduzir-se-a por uma reduo de 20% a 30% da quilometragem anual do deslocamento de automvel por pessoa 35. Disto decorreria a propenso predominante a que se busque reduzir o consumo de energia pela configurao de cidades mais compactas. Ademais, a despeito do senso comum que sugere que a melhoria da eficincia do trfego, pela criao de vias expressas e pelo aperfeioamento tcnico dos veculos, um caminho eficaz para a reduo dos nveis de poluio urbana, pesquisas realizadas em
31 Cf. A.M.P. M. Brando, As Alteraes Climticas na rea Metropolitana do Rio de Janeiro: uma provvel influncia do crescimento urbano, in M. de A. Abreu (org.), op. cit., p.188. 32 Quanto maior a cidade, mais acentuado ser o efeito contraste trmico entre a cidade e o campo , cf. M. Lombardo, Ilha de Calor nas Metrpoles o exemplo de So Paulo, Hucitec, SP, 1985, p.39, apud C. Cabral, Clima e Morfologia Urbana e m Belm, UFPA, Belm, 1995, p.1. 33 cf. Marcelo Lopes de Souza, O Desafio Metropolitano um estudo sobre a problemtica socio-espacial nas metrpoles brasileiras; ed. Bertrand Brasil, 1999, RJ, p.126. 34 Cf. UITP, Des Villes Vivre, Bruxelles, 1996, apud J. Bind,Villes et Environnement au XXI Sicle, in Environnement au XXI Sicle, vol I, les Enjeux, GERMES, Paris, 1998, p. 98. 35 cf. J. Bind, op. cit., p. 98. 9 Nova York e em Perth, na Austrlia, mostram que h uma correlao inversa entre trfego eficiente em combustvel (aquele que flui a altas velocidades) e as cidades eficientes em combustvel (que requerem menos deslocamentos)36. Apesar dos veculos que circulam em reas centrais mais densas gastarem mais combustvel por quilometragem do que a mdia urbana, eles, ainda assim, por circularem pouco, usariam relativamente menos combustvel. Inversamente, veculos que circulam em reas de baixa densidade, apesar de percorrerem menos quilmetros por litro de combustvel do que a mdia urbana, circulam muito mais, terminando por utilizar muito mais combustvel.
Segundo outras abordagens, porm, mesmo implicando uma diminuio global do consumo, a concentrao espacial dos residentes e das atividades no deixa de acarretar uma concentrao espacial do usos de combustvel e, pois, uma concentrao das poluies por fontes mveis. Em espaos densamente utilizados, isto tenderia a ocasionar um crescimento da exposio das populaes aos riscos da poluio atmosfrica. Isto porque o consumo de energia ligado s migraes alternantes diminui pouco com a concentrao urbana, dadas condies invariveis da estrutura de transporte. A fonte mais poderosa de economia de combustvel seria, assim, a mudana do modo de transporte em zona densa, ou seja, o favorecimento real de uma transferncia modal em favor do transporte coletivo pouco poluente37.
As emisses de CO2 no Brasil so basicamente devidas ao desflorestamento, cujo volume emitido 7 vezes superior s emisses de origem energtica. As emisses energticas brasileiras de CO2 so bastante inferiores s observadas em outros pases devido ao nvel de produo industrial do pas e ao fato de a matriz energtica estar centrada na hidroeletricidade 38. O papel da urbanizao no desmatamento das florestas tropicais em geral considerado muito pouco relevante pela literatura cientfica. Em um levantamento realizado por pesquisadores do Departamento de Ecologia Humana da Universidade de Rutgers em 825 artigos discutindo as causas do desmatamento colocou a urbanizao em 19 lugar entre as 20 principais causas 39.
36 Cf. M.D.Lowe, Shaping Cities: the Environmental and Human Dimensions, Worldwatch Paper 105, Washington, october 1991, p. 16. 37 Cf. P. Mathis. Consommation dnergie et Pollutions Lies ltalement des Densits, in J. P. Gaudemar (org.), Environnement et Amnagement du Territoire, DATAR/La Documentation Franaise, 1996, Paris, p.106. 38 Cf. R.S. da Motta, Poltica de Controle Ambiental e Competitividade, MCT/FINEP/PADCT, Estudo de Competitividade da Indstria Brasileira, Campinas, 1993, p. 65. 39 Cf. T. K. Rude et alii, Tropical Deforestation Literature: Geographical and Historical Patterns, Forest Resources Assessment Program, Working Paper n. 27, FAO apud C.S.Teixeira, Florestas Sociais uma Resposta Destruio das Florestas Tropicais? , Diss. Mestrado CPDA/UFRRJ, RJ, 2001, p. 39. 10 Os veculos automotores so as principais fontes de poluentes atmosfricos no Brasil. Segundo pesquisa realizada na RM de So Paulo em 1990, eles contribuam com mais de 90% nos casos do CO, HC e NOx, 64% no SOx e 40% nos particulados. A qualidade do ar nos centros urbanos est fortemente associada ao sistema de transporte coletivo que gera grande parte das emisses totais e incentiva o transporte individual, favorecendo perdas ambientais e ineficincia energtica 40. Em grandes cidades de pases industrializados, forte a correlao positiva entre a densidade populacional e a proporo de viagens feitas por transporte pblico 41. Tal correlao s pode ser observada, porm, em cidades em que o sistema de transportes coletivos objeto de polticas e investimentos apropriados.
Os indicadores de emisso de CO2 por habitante e por unidade de consumo de energia no Brasil so significativamente reduzidos se comparados com os dos pases mais desenvolvidos, o primeiro indicador exprimindo o baixo nvel de renda per capita no pas e o segundo evidenciando eficincia no uso de recursos renovveis endgenos42. Pesquisa da COPPE/UFRJ mostra que entre 1990 e 1998 o municpio do Rio de Janeiro aumentou em 57.7% suas emisses de gs metano (CH4) provavelmente em razo da melhoria da coleta de lixo e do maior acmulo de resduos em aterros sanitrios. Verificou-se tambm um pequeno aumento das emisses de CO2, em razo do aumento do nmero de veculos em circulao e da queda no uso do lcool como combustvel. Apesar das tendncias ao aumento das emisses de gases estufa verificadas no Rio de Janeiro, a cidade de Berlim emitiu em 1990 quase quatro vezes mais gases- estufa do que o que se emitiu na cidade do Rio de Janeiro em 1998 43.
Se observamos os dados sobre emisso de gases-estufa por setores de uso final de energia, o setor de transporte responde por parte considervel (em estimativas que variam entre 32.5% e 42%) do total das emisses de CO2 do Brasil 44. No entanto, a despeito de um modelo urbano que favorece o uso do automvel, a relao habitante/automveis , no Brasil, extremamente alta se comparada com as de outros pases produtores. Em que pese a indstria automobilstica estar implantada no Brasil h mais de
40 Cf. R.S. da Motta, Indicadores Ambientais no Brasil Aspectos Ecolgicos, de Eficincia e Distributivos, IPEA, Textos para a Discusso n. 403, RJ, 1996, p. 46. 41 Cf. E.A. Vasconcellos I. M. O. Lima, Quantificao das Deseconomias do Transporte Urbano: uma resenha da experincia internacional, IPEA, Texto para a Discusso n. 586, RJ, 1998, p. 13. 42 cf. L. P. Rosa- M. R. Tolmasquim, An Analytical Model to Compare Energy-efficiency Indices and CO2 Emissions in Developed and Developing Countries, in L.P.Rosa et alii, Carbon Dioxide and Methane Emissions: a Developing Country Perspective, RJ, COPPE/UFRJ, 1996,pp. 30-32. 43 Cf. D. Nogueira, Rio Avalia os Gases do Efeito Estufa, in Jornal do Brasil, 13/8/2000, p. 21. 44 Cf. E. L. La Rovere, A Sustentabilidade da Produo de Energia no Brasil, PNUD, mimeo, out. 1995, p. 17 e I. Klabin, O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo e as Oportunidades Brasileiras, in Parcerias Estratgicas, outubro 2000, n.9, Braslia, p.47. Ver tambm L. A.B. Uria, Emisso de Gases de Efeito Estufa no Setor de Transportes e seu Potencial de Aquecimento Indireto: o caso dos automveis e veculos comerciais leves no Brasil, Diss. Mestrado COPPE/UFRJ, 1996 e A G. Monteiro, Estratgia de Reduo de emisses de Poluentes no Setor de transportes por Meio de Substituio Modal na Regio Metropolitana de So Paulo, Diss. Mestrado, COPPE/UFRJ, 1998. 11 40 anos, e o Pas ser o dcimo-primeiro produtor mundial de veculos, sua relao habitantes/veculos (10,3 em 1996) o coloca na dcima-oitava posio entre os pases produtores, atrs do Mxico, da Coria do Sul e da Argentina.
Os altos investimentos realizados na indstria automobilstica brasileira nos ltimos anos elevaram, sobremaneira, sua capacidade instalada, que estimada aproximativamente entre 2,5 milhes de unidades/ano a 3,5 milhes de unidades/ano45. Dados para a dcada de 90 mostram que os ndices de crescimento do licenciamento de carros novos no Brasil bastante elevados se comparados aos dos pases mais desenvolvidos 46. No entanto, em 1998, foram emplacadas apenas 1.535 mil unidades no Brasil, o que revela que existe uma capacidade ociosa bastante grande nesta indstria 47. Pois alm de reduzido, o mercado brasileiro de automveis oscila fortemente de acordo com as crises internacionais e as conjunturas econmicas. Em 1998, por exemplo, em funo da crise russa, foram licenciados 400 mil veculos a menos do que no ano anterior.
Dados da indstria automotiva mostram uma elevada concentrao espacial na demanda por automveis, o que aponta para a possibilidade de permanentes impactos sobre as cidades brasileiras. A cidade de So Paulo, por exemplo, conta, hoje, com a maior frota nacional, que tem crescido a uma mdia de 6% a.a. Todos os dias, 1,5 mil veculos so a ela incorporados. A velocidade mdia nos principais corredores virios tem decrescido sistematicamente, tendo alcanado 20 km/h em 1994. Por outro lado, entidades ambientalistas estimam que morrem cerca de 300 crianas por ano em razo da poluio advinda dos escapamentos dos carros 48. Estes indicadores exprimem as implicaes ambientais da opo automobilstica para as cidades brasileiras.
A entrada massiva de automveis no centro urbano das cidades no foi acompanhada de alteraes no padro histrico de ocupao do solo urbano da cidade. Os investimentos urbanos, tanto em infra- estrutura quanto em embelezamento, no perodo de expanso da oferta de automveis no pas, concentraram-se nos ncleos urbanos. Assim, a concepo urbana que, nos Estados Unidos, permitiu a
45 Cf. Vigevani e Veiga, p. 348; BNDES. AO2, GGSCA, Abril de 2000, Indstria automobilstica no Mercosul, p. 5, apud F. Limoncic, A Insustentvel Civilizao do Automvel A Indstria Automotiva Brasileira em Tempos de Reestruturao Produtiva; Projeto Brasil Sustentvel e Democrtico, Cadernos Temticos, RJ, 2001, p.31.
46 cf. W. Meiners, Novo Ciclo de Investimentos da Indstria Automobilstica no Brasil e seus Desdobramentos regionais, in Cadernos IPPUR/UFRJ, vol. XIII, n.1, jan. jul. 1999, pp.199. 47
Como afirmou Jack Smith, chairman da General Motors: Temos muitas fbricas; precisamos agora vender carros in Valor, 18/7/2000, apud F.Limoncic, op.cit., p.31.
48 Cf. Greenpeace, Automveis: sade agredida e alteraes no clima do planeta; 7.7.2000 apud F. Limoncic, op. cit.p.35. 12 absoro de um nmero crescente de carros nas cidades, resultando em subrbios com baixas densidades populacionais e amplos espaos para a circulao de veculos, no se verificou nas cidades brasileiras. Pelo contrrio, os ncleos urbanos tiveram sua populao adensada, principalmente atravs da acelerada verticalizao. Em alguns pontos do Rio de Janeiro, como Copacabana, casas com menos de 30 anos foram derrubadas para a construo de prdios de vrios andares. Com uma rea equivalente a 0,4% do territrio do municpio, Copacabana abriga, nos dias de hoje, 2,9% de sua populao49.
No incio dos anos 50, a construo de prdios sem garagem para a classe mdia era um indicativo de que o automvel ainda no havia se constitudo como um bem no horizonte de consumo desta classe e que s viria a se incorporar ao seu estilo de vida e projeto de ascenso social como meio de distino social, aps a instalao da indstria automobilstica no Pas. A adequao do espao da moradia da classe mdia ao automvel s viria a ocorrer, no Rio de Janeiro, por exemplo, no final dos anos 50, quando foi aprovada a lei que obrigava as novas construes a terem espao reservado ao estacionamento de automveis50.
Os anos 1960 caracterizaram-se pelo esforo de adequar o espao urbano das principais cidades brasileiras s necessidades do automvel, privilegiando, portanto, as camadas de maior poder aquisitivo. A emergncia de uma febre rodoviria nestas cidades significou, por outro lado, a destruio ou degradao de espaos pblicos ou residenciais, principalmente nos bairros que estavam no caminho das autovias que ento se abriam. Por outro lado, a opo rodoviria refletiu-se tambm na quase exclusividade do transporte coletivo por meio de nibus no permetro urbano, com a supresso dos bondes e a oferta limitada do metr 51.
Em 1994, os nibus transportaram, no Rio de Janeiro, 1,3 bilho de passageiros52, ou seja, um nmero prximo ao do que circulou, por metr, em Paris. Em que pese o fato de as grandes cidades brasileiras no terem seguido os traos das cidades americanas para a absoro dos automveis, a propriedade e uso destes meios de transporte passaram a fazer parte dos mecanismos de distino social da classe mdia brasileira. Na dcada de 1970, um estudo da Fiat demonstrou que um motorista brasileiro rodava, em mdia, por ano, quase duas vezes mais do que um italiano. Configurou-se assim no Brasil um padro de consumo de automveis anlogo ao da modernidade fordista norte-americana, sem a correspondente
49 cf. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. IPLAN-RIO. Op. cit. apud F. Limoncic, op. cit. 50 cf. M. Malin e I. Junqueira, Ivan. "Negro de Lima" in Beloch, Israel e Abreu, Alzira Alves de. Dicionrio Histrico Biogrfico Brasileiro, 1930-1984. Rio de Janeiro: Forense Universitria/FGV/CPDOC/Finep, 1984, p. 1851-1854, apud F. Limoncic, op. cit. 51 cf. F. Limoncic, op. cit. 52 Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. IPLAN-RIO. Anurio Estatstico da cidade do Rio de Janeiro 1993/1994, apud F. Limoncic, op. cit.. 13 alterao dos modos de uso do solo que poderiam contribuir para evitar os congestionamentos e os altos nveis de emisso de poluentes.
O modo de uso do solo urbano e o padro de mobilidade que caracterizou as cidades brasileiras a partir dos anos cinqenta esteve, como veremos a seguir, fortemente associado ao padro mais geral de distribuio espacial das atividades condicionado pela dinmica especfica da modalidade brasileira do chamado fordismo perifrico. 3. A Espacializao do Desenvolvimento e a Urbanizao Brasileira
O padro de distribuio espacial das atividades econmicas e das cidades relaciona-se historicamente com os distintos modos de insero da economia brasileira nos fluxos internacionais de comrcio e investimento. At as primeiras dcadas do sculo XX, as diferentes regies do pas no se ligavam significativamente umas s outras: articulavam-se predominantemente com o mercado externo. Ferrovias e portos asseguravam a integrao das regies produtoras aos fluxos mundiais de comrcio. Caminhos de gado ligavam as capitais ao interior: as velhas estradas abertas pelas boiadas no sculo XVII serviam ao transporte de escravos e produtos manufaturados para as regies aurferas de Minas Gerais no sculo XVIII. As vias frreas interiores no conseguiam mobilizar os capitais, motivados, notadamente aps sua desvinculao do trfico de escravos, preferencialmente pelo setor bancrio e a manufatura de tecidos. Proprietrios de terra ademais ofereciam resistncia em aceitar que suas terras fossem atravessadas por ferrovias 53. Apesar dos indcios do que alguns autores consideram um movimento de acumulao endgena, protagonizado por uma elite mercantil atuante no mercado interno, a demanda internacional manteve-se no comando da dinmica produtiva do pas, definindo os principais contornos da trama espacial das vias de escoamento da produo.
Com as crises que atingiram as regies exportadoras e o surgimento de condies de sustentao de uma expanso industrial nos anos trinta, desenvolveu-se porm uma crescente articulao comercial entre as regies. Com o processo de industrializao, foram-se desenvolvendo complementariedades inter- regionais. Uma relativa especializao das regies acompanhou a crescente integrao nacional da economia. At o final dos anos 40, o comrcio internacional ainda superava por larga margem o comrcio inter-regional, realizado majoritariamente atravs da cabotagem. Investimentos em infra- estrutura construram as pontes no interior do antigo arquiplago, intensificando a acessibilidade entre
53 cf. K. M. Mattoso, Bahia Sculo XIX uma provncia do Imprio, Ed. Nova Fronteira, RJ, 1992. 14 as partes no interior de um verdadeiro sistema de transportes configurado efetivamente nos anos 50. Com a enorme expanso do comrcio inter-regional na dcada de 50, a cabotagem passou a ter carter marginal, tornando-se o caminho o veculo de transporte dominante na circulao interna de mercadorias 54.
Como centro articulador da demanda, o Sudeste passou a protagonizar o processo de concentrao espacial da produo, mas tambm o concomitante movimento de concentrao oligoplica da economia. O desenvolvimento industrial paulista comeou a definir a diviso regional do trabalho no espao nacional.
A partir dos anos sessenta, no entanto, a integrao do mercado nacional passara a contar com polticas de desenvolvimento regional, pelas quais o Estado estimulava a industrializao perifrica, atravs de incentivos fiscais e do apoio implantao de plantas industriais estatais e privadas. O crescimento da infra-estrutura econmica promovido pelo Estado contribuiu igualmente para o processo de desconcentrao industrial: a malha rodoviria pavimentada federal e estadual multiplicou-se por quatro entre 1960 e 1970. A partir dos anos 70, verificou-se, portanto, uma tendncia desconcentrao industrial no espao territorial, com um aumento simultneo da heterogeneidade intra-regional, dados os diferentes tipos de integrao ao mercado nacional estabelecidos. A articulao, at ento apenas de natureza comercial, foi complementada por uma articulao propriamente produtiva entre os espaos sub-nacionais. Capitais transferiram-se para as regies menos industrializadas na busca de novas frentes de investimento e da ocupao de espaos econmicos. A disponibilidade de recursos naturais e a configurao da ao indutora do Estado foram os elementos determinantes da mobilidade dos capitais 55. A circulao de mercadorias fez-se ento acompanhar por uma crescente articulao dos capitais no espao inter-regional, configurando uma lgica de acumulao cada vez mais integrada, que tornou as economias regionais mais complexas e internamente mais heterogneas. Entre 1970 e 1980, o nmero de reas industriais com mais de 10.000 pessoas ocupadas subiu de 33 para 76 em todo o pas. Verificou-se tambm um processo de reverso do movimento de polarizao na rea Metropolitana de So Paulo, cuja participao no emprego e na produo industrial caiu de 34% e 44% respectivamente para 28% e 29% entre 1970 e 1985 56.
54 cf. O. J.A. Galvo, Comrcio Interestadual por Vias Internas e Integrao Regional no Brasil, in Anais do XXI Encontro Nacional da de Economia, ANPEC, Belo Horizonte, 1993, p.278. 55 cf. - Guimares Neto, L., Desigualdades Regionais e Federalismo, in R. B. Alvares Affonso P.L.B. Silva (eds.), Federalismo no Brasil, Fundap/UNESP, 1995, SP, p.14. 56 cf. - Campolina Diniz, C., Reestruturao Econmica e Impacto Regional: o novo mapa da indstria brasileira, in Nova Economia, BH, vol. 6, n.1, jul. 1996, p. 84. 15
O processo de desconcentrao no chegou a alterar significativamente o padro de articulao espacial das atividades produtivas no pas, nem a diviso inter-regional do trabalho vigente por dcadas, sendo por isso freqentemente caracterizado como um processo de desconcentrao centralizada. O que observou-se foi, assim, uma desconcentrao seletiva, pela qual as regies menos desenvolvidas se rearticularam com a regio mais industrializada atravs da reafirmao do padro especializado de suas economias. O carter de tal modo limitado do processo de desconcentrao apresentou, sem dvida, estreita relao com a falncia do Estado desenvolvimentista e das polticas que haviam amparado anteriormente a construo do mercado interno 57.
O processo de concentrao espacial da produo, assim como o chamado processo de desconcentrao centralizada, tendeu a acentuar no espao os impactos ambientais das atividades, sejam eles decorrentes dos perfis tcnicos das mesmas, seja pelos efeitos de aglomerao que pudessem provocar. Os impactos das opes tecnolgicas como, por exemplo, os da devastao de reas de Mata Atlntica pela concentrao espacial da siderurgia a carvo vegetal assim como os impactos de aglomerao decorrentes das opes locacionais como os da poluio intensiva em plos do tipo de Cubato foram ainda magnificados quando a concentrao espacial associou-se a altas taxas de crescimento econmico.
O que verificou-se, a partir dos anos setenta, foi, por outro lado, o incremento da influncia do comrcio internacional no dinamismo das regies produtoras. No incio dos anos setenta, o desempenho exportador esteve associado aos estmulos fiscais e financeiros governamentais, enquanto nos anos oitenta, por sua vez, as exportaes associaram-se retrao do mercado interno e instabilidade econmica. Transformou-se paralelamente a intensidade relativa das relaes da economia paulista com o conjunto da economia nacional, tendo a primeira, entre 1975 e 1985, se extrovertido progressivamente em direo ao mercado internacional e se fechado relativamente s demais regies brasileiras 58. Mas mesmo sem significar ainda uma desarticulao da economia nacional e de seu mercado interno, a reduo da articulao comercial de So Paulo com o mercado nacional indicou que, a partir dos oitenta, novas formas de articulao espacial da economia comeavam a se instaurar.
Nos anos noventa, a poltica de abertura comercial e a priorizao dada chamada insero competitiva do pas rompeu com o processo de constituio de uma base econmica nacionalmente
57 cf. C. A. Pacheco, - Pacheco, C. A., Fragmentao da Nao, Instituto de Economia, UNICAMP. Campinas, 1998, p. p. 229. 58 cf. Diniz e Santos, 1993, apud Guimares, op. cit., p. 24-26 16 integrada que desconcentrava atividades ao longo dos espaos perifricos. A globalizao parece ter vindo assim reforar as tendncias especializao regional: as empresas passaram a adotar estratgias de localizao norteadas pela oferta de recursos humanos qualificados, pela proximidade com os centros produtores de tecnologia, a maior e mais eficiente dotao de infra-estrutura econmica e a proximidade com mercados consumidores de mais alta renda. Foram-se, ao longo dos anos 90, evidenciando focos dinmicos em diferentes pontos situados no interior das macro-regies brasileiras, refletindo o carter espacialmente seletivo dos investimentos que delineiam a diviso do trabalho entre as regies e definindo uma tendncia reconcentrao geogrfica da produo na regio que vai do centro de Minas Gerais ao Nordeste do Rio Grande do Sul. neste subespao que comearam a surgir nos anos 90 novas reas industriais localizadas em cidades mdias, caracterizadas por uma forte integrao produtiva e comercial numa rede intra e inter-regional59 .
Quadro 1 Espacialidade do Desenvolvimento, Urbanizao e Circulao de Mercadorias Quadro Sntese
Perodo Espacialidade do desenvolvimento Rede de Circulao de Mercadorias Antes dos anos 30 Arquiplago econmico Ferrovias e portos voltados para a exportao. Caminhos de gado e cabotagem servem ao mercado interno Dos anos 30 aos 50 Articulao comercial entre as regies. Relativa especializao regional Cabotagem transporta matrias- primas e alimentos. Rodovias transportam manufaturados Anos 50 Economia nacional integrada e regionalmente localizada. Concentrao industrial no Sudeste Caminho passa a dominar a circulao interna de mercadorias. Construo de rodovias de penetrao no NO, NE e CO
59 cf- C.Campolina Diniz, Reestruturao Econmica e Impacto Regional: o novo mapa da indstria brasileira, in Nova Economia, BH, vol. 6, n.1, jul. 1996, p.100. 17 Anos 60 Polticas de desenvolvimento regional e industrializao perifrica Expanso de malha viria pavimentada. Apogeu do rodoviarismo Anos 70 Articulao produtiva entre as regies. Aumento da heterogeneidade intra-regional. Expanso das fronteiras agrcola e mineral. Desconcentrao industrial concentrada. Maior articulao comercial da economia do SE com o mercado internacional Rodovias integram projeto geopoltico da ditadura. Corredores de transporte voltados para as exportaes agrcolas e esforo de modernizao dos transportes ferrovirios. Anos 80 Extroverso da economia por retrao do mercado interno e crise da dvida externa Crise do financiamento pblico e queda dos investimentos em expanso e manuteno da rede de transportes Anos 90 Abertura comercial refora especializao regional. Reduo do ritmo de desconcentrao econmica a partir do Centro-Sul. Desconexo de certas reas com relao ao dinamismo econmico nacional Estradas so apresentadas como componente do Custo Brasil e fator de limitao da competitividade da economia. Concesses rodovirias ao setor privado. Privatizao da malha ferroviria. Arrendamento de terminais e instalaes porturias
URBANIZAO (cont. do Quadro 1) 18 Antes de 30 - as cidades agrocomerciais e martimas so o locus de comercializao da riqueza produzida no campo; ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- De 1930 a 1950 - cidades so criadas por induo de uma industrializao restringida; migrao rural-urbana do Nordeste e Minas Gerais para o Sudeste; criao de pequenas cidades associadas expanso da fronteira agrcola para o Paran e Mato Grosso. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Anos 50 - incio da constituio de uma rede urbana como expresso do crescente mercado domstico; crescimento demogrfico por diminuio da mortalidade e por reduo da taxa de fecundidade nas cidades; modernizao da infraestrutura de transportes e de comunicao. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Anos 60 - afirmao da concentrao populacional e industrial em So Paulo. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Anos 70 - crescimento de cidades mdias paulistas, associado desconcentrao centralizada a partir de So Paulo. Acelerada urbanizao do NO, NE e CO a partir de 1975, com diversificao de servios e criao de indstrias leves de base local. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Anos 80 - reduo do ritmo de crescimento das metrpoles pela crise fiscal e financeira do Estado; aparecimento de novos centros dinmicos decorrentes de investimentos industriais de primeira transformao de recursos naturais; emergncia de cidades mdias entre o centro de Minas Gerais e o nordeste do Rio Grande do Sul, nucleando novas reas industriais com forte integrao produtiva e comercial intra e inter-regional. Crise econmica reduz o ritmo as migraes para o Sudeste e retm populaes nas pequenas cidades e na agricultura familiar. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Anos 90 - desindustrializao relativa de grandes cidades por presses ambientais, sociais e deseconomias de aglomerao; desenvolvimento do setor servios em cidades crescentemente envolvidas na competio interurbana por fundos 19 privados; esgotamento do processo de desconcentrao econmica. Importante crescimento urbano no metropolitano.
Ao longo do sculo XX, a distribuio espacial das atividades esteve associada ao extremamente marcante processo de urbanizao da sociedade brasileira. A proporo da populao residente nas cidades quase dobrou entre 1960 e o ano 2000: representando 44.67% da populao brasileira total em 1960, a populao urbana passou a representar 82 % no ano 2000. Do ponto de vista de suas implicaes espaciais, o processo de urbanizao conduziu-se atravs de dois movimentos simultneos: a criao de novas cidades e o crescimento contnuo das existentes60. Expresso destes movimentos foi a passagem
60 cf. Ministrio do Meio Ambiente, Os Ecossistemas Brasileiros e os Principais Macrovetores do Desenvolvimento Subsdios ao Planejamento da Gesto Ambiental; PNMA, Braslia, 1995, p.30. 20 do nmero de cidades com mais de 500 000 habitantes de 3, em 1940, situadas apenas no Sudeste e no Nordeste, para 17 em 1996, situadas em todas as grandes regies do pas 61.
Durante o perodo 1940-70, houve um crescimento contnuo e expressivo da participao das cidades de maior tamanho na populao urbana e total. Na dcada de 70, verificou-se uma interrupo dessa tendncia e, na dcada de 80, uma inverso da mesma 62. Observou-se nesta dcada uma mudana no padro de urbanizao brasileiro, dado o arrefecimento da migrao rural-urbana e inter-regional, especialmente na regio Sudeste. Foi notvel o crescimento das reas rurais, das localidades pequenas e da rede urbana nordestina. Foi importante no perodo a reduo do processo de metropolizao demogrfica; ou seja, caiu a participao do crescimento das Regies Metropolitanas no crescimento demogrfico total do pas. Paralelamente ao declnio do processo de concentrao em grandes cidades, observou-se uma periferizao do crescimento demogrfico a taxa de crescimento dos municpios perifricos foi significativamente superior ao de seus respectivos municpios ncleos. Tais processos eram explicados pela desconcentrao industrial, a chamada contra-urbanizao (tendncia a que se busque residncia e trabalho fora das grandes cidades), a queda da fecundidade e o efeito cumulativo da ocupao das fronteiras com a constituio de cidades distribudas no interior do territrio nacional63. a partir dos anos 80, tambm que configura-se no Brasil uma rede urbana bem estruturada, na qual o fenmeno da primazia, ou seja, da grande dominncia de uma s cidade sobre outras a nvel intra- estadual, passa a ser muito reduzido.
Nas trs ltimas dcadas do sculo XX, as cidades mdias brasileiras aquelas com populao entre 100 mil e 500 mil habitantes - absorveram os fluxos migratrios que anteriormente dirigiam-se para as grandes metrpoles. Desta forma, contriburam fortemente para a configurao de uma rede urbana menos polarizada. Contribuiu tambm para isto a criao de pequenos ncleos urbanos em reas de fronteira de ocupao e de fronteira de modernizao a partir de dinmicas desencadeadas por empresas dedicadas valorizao fundiria atravs de loteamentos urbanos em reas de expanso agrcola este o caso de vrios ncleos ligados valorizao do cerrado baiano. Outras cidades pequenas se especializaram em certas atividades produtivas, reinserindo-se de modo singular na rede urbana globalizada por intermdio de atividades voltadas para a moderna agricultura praticada em seu hinterland, o que conferiu a estes centros um carter de cidades no campo64.
61 cf. UNICAMP/IPEA/IBGE, Caracterizao e Tendncias da Rede Urbana do Brasil, vol. I, Campinas, 1999, p.323. 62 Cf. G. Martine, A Evoluo Espacial da Populao Brasileira, in R.B.A .Affonso P.L.B. Silva (orgs.), Federalismo no Brasil Desigualdades Regionais e Desenvolvimento, UNESP/FUNDAP, 1995, SP, p. 78. 63 Cf. G. Martine, op. cit., p. 83. 64 Cf. R. L. Correa, Globalizao e Reestruturao da Rede Urbana uma nota sobre as pequenas cidades, in Territrio, n. 6, jan.jun. 1999, p. 47. 21
O papel amortecedor das cidades mdias atenuou-se, porm, ao longo dos anos 90. Diferentemente da dcada de 80, as regies metropolitanas cresceram nos anos 90 em ritmo superior ao conjunto do pas. Apesar das cidades mdias com populao entre 100 mil e 500 mil habitantes terem crescido em ritmo mais acelerado que o das RMs, este diferencial de crescimento caiu, nos anos 90, em relao ao perodo 1980/1991. A preferncia governamental pelo apoio ao escoamento de produtos exportveis, a perda de capacidade de investimento pblico, a busca de efeitos de proximidade e economias externas pelas empresas envolvidas na produo flexvel so fatores que parecem ter contribudo para fortalecer novamente, nos anos 90, o papel dos grandes centros 65.
Ao longo dos anos 80 e 90, o maior grau de abertura da economia concorreu para um aumento na heterogeneidade econmica e social do pas e para uma mudana no padro de mobilidade da populao, alterando-se consequentemente a configurao do sistema brasileiro de cidades. Entre as principais transformaes observadas na rede urbana brasileira na passagem do sculo XXI so apontadas a criao de novos centros urbanos em associao com a industrializao do campo a criao de centros de comercializao e beneficiamento da produo agrcola, de distribuio varejista e prestao de servios ou como reservatrio de fora de trabalho temporrio. Ampliou-se assim a presena de cidades que funcionam como centros de drenagem de renda fundiria vinculada s atividades associadas modernizao do campo. Tornaram-se, por outro lado, mais complexas as funes urbanas e as interaes entre centros de tamanhos distintos localizados em regies diferentes. A estas interaes mltiplas entre diferentes circuitos urbanos soma-se o aparecimento crescente de espaos vazios ou sub- ocupados que expressam a relativa desvinculao entre as dinmicas urbanas e o campo circundante 66.
As novas atividades industriais tenderam a se localizar fora das reas metropolitanas, tendo em vista a crescente disposio empresarial de evitar as deseconomias de aglomerao. Muitas cidades pequenas e mdias cresceram no perodo em razo do desenvolvimento da agroindstria, da agricultura irrigada e da urbanizao de fronteira, o que, juntamente com a desestabilizao da agricultura familiar, estimulou a migrao de curta distncia como alternativa ao deslocamento at ento corrente para as grandes metrpoles, onde a partir do final dos anos 80 concentraram-se os efeitos danosos da reestruturao produtiva sobre o mercado de trabalho. As tendncias desconcentrao da economia, verificada nos anos 80, notadamente pela interiorizao da indstria paulista, em paralelo com o menor ritmo de
65 Cf. T.A. Andrade R.V.Serra Fluxos Migratrios nas Cidades Mdias e Regies Metropolitanas Brasileiras a experincia do perodo 1980/96, IPEA, Texto para a Discusso n. 747, RJ, 2000. 66 Cf. R.L.Correa, Reflexes sobre a Dinmica Recente da Rede Urbana Brasileira, in IX Encontro Nacional da ANPUR, RJ, 2001, pp. 10-12. 22 crescimento das aglomeraes urbanas metropolitanas, contriburam para a configurao de uma rede de cidades mais dispersa e relativamente desconcentrada67. Com exceo da regio Nordeste, onde o crescimento de algumas reas metropolitanas revelou-se ainda elevado nos anos 80 e 90, as cidades de porte mdio apresentaram taxas mdias de crescimento superiores s das metrpoles. As tendncias terceirizao e precarizao do trabalho nas grandes cidades, no s bloquearam a mobilidade para os grandes centros como incentivaram migraes de retorno, contribuindo para a consolidao de um subsistema de aglomeraes urbanas no metropolitanas.
Em que pese o fato das metrpoles continuarem concentrando volumes expressivos de populao, estas perderam peso nas ltimas duas dcadas, para algumas aglomeraes urbanas como Campinas e Vitria, bem como para um certo nmero de centros urbanos com mais de 100 mil habitantes68. Verificou-se, assim, um crescimento populacional mais significativo nas antigas periferias econmicas e nos centros urbanos mdios, estendendo-se a urbanizao em direo ao Oeste. Novas aglomeraes urbanas foram tambm incorporadas rede urbana nacional que foi-se dotando de complexidade crescente69. Tal complexidade reside no s na constituio estrutural da trama da rede como na prpria configurao socioespacial interna s cidades. De um lado, um certo nmero de ncleos urbanos relativamente pequenos caracterizam-se por abrigar grupos populacionais plenamente integrados ao mercado nacional, seja por seu padro de consumo, seja por suas articulaes aos circuitos produtivos e culturais. Por outro lado, os grandes e mdios centros urbanos so crescentemente atravessados por processos de diferenciao social e segmentao socioespacial, abrigando significativos contingentes sociais de excludos dos processos de modernizao. Estas dicotomias internas s cidades rebatem-se, por certo, sobre a prpria rede urbana, que passa a exprimir a articulao predominante das partes modernas e monetariamentre integradas das cidades e de seus segmentos sociais de mais alta qualificao e renda, mais suscetveis de se vincularem aos circuitos extrovertidos e globalizados da acumulao. Parcelas significativas das populaes das metrpoles e das grandes cidades vincular-se-o, por sua vez, aos circuitos do trabalho informal, da moradia de risco e do acesso precrio s infraestruturas urbanas.
A dinmica espacial dos sistemas urbanos, de acordo com os resultados da pesquisa Caracterizao e Tendncias da Rede Urbana do Brasil, compreende os seguintes processos articulados70:
67 cf. UNICAMP/IPEA/IBGE, Caracterizao e Tendncias da Rede Urbana do Brasil, vol. I, Campinas, 1999, p.11. 68 UNICAMP/IPEA/IBGE, op. cit., p.23. 69 cf. UNICAMP/IPEA/IBGE, Caracterizao e Tendncias da Rede Urbana do Brasil, vol. I, Campinas, 1999, p292. 70 cf. UNICAMP/IPEA/IBGE, op.cit., p.380. 23 a-
o adensamento no entorno dos ncleos metropolitanos ou centros urbanos de grande porte que encabeam os sistemas; b-
a expanso de suas reas de influncia para alm dos limites poltico-administrativos das unidades federativas originais c-
a conformao de novos sistemas a partir da consolidao de centros de polarizao emergentes, principalmente nas rea as de povoamento recente, como o caso de Cuiab; d-
um processo de metropolizao diferenciado, abrangendo desde sistemas macroceflicos como o do Rio de Janeiro at um sistema articulado de centros regionais como o nucleado por So Paulo; e-
a disperso espacial de pequenos centros urbanos, responsvel pela organizao do espao nas reas abertas recentemente na fronteira de recursos, notadamente na regio Centro Norte.
A dinmica espacial acima descrita concorre para a configurao de uma distribuio espacial de densidades populacionais urbanas bastante diferenciada no interior do territrio nacional. Podemos identificar a distribuio destas densidades a partir da configurao das aglomeraes urbanas metropolitanas e no-metropolitanas delineadas pela pesquisa acima citada. No interior destas aglomeraes, encontraremos distintos padres de distribuio das densidades, a saber: a)
Ncleos de alta densidade populacional com municpios do entorno com densidades populacionais que lhes so ainda superiores. o caso de So Paulo, que tem em seu entorno municpios de densidade populacional ainda maiores como Diadema, Osasco, So Caetano do Sul e Taboo da Serra, e do Rio de Janeiro, que tem em seu entorno municpios mais densos como os de So Joo de Meriti, Nilpolis e Belford Roxo. Esta configurao aplica- se tambm aos casos de Santos e Campinas (com densidades menores e apenas dois municpios de entorno comparativamente mais densos), Belm, Joo Pessoa e Maring (com densidades mais baixas e apenas um municpio do entorno com densidade comparativamente maior que o ncleo da aglomerao). b)
Aglomeraes formadas por um conjunto de municpios de densidade moderada e de nveis similares entre si tal como a aglomerao nucleada por Porto Alegre, tendo em seu entorno os municpios de Alvorada, Esteio, Canoas e Cachoeirinha. Este seria tambm o caso da aglomeraes de Londrina, Caxias do Sul e So Jos dos Campos. c)
Aglomeraes formadas por um ncleo denso e de um sub-centro de menor densidade demogrfica. Estes so os casos das aglomeraes urbanas de Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza, Curitiba, Goinia, Vitria e Jundia. d)
Aglomeraes em que o ncleo no tem nenhum sub-centro significativo em seu entorno, como So Lus, Macei, Natal, Aracaju e Ribeiro Preto.
24 Se considerarmos os dois primeiros padres de distribuio de densidades demogrficas em aglomeraes urbanas, veremos que eles pressupem dinmicas de deslocamento intra-aglomerao distintos. Se a existncia de uma aglomerao densa pode sugerir menores distncias/tempos de deslocamento entre residncia e trabalho, os nveis muito elevados de densidade, podem, por sua vez, sugerir, ao contrrio, maiores possibilidades de congesto de trfego, tempos maiores de deslocamento e maiores dispndios em energia com o transporte. A Pesquisa sobre Padres de Vida, para 1996-1997, realizada pelo IBGE em seis regies metropolitanas, sendo trs do Sudeste e trs do Nordeste, mostrou que 36.4% dos indivduos vo ao trabalho a p ao trabalho, enquanto 24.8% utilizam transporte coletivo e 14.3% usam carro ou moto. A pesquisa mostrou tambm que na regio metropolitana de So Paulo, os indivduos que utilizam transporte coletivo para ir ao trabalho despendem para tanto o tempo mdio de 63 minutos; na regio metropolitana do Rio de Janeiro, este tempo de 54 minutos e na de Belo Horizonte, 47 minutos. Nas cidades do Nordeste, onde as densidades populacionais so menores, este tempo mdio de 52 minutos, em Fortaleza, de 42 em Recife e de 39 minutos em Salvador 71. Nos casos de So Paulo, Rio de Janeiro, mas tambm de Santos e Campinas, a existncia de um certo nmero de sub-centros mais densos do que o prprio ncleo da aglomerao urbana sugere, antes do que a justaposio de vrias cidades compactas com predominncia da mobilidade intra-urbana de curta durao, a prevalncia de estruturas estabilizadas, em que as dinmicas imobilirias no ncleo da aglomerao repelem as populaes de menor renda para sub-centros de seu entorno, o que pressupe a incidncia de deslocamentos constantes de trabalhadores entre os sub-centros do entorno e o ncleo da aglomerao. Tal no seria o caso, por certo, do segundo padro de distribuio de densidades populacionais acima descrito, configurado pelas aglomeraes urbanas de Porto Alegre, Londrina, Caxias do Sul e So Jos dos Campos, onde a maior moderao e a homogeneidade espacial das densidades populacionais urbanas entre os diferentes municpios sugeriria a prevalncia de maior grau de compactao na dinmica residncia-trabalho, basicamente intra-municipal, e, consequentemente, a possibilidade de que sejam menores os dispndios em energia no sistema de transportes.
A configurao das sub-redes urbanas mais adensadas que concentram parte considervel das populaes e atividades econmicas nas cidades brasileiras parece, portanto, combinar os processos de periferizao do crescimento demogrfico e de metropolizao da pobreza, contribuindo para aumentar o nmero e o tempo dos deslocamentos entre os locais de residncia da populao trabalhadora e seus locais de trabalho, alimentando permanentemente, pode-se supor, a importante contribuio dos transportes s emisses de Co2.
71 cf. IBGE, Pesquisa sobre Padres de Vida, 1996-1997, RJ, 1999, pp.140-141.
25 4. Consideraes Finais
A pesquisa relacionada s mudanas climticas desenvolvida na Comunidade Europia s comeou a tratar dos aspectos tecnolgicos, sociais e econmicos relevantes para apoiar a formulao de polticas, inclusive com a definio do foco na eficincia energtica, como resultado da politizao do efeito estufa em 1986. Para a formulao de polticas de combate s mudanas climticas, este efeito ambiental teve de ser traduzido nos termos de um problema tratvel e politicamente administrvel 72. Desta forma configurou-se o procedimento chamado por Hajer de fechamento do problema, pelo qual os discursos constituem a mudana ambiental global como objeto de polticas, de modo a poder apresent- la como passvel de soluo73. A transformao de evidncias climatolgicas nos termos de uma trama poltica passou assim pela seleo de aes relativas busca de eficincia energtica, o que permitiu que fossem associados os esperados benefcios ambientais obteno simultnea de benefcios econmicos.
Buttel e Taylor sustentam que aps um perodo inicial de lua de mel durante o final dos anos 80, a modelagem do clima global, as estimaes de perdas de biodiversidade e outros estudos das implicaes das mudanas ambientais tornaram-se objeto das disputas cientficas e, consequentemente, polticas. Segundo eles, porm, prevaleceu por muito tempo uma construo moral dos problemas ambientais globais que enfatiza o interesse comum nos esforos de seu enfrentamento, desviando a ateno das dificuldades polticas resultantes da diversidade de interesses sociais e de naes envolvidos neste enfrentamento 74. Mas j em 1988, o relatrio Swedish Perspective on Human Dimensions of Global Change chamava ateno para os processos de construo social do conhecimento cientfico sobre mudana global, destacando o papel da histria e da cultura na definio dos temas cientficos e polticos. neste contexto de construo social do problema que, em 1992, o relatrio da U.S. National Research Council sobre mudanas ambientais globais destacava a importncia da Geografia por exemplo, das distncias entre os assentamentos humanos e da Demografia por exemplo, da disperso das populaes em subrbios - na determinao do padro de consumo energtico 75.
72 cf. Liberatore, A., Facing Global Warming: the interaction between science and policy-making intje European Community, in M. Redclift T, Benton (eds.), Social Theory and the Global Environment, Routledge, London, 1994, p. 192. 73 Cf. M. Hajer, Politics of Environmental Discourse: Ecological Modernization and the Policy Process, Oxford, 1995. 74 cf. F. Buttel P. Taylor, How We Know We Have Global Environmental Problems? Science and the Globalization of Environmental Discourse, in Geoforum v. 23, n.3, 1992, p. 406. 75 cf. U.S. National Research Council, Committee on the Human Dimensions of Global Change, Global Environmental Change: Understanding the Human Dimension, Washington D.C., National Academy, 1992. 26 Em analogia com o que verificou-se na experincia europia, caberia perguntar de que dependeria a construo desta administrabilidade das mudanas ambientais globais no Brasil?. Parece relativamente pequena a presena de justificativas relacionadas a mudanas climticas no debate brasileiro sobre polticas urbanas. Estas polticas no parecem estar integrando de forma substantiva os temas polticos nos quais tm sido traduzidas as questes das mudanas climticas globais no pas.
Segundo pesquisa citada pelo The Economist, a qualidade do ar comea a tornar-se preocupao de poltica pblica a partir do momento em que o PIB por habitante alcana 5000 dlares. Poderamos disto inferir que os baixos ndices de desenvolvimento inibem a luta contra a poluio 76. Se considerarmos, hipoteticamente, que tal correlao possa ser estendida aos problemas menos imediatamente visveis como o das mudanas ambientais globais, seria espervel que a mobilizao sociopoltica em torno a tal tema venha a crescer paralelamente ao crescimento da renda per capita. Tal mobilizao pode associar- se, como vimos, ao eventual particular envolvimento de elites urbanas que venham a distinguir nos impactos das mudanas globais problema que lhes diga respeito, que parea afetar substancialmente seus projetos, que configure motivo suficiente para engajar a sua capacidade de se fazer ouvir na esfera pblica. Nada impede porm que representaes de setores populares tambm distingam e coloquem em evidncia as articulaes globais de lutas locais notadamente por moradia segura, saneamento urbano e transporte coletivo apropriado - por eles desenvolvidas no meio urbano. A experincia pregressa de Chico Mendes e das articulaes ambientais globais das lutas dos seringueiros da Amaznia assim parece o atestar. Bibliografia
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76 cf. J. Bind, Ville et Environnement au XXI Sicle, vol. 1, Les Enjeux, GERMES, Paris, 1998, p. 105. 27 Boehmer-Christiansen, S., Global Climate Protection Policy: the limits of scientific advice, in Global Environmental Change, 1994, 4 (2), p.141-.
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