O Conselho de Segurança das Nações Unidas discutirá a situação no Paquistão, país afetado por conflitos internos e tensões com a Índia. O Paquistão enfrenta desafios como ataques terroristas, instabilidade política e crise humanitária. Além disso, as tensões com a Índia sobre a região de Caxemira podem ameaçar a paz regional.
O Conselho de Segurança das Nações Unidas discutirá a situação no Paquistão, país afetado por conflitos internos e tensões com a Índia. O Paquistão enfrenta desafios como ataques terroristas, instabilidade política e crise humanitária. Além disso, as tensões com a Índia sobre a região de Caxemira podem ameaçar a paz regional.
O Conselho de Segurança das Nações Unidas discutirá a situação no Paquistão, país afetado por conflitos internos e tensões com a Índia. O Paquistão enfrenta desafios como ataques terroristas, instabilidade política e crise humanitária. Além disso, as tensões com a Índia sobre a região de Caxemira podem ameaçar a paz regional.
O Conselho de Segurança das Nações Unidas discutirá a situação no Paquistão, país afetado por conflitos internos e tensões com a Índia. O Paquistão enfrenta desafios como ataques terroristas, instabilidade política e crise humanitária. Além disso, as tensões com a Índia sobre a região de Caxemira podem ameaçar a paz regional.
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ORGANIZADORES
Willian Moraes Roberto
Jlia Tocchetto Marlia Closs PORTO ALEGRE, V.2, AGO. 2014 UFRGSMUNDI Porto Alegre v.2 p.1-207 2014 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL REITOR Prof. Carlos Alexandre Netto FACULDADE DE CINCIAS ECONMICAS DIRETOR Prof. Hlio Henkin CURSO DE RELAES INTERNACIONAIS COORDENADOR Prof. rico Esteves Duarte EDITORA-CHEFE Snia Ranincheski CONSELHO CONSULTIVO Analcia Danilevicz Pereira (UFRGS); Andr Reis da Silva (UFRGS); rico Esteves Duarte (UFRGS); Henri- que de Castro (UFRGS); Luiz Augusto Faria (UFRGS); Jacqueline Hafner (UFRGS); Jos Miguel Martins (UFRGS); Marco Aurlio Cepik (UFRGS); Snia Ranin- cheski (UFRGS). CONSELHO EDITORIAL Willian Moraes Roberto, Jlia Simes Tocchetto, Ma- rlia Bernardes Closs. CONSELHO EXECUTIVO Willian Moraes Roberto, Jlia Simes Tocchetto, Ju- liana Freitas, Marlia Bernardes Closs. CAPA E EDITORAO Liza Bastos Bischof APOIO Pr-Reitoria de Extenso; Pr-Reitoria de Planeja- mento; Centro Estudantil de Relaes Internacionais; UFRGSMUN. PARCERIA FINANCEIRA UFRGSMUN Back In School (BIS) Os materiais publicados no guia de estudos UFRGSMUNDI so de exclusiva responsabilidade dos autores. permitida a reproduo parcial e total dos trabalhos, desde que citada a fonte. Os artigos assinalados reetem o ponto de vista de seus autores e no necessariamente a opinio dos editores desta revista. UFRGSMUNDI UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul FCE Faculdade de Cincias Econmicas CERI Centro Estudantil de Relaes Internacionais Av. Joo Pessoa, 52, Campus Centro, CEP 90040-000, Porto Alegre RS - Brasil. Email: [email protected] http://www.ufrgs.br/ufrgsmundi UFRGSMUNDI Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Cincias Econmicas, Curso de Relaes Internacionais, Centro Estudantil de Relaes Internacionais - Ano 1, n. 1 (novembro/2013). Porto Alegre: UFRGS/FCE/, p. 1 207, 2014. Anual. ISSN 2318-6003. 1. Cincia Poltica. 2. Relaes internacionais. 3. Poltica internacional. 4. Diplomacia. CDU 327 Responsvel: Biblioteca Gldis Wiebbelling do Amaral, Faculdade de Cincias Econmicas da UFRGS Dados Internacionais de Catalagoo na Publicao (CIP) SUMRIO EDITORIAL CONSELHO DE SEGURANA DAS NAES UNIDAS A Situao no Paquisto Aline Rocha, Guilherme Simionato, Jlia Simes Tocchetto e Renata Schmitt Noronha PROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE Gesto de Recursos Hdricos Transfronteirios Eduardo Dondonis, Michelle Baptista, Rassa Mattana e Roberta Preussler CONFERNCIA DE SO FRANCISCO (1945) A criao da ONU Giovana Esther Zucatto, Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi, Henrique Pigozzo, Rodrigo Milagre e Victor Merola CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIA Mandado de Priso: Repblica Democrtica do Congo X Reino da Blgica Bruna Leo Lopes Contieri, Diego Bortoli, Giovana Hof e Vitria Maturana ASSEMBLEIA GERAL DAS NAES UNIDAS HISTRICA (1974) A Crise do Petrleo de 1973 e seus Impactos Internacionais Bruna Lersch, Gabriela da Costa, Guilherme Lara, Joo Arthur Reis, Joo Gabriel Burmann e Patrcia Machry CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS Impacto de Sanes Econmicas sobre os Direitos Humanos Luiza Lopes, OthonSchenatto, Joana Vaccarezza e Lvia Costa ASSEMBLEIA GERAL DA UNIO AFRICANA Atores Militares No-Estatais e Foras Militares Estrangeiras no Continente Africano Ana Carolina de Sousa Melos, Jlia Oliveira Rosa, Katiele Rezer Menger e Leonardo Albarello Weber ASSEMBLEIA GERAL DAS NAES UNIDAS HISTRICA (1947) A Partilha da Palestina Andr Frana, Elisa Eichner, Jssica da Silva Hring, Jordy Bolivar Pasa e Natlia Regina Colvero Maraschin AGNCIA DE COMUNICAO Jade Knorre, Paula Moizes, Sarita Reed e Vinicius Fontana COMUNIDADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS Regulao e Democratizao da Mdia na Amrica Latina Bruna Coelho Jaeger, Lucas Larentis, Marlia Bernardes Closs e Thas Jesinski Batista 05 06 28 52 68 82 105 129 155 173 187 05 EDITORIAL Quantas vezes nos perguntamos que mundo esse? Quantas vezes a resposta ou as respostas cam restritas aqueles que pesquisam e ensinam nas Universidades? Alunos da UFRGS preocupados em sair do intramuros da Universidade, iniciam, em 2012, o projeto UFRGSMUNDI visando proporcionar a experincia de pensar respostas na relao entre secundaristas e universitrios, concretizando, assim, a democratizao do conhecimento. O que feito e discutido na Universidade e na rea de Relaes Inter- nacionais transborda os muros da faculdade e chega aos alunos e ao restante da sociedade permitindo aos participantes verem como a esfera internacional afeta as vidas de cada um. Mas o que o UFRGSMUNDI? O UFRGSMUNDI um projeto de extenso desenvolvido pelos alu- nos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O projeto uma simulao da Organizao das Na- es Unidas voltada a alunos do Ensino Mdio de todo o Rio Grande do Sul. a primeira de tal alcance a ser realizada no estado. Cada participante/estudante secundarista representa um pas, defendendo os seus interesses em debates com os demais participantes de seus comits. As simulaes so encorajadas a serem executadas de maneira positiva e criativa, possibilitando aos professores e alunos discusses de assuntos que, talvez, passem sem a devida ateno durante o Ensino Mdio. O UFRGSMUNDI est orga- nizado em termos de multidisciplinaridade das discusses e isso torna possvel que diversas matrias das escolas sejam abarcadas em cada um dos comits/tpicos, fugindo quela viso tradicional de tratar os assuntos isoladamente. Alm disso, a simulao proporciona ao aluno desenvolver habilidades de lide- rana, lgica, raciocnio rpido, oratria visto que tudo isso treinado para a simulao, quando cada aluno est representando um delegado de um pas, ou mesmo um juiz ou reprter. Os nmeros crescentes de escolas e inscritos no projeto indicam no s o sucesso como o inte- resse dos estudantes secundaristas pelo projeto e pelas questes internacionais. Como em 2013 o nme- ro de inscritos superou o nmero de participantes 411 inscritos para 200 vagas neste ano de 2014, o UFRGSMUNDI expande suas vagas para 350, a m de que mais escolas e mais alunos possam participar. Ao mesmo tempo, simulam dez comits, em comparao com oito do ano passado, com temas como a Situao no Paquisto (Conselho de Segurana das Naes Unidas); Hidropoltica e a Gesto de Recursos Hdricos Transfronteirios (Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente); a Conferncia de So Francisco de 1945 criao da ONU; a Corte Internacional de Justia e o Mandato de Priso Repblica Democrtica do Congo x Reino da Blgica; a Assembleia Geral das Naes Unidas Histrica de 1974 os efeitos da crise do petrleo de 1973 sobre o Sistema Internacional; o impacto das sanes econmicas sobre os Direitos Humanos (Conselho de Direitos Humanos da ONU); Atores Militares No-Estatais e Foras Militares Estrangeiras no Continente Africano (Assembleia Geral da Unio Africana); a Assembleia Geral das Naes Unidas Histrica de 1947 a partilha dos territrios palestinos; e a Regulao e Demo- cratizao dos Meios de Comunicao na Amrica Latina (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos); alm da Agncia de Comunicao. Tais temas e a simulao de discusses sobre eles, em um mbito mais profundo, demonstram na prtica que a ONU no serve apenas para evitar a ecloso de conitos o qual na verdade nunca foi seu objetivo primordial. Mas serve para desenvolver uma vasta rede de governana e servios em outras reas, igualmente de relaes internacionais nas quais a ONU consegue ser mais efetiva, inclusive. Assim, ao apresentar a terceira edio do UFRGSMUNDI damos os parabns a estes jovens estu- dantes universitrios que acreditam e realizam iniciativas como esta. Podemos dizer que aqueles objeti- vos iniciais se mantm e so aperfeioados na relao que se estabelece entre os estudantes de antigas e novas turmas que, no convvio para a realizao do projeto, transmitem os conhecimentos adquiridos, algo to importante como a prpria criao do conhecimento. Estes estudantes se engajam e acreditam no projeto de tal maneira que se encarregam de todo o processo de montagem de um projeto dessa na- tureza. So responsveis da estrutura fsica at a criao e montagem dos guias de estudo, passando pelo planejamento, pela divulgao nas escolas e na rede da internet (convido a verem a pgina http://www. ufrgs.br/ufrgsmundi/), a edio deste livro e a realizao das atividades propriamente dita. , assim, uma conquista da prpria Universidade, que estimula a criatividade, a crtica e proporciona que projetos dessa importncia se mantenham. Boa leitura. Profa. Sonia Ranincheski Coorda. Acadmica do UFRGSMUNDI 06 UFRGSMUNDI CONSELHO DE SEGURANA DAS NAES UNIDAS A Situao no Paquisto Aline Rocha 1 Guilherme Simionato 2 Jlia Simes Tocchetto 3
Renata Schmitt Noronha 4 INTRODUO O Conselho de Segurana das Naes Unidas (CSNU) o principal rgo desta organizao res- ponsvel por manter a paz e a segurana internacional, como denido pela Carta da Organizao das Naes Unidas (ONU). O CSNU formado por quinze membros, dos quais cinco so permanentes, e dez so selecionados pela Assembleia Geral para perodos de dois anos. Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurana so a China, Frana, Rssia, Reino Unido e Estados Unidos, e eles possuem o que conhecido como poder de veto. Isso signica que, se qualquer desses cinco membros votarem con- tra uma resoluo ou clusula, por exemplo, ela automaticamente no aprovada. Os outros dez pases so eleitos pela Assembleia Geral, sendo normalmente cinco membros da sia e frica, um da Europa Oriental, dois da Amrica Latina e dois da Europa Ocidental. As sesses de 2014 sero compostas pelos seguintes pases: Argentina, Austrlia, Chade, Chile, Jordnia, Litunia, Luxemburgo, Nigria, Coreia do Sul e Ruanda, alm dos cinco permanentes. A caracterstica mais importante do CSNU, que o diferencia dos outros rgos da ONU, que este o nico comit capaz de impor resolues obrigatrias para todos os Estados. Tambm faz par- te do mandato do Conselho o direito ao uso da fora para operaes de paz, alm de poder autorizar outras operaes militares. No entanto, a primeira ao do rgo, quando uma reclamao de ameaa paz trazida ao Conselho, de recomendar s partes envolvidas uma soluo pacca. O Conselho j ordenou cessar-fogo e imps sanes econmicas ou embargos militares coletivos em muitas ocasies de conito armado. Alm disso, o CSNU tem o poder de nomear Representantes Especiais ou requisitar ao Secretrio-Geral das Naes Unidas um Representante Especial para ter maior controle da crise. Por m, o CSNU pode recomendar a suspenso ou expulso, pela Assembleia Geral da ONU, de um Estado- -Membro que continuamente viole os princpios da Carta da ONU. Esse comit , portanto, crucial para a manuteno da paz um dos objetivos das Naes Unidas, e sua relevncia vai alm da segurana e geopoltica, afetando tambm as vidas de populaes diretamente envolvidas nos conitos discutidos. 1. HISTRICO A regio do Afeganisto foi historicamente palco de disputas entre grandes potncias 5 , desde 1 Graduanda do 3 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 Graduando do 6 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Graduanda do 6 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Graduanda do 6 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 5 O termo grande potncia se refere ao pas que considerado de destaque no globo por ter grandes capacidades militares, econmicas e estar envolvido nas dinmicas internacionais mais importantes. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.06-27 07 CSNU Alexandre, o Grande, passando pelos persas, chineses e pelo famoso Grande Jogo 6 entre Inglaterra e Rssia, no qual o pas servia de Estado-tampo 7 , chegando at as dcadas de 1970, 1980 e se desdobran- do como uma regio conituosa at os dias atuais (KHANNA, 2008). Isso se deve ao fato de a regio ser central no tabuleiro geopoltico global, mesmo sendo composta desde sempre apenas por tribos, sem um Estado 8 forte e centralizado (SILVA, 2011). Sua localizao a coloca no meio das rotas de comrcio global, bem como das rotas energticas de petrleo e gs natural, tornando-a essencial para a segurana desses fatores e, portanto, para o prprio mercado de bens e consumo global. As regies da sia Central e do Sul da sia 9 se desenvolveram praticamente alheias s fronteiras ociais tendo sido essas muitas vezes estabelecidas unilateralmente pelas grandes potncias, basean- do-se predominantemente nas divises tnicas e tribais entre Pashtuns, Hazaras, Tajiques, Uzbeques, Punjabis, Baluches, dentre outros, como se pode perceber no mapa abaixo (Figura 1). Nunca houve um governo central forte capaz de unicar todas essas etnias por muito mais que uma dzia de anos. Na realidade, o padro, sempre foi a existncia de relaes tribais e de acordos entre os senhores de terras denindo os rumos das polticas dos proto-Estados 10 nos quais eles se inserem (KATZMAN, 2013, p.1). O fato histrico mais importante para a histria recente da regio foi, sem dvidas, a interveno sovitica no Afeganisto de 1979 e seus desdobramentos. Figura 1: Grupos tnicos do Afeganisto e do Paquisto
Fonte: STRATFOR, 2013. 6 Termo imortalizado por Rudyard Kipling no seu livro Kim (1901), no qual era caracterizada a rivalidade entre duas potncias emergentes da poca, Rssia e Inglaterra, na regio da sia Central. Enquanto o Imprio Russo pressionava do norte, o Imprio Ingls pressionava do Sul, atravs de sua principal Colnia, a ndia. Ambos se chocaram na regio do Afeganisto por diversas vezes. 7 Ou seja, um territrio neutro entre dois grandes imprios, com o objetivo de evitar choques entre eles. 8 Palavra utilizada como sinnimo de pas, signicando a forma de organizao poltica deste. 9 Compostas por: Turcomenisto, Cazaquisto, Uzbequisto, Quirguisto, Tajiquisto, Afeganisto, Paquisto, ndia, Bangladesh, Buto, Nepal, Sri Lanka e Maldivas. 10 Estados/pases fracos no sentido de possuir poucas instituies ou formas de organizao social capazes manter a ordem e as condies mnimas de sade e educao para suas populaes, bem como como tendo pouco controle sobre suas fronteiras e seu territrio. Como dito, os pases se constituam mais em um conjunto de elites e lderes tri- bais fazendo acordos com seus vizinhos do que um governo consolidado. 1.1. GUERRA DO AFEGANISTO (1979) Em 25 de dezembro de 1979, a Unio Sovitica (URSS) atravessava sua fronteira sul no vale do Hindu Kush em direo ao Afeganisto. L perdurava um regime marxista apoiado pela prpria URSS, o qual vinha sofrendo fortes presses tanto externas quanto internas, ambas por parte dos pases do bloco capitalista: seja por meio de sanes internacionais, ou pelo incentivo (nanceiro, blico e poltico) a grupos de oposio dentro do prprio Afeganisto (MARSDEN, 2009, p. 67). Os Estados Unidos da Amrica, principal potncia oponente da URSS no perodo da Guerra Fria, contando ainda com Arbia Saudita, Paquisto, China, Ir e Egito, nanciam os guerrilheiros contrrios ao governo comunista no Afeganisto, os mujahideens combatentes de classes tribais do Afeganis- to. Apesar da diversidade desses pases, todos temiam a disperso do comunismo pela regio, seja pelo medo de ter a URSS projetada na sua vizinhana ou pelo sentimento de ameaa religio islmica Isl, anal o atesmo dominante dentro do comunismo. A ajuda estrangeira concedida aos rebeldes era di- versa e consistia em alimentos, em medicamentos e nos mais diversos armamentos, desde ries de assal- to misseis antiareos portteis de alta tecnologia, capazes de derrubar os mais modernos helicpteros soviticos (COLL, 2004, p. 149; MARSDEN, 2009, p. 69; KATZMAN, 2013, p. 3). Entretanto, a oposio aos soviticos no Afeganisto era extremamente fragmentada, principal- mente em divises tnicas ou religiosas, com cada grupo dominando uma determinada regio do pas. Nesse contexto, cada pas buscava ajudar o grupo que mais representasse seus interesses, e que, conse- quentemente, poderia oferecer os melhores benefcios caso tomasse o poder aps a queda sovitica. As coincidncias dos interesses dos EUA e do Ir, por exemplo, paravam na derrota sovitica; tirando isso, nenhum queria ver o outro fortalecido em um governo ps-URSS. Adicionalmente, a ajuda externa em armamentos e suprimentos chegava quase exclusivamente pelo Paquisto, o qual a distribua aos rebel- des afegos (MARSDEN, 2009, p. 75). Tudo isso somado levou a um descontrole na distribuio de armas dentro do Afeganisto, no havendo domnio sobre o destino dos equipamentos vindos de fora. 1.2. DCADA DE 1990 E A GUERRA CIVIL Essa ajuda indiscriminada, desorganizada e concorrente criou diversas faces dentro do Afe- ganisto, as quais, com a retirada sovitica em 1989 e com a queda do governo comunista afego em 1991, entraram em choque umas contra as outras. Essas faces eram lideradas por senhores de guerra - os quais eram os lderes de tribos, cidades, povoados ou grupos tnicos que diferiam entre si, mas que lutaram juntos contra a URSS -, dos quais cada um possua sua prpria milcia, formada por pessoas as quais ele fornecia algum tipo de suporte, seja com comida, moradia, trabalho ou mesmo ideologia. Era praticamente um exrcito prprio e bem armado, nanciado, como dito anteriormente, principalmente pelos governos estrangeiros (DINI, 2013, p. 99). Devido a isso, o caos se instaurou no pas: por anos, a populao afeg sofreu com uma guerra civil sangrenta entre os senhores de guerra. Existia um gover- no ocial do pas, o qual era controlado pelo tajique Massoud do norte, mas que exercia, de fato, poder apenas sobre seu restrito territrio, alm de mal controlar a capital do pas, Cabul, cando incapaz de fornecer os servios bsicos de sade, infraestrutura e educao para o restante da populao (SAIKAL, 2004, p. 210). Embora os Estados Unidos tenham praticamente esquecido o Afeganisto aps a retirada so- vitica em 1989, o Paquisto ainda estava profundamente envolvido com as faces aliadas lutando na guerra civil afeg. Alm disso, mais do que nunca, havia-se criado um vcuo de poder na regio com a queda da URSS, possibilitando o crescimento do poder e da inuncia do Paquisto e sua projeo em direo sia Central (KATZMAN, 2013, p.47). Alm disso, sempre existiu uma percepo da fragilidade geogrca que os militares paquistaneses tinham do seu pas, tendo em vista o tamanho relativamente reduzido do Paquisto em relao ao seu maior rival, a ndia. Tal percepo foi agravada com a Guerra de Independncia de Bangladesh de 1971, na qual o Paquisto perdeu quase metade da sua populao e ter- ritrio (NEVES JR, 2010, p. 122). A essa percepo se deve a constante busca paquistanesa pela chamada profundidade estratgica, ou seja, uma extenso do territrio paquistans, a m de aumentar seu espao de manobra na retaguarda, o que seria essencial em um futuro conito com a ndia; anal, conitos entre o Paquisto e a ndia foram constantes no decorrer dos anos. Em decorrncia disso, o governo paquista- ns via o controle sobre o Afeganisto como essencial para a sua prpria existncia como pas. Desde a independncia do Paquisto em 1947, a rivalidade e a desconana marcam sua rela- o com a ndia, tambm ex-colnia britnica. O principal ponto de conito na fronteira a regio da Caxemira, que uma zona disputada entre os dois pases, contando ainda com reivindicaes da China. Paquisto e ndia possuem certas regies de controle do territrio, mas ambos clamam por um controle total da regio. A ndia ainda arma que a regio tem focos de ocupao por mujahedins paquistaneses e afegos, que utilizam o local da Caxemira para militncia terrorista e para anexar a regio ao Paquisto. J o Paquisto contra-argumenta que a militncia da populao local que luta contra a interveno do exrcito indiano (NEVES JR, 2010). Alm do Paquisto, havia outros atores externos envolvidos no Afeganisto. A interveno sovi- tica atraiu ao solo afego diversos grupos de extremistas jihadistas 11 , os quais juraram aniquilar os comu- nistas ateus. Esses grupos eram nanciados por milionrios radicais de todo o mundo, mas principalmen- te da Arbia Saudita e de alguns reinos da pennsula arbica, os quais construam campos de treinamento na regio, principalmente no Sudeste afego e Noroeste paquistans. Um desses sheiks extremistas per- tencia a uma das famlias mais tradicionais da Arbia Saudita e se mudou para o Paquisto em 1988 para fazer sua prpria Jihad contra a URSS. Seu nome era Osama Bin Laden e a seu grupo deu o nome de Al Qaeda (COLL, 2004, p. 71). Assim como as potncias estrangeiras, esses grupos no eram unidos, tendo em vista a diversi- dade de correntes dentro do prprio Isl. Muitos se uniam com determinado chefe local, o qual fornecia territrio, terras e alimentos em troca de ter esses guerreiros estrangeiros lutando a seu lado. Percebe-se, portanto, que a ligao entre extremistas religiosos, chefes locais, e o prprio governo paquistans era tnue, tendo os primeiros conseguido se instalar no territrio do ltimo com tranquilidade e suporte (COLL, 2004; SAIKAL, 2004; KATZMAN, 2013). Entretanto, os anos se passavam sem que as faces apoiadas pelos paquistaneses e pelos fun- damentalistas conseguissem tomar o poder no pas, o qual ainda era dominado pela coalizo situada ao norte, de etnia tajique, e liderada por Ahmad Shah Massoud. Massoud tambm fora aliado estadunidense e paquistans na luta contra os soviticos. Todavia, aps a queda da URSS, ele buscou apoio indiano e russo, visto que sua faco nunca fora a preferida dos EUA e do Paquisto. 1.3. O NASCIMENTO DO TALIB E SEU GOVERNO Ao mesmo tempo em que via sua inuncia ameaada dentro do Afeganisto por grupos contr- rios a seus interesses, o Paquisto, atravs principalmente do seu servio de inteligncia (a ISI Inter-Ser- vices Inteligence), notou o crescimento de um pequeno grupo de estudantes islmicos de etnia Pashtun, os quais viviam no sul do Afeganisto, mas tinham histrico de ter estudado em madraas (escolas isl- micas) criadas por sauditas e por paquistaneses ainda na dcada anterior. O Isl ensinado nessas escolas era de correntes ligadas ao Wahabismo saudita, corrente do Isl de carter altamente fundamentalista, extremista e conservador. Esse grupo de estudantes islmicos, ou, na linguagem dos Pashtuns, Talibs, estava cansado de viver em um pas em guerra civil, onde no existia sequer um lder forte capaz de uni- car e representar todas as etnias vivendo em territrio afego. Por isso, inicialmente, planejavam derrotar todos os senhores de guerra do pas, que, segundo eles, passaram anos traindo e assassinando os pr- prios irmos afegos. Em seguida, planejavam trazer o antigo Rei do Afeganisto e devolver o poder a ele (SAIKAL, 2004, p. 222). Em 1994, o presidente paquistans, General Zia-ul-Haq, cansado de repassar dinheiro s mes- mas faces que inutilmente tentavam derrotar Massoud e fracassavam em garantir o escoamento segu- ro das rotas de comrcio e energia desde a sia Central (Turcomenisto, principalmente) at o Paquisto, resolve procurar Mullah Mohammed Omar, lder do ento pequeno grupo Talib e propor uma parceria. O Paquisto forneceria armamentos, dinheiro e todo o tipo de suporte necessrio para que o Talib tomasse o poder imediatamente. Alm disso, o governo do General Zia se esforaria ao mximo para conseguir apoio poltico internacional ao grupo de Omar, inclusive dos Estados Unidos e da Arbia Saudita. Essa no foi uma misso muito difcil, visto que os Estados Unidos compartilhavam diversos interesses com o Pa- quisto, pois obviamente eram de nacionalidade estadunidense as empresas que extraiam petrleo e gs natural dos pases da sia Central, bem como o destino desses recursos era normalmente os EUA (COLL, 2004). Alm desses aliados, o Talib logo se aproximou da Al Qaeda e de seus centros de treinamento na regio entre o Afeganisto e o Paquisto. Isso foi facilitado pela semelhana de suas correntes do Isl, bem como pela vontade comum em derrotar o traidor inel Massoud. No ano de 1996, o Talib nalmente consegue tomar a capital Cabul, obtendo controle sobre praticamente todo o territrio Afego, com Massoud isolado no vale de Panjshir a Nordeste, perto da fronteira com o Tajiquisto. Mullah Omar imediatamente declara o Afeganisto como um Emirado Isl- mico, sendo quase imediatamente reconhecido pelo Paquisto, Arbia Saudita e Emirados rabes Unidos (SAIKAL, 2004; KATZMAN, 2013, p. 5). Assim, como recorrente na histria recente do pas, os grupos fora do poder, mesmo tendo lutado entre si no perodo anterior, unem-se para derrotar o novo polo do- 11 Guerreiros islmicos que lutam a Jihad, ou Guerra Santa, contra os inimigos do Isl. 10 UFRGSMUNDI minante: Massoud, tajique, une-se aos grandes senhores de guerra do pas (uzbeques, hazaras, pashtuns moderados, todos eles j fracos e derrotados pelo Talib) para formar a Aliana do Norte, a qual existe desde ento. O fundamentalismo do Talib logo cou claro quando o governo imps que os madraais, as es- colas cornicas, ou seja, que se baseiam no Coro, seriam o nico tipo de escola existente no pas, sendo, entretanto, somente permitida aos homens. Alm disso, o trabalho feminino foi proibido, bem como a liberdade de no usar vu em todos os ambientes. A lei islmica (Sharia) foi adotada por completo, sendo no mais vista com o relativismo de antes. A ideia de entregar o poder ao antigo Rei logo abandonada, com Omar declarando a si mesmo como Comandante dos Fiis, chefe supremo do Afeganisto (KATZ- MAN, 2013, p. 5). Embora, na teoria, isso no incomodasse os beneciados pela ascenso do grupo ao poder, visto que nalmente havia um governo forte o suciente para garantir a segurana de futuros oleodutos e rotas de comrcio, o desenrolar dos fatos se mostrou perturbador. Logo que o Talib assumiu o poder, Osama bin Laden se mudou para o pas, pois acabara de ser expulso do Sudo por suspeitas de envolvimento em ataques terroristas contra instalaes ocidentais ou de aliados. Seu grupo, a Al Qaeda, se fortalecia cada vez mais, visto que o governo Talib permitia que seus centros de treinamento se instalassem livremente no pas, bem como recebia de bom grado os estrangeiros que iam ao Afeganisto aprender o verdadeiro Isl e adquirir o treinamento para a Jihad. A fama de bin Laden era crescente no mundo islmico, bem como o seu dio aos EUA 12 , o qual teve auge no manifesto escrito pelo lder da Al Qaeda, lanado em 1998, no qual ele clamava a todos os muulmanos do mundo que se unissem para aniquilar os estaduni- denses e seus aliados (COLL, 2013, p. 71; GRIFFIN, 2003, xx). Em 7 de Agosto de 1998, embaixadas dos EUA na Tanznia e no Qunia so atacadas por militan- tes ligados a bin Laden, deixando centenas de ociais americanos mortos. Duas semanas depois, os EUA lanam diversos msseis cruzadores em campos de treinamento da Al Qaeda no Afeganisto (GRIFFIN, 2003, xx). Em diversas ocasies, os lderes Talibs foram pressionados a entregarem bin Laden e seus alia- dos, tanto pela Arbia Saudita, quanto pelo Paquisto e pelos EUA. Muitas promessas foram feitas nesse sentido, mas nenhuma foi cumprida (COLL, 2004). Mesmo com essa situao, os benefcios j citados faziam que esses pases relevassem e depositassem a mnima conana no grupo afego, suciente para manter a situao sem nenhuma alterao relevante. Isso foi ainda mais reforado em 1999, quando Paquisto e ndia entraram em embate direto na Guerra de Kargil, na qual os guerrilheiros treinados nos centros de treinamento mujahedin do outro lado do pas (alguns em parceria com a Al Qaeda) tiveram papel central (COLL, 2004; SAIKAL, 2004; NEVES JR, 2010). Outro ponto demonstrado pela Guerra de Kargil foi a fragilidade da posio estratgico geogrca do Paquisto, onde inexiste profundidade estra- tgica que garanta o mnimo de segurana para as linhas de suprimentos para os soldados em uma guerra com a ndia no leste. Por tudo isso, o Paquisto ainda sustentava o governo do Talib frente a seus velhos aliados. Os EUA j sabiam que o Talib estava fornecendo territrio para o treinamento de terroristas de toda parte do mundo, incluindo bin Laden, mas perceberam uma crescente quantidade de estrangeiros chegando no pas aps os ataques dos EUA com msseis ao Afeganisto em 1998. Isso, em conjunto com os ataques terroristas j realizados pela Al Qaeda, levou ideia de uma interveno ao Afeganisto circu- lar dentro dos EUA. Talvez mais importante que isso, entretanto, que havia tambm o interesse em uma presena militar permanente no Afeganisto, tendo em vista os interesses estratgicos j citados com relao ao Ir, Paquisto e a sia Central. Cabe lembrar que a Rssia j estava quase recuperada de sua dcada perdida de 1990, aps o colapso da Unio Sovitica, e a China j estava praticamente consolida- da como potncia global, estando o Afeganisto em posio privilegiada em relao a ambos. S faltava um pretexto para a interveno acontecer: aps o dia 11 de setembro de 2001, entretanto, no restavam mais dvidas no alto escalo estadunidense (MARSDEN, 2009, p. 94). 1.4. OS ATENTADOS DE 11 DE SETEMBRO DE 2001 O governo regido pelo Talib somente iria ter m com a invaso norte-americana em 2001 ps- -ataques do 11 de setembro, onde as torres do World Trade Center e o Pentgono foram atingidos por aeronaves sequestradas por membros da Al Qaeda. Em pouco tempo, os EUA anunciaram que interviriam 12 dio esse decorrente de vrios fatos: desde questes ideolgicas envolvendo teorias anti-imperialista baseadas em um nacionalismo islmico, passando pelo apoio estadunidense ao maior rival do mundo islmico na sua prpria regio, Israel, at a materializao disso nas Guerras envolvendo diretamente os EUA na Pennsula Arbica, onde Bin Laden rompeu com o prncipe de seu pas, a Arbia Saudita, acusando-o de se aliar ao inimigo, o qual ceifava incansavelmente as vidas dos seus irmos muulmanos em terras sagradas (COLL, 2013). 11 CSNU no pas e conseguiram apoio internacional facilmente, formando uma coalizo com quase 50 pases. Poucas semanas depois, o governo Talib j no tinha mais controle sequer sob a capital Cabul (GRIFFIN, 2003, xx). Devido interveno estrangeira em territrio afego, o Talib voltou-se para suas origens, no territrio paquistans, onde deu incio, novamente, ao recrutamento para a guerra contra os Estados Unidos. Como citado anteriormente, a fronteira entre os dois pases muito porosa e controlada pela maioria tnica Pashtuns, sendo o local de origem dos principais mujahedins e do Talib. Dessa forma, caracteriza-se a regio como um palco de guerra entre tribos, tropas ocidentais, organizaes islmicas e o exrcito paquistans. 2. APRESENTAO DO PROBLEMA 2.1. O TERRORISMO Primeiramente, importante destacar que inexiste um consenso sobre a denio de terrorismo na comunidade acadmica e na poltica internacional. Entretanto, alguns esforos nesse sentido j foram tomados. O Conselho de Segurana das Naes Unidas deniu o termo em uma resoluo (1566, p.2) no ano de 2004 como: atos criminosos, incluindo os contra civis, cometidos com a inteno de matar, ferir ou sequestrar refns, com o propsito de provocar um estado de terror no pblico geral ou em um grupo de pessoas em particular, bem como intimidar a populao ou compelir um governo ou uma organizao internacional a fazer ou se abster de fazer algum ato; o que constitui infraes no mbito das convenes e protocolos internacionais que versam sobre o terrorismo e no so, sob circunstncia alguma, justicveis, sejam por motivos polticos, loscos, ideolgicos, raciais, tnicos, religiosos ou de qualquer natureza. (CONSELHO DE SEGURANA DAS NAES UNIDAS, 2004, p. 2. traduo nossa). O terrorismo considerado um problema relativamente recente, iniciado no ps-Segunda Guer- ra Mundial, com os problemas relacionados criao do Estado de Israel e que ganha fora nas dcadas de 1980 e 1990 com o problema j relatado do Afeganisto (NEVES JUNIOR, 2010). O grande ponto que o terrorismo incorpora o que chamado pelos analistas de segurana inter- nacional de Guerra Irregular Complexa. Nessa denio, o conito no mais entre pases com exrcitos regulares, foras areas e marinhas de organizao similares, como foram a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, mas sim entre atores com capacidades assimtricas (BOOT, 2013). Enquanto um lado (EUA, por exemplo) possui caas de ltima gerao, capazes de derrubar qualquer outra aeronave similar, o outro lado (Talib, por exemplo) possui no mximo msseis portteis antiareos para lidar contra aeronaves. Entretanto, o lado mais fraco se utiliza amplamente do terreno complexo (cidades, monta- nhas, tuneis) e das poucas capacidades tecnolgicas que tem (principalmente os msseis supracitados) para equilibrar o jogo a seu favor. Para se ter noo, enquanto o lado mais forte utiliza helicpteros de ltima gerao, avaliados em torno de US$20 milhes, o lado mais fraco consegue fazer grandes estragos utilizando-se desses misseis portteis, os quais os guerrilheiros carregam e com os quais disparam em cima de seus prprios ombros, e so avaliados em menos de US$100 mil. Nesses casos, boa parte das capacidades do mais forte anulada, visto que ele simplesmente no pode usar o seu mximo nessas condies, seja pelo risco de atingir civis ou pela simples natureza irregular das montanhas. A prpria diferenciao entre quem civil ou quem combatente muito difcil, visto que os guerrilheiros no ves- tem uniformes, misturando-se populao civil facilmente, o que essencial para entender os proble- mas relacionados ao direito internacional e proteo dos direitos humanos (BOOT, 2013), envolvendo principalmente os assassinatos cometidos pelas Aeronaves No-Tripuladas (VANTs) estadunidenses nessa regio, assunto que ser tratado em detalhes no decorrer do texto. Nesse sentido, a Guerra Irregular Complexa explica o porqu dos EUA, sendo a maior potncia militar do planeta, estarem atolados h mais de 10 anos no Afeganisto, onde so combatidos por guerrilheiros mal nutridos, os quais vivem em cabanas de madeira ou em cavernas. 2.2. A LINHA DURAND: A FRONTEIRA AFEGANISTO-PAQUISTO A Linha Durand foi estabelecida ainda no Imprio Britnico parar separar o Afeganisto de suas possesses na ndia e continuou em vigor com a independncia do Paquisto. Arbitrria, ela separa as 12 UFRGSMUNDI tribos da maioria Pashtun ao meio, bem como os Balochis ao sul, e no reconhecida como legtima pelo governo afego, o qual declara ser dono legtimo de todo o territrio Pashtun (GRARE, 2006), represen- tando mais um ponto de choque entre os dois vizinhos. A Linha tem quase 3 mil quilmetros e marca uma fronteira extremamente porosa, composta quase totalmente por montanhas e rios, tornando impossvel o controle e policiamento em vrios de seus entrepostos. Em adio a isso, somam-se todas as diculdades e fraquezas das foras e do prprio Estado nos dois lados. Como j foi dito, a poltica interna no Afeganisto feita a partir das negociaes entre os senhores de guerra de cada regio, quase como governadores no-eleitos; esses, por vezes corruptos ou ligados ao Talib ou Al Qaeda. O governo central controla efetivamente apenas a capital, embora possa projetar fora atravs do exrcito para todo o pas. Do outro lado da fronteira, no Paquisto, a situao diferente. Entretanto, h muitas divises internas entre as agncias de inteligncia (principalmente a ISI), o corpo diplomtico e o prprio Primeiro-Ministro, o que tambm limita muito o controle paquistans de seu lado da fronteira (COLL, 2004; MARSDEN, 2009, p. 89). Alm disso, a populao local uma das mais pobres de todo o Paquisto, vivendo praticamente de ajuda ao trco de armas e de drogas, o que as leva a acobertar muitas vezes os guerrilheiros do Talib. Esse cenrio se repete em praticamente todas as regies do Afeganisto, o maior produtor de pio do mundo (KATZMAN, 2013). Dadas todas essas diculdades, a fronteira entre os dois pases (principalmente no lado paquis- tans, aps 2001) abriga grande parte dos centros de treinamentos e das instalaes dos Talibs, os quais se imiscuem nos povoados que vivem nessas montanhas e se movem conforme sua necessidade. Entre- tanto, diversos desses centros de treinamentos recebem militantes estrangeiros, principalmente rabes, africanos, uzbeques, chechenos (russos) e uigures (chineses) 13 (COLL, 2004). H tambm muitos campos de treinamento voltados exclusivamente para esses estrangeiros, pertencentes principalmente a Al Qae- da. Essa a principal preocupao da comunidade internacional em relao ao Paquisto, visto que esses militantes extremistas voltam para seus respectivos pases e aplicam o aprendizado, seja com assassinatos de alto valor, exploses em locais pblicas, sequestros de avies, dentre outros. Um exemplo recente dis- so foi o atentado que matou 30 cidados chineses em fevereiro de 2014 na provncia de Xinjiang, embora em 2013 tenham ocorrido ataques at na capital Pequim (ESTADO, 2013; REINOSO, 2014). 2.3. O OUTRO TALIB: O MOVIMENTO TALIB DO PAQUISTO (TTP) Aps os ataques de 11 de Setembro, o Paquisto no teve outra escolha se no apoiar completa- mente os Estados Unidos e cortar relaes ociais com o Talib. O governo paquistans temia ser acusa- do de cmplice e ser enquadrado como inimigo dos estadunidenses, podendo vir a ser invadido na esteira da invaso afeg. Portanto, o pas ofereceu todo o tipo de suporte aos EUA, principalmente logstico: pelo porto de Karachi chegava grande parte dos suprimentos das tropas lutando no Afeganisto (MARSDEN, 2009, p. 95). Entretanto, a relao do Paquisto com o Talib, como mostrado anteriormente, antiga e pro- funda. Conforme a dcada foi passando, o Paquisto evitou ao mximo se envolver em confrontos diretos com grupos terroristas, prendendo membros de baixa relevncia da organizao apenas para esboar algum esforo para seus aliados ocidentais. O ex-presidente paquistans, Pervez Musharraf (2001-2008), era um general linha dura e conservador, o qual apoiava constantemente a ISI na sua boa relao com o Talib (COLL, 2004). Alm do Talib, entretanto, o Paquisto tem profundas relaes com outros grupos considerados terroristas pelos EUA. O mais relevante a Rede Haqqani, a qual tambm ligada ISI e trabalha em conjunto com o Paquisto. No entanto, em 2007, diversos partidos fundamentalistas sunitas pashtuns paquistaneses, ins- pirados no Talib original, unem-se para formar o Movimento Talib do Paquisto (TTP, Tehrik-i-Taliban Pakistan). O TTP, diferentemente do Talib afego, faz oposio direta ao governo paquistans, prati- cando atentados diretamente no pas. difcil, entretanto, ligar ambos os Talibs, visto que eles agem separadamente, sem contar a relao oposta com o Paquisto e com a ISI (KATMAN, 2013, p. 16). O TTP importante, pois est fortalecendo seus vnculos com a Al Qaeda e j representa uma grande fonte de extremismo no Paquisto, sendo a maior preocupao do governo paquistans no oeste do pas. Ainda, o TPP um dos principais pontos de choque entre o governo do Afeganisto e o Paquisto. 13 Africanos: principalmente do norte da frica, Mali, Lbia, Egito, Sudo, Arglia, Qunia, etc, onde combatem uma di- versidade de assuntos: segregao religiosa, intervencionismo estrangeiro, separatismo. Os chechenos historicamente defendem a separao da Chechena (regio muulmana russa) da Rssia, para que possam viver sob leis islmicas. Na China, especicamente na provncia de Xinjiang no extremo oeste (colada na sia Central), h tambm grande comu- nidade muulmana, conhecidos como uigures, os quais tambm defendem um Estado s para eles, sem interferncia do governo ateu chins. 13 CSNU 2.4. RELAES AFEGANISTO-PAQUISTO Alm da j falada questo da regio disputada entre os pases, os dois mantm relaes quentes principalmente por causa de seu envolvimento com os grupos extremistas. Enquanto sabido que o Paquisto foi o principal nanciador do Talib afego desde suas origens, o governo paquistans acusa o presidente afego Hamid Karzai de oferecer suporte ao TPP (NBC, 2013). O governo afego do presidente Karzai acusa o Paquisto de fornecer armas, incentivos nan- ceiros e territrio livre para que atentados terroristas sejam feitos no Afeganisto em alvos de alto in- teresse paquistans, como embaixadas e empresas indianas. Crticos armam que ambos os governos cultivam grupos amigos, a m de usar como barganhas em negociaes. Os ociais paquistaneses no se empenham em fazer vista grossa com a passagem de militantes da Rede Haqqani e de militantes ligados ao Talib afego no seu territrio, enquanto o exrcito afego no parece se incomodar muito com os militantes do TPP no seu territrio (FAROOQ, 2014). Apesar dessas diferenas, entretanto, os pases participam de diversos projetos juntos, sendo os mais importantes aqueles que envolvem as questes energticas. Ambos so essenciais nos projetos de construo de oleodutos e gasodutos ligando a sia Central ao resto do mundo. O principal deles o TAPI (Imagem 2), um projeto de US$ 8 bilhes, o qual, quando pronto em 2017, transportar gs natural do Turcomenisto atravs do Afeganisto e do Paquisto at a ndia, o que atender s necessidades energticas de todos os envolvidos. O TAPI possui diversos investidores estadunidenses e fortemente apoiado pelos EUA, visto que evita passar pelos territrios de China, Rssia e Ir, grandes rivais do pas (DINI, 2013, p. 98-99). Figura 2: Gasoduto TAPI
Fonte: SIGAR apud DINI, 2013, p.98 importante, nesse sentido, que haja estabilidade na regio para que esse tipo de projeto acon- tea e traga consigo desenvolvimento. Por isso, h o esforo de ambos os pases em demonstrar boa diplomacia. Entretanto, dever do Conselho de Segurana das Naes Unidas garantir que, mesmo aps a retirada estadunidense do Afeganisto em 2014, no retorne o vcuo de poder semelhante ao que aconteceu na retirada sovitica. Isso seria desastroso para toda a regio, visto que abriria margem para o retorno de fundamentalistas ao poder, sejam eles apoiados pelo Paquisto ou no. Por isso, essencial que se desenvolvam meios efetivos de cooperao e desenvolvimento conjunto entre Afeganisto e Pa- quisto, para que eles sejam capazes de coibir os extremismos e governar efetivamente (e com qualidade) toda sua populao e seu territrio. 14 UFRGSMUNDI 2.5. RELAES COM A NDIA: A CAXEMIRA E O TERRORISMO Tendo sido antiga colnia britnica, a ndia tornou-se independente em 1947; contudo, esta in- dependncia ocorreu junto com a diviso do subcontinente indiano em dois pases distintos: o Paquisto e a ndia, devido s diferenas religiosas e, sobretudo, presso inglesa, dentro da lgica de dividir para reinar 14 . Depois de independentes, a tenso mais importante entre os pases era a relacionada posse da regio da Caxemira 15 , a qual at hoje no foi acordada, pois, enquanto a ndia acredita que essa regio essencial para sua identidade como Estado secular e multitnico, o Paquisto considera que incorporar a regio fundamental para a identidade islmica do pas (AFRIDI, 2009). Tal disputa incitou uma descon- ana mtua entre os dois pases, que intrnseca a essa relao at os dias de hoje. Paquisto e ndia enfrentaram-se em quatro conitos, sendo trs relacionados Caxemira, e desenvolveram armas nuclea- res em 1998, o que aumentou a tenso e os riscos de que uma guerra cause consequncias catastrcas (JAUHARI, 2012, p. 42). Figura 3: A Regio da Caxemira
Fonte: Wikimedia Commons, disponvel em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/Fi- le:Kashmir_map_big.jpg>. Acesso em 12 fev. 2014. Traduzido e adaptado pelos autores. 14 A poltica colonial britnica, em geral, buscava incentivar divises internas nas suas colnias, a m de control-las mais facilmente. Assim, manobras foram realizadas nesse intento, resultando na partilha do subcontinente indiano (VISENTINI, 2011, p. 43). 15 A regio da Caxemira, disputada desde a diviso entre a ndia e o Paquisto, situa-se no noroeste da ndia. A disputa complicou-se porque, logo aps a partilha, o lder da regio assinou um termo alegando que a Caxemira faria parte da ndia; por outro lado, a populao majoritariamente muulmana, o que fundamento para os paquistaneses alega- rem que esse documento no expressaria a vontade do povo da regio. Essa primeira discordncia causou a primeira guerra indo-paquistanesa em 1947 (JAUHARI, 2012, p.43). Desde 1949, a regio dividida por uma linha de cessar- -fogo determinada pela ONU (JAUHARI, 2012, p.43), a qual foi denominada, depois de 1972 em um acordo entre os dois pases, de linha de controle (LOC, na sigla em ingls), dividindo as pores da Caxemira indianas e paquistanesa (REUTERS, 2008). Alm disso, tambm existe uma parcela da Caxemira que a China reivindica (AFRIDI, 2009). 15 CSNU Alm das caractersticas j citadas como relevantes para a relao entre os dois pases, o terroris- mo aparece como mais um agravante. Nos anos 1990, na regio da Caxemira, grupos terroristas como o Hizb-ul- Mujahidin (HM), o Lakshar-e-Taiba (LET) e os chamados grupos deobandis, como o Hara- kat-ul-Mujahideen (HUM) comearam a atuar contra alvos indianos, aparentemente com o apoio do Estado paquistans, principalmente da sua agncia de inteligncia (ISI) (NEVES JUNIOR, 2009). Assim, nesta dcada, comearam a ocorrer vrios ataques terroristas na regio. Os ataques comearam na Ca- xemira, mas ocorreram novos atentados tambm em territrio indiano, com a justicativa de libertar os muulmanos que vivem l. Os mais destacados foram em Nova Dli, em 2001, em Bangalore, em 2006, e em Mumbai, em 2008 (JAUHARI, 2012, p. 46; THAROOR, 2012, p. 30). Esses grupos terroristas, cada um com suas particularidades, buscam, em geral, anexar a Caxe- mira ao Paquisto, acreditando ser essa uma regio invadida por ineis, ou no-muulmanos. Assim, os grupos instrumentalizam a prtica da Jihad 16 de maneira radical, a m de atingir objetivos polticos, dentro da ideia da retomada de uma terra que deveria ser, em sua concepo, de posse muulmana. Esse mesmo ideal estava presente na luta dos mujahedin no Afeganisto, quando da interveno da URSS em 1979, como j foi explicado. Nesse sentido, cabe salientar que muitos dos grupos terroristas mais impor- tantes que passaram a atuar na Caxemira a partir da dcada de 1990 tm origens neste conito no Afe- ganisto. Com o m da Guerra Fria, ocorreu de fato um deslocamento de militantes do Afeganisto para a Caxemira, para l praticar a Jihad contra os indianos (JAUHARI, 2012, p. 45-46; NEVES JUNIOR, 2009). Paralelamente a esse deslocamento, havia, no Paquisto - bem como no Afeganisto dominado pelo Talib, como j foi explicado - diversas escolas cornicas, os madraais, as quais pregam o isl, que vinham crescendo muito no pas e passaram a servir como importante fonte de militantes para as redes terroristas. Esses madraais existem at hoje e so fomentados por essas organizaes como importante ferramenta de recrutamento (NEVES JUNIOR, 2009, p. 196 e 240-247). Estas amplas e complexas redes de grupos terroristas no poderiam existir, sem dvida, sem - nanciadores e apoiadores por detrs delas. Atualmente, acredita-se que setores do Estado paquistans principalmente a agncia de inteligncia ISI, mas tambm o exrcito e alas conservadores, ligadas aos partidos religiosos - tm total conhecimento dessas atividades e que, alm disso, patrocinam as mesmas, tendo em vista que seus interesses incluem anexar a Caxemira e vencer o conito histrico indo-pa- quistans, rejeitando uma soluo negociada 17 . Surgido em 1949, o ISI foi idealizado como agncia de inteligncia para assuntos relativos Caxemira. A partir, principalmente, dos anos 1970, contudo, pas- sou a conquistar cada vez mais poder poltico dentro do Paquisto. A partir de 1979, chegou a apoiar os mujahedins no Afeganisto, demonstrando que seus laos com as organizaes terroristas datam desta poca. Assim, a Agncia tem e teve importante papel na criao e na manuteno das redes terroristas atuantes na regio da Caxemira e na ndia, principalmente atravs de suporte nanceiro, sem o qual estas organizaes estariam bem mais debilitadas (NEVES JUNIOR, 2009, p. 185-192). Apesar de tudo isso, internacionalmente, o Paquisto declara-se aliado dos EUA na luta contra o terrorismo, a chamada Guerra ao Terror. Como h divises dentro do prprio Estado paquistans, tendo os militares e o ISI grande poder poltico e autonomia, e a presidncia, pouco controle sobre as conexes entre esta agncia de inteligncia e as redes terroristas, a situao se torna ainda mais complexa (NEVES JUNIOR, 2009, p. 187-194; THAROOR, 2012, p. 34). O General Pervez Musharaf, presidente do Paquisto de 2001 at 2008, aliou-se ao Presidente George W. Bush ao lanar ofensivas contra os Talibs no Afega- nisto, enquanto defendia que a situao na Caxemira no era apoiada pelo Paquisto, mas tratava-se sim de uma revolta da populao caxemir contra a opresso indiana (NEVES JUNIOR, 2009, p. 205) 18 . Assim, o presidente manteve um discurso que diferenciava grupos que so, na realidade, bastante in- terligados entre si, a m de seguir recebendo apoio estadunidense. Apesar dessas iniciativas do governo paquistans, as atividades terroristas seguiram ocorrendo, tanto na ndia, quanto na Caxemira, e h fortes indcios de que o apoio de setores do Estado paquistans tenha continuado, alimentando a contradio existente na atuao do Paquisto dentro da Guerra ao Terror estadunidense (BAJORIA, 2010). Mesmo 16 Aqui, importa notar que o Jihad no , exclusivamente, uma doutrina de guerra. Ela representa um esforo para pro- pagar a religio do Isl. Contudo, h uma interpretao de jihad que, de fato, representa a guerra como forma de difu- so do Isl. Alm disso, o Coro no prega, necessariamente, a guerra santa como forma de expanso do isl; o Jihad no nem mesmo um dos principais pilares desta religio. As redes extremistas, contudo, acreditam ser necessrio e justicvel empregar a guerra santa e eliminar os ineis, os invasores das terras do isl, a m de expandir o alcance de sua religio. O jihad acaba por se converter, logo, em um instrumento poltico, legitimador de uma poltica externa de expanso territorial (NEVES JUNIOR, 2009, p. 97, 157-160). 17 Alguns lderes paquistaneses que buscavam uma negociao com a ndia como a melhor soluo para o conito, os chamados nacionalistas, j chegaram ao poder. Contudo, a inuncia e o poder poltico da ISI e dos militares grande no Paquisto, e ataques terroristas na ndia incentivados por eles acabaram por recorrentemente impedir ne- gociaes (NEVES JUNIOR, 2009, p. 188-211). 18 Vale salientar, contudo, que o prprio Musharaf j teria admitido, em entrevista, que muitos dos militantes que atuam na Caxemira so treinados no Paquisto, e que o governo teria feito vista grossa por considerar que os atentados pressionariam a ndia a iniciar novos dilogos (BBC, 2010). 16 UFRGSMUNDI depois que o governo declarou os grupos terroristas ilegais, os mesmos seguiram atuando de forma dis- simulada, com disfarces e outros nomes (AFRIDI, 2009). A desconana indo-paquistansa tambm repercute no Afeganisto. O Paquisto possui um grande interesse em manter no pas um governo aliado, o que lhe traria grandes vantagens no possvel conito com a ndia. Disto veio o grande apoio ao Talib no Afeganisto, explicado anteriormente. Du- rante a interveno ocidental (primeiro, dos EUA em 2001, e, a partir de 2003, da OTAN) no Afeganisto, a Aliana do Norte (aliada do Ocidente) tomou o poder no pas em 2006 e abriu espao para uma parceria com a ndia, exemplicada por alguns investimentos diretos deste pas no Afeganisto. A ISI e o exrcito paquistans seguiram, ento, apoiando o Talib, para que retome o poder no pas e o afaste da parceria com a ndia (KATZMAN, 2013, p. 47; JAUHARI, 2012, p. 48). Por seu turno, a ndia busca aproximar-se do Afeganisto para aproveitar as vantagens econmicas - como a conexo com a sia Central e a possibi- lidade de explorao de recursos -, impedir que o pas se torne aliado do Paquisto e evitar que grupos radicais ataquem alvos indianos no Afeganisto, tambm reconhecendo que esses mesmos grupos pos- suem importantes laos com as redes que atacam a Caxemira e o seu territrio (KATZMAN, 2013, p. 52; MAZZETTI & SCHMITT, 2008). A questo do terrorismo tem contribudo muito para a manuteno do ambiente de desconana entre a ndia e o Paquisto: a ndia constantemente acusa o Estado paquistans de se envolver nos peri- dicos ataques no seu territrio e na Caxemira e, alm disso, ambos os pases so acusados de cometerem violaes de direitos humanos na Caxemira. O Paquisto encontra-se, atualmente, em um nvel alto de ingovernabilidade, ou seja, o prprio governo est com diculdades de controlar seu pas e as diversas foras polticas que operam dentro dele, como a ISI, os militares e os grupos terroristas. At mesmo a ISI j vem tendo diculdades de controlar os grupos terroristas que apoia, tendo alguns j atacado alvos em territrio paquistans. Enquanto isso, parece claro que a melhor forma de resolver os atritos com a ndia atravs do dilogo, mas ainda h grande resistncia em ambos os lados quanto reconciliao, embora alguns avanos j tenham ocorrido (JAUHARI, 2012, p. 49; AFRIDI, 2009). 2.6. A LUTA CONTRA O TERRORISMO E O USO DE VECULOS AREOS NO TRIPULADOS (VANTS) 2.6.1. A LUTA CONTRA O TERRORISMO Como j mencionado anteriormente, a presena do terrorismo no Paquisto marcante e decisiva para qualquer discusso acerca das aes a se tomar no pas. Setores do prprio governo paquistans seguem envolvidos com os grupos islmicos atuantes, o que torna mais complexa ainda a luta contra o terrorismo na regio. Hoje, podemos ver duas maneiras distintas de se atuar contra as aes terroristas: atravs da institucionalizao regional e atravs da interveno estrangeira. A primeira segue uma viso de um combate de longo prazo, que venha a erradicar o terrorismo por meio do desenvolvimento da regio e do aumento da presena estatal. J a segunda visa a combater, em curto prazo, os principais grupos atravs da presena militar de tropas estrangeiras (NEVES JUNIOR & PICCOLI, 2012). 2.6.1.1. Contraterrorismo atravs da institucionalizao regional A luta contra o terrorismo atravs de uma estratgia de longo prazo com foco no desenvolvimento da regio considera que as aes radicais islmicas no se mantm somente no Afeganisto e suas pro- ximidades, mas tambm em outras reas do mundo e vm sendo utilizado por outras potncias mundiais j bem antes do surgimento da Guerra ao Terror estadunidense. Pases como Rssia, China e ndia, seguem essa viso de contraterrorismo na regio. A China, por exemplo, lida com problemas srios de terrorismo dentro de seu prprio territrio, na regio de Xinjiang 19 . Uma das medidas de contraterrorismo tomada pelo pas foi aumentar o nmero de projetos de infraestrutura na regio para torn-la mais integrada, com exemplo no projeto de um gasoduto que iria do Cazaquisto at Xinjiang (CHENGHU, 2009). A Rssia tambm tem problemas com terrorismo, principalmente na regio da Chechnia, onde os grupos separatistas esto em constante atividade. O pas buscou resolver essas questes atravs da implementao de novas legislaes contraterroristas e da criao de instituies que facilitam o combate a esses grupos. Assim como a Rssia, a ndia tambm criou legislaes e uma agncia nacional especializada de combate ao terrorismo (PEREIRA et al, 2012). A criao da Organizao de Cooperao de Xangai (OCX) - que agrega Rssia, China e diversos pases da sia Central, alm de Paquisto, ndia e Ir como Estados observadores foi um marco impor- 19 Regio do noroeste da China que possui diversos grupos separatistas. 17 CSNU tante na luta contra o terrorismo na regio. Com a OCX, as decises podem ser tomadas de forma cole- tiva, sempre mantendo uma posio de no interveno estrangeira nos pases onde o terrorismo ainda deve ser combatido (NEVES JUNIOR & PICCOLI, 2012). A OCX foca no combate atravs do crescimento econmico da regio, de forma que a populao permanea satisfeita, evitando o surgimento de grupos radicais. Esse crescimento se daria, principalmen- te, por investimento em infraestrutura, como em obras de saneamento e construo de escolas, e pelo fortalecimento de projetos polticos, para que os pases no sejam prejudicados pelas aes contrater- roristas. Diversos projetos de ampliao de rotas de comrcio para pases como Afeganisto e Paquisto esto sendo discutidos no mbito da organizao, incentivados por chineses e indianos, como o projeto da Nova Rota da Seda 20 . Esse projeto, inclusive, fez com que as prprias aes dos Estados Unidos fossem revistas (NEVES JUNIOR & PICCOLI, 2012), j que iniciativas como essa podem trazer benefcios para os investidores, alm de desenvolver o pas e conferir potencial para crescimento econmico. Outro aspecto importante dessa forma de contraterrorismo que ela considera um sistema mul- tipolar 21 , com potncias asiticas agindo em sua regio coletivamente em busca de um objetivo comum. A luta contra o terrorismo, de certa forma, fez com que Rssia e China se aproximassem, atravs da OCX, mantendo estreitas relaes bilaterais, como nunca antes tiveram, e atuando mais fortemente na sia Central (NEVES JUNIOR & PICCOLI, 2012). Alm disso, a China sempre foi uma grande parceira do Paquisto e no busca intervir nos assuntos internos do pas, respeitando sua soberania (PEREIRA et al, 2012). importante tambm frisar que essa presena de pases como Rssia e China na regio apenas foi possvel com o enfraquecimento da presena norte-americana, que vem tendo diculdades em lidar com a populao local, na qual cresce cada vez mais um sentimento antiocidental (VERSIEUX, 2004). Alm da OCX, tambm vemos a criao do Frum Quadrilateral, que envolve Rssia, Afeganisto, Paquisto e Tadjiquisto. Mais uma vez identicamos o aumento da presena russa na regio, atravs de uma ao coletiva, tambm com foco na luta contra o terrorismo nesses pases. Alm disso, o prprio Paquisto tem novas oportunidades de se tornar mais autnomo e de se inserir na regio (MARTINS et al, 2011). 2.6.1.2. Contraterrorismo de interveno estrangeira Por outro lado, existe tambm o combate atravs da interveno militar estrangeira, normalmente utilizado pelos Estados Unidos. Aps os ataques de 11 de setembro, a luta contra o terrorismo se tornou uma justicativa para a presena estadunidense em outros pases, principalmente no Afeganisto. O foco em acabar com as organizaes terroristas como Al Qaeda espalhou-se para outros grupos antiociden- tais, como o Talib, e acabou tornando a regio toda alvo do contraterrorismo norte-americano. Essa forma de combate envolve principalmente o uso da fora e de tropas estadunidenses per- manentemente na regio, de forma a eliminar toda e qualquer ameaa aos norte-americanos. Segundo Neves Jr e Piccoli (2012, p.4), (...) se congura uma denio do que a guerra ao terrorismo: campanhas militares preventivas destinadas a desbaratar organizaes radicais islmicas, amparados por determinados governos. A perseguio a lderes desses grupos extremistas a principal ao do contraterrorismo de in- terveno estrangeira, que, se considerarmos a morte de Osama Bin Laden, em 2012, de fato obteve sucesso. Porm, nos ltimos anos, a presena estadunidense vem trazendo tona sentimentos antioci- dentais na populao, j que em nenhum momento foi utilizada uma poltica de desenvolvimento ou de melhoria das condies da populao local. Alm disso, essa uma viso de um mundo unipolar, na qual os Estados Unidos, como potncia global, precisam intervir militarmente nos pases contra esses grupos terroristas e estabiliz-los sua maneira (NEVES JUNIOR & PICCOLI, 2012), j que no existiria nenhuma outra potncia com capacidades necessrias para isso. Assim, percebe-se que h respostas militarizadas para o que, muitas vezes, trata-se de um problema social. importante notar que os Estados Unidos sempre se baseiam em uma ameaa futura a seu pas ou a seus cidados, e que essas aes de contraterrorismo so parte de uma poltica de preveno, muito 20 A Nova Rota da Seda tem sua origem no conceito de Rota da Seda utilizado para denir uma rota comercial atravs da qual bens e especiarias eram comercializados na Idade Mdia. Essa rota ligava o Oriente ao Ocidente pela sia Cen- tral. A nova verso seria tambm atravs da sia Central, porm incluiria questes energticas e de infraestrutura de transporte que poderiam gerar um maior desenvolvimento para a regio (REIS, 2014). 21 Sistema Multipolar um sistema que possui mais de um pas com grande poder. um sistema oposto quele em que se considera que os Estados Unidos seriam o nico polo o sistema unipolar. 18 UFRGSMUNDI discutida no mbito do direito internacional. Essa discusso tem relao com a interveno norte-ame- ricana no Iraque, que no foi aprovada pelo Conselho de Segurana da ONU, mas foi levada a cabo de qualquer maneira. A ao dos EUA no pas foi considerada preventiva, pois ao preventiva - ou seja, rea- lizou um ataque ao Iraque por acreditar que estava ameaado por ele, ainda que esse no tivesse de fato realizado algum ataque contra os EUA. Alm disso, o governo estadunidense utiliza a Guerra ao Terror para promover os valores dispersados por ele nesses pases, como a democracia e a liberdade, armando que a estabilidade s viria com a presena deles no pas (PEREIRA et al, 2012). 2.4.2. USO DE VECULOS AREOS NO TRIPULADOS (VANTS) Dentro dessa viso de contraterrorismo de interveno estrangeira, em que a eliminao dos prin- cipais lderes o ponto focal, os Estados Unidos passaram a utilizar veculos areos no tripulados para isso. Essa nova face da poltica norte-americana de combate ao terrorismo tpica do governo de Barack Obama, que pretende utilizar a fora, porm de maneira mais precisa e ecaz (ROHDE, 2012). Os VANTs atuam por meio de uma base de controle, constituda por tcnicos especializados, que, atravs de um sis- tema complexo, comunicam as aes para o veculo, que pode tambm contar com alguma autonomia (AUSTIN, 2010). Esses veculos, tambm chamados de drones, constituem uma maneira de no utilizar as tropas para aes mais perigosas, como era caracterstico da gesto de George W. Bush, e possibilitam a presena em reas de difcil acesso. No entanto, os ataques de VANTs tambm ameaam a populao civil, que muitas vezes j foi atingida. Segundo um relatrio apresentado pelo Relator Especial da ONU para contraterrorismo e direitos humanos, j foram efetuados 330 ataques de VANTs no territrio pa- quistans, e o nmero de mortes pode ter chegado aos 2200 (CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DAS NAES UNIDAS, 2014). O uso de VANTs para eliminao dos lderes radicais islmicos considerado assassinato extrajudi- cial, ou seja, sem um julgamento do ru antes da execuo, e extraterritorial, ou seja, em um territrio que no estadunidense e que no regido pelas leis estadunidenses. Existe muita discusso acerca desse tipo de assassinato e, por isso, essa poltica de utilizao de drones do governo norte-americano deve ser muito bem desenvolvida. Por isso, os Estados Unidos vem tentando desenvolver uma poltica para o uso dos VANTs, considerando que a opinio pblica fortemente contrria a essa utilizao (BYMAN, 2013). importante o fato de que o assassinato de Bin Laden, principal vitria estadunidense nessa guerra ao terrorismo, no foi realizada com drones, mas com tropas regulares. Alm disso, alguns autores acre- ditam que a utilizao de VANTs pode estar gerando novos inimigos, j que muitos inocentes so alvos desses veculos, o que est causando novos problemas aos Estados Unidos. Fica claro que, para combater um grupo que no tem uma sede especca, como a Al Qaeda, os drones so uma ferramenta eciente, mas, se estiverem contribuindo para o surgimento de novos grupos radicais, podem comprometer toda a estratgia norte-americana (CRONIN, 2013). O uso de VANTs, no entanto, no se d somente pelos Estados Unidos. Diversos pases vm desen- volvendo suas prprias tecnologias em busca de uma maior autonomia da resoluo de seus problemas. China, Rssia e Brasil so pases que j produzem drones e que pretendem utiliz-los na defesa de suas fronteiras e de seu territrio. O que gera a discusso no mbito internacional acerca da utilizao por parte dos Estados Unidos o fato de que esses veculos so usados indiscriminadamente, atingindo inocentes e gerando terror nas regies mais instveis, onde eles so mais utilizados, como o Paquisto (ROHDE, 2012). 3. AES INTERNACIONAIS PRVIAS Tendo conhecido tanto o histrico da situao do Paquisto quanto s complexidades que envol- vem o pas atualmente, ainda muito importante saber o que j foi realizado a respeito do tema por orga- nizaes internacionais e pelos pases envolvidos. Apesar de no constarem aqui resolues, acordos ou outros tipos de aes prvias que tratem exclusivamente do Paquisto, foram descritos alguns fatos que parecem relevantes para o entender a questo, situando-a dentro do contexto da Guerra ao Terror em- pregada pelos estadunidenses e do surgimento do terrorismo como ameaa internacional. Alm disso, h uma retrospectiva do envolvimento da ONU na relao indo-paquistanesa, bem como dos acordos feitos entre esses dois rivais histricos, a m de tirar concluses sobre como a melhor maneira de encar-lo e de tentar solucion-lo. 19 CSNU 3.1. TERRORISMO E CONTRATERRORISMO Para se discutir a situao nos pases que passaram por intervenes estrangeiras e de resolver conitos na regio, diversos encontros e acordos foram promovidos, com o objetivo de se chegar a um consenso, minimizar aes consideradas terroristas, alm de lidar com outros problemas, como o uso de armas qumicas, por exemplo. Uma ao relevante do Conselho de Segurana da ONU para resolver o impasse entre Paquisto e Afeganisto foi a resoluo 622 que, aprovada por unanimidade em 1988, pos- sibilitou ao Conselho tomar medidas para uma regularizao da situao no Afeganisto (DEPARTAMEN- TO DE ASSUNTOS POLTICOS, 2007). A resoluo levou criao da Misso dos Bons Escritrios das Naes Unidas no Afeganisto e Paquisto, que tinha a nalidade de acompanhar e auxiliar a confeco de acordos durante a guerra contra os soviticos e de investigar as violaes desses acordos (ORGANI- ZAO DAS NAES UNIDAS, 2014a). A m de construir um panorama sobre as aes prvias sobre o terrorismo e o contraterrorismo, vale lembrar algumas resolues do Conselho de Segurana da ONU que trataram da interveno estran- geira, questo chave para entender as medidas de contraterrorismo atualmente. Em 1990, aps a invaso iraquiana no Kuwait, o Conselho de Segurana aprovou a Resoluo 678, na qual reconheceu que o Ira- que desaava o Conselho e se opunha s medidas de retirada das suas tropas do Kuwait. A resoluo per- mitia que os pases-membros do Conselho utilizassem de todos os meios para que o pas implementasse a resoluo, permitindo, assim, o uso da fora (MURPHY, 1996). Assim, nota-se que o Conselho, quando percebe que h alguma ameaa estabilidade de uma regio ou aos interesses de pases como os EUA anal, no se pode ignorar sua inuncia sobre que temas sero discutidos no Conselho , considera o uso da fora como alternativa. Considerando a situao do Afeganisto, em 1996 o Conselho de Segurana aprovou a resoluo 1076, que previa que os conitos entre as partes internas da regio fossem resolvidos de maneira pacca visando, principalmente, s questes humanitrias de refugiados, discriminao de mulheres e violaes dos direitos humanos. Alm disso, a resoluo salientava a no interferncia de estrangeiros no pas de forma que as Naes Unidas pudessem controlar a situao respeitando a integridade, a soberania e a independncia do territrio afego (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1996). A resoluo ainda rei- terava que o conito no Afeganisto era um terreno ideal para o terrorismo e o trco de drogas, o que poderia desestabilizar a regio (ONU, 1996). relevante salientar, aqui, o princpio da Carta da ONU de defesa da soberania sendo respeitado pelo Conselho de Segurana. Aps inmeras resolues visando ao desmantelamento dos grupos como Al Qaeda e Talib atra- vs de sanes, em 2001, os Estados Unidos sofrem o ataque s torres do World Trade Center que, mais tarde, teria a autoria assumida por Osama Bin Laden e pelo grupo Al Qaeda. Os Estados Unidos rapida- mente anunciaram e concretizaram uma invaso ao Afeganisto, contando com amplo apoio internacio- nal. Mais tarde, em dezembro do mesmo ano, o Conselho aprovaria a resoluo 1386, na qual autoriza a formao da Fora Internacional de Assistncia para Segurana (ISAF, na sigla em ingls): uma misso liderada pela OTAN que teria como objetivos ajudar no crescimento da capacidade das Foras de Segu- rana Nacional Afeg. Declaravam, ainda, que o emprego da ISAF no Afeganisto facilitaria melhorias do governo e ajudaria a promover o desenvolvimento socioeconmico do pas, de forma a fornecer um ambiente seguro e estvel (INTERNATIONAL SECURITY ASSISTANCE FORCE, 2001). Na prtica, o objetivo de empregar a ISAF era o de controlar a transio de governo do Afeganisto, que passou do regime dos Talibs para um governo aliado ao Ocidente, o do presidente Hamid Karzai (VISENTINI, 2012, p. 97-98). Dois anos mais tarde, uma interveno externa sem consentimento do Conselho de Segurana ocorre em outro pas do Oriente Mdio: em 2003 os Estados Unidos invadem o Iraque. O pas ocidental armava que o Iraque ainda possua grandes quantidades de armas de destruio em massa, desrespei- tando, assim, a resoluo 687 de 1991 aps o m da Guerra do Golfo (BUSHS 16 WORDS ON IRAQ..., 2004), na qual o Iraque sara derrotado. Vrias resolues da ONU deram oportunidades ao pas para se desfazer do programa nuclear, porm houve pouca cooperao com a comisso responsvel pelo moni- toramento das armas. Dessa forma, no atendendo resoluo 1441, a ltima delas, os Estados Unidos, apoiados pelo Reino Unido, interviram sem o consentimento do Conselho de Segurana e com forte condenao internacional, mesmo de pases como Frana e Alemanha (BBC, 2003). Os EUA utilizaram a justicativa de que o pas do oriente seria uma ameaa terrorista para a segurana mundial (CENTER FOR AMERICAN PROGRESS, 2004). Com as ameaas e aes militares cada vez mais frequentes e ganhando a denominao de Guer- ra ao Terror, que se congurou como eixo central para a poltica externa estadunidense a partir de 2001, os movimentos contra o terrorismo caram cada vez mais conhecidos. Em 2011 surgiu o Centro das Na- es Unidas Contra o Terrorismo a partir de uma fora tarefa j existente na ONU, a Fora Tarefa de Im- plementao das Naes Unidas contra o Terrorismo (CTITF), com a nalidade de reforar a especializa- 20 UFRGSMUNDI o das Naes Unidas contra os atos terroristas (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 2014b). O novo rgo depende da experincia da CTITF e conta com sua ajuda para reforar as iniciativas e promover novas ideias contra o terrorismo. O novo centro contra o terrorismo busca a cooperao a nvel mundial, visa implementao e ao desenvolvimento de estratgias antiterroristas e busca colaborao atravs dos grupos de trabalho para reforar a capacidade dos Estados-membros no combate (ONU, 2014b). Outra agncia especializa em contraterrorismo o Instituto Internacional de Combate ao Ter- rorismo, um dos principais institutos acadmicos para o combate ao terrorismo no mundo, facilitando a cooperao internacional na luta global contra o terrorismo. O instituto fornece conhecimentos em terrorismo, contraterrorismo e segurana interna, alm realizar avaliaes de riscos e anlises de inte- ligncia, de segurana nacional e de defesa (INTERNATIONAL INSTITUTE FOR COUNTER-TORRORISM, 2014). A conferncia anual que a ICT promove um dos eventos mais inuentes do mundo no combate ao terrorismo atualmente, servindo de oportunidade para a cooperao internacional e para ampliar a compreenso acerca da questo do terrorismo e dos seus desaos (ICT, 2014). 3.2. A RELAO INDO-PAQUISTANESA No mbito das relaes indo-paquistanesas, j em atrito a partir de 1947 devido questo da Ca- xemira, a primeira ao prvia que pode ser citada a resoluo 39 do Conselho de Segurana, adotada em janeiro de 1948, um ano depois da independncia dos dois pases. Essa resoluo estabeleceu a Co- misso das Naes Unidas para a ndia e o Paquisto (UNCIP, na sigla em ingls), para mediar a disputa. Em fevereiro deste mesmo ano, em outra resoluo a resoluo 47 -, o Conselho aumentou o nmero de membros da comisso e recomendou novas medidas para solucionar a disputa (DEPARTAMENTO DE INFORMAES PBLICAS, 2003). Essa resoluo tambm muito importante por ter em seu texto que: tanto a ndia quanto o Paquisto desejam que a questo da adeso de Jammu e Caxemira ndia ou ao Paquisto deve ser decidida atravs do mtodo democrtico de um plebiscito livre e imparcial (MISSO PAQUISTANESA PARA AS NAES UNIDAS, 2014). Essa armao passou a ser muito importante para o debate sobre a posse da regio. Em 1949, depois da primeira guerra indo-paquistanesa (1947-1949), os dois pases rmaram o Acordo Karachi, mediado pela UNCIP, atravs do qual estabeleceram uma linha de cessar-fogo que dividia a Caxemira. Em 1951, com a extino da UNCIP, o Conselho resolveu dar ao Gru- po de Observadores Militares da ndia e do Paquisto (UNMOGIP) a tarefa de supervisionar o cessar-fogo na Caxemira (DPI, 2003). Em 1965, com o retorno das hostilidades, o Conselho de Segurana da ONU reuniu-se novamente, passando duas novas resolues resolues 209 e 210 pedindo, na primeira, um novo cessar-fogo e a pela colaborao com a UNMOGIP e, na segunda, para que o Secretrio-Geral da ONU desse especial ateno ao caso e zesse esforos para que essas resolues fossem cumpridas. Apesar desses esforos, o conito se alastrou para alm da linha de cessar-fogo, tambm ocorrendo atritos em outros pontos da fronteira indo-paquistanesa. Assim, o Secretrio-Geral da ONU estabeleceu outro rgo, a Misso de Ob- servao da ndia e do Paquisto (UNIPON, na sigla em ingls), com o objetivo tambm de supervisionar o cessar-fogo na fronteira indo-paquistanesa fora da Caxemira. Tendo em vista que as hostilidades no cessavam, o Conselho passou novas resolues sobre o assunto, sem, contudo, convencer os dois pases a pararem seus esforos militares. Assim, em 1965, foram passadas 5 resolues a respeito do conito, at que em janeiro de 1966 chegaram a um acordo, mediado por um representante da ONU, de retomar o cessar-fogo. No mesmo ONU, a UNIPON foi terminada e os observadores da UNMOGIP foram se reti- rando da regio (DPI, 2003). Percebe-se, portanto, que, desde a independncia, a ONU esteve envolvida no conito entre os dois pases. Alm disso, foram feitos alguns acordos entre a ndia e o Paquisto, representando momentos de aproximao e dilogo que se alternavam com momentos de tenso mais acirrada. Entre as tentativas de dilogo entre os pases, destaca-se o Acordo de Simla, de 1972, que marcou o m da guerra indo-pa- quistanesa de 1971, da qual resultou a criao de Bangladesh (antes, o Paquisto Oriental). O acordo foi assinado pela primeira ministra Indira Gandhi, da ndia, e o presidente Zulqar Ali Bhutto, do Paquisto, que prometeram, no acordo, trabalhar pela melhora das relaes entre os dois pases, resolvendo suas controvrsias de maneira bilateral, ou seja, sem interveno externa. Concordaram tambm que, para a reconciliao, essencial que um pas no interra nos assuntos internos do outro. Apesar de estas e al- gumas outras clusulas no citadas terem sido desobedecidas, esse acordo abriu importantes preceden- tes para essa relao, principalmente por ter estabelecido o bilateralismo como melhor forma de resolver as disputas entre os dois pases (GOPALAN, 2012, p. 702-705). Esse precedente de negociao possibilitou diversas iniciativas, dentre as quais talvez a mais importante seja a criao da Associao Sul-Asitica para Cooperao Regional (SAARC, na sigla em ingls) em 1985, organizao da qual os dois pases fazem parte (BRANDALISE et al., 2012, p. 75). 21 CSNU Em 1988, os dois pases zeram mais um acordo, dessa vez comprometendo-se a no atacar as instalaes nucleares um do outro, pois ambos j faziam pesquisas nucleares neste perodo. Em 1992, acordaram sobre a completa proibio de armas qumicas. Em 1998, contudo, os testes de armas nuclea- res aumentaram as tenses entre os pases e o temor internacional dos resultados que uma nova guerra poderia trazer. Em 1999, em um novo movimento para melhorar as relaes, os dois pases publicaram a declarao de Lahore, que rearmou alguns princpios declarados no Acordo de Simla em 1972, alm adicionar a promessa de evitar riscos de uma guerra nuclear, entre outros comprometimentos (GOPA- LAN, 2012, p. 706-708). Em 2008, assumiu a presidncia no Paquisto Asif Ali Zardari, um dos presidentes que, segundo Tharoor (2012), buscou o apaziguamento das relaes com a ndia. Alm de pressionar pela expanso das relaes comerciais, tambm buscava liberalizar o regime de vistos de viagem entre os dois pases. Seu ministro de relaes exteriores chegou a visitar Nova Dli para dialogar sobre essas questes, mas o ataque terrorista em Mumbai (que, posteriormente, descobriram ter sido manejado pelo grupo LET, o qual teria conexes com a Agncia de Inteligncia Paquistanesa ISI) ocorreu no mesmo momento (THAROOR, 2012, p. 35-36), complicando novamente as relaes entre os dois pases. Alm disso, recentemente outros avanos tm ocorrido, como a concesso paquistanesa do ttulo de Nao Mais Favorecida 22 para a ndia, em 2011 (HAIDER, 2011) e a permisso indiana ao Investimento Direto Estrangeiro 23 paquistans em seu territrio em 2012 (SHETTY, 2012), bem como discusses sobre medidas contra terrorismo (JAUHARI, 2012, p. 49). 4. POSICIONAMENTO DOS PASES Os Estados Unidos da Amrica possuem, historicamente, srios interesses no Afeganisto, devido sua posio geogrca, seus recursos naturais e tambm por motivos polticos. Logo, interessante para os EUA que haja um governo aliado e estvel no pas. A m de contribuir para isso, os EUA buscam eliminar foras que se opem a sua interveno e que causam instabilidade, como as redes terroristas, empregando, assim, a Guerra ao Terror. Antes do onze de setembro, o Paquisto era tido como Estado patrocinador do terrorismo internacional. Depois do evento, emergiu, para os EUA, a necessidade de aliar-se ao governo paquistans (NAWAZ, 2008, p. 538), que faz fronteira com o Afeganisto e que hos- peda e tem ligaes com diversos grupos terroristas. Essas ligaes, contudo, que envolvem, principal- mente, a Agncia de Inteligncia paquistanesa ISI, so motivo de preocupao para os EUA, que duvidam da capacidade do governo de controlar seu exrcito e seu servio de inteligncia (MAZZETTI & SCHMITT, 2008). Os EUA tambm esto envolvidos na regio atravs do uso de Veculos Areos no Tripulados (VANTs), os quais objetivam atingir terroristas e suas bases. Esse uso, contudo, muito condenado por carregar consigo o risco de atingir alvos civis e inocentes. Por m, cabe salientar que os EUA buscam uma conciliao entre a ndia e o Paquisto, uma vez que de seu interesse que o Estado Paquistans possa dirigir todos os seus esforos para combater os terroristas na sua fronteira com o Afeganisto (JAUHARI, 2012, p. 47; THAROOR, 2012, p. 37). A Nigria enfrenta em seu prprio territrio um grupo islmico radical, o Boko Haram, oriundo do norte do pas, regio mais pobre, com baixos ndices de emprego e educao. Seu governo, apesar de j ter tentado dialogar com o grupo, tem uma atuao contraterrorista bastante repressiva (BOAS, 2012). Logo, percebe-se que, em seu prprio territrio, o pas opta pela opo militar de contraterrorismo, em detrimento do investimento e de medidas que buscassem o desenvolvimento socioeconmico da regio norte do pas. Para a anlise da situao Paquisto, contudo, importa lembrar que a Nigria defende prin- cpios como o de no interveno (VISENTINI, 2012, p. 110); logo, no se posiciona necessariamente a favor dos EUA no que concerne ao combate ao terrorismo atravs do uso de VANTs, por exemplo. Apesar disso, cabe lembrar que a Nigria possui importantes laos comercias com os pases ocidentais, como os EUA, cujas empresas de petrleo atuam h bastante tempo na Nigria (U.S. ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION, 2013). O Chade foi colnia francesa at 1960, quando conquistou sua independncia; sua poltica ex- terna, contudo, segue atrelada francesa. O governo extremamente dependente da Frana, principal- mente em termos militares (JANES, 2009). Assim, o Chade deve seguir, no debate, uma posio prxima francesa, apoiando a Guerra ao Terror estadunidense e defendendo suas medidas de contraterrorismo, 22 Ttulo previsto como clusula da Organizao Mundial do Comrcio (OMC) que prov a pases em desenvolvimento vantagens comerciais. 23 Investimentos estrangeiros direcionados ao territrio nacional. 22 UFRGSMUNDI que, alm da interveno, tambm prezam pela formao de boas instituies no pas onde h terroris- mo, para que este se desenvolva (EMBAIXADA DA FRANA EM LONDRES, 2010). Neste mbito, vale res- saltar que suas relaes com os EUA tambm so muito boas, principalmente pela ajuda econmica que recebe (BUREAU OF AFRICAN AFFAIRS, 2013a). Ruanda reconhecida pelo genocdio, praticado por foras extremistas da etnia hutu, contra a etnia tutsi (alm de contra hutus moderados), ocorrido em 1994. O presidente Kagame, que liderou as foras que lutaram contra o genocdio, bastante nacionalista e tem praticado medidas relevantes para o desenvolvimento nacional. A m de atrair investimentos para seu pas, ele possui boas relaes com os EUA e com o Reino Unido, principalmente por receber ajuda nanceira e militar (BUREAU OF AFRICAN AFFAIRS, 2013b; THE ECONOMIST, 2011). O governo tem se empenhado para combater o terrorismo na sua regio e em suas fronteiras; para isso, j recebeu ajuda estadunidense (TUCKEY & JACQUES, 2008). Assim, como no possui interesses especcos no caso do Paquisto, a Ruanda deve mostrar suporte Guerra ao Terror estadunidense. A Frana possui uma viso contrria a todas as maneiras de terrorismo existentes e busca formas de elimin-lo atravs da cooperao, do investimento e tambm, por vezes, da interveno. O pas pro- cura auxiliar em questes jurdicas, defendendo instituies democrticas e o desenvolvimento socioe- conmico dos pases afetados pelo terrorismo (EMBAIXADA DA FRANA EM LONDRES, 2010). Apesar desse discurso, o governo francs, desde o 11 de setembro, vem tomando uma posio de apoio s po- lticas estadunidenses de contraterrorismo e vem defendendo mais as intervenes, principalmente nos pases da frica, onde possui grande inuncia. Sua concordncia com a interveno como medida para o contraterrorismo cou clara aps as intervenes realizadas no Mali, em 2013, onde foram, inclusive, utilizados VANTs (IRISH & PENNETIER, 2013). A Argentina, assim como o Chile, vem desenvolvendo a produo de VANTs para controle de suas fronteiras e para combate ao trco de drogas na regio, logo, so contrrios somente forma como so utilizados no Paquisto. Ambos os pases sofrem com suspeitas de terrorismo em seus territrios (RUSSIA TODAY, 2013). Alm disso, o governo argentino defende aes contraterroristas mais voltadas para o de- senvolvimento dos pases atravs de mudanas estruturais, que acabem com a pobreza e marginalizao e que sejam feitas atravs da coordenao da comunidade internacional (BUENOS AIRES HERALD, 2013). A Argentina tambm j sofreu com ataques terroristas de grupos islmicos e, por isso, mantm uma pos- tura fortemente antiterrorista (MUNSON, 2011). O novo governo chileno, em fase de transio de poltica externa, que antes era muito ligada aos Estados Unidos, deve buscar laos mais estreitos com o Brasil e a Argentina. Assim, sua posio quanto ao combate ao terrorismo deve se dar de forma semelhante deste pas: atravs de medidas de longo prazo e investimento nos pases (LULKO, 2013). A Litunia signatria de 8 convenes que tratam sobre contraterrorismo e atua em conjunto com o Reino Unido e a Unio Europeia nessas questes. O pas defende uma maior relao comercial com o Paquisto por parte da Unio Europeia (MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES DO PAQUISTO, 2012) e, em relao ao uso de VANTs, apoia uma maior regulamentao (15 MIN, 2013). O governo sul-coreano possui uma forte poltica contraterrorista e membro de todas as con- venes existentes sobre o assunto. A Coreia do Sul sofre com ameaas terroristas do vizinho do norte e, por isso, atua em conjunto com os Estados Unidos para treinamento de seu exrcito e para utilizao de VANTs. Alm disso, j desenvolveu um VANT capaz de atacar a Coreia do Norte (HAN, 2014). O Reino Unido possui uma posio muito forte em relao ao terrorismo existente no Paquisto. O pas defende que o governo paquistans tome maiores medidas para controle dos setores com ligao com os grupos radicais e incentiva a democracia na regio. O Primeiro Ministro, David Cameron, armou que condena o apoio a grupos que possam exportar o terror para outras regies do mundo (BBC, 2010). O governo britnico forte aliado dos Estados Unidos na guerra contra o terror e o apoia nas interven- es contraterroristas. Alm disso, considera a Al Qaeda uma ameaa real a seus interesses no pas, j que possui boas relaes comerciais com o Paquisto e espera conseguir um ambiente mais estvel (REINO UNIDO, 2013). A Repblica Popular da China aliada de vrios anos do Paquisto, principalmente por causa dos seus conitos com a ndia. Assim como no resto do mundo, a China normalmente no costuma discutir a poltica interna de seus aliados; no entanto, nos ltimos anos, o Paquisto tem sido problemtico para China em alguns pontos. O mais importante deles talvez seja as constantes notcias e relatrios de in- teligncia mostrando que grupos extremistas-separatistas de Xinjiang (estado situado na fronteira oeste chinesa, o qual clama por autonomia poltica e possui maioria da populao islmica) so acobertados e possuem centro de treinamentos no Paquisto (BBC, 2012; SUMBAL, 2013). O principal grupo o ETIM (Movimento Islmico do Turquesto Oriental), o qual vem sendo responsvel por diversos atentados em toda a China. Por tudo isso, a China apoia a ONU e a ISAF nos projetos de reconstruo afeg, pois v na retomada do desenvolvimento e da infraestrutura do pas a melhor forma de estabilizao da regio e, consequentemente, da resoluo de seus prprios problemas com os separatistas internos; ainda, a 23 CSNU melhor plataforma para isso acontecer seria, para os chineses, a Organizao de Cooperao de Xangai (OCX) (ZYCK, 2012; REIS & SIMIONATO, 2013, p. 152). atravs da OCX que China e Rssia procuram de- senvolver polticas em conjunto com os pases da regio, buscando o desenvolvimento pela integrao regional, contrapondo-se de certa forma ao intervencionismo de potncias estrangeiras na regio. Nesse sentido, a Rssia uma das principais interessadas na estabilizao do Afeganisto e do Paquisto, seja para evitar o transbordamento at suas fronteiras (pases da sia Central), ou at mesmo dentro de suas fronteiras, como no caso dos separatistas chechenos, que, assim como os rebeldes do ETIM, recebem armas e treinamento vindos de instalaes ligadas a Al Qaeda no Paquisto. Entretanto, ao mesmo tempo, a Rssia desejava voltar a ter forte inuncia na regio, no vendo com bons olhos o fortalecimento dos Estados Unidos em pontos estratgicos da regio (KATZMAN, 2013, p.53). Nesse sentido, o pas um forte incentivador de um maior papel para OCX na regio. Essa parceria com a China costuma render bons frutos para a Rssia, visto que ambos convergem em diversos pontos nos projetos de desenvolvimento da regio, principalmente no desejo de garantir autonomia para esses pases, tiran- do-os da inuncia direta e desigual dos pases ocidentais. A Austrlia sempre foi um dos maiores apoiadores dos Estados Unidos e da OTAN na luta contra o terrorismo, sendo o segundo pas fora da OTAN com a maior tropa operando no Afeganisto (ORGANI- ZAO DO TRATADO DO ATLANTICO NORTE, 2013, p. 2). A prpria Poltica Externa e de Segurana do pas sobre o terrorismo, em seu Livro Branco, (AUSTRLIA, 2013, p. 16-17), moldada a partir do entendi- mento de que do interesse nacional australiano o combate direto aos extremismos, visto que a Austrlia um pas asitico e sofre de perto com o problema. Compartilhando dessa mesma viso de combate ao terrorismo, o Gro Ducado de Luxemburgo em parceria, principalmente, com a Unio Europeia, no mede esforos para acabar a ameaa terrorista em seu territrio (CONTACTO, 2011). Uma vez vtima de atentados na dcada de 1980, o pas se com- promete com a promoo e a proteo dos direitos humanos, principalmente nos locais atingidos pelas ameaas terroristas, bem como na concretizao da democracia, do cumprimento das leis e da boa governana nos pases que hospedam organizaes terroristas em seu territrio (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 2013). A Jordnia segue uma poltica voltada s vises de pases ocidentais, como os EUA e o Reino Unido, em relao s aes terroristas. O pas se encontra em uma rea de conito cercado de grupos terroristas dos seus vizinhos islmicos e, at mesmo, sofre com invases de algumas organizaes (TE- LES, 2005). A postura pr-ocidente do pas causa atritos na relao com demais pases do Oriente Mdio, sendo que sua luta contra o terrorismo pode ser considerada, por esses, uma traio (TELES, 2005). Vale destacar, ainda, que o pas encontra-se engajado com a ONU em misses de paz em todo o mundo (JOR- DAN TIMES, 2007). REFERNCIAS 15 MIN. 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At hoje interesses extra-regionais esto vivos na regio: os EUA possuem interesses srios no Afeganisto, a China possui relaes de amizade com o Paquisto e os diversos pases europeus sempre foram muito atuantes na cruzada contra o terrorismo. Alm disso, a discusso sobre este tema traz uma controvrsia interessante: devemos combat-lo diretamente ou via desenvolvimento da regio afetada? Assim, o comit do Conselho de Segurana das Naes Unidas busca um envolvimento dos delegados na anlise do terrorismo enquanto nova realidade internacional e da situao complexa que permeia a regio Afeganisto Paquisto ndia. Dada a alta polemizao e importncia do tema, o debate pode trazer importantes lies sobre como se d a polariza- o internacional, tanto de forma geral quanto especicamente no assunto debatido. 28 UFRGSMUNDI PROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE Gesto de Recursos Hdricos Transfronteirios Eduardo Dondonis 1 Michelle Baptista 2
Rassa Mattana 3
Roberta Preussler 4 INTRODUO O Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) a principal autoridade das Na- es Unidas responsvel pelas questes ambientais, a nvel regional e global. Entre os principais objetivos do PNUMA esto: manter o contnuo monitoramento do meio ambiente global, alertar os povos sobre problemas e ameaas ao meio ambiente e recomendar medidas que melhorem a qualidade de vida das pessoas sem comprometer os recursos naturais das geraes futuras. Com sede em Nairbi, no Qunia, o PNUMA conta ainda com seis escritrios regionais espalhados por todos os continentes. Suas reunies so compostas por 58 membros eleitos pela Assembleia Geral das Naes Unidas, tendo o mandato de cada membro durao de quatro anos. Mesmo que o cumpri- mento de suas recomendaes no seja obrigatrio, as resolues do PNUMA so capazes de exercer forte presso moral frente a todos os pases das Naes Unidas. 1. HISTRICO Historicamente, a importncia das guas remonta prpria origem do homem. At aproximada- mente 6 mil a.C, os homens se reuniam em grupos nmades, ou seja, no xavam moradia em nenhum local especco, apenas vagavam caando e buscando sobreviver (COTRIM, 2005). Posteriormente, os homens comearam a passar mais tempo em um nico lugar, para, por m, se tornarem sedentrios 5 e comearem a utilizar a agricultura para sobreviver; foi neste momento que percebeu-se a relevncia dos recursos hdricos para a sobrevivncia. Os registros informam que a primeira das civilizaes foi a criada na regio entre o rio Tigre e o rio Eufrates, denominada Mesopotmia 6 . A necessidade da gua ca explcita nesse caso: no haveria forma de construir uma civilizao sem que os homens que faziam parte dela tivessem gua para sua prpria 1 Graduando no curso de Relaes Internacionais do quinto semestre na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 2 Graduanda no curso de Relaes Internacionais do quinto semestre na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 3 Graduanda no curso de Relaes Internacionais do terceiro semestre na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 4 Graduanda no curso de Relaes Internacionais do quinto semestre na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 5 Ou seja, os homens passaram a viver em apenas um local, xando sua residncia, ao invs de viverem como viajantes procurando pela sobrevivncia em um lugar de cada vez. 6 Uma regio do Oriente Mdio, parte do atual Iraque. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.28-51 29 PNUMA sobrevivncia, assim como terras frteis 7 para praticar a agricultura, alm da criao de animais que os ali- mentariam. Outras civilizaes antigas seguiam o mesmo padro, como a antiga civilizao dos egpcios, s margens do rio Nilo; a dos hindus, no rio Indo; e a dos chineses, no rio Amarelo. Porm, em nenhuma destas primeiras civilizaes a paz prevaleceu por muito tempo. A Mesopot- mia, por exemplo, foi habitada por diferentes povos (sumrios, acdios, babilnios, assrios, caldeus, entre outros) em diferentes pocas. Isso porque, apesar de existirem muitas regies inabitadas no globo, alguns grupos nmades ou seminmades viam, nas terras em volta dos rios, a fertilidade e os recursos necess- rios para a sobrevivncia, percebendo sua importncia. Assim, ocorriam ataques e guerras que acabavam por substituir um povo por outro na mesma regio, modicando cada uma das antigas civilizaes. Mais tarde, por volta do ano 2000 a.C, o povo hebreu, que anteriormente vivia em parte da Me- sopotmia, migrou para a regio da Palestina, ao redor do rio Jordo (COTRIM, 2005). Foi l que eles viveram por quase trs sculos, at que uma forte seca desolou a regio e fez com que este povo tivesse que ir para o sul, at a civilizao egpcia. Depois disto, os hebreus s conseguiram retornar s suas terras aps 500 anos, no sem muitos conitos com os povos que agora habitavam l, como os cananeus e os listeus (COTRIM, 2005). Esta mais uma prova de que, em tempos antigos, a sobrevivncia sedentria se tornava completamente inviabilizada pela existncia de alguma seca ou algum outro fator que afetasse as guas dos rios; ainda, de que as civilizaes invariavelmente buscavam estabelecer-se ao lado de grandes rios. J no sculo VII a.C., estruturou-se o povo Fencio, que vivia em uma regio entre o Mar Medi- terrneo e o rio Jordo, assim como na ilha onde atualmente se encontra o Chipre (COTRIM, 2005). Os Fencios zeram diversas descobertas e invenes importantes, mas o interessante ressaltar que eles foram os primeiros povos mercantes que utilizavam as guas para o comrcio. Sua proximidade com o Mar Mediterrneo fazia com que eles conseguissem mais facilmente chegar a outras civilizaes, revelan- do, assim, mais uma utilidade em viver perto de recursos hdricos abundantes. Como j dito, contudo, as regies de prosperidade sempre tenderam ao conito, e no tardou muito para que isto acontecesse nessas reas citadas. No sculo V a.C., a civilizao persa comeou a expandir seu territrio e, aps derrotar vrios povos em vrias guerras, acabou por criar um imprio que ia desde o rio Indo at o Egito, incluindo a regio da Mesopotmia, da Palestina e do antigo povo Fencio (COTRIM, 2005). Figura 1: O Crescente Frtil
Fonte: CLIO FRANCE 7 As recorrentes inundaes dos rios no mundo antigo faziam com que suas margens fossem extremamente irrigadas e frteis (COTRIM, 2005). 30 UFRGSMUNDI Os conitos pelo controle das guas e sua consequente importncia no se restringiram apenas aos tempos antigos. Muito embora o progresso das sociedades e da tecnologia tenha permitido-as se desenvolver longe das margens dos rios, a gua ainda continuou a ser fator crucial de sobrevivncia, visto a facilidade que trazia ao transporte. As grandes navegaes dos sculos XV e XVI mostraram que os rios e mares eram aliados importantes no transporte de cargas e no descobrimento de novas reas, visto que os espaos em terra eram mais facilmente bloqueados por outros pases, enquanto os obstculos em gua eram menores. Alm disso, no nal do sculo XVIII, a primeira Revoluo Industrial 8 reforou a importncia da gua em todo o mundo. No apenas era necessria gua para que funcionassem as recm inventadas mquinas a vapor, como tambm a populao urbana passou a crescer cada vez mais, juntamente com a agricultura nas regies rurais 9 , tornando-se necessrio transportar gua rapidamente e em grandes quantidades. Era neste cenrio que a Inglaterra se tornava a hegemonia mundial 10 , no apenas pela sua grande produo, mas tambm por ter poder sobre o rio Tmisa, que faz parte inclusive de sua capital, e por ser uma ilha, tendo largo acesso aos mares. O domnio dos mares, assim como dos rios, de suma importncia para a sua navegao (ou seja, o transporte), e tambm para a prpria segurana do pas, que no possui vizinhos que possam atac-lo diretamente por terra. Da mesma forma, a gua passaria, pouco a pouco, a se tornar uma fonte importante de energia, o que viria a causar ainda mais conitos. A importncia do pleno acesso gua nos sculos XVIII, XIX e XX se mostrou to crucial que, inclusive, os pases comearam a lutar entre si por novos territrios, que os propiciariam no apenas uma populao consumidora maior, mas tambm recursos hdricos. Um exem- plo disto foram os constantes embates que existiram na regio do rio Nilo, no Egito, nos sculos XVIII e XIX, entre potncias europeias que desejavam ter o poder sobre o rio para seu prprio uso. Alm disso, tambm deve ser ressaltado o Canal de Suez 11 , construdo em 1859 numa parceria entre Frana e Egito, que por sua importncia to grande aos pases da Europa (visto a importncia de se acessar o Oceano ndico), teve a sua parcela egpcia comprada posteriormente pela Inglaterra. A Primeira e Segunda Guerras Mundiais 12 no foram exceo regra. Apesar do motivo principal dos embates no ter sido totalmente relacionado com as fontes de gua, elas se mostraram de extrema relevncia por sua utilizao no transporte e na logstica para o abastecimento de soldados. Alm disso, os pases em guerra buscavam alcanar rios e mares dentro dos territrios inimigos, a m de possuir uma nova fonte de abastecimento e obter um ponto estratgico em territrio inimigo. Este domnio tambm era crucial para que se bloqueassem estes rios e mares, fazendo com que os soldados inimigos no pudessem fazer uso deles. Um exemplo disto foi o fato de que, na Segunda Guerra Mundial, os rios poloneses 13 eram sempre considerados pontos estratgicos, tanto pelo Eixo quanto pelos Aliados, e eram normalmente os alvos a serem atingidos ou dominados para que assim o pas pudesse ser completamente invadido e tomado com sucesso (BEST et al, 1997). O mesmo padro se concretizou tambm na Guerra Fria 14 . Nas regies de embates, os rios e mares eram utilizados da mesma forma que foram nas duas grandes guerras passadas. Por exemplo, no incio da guerra travada na pennsula coreana, em 1950, o conito passou a ser mais acirrado no momento em que as tropas americanas tomaram o rio Yalu, que ca na fronteira entre a Coria do Norte e a China, fazendo com que os chineses adentrassem com grandes nmeros de soldados na guerra para restaurar o poder sobre o rio em questo (COTRIM, 2005). Outro exemplo que tambm poderia ser citado o do prprio Rio Reno, que corta boa parte da Europa, fazendo com que fosse um rio estratgico para os conitos que ocorreram em sua regio. 8 A primeira Revoluo Industrial se trata, basicamente, da criao da mquina a vapor na Inglaterra. Desta forma, a maioria dos produtos deixou de ser feita a mo (manufatura) para ser feita pelas mquinas a vapor (COTRIM, 2005). 9 Com a maior produo propiciada pelas mquinas nas grandes cidades, a populao urbana comeou a crescer, ao mesmo tempo em que a agricultura era expandia nas reas rurais para prover essa produo como um todo. Este fenmeno, a urbanizao, no apenas ocorreu durante a Primeira Revoluo Industrial, como tambm foi intensica- do durante as prximas revolues e continua sendo uma questo vital at hoje (COTRIM, 2005). 10 Basicamente, um pas uma hegemonia mundial quando este tem um papel de liderana perante os outros Estados soberanos, de forma a gerir o Sistema Internacional corriqueiramente (ARRIGHI, 1996). 11 Canal articial no Egito, que liga o Mar Mediterrneo ao Mar Vermelho (FREITAS, 2014a). 12 Foram as duas maiores Guerras dos tempos contemporneos, tendo atingido direta e indiretamente todos os pases do mundo. A primeira foi, basicamente, uma guerra entre a Trplice Entente (Reino Unido, Frana e Rssia) e a Trplice Aliana (Alemanha, Itlia e Imprio Austro-Hngaro), sendo a Entente a vencedora. J a Segunda Guerra Mundial foi principalmente travada entre os Aliados (Unio Sovitica, Estados Unidos, Reino Unido, Frana e China) e o Eixo (Ale- manha, Japo e Itlia), tendo os Aliados como vencedores (COTRIM, 2005). 13 Como os rios Warta, Vistula e Oder. 14 Foi a guerra entre os blocos capitalista (comandado pelos Estados Unidos) e socialista (comandado pela Unio So- vitica), caracterizada por combates em vrios pases do mundo todo, menos nos territrios das superpotncias (os EUA e a URSS) (COTRIM, 2005). 31 PNUMA H outro fato que tambm fez com que as guas fossem cruciais durante a Guerra Fria. Como os embates da poca ocorriam principalmente em Estados que haviam se tornado independentes h pouco tempo (como o Vietn), existia uma necessidade maior para que estes pases construssem uma infraes- trutura prpria mais rapidamente, para que os primeiros pilares do desenvolvimento do pas pudessem ser formados. Desta forma, a proximidade com a gua facilitaria tanto a criao de uma infraestrutura completa para a sociedade, como tambm o transporte de estruturas de outras partes do mundo que pudessem ser utilizadas nas futuras reconstrues necessrias no ps-guerra. Ainda assim, os conitos e a necessidade de utilizao da gua no pararam com o m das grandes guerras, principalmente entre Estados que possuem suas fronteiras delimitadas por rios ou mares. Alm disso, algumas regies do mundo, como o Oriente Mdio, tm sofrido constantemente com as secas em seu solo j rido. Sendo assim, no sculo atual, o problema das guas tem sido tratado com muita cautela. Os pases agora se preocupam inclusive com um problema antigo, mas que no era tido como importan- te anteriormente: a poluio. 2. APRESENTAO DO PROBLEMA 2.1. A UTILIZAO DA GUA A gua um recurso natural de extrema importncia para a sobrevivncia de todas as espcies. Necessita-se da gua para higiene pessoal, saneamento bsico, limpeza de habitaes e cidades, cons- truo de obras, irrigao de jardins, alm de ser essencial na produo de alimentos. Dentre os diversos consumidores da gua, as indstrias so responsveis por utilizar grandes quantidades desse recurso; a atividade agrcola, contudo, a maior consumidora, pois utiliza cerca de 70% da gua consumida no planeta Terra (MINISTRIO DA EDUCAO, 2005). Grco 1: Consumo de gua
Fonte: Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e Alimentao (2014). A superfcie terrestre composta de aproximadamente 70% de gua, sendo 97,5% encontrada na forma salgada. Da parcela restante de gua doce, 68,9% se encontram nas geleiras, calotas polares ou em regies montanhosas; 29% em guas subterrneas; 0,9% compem a umidade do solo e somente 0,3% constituem a poro supercial de gua doce presente em rios e lagos (MEC, 2005). Essas quantidades se encontram em contnua circulao atravs do fenmeno conhecido como ciclo hidrolgico 15 . Atravs desse processo, a gua dos oceanos, dos rios, dos lagos, da camada supercial dos solos e das plantas evapora por ao dos raios solares, passando a constituir as nuvens que, em condies adequadas, se condensaro e se precipitaro em forma de chuva, neve ou granizo (MEC, 2005). Parte dessa precipita- o vai penetrar o solo, abastecendo os aquferos 16 que vo alimentar rios e lagos; enquanto outra parte escorre pela superfcie at os cursos de gua, ou regressa atmosfera por evaporao, formando novas nuvens (MEC, 2005). 15 O ciclo hidrolgico, tambm chamado de ciclo da gua, o fenmeno referente circulao contnua da gua no planeta (FREITAS, 2014b). 16 Aquferos so formaes geolgicas que podem armazenar guas subterrneas (MARTINEZ, 2006). 32 UFRGSMUNDI Figura 2: O ciclo da gua
Fonte: Brasil Escola Conclui-se, ento, que o volume total de gua disponvel no planeta no aumenta nem diminui, sendo sempre o mesmo. Essa quantidade no distribuda de forma uniforme entre o globo, ou seja, existem regies com mais abundncia de gua do que outras. Alm da disponibilidade de gua do local, o consumo mdio de gua tambm varia de pas para pas, dependendo de seu nvel de desenvolvimento. Uma das utilidades mais importantes da gua seu uso para o consumo domstico, principal- mente na alimentao, na higiene, na limpeza de roupas, entre outros. Assim, uma pessoa necessita em mdia de 40 litros de gua por dia para suprir suas necessidades. Entretanto, no so todas as pessoas que possuem o acesso devido a esse recurso, como apontam dados da ONU; um europeu, por exemplo, con- some em mdia 150 litros de gua por dia, enquanto um indiano consome 25 litros por dia (MEC, 2005). Ou seja, h milhares de pessoas que sobrevivem com uma mdia menor de gua do que a necessria, ou que s possuem acesso gua no tratada adequadamente ou poluda, devido tambm m gesto dos recursos hdricos, o que causa inmeras doenas. Enquanto o uso domstico representa 8% do consumo de gua, as indstrias respondem por apro- ximadamente 22% do consumo total do recurso, que utilizado para produo de materiais, equipa- mentos, instalaes, sistemas de refrigerao e gerao, at a lavagem de vapor (MEC, 2013). Tambm nesse tipo de utilizao, nota-se que, dependendo da tecnologia usada, a gua resultante dos processos industriais pode carregar resduos txicos, como metais pesados e restos de materiais em decomposio, podendo causar srios danos populao, principalmente s pessoas que residem prximas aos rios e mares onde a gua contaminada lanada. A utilizao responsvel pelo maior consumo de gua, como j dito anteriormente, a agricultura. Esse alto consumo causado pela prtica da irrigao 17 , uma vez que, frequentemente, as chuvas no so sucientes para suprir a umidade necessria para a produo, restando a utilizao da gua como alter- nativa. A irrigao consome mais de dois teros da gua doce utilizada no planeta (MEC, 2005). Assim, a agricultura pode desperdiar muita gua, caso a irrigao seja feita de maneira indevida 18 . Alm disso, essa prtica tambm afeta a qualidade dos solos e dos recursos hdricos devido aos agrotxicos e fertili- zantes empregados na produo. Por m, entre outras diversas utilizaes, a gua tambm importante na navegao das hidrovias interiores 19 . Para permitir a navegao nessas hidrovias, entretanto, necessrio que o curso de gua tenha caudal 20 suciente para garantir a passagem de determinadas embarcaes. Em outras palavras, 17 Irrigao uma tcnica usada na agricultura com a nalidade de fornecer gua para as plantas em quantidade suci- ente e no momento adequado, assegurando assim a produtividade e sobrevivncia da plantao (REZENDE & JUNIOR, 2005). 18 A irrigao pode causar enormes desperdcios, pois grandes quantidades de gua no atingem as plantaes, sendo perdida pela inltrao do solo (MEC, 2005). 19 Denominao para rios, lagos ou lagoas navegveis (MEC, 2005). 20 Tambm conhecido como uxo ou vazo, que o volume de uido que atravessa uma dada rea por unidade de tempo (CASSIOLATO & ALVES, 2008). 33 PNUMA a navegao nas hidrovias interiores depende do regime uvial 21 que, por sua vez, denido pelas chu- vas e a capacidade de escoamento do solo da Bacia Hidrogrca 22 onde esto localizados os rios. Esse escoamento se d pela quantidade de cobertura vegetal presente na Bacia, ou seja, quanto menos co- bertura, maior ser o escoamento e maior ser a mudana nos nveis dos rios. Dessa forma, uma vez que a as hidrovias requerem a presena da cobertura vegetal para um melhor funcionamento, a preservao ambiental da Bacia Hidrogrca se torna fundamental (MEC, 2005). Percebe-se, ento, a extrema importncia da gua na manuteno da vida. Entretanto, a gua, muito embora seja um recurso renovvel, nita. Dados do Programa das Naes Unidas para o Desen- volvimento (PNUD) de 2006 armam que, em 2050, mais de 45% da populao mundial no ter acesso quantidade necessria de gua potvel para suprir necessidades bsicas. Assim, frente a uma futura escassez, a gua, que j foi motivo de muitas guerras no passado, novamente pode ser a responsvel por conitos futuros causados por disputas pelo controle dos recursos hdricos. 2.2. OS RECURSOS HDRICOS TRANSFRONTEIRIOS E SUA GESTO Segundo o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, ou UNDP na sigla em ingls), a segurana humana se baseia no bem-estar de cada indivduo, assim como no seu acesso aos Di- reitos Humanos Universais 23 . O PNUD salienta que, para se ter acesso segurana humana, se fazem ne- cessrias atingir sete esferas de segurana, sendo elas: 1) segurana econmica; 2) segurana alimentar; 3) segurana de sade; 4) segurana ambiental; 5) segurana pessoal; 6) segurana comunitria; e 7) segurana poltica (PROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2006). Pode-se constatar, portanto, que a segurana no est ligada apenas a ataques militares, guerras, confrontos armados: a segurana de cada pessoa se relaciona com uma srie de outros fatores essenciais vida. Duas dessas esferas de segurana esto diretamente relacionadas aos recursos hdricos: segurana alimentar e segurana ambiental. Dessa forma, o acesso gua, levando-se em considerao seus mais variados usos cotidianos, fator fundamental para a segurana e bem-estar de cada pessoa. Pela histria, os seres humanos tm se assentado no entorno de lagos, rios, mares; e, diferente- mente das pessoas, as guas atravessam fronteiras sem precisar de passaporte, ignorando delimitaes polticas. De acordo com a ONU, cerca de 40% da populao mundial habita as margens de rios e lagos multinacionais, e 90% vive em pases que detm bacias hidrogrcas compartilhadas por dois ou mais pases (UN-WATER, 2008). Existem, no mundo, 263 bacias hidrogrcas transfronteirias 24 , o que corres- ponde a mais da metade das terras emersas do planeta e a 60% do uxo de gua doce global (UN-WATER, 2008). Com base nesses dados, possvel compreender que a gua um forte elo entre diferentes Es- tados, em especial aqueles que, por motivos bvios, se localizam numa mesma regio. Dos 196 Estados atualmente reconhecidos no mundo, 145 compartilham bacias hidrogrcas, e 30 se encontram total- mente dependentes dessas (UN-WATER, 2008). Podemos armar que os pases que compartilham um mesmo recurso hdrico tornam-se, em grande medida, interdependentes entre si. A gesto desses recur- sos transfronteirios se faz, portanto, de grande relevncia nas relaes internacionais, uma vez que so fatores de ntima relao entre Estados ribeirinhos. Eles so muitas vezes instrumentos de poder regional, podendo ocasionar eventuais tenses entre as partes. Para o melhor entendimento de como se do as relaes internacionais referentes aos recursos hdricos transfronteirios, importante compreender a dimenso espacial das partes, ou seja, a posio geogrca dos Estados ribeirinhos. A posio de cada Estado na bacia compartilhada o que lhe concede possveis vantagens ou desvantagens em relao aos demais Estados. Observe a gura a seguir: 21 Regime uvial se refere ao comportamento do rio quanto variao de seus nveis (FREITAS, 2014b). 22 A bacia hidrogrca usualmente denida como a rea na qual ocorre a captao de gua (drenagem) para um rio principal e seus auentes, devido s suas caractersticas geogrcas e topogrcas (FARIA, 2006) 23 Os Direitos Humanos Universais foram estabelecidos na Declarao Universal dos Direitos Humanos, pela ONU em 1948. o documento mais aceito internacionalmente sobre o assunto, tendo sido assinado pela quase totalidade dos pases do mundo (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1948). 24 O Brasil, por exemplo, tem cerca de 60% de seu territrio banhado por bacias hidrogrcas transfronteirias e uma srie de pases tm a quase totalidade de sua gua consumida proveniente de fora de seus territrios, como Turcome- nisto (98%), Egito (97%), Hungria (95%), Mauritnia (95%), Holanda (89%), entre outros (QUEIROZ, 2012; SELBORNE, 2001). 34 UFRGSMUNDI Figura 3: A geopoltica das guas
Fonte: QUEIROZ (2012) Dado um determinado ponto de referncia (A), tudo o que se encontra acima, em direo nas- cente (B) do rio, denomina-se montante; da mesma forma, todo e qualquer ponto que estiver abaixo, em direo foz (C), do ponto de referncia (A), denomina-se jusante. A nascente do rio est montante do ponto de referncia, e a foz jusante. Assim, a lgica nos faz armar que qualquer impacto ocasionado na bacia hidrogrca montante causar necessariamente algum tipo de resultado na regio jusante o contrrio tambm ocorre, mas menos comum. Figura 4: Rio Paranhana
Elaborao: Eduardo Dondonis Podemos pensar em alguns exemplos hipotticos: o rio Paranhana um rio do estado do Rio Grande do Sul, localizado na microrregio do Vale do Paranhana, passando pelos municpios de Igrejinha, Parob, Rolante, Riozinho, Taquara e Trs Coroas. Entre as cidades de Trs Coroas e Igrejinha, h uma distncia de cerca de 13 quilmetros, estando a primeira montante e a segunda jusante. Pois bem, supondo que, por algum motivo, a populao de Trs Coroas triplique de tamanho, o resultado seria trs vezes mais consumo de gua em Trs Coroas e trs vezes maior volume de esgoto despejado no rio Paranhana; consequentemente, poderia haver menor volume de gua chegando a Igrejinha, assim como seria trs vezes maior a poluio por dejetos domsticos a poluir o leito do rio na cidade. Da mesma forma, caso uma nova indstria instalada na cidade de Trs Coroas passasse a despejar metais pesados e altamente txicos em forma de lixo industrial no leito do rio, Igrejinha teria srios problemas quanto qualidade de sua gua. Caso Trs Coroas construsse uma barragem para uma nova usina de gerao de energia hidreltrica, o regime de gua a chegar a Igrejinha seria seriamente diminudo; por outro lado, se fosse Igrejinha a construir essa barragem, haveria grande possibilidade de inundao em Trs Coroas. Tanto efeitos sobre a qualidade, quanto sobre a quantidade da gua de recursos hdricos transfronteiros podem ser causados por sua gesto unilateral 25 . H muitos exemplos de causas e consequncias no manejo das bacias hidrogrcas que banham diferentes populaes. No exemplo acima, estamos fazendo hipteses em relao a cidades; no entan- to, quando nos referimos a pases, os problemas tendem a ser mais complicados. Pases tm interesses 25 Referente a somente uma das partes, sem a participao da(s) outra(s). 35 PNUMA distintos, buscam sua prpria sobrevivncia e segurana, tendo como prioridade seu prprio benefcio. Alm de no haver uma autoridade supranacional, ou seja, superior aos pases, que possa coordenar as relaes entre os Estados ribeirinhos, as legislaes de cada pas tambm tendem a ser distintas, por di- versas razes histricas e culturais. O fato que frequentemente pode haver situaes de tenso entre diferentes Estados de uma mesma regio em funo do manejo unilateral de um recurso hdrico com- partilhado. A gua vital para a sobrevivncia humana (tanto pelo prprio consumo, quanto para uma innidade de outras atividades), o que a torna um importante instrumento de poder regional. corriqueiro que pases de uma mesma regio tenham realidades polticas, econmicas e sociais distintas. A assimetria entre os Estados no se d somente entre Estados distantes, mas tambm em uma mesma regio. A posse de recursos naturais entre eles, os recursos hdricos fator de poder. Nor- malmente, os pases que se encontram montante de uma bacia tendem a ter maior poder sobre ela, mesmo que uma bacia hidrogrca seja compartilhada. Alm disso, muitas vezes os pases que so mais dependentes desses recursos se encontram jusante, se tornando assim altamente vulnerveis s aes do pas montante. Neste caso, o pas montante tem um grande poder relativo sobre o pas jusante. Entre dois ou mais pases que compartilham um mesmo recurso hdrico, h duas possibilidades: tenso ou cooperao. Em geral, os desentendimentos referentes a recursos hdricos transfronteirios costuma dar-se entre Estados com um passado j de inimizade, de desavena. Atualmente, dicilmente a gesto de uma bacia hidrogrca transfronteiria motivo de guerra; no entanto, corriqueiramente agravante de conito iniciado por outra razo. Por outro lado, a cooperao 26 tende a demorar a se consolidar, por no haver necessariamente a alocao totalmente satisfatria dos recursos. No entanto, com base nos casos j ocorridos, pode-se armar que, quando a cooperao entre Estados ribeirinhos alcanada, ela tende a durar (QUEIROZ, 2012). Neste contexto, pode surgir a seguinte pergunta: por que um Estado montante, que teorica- mente detm maior poder sobre determinado recurso hdrico, aceitaria cooperar com outro Estado jusante, e no somente usar a bacia a seu bel-prazer? Pois bem, os acadmicos Stephen McCafrey (1993) e Philippe Le Prestre (2000) armam que a disposio de um pas montante cooperar , de fato, menor; contudo, podem-se elencar algumas situaes nas quais a cooperao tende a ser escolhida por esses pases: 1. Os Estados ribeirinhos tm um histrico de amizade e/ou os benefcios da cooperao so evidentes; 2. O Estado jusante tem recursos militares superiores aos demais ou um dos Estados mais poderoso e pretende resolver controvrsias pacicamente; 3. O Estado montante depende do Estado jusante para navegao (o Estado jusante tem posse da foz do recurso hdrico em questo, que liga a bacia ao mar ou a um grande lago 27 ); 4. Os pases ribeirinhos se encontram num processo de cooperao e interesse mtuo mui- to superior manuteno de uma disputa envolvendo bacias hidrogrcas transfronteirias (exemplo: Unio Europeia). O fracasso de uma tentativa de cooperao pode causar verdadeiras catstrofes sociais e ambien- tais, como ocorrido no Lago Chade e no Mar de Aral. O Lago Chade tem sido historicamente essencial para oito pases: Arglia, Camares, Chade, Lbia, Nger, Nigria, Repblica Centro-Africana e Sudo; to- davia, devido a secas, escassez de chuva e m gesto dos Estados ribeirinhos, atualmente o lago conta com apenas 10% do volume de gua que tinha h 50 anos. Projetos de irrigao mal concebidos, a cons- truo de barragens, a pesca desenfreada e a frgil e insuciente cooperao entre as partes so alguns dos motivos que contriburam fortemente para a diminuio e quase extino do Lago Chade. Um caso ainda pior foi o desastre ambiental ocorrido com o Mar de Aral, compartilhado por Afeganisto, China, Cazaquisto, Paquisto, Quirguisto, Tajiquisto, Turcomenisto e Uzbequisto. Tal mar, que outrora j fora o quarto maior lago do planeta, hoje detm menos de 10% de seu volume original e est em avan- ado processo de deserticao. Principal razo para isso foi que, h cerca de 50 anos, a ento Unio Sovitica 28 determinou que dois importantes rios (Syr Darya e Amu Darya), que tinham foz no Mar de Aral, 26 A cooperao no necessariamente benecia as partes em igual medida. Mesmo que cooperar no lhe traga um benefcio to grande, possvel que determinada parte concorde em cooperar apenas em funo de que o resultado de no cooperar pode ser muito mais desvantajoso do que cooperar. 27 Neste caso, o pas montante altamente dependente do comrcio, por exemplo. Por ser muito mais barato, a maior parte do transporte de mercadorias no planeta se d pelos oceanos, sendo os rios importantes rotas de ligao entre o mar e o interior dos continentes (CAUBET, 2006). 28 A Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS), ou simplesmente Unio Sovitica, foi um Estado que existiu entre 1922 e 1991 e que abrangia um imenso territrio entre a Europa e a sia. Foi um pas de extrema importncia para as relaes internacionais do sculo XX, tanto por seu ento inovador regime poltico-econmico (regime socialista), quanto por ter participado das mais importantes guerras do sculo: a 1 e a 2 Guerras Mundiais e a Guerra Fria, na qual confrontou os EUA (HOBSBAWM, 1995).
36 UFRGSMUNDI seriam desviados para irrigao de alimentos e algodo, o ouro branco. Na dcada de 1990, o Mar de Aral recebia menos de um dcimo de seu caudal anterior e passou a transformar-se em pequenos lagos separados, de alta concentrao salina. A morte do Mar de Aral considerada uma das maiores catstro- fes ambientais de todos os tempos (PNUD, 2006). 2.3. ESTUDOS DE CASO 2.3.1. BACIA DO CONGO Localizada no corao da frica Central, a Bacia do Congo formada por treze pases (Angola, Bu- rundi, Camares, Congo, Gabo, Malawi, Repblica Centro-Africana, Repblica Democrtica do Congo, Ruanda, Sudo, Tanznia, Uganda e Zmbia) e um dos ecossistemas mais ricos do mundo em recursos hdricos e biodiversidade (PNUD, 2006). Com uma rea de extenso de 3,69 milhes de quilmetros quadrados, a maior bacia da frica e a segunda maior do mundo, atrs somente da Bacia Amaznica (OLIVEIRA, 2010). Nela est presente o segundo maior rio da frica e o quinto maior rio do mundo, o Rio Congo, que tem extenso de 4.700 quilmetros e tem o maior poder energtico do continente africano (WWF, 2014). Figura 5: A Bacia do Congo
Fonte: US Forest Service International Programs (2000). Com a vastido de recursos naturais presentes na Bacia do Congo, estima-se que 40 milhes de pessoas dependam dela para sobreviver, o que intensica os conitos j constantes pelo controle e acesso a essas riquezas (OLIVEIRA, 2010). O interesse na explorao dos recursos hdricos do rio Congo se tornou vital a partir do nal do sculo XIX e incio do sculo XX, acarretando conitos na bacia que envolvem grupos guerrilheiros. Estes esto em contnuo deslocamento a m de ganhar controle tem- porrio sobre determinados espaos. Tais fatos mostraram a necessidade de cooperao entre os pases da bacia, que j vem se materializando em acordos internacionais, como a criao da Unio Aduaneira e Econmica da frica Central (UDEAC) (OLIVEIRA, 2010). A partir disso, ento, foram sendo criados novos mecanismos e medidas que preveem as condies de manuteno das hidrovias navegveis, a coordenao de obras e dos transportes de superfcie, a cria- o do escritrio comum aduaneiro e a assistncia mtua navegao no Rio Congo e Oubangui (OLI- 37 PNUMA VEIRA, 2010). Ainda com o intuito de coordenar a utilizao da Bacia, foi elaborado um cdigo comum de navegao adotado entre os pases em 1999. Para aplicao do cdigo e para o gerenciamento dos recur- sos hdricos, Camares, a Repblica Centro-Africana, a Repblica do Congo e a Repblica Democrtica do Congo assinaram um acordo que criava a Comisso Internacional da Bacia do Congo-Oubangui-Shangha (CICOS) (OLIVEIRA, 2010). Inicialmente, a CICOS coordenava as atividades de instituies nacionais que tratassem da navegao interior de interesse internacional; entretanto, ao longo dos anos, a Comisso se tornou responsvel pelo gerenciamento integrado das guas do Congo (OLIVEIRA, 2010). Com inmeras disputas internas e externas, evidencia-se a necessidade de cooperao entre os pases inseridos na bacia, assim como uma coordenao supranacional que ir contribuir para a melhor utilizao dos recursos hdricos. Alm disso, existem populaes carentes que dependem dos recursos presentes no rio Congo para sua sobrevivncia, tornando-se ainda mais necessria a reduo dos riscos decorrentes das tenses pelo controle da Bacia do Congo (OLIVEIRA, 2010). 2.3.2. A BACIA DO PRATA Localizada na Amrica do Sul, a Bacia do Prata se estende pelo sul do Brasil, sudeste da Bolvia, Uruguai, Paraguai e nordeste da Argentina 29 , totalizando uma rea de 3.107.000 km, o que a caracteriza como sendo a segunda maior bacia do continente e a quarta maior do mundo (QUEIROZ, 2012). A Bacia conta com os Rios Bermejo, Iguau, Panam, Pilcomayo, Tiet, Prata, Paraguai e Uruguai, sendo os trs ltimos seus principais, alm de compreender tambm um dos maiores aquferos do mundo, o Aqufero Guarani 30 (SELL, 2005). Figura 6: Bacia do Prata
A Bacia do Prata possui uma grande importncia, que provm da sua posio estratgica e de sua abundncia em recursos naturais, o que acarretou em grandes tenses histricas entre os pases ribei- rinhos. Inicialmente, a Bacia serve como uma ligao, atravs do Rio do Prata e seus auentes, entre o litoral sul do Atlntico e o interior do continente, sendo uma via fundamental de acesso s riquezas mi- nerais e caminho para regies mais distantes. Dada esta relevncia, a Bacia do Prata serviu como palco de disputa no processo de construo dos Estados no sculo XIX, culminando na Guerra do Paraguai 31 , e hoje caracteriza-se pela seu potencial hidrogrco e hidroeltrico fundamentais para os pases presentes na regio (QUEIROZ, 2012). Dessa forma, a histria desses pases foi marcada por perodos de conitos, desconana e cooperao quando se tratava sobre a gesto dos recursos hdricos da Bacia, o que resul- tou em inmeros tratados. 29 A maior parte da Bacia se localiza no Brasil e na Argentina (MELOS, 2007). 30 Estima-se que as reservas do Aqufero Guarani sejam equivalentes a 40 mil quilmetros de gua, cobrindo uma rea aproximadamente de 1,2 milho quilmetros quadrados (SELL, 2005). 31 A Guerra do Paraguai ocorreu entre 1864 e 1870 e o maior confronto armado j ocorrido nas Amricas. A Trplice Aliana - formada por Brasil, Argentina e Uruguai - derrotou o Paraguai aps cinco anos de conito, tornando-o um dos pases mais atrasados da regio at hoje (DORATIOTO, 2002). 38 UFRGSMUNDI A regularizao da utilizao das guas da Bacia do Prata comeou na dcada de 1960, tendo como marco jurdico a criao do Comit Intergovernamental Coordenador dos Pases da Bacia do Prata (CIC), que tem como objetivo realizar estudos sobre navegao, hidroeletricidade, usos domstico, sa- nitrio, irrigao, controle de inundaes e eroso, ora e fauna (SELL, 2005). Reconhecido como rgo permanente da Bacia encarregado de promover e coordenar aes multilaterais para o desenvolvimento da regio, o CIC elaborou um tratado que estabelecia uma estrutura institucional para o gerenciamento da Bacia, o Tratado da Bacia do Prata. Assinado em 1969 pelos cinco pases envolvidos, o Tratado prev a conjugao de esforos para promover o desenvolvimento harmnico e a integrao fsica da Bacia e de suas reas de inuncia (SELL, 2005). Ainda em 1971, os pases da Bacia adotaram a Declarao de Assun- o sobre Utilizao de Rios Internacionais, a qual trata sobre o tratamento diferenciado para rios cont- nuos e sucessivos, prevendo direitos e deveres para os pases ribeirinhos para cada situao (SELL, 2005). At a dcada de 1980, muitos acordos bilaterais e trilaterais foram negociados sobre a utilizao da bacia com a nalidade de resolverem disputas e tenses entre os pases da regio. Em 1973, por exemplo, Brasil e Paraguai assinaram o Tratado de Itaipu, o qual autoriza legalmente o aproveitamento hidreltrico do Rio Paran pelo Brasil e Paraguai, atravs da Itaipu Binacional, empresa responsvel por construir uma barragem para a produo de energia (SELL, 2005). Entretanto, no mesmo ano, Argentina e Paraguai as- sinaram o Tratado de Yacyret, muito semelhante ao Tratado de Itaipu, que previa a construo de uma barragem, chamada Corpus Christi na proximidade do Rio Paran, o que resultou em tenses entre os trs pases. Essas hostilidades somente foram solucionadas pelo Acordo Tripartite de Cooperao Tcnica e Operacional entre Itaipu e Corpus, assinado por Argentina, Brasil e Paraguai em 1979 (SELL, 2005). A Bacia do Prata, por m, considerada uma das maiores bacias hidrogrcas transfronteirias do mundo. Assim, na medida em que as economias dos Estados ribeirinhos se desenvolveram em torno da Bacia, cresceram os conitos entre os pases na regio; entretanto, com a cooperao regional entre esses pases, se tornou possvel normatizar o uso das guas dessa Bacia, diminuindo a tenso entre os cinco pases nos ltimos anos. 2.3.3. BACIA DO MEKONG Figura 7: Bacia do Mekong
Fonte: PNUD 39 PNUMA A Bacia do Mekong se estende sobre Camboja, China, Mianmar, Repblica Democrtica Popular do Laos, Tailndia e Vietn e forma um dos principais sistemas hdricos do mundo (PNUD, 2006). No cen- tro da bacia, est localizado o rio Mekong, o dcimo maior rio do mundo em volume e o mais importante do sudeste asitico (TATEMOTO, 2012). A nascente desse rio e quase metade de sua extenso esto loca- lizados na provncia de Yunnan, na China, passando a uir no Camboja, formando seu delta 32 no Vietn (TATEMOTO, 2012). O Mekong possui uma extrema importncia social e econmica, uma vez que a maioria da popu- lao, principalmente nas zonas mais pobres, dependem dos recursos oriundos no rio para sobreviver. A maioria da populao do Camboja, Laos, Tailndia e Vietn, que residem na chamada Bacia Inferior de Mekong, dependem do rio como fonte de gua potvel, alimentao, energia hidroeltrica e comrcio. O Lago Tonle Sap, no Camboja, alimentado pelo Mekong e um dos maiores bancos de pesca de gua doce do mundo, o que faz com que a Bacia oferea at 80% da protena animal para as populaes do Camboja que vivem ao longo do rio Mekong (TATEMOTO, 2012; PNUD, 2006). J no Vietn, o Delta do Mekong possibilita mais da metade da produo de arroz do pas e um tero do seu Produto Interno Bruto (PIB) 33 (TATEMOTO, 2012). A grande dependncia e consequente vulnerabilidade dos Estados ribeirinhos fez com que nos ltimos anos surgissem mecanismos que promovessem o desenvolvimento regional para uma melhor gesto da bacia, como o Comit de Mekong, em 1957 (TATEMOTO, 2012). No mesmo ano, os pases da Bacia Inferior ainda adotaram o Estatuto para o Comit de Coordenao de Pesquisas do Baixo Rio Me- kong, contando com comits locais e um corpo burocrtico central (TATEMOTO, 2012). A partir disso, foram construdas vrias represas, estruturas de irrigao e programas de dados e pesquisas, tudo visando melhor gesto dos recursos hdricos da bacia. Em 1975, foi raticado pelo Comit a Declarao Conjunta de Princpios para Utilizao das guas da Bacia do Baixo Mekong, a qual determinava que qualquer acordo para a construo de grandes pro- jetos deveria contar com o consenso de todos os membros, fortalecendo a cooperao na bacia (TATE- MOTO, 2012). Entretanto, o desenvolvimento da Bacia do Mekong foi desacelerando, o que fez com que o Comit perdesse sua importncia na regio frente s hostilidades entre os pases inseridos na Bacia e tambm devido mudana de poltica externa de alguns desses 34 . Entretanto, em uma tentativa de constituir um novo patamar de cooperao entre os pases, em 1995, Tailndia, Laos, Camboja e Vietn assinaram o Acordo de Cooperao para o Desenvolvimento Sustentvel da Bacia do Rio Mekong, o qual transformou o Comit de Mekong e, seu sucessor, o Comit Provisrio de Mekong, na Comisso do Rio Mekong (MRA) (PNUD, 2006). A MRA passou a ser a agncia intergovernamental para os quatro pases da Bacia Inferior. Alm desses pases, Mianmar foi convidado a participar da Comisso; entretanto, no aceitou o acordo, o que pode ser decorrente da sua pouca pretenso em cooperar, alm de o Mekong representar pouca impor- tncia para seu pas. Enquanto isso, a China, que tambm no aderiu, tem se mostrado pouco disposta a discutir projetos de uso do rio, principalmente sobre seus projetos de represas, o que prejudica a susten- tabilidade da Comisso, uma vez que a China um importante ator na regio (TATEMOTO, 2012). J quanto estrutura da Comisso, foram constitudos trs departamentos permanentes: o Se- cretariado, Comit Tcnico Conjunto e o Conselho Ministerial (PNUD, 2006). Foram institudos ainda comits nacionais do Mekong em cada Estado membro, que so responsveis por fazer a conexo entre a Comisso e as polticas nacionais, administrar os projetos de cada pas, alm de tambm estabelecer uma ligao desses com o Secretariado (TATEMOTO, 2012). A sociedade civil tambm convidada a participar das reunies dos comits e dos conselhos. O princpio mais reforado no Acordo o do uso equitativo e razovel das guas entre os Estados membros, atingido atravs de noticaes e consultas prvias entre os Estados sobre o uso das guas. Tal princpio garante que todos os pases tenham igual direito sobre o uso da gua (TATEMOTO, 2012). Alm disso, o Acordo tambm trata da proteo do meio ambiente e do equilibro ecolgico; ou seja, ele prev a utilizao e a gesto dos recursos hdricos de maneira sustentvel. Com a tamanha importncia da Bacia do Mekong para o desenvolvimento dos pases ribeirinhos, 32 Um delta um terreno, mais ou menos triangular, que ca na embocadura de um rio, formando canais at o mar (VOCBULARIO DE RIOS, 2001). 33 O Produto Interno Bruto (PIB) representa a soma daquilo que foi produzido em um pas durante um determinado perodo de tempo (MINISTRIO DA FAZENDA, 2013). 34 Com a ascenso do regime do Khmer Vermelho no Camboja, o pas se retirou do comit, o que fez com que no perodo de 1978-1991, durante a ausncia do pas, funcionasse o Comit Provisrio de Mekong. Aps esse perodo, o Camboja tentou retornar ao comit; entretanto, a Tailndia mostrou forte oposio tentativa. A Tailndia condicio- nava o retorno do Camboja entrada da China e do Mianmar no comit, pases que com suas utilizaes da gua da Bacia prejudicam diretamente a Tailndia (TATEMOTO, 2012). 40 UFRGSMUNDI como tambm da sobrevivncia de suas populaes que dependem principalmente do Rio Mekong para sobreviver, torna-se essencial a coordenao e a normatizao do uso dos recursos hdricos na regio, com a nalidade de diminuir as tenses. Entretanto, apesar de todas as medidas j tomadas, a indisponibi- lidade da China em negociar representa um grande obstculo para avanar na cooperao. Uma vez que a nascente do Rio Mekong se encontra em territrio chins, o pas adquire vantagens quanto ao uso do rio, tornando-se assim um poderoso ator na regio. Alm disso, a China tem um forte poder de inuncia sobre os pases da regio, principalmente Tailndia, Vietn e Laos, problematizando ainda mais a coope- rao entre os pases da regio (TATEMOTO, 2012). 3. AES INTERNACIONAIS PRVIAS Existem atualmente trs tratados internacionais multilaterais referentes gesto de guas trans- fronteirias: a Declarao de Helsinque (1996), a Conveno sobre Cursos de guas das Naes Unidas (1997) e a Declarao de Berlim (2004). 3.1. DECLARAO DE HELSINQUE (1966) Durante a Primeira Revoluo Industrial 35 , que representou a transio para novos processos de manufatura com a revoluo das mquinas, juntamente com o inicio do uso do carvo como combust- vel, os pases europeus zeram tratados regionais de uso livre das guas para questes de navegao 36 . Entretanto, aps a Segunda Guerra Mundial - a qual implicou o uso massivo dos recursos dos pases en- volvidos, como o energtico e o territorial -, o uso das guas e as normas que o regulam caram restritos ao julgamento dos pases ribeirinhos, isto , daqueles que possuem acesso das guas atravs de suas fronteiras (SALMAN, 2007a). Vemos tal congurao prevalecer at hoje no direito internacional de guas compartilhadas. A Declarao de Helsinque (1996) foi assinada em Helsinque, Finlndia, e aplica suas normas para bacias hidrogrcas, como tambm ao uso de guas subterrneas, inovando em tais quesitos em relao aos tratados at ento vigentes. O documento estabeleceu como princpio bsico a utilizao razovel e equitativa de guas de bacias internacionais entre Estados ribeirinhos. Para tal efeito, as normas espe- cicam uma srie de fatores que determinam qual a medida correspondente de uso das guas para cada Estado, fazendo referncia ao seu grau de dependncia e a sua necessidade vital da bacia, conforme reconhecidos pela Comisso (SALMAN, 2007b). Alguns exemplos so: o clima que afeta a bacia, as ne- cessidades econmicas e sociais de cada Estado ribeirinho da bacia, a disponibilidade de outros recursos, etc. (INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, 1966). A declarao tambm considerada o primeiro instrumento jurdico internacional que abordou quesitos de ordem navegacional e no navegacional. Dessa maneira, as regras em sua composio in- cluem procedimentos para preveno de conitos, noticao de outros Estados ribeirinhos de constru- es ou alteraes que alterem o regime da bacia, entre outros. Assim, o documento padroniza todos os usos de bacias hidrogrcas internacionais, cobrindo uma grande gama de questes referentes ao tema (SALMAN, 2007b). A Declarao de Helsinque no possui observncia Pacta Sunt Servanda 37 , no tendo obrigato- riedade para os que o assinaram. Porm, at a adoo da Conveno da ONU para Cursos de guas, 30 anos depois, suas normas permaneceram o nico conjunto de regras que regulam a proteo dos cursos de guas internacionais, sendo invariavelmente adotadas por outros tratados que utilizam o Pacta Sunt Servanda (SALMAN, 2007b). 35 A primeira Revoluo Industrial, que data de meados de 1780, signicou, em termos gerais, a capacidade do homem de passar a promover uma rpida, constante e ilimitada multiplicao de bens, servios e populao (HOBSBAWN, 1962). 36 Questes navegveis empreendem o uso hidrovirio, ou seja, para transporte de mercadorias ou pessoas. J as questes no navegveis se aplicam ao uso das guas para produo agrcola, construo de hidreltricas, extrao mineral, etc. (SALMAN, 2007b). 37 Pacta Sunt Servanda: todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa f (MAZZUOLI, 2012). 41 PNUMA 3.2. CONVENO DAS NAES UNIDAS SOBRE A UTILIZAO DE RIOS IN- TERNACIONAIS PARA FINS DIFERENTES DE NAVEGAO (1997) Em 1997, mais de cem pases se uniram na sede da ONU, em Nova York, para adotar a Conveno das Naes Unidas sobre a Utilizao de Rios Internacionais para Fins Diferentes de Navegao (ORGA- NIZAO DAS NAES UNIDAS, 1997; WWF, 2009). A convocao dos pases da Assembleia Geral das Naes Unidas 38 representou um marco, em relao ao comprometimento das naes, para o arcabouo de tratados sobre o uso das guas internacionais. Teve como premissa a conscincia da importncia dos cursos de guas internacionais, restringindo-se a abordagem de uso no navegvel dos mesmos. Apoia- da no artigo 13 da Carta das Naes Unidas 39 , a Assembleia possui a liberdade de iniciar estudos e fazer recomendaes a m de encorajar o desenvolvimento progressivo do direito internacional (ONU, 1997). Seu escopo 40 feito de medidas para proteo, preservao e gesto relacionadas ao uso das bacias hidrogrcas. O uso das guas internacionais para navegao no est presente neste desgnio, somente se as outras utilidades no navegveis citadas forem afetadas pela navegabilidade (ONU, 1997). Apesar da existncia de normas de obrigao geral para cooperao (Art. 8, ONU, 1997), depois de dez anos da adoo da Conveno, somente 15 pases raticaram seu contedo. Nenhum pas ame- ricano ou asitico est entre eles (SALMAN, 2007a). Os pases que assinaram, mas no raticaram a Con- veno (ou seja, no conrmaram sua obrigao de cumprir com a Conveno), alegam no t-lo feito devido a clausula que inclui no causar danos nenhum curso de guas. Tal armao ca clara quando reconhecemos a China dentre os pases no raticadores. 3.3. DECLARAO DE BERLIM (2004) Com o passar do tempo, algumas das questes abordadas na Declarao de Helsinque foram sendo especicadas. Desse modo, a ILA (2004) passou a complementar algumas regras que estavam, de certo modo, generalizadas, e que abriam espao para conitos (SALMAN, 2007a). A necessidade da complementao baseia-se nas signicativas alteraes no uso das guas, demonstradas pelo declnio na gua disponvel per capita em grande parte do mundo, o qual representa por si s um srio desao ao direito internacional (ILA, 2004). Ao longo dos 30 anos aps a Declarao de Helsinque (1966-1996), a formao de regras com- plementares tambm foi foco do Comit de Recursos Hdricos, levando em considerao a formao de importantes rgos internacionais de direito ambiental e a adoo da Assembleia Geral das Naes Unidas da Conveno da ONU para Cursos de guas (ILA, 2004). Tiveram m a construo e complementaridade das normas sobre as guas internacionais a tem- po para a conferncia bienal a realizar-se em Berlim, na Alemanha, em 2004. A Declarao de Berlim foi fundamentada no conjunto de regras existentes, as quais reetiam o rumo que o direito global sobre a gua estava se dirigindo. As guas subterrneas tinham sido negligenciadas pelas normas nacionais e internacionais at ento (DELLAPENA & GUPTA, 2013). Mesmo que muitos pases no tenham raticado a Conveno, ela j demonstrou inuncia em vrios outros acordos feitos (SALMAN, 2007a). Alm dos acordos citados, os quais so multilaterais 41 , h os bilaterais e regionais, que podem ser importantes precedentes para acordos de maior escala. A Comisso do Rio Mekong um exemplo disso. Vale ressaltar ainda que a soberania dos Estados continua sendo fator determinante na governana da gua. A m de se adequar a uma realidade regional, a governana hdrica dever ter suas regras redenidas, visto a diversidade dos atores Estados participantes (KARKKAINEN, 2005). 3.4. OUTROS TRATADOS A Conveno de Estocolmo 42 (1972), assinada em Estocolmo, Sucia, regularizou no seu stimo princpio que Os Estados devem tomar as medidas possveis para impedir a poluio dos mares (...) 38 A Assembleia Geral da ONU representa a norma de igualdade entre os Estados soberanos, devido ao princpio de um voto para cada Estado em processos decisrios. A Assembleia tambm a grande arena da ONU onde as mais diversas questes so discutidas (HERZ & HOFFMAN, 2004). 39 a resoluo que forma e estabelece a entidade da ONU, construda logo aps a Segunda Guerra Mundial, no ano de 1945 (CENTRO DE INFORMAES DAS NAES UNIDAS PARA O BRASIL, 2001). 40 Escopo: alvo; m; objetivo (LUFT, 2001). 41 Tratado assinado por vrios pases, diferente do bilateral (por dois pases) (AQUINO, 2014). 42 A Conveno de Estocolmo, em 1972, adotou uma declarao que contem uma srie de princpios comuns para inspirar e guiar os povos do mundo na preservao e aprimoramento do ambiente humano (PROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE, 1972). 42 UFRGSMUNDI (PNUMA, 1972). Tambm dos princpios da Conveno, em conformidade com a Carta das Naes Uni- das e os princpios do Direito Internacional, que (...) os Estados tero direito soberano de explorar os seus prprios recursos de acordo com a poltica de ambiente, e a responsabilidade de assegurar que as atividades exerci- das nos limites da sua jurisdio ou sob seu controle no prejudiquem o ambiente dos outros Estados ou as regies situadas fora dos limites de qualquer jurisdio nacional (Princpio 21, Declarao de Estocolmo, PNUMA, 1972). Ou seja, a Conveno estabelecia que os Estados so soberanos, desde que respeitando seus vizi- nhos e, principalmente, os recursos naturais. Outro evento que deve ser levado em conta a Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida tambm por Eco 92 ou Rio 92, assinada no Rio de Janeiro, Brasil (PROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE, 1992a). Esta confern- cia consagrou o conceito de desenvolvimento sustentvel, o qual signica o desenvolvimento social e econmico, porm sem que tal desenvolvimento gere prejuzos conservao e preservao do meio ambiente. O principal documento produzido na conferncia foi a Agenda 21 43 , na qual o captulo 18 re- presentou um avano nas negociaes at ento tidas, pelo fato de que colocou em voga que os recursos hdricos transfronteirios e seu uso so de grande importncia para os Es- tados ribeirinhos. Nesse sentido, a cooperao entre esses Estados pode ser desejvel em conformidade com acordos existentes e/ou outros arranjos pertinentes, levando em considerao os interesses de todos os Estados ribeirinhos envolvidos (MINIST- RIO DO MEIO AMBIENTE, 2001). Tambm foi importante a conscientizao quanto responsabilidade dos pases mais desenvol- vidos perante a grande poluio por eles gerada (PROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O MEIO AM- BIENTE, 1992b). Vale lembrar ainda que neste mesmo ano da Eco 92, a ONU redigiu um documento intitulado Declarao Universal dos Direitos da gua (1992), a qual expe dez pontos sobre a importncia da gua e de como ela deve ser altamente preservada. 4. POSICIONAMENTO DOS PASES Angola um pas localizado na costa oeste da frica, o qual depende muito da Bacia do Rio Con- go. Atualmente, a drenagem 44 das guas para o pas d-se em direo a reas secas e costeiras, ao mesmo tempo em que o potencial energtico das guas tambm aproveitado. Sabe-se que Angola possui mais de 140 bilhes de metros cbicos disponveis para irrigao, os quais, entretanto, no so utilizados ple- namente (ANGOLA HAS OVER 70..., 2013). A navegao dos auentes 45 da bacia de grande importncia para o transporte e comrcio internos e externos dos angolanos. Angola pas-membro da Comunidade para o Desenvolvimento da frica Austral (SADC, na sigla em ingls) (STRATEGIC FORESIGHT GROUP, 2013). A Argentina est inserida na segunda maior bacia hidrogrca da Amrica do Sul, a Bacia do Prata, na qual est presente o aqufero Guarani. Assim, devido a sua localizao relevante, o pas esteve envol- vido historicamente em grandes tenses e conitos, principalmente com o Brasil e o Uruguai. Embora as relaes com o Brasil tenham melhorado nos ltimos tempos e os dois pases hoje cooperarem, as relaes entre a Argentina e o Uruguai ainda no so muito amistosas quanto questo de gesto de re- cursos hdricos. Desde 2003, as relaes entre Argentina e Uruguai tem estado sob tenso em funo da construo de uma fbrica de papel e celulose em territrio uruguaio s margens do rio Uruguai, compar- tilhado por ambos os pases. A poluio causada prejudica a Argentina, e o Uruguai, em 2013, anunciou que vai expandir a fbrica. Assim, o pas busca uma melhor gesto de recursos hdricos com a nalidade de proteger seus recursos naturais e tambm sua populao. Pas muito pobre da sia, Bangladesh altamente dependente da bacia do Ganges-Brahmaputra- -Meghna o pas tem 91% de toda sua gua consumida vinda da ndia, atravs destes rios (PNUD, 2006). 43 A Agenda 21 foi um plano global adotado para um desenvolvimento sustentvel. O plano foi desenvolvido durante a Conveno do Rio, em 1992 (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 2002). 44 Drenagem: ato de fazer escoar (gua) por meio de canais, vales ou fossos (LUFT, 2001). 45 Auente: 1. Que aui; 2. Curso de gua que desemboca em outro; tributrio (LUFT, 2001). 43 PNUMA Apesar de Bangladesh utilizar somente 6% dos recursos da bacia, ela ocupa aproximadamente de seu territrio. Em oposio ndia, o pas reivindica a posse dos rios Brahmaputra e Ganges, alegando que eles so vitais para seu desenvolvimento nacional (PNUD, 2006). Bangladesh tem 73% de sua populao vivendo no campo, a qual planta majoritariamente arroz para sua subsistncia. Alm disso, Bangladesh frequentemente atingido por inundaes e um dos pases do mundo mais vulnerveis a mudanas climticas (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS PARA AGRICULTURA E ALIMENTAO, 2011). A Bolvia est inserida nas duas maiores bacias da Amrica do Sul, a Bacia do Prata e a Bacia Ama- znica, sobre as quais existem tratados importantes como o Tratado da Bacia do Prata e o Tratado de Cooperao Amaznica, assinado em 1978, dos quais o pas signatrio (ORGANIZAO DO TRATADO DE COOPERAO AMAZNICA, 2013). Apesar dos tratados regionais, o pas no possui uma estrutura jurdica interna slida para a gesto dos recursos hdricos, o que diculta o aproveitamento das guas na regio. A temtica transfronteiria vital para o Brasil, uma vez que cerca de 60% de seu territrio est inserido em bacias hidrogrcas que se estendem por pases vizinhos, reunindo 83 rios fronteirios ou transfronteirios (SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATGICOS DA PRESIDNCIA DA REPBLICA, 2013). Assim, posto que o Brasil possui uma das maiores disponibilidades hdricas do mundo, o pas segue ex- plorando esta capacidade 46 . Entretanto, para uma melhor gesto dessa riqueza, o pas possui legislao e instituies avanadas, como inmeros tratados bilaterais e regionais sobre o tema. Um exemplo o Tratado de Cooperao Amaznica, assinado em 1978, responsvel por criar a Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica, que visa o desenvolvimento sustentvel da Amaznia (OTCA, 2013). Esses esfor- os brasileiros resultaram no Plano Nacional de Recursos Hdricos (PNRH) de 2006, um dos instrumentos que orienta a gesto das guas no pas e que forma um conjunto de diretrizes, metas e programas para tal nalidade (MINISTRIO DO MEIO AMBIENTE, 2010). Burundi compreende duas bacias em seu territrio: a do Rio Nilo e a do Rio Congo (BURUNDI EMBASSY USA, 2007). O pas faz uso das guas da Bacia do Rio Congo para a atividade pesqueira e, tam- bm, especialmente, para irrigao, sendo que 30% do PIB do pas proveniente da agricultura (NATURAL RESOURCES MANAGEMENT AND ENVIRONMENT DEPARTMENT, 1997). So conhecidos vrios conitos com o pas em funo de guas compartilhadas, como o caso do Lago Tanganyka, o qual comparti- lhado por Burundi, Tanznia, Repblica Democrtica do Congo e Zmbia (SHAH, 2010). Os pases menores da bacia do Mekong, como Camboja, so contra a construo de hidreltricas e barragens pela China, por serem extremamente prejudiciais para o uxo do rio, o que prejudicaria a utilizao de suas guas. O pas depende largamente da bacia do Mekong, visto que a utiliza no apenas para consumo domstico, mas tambm para a agricultura. O arroz, principal cultivo do pas, depende das margens frteis do rio Mekong para ser plantado (JAPAN DEVELOPMENT INSTITUTE, 2014). Ao mesmo tempo, o pas ainda tem grandes interesses na produo de energia hidreltrica. O Cazaquisto se encontra na bacia Amu Dria e possui vastos interesses na manuteno dos rios da bacia e principalmente do Mar de Aral, que tem cerca de metade de sua rea dentro do pas. Esta preo- cupao se deve principalmente ao fato de que as reas prximas aos rios da sia Central tm comeado a sofrer um processo de deserticao (INTERPRESS SERVICE, 2012). Sendo assim, o pas acredita que no apenas necessrio discutir a utilizao dos rios, mas tambm sua preservao. A Repblica Popular da China faz parte da bacia do Rio Mekong, onde tem grandes interesses na construo de barragens e hidreltricas, visto que 15% da energia eltrica do pas produzida por recur- sos hdricos (WORLD NUCLEAR ASSOCIATION, 2014), alm de o pas possuir uma grande preocupao com a produo de energia verde. Alm disso, na China que se encontra a hidreltrica de Trs Gargan- tas, a maior hidreltrica do mundo (a segunda maior hidreltrica em termos de energia gerada, atrs de Itaipu). Sendo assim, o pas acredita que de seu direito utilizar estes rios, visto que os mesmos nascem em seu territrio, mas no se ope de forma alguma utilizao das outras partes dos rios pelos demais pases ribeirinhos. Alm do rio Mekong, a China tambm possui interesses no rio Bramaputra (INDIA TI- MES, 2013). A Colmbia est inserida na Bacia Amaznica e conta com uma grande rede uvial que desgua, alm dessa bacia, da rea hidrogrca do Caribe. Para um manuseio sustentvel da primeira, o pas as- sinou o Tratado de Cooperao Amaznica em 1978, responsvel por criar a Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica (OTCA, 2013). Isso mostra que, apesar de no possuir uma estrutura jurdica slida para a gesto de recursos hdricos, o pas est disposto a cooperar e adotar novas medidas para a preservao ambiental das bacias hidrogrcas. Tendo sido umas das primeiras civilizaes do planeta, o Egito sempre teve enorme dependncia do rio Nilo. Atualmente, 99% da populao egpcia se concentram s margens do rio (GUIA DEL MUNDO, 2007). A bacia do Nilo vital para o Egito, tanto para o consumo e gerao de energia eltrica, como para 46 Atualmente, est sendo construda, no Rio Xingu - localizado no estado do Maranho -, a Hidreltrica de Belo Monte, que ser a terceira maior hidreltrica do mundo (MINISTRIO DE MINAS E ENEGIA, 2011). 44 UFRGSMUNDI a agricultura principal fonte de renda do pas, juntamente com a produo de petrleo e o turismo. 97% de toda a gua utilizada pelo Egito chega atravs do Nilo, vinda de outros pases (SELBORNE, 2001). Ainda assim, em virtude de seu maior poder na regio, o Egito detm o monoplio da Bacia do Nilo, sendo o pas que mais tem inuncia e poder de deciso sobre a bacia os demais pases que compem a bacia do Nilo (Burundi, Repblica Centro-Africana, Repblica Democrtica do Congo, Ruanda, Sudo, Sudo do Sul, Tanznia e Uganda, entre outros) precisam pedir a permisso do Egito para fazer uso da bacia, mesmo que estejam montante (SCHRADER, 2013). Em razo de disputas relacionadas aos rios que compartilham com o Mxico, os Estados Unidos da Amrica adotaram em 1895 a Doutrina Harmon (PNUD, 2006). Essa doutrina defendia a soberania absoluta dos Estados, que, na ausncia de legislao contrria, poderiam fazer livre desfrute dos recursos hdricos sobre suas jurisdies, no tendo de se preocupar com os efeitos causados para alm de suas fronteiras (PNUD, 2006). Ainda hoje, o Mxico sofre por falta dgua em virtude de desvios dos rios Grande e Colorado provocados pelos EUA, destinados indstria, agricultura e cidades tal fato tem sido fator de tenso constante nas negociaes entre EUA e Mxico (PNUD, 2006). A Frana est localizada na bacia do Rio Reno, tambm compartilhada por Alemanha, ustria, Blgica, Itlia, Listenstaine, Luxemburgo, Pases Baixos e Sua. O Rio Reno um dos maiores e mais importantes sistemas uviais de toda a Europa. Em 1987, foi estabelecido o Plano de Ao do Reno, que demarca a ltima etapa de uma cooperao que visa a melhorar a qualidade da gua do rio (PNUD, 2006). J em 1950, Frana, Alemanha, Luxemburgo, Pases Baixos e Sua criaram a Comisso Internacional para a Proteo do Reno (CIPR): atualmente, o CIPR um organismo intergovernamental ecaz, ao qual os Estados membros tm de prestar contas de tudo que fazem em relao ao rio alm disso, h a partici- pao tambm de ONGs em suas conferncias (PNUD, 2006). Pas mais poderoso e inuente do sul da sia, a ndia depende de trs bacias hidrogrcas trans- fronteirias em seu territrio: a bacia Ganges-Brahmaputra-Meghna, a bacia do Tarim e a bacia do Indus (PNUD, 2006). A populao da ndia (2 maior do planeta) se concentra nas margens dos rios, tendo eles importncia para o consumo, para a irrigao da agricultura e mesmo para a religio (os rios indianos so considerados sagrados pela religio hindu). A ndia v os caudais dos Rios Brahmaputra e Ganges como seus recursos nacionais, sendo tais essenciais para seu desenvolvimento tais rios tambm so reivindicados como propriedade por Bangladesh. Alm disso, a ndia tem demonstrado receio quanto construo de barragens por parte da China montante do rio Brahmaputra, o que poderia diminuir o uxo de gua a chegar ao seu territrio por esse rio (INDIA TIMES, 2013). O Laos um pas membro da bacia do Mekong que se encontra em situao de reivindicar seus di- reitos perante pases mais inuentes dentro da bacia. Isto se deve ao fato de que o pas tambm necessita da utilizao da bacia do Mekong para manter suas fronteiras e produzir energia hidreltrica, sua fonte energtica majoritria (ASIAN DEVELOPMENT BANK, 2010). Contendo sete estaes hidreltricas em seu territrio, Malawi depende essencialmente dessa fonte de energia. O Lago Malawi causa de conito com o pas vizinho, a Tanznia. Alm disso, no ano de 2010, houve o surgimento de outro conito, desta vez com Moambique, pelas guas compartilhadas no Rio Zambeze e pelo uso de uma hidreltrica que produz energia para ambos (CHIMWALA, 2010). Outro ponto que Malawi faz parte da Comunidade para o Desenvolvimento da frica Austral (SADC), a qual compromete seus membros a tomarem providncias paccas quanto gesto de guas transfronteirias (STRATEGIC FORESIGHT GROUP, 2013). O problema da opresso sofrida por pases menores tambm segue seu padro em Mianmar, que no desfruta do rio Mekong em si, mas desfruta de outros rios de sua bacia, como o rio Salween e o rio Iraudi. O pas conta com uma necessidade de energia hidreltrica enorme, visto que no possui outros tipos de recursos energticos (ASIAN DEVELOPMENT BANK, 2012). Alm disso, o pas tambm possui fronteiras delimitadas por estes rios, o que exige ainda mais sua preservao. J em Moambique, a preocupao com recursos hdricos transfronteirios se torna maior, visto que as maiores e mais importantes bacias dentro de seu territrio so divididas com outros pases, como Angola e Zmbia. Assim, a gesto conjunta destes recursos o interesse principal deste pas, que exige que os direitos de todos os pases sejam respeitados (TAUACALE, 2002). Vrios rios dividem o Paraguai de outros pases da Amrica do Sul, o que faz com que a temtica de recursos transfronteirios seja tambm muito importante para o pas. O Paraguai est inserido na Bacia do Prata, e compartilha tambm o aqufero Guarani com Uruguai, Brasil e Argentina. Com esses dois lti- mos, o pas possui as usinas binacionais de Itaipu, com o Brasil, e de Yacyreta, com a Argentina, ambas no rio Paran (ULLOA & BELLINI, 2009). Por m, o pas signatrio da Conveno sobre os Cursos da gua das Naes Unidas que estabelece a obrigao de cooperar, alm de modos de proteo, preservao e manuteno dos cursos da gua (ONU, 1997). O Reino Unido, por meio da Unio Europeia (da qual membro), tem algumas das mais avanadas legislaes a respeito de recursos hdricos transfronteirios. Dentre os vrios tratados da Unio Europeia, 45 PNUMA h, por exemplo, um Plano de Assistncia destinado sia Central, que considera os recursos hdricos de gua doce como sendo diretamente relacionados segurana internacional e, portanto, fonte potencial de conito (EUROPEAN COMMUNITY, 2007). Alm disso, tanto a Unio Europeia, quanto o Reino Unido so signatrios da Conveno de Helsinque. Partindo do fato de que 65% do territrio da Repblica Centro-Africana acessado pela Bacia do Rio Congo, conhecida a importncia do pas dentro da gesto das guas. Alm disso, a Repblica Centro-Africana pas-membro da Comisso Internacional do Congo-Oubangui-Sangha (CICOS), jun- tamente com Camares, Repblica do Congo e Repblica Democrtica do Congo (CICOS, 1999), a qual promove a integrao dos pases quanto gesto das guas transfronteirias. A capital do pas, Bangui, estritamente movida energia eltrica proveniente da hidreltrica instalada no Rio Mbali, parte da Bacia do Rio Congo. Esta hidreltrica compartilhada com a Repblica Democrtica do Congo. A Repblica do Congo divide uma das sees navegveis do Rio Congo com a Repblica De- mocrtica do Congo, a qual serve para o pas de rota de transporte e comrcio. A construo de duas hidreltricas no Vale do Inga, capitaneadas pela Repblica do Congo, serve como fonte de exportao energtica a dois pases: Repblica Democrtica do Congo e Repblica Centro-Africana (INTERNATION- AL RIVERS, 2014). Tal fato, com o passar do tempo, pode trazer desavenas entre as partes por conta de uma futura escassez energtica, dadas as eventuais secas da regio. Ao mesmo tempo, ambos os pases so membros da Comisso Internacional para Congo-Oubangui-Sangha (CICOS), conjuntamente com Camares e a Repblica Centro-Africana. A instituio referncia para a gesto de guas compartilha- das (CICOS, 1999). A Repblica Democrtica do Congo o pas mais beneciado pela Bacia do Rio Congo, sendo perpassado por 60% das guas da bacia. A sua capital, Kinshasa, tem como rival Brazzaville, capital da vizinha Repblica do Congo. O embate se d devido s guas compartilhadas do Rio Congo, pois ambas as cidades fazem da atividade pesqueira no rio sua fonte econmica. A RDC pas-membro da Comisso Internacional do Congo-Oubangui-Sangha (CICOS), sendo o pas mais inuente dentro da gesto das guas da bacia (CICOS, 1999). Ao mesmo tempo, tambm membro da Comunidade para Desenvol- vimento da frica Austral (SADC), fazendo uso do preceito de que as guas compartilhadas e a paz so termos inseparveis (COMUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO DA FRICA AUSTRAL, 2012). A explorao de metano 47 no Lago Kivu, na Bacia do Rio Congo, confere a Ruanda grande cota energtica e, ao mesmo tempo, lucros pela venda da mesma. Alm disso, Ruanda tambm contm em seu territrio parte da Bacia do Rio Nilo (NILE INFORMATION SYSTEM, 2014). Suas relaes com Burundi no so to amistosas, devido a conitos pelos lagos e, tambm, aos grupos tnicos 48 ali dominantes (Hutus e Tutsis), os quais preservam conito desde o ano de 1994. Maior pas do planeta em extenso territorial, a Rssia riqussima em recursos naturais inclu- sive em gua. O Mar Negro de importncia vital para Rssia, tendo em vista que sua principal sada para o Oceano Atlntico. No que se refere ao Mar Cspio, a Rssia considera inadmissvel a presena de pases extrarregionais no local, sendo que apenas devem explorar os recursos naturais do mar o quinte- to Rssia, Cazaquisto, Turcomenisto, Azerbaijo e Ir (VOZ DA RSSIA, 2013). Alm disso, a Rssia tem demonstrado apoio ao Tajiquisto e Quirguisto no que se refere controvrsia entre estes e o Uzbequis- to: o Uzbequisto contra a construo de barragens na bacia do Rio Amu Dria por parte do Tajiquisto e Quirguisto (WATER POLITICS, 2010; 2012). O Sudo tem sua importncia dentro da Bacia do Rio Nilo por ser atravessado de norte a sul pelo rio e, principalmente, por ser o rio drenado majoritariamente pela mesma bacia (LIBRARY OF CONGRESS & CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY,1991). Ao mesmo tempo, o Rio Nilo abastece, aps atravessar Ruan- da, Burundi e Uganda. Por isso, qualquer atividade exercida por Ruanda poder acarretar consequncias a toda a extenso das guas e, consequentemente, aos pases que se servirem dela. Do mesmo modo, importante a sua sada para o Mar Vermelho 49 , pelo Porto Sudo. O pas tambm faz uso da bacia como fonte energtica, tendo uma hidreltrica situada no Nilo, ao norte do Sudo (DAMS IMPLEMENTATION UNIT, 1995). A Tailndia um pas extremamente dependente do rio Mekong, pelo fato de que este rio uma fonte importante de energia e gua potvel, alm de ser uma grande via de transporte do pas com seus vizinhos (ASIAN DEVELOPMENT BANK, 2008). Da mesma forma, os rios da bacia do Mekong tambm ser- vem de fronteira para a Tailndia com o Laos e Mianmar, se tornando assim sua preservao uma questo de segurana para o pas. 47 Gs metano (CH4): forma-se na decomposio, na ausncia de ar, de materiais orgnicos. encontrado em jazidas de petrleo e bolses, sendo o principal constituinte do gs natural. utilizado como combustvel. Quando formado nos aterros sanitrios chamado de gasolixo. (USBERCO & SALVADOR, 2003). 48 Grupo tnico: grupo relativo a um povo ou raa; racial (LUFT, 2001). 49 Deve-se ter em conta a grande importncia do Mar Vermelho pelo fato de que passagem do Mar Mediterrneo ao Oceano ndico e vice-versa, atravs do Canal de Suez. Desse modo, faz o papel de encurtar a distncia entre Europa e ndia, por exemplo. (KAPLAN, 2011). 46 UFRGSMUNDI A Tanznia adota um posicionamento ameno em relao ao uso das guas da Bacia do Rio Congo para energia hidreltrica. Tal fato baseado na sua escassa reserva de guas com potencial hidreltrico, apesar de haver construdo hidreltricas. Entretanto, a irrigao estritamente necessria para o desen- volvimento da agricultura no pas. conhecido o conito existente com Malawi quanto questo de soberania 50 do Lago Malawi, devido delimitao de soberania de cada pas nas guas compartilhadas, afetando a atividade pesqueira de ambos. A Tanznia tambm pas-membro da Comunidade para o Desenvolvimento da frica Austral (SADC), cujo intuito, dentro da questo de guas transfronteirias, promover a gesto pacca de guas compartilhadas (SADC, 2012). O Lago Victoria compartilhado por Tanznia, Qunia e Uganda. J o Lago Tanganyika, compartilhado por Tanznia, Repblica Democrtica do Congo, Burundi e Zmbia (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY, 2014). No Tajiquisto, o setor hidreltrico de suma importncia para sua economia, sendo necessria para isso a construo de barragens nos rios da bacia Amu Dria. Isso faz com que pases como o Uzbe- quisto sintam-se ameaados (JALILOV, 2010). Porm, o pas tambm acredita que a utilizao dos rios um direito de todos e que apenas um tipo de uso como a construo de barragens no deve ser refreado. Uganda conserva conito com o Egito por parte da construo de uma hidreltrica no Rio Nilo, devido queda do nvel de gua da bacia do mesmo rio dentro do territrio egpcio que esta usina impli- caria. Entretanto, o Nilo abastece energeticamente o Qunia e a Tanznia, no sendo somente dever de Uganda a consequncia da escassez hidrogrca. Alm disso, Uganda divide com os dois pases citados as guas do Lago Victoria. A irrigao vital ao desenvolvimento deste pas e, consequentemente, sobre- vivncia da populao, pelo fato de que o pas sofre de secas recorrentes (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS PARA AGRICULTURA E ALIMENTAO, 2006). O Uruguai est inserido na Bacia do Prata, onde importantes rios colaboram para o crescimento da economia do pas. O pas compartilha esses rios com importantes parceiros comerciais, como a Ar- gentina, que apesar das tenses dos ltimos anos a respeito da construo, funcionamento e expanso de usinas de celulose 51 , continua sendo um dos principais exportadores para o Uruguai, assim como o Brasil. Com a vasta rea hdrica no Uruguai, o pas tem sido signatrio de importantes tratados e colabora- do para a existncia de importantes instrumentos que visam gesto desses recursos, como a Comisso Mista Brasileiro-Uruguaia para o Desenvolvimento do rio Quarai, assinado em 1991 (CONSELHO NACIO- NAL DE RECURSOS HDRICOS, 2009). Outra bacia de suma importncia a bacia do rio Amu Dria, que se encontra na sia Central. O Uzbequisto, pas que faz parte desta bacia, extremamente dependente dela para sua agricultura. Sem as cheias deste rio, seria impossvel que o pas conseguisse se sustentar. Sendo assim, as ameaas de construes de barragens por pases como o Tajiquisto trazem grande preocupao ao pas (JALILOV, 2010). Alm disso, este rio tambm faz parte da fronteira uzbeque com vrios outros pases da sia Cen- tral, como o prprio Tajiquisto e o Cazaquisto, fazendo com que a segurana nos rios seja fundamental, por se tratarem de um limite entre Estados. A Venezuela conta com uma vasta rede uvial e faz parte tambm da Bacia Amaznica, sendo mais uma signatria do Tratado de Cooperao Amaznica (OTCA, 2013). O pas tambm signatrio da Con- veno das Naes Unidas sobre a Utilizao de Rios Internacionais para Fins Diferentes de Navegao, que trata da obrigao de cooperar, dos modos de proteo e da preservao e manuteno dos cursos da gua (ONU, 1997). Assim, o pas vem se mostrado disposto a cooperar e comprometido com uma mel- hor gesto dos recursos hdricos. J o Vietn possui uma parte importantssima da bacia do Mekong: o Delta do Rio Mekong. Este delta extremamente frtil e garante boa parte da economia agrcola do pas, porm ca ao nal do rio Mekong, fazendo com que seja extremamente vulnervel a qualquer m utilizao feita por outros pases que se encontram mais prximos da nascente do rio (VAN DAT, 2014). A conscientizao quanto sustentabilidade defendida pela Zmbia. Entretanto, a drenagem das guas vital agricultura do pas e, consequentemente, ao bem estar da populao. essencial- mente a bacia do Rio Zambeze a fonte das guas para irrigao, sendo 135 km a rea irrigada. Zmbia pas-membro da Comunidade para Desenvolvimento da frica Austral (SADC), a qual determina, dentro da questo de guas transfronteirias, que a pacicao de regies de guas compartilhadas, como as bacias, inevitvel para a gesto dos recursos hdricos (SADC, 2012). 50 Soberania: o Estado que tm plenos poderes sobre seu povo e seu territrio, ao mesmo tempo em que inde- pendente dos outros Estados. O princpio da igualdade de soberanias mencionado no Artigo 2 da Carta das Naes Unidas (PECEQUILO, 2010). 51 As tenses entre Argentina e Uruguai quanto s papeleiras caram conhecidas como O Caso das Papeleiras. v- lido ressaltar que, em 2013, o governo uruguaio decidiu em 2013 aumentar a produo da fbrica de celulose UPM, o que reacendeu as tenses entre os governos (ARGENTINA E URUGUAI..., 2014). 47 PNUMA 5. QUESTES PARA REFLETIR 1. De que forma a cooperao entre os pases de uma mesma bacia hidrogrca transfronteiria pode melhorar a gesto dos recursos hdricos? 2. Como instrumentos jurdicos internacionais podem equalizar o acesso aos reursos hdricos entre pases que compartilham uma mesma bacia hidrogrca? 3. Os pases montante devem ter maior acesso e usufruto dos recursos da bacia hidrogrca compartilhada? Ou os pases que so mais dependentes da mesma devem ter prioridade? 4. Uma vez que, frequentemente, h interesses divergentes entre pases sobre uma mesma bacia hidrogrca, quais medidas podem ser tomadas a m de evitar conitos? 5. Como os mecanismos de gesto coletiva das bacias hidrogrcas transfronteirias podem contribuir para a preservao do meio ambiente? REFERNCIAS _____. AQUASAT: Uganda. 2006. Disponvel em: <http://www.fao.org/nr/water/aquastat/countries_regions/ uganda/index.stm>. Acesso: 12 abr. 2014. _____. AQUASTAT: Ganges-Brahmaputra-Meghna river basin. 2011. Disponvel em: <http://www.fao.org/nr/ water/aquastat/basins/gbm/index.stm>. Acesso em: 23 fev. 2014. _____. Everything you need to know about the UN Watercourses Convention. Sua: Revive 100, 2009. Di- sponvel em: <http://www.unwater.org/downloads/wwf_un_watercourses_brochure_for_web_1.pdf>. Acesso em: 24 jan. 2014. ANGOLA HAS OVER 70 hydrographic basins for irrigation. 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O Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) deste UFRGSMUNDI tratar da Gesto de Recursos Hdricos Transfronteirios, tendo como propsito procurar estabelecer mecanismos de cooperao que possibilitem o melhor manejo desses recursos hdricos compartilhados. O recurso natural mais indispensvel vida humana , sem dvida, a gua. A importncia da gua para o homem tem se dado ao longo de toda a histria, estando entre suas utilizaes: o prprio consumo pelos indivduos, a pesca, o transporte hidrovirio, o uso na agricultura por irrigao, a fonte de energia hidreltrica, o despejo de dejetos, entre outras inmeras utilidades. Dito isso, uma vez que a gua um recurso nito, a posse e gesto de recursos hdricos (sejam eles rios, lagos, aquferos) tm se tornado cada vez mais um objeto de disputa entre pases. De acordo com dados da ONU, cerca de 40% da populao mundial habita as margens de rios e lagos multinacionais, e 90% vive em pases que detm bacias hidrogrcas compartilhadas por dois ou mais pases. Uma vez que no haja uma gesto internacional eciente dessas bacias compartilhadas, os diversos interesses envolvidos, muitas vezes conitantes, podem resultar em controvrsias e ameaar a sobrevivncia das populaes ribeirinhas. 52 UFRGSMUNDI CONFERNCIA DE SO FRANCISCO (1945) A criao da ONU Giovana Esther Zucatto 1 Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi 2
Henrique Pigozzo 3 Rodrigo Milagre 4
Victor Merola 5
INTRODUO Este comit simular a Conferncia de So Francisco de maio de 1945, responsvel por assinar a Carta das Naes Unidas, documento responsvel pela criao da Organizao das Naes Unidas (ONU). Dessa maneira, preciso ter em mente todo o panorama histrico que levou os pases a fundarem uma organizao baseada na manuteno da paz; ela resultado de um processo histrico que atraves- sou duas grandes Guerras Mundiais e resultou no s na destruio de diversos pases como tambm na morte de milhes de pessoas. Assim, os pases vo a So Francisco com as feridas recentes de um mundo em guerra; o que buscam garantir a segurana de seus cidados, de suas riquezas e de seus territrios, outros buscam garantir a independncia das naes ainda assoladas pelo colonialismo, e h aqueles que procuram um mundo mais justo, em que os pases mais poderosos respondam por seus atos e aqueles menos poderosos tenham alguma voz. So esses mltiplos desejos que convergem na Conferncia de So Francisco. Ao se tratar de um comit histrico, ou seja, que j aconteceu, os delegados devem estar atentos ao fato de que eles estaro imersos na realidade de 1945. Durante os dias da simulao, eles no vivero em 2014, mas em maio de 1945. Os fatos histricos que vieram depois devem ser ignorados e o posicio- namento das naes deve ser condizente com aquele que adotavam no perodo da Conferncia. Ser, sem dvidas, uma experincia muito enriquecedora de imerso histrica em uma realidade passada mas que de certa maneira, no s inuencia nos dias de hoje, mas tem muito a nos ensinar. 1. HISTRICO Na aurora do sculo XX, o otimismo tomava conta dos povos do mundo especialmente, dos europeus. Os sinais de que nas prximas dcadas duas das mais devastadoras guerras da histria humana eclodiriam eram abafados pelo progresso cientco-tecnolgico; teias ferrovirias cobriam os continen- tes, as comunicaes eram mais rpidas, os telefones se difundiam e, acima de tudo, a eletricidade revo- lucionava o dia-a-dia das pessoas. No entanto, esse desenvolvimento acelerado no era compartilhado igualmente por todas as partes do mundo. A partir de meados do sculo XIX, as potncias europeias e depois os Estados Unidos empreenderam uma onda de dominao poltica e econmica sobre naes africanas e asiticas, o neocolonialismo. Das novas colnias, veio o motor da industrializao nesses pa- ses: no s eram fontes de matrias-primas, como tambm representavam uma parcela importante do 1 Estudante do 7 semestre de Relaes Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 Estudante do 7 semestre de Relaes Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Estudante do 3 semestre de Relaes Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Estudante do 5 semestre de Relaes Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 5 Estudante do 7 semestre de Relaes Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.52-67 53 CSF 45 mercado consumidor dos bens produzidos pelas potncias. Foi nas zonas perifricas que se concentra- ram, tambm, muitos dos conitos diretos e indiretos que originaram as grandes guerras do sculo XX, conitos sem precedentes que mataram milhes de pessoas e dizimaram pases inteiros. Com a revoluo industrial do sculo XIX, em que os pases europeus e depois os Estados Unidos comearam a produzir em grande escala, essas potncias ocidentais cada vez mais se voltaram para outras regies do mundo, intensicando as prticas imperialistas. Elas buscavam colnias para instalar parte de seu excedente populacional e encontrar mercados consumidores, fornecedores de matrias- -primas e novas reas de investimento. O grande diferencial da primeira onda de colonialismo europeu - iniciada no sculo XV e que se voltou especialmente para as Amricas e a frica, levado a cabo pelas ento potncias Portugal e Espanha - que esse novo movimento era dominado pelas grandes empresas. No eram os Estados que movimentavam os empreendimentos coloniais esses serviam agora apenas como o brao armado e poltico que garantia o acesso das grandes empresas s novas reas. O modo de dominao se deu atravs de uma aliana com as elites locais: apesar da falsa sensao de independncia poltica, as estruturas polticas e econmicas das reas dependentes foram moldadas de acordo com as necessidades externas dos pases imperialistas (VICENTINO; DORIGO, 2005). Esse sistema atingiu seu pice na segunda metade do sculo XIX, quando os grandes imprios j haviam articulado e estabelecido ecientes sistemas administrativos para suas colnias que cobriam extensas reas em diversos continentes. Essas reas coloniais foram palco de intensas disputas entre as potncias ocidentais, o que agravou os conitos fora de seus territrios e estimulou o armamentismo. Exemplo disso foram as Guerras dos Beres, na atual frica do Sul, onde Frana e Holanda enfrentaram o Imprio Britnico pelas reservas de ouro do pas. Assim, os pases rivais se uniam em blocos e o clima de tenso s aumentava (VICENTINO; DORIGO, 2005). Nas duas grandes guerras que eclodiram, as reas coloniais tiveram participao essencial. Em alguns casos, foram o palco de conitos tanto entre potn- cias, quanto de levantes de movimentos locais. Boa parte do contingente de algumas potncias, inclusive, era formada por soldados oriundos das colnias. Sobre estas grandes guerras, a Primeira Guerra Mundial , sem dvidas, o grande marco do scu- lo XX. Seus efeitos no se limitaram aos horrores do conito, mas perduraram direta ou indiretamente por todo o sculo. O conito esteve na raiz de movimentos transformadores, como a Revoluo Russa de 1917 e a Grande Crise de 1929; impulsionou os sentimentos de revanche e ascenso dos regimes de extrema direita na Europa, como o de Hitler e Mussolini (BLAINEY, 2010). A ordem internacional vigente at ento desmoronou. Em primeiro lugar, marcou o declnio da ordem internacional estruturada pelo Concerto Europeu de Viena em 1815 6 ; mais do que isso, despertou a grande procura por uma forma de evitar novos conitos, dado o horror causado pelas propores que o conito tomou. Esse conito teve incio em 28 de julho de 1914, devido a atritos entre srvios e austracos. Em pouco mais de sete dias, diversas outras naes entraram em guerra e as grandes potncias j se en- frentavam por toda a extenso de seus domnios imperiais. As origens da Primeira Guerra Mundial, dessa maneira, podem ser encontradas na rigidez da poltica de alianas que se estabeleceu no incio do sculo XX. A diviso bsica se deu na oposio entre a Alemanha e a Inglaterra: a primeira encabeava a Trplice Aliana, junto ao Imprio Austro-Hngaro e Itlia com apoio tambm do Imprio Turco-Otomano no Oriente Mdio; j a Inglaterra se aproximou em um primeiro momento da Frana, formando a Entente Cordiale em 1904. Nesse momento, as duas potncias uniram-se sob a gide do inimigo comum, que no caso era a expanso imperialista da Alemanha. Esta foi a razo que levou a Rssia a juntar-se a elas e formar a Trplice Entente (VICENTINO; DORIGO, 2005). So esses dois agrupamentos Trplice Aliana e Trplice Entente os protagonistas da Primeira Guerra Mundial. Os pases, ao entrarem em guerra, acreditavam que o conito se resolveria de maneira rpida. Os avanos tecnolgicos em termos militares e a experincia histrica recente levavam as potncias a prever um conito com grande nmero de perdas, mas de durao curta. A crena era de que a guerra se encer- raria antes do Natal do mesmo ano, assim, os pases estavam preparados para um suporte de curto prazo previa-se, ainda, que a crescente escassez de comida e material blico facilitaria o armistcio (BLAINEY, 2010). O que se seguiu, no entanto, foi bastante diferente do esperado. O conito se prolongou, levando os envolvidos ao total desgaste econmico, poltico e social. Ocorreram milhes de mortes. Na Rssia, desde o incio do sculo, foras internas de inuncia socialista se agitavam para der- rubar o czar (equivalente russo de imperador). Em 1905, uma tentativa de golpe foi duramente reprimida pelas foras do czar. Entretanto, em 1917, as foras socialistas, agora melhor organizadas e mais podero- sas, empreenderam com sucesso uma Revoluo. preciso entender que essa Revoluo se deu em dois momentos: primeiro, em fevereiro, os menchevique (de cunho mais republicano e liberal) derrubaram o 6 O Congresso de Viena de 1815 resultou em um sistema que durou at a 1 Guerra Mundial. Nesse sistema, a Europa cava dividia entre cinco grandes naes Imprio Austro-Hngaro, Imprio Russo, Imprio Britnico, Frana e a Prssia. 54 UFRGSMUNDI czar; depois, em outubro, os bolcheviques (comunistas marxistas), derrubaram o regime menchevique e instauraram a repblica socialista na Rssia. A Revoluo Russa foi um evento que marcou o sculo XX, ao instaurar no maior pas do mundo um regime que se opunha ao tradicional capitalismo das outras potn- cias, inaugurando um modelo mais voltado para dentro. Ainda, possibilitou que a Rssia se reorganizasse internamente, ascendendo como potncia e se rearmando como um dos pases mais poderosos do mundo, ao fundar, em 1922, a Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS), com governo centrali- zado em Moscou. Essas diferenas econmicas polticas e ideolgicas com o Ocidente viriam a inuir na diviso do mundo no ps-Segunda Guerra Mundial. Na esteira da Revoluo, a Rssia retirou-se do conito. No mesmo ano, os Estados Unidos, gover- nados pelo Presidente Woodrow Wilson, que at ento se mantinha neutro, declararam guerra Alema- nha. A Trplice Aliana ia, aos poucos, perdendo espao e poder. A Itlia j havia se retirado, a monarquia austro-hngara estava em pedaos, e os iugoslavos, tchecos e hngaros formavam suas prprias naes; no m de outubro os turcos rmaram uma trgua (BLAINEY, 2010). A Alemanha, lutando sozinha contra as foras da Trplice Entente, resistiu at novembro de 1918, quando assinou o armistcio. O que se seguiu, no entanto, no foi a to esperada paz no continente europeu e, consequentemente, no mundo, mas sim uma srie de tratados que aprofundaram a crise na Europa e zeram nascer movimentos nacionalistas de forte carter revanchista. Em janeiro de 1919, as naes vencedoras da Primeira Guerra Mundial reuniram-se em Versalhes, na Frana, para discutir os rumos do mundo nos prximos anos, bem como as punies a serem impostas s naes derrotadas (especialmente a Alemanha). Dentre as punies estava o retorno da Alscia-Lorena Frana, a perda das colnias ultramarinas, a limitao do Exrcito Alemo a 100 mil homens e uma inde- nizao a ser paga pelos danos da Guerra. Um ano antes, o presidente norte-americano Woodrow Wilson apresentara ao Congresso Norte-Americano seus 14 pontos, onde, dentre outros aspectos, defendia uma paz sem vencedores e a formao de uma associao geral de naes sob aspectos especcos com o pro- psito de fornecer garantias mtuas de independncia poltica e integridade territo- rial, tanto para os Estados grandes quanto para os pequenos (GRIFFITHS, 2004, p. 53). Nesse sentido, um dos resultados da conferncia realizada em 1919 foi a criao da Liga das Na- es, apoiando-se nos princpios de democracia, segurana coletiva (ou seja, os pases uniriam esforos para garantir a paz e evitar novos conitos) e autodeterminao; funcionaria, assim, como um frum internacional no interesse da paz mundial. Contudo, a Liga no logrou alcanar seus objetivos. possvel armar, at mesmo, que a organizao nasceu fadada ao fracasso: por discordar de muitas das decises de Versalhes, os Estados Unidos, idealizadores da Liga, no integraram o pacto e assinaram um acordo de paz em separado com a Alemanha (VICENTINO; DORIGO, 2005). Inclusive, de incio, esta e a Rssia socialista igualmente se recusaram a participar da nascente organizao. Com o m da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos se conguraram como a principal po- tncia do planeta: passaram a ser o maior credor mundial e ser responsvel por cerca de um tero da produo industrial mundial (VICENTINO; DORIGO, 2005). Ao mesmo tempo, os EUA adotaram uma postura isolacionista, retraindo sua projeo mundial aps a Primeira Guerra. As polticas econmicas e nanceiras liberais, aliadas a esse fechamento, acabaram culminando em uma crise sem precedentes em 1929, que se estendeu pela dcada de 1930 e abalou as naes capitalistas. A depresso tambm causou um protecionismo comercial, atravs de barreiras para a importao de produtos de outros pases que poderiam ser produzidos internamente, como uma tentativa das naes fortalecerem seus mercados. Essa medida, contudo, acabou acentuando as disparidades entre as chamadas potncias ricas EUA, Reino Unido e Frana e as potncias pobres Alemanha, Itlia e Japo que, ao contrrio das pri- meiras, no possuam grandes imprios ultramarinos ou reservas nanceiras e materiais. Nesses pases, se instaurou um cenrio de depresso econmica e agitao social, muito propcio ascenso de regimes autoritrios. As falncias e demisses em massa geraram fome e revolta, ao passo que milhes de traba- lhadores desempregados alinhavam-se a movimentos de carter radical, aumentando a fora dos parti- dos de esquerda nos pases capitalistas. Somando-se a isso, a URSS despontava como potncia industrial, alheia crise devido ao seu sistema socialista, o qual inspirava diversos grupos ao redor do mundo. Os partidos de direita, ou conservadores, preocupados com essa nova tendncia socialista, foram cada vez mais se concentrando em formas de combater essa nova onda. nesse contexto que se d a ascenso do fascismo, resultando em regimes extremistas, essencialmente nacionalistas, antidemo- crticos, antioperrios, antiliberais e antissocialistas, baseados em iderios autoritaristas e militaristas (VICENTINO; DORIGO, 2005). Esses movimentos tiveram como seus principais expoentes Adolf Hitler, na Alemanha, e Benito Mussolini, na Itlia. Na Alemanha havia ainda outro fator de bastante peso: o anti-se- mitismo, a perseguio e exterminao dos judeus. No entanto, a caracterstica desses regimes que mais veio a impactar na conagrao da Segunda Guerra Mundial foi seu expansionismo territorial. 55 CSF 45 A Alemanha foi, provavelmente, o pas mais abalado pela crise de 1929. Os comunistas estavam enfraquecidos, e o Partido Nazista ascendia rapidamente ao trazer consigo a promessa de transformar a Alemanha novamente em uma potncia forte, alm de convir aos interesses da burguesia, assustada com a Revoluo Russa e uma possvel revolta comunista. Assim, em 1933, Hitler foi nomeado chanceler, com ampla maioria nazista no Reichstag (Parlamento Alemo). O contexto interno era favorvel ao novo Fhrer (ttulo designado a Hitler), que com sua oratria impecvel e contagiante, reacendia a esperana do povo alemo em ser uma nao grandiosa, um imprio que durasse mil anos. J na Itlia, o governo fascista se instaurou antes da Quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. Sem o apoio inicial popular to abrangente quanto o dado aos nazistas na Alemanha, igualmente se tratava de um pas em caos social, onde, aos poucos, a possibilidade do surgimento de um lder forte e centralizador, que devolvesse a tranquilidade sociedade, fez com que as massas populares passassem a acreditar na necessidade da gura do Dulce (como Mussolini era chamado por seus seguidores). Em ambos os casos, os ditadores foram exitosos no s na tentativa de legitimar seus governos, mas tambm em reerguer seus pases em tempos to conturbados, apostando fortemente no militarismo. Atravs do fortalecimento da indstria e dos grandes investimentos militares, esses pases recuperaram suas econo- mias (ainda que no totalmente) e se colocaram como potncias belicosas. Os regimes fascistas europeus por ver seus interesses como muito prximos, acabam, ento, se aliando ao igualmente expansionista Imprio Japons. esse o cenrio da Segunda Guerra Mundial. Quando, em 1 de setembro de 1939, a Alemanha invade a Polnia, Inglaterra e Frana, de acordo com compromissos pblicos previamente assumidos em seus tratados de aliana, reagiram dando incio ao conito (VICENTINO e DORIGO, 2005). Contudo, os conitos em larga escala s iniciaram quando, em abril de 1940, as foras alems do incio Blitzkrieg, uma invaso rpida baseada na velocidade dos tan- ques alemes, estendendo seus domnios rapidamente at a Frana: Paris foi tomada por Hitler em junho de 1940. Na Inglaterra, Churchill assumira como Primeiro-ministro cerca de um ms antes da conquista de Paris. Enfrentava, agora, macios ataques areos da Luftwafe (Fora Area Alem) ilha inglesa, ao mesmo tempo em que as tropas inglesas combatiam as italianas nas colnias do norte da frica. Era bastante claro para os dirigentes alemes que o Reich no dispunha de recursos energticos e materiais para lutar uma guerra de longa durao a despeito de possuir grandes reservas de carvo, a Alemanha no era uma potncia colonial que pudesse depender de abastecimento externo proveniente de suas colnias. Essa necessidade de matrias-primas, especialmente de petrleo, aguou ainda mais o expansionismo alemo. Assim, em junho de 1941, Hitler rompeu com o pacto de no agresso que assi- nara com Stlin em 1939 e marchou sobre a Unio Sovitica. Ao mesmo tempo, na sia, o Japo buscava expandir seus domnios: estava em guerra com a China desde 1937, e agora chegava at a Indochina. Em dezembro de 1941, o ataque japons base norte-americana de Pearl Harbor, ao buscar dizimar o poderio norte-americano e garantir seu domnio sobre o Pacco, acabou trazendo os Estados Unidos de Franklin Delano Roosevelt para a Guerra. At o incio de 1942, Alemanha, Itlia e Japo dominaram a guerra, executando uma contnua expanso e conquistando gigantescas e estratgicas regies da Europa, frica e sia. Mas, a partir de ento, iniciou-se a derrocada do Eixo (VICENTINO; DORIGO, 2005, p.450). As foras Aliadas encabe- adas pelos Estados Unidos e a URSS comeam a vencer as primeiras importantes batalhas: a vitria sovitica sobre os alemes em Stalingrado pode ser considerada um ponto de virada na Segunda Guerra Mundial, estabelecendo a primeira frente aliada que viria a marchar em direo a Berlim. No Pacco, os Estados Unidos conseguiram uma importante vitria sobre o Japo na batalha de Midway, passando a adotar uma postura ofensiva. A segunda frente aliada, atravs de foras anglo-americanas, marchou no norte da frica em 1943 em direo Europa; o controle do Mediterrneo possibilitou o desembarque na Itlia. A terceira frente, por m, foi estabelecida com o desembarque estadunidense na Normandia, norte da Frana, em 6 de junho de 1944 na operao conhecida como Dia D (VICENTINO e DORIGO, 2005). As trs frentes rumavam em direo Alemanha, o centro vital do Eixo. A vitria aliada na Europa j era irreversvel. Nos primeiros meses de 1945, pouco antes da rendio, tanto Hitler quanto Mussolini morreram o primeiro suicidou-se, o segundo, foi preso e fuzilado. O Exrcito Vermelho da URSS, com- pondo a primeira frente, marchou sobre Berlim e, a 1 de maio de 1945, hasteou a bandeira sovitica no Parlamento Alemo. J no Pacco, a guerra continuou por mais alguns meses. Ao mesmo tempo em que os Estados Unidos avanavam sobre as ilhas japonesas, os soviticos marchavam em direo a Manchria, regio no nordeste chins ocupada pelos japoneses. A rendio japonesa e o m do maior conito da his- tria da humanidade veio no dia 19 de agosto de 1945, pouco mais de uma semana depois de os Estados Unidos lanarem as bombas atmicas sobre Hiroshima e Nagasaki. O m da Segunda Guerra Mundial, especialmente, trouxe mudanas signicativas para o cen- rio internacional. A ascenso dos Estados Unidos da Amrica e a perda de poder dos antigos imprios europeus os mais atingidos pelo conito foram consequncias deste conito e tiveram um impac- 56 UFRGSMUNDI to direto nesta nova realidade. Nela, um sistema colonial outrora grandioso em meados do sculo XIX deixaria para trs vastos e populosos territrios, agelados pela decadncia de suas Metrpoles. Frana, Inglaterra, Holanda e Blgica j no conseguem manter os custos de gerenciamento de suas colnias quando tm o dever de recuperar-se da devastao que os assolou. Alm disso, os pases pertencentes ao Eixo Alemanha, Japo e Itlia tiveram suas colnias ultramarinas conscadas pelos vitoriosos. Tais territrios coloniais estavam extremamente propensos a conitos armados, uma vez que o poder central era inexistente ou enfraquecido. Desta maneira, o ps-guerra cria uma vastido de territrios rfos, cuja populao sofre com a falta de amparo do Estado (GILCHRIST, 1945). Esta veio a ser uma das principais questes a ser abordada pelos grandes lderes mundiais em 1945, ao passo que estes ansiavam pela paz e pela segurana em um novo mundo sob a gide de uma organizao internacional eciente. 2. AES INTERNACIONAIS PRVIAS As decises que sero tomadas na assinatura da Carta das Naes Unidas no aconteceram da noite para o dia. A Conferncia ser o resultado de um longo processo poltico no qual os pases pro- curavam obter vantagens e segurana para a sua populao. Por isso, devemos nos atentar ao fato de que, para entender a forma de como a Carta das Naes Unidas ser aprovada, necessrio analisar os documentos e as declaraes feitas antes da possvel assinatura da Carta em 1945. Porm, dada a grande quantidade destes, necessrio nos restringirmos apenas aos mais importantes e de maior impacto. A criao da Organizao das Naes Unidas tem como precedente uma tentativa de alcanar a paz mundial, a Liga das Naes, instituio criada aps a Primeira Guerra Mundial, a partir do Tratado de Versalhes. Com este tratado de paz, terminou ocialmente a Primeira Guerra e a Alemanha sofreu fortes punies por parte dos pases vitoriosos, o que acabou por coloc-la em runa econmica e social nos vinte anos seguintes, abrindo espao para ascenso de partidos de extrema-direita, liderado por Adolf Hitler (VISENTINI, 1996). Percebe-se assim que o Tratado de Versalhes falhou em seus objetivos de manter uma estabilidade mundial, pois somente favorecia os poucos pases vitoriosos, e a Liga das Naes no inclua todos os pases existentes naquele perodo (BERTRAND, 1995). Esse ltimo ponto, o fracasso da Liga das Naes, se deve, entre outros motivos, ao alto grau de divergncia que existia durante o Tratado de Versalhes. Todavia, as intenes existentes no Pacto da Liga das Naes referentes primeira parte do Trata- do de Versalhes merecem nossa ateno, devido sua grande importncia para a criao da Organizao das Naes Unidas. Nele havia o compromisso de criar uma Assembleia Geral, representando todos os pases, e um Conselho Executivo, cujos membros permanentes seriam somente as grandes potncias (HERZ; HOFFMAN, 2004). Deve-se ressaltar a importante atuao dos Estados Unidos nesse processo, principalmente do presidente Woodrow Wilson. A Liga das Naes representa um novo modelo de atua- o mais intervencionista dos Estados Unidos na poltica internacional, sendo uma forma de legitimar valores da democracia liberal ao resto do mundo (PECEQUILO, 2005). Todavia, as divergncias na poltica interna estadunidense inviabilizaram a continuidade dessas ideias no perodo entre as Guerras Mundiais. Junto com o Tratado de Versalhes, foram assinados, nos anos seguintes, vrios outros tratados que acabariam por congurar o Sistema de Versalhes (VISENTINI, 1996). Destaca-se dentre estes o Tratado de Washington em 1922, um exemplo de como os pases decidiram mensurar fora em uma poca na qual no existia ainda a bomba atmica. Como neste perodo o poder naval era, por conveno, o mais signi- cativo em relao ao poder terrestre e areo, este tratado procurou hierarquizar as grandes potncias por meio das suas frotas navais, para assim restringir a quantidade de navios militares no mar (MAGNOLI, 2004). Dessa forma, esse tratado ilustra a forma de como os pases mensuram o poder dos outros pases para assim, no momento da negociao, estipularem acordos que sejam aceitos por eles. Em 1928, foi assinado o Pacto de Kellogg-Briand, proposto pelos Estados Unidos e pela Frana. Este pacto estipulava a renncia da guerra como um meio de poltica internacional, ou seja, os pases no deveriam mais utilizar a guerra para resolver conitos com outros Estados (NYE, 2009). O Pacto foi assinado por todos os mem- bros da Liga das Naes e incorporado nas normas da Liga. O Sistema de Versalhes no garantiu a estabilidade mundial, que, em 1939, foi rompido pela eclo- so da Segunda Guerra Mundial. Neste conito, houve uma participao direta e indireta de todos os pases, afetando toda a populao mundial. Isso importante, pois, j que a guerra um meio para al- canar um objetivo poltico, todos os pases tinham em mente um tipo de ideal poltico para o futuro no ps-guerra. Os estadunidenses e os alemes, por exemplo, divergiam fortemente quanto sua concep- o do mundo. A viso de respeito autodeterminao dos povos e do territrio nacional, presente no 57 CSF 45 discurso do presidente estadunidense Woodrow Wilson em seus 14 Pontos, ser um valor compartilhado pelos Aliados durante a Segunda Guerra (PECEQUILO, 2005). O consenso sobre esses valores evoluir nas prximas conferncias, as quais conguraro o sistema das Naes Unidas, denominao que j vinha sendo usado em documentos ociais desde 1942. Os interesses dos Estados Unidos e de seus aliados, contudo, j podem ser vistos um pouco antes, a partir do contedo da Carta do Atlntico de 1941, assinada entre Estados Unidos e Inglaterra. Este docu- mento j pregura um mundo aps a guerra mundial. Em resumo, os seus oito pontos eram: 1) Nenhum ganho territorial seria buscado pelos Estados Unidos ou pelo Reino Unido; 2) Qualquer ajuste territorial deve estar de acordo com os desejos dos pases que o demarcam; 3) Os povos tm direito autodetermi- nao; 4) Barreiras comerciais devem ser excludas; 5) Deve haver uma cooperao econmica global e um avano do bem-estar social; 6) Os pases trabalhariam em prol de um mundo livre do medo da guerra; 7) Liberdade dos mares; 8) Desarmamento das naes agressoras (WAACK, 2008). Cabe destacar o ponto trs, pois alguns desses pases, como a Gr-Bretanha e os Pases Baixos, eram ainda imprios, possuidores de colnias. Concordar com esse princpio signicava na teoria concordar com desejos de indepen- dncia de suas colnias. Durante a guerra, um grande grupo de pases aderiu aos princpios dessa carta, lanando a Declarao das Naes Unidas contra o nazismo em 1942. A partir de ento, os princpios inseridos na Declarao das Naes Unidas sero retomados em todas as subsequentes conferncias de guerra. Na terceira Conferncia de Moscou, em 1943, onde foi emitida a Declarao de Moscou, os Estados Unidos, a Gr-Bretanha e a Unio Sovitica concordaram na ideia de que seria necessrio criar uma organizao internacional baseada no princpio de igualdade entre as soberanias dos pases. Na Conferncia de Teer, em 1943, alm de lanarem algumas bases de denies da partilha dos territrios no ps-guerra (a forma de como seria dividida a Alemanha), foi de- cidido que as foras estadunidenses interviriam na Frana (o conhecido Dia D), completando o cerco de presso Alemanha, juntamente com as foras orientais soviticas. Tambm nessa conferncia destaca- -se a diviso da Alemanha e as fronteiras da Polnia ao terminar a guerra. O lder sovitico Stalin queria de alguma forma manter os alemes subjugados por duas dcadas ou mais, j que este acreditava que a Alemanha conseguiria se reerguer em menos de trinta anos (OLIVEIRA, 2006). Quanto s fronteiras da Polnia, Stalin concordou com a linha Curzon uma linha de armistcio entre a Polnia e a Unio Sovitica, estabelecida ao nal da Primeira Guerra Mundial, e em torno da qual Stalin havia se acertado com Hitler (no acordo Germano-Sovitico) , mas exigiu que a Polnia fosse compensada com parte do territrio da Alemanha. A Conferncia de Dumbarton Oaks, ocorrida entre agosto e outubro de 1944, constituiu o pri- meiro passo importante tomado para executar o estabelecido na Declarao de Moscou de 1943. Os objetivos eram: 1) Tomar medidas coletivas ecazes, como acordos, para prevenir e remover ameaas paz e reprimir os atos de agresso ou outra qualquer ruptura da paz; 2) Desenvolver relaes amistosas entre as naes e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3) Desenvolver a cooperao internacional na soluo de problemas humanitrios econmicos e sociais; 4) Criar um centro institucional destinado a harmonizar a ao das naes para a consecuo desses objetivos co- muns (BERTRAND, 1995). Em outubro de 1944, os delegados concordaram em um conjunto preliminar de propostas (criao de uma Organizao Internacional Geral) para atender a esses objetivos. As discusses nesta conferncia sobre a construo institucional das Naes Unidas incluam quais Estados seriam convidados a se tornarem membros, a formao do Conselho de Segurana das Naes Unidas, para resolver os conitos globais pendentes, e o direito de veto que seria dado a mem- bros permanentes do Conselho de Segurana. Embora muitos objetivos tenham sido alcanados nesta conferncia, duas questes caram pendentes: o processo de votao no Conselho de Segurana e a presso sovitica para a admisso de todas as dezesseis das repblicas soviticas na Assembleia Geral. Alm disso, a delegao sovitica argumentou que cada nao deve ter um veto absoluto que poderia bloquear as questes antes mesmo de serem discutidas, enquanto a Gr-Bretanha argumentou que as naes no deveriam ser capazes de vetar resolues sobre os litgios em que elas estavam relacionadas (OLIVEIRA, 2006). O mtodo da votao no Conselho de Segurana foi deixado aberto em Dumbarton Oaks para discusso futura, ou seja, para a Conferncia de So Francisco. Para o Conselho de Segurana, foi decidido que Frana, Repblica da China, Unio Sovitica, Reino Unido e EUA seriam os membros permanentes do Conselho de Segurana. Os EUA tentaram adicionar o Brasil como um sexto membro, porm essa questo tambm no foi denida nesta conferncia (GARCIA, 2011). Tudo cou para ser re- solvido somente na Conferncia de So Francisco, em 1945. Mas antes desta importante conferncia acontecer, no balnerio sovitico de Yalta, Churchill, Roosevelt e Stalin reuniram-se no incio de fevereiro de 1945 e referendaram a xao da fronteira so- vitico-polonesa na Linha Curzon e a entrega dos territrios alemes Polnia, como indenizao pela destruio e pelo genocdio desencadeado pelos nazistas (WAACK, 2008). Os pases ocidentais concor- daram em conceder Unio Sovitica uma parte substancial da Polnia, deixando a xao dos limites 58 UFRGSMUNDI ocidentais do pas (isto , com a Alemanha) para uma futura conferncia de paz. Tambm permitiram aos soviticos a anexao dos Estados blticos Estnia, Letnia e Litunia, igualando o tamanho do territrio sovitico com o do Imprio Russo s vsperas da Primeira Guerra. O signicado maior, implcito na Conferncia, foi a chamada diviso de esferas de inuncia de acordo com a regio das grandes potncias. O que houve, concretamente, foi um acordo segundo o qual os pases vizinhos com a URSS na Europa no deveriam possuir governos antissoviticos, como forma de garantir suas fronteiras ocidentais. Quanto concesso do leste europeu aos soviticos, cabe destacar que nela j se encontrava o Exrcito Vermelho e que as guerrilhas lideradas pelos comunistas nacionais eram muito fortes na maioria dos pases dessa regio. Em outras palavras, estes j controlavam de fato a regio. J quanto a posio internacional dos pases do hemisfrio sul dentro do Sistema de Yalta nos revelado no apenas um confronto entre os dois blocos antagnicos (Leste x Oeste), mas tambm uma poderosa estrutura de dominao das potncias do Norte sobre os pases do Sul (VISENTINI, 1996). A subordinao dos pases perifricos em relao potncia dominante de seu prprio bloco (esfera de inuncia dos EUA ou da URSS) tornou-se um fator importante ao longo da evoluo do Sistema criado em Yalta. Neste sentido, a percepo de Yalta pelos pases do Terceiro Mundo difere signicativamente das interpretaes correntes no hemisfrio Norte. O Acordo de Yalta originou um Sistema Internacional bipolar protagonizado pelas superpotn- cias estadunidense e sovitica. Tratava-se tanto de um confronto entre dois sistemas sociais antagnicos quanto de um conjunto de regras (informais, ou seja, cada pas entendia o seu limite de atuao sem criar conitos) que regulava este antagonismo. Tambm em Yalta, um regime de tutela foi proposto para tomar o lugar dos sistemas de mandatos da Liga das Naes. Por m, as delegaes estadunidenses, britnicas e russas concordaram que cada um dos Grandes Cinco (EUA, Gr-Bretanha, Frana, URRS e China) po- deriam vetar qualquer ao do conselho, mas no resolues processuais (os membros permanentes no poderiam impedir o debate sobre uma resoluo). 3. APRESENTAO DO PROBLEMA 3.1. O CONSELHO DE SEGURANA A poca que imediatamente procedeu a Segunda Guerra Mundial foi consagrada pela criao de fortes consensos entre os Estados do sistema internacional. Talvez o mais importante deles diga respeito ao repdio ao uso da fora. Grandes lderes, assim como a populao em geral, percebiam que a livre agresso estatal direcionada a outro territrio unicamente resultava em saldos negativos em termos de perdas humanas e econmicas, ainda mais com a possibilidade de desencadear conitos em propores mundiais, como as duas Grandes Guerras. H, portanto, a noo geral de que a modernizao do con- ceito do Conselho Executivo da Liga das Naes seria desejvel. Este seria um importante primeiro passo para o estabelecimento de um rgo internacional responsvel pela segurana global. Desta forma, era importante que os erros do Conselho da Liga, que eventualmente levaram ao seu fracasso, servissem de lio para o futuro (HERZ; HOFFMANN, 2004). Primeiramente, o antigo rgo permitia a permanncia da lgica da balana de poder 7 como meio para atingir objetivos polticos. Ele no modicava o processo de tomada de deciso dos grandes lderes. Isto ocorria devido falta de assertividade por parte do Conselho, cujas resolues no eram obrigatrias, mas apenas de carter recomendatrio - signicando que, caso um Estado decidisse ir contra as reco- mendaes da Liga, no era esperado que houvesse qualquer sano ou punio contra ele. Segundo, sua abrangncia era deveras limitada para que suas decises teoricamente universais obtivessem o apoio requerido de todas as potncias do mundo. Deve-se ressaltar que, em uma poca de franca ascenso de poderes localizados fora da Europa, os Estados Unidos no participavam da Liga. Tal situao era ainda mais agravada com as subsequentes sadas de pases 8 . Por m, mesmo com este nmero limitado, o Conselho ainda era composto por quinze pases em seu pice, sendo que decises emitidas por este tinham como obrigatoriedade o voto favorvel de todos os membros. O consenso era, portanto, extre- mamente difcil de ser atingido em questes de maior relevncia (HERZ; HOFFMANN, 2004). 7 A balana de poder consistia no ato de um Estado forjar alianas estratgicas de modo a contrabalancear o poder de outro pas rival. Tal situao cria um cenrio de competio entre blocos, o que pode levar a um gradual aumento de tenses at o advento de um conito armado assim como no claro exemplo das Guerras Mundiais. 8 Como exemplo, a Alemanha e o Imprio Japons retiraram-se voluntariamente em 1933, enquanto a Unio Sovitica foi expulsa em 1939. 59 CSF 45 Assim, a necessidade urgente da criao de um novo e eciente instrumento para a imposio da paz por meio das capacidades de uma organizao internacional universal o principal motivo que leva as naes do mundo a se reunirem na Conferncia de So Francisco de 1945. Acreditava-se que a assertividade que faltava no Conselho da Liga das Naes seria obtida pela criao de uma sequncia de normas s quais todos os pases cariam subordinados. Atravs delas, seria estabelecido que a comunida- de internacional no mais aceitaria que naes utilizassem a fora umas contra as outras. O desrespeito a tais princpios acarretaria, em ltima instncia, na ao armada conjunta contra o agressor em questo. Estas normas idealmente obrigariam os Estados a resolverem todos seus litgios atravs do dilogo (HERZ; HOFFMANN, 2004). Negociaes racionais tomariam o lugar da barbrie da guerra. neste momento que os princpios do Direito Internacional ressurgem com toda sua fora. A noo do compartilhamento da responsabilidade de manter a estabilidade global seria concre- tizada atravs de um sistema de segurana coletiva, cujo principal objeto o ato guerra. A coletividade do sistema advm do compartilhamento da responsabilidade de manter a paz por todos os Estados. Sua coordenao seria feita atravs de um rgo da organizao. Visto que este rgo seria responsvel pela funo de maior importncia, ca claro que ele adquire um carter de grande fundamento, vital para o funcionamento geral de todo o aparelho organizacional. Desta maneira, imprescindvel para todos os Estados que sua viso seja considerada neste novo Conselho, visto que ele viria a regular a nova ordem internacional. H, basicamente, a ideia de administrao da segurana, ou seja, da criao de um novo rgo com plenas capacidades para enfrentar ameaas paz e segurana, promover o dilogo pacco entre as naes, buscar resolues moderadas para litgios, sancionar transgressores de normas contrrias agresso, organizar intervenes, promover estudos e investigaes acerca de questes relevantes para a manuteno global, regional ou local da paz, entre outros. Acima de tudo, h a ideia de um rgo com plenas capacidades de coao 9 . Como elucidado previamente, muito do funcionamento do chamado Conselho de Segurana j havia sido combinado entre as grandes potncias em conferncias como Yalta e Dumbarton Oaks. Em especial, existia o reconhecimento do papel especial dos Estados poderosos dentro do esforo coletivo para o estabelecimento de um regime pacco e institucionalizado. Utilizando outras palavras, seriam eles os principais responsveis pelos esforos em nome da convivncia pacca empreendidos na organiza- o. O smbolo mximo deste carter mpar das grandes potncias seria o seu direito exclusivo ao veto em processos de votao, assim como sua posio permanente dentro do Conselho de Segurana (como j dito, o rgo mais importante da Organizao). Segundo Herz e Hofman (2004), o veto funciona como um fusvel, congelando o processo decisrio quando h um perigo de colapso do sistema. Ou seja, o veto seria o elemento necessrio para que pontuais divergncias no impusessem obstculos intransponveis para o progresso dentro do Conselho. Visto que o Conselho de Segurana seria o centro do qual irradia- riam todas as decises mais importantes da organizao, travar suas conversas indenidamente signica- ria travar todo o sistema de segurana coletiva. Contudo, o veto e o assento permanente representariam uma contradio muito pertinente. Para os pases destitudos deste direito especial das grandes potncias, o veto uma afronta aos prprios princpios da organizao que se pretende criar em So Francisco. Percebe-se um claro paradoxo no fato de que, ao mesmo tempo em que o mundo rene-se em 1945 sob os preceitos da igualdade e da representatividade, uma minoria de Estados recebe importantes privilgios que outros no tero. Seria um atestado de que um conjunto de naes encontra-se em uma posio de superioridade em relao s outras. E h ainda o caso de outras naes que se veem injustiadas por constatarem que tambm mere- cem estes privilgios, como o caso especco do Brasil (GARCIA, 2011). Assim, mesmo tendo em mente a importncia das boas relaes com os lderes Aliados, uma boa parte das delegaes no contempladas no demonstra seu apoio a esta medida de existncia do poder de veto por alguns pases (STAIRS, 2005). Outro argumento contrrio ao veto respaldado nos antagonismos polticos-ideolgicos que j surgem entre as grandes potncias. Enquanto Estados Unidos, Inglaterra e Frana defendem o conjunto de valores baseados na liberdade, a Unio Sovitica defende os valores da igualdade. Por mais que no haja sinal de confrontao direta entre os dois grupos de pases, o estabelecimento de reas de inuncia sob diferentes blocos j uma realidade 10 . Dar o poder de veto para pases com vises antagnicas traz o risco de impedir a universalizao de determinados princpios que devem reger o bom funcionamento da organizao. Em outras palavras, os pases deveriam, em teoria, seguir uma linha de pensamento conjun- ta, mas as divergncias ideolgicas no permitiriam que isto se concretizasse. 9 Coao consiste em compelir algum ou alguma entidade a determinado ato pelo uso da fora, intimidao ou ameaa. 10 No continente europeu, por exemplo, observava-se a diviso competitiva entre as duas esferas. Com os pases da Europa devastados pela Guerra, era papel dos lderes Aliados dos Estados Unidos e da Unio Sovitica reconstruir estes centros industriais. Todavia, esta reconstruo garantia uma importante inuncia poltica e econmica sob os ajuda- dos. Assim, os pases da Europa Ocidental so captados pelos EUA e os da Europa Oriental pela URSS. 60 UFRGSMUNDI Uma perspectiva diferenciada sobre o assunto pode armar tambm que justamente este risco de paralisar o bom funcionamento da organizao que levaria os membros permanentes a procurarem sempre o consenso; dessa forma, a instituio do veto seria positiva. Se as grandes potncias sabem dos prejuzos da divergncia, elas deveriam ento evitar impasses a todo custo e buscar a cooperao. Ademais, existem outros mecanismos e prticas que poderiam abrandar o impacto que o veto possui. Caso sejam permitidas as abstenes nas votaes do Conselho, os Estados podem sabiamente escolher a alternativa menos drstica de no votar em vez de votar contrariamente e vetar (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1989). Por mais que as crticas s iniciativas prvias tomadas pelos Estados Unidos, Inglaterra, Frana, China e Unio Sovitica em relao estruturao do Conselho sejam numerosas e muitas vezes con- tundentes, os representantes destes pases dicilmente abriro mo desta posio privilegiada em So Francisco. Para eles, a manuteno de suas condies especiais frente aos demais membros essencial para a criao da organizao, armando at que este princpio no seria negocivel (HERZ; HOFFMANN, 2004). Tendo em vista este posicionamento inexvel, de se questionar o quanto valeria a pena retirar os poderes de veto das grandes potncias se isto acarretasse no desmantelamento dos esforos em direo ao sistema de segurana coletiva. Cabe aos delegados reunidos na Conferncia de So Francisco o questionamento acerca de di- versos aspectos do funcionamento do Conselho de Segurana, de certa forma vital para o vis que o rgo ter. Antes de tudo, de suma importncia que seja classicado o que para o Conselho constitui uma agresso. Considerando que este agir impositivamente no caso do uso da fora, importa delimitar quando que ele poder exercer suas capacidades de coao. Dada esta permisso, uma srie de incerte- zas procede. Primeiramente, no se sabe com qual fora militar que a misso de paz agir. De um lado, acredita-se que o ideal seja a criao de um exrcito internacional, que conte com a participao dos membros da organizao em propores equitativas. Esta estratgia, apesar de consolidar os ideais de igualdade entre as naes, envolveria tambm a movimentao tremenda de recursos para uma mobi- lizao a comear do zero. Por outro lado, necessrio reconhecer que poderosas e ecientes foras armadas j existem submetidas a determinados Estados. Desta maneira, talvez fosse mais interessante dar a autorizao do uso da fora para estas tropas por parte do Conselho. Todavia, argumenta-se que esta situao seria na prtica uma continuao do que j ocorria: uma interveno armada e legitimada dos mais fortes e capazes contra adversrios em posio de vulnerabilidade. Quanto a questes operacionais das misses do Conselho de Segurana, resta tambm apontar os detalhes de tecnicalidades pertinentes para o seu funcionamento. Uma vez que a interveno do rgo seja vista como necessria, uma anlise deve ser feita para que as dimenses das tropas utilizadas nas operaes sejam adequadas ao problema. Para que erros de clculo estratgico no sejam cometidos, importante que tal tarefa de anlise recaia sob um ator responsvel. Alm disso, h tambm a questo do comando destas foras, visto que tropas precisam de uma liderana ttica. Seria de responsabilidade do Conselho realizar a escolha dos comandantes mais aptos para as operaes. Porm, a mesma questo da escolha das tropas retorna: se seria melhor buscar a diversicao dos altos escales das tropas a servio do Conselho agregando, desta maneira, comandantes de nacionalidades variadas ou escolher lderes militares das grandes potncias, mais experientes. Tendo em mente que a funo do rgo evitar a qualquer custo que conitos armados entre Estados aorem e perturbem a estabilidade do sistema internacional, cabvel ressaltar a opo de aes preliminares por parte do Conselho de Segurana, ou seja, agir antes da catstrofe para evit-la. Se a comunidade internacional percebe que determinada regio do globo est em uma situao de guerra iminente, resta a dvida da validade de operaes contra um Estado agressor que nem ao menos come- teu o ato de agresso ainda. Estas poderiam facilmente ser vistas como imperialistas aos olhos de pases que clamam pela autonomia e igualdade das naes. Evidncias histricas demonstram que este tipo de ataque ou de defesa, dependendo da concepo pode tanto implicar em graves erros estratgicos, como perdas humanas, quanto ser considerado uma escolha racional para a manuteno da paz. Neste contexto, relevante ponderar acerca de diferentes medidas de sano no militar contra agressores que possam evitar o uso da fora direta por parte da organizao. Tais medidas poderiam ter o poder de pacicamente constranger as aes agressivas de Estados ao coloc-los em complicadas situa- es econmicas e polticas. Exemplicando, poderiam ser realizados embargos econmicos, boicotes a eventos, quebra de relaes diplomticas, restries polticas, isolamento de telecomunicaes, entre diversos outros. Novamente, cabe a discusso acerca da ecincia e validade destas medidas, tendo as aes militares como parmetro. Por m, restariam os possveis casos em que Estados clamariam pela ajuda do Conselho dentro de seu territrio em questes percebidas como subversivas paz domstica e com potenciais consequn- cias negativas internacionalmente. Considerando suas pesadas responsabilidades dentro do sistema de 61 CSF 45 segurana coletiva, difcil estabelecer se deveria o Conselho agir com misses de observao e de ma- nuteno da paz ou se este deveria focar-se em situaes mais graves de agresso entre Estados; logo, a discusso sobre essa questo tambm relevante. Por ser a coexistncia de diferentes vises acerca dos moldes a serem assumidos pelo Conselho de Segurana um assunto de tamanha importncia, deve haver muita cautela, diplomacia e estratgia para que todos os delegados presentes na Conferncia de So Francisco saiam desta com algum grau de satisfao com a deciso nal. Novamente, destaca-se que qualquer Estado que obtiver a prepondern- cia de suas respectivas polticas externas sob a construo do Conselho assumir uma posio de grande privilgio poltico no mundo do ps Guerra, sendo assim vital que cada delegado defenda as instrues dadas por seus governos nacionais com mpeto e determinao. 3.2. A QUESTO DA TUTELA Como esclarecido anteriormente, o colonialismo surgiu no sculo XVI como uma forma de ex- panso do poderio europeu para alm de suas limitadas fronteiras. Aps amadurecimento, este sistema veio a representar uma fonte vital de ganhos econmicos para as Metrpoles. Estes territrios possuam aquilo que era de mais vantajoso para o fortalecimento do Estado-nacional europeu: recursos naturais abundantes que serviam como matria-prima, mo de obra barata e volumosos mercados consumidores para produtos industrializados produzidos na Europa. Com as grandes guerras, no entanto, o poderio das potncias sobre seus imprios coloniais enfraquece e diversos movimentos de emancipao comeam a surgir. Mesmo antes do trmino das Guerras, j se falava acerca da importncia do autogoverno de todas as naes. O princpio jurdico de autodeterminao dos povos surge para dar fora a esta ideia. Segundo este, os povos possuem o direito a sua prpria soberania se assim desejarem, podendo emancipar-se do controle econmico e poltico estrangeiro. Os Estados Unidos foram os grandes defensores deste princ- pio, tendo os pases recm-independentes ou ainda colonizados como seus seguidores. Aps seu papel central na vitria dos Aliados, resultando em vultuosos ganhos econmicos, seus ideais liberais estavam em franca expanso. Se por um lado a autodeterminao teoricamente permitia maior autonomia aos povos, melhores condies de vida e preservao de sua cultura local, estes tambm estavam sujeitos ao comrcio internacional liberalizado. Outrora, colnias eram obrigadas a comercializar somente com suas Metrpoles, atravs de contratos de exclusividade. Uma vez independentes, poderiam comercializar com o pas que lhes desse as condies mais favorveis de troca papel que poderia prontamente ser exercido pelo gigante norte-americano. Desta forma, ca clara que a defesa autodeterminao possui dois lados de interesses: o estadunidense e o das antigas metrpoles (ZUCATTO et al, 2013). A tutela internacional surge como uma possvel soluo para a obteno do autogoverno. A par- tir de um sistema regulamentado por uma organizao internacional da qual poderosos Estados fazem parte, as colnias podem obter a ajuda necessria para a obteno da sua autonomia (GILCHRIST, 1945). Tal ideia foi levada adiante na Liga das Naes, sob a Comisso Permanente de Mandatos. Seu principal objetivo era dar um status legal para colnias que haviam sido separadas de suas respectivas Metrpoles. Ao tornar estes territrios seus Mandatos, a Liga procurava assim evitar o embate entre os poderes impe- riais europeus pelo domnio estratgico destes vazios de poder. Pode-se dizer, portanto, que o objetivo principal da Comisso no era tanto o bem-estar das populaes dos Mandatos, mas sim o apazigua- mento de possveis conitos. Nota-se, alm disso, que em momento algum a Liga questionava o sistema colonial 11 o que era enfatizado pela ausncia de membros fora do continente europeu que exercessem algum poder de inuncia relevante nas decises tomadas pela organizao (FOX, 1950). Em 1945, a questo dos territrios no autogovernveis e dependentes surge novamente frente a Conferncia de So Francisco. Aproximadamente 750 milhes de pessoas, quase um tero da populao mundial, vivem nestes territrios atualmente (ONU, 2014). Frana, Inglaterra, Blgica, Holanda, Espanha, Portugal, Itlia, Dinamarca, frica do Sul, Austrlia e Nova Zelndia so detentores de colnias. Segundo H. Duncan Hall (1948 apud FOX, 1950) Mandatos e tutela internacional esto enraizados no declnio e na queda de imprios, na expanso de Estados em reas fracas e atrasadas, na rivalidade dos Estados, em es- feras de interesses, e na balana de poder - exatamente o cenrio do ps-guerra. Os Estados Unidos e a Unio Sovitica esto sucientemente fortalecidos para questionar o poderio europeu sob suas colnias e veem a modernizao do tradicional sistema colonial como uma necessidade urgente. Entretanto, os pases da Europa Ocidental esto preparados para resistir o mximo possvel a qual- quer tentativa de internacionalizao dos assuntos coloniais, ainda levando em considerao todas as 11 Sob determinado ponto de vista, as aes da Comisso Permanente de Mandatos poderiam ser interpretadas como uma nova forma de colonizao, na medida em que este dava s potncias europeias o direito de administrao de certas reas perifricas como foi o caso da diviso do Oriente Mdio entre Frana e Inglaterra mediante o Acordo de Sykes-Picot em 1916, aps a queda do Imprio Otomano. 62 UFRGSMUNDI mudanas j citadas (FOX, 1950). Para eles, mesmo com suas capacidades administrativas enfraquecidas, no interessante perder tais fontes de renda dedicadas exclusivamente a seus centros nanceiros e tambm reas estratgicas para suas bases militares. Inglaterra, Frana e Blgica, que por anos lucraram com a explorao dos recursos naturais de suas colnias, no tm motivos positivos para apoiar a inde- pendncia dos territrios. Alm disso, consideram o discurso norte-americano e de seus aliados (China, Austrlia, Nova Zelndia) de apoio a um sistema que interferisse na administrao colonial uma afronta soberania europeia. Armam ainda que desejoso aos prprios territrios dependentes manterem- -se sob seu controle, visto que este controle lhes dava, segundo sua concepo, estabilidade poltica e econmica. A partir deste momento, em que o interesse nas colnias no ca mais connado Europa e os poderes coloniais se tornam uma minoria poltica, h o desaparecimento do consenso em relao poltica colonial, dando lugar divergncia (FOX, 1950). Deve-se ressaltar, porm, que por mais que as ideias liberais norte-americanas questionem um sistema j enraizado e consolidado da poltica europeia, necessrio que a Europa e os Estados Unidos permaneam fortes aliados polticos. O continente devastado precisa de ajuda econmica para se reer- guer e ganhar de volta parte de seu poder industrial. J os norte-americanos veem os europeus ociden- tais como aliados indispensveis no combate expanso do comunismo alm dos enormes ganhos econmicos para os EUA que a reconstruo dos polos industriais europeus acarretaria, principalmente por constiturem importante mercado produo estadunidense. Assim, concesses devem ser feitas para que as boas relaes permaneam. H ainda que se mencionar o papel das naes subdesenvolvidas neste processo, que neste mo- mento de intensa agitao poltica no deixam de vociferar suas opinies perante a comunidade interna- cional. Pases da sia, frica, Oriente Mdio e Amrica Latina, anteriormente colonizados pelos imprios europeus, esto livres para discursar na Conferncia de So Francisco. Todas as experincias negativas sofridas por sua populao durante seu perodo de dependncia serviro agora de combustvel para in- amadas denncias e acusaes. Apesar de no terem sua economia necessariamente beneciada com polticas de abertura comercial tendo em considerao seu atraso no processo de industrializao 12
, estes pases so fortes aliados do discurso liberal de autodeterminao. Para eles, debater em um organismo internacional representa sua chance de demonstrar sua relevncia poltica. ainda de suma importncia que as grandes potncias reconheam a superao do modelo de colnia de explorao e concedam a tutela ou a independncia formal. A questo da tutela , portanto, um assunto frgil a ser debatido na Conferncia, sujeito a opinies altamente divergentes. Um fato que contribui para esta noo de iminente discordncia a falta quase total de pr-levantamentos sobre o que poderia ser acordado na reunio (GILCHRIST, 1945). Ao contrrio das discusses sobre o Conselho de Segurana, sobre o qual muito j se tem estabelecido atravs dos encontros anteriores entre as grandes potncias, quase nada foi combinado sobre o sistema de tutela e seu funcionamento. O encontro das grandes potncias em Dumbarton Oaks, to importante para os ar- ranjos do j mencionado Conselho de Segurana, no possua a tutela em sua agenda de tpicos a serem discutidos. A Conferncia de Yalta foi uma exceo por deixar elucidada uma importante questo: quais ter- ritrios estariam sujeitos ao sistema de tutela. Seriam estes os territrios que i) estavam mantidos sob Mandato da Liga das Naes aps a Primeira Guerra Mundial, ou ii) foram separados de Estados inimi- gos como resultado da Segunda Guerra Mundial, ou iii) fossem voluntariamente colocados no sistema pelos respectivos Estados de sua administrao (ONU, 2014). Destas condies, ca claro que nenhum territrio estaria sob tutela automaticamente; h a necessidade de consentimento por parte dos poderes coloniais. Por um lado, isto representa uma vitria para a Europa, uma vez que seus pases no seriam obrigados a internacionalizar suas colnias e no haveria intromisso em seus assuntos econmicos. Por outro, a mera existncia de um sistema de tutela aberto a receber territrios dependentes, cuja populao reconhecidamente possui o direito ao autogoverno, j o bastante para exercer uma importante presso poltica sob os europeus. Caso se siga o princpio da no obrigatoriedade da colocao de territrios sob tutela internacio- nal, seria direito das potncias coloniais no somente das europeias conservar determinadas reas sob seu domnio armado, alegando questes de segurana nacional e internacional. Tendo em vista que a organizao internacional planejada pelos grandes lderes busca acima de tudo a paz e a segurana in- ternacional, no faria sentido desmilitarizar uma rea potencialmente instvel em nome do autogoverno. Ao passo que a Comisso Permanente da Liga das Naes pregava pela desmilitarizao de territrios sob Mandatos, o novo mundo regido por um sistema de segurana coletiva que no deseja novamente pre- senciar a escalada de conitos armados pode buscar mais cautela (GILCHRIST, 1945). Assim, cabe avaliar 12 Crticos corrente do liberalismo econmico advogam que a abertura comercial irrestrita prejudicial indstria de pases em desenvolvimento, visto que esta se torna dependente da importao de bens industrializados (como mqui- nas e produtos ricos em tecnologia) e, assim, no desenvolve sua capacidade produtiva autnoma. 63 CSF 45 se permitir a manuteno de tropas em regies de alta tenso e possibilidade de conito ser vlido pelos princpios da nova Organizao. A Conferncia de So Francisco, portanto, torna-se o principal palco onde o sistema internacio- nal de tutela ser construdo. Para que este venha a ser efetivo na erradicao das mazelas que asso- lam populaes dependentes, necessrio que o sistema v alm do que foi estabelecido na Comisso Permanente de Mandatos da Liga das Naes, explorando os limites de seu poder (FOX, 1950). Todavia, tais avanos no devem extrapolar normas preestabelecidas de convivncia internacional. O sistema de tutela deve exercer o papel de superviso dos territrios sem autogoverno para que estes possam obter autonomia. Esta superviso pode vir a ser feita por meio de visitas, relatrios, questionrios, entrevistas, coletas de dados, pesquisas, observaes, entre outros; mas importante que em nenhum momento sua ao deva ser interpretada como uma afronta soberania de um determinado Estado. Ademais, ainda existe a necessidade de criar-se um rgo administrativo para coordenar as aes do sistema de tutela, um Conselho. Este rgo ocuparia uma posio de suma importncia em uma organizao internacional, uma vez que exerceria uma funo separada de outros organismos dentro desta. Desta maneira, sua composio tambm um assunto de primeira importncia e que exige cau- tela. Como mencionado anteriormente, um dos motivos pelo qual a Comisso Permanente no era am- plamente efetiva se devia participao de um nmero muito limitado de Estados em seus assuntos. Para a expanso de suas funes, um conselho administrativo do sistema de tutela efetivo daria voz a atores relevantes do sistema internacional, com menos limitaes atuao destes. Os delegados reunidos na Conferncia de So Francisco so encarregados por seus governos nacionais a criar um sistema internacional de tutela dentro de uma nova e promissora organizao inter- nacional. Tal ato trar satisfao para a comunidade internacional, pois ter o reconhecimento do direito de todos os povos ao autogoverno e ao bem-estar, restringindo as mazelas de um antiquado sistema co- lonial exploratrio. Apesar disso, os Estados reunidos na Conferncia divergem em muito sobre a forma como tal objetivo ser atingido e devem encontrar pontos de convergncia para que possam estabelecer de fato um eciente sistema de tutela. 3.3. A ASSEMBLEIA GERAL Em meio s provveis controvrsias a serem levantadas durante a Conferncia de So Francisco, cabe ressaltar as questes acerca do funcionamento e da constituio de outro dos principais rgos da nova Organizao: a Assembleia Geral. Da mesma forma que o Conselho de Segurana e o Conselho res- ponsvel pela tutela sero criados a partir da modernizao de suas contrapartes previamente existentes na Liga das Naes, a Assembleia tambm possui a necessidade de renovao. Na Liga, este rgo con- tava com a participao de todos os Estados-membros. Neste espao, eram discutidos tpicos variados acerca dos assuntos administrativos questes oramentrias e coordenao de agncias e comisses auxiliares e responsabilidades da organizao para com a manuteno da paz. Acredita-se que tais moldes devam ser seguidos em linhas gerais e que a ideia de igualdade de todos os Estados perante as normas do Direito Internacional deva ser reforada neste mbito (HERZ; HOFFMANN, 2004). Todavia, existem diferenas pontuais acerca do que esperado desta nova Assembleia em relao antiga em termos de estruturao. Suas funcionalidades seguem praticamente inalteradas. Por outro lado, sua composio, seu processo decisrio e seu peso dentro da Organizao so objetos de ateno em 1945. No passado, as resolues da Assembleia s eram aprovadas mediante a aprovao de todos os membros do rgo, ou seja, todos os membros da Liga das Naes. Conforme elucidado anteriormente, tal forma de deciso pode ser prejudicial pela diculdade de se obter o consenso entre um nmero ele- vado de representantes. Assim, cabe a reexo acerca da validade de um processo decisrio que presa pela unanimidade ou pela vitria da maioria. Alm disso, apesar de muitos pases expressarem sua inteno de fortalecer o papel da Assembleia no sistema de segurana coletiva e, consequentemente, dar mais poder a todos Estados-membros e au- mentar a sua representatividade, esta uma ideia que encontra resistncias (STAIRS, 2005). de viso de determinados Estados, notavelmente da Unio Sovitica, que assuntos direta e indiretamente relaciona- dos segurana internacional devem ser debatidos dentro do Conselho de Segurana, onde as grandes potncias possuiriam o seu poder de veto e, possivelmente, encontrariam menos opinies divergentes para lidar. Ao contrrio do Conselho de Segurana, que, segundo a vontade expressa pelos principais lderes mundiais, ter o poder de criar resolues vinculantes 13 , surge a proposta das decises da Assembleia 13 Uma resoluo vinculante implica na obrigatoriedade de todos os signatrios a seguir o que consta no documento ocial, com de punies caso ocorra o contrrio. 64 UFRGSMUNDI seguirem sendo de carter recomendatrio. Em outras palavras, aps discutir temas relevantes para a es- tabilidade do sistema internacional como questes de alimento, sade, condies de trabalho, imigra- o, agricultura, escravido, etc. o documento nal confeccionado a partir destas reunies serviria para expressar a viso das partes envolvidas acerca do assunto e, aps, recomendar prticas para melhor lidar com o problema (HERZ; HOFFMANN, 2004). Neste caso, a anlise a ser realizada recai sob a importncia de seguir tal proposta ou de dar mais poder ao rgo de maior representatividade da nova Organizao, reforando a norma de igualdade baseada na soberania, versus a praticidade de se resolver assuntos de grande urgncia ou relevncia em um espao mais restrito e, em teoria, mais eciente. Por m, a questo da composio da Assembleia tambm objeto de deliberao, tendo em vista as controvrsias existentes em relao a determinados Estados que desejam participar como membros plenos deste rgo e encontram devida oposio. Primeiramente, existe a controvrsia acerca da adeso da Argentina. Este pas, ao contrrio de todos os outros que estaro presentes na Conferncia de So Francisco, no havia declarado guerra contra as foras do Eixo at o ano de 1945, decidindo manter a neutralidade at ento 14 . Tal posicionamento visto com extrema desconana pelos lderes Aliados, que advogam por manter afastado do sistema de segurana coletivo um pas potencialmente subversivo nova ordem mundial. Para os pases latinos, entretanto, de suma importncia que um dos maiores e mais poderosos pases da Amrica Latina seja devidamente representado na Assembleia e, consequente- mente, na Organizao. Em segundo lugar, est o problema da adeso das repblicas soviticas da Ucrnia e da Bielorssia. Segundo a viso dos pases ocidentais, estas repblicas simplesmente no possuem autonomia suciente para serem considerados soberanos e, por conseguinte, Estados. Logo, no faria sentido juridicamente que ambos faam parte da Assembleia e obtenham poder de voto. Todavia, percebendo que a Confe- rncia conta com a participao de um nmero alarmante de pases que se identicam com o discurso capitalista e podem posicionar-se contra os interesses soviticos, a Unio Sovitica e seus aliados dese- jam que o maior nmero possvel de pases de seu bloco tenha seu lugar assegurado na Assembleia e, portanto, insistiro neste quesito. 4. POSICIONAMENTO DOS PASES As naes da Amrica Latina Argentina, Bolvia, Chile, Colmbia, Costa Rica, Cuba, Guate- mala, Honduras, Mxico, Nicargua, Paraguai, Repblica Dominicana, Uruguai e Venezuela posi- cionam-se de maneira similar no transcorrer da Conferncia de So Francisco. Dentre outros assuntos relevantes, como os acordos relacionados assistncia recproca em questes de segurana, a Confe- rncia de Chapultepec, realizada em territrio mexicano apenas alguns meses antes das tratativas de So Francisco, serviu para que os pases dessa regio denissem as diretrizes conjuntas que seriam defen- didas durante a construo da Carta das Naes Unidas. Este alinhamento concedeu signicncia para as propostas encaminhadas por estes pases, j que contavam com um total de vinte participantes dos cinquenta e um presentes. No que diz respeito ao Conselho de Segurana, apesar de manifestarem apoio criao do r- go, entendem que algumas mudanas poderiam ser feitas ideia inicial: o poder de veto deveria ser destitudo, e um pas latino-americano adicionado a seus membros permanentes. Alm disso, manifestam concordncia com uma Assembleia Geral de poder reforado, suporte criao do Conselho de Tutela e aprovao manuteno da importncia das organizaes regionais. Por m, consideram indispensvel que a Argentina tenha a oportunidade de participar das Naes Unidas como um de seus membros fun- dadores, mesmo que estivesse envolvida na controvrsia de ter se mantido neutra ao longo de grande parte da II Guerra Mundial, tendo cedido aos anseios internacionais apenas no nal do conito, quando demonstrou apoio aos Aliados (KRASNO, 2001). Assim como os latino-americanos, os pases rabes Egito, Iraque, Lbano e Sria tambm se articularam previamente Conferncia, construindo uma perspectiva muito prxima quanto maioria dos temas que sero tratados. No mbito da recm-formulada Liga rabe, decidiram apoiar a existncia do poder de veto para os membros permanentes do Conselho de Segurana, defender a concepo de uma Assembleia Geral mais relevante no contexto das Naes Unidas e argumentar a favor de um Conse- lho de Tutela que promova gradativamente a independncia poltica dos territrios sob seu mandato. As 14 Os motivos pelos quais a Argentina decidiu manter tal posio so fonte de controvrsia, mas, em geral e de maneira simplicada, aponta-se a simpatia de determinadas faces dentro do pas com ambos os blocos Aliado e do Eixo, alm dos ganhos econmicos em comercializar com as duas partes sem restries ideolgicas. 65 CSF 45 naes rabes tambm chegam a So Francisco com outro marcante interesse comum: o de que tanto a Sria, quanto o Lbano, tivessem garantias de que a Frana no tentaria, atravs do Conselho de Tutela, recolocar ambos os pases sob uma situao de dependncia em relao a ela (JAMALI, 1988). Vale, ainda, ressaltar a postura egpcia de considerar que os membros no-permanentes do Conselho de Segurana deveriam ser escolhidos de acordo com o princpio da distribuio regional (STAIRS, 2005). A China, que ainda se preocupa com a ameaa japonesa no Pacco, defende principalmente dois pontos. O primeiro a defesa do poder de veto para os membros permanentes do Conselho de Segurana. O segundo o consentimento em relao formulao de um Conselho de Tutela que coor- dene a administrao de territrios sem a capacidade do autogoverno, tendo como objetivo central que esses territrios alcanassem a emancipao poltica (KRASNO, 2001). J a URSS, prestigiada pelo papel decisivo que vem tendo para a derrota das foras do Eixo, concorda tanto com o poder de veto irrestrito no mbito do Conselho de Segurana, quanto com a constituio de um Conselho de Tutela que, assim como pensavam os chineses, objetive a independncia dos territrios sob seu mandato. Ademais, apoia de sobremaneira a presena na futura Organizao das duas repblicas soviticas permitidas em So Francisco Ucrnia e Bielorrssia , alm da Repblica da Checoslovquia, como forma de tentar equilibrar a composio dos participantes das Naes Uni- das num contexto internacional que j se encaminha para a bipolaridade (KRASNO, 2001). Entretanto, mostrava-se contrria adeso Argentina entidade. Segundo os soviticos, s deveriam ser permitidos como membros aquelas naes que tivessem declarado guerra contra o Eixo at o primeiro dia de maro do ano de 1945, caso em que a Argentina no se encaixa. Tanto as Filipinas quanto a Etipia consideram-se as defensoras dos interesses dos pases que ainda enfrentam o domnio colonial. Ambas acreditam na capacidade das Naes Unidas de construir uma nova ordem mundial mais justa e igualitria e na possibilidade do Conselho de Tutela agir em prol do desenvolvimento socioeconmico e da emancipao poltica no somente dos territrios sem governos prprios, como tambm daqueles que continuam sob o status de colnia. Os dois pases ainda partilham da resistncia quanto concesso do poder de veto aos membros permanentes do Conselho de Segu- rana (KRASNO, 2001). As Filipinas tambm demonstram simpatia ideia de o princpio da distribuio regional permear a escolha dos membros no permanentes do Conselho de Segurana. J a Etipia cor- robora a concepo de uma organizao internacional com primazia sobre as regionais. Embasado no princpio da funcionalidade e na noo do poder intermedirio, o Canad vai a So Francisco com o propsito de tornar-se importante no contexto das Naes Unidas (STAIRS, 2005). Divi- dido entre um alinhamento com o Reino Unido e com os Estados Unidos, o pas defende que os membros permanentes do Conselho de Segurana tenham acesso a um poder de veto restrito ou seja, que no permitisse a sua aplicao a questes processuais , enquanto que a Assembleia Geral seja revigorada. Ademais, acredita que a entidade deva promover polticas inclusivas, que oportunizem a todos os seus membros a participao efetiva no seu funcionamento. A Repblica Federativa do Brasil defende sua candidatura como membro permanente do Con- selho de Segurana, alm de se opor a concesso do poder de veto aos membros permanentes, pois acredita que a Assembleia Geral, onde o voto de todos os membros possui o mesmo peso, se tornar praticamente obsoleta. Com base nessa preocupao, o Brasil prope um mecanismo automtico de re- viso da Carta pela Assembleia Geral, a ser ativado a cada cinco anos, tornando a nova organizao mais democrtica. O Brasil tambm advoga por um Conselho de Tutela que busque, alm da transio para o autogoverno de territrios administrados internacionalmente, a independncia de fato e de direito dos mesmos (HAAG, 2014). Sobre a composio e formato do Conselho de Segurana, a Repblica Francesa defende sua candidatura como membro permanente, bem como o poder de veto exclusivo aos membros permanen- tes. A Frana defende a criao do Conselho de Tutela, porm com a restrio de seus mandatos, de for- ma que sejam mantidos os mesmos da antiga Liga das Naes e que territrios coloniais sejam mantidos sob controle de suas respectivas metrpoles. Conforme acordado em conferncias anteriores com os pases lderes dos Aliados, os Estados Unidos da Amrica tratam como essencial o estabelecimento do poder de veto exclusivo aos membros permanentes, sob risco de no aprovao da Carta em seu Senado. Defendem tambm a incluso da Re- pblica Popular da China e da Repblica Federativa do Brasil como membros permanentes do Conselho de Segurana. Propem, ainda, a criao do Conselho de Tutela como uma via para a progressiva desco- lonizao mundial. A m de reduzir custos do policiamento da Europa e da sia e de auxiliar na manuteno da or- dem nos dois continentes, o Reino Unido da Gr-Bretanha e da Irlanda do Norte defende a incluso da Repblica Popular da China e da Repblica Francesa como membros permanentes do Conselho de Se- 66 UFRGSMUNDI gurana, bem como a concesso do poder de veto para aqueles detentores de tal status. O Reino Unido pouco exvel quanto reduo dos poderes do Conselho de Segurana, e ainda defende a criao do Conselho de Tutela, porm com a restrio de seus mandatos, de forma que sejam mantidos os mesmos da antiga Liga das Naes e que territrios coloniais sejam mantidos sob controle de suas respectivas metrpoles (HAAG, 2014). A Comunidade da Austrlia, Nova Zelndia, Repblica da ndia, Repblica da frica do Sul tem, por um lado, a cincia de que a concesso do poder de veto aos membros permanentes do Con- selho de Segurana tornar ainda mais fracos os pases de menor expresso no cenrio internacional durante negociaes multilaterais, mas, por outro, acreditam que a existncia do poder de veto pr-re- quisito para que as grandes potncias levem o projeto da nova organizao adiante. Portanto, os pases citados apoiam o estabelecimento do poder de veto, mas esto abertos a discusso de propostas alterna- tivas, assim como o fazem quanto questo da criao do Conselho de Tutela, que dever trabalhar para a progressiva independncia, de fato e de direito, de territrios que atualmente no se autogovernam. Defendem a restrio dos mandatos do Conselho de Tutela aos territrios j mandatados pela antiga Liga das Naes, de forma que a os processos de descolonizao de outros territrios se resolva bilateralmen- te, entre colnia e metrpole (STAIRS, 2005). O Reino da Blgica e os Pases Baixos, assim como a Repblica Francesa, defendem a restrio dos mandatos do Conselho de Tutela aos territrios j mandatados pela antiga Liga das Naes, de forma que os processos de descolonizao de outros territrios se resolvam bilateralmente, entre colnia e me- trpole. Defendem, tambm, o estabelecimento do poder de veto exclusivo aos membros permanentes do Conselho de Segurana. A Repblica Socialista Federativa da Iugoslvia defende a proposta do poder de veto exclusivo aos membros permanentes do Conselho de Segurana, porm com a ressalva de que o poder de veto no deve submeter decises administrativas da Assembleia Geral, como, por exemplo, o encaminhamento de pautas ao Conselho de Segurana. A Iugoslvia defende tambm a criao do Conselho de Tutela, rgo que dever ser importante para combater a colonizao, a qual est presente, principalmente, na frica e na sia. A Repblica Helnica (Grcia) e o Reino da Noruega apoiam a proposta de poder de veto exclu- sivo aos membros permanentes do Conselho de Segurana, pois acreditam que a responsabilidade pela manuteno da paz de todos, mas o fardo de policiais do mundo recai sobre os pases mais poderosos, que devem possuir poder poltico equivalente ao de ao militar. No tocante descolonizao, repudiam pases europeus que ainda possuem colnias na frica e na sia, e veem o Conselho de Tutela como re- ferncia para a descolonizao mundial (POLYDORAKIS, 2014). REFERNCIAS BERTRAND, Maurice. A ONU. Petrpolis: Vozes, 1995. BLAINEY, Geofrey. Uma breve histria do sculo XX. So Paulo: Editora Fundamento Educacional 2010. FOX, Annette Baker. The United Nations and Colonial Development. International Organization: v. 4, n. 2, p. 199-218, mai. 1950. 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So- bre a fundao do Conselho de Tutela, entram em pauta diversos aspectos do neocolonialismo: a continuidade de prticas consideradas exploratrias pelos grandes imprios dentro da conjuntura da crescente valorizao da soberania estatal a todos povos que anseiam por autonomia. A fundao do Conselho de Segurana rene questes acerca dos futuros moldes de um sistema de segurana coletiva a ser implantado em uma poca na qual acredita-se na superao dos conitos armados para a resoluo de disputas polticas e na proibio do uso da fora pelo Direito Internacional. Todavia, ambos os assuntos levanta divergncias entre os pases parti- cipantes, diferenas as quais incidem diretamente na constituio da Organizao. 68 UFRGSMUNDI CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIA Mandado de Priso: Repblica Democrtica do Congo x Reino da Blgica Bruna Leo Lopes Contieri 1
Diego Bortoli 2 Giovana Hof 3 Vitria Maturana 4
PARTE I 1. HISTRIA DA CORTE Em 1945, a Carta das Naes Unidas criou a Corte Internacional de Justia (CIJ), mas esta s comeou a funcionar um ano depois (art. 7 da Carta da ONU). A Corte o principal rgo judicirio da Organizao das Naes Unidas (ONU) e a sua sede ca em Haia, Holanda (art. 92 da Carta da ONU). O objetivo desse rgo resolver, em conformidade com o Direito Internacional, as disputas entre Estados, alm de fornecer opinies consultivas sobre questes legais, requisitadas por agncias ou outros rgos da ONU (PELLEGRINO, 2008). O Estatuto da CIJ baseado no da Corte Permanente de Justia Interna- cional, principal tribunal da Liga das Naes, uma das razes pelas quais a Corte Internacional de Justia considerada sucessora da CPJI. O Estatuto o nico anexo da Carta da ONU e nele cam dispostos os objetivos, os meios e a organizao da Corte. Conforme o artigo 95, a Corte Internacional de Justia no o nico rgo de justia internacional e podem existir outros, como, por exemplo, o Tribunal Penal Internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que pertence Organizao dos Estados Americanos (OEA). 2. ORGANIZAO DA CORTE A Corte composta por 15 juzes de nacionalidades diferentes, os quais so eleitos para mandatos de nove anos pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurana da ONU, em eleies que acontecem simultaneamente (PELLEGRINO, 2008). Esses juzes devem representar os principais sistemas legais e for- mas de civilizao do mundo. Eles no representam, no entanto, seus governos nem suas nacionalidades. Cada juiz se compromete a exercer seus poderes de modo imparcial e a propor a melhor soluo para cada caso. Quando algum Estado 5 torna-se parte 6 de um caso perante a Corte Internacional de Justia, ele tem direito a um juiz com a sua nacionalidade para participar dos trabalhos. Se no houver um no corpo permanente, ou seja, dentre aqueles que atuam diariamente em todos os casos da Corte, esse Es- 1 Graduanda do 5 semestre de Relaes Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing- Sul e do 3 semestre de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2 Graduando do 3 semestre de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Graduanda do 3 semestre de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Graduanda do 7 semestre de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 5 Estado, quando com letra maiscula, sinnimo de pas. 6 Um ou mais Estados tornam-se parte de um caso quando apelam Corte Internacional de Justia para que esta resolva uma situao litigiosa; a outra forma de ser parte ser intimado pela Corte. Conforme o artigo 35 do Estatuto da Corte, qualquer Estado que tenha assinado o Estatuto pode ser parte de um caso. O Artigo 93 da Carta das Naes Unidas ainda relembra o fato de que todos os membros da ONU aceitam a CIJ como rgo mximo de resoluo de contendas interestatais. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.68-81 69 CIJ tado pode indicar um juiz ad hoc 7 , que no precisa ter, necessariamente, a nacionalidade do Estado que o indica. Vale frisar que, embora normalmente seja nacional do pas de uma das partes, obrigao do juiz ad hoc, da mesma forma que todos os outros, prezar pela imparcialidade e agir sempre de maneira tica. 3. COMPETNCIA: QUEM PODEMOS JULGAR? Existem duas formas de atuao da Corte Internacional de Justia, o procedimento consultivo e o contencioso (MARTINS, 2012). O primeiro no motivado por naes em conito ou em disputa, muito pelo contrrio, j que no envolve, sequer, pases. O procedimento consultivo tem por objetivo servir de apoio ONU como instituio, emitindo pareceres sobre questes legais complementares ao escopo de cada rgo. Devido a isso, s podem iniciar essas demandas junto Corte os cinco rgos principais das Naes Unidas ou as suas 16 agncias especializadas. Depois de receber um pedido, a Corte elabora uma lista com os pases que podem participar en- viando informaes sobre a demanda. Ao contrrio do procedimento contencioso, a deciso nal no obrigatria e tem como objetivo servir de auxlio s discusses em uma organizao internacional. Em- bora no tenha carter mandatrio, a opinio da Corte Internacional de Justia da mais alta importncia para qualquer resoluo de um rgo da ONU - ou equivalente -, possuindo grande peso moral sobre os diplomatas responsveis pelo trabalho em questo. O procedimento contencioso o mais tradicional, j que esse o que envolve duas partes (pases) que acionam o tribunal a m de resolverem uma disputa. Ele submetido Corte por Estados que acei- tam a sua jurisdio e desejam resolver alguma disputa legal. Antes de trabalharmos, especicamente, no quesito da jurisdio da Corte Internacional de Justi- a, importante que expliquemos, minimamente, no que consiste esse conceito de forma geral. Essa palavra, que deve ser usada com cautela, tem mais de um signicado, que dependem do uni- verso na qual ela utilizada (MALANCZUK, 2007), quando se fala de direito domstico, pode ser denida como a capacidade que os juzes e os tribunais possuem de dizer o Direito para cada caso. Quando se trata do campo internacional, Shaw arma que o poder do Estado, sob o Direito Internacional, de re- gular ou criar impacto em pessoas, propriedades e situaes, sendo um reexo dos princpios bsicos de soberania estatal, igualdade entre os pases e no interferncia em assuntos domsticos (SHAW, 2008, p. 646). Vale, ainda, citar o autor Malanczuk: Soa impressionantemente tcnica e muitas pessoas pensam que tm uma vaga ideia de seu signicado, logo, h uma tentao de us-la sem parar para se perguntar sobre o que ela signica [...]. s vezes, pode signicar to somente territrio, por exemplo, em casos a respeito de custdia de crianas na Gr Bretanha. Cortes britnicas podem ordenar que quem tem a guarda do lho no leve-o para fora da jurisdio, o que quer dizer fora da Gr Bretanha [...]. Mas, frequentemente, jurisdio se refere a poder exercido por um Estado sobre pessoas, propriedades ou eventos (MALANCZUK, 1997, traduo nossa). Podemos, ento, concluir que jurisdio, como abordaremos nesse trabalho que diz respeito ao campo internacional, relao entre pases -, consiste no poder, na permisso, no direito que os Estados tm para proceder a julgamentos, prises e atos originados por acusaes a cidados. Se uma nao no tem jurisdio sobre determinado caso, signica que ela no pode levar adiante seu julgamento. Dito isso, faz-se necessrio, ento, explicar como um Estado pode ter o direito de recorrer ou o dever de obedecer Corte. Como citado anteriormente, os Estados o fazem por terem aceitado a juris- dio da Corte, ou seja, eles, de alguma maneira, permitiram que a CIJ tivesse a capacidade de julg-los em casos a ela apresentados. Para que esse tribunal possa julgar o caso, tendo a sua sentena o carter de cumprimento obriga- trio s partes, preciso que os pases envolvidos tenham reconhecido a sua jurisdio. Tal procedimen- to pode ser feito a partir de uma srie de opes, constantes no artigo 36 do Estatuto da Corte. A mais 7 Ad hoc signica para esta nalidade. Um juiz ad hoc recebe a competncia de julgar apenas para aquele caso es- pecco. Ele se submete ao mesmo juramento ao qual os juzes eleitos se submetem, mas no tem o direito de julgar os outros casos da Corte. 70 UFRGSMUNDI comum dentre elas a aceitao da jurisdio compulsria, na qual o Estado se submete jurisdio da Corte para toda e qualquer disputa com outro Estado que tenha a mesma obrigao. O termo de aceite pode ser assinado em qualquer momento e ca depositado com o Secretrio-Geral das Naes Unidas (Estatuto da Corte, art. 36). Atualmente, 170 pases aceitaram a jurisdio da Corte dessa maneira (CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIA, 1945). Cada governo indica um agente para representar o pas que seja capaz de argumentar a seu favor; esse agente torna-se a ponte entre a nao e a CIJ. Seu papel total e completamente distinto daquele do juiz ad hoc: o primeiro deve advogar a causa do seu pas de origem, fazendo sua defesa, enquanto o segundo deve ser imparcial para julgar corretamente o caso, no tendo relao alguma com a nao de onde vem. Os agentes so responsveis pela parte oral, precedida por uma parte escrita - os memoriais , as quais so examinadas e deliberadas. O julgamento nal obrigatrio, ou seja, deve ser seguido por ambas as partes. Quando algum Estado falha em cumprir com as suas obrigaes, ca sujeito interveno do Conselho de Segurana das Naes Unidas (CSNU). 4. FONTES DE DIREITO INTERNACIONAL PBLICO A Corte no pode julgar baseada no que os juzes veem como certo. Para que eles julguem da maneira mais justa e imparcial possvel, o prprio Estatuto da Corte no artigo 38 estabelece as fontes autorizadas (PORTELA, 2011). 1. A Corte, cuja funo decidir de acordo com o direito internacional as controvr- sias que lhes forem submetidas, aplicar: a) as convenes internacionais, quer gerais quer especiais, que estabeleam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b) o costume internacional, como prova de uma prtica geral aceita como sendo direito; c) os princpios gerais de direito reconhecidos pelas naes civilizadas; d) sob ressalva da disposio do art. 59, as decises judicirias e a doutrina dos juristas mais qualicados das diferentes naes, como meio auxiliar para a determinao das regras de direito (CIJ, 1945). No existe hierarquia entre as fontes (PELLEGRINO, 2008), mas geralmente a preferncia dada aos acordos rmados entre os Estados em litgio, pois nesse momento reconhecida uma relao jurdica formal entre eles. Embora o artigo utilize a palavra conveno, tratado e acordo signicam a mesma coisa (documento escrito rmado entre as partes - um ou mais Estados - que reconhea alguma relao jurdi- ca). Existem diversos tipos de tratados: de paz, de cooperao econmica, de intercmbio estudantil, de proteo ao meio ambiente, entre outros. Uma conveno tem a capacidade de consolidar o direito; as divergncias iro surgir conforme as interpretaes do que est escrito nela. justamente nesta questo que os juzes devero concentrar seus esforos. Apesar do conceito de costume internacional estar presente no artigo acima como sendo prtica geral aceita como sendo direito, esta denio no muito clara. O costume internacional possui um grau de informalidade, pois diferencia-se dos acordos por no ser escrito. Alm disso, no so todos os Estados que aceitam necessariamente o costume; em comparao com os tratados, eles perdem em grau de fora jurdica, pois o que uma parte em um caso contencioso submetido Corte arma ser direito, outra parte pode negar armando que no reconhece tal costume (PELLEGRINO, 2008). Logo abaixo, esto os princpios gerais de direito. Estas normas tm carter genrico e orientam a elaborao e a aplicao das normas internacionais. importante destacar os seguintes princpios - estes aceitos pela grande maioria dos Estados: soberania nacional, autodeterminao dos povos, cooperao internacional, igualdade jurdica entre Estados e a soluo pacca das controvrsias internacionais. A doutrina e a jurisprudncia, por sua vez, so consideradas meios auxiliares para a resoluo dos conitos. Enquanto a doutrina o conjunto de estudos, ensinamentos, teses e pareceres de grandes juristas, a jurisprudncia o conjunto de casos e de suas respectivas decises judiciais. De carter muito menos global e com um nvel menor de consenso, estas duas fontes sero utilizadas pelos juzes da Corte quando este no encontrarem suporte jurdico nos nveis superiores. A prpria argumentao dos juzes ao exporem seus pontos de vista cria bases para futuros julgamentos. 71 CIJ PARTE II 1. INTRODUO Acrescentado lista de casos da Corte Internacional de Justia, o mais importante tribunal in- ternacional da atualidade e principal rgo jurdico das Naes Unidas, em 17 de outubro de 2000, uma disputa foi proposta pela Repblica Democrtica do Congo (RDC), que a coloca em litgio com a sua ex-metrpole, o Reino da Blgica. O pedido refere-se ao mandado de priso expedido pelo pas europeu contra o ento Ministro das Relaes Exteriores congols, Senhor Yerodia Abdoulaye Ndombasi. No dia 11 de abril de 2000, Damien Vandermeersch, juiz do Tribunal de Primeira Instncia de Bru- xelas, Blgica, emitiu um mandado de priso contra Abdoulaye Yerodia Ndombasi, o Ministro das Rela- es Exteriores da Repblica Democrtica do Congo. Yerodia foi acusado de ter incitado o dio racial entre tribos no Congo por meio de discursos durante o ano de 1998, contribuindo para ataques a pessoas da etnia Tutsi residentes em Ruanda. O juiz expediu tal mandado embasado nas acusaes, contra o mi- nistro congols, de graves violaes aos direitos humanos, pela prtica de crimes contra a humanidade. A ordem do mandato de priso foi enviada para a Interpol 8 e para todos os Estados, incluindo a Repblica Democrtica do Congo. Em outubro de 2000, Congo iniciou procedimentos na Corte Internacional de Justia, pedindo anulao do mandado de priso, declarando que a Blgica teria violado, primeiramente, o princpio da soberania da Repblica Democrtica do Congo, ao exercer autoridade em seu territrio e ao exercer a ju- risdio universal, apenas reconhecida pelo Estado Belga (ou seja, a Blgica acredita que tem o direito de proceder a julgamos fora de seu territrio). Alm disso, com o mandado de priso, a Blgica teria ferido a imunidade diplomtica do Sr.Yerodia, o qual, na posio de Ministro das Relaes Exteriores, no poderia ser julgado por tribunais de um pas estrangeiro (HARRIS, 2010).
2. APRESENTAO DO PROBLEMA 2.1. FATOS PRINCIPAIS Em 1885, os belgas iniciaram uma violenta colonizao na atual regio da Repblica Democrtica do Congo, impondo a governana do rei Leopoldo II (THE INDEPENDENT, 2006). Muitos nativos foram mortos. Aps 73 anos de colonizao e constantes tentativas de conseguir a liberdade por parte dos congoleses, os belgas permitiram que aqueles criassem partidos polticos. Aps intensas negociaes, os belgas notaram que no conseguiriam cumprir as demandas dos congoleses e saram abruptamente da regio, concedendo direitos polticos 9 ao povo do Congo em 1960, tornando o pas independente. No entanto, durante todo o tempo em que esteve presente no territrio, a Blgica privou o povo congols de mobilidade social, de participao poltica e de oportunidades educacionais (SHAH, 2010). Os belgas continuaram, entretanto, sua interveno armada no pas africano apenas uma sema- na aps as eleies para o cargo de primeiro-ministro congols. Aps alguns dias da independncia do Congo, a regio de Katanga se autodeclarou independente do resto do pas, apoiada pelo governo belga. Alm disso, depois de algumas semanas no poder, o ento primeiro-ministro, Patrice Lumumba, foi re- movido do seu cargo e assassinado por membros do Exrcito Congols liderados pelo Coronel Joseph Mobutu, insuados pela Blgica e por membros da CIA que temiam uma aproximao de Lumumba com a Unio Sovitica. Aps 5 anos, Mobutu Sese Seko promoveu um golpe de Estado, subindo ao poder e ins- taurando uma ditadura que durou 30 anos - perodo marcado pela corrupo e pela lavagem de dinheiro e durante o qual o nome do pas foi modicado para Zaire (HISTORY OF THE CONGO, 2014). Em 1973, em Ruanda, subiu ao poder Juvnal Habyarimana, de etnia Hutu. Ruanda um pas vi- zinho ao Congo/Zaire, que, desde antes de sua colonizao, j possua problemas tnicos. Quando foi 8 International Police Organization 9 Direitos Polticos dizem respeito atuao dos cidados nas decises polticas do pas e participao desses na vida poltica do Estado. Dentre eles podemos destacar os direitos: ao poder de votar, ao voto secreto e capacidade de se eleger a cargos pblicos. 72 UFRGSMUNDI colonizada, primeiro por alemes e depois por belgas, manteve-se como reino independente, criando um sistema de separao de etnias que submeteu a minoria Tutsi que vivia no local. Quando Juvnal assumiu o poder do pas, as tenses tnicas e sociais aumentaram. Muitas pessoas da etnia Tutsi, por essa razo, migraram para Zaire, Uganda, Burundi e Tanznia, fugindo dos ataques promovidos pelos Hutus desde a independncia de Ruanda. Em 1990, a Fronte Patritica Ruandesa (FPR), formada por Tutsis refugiados, realizou um ataque massivo a Ruanda, o que ocasionou uma poltica deliberada de propaganda, por parte do governo ruands, de rotular todo Tutsi que vivia no pas como cmplice do ataque e todo Hutu mem- bro dos partidos de oposio como traidor. Em 1993, o Conselho de Segurana da ONU estabeleceu a Misso de Assistncia para Ruanda das Naes Unidas (UNAMIR, na sigla em ingls), na tentativa de esta- belecer a paz e ajudar na questo humanitria. Em abril de 1994, os presidentes de Ruanda e do Burundi foram assassinados por um foguete lanado por rebeldes ao avio em que voavam, o que desencadeou novos massacres (OUTREACH PROGRAMME ON THE RWANDA GENOCIDE AND THE UNITED NATIONS, 2014). Em 1997, Laurent-Dsir Kabila, ex-guerrilheiro, torna-se governante do Congo, invadindo o pas com as tropas Tutsis e derrubando a ditadura de Mobutu, instaurando uma caada aos Hutus que habita- vam o pas, que agora passava a se chamar Repblica Democrtica do Congo. Um ano aps a queda de Mobutu, Abdoulaye Yerodia Ndombasi nomeado Ministro das Relaes Exteriores pelo ento presiden- te Kabila. Em tal cargo, Abdoulaye encorajou publicamente, em discursos, a populao da RDC a matar Tutsis que tinham se rebelado contra o governo instaurado. Como resultado, milhares de pessoas foram mortas no pas (BBC, 2001). Em 1993, o Parlamento belga aprovou o Ato de Junho de 1993 Concernente Punio a Graves Violaes s Convenes de Genebra de 1949 e aos Protocolos Adicionais I e II de 1977. Em 1999 tal ato foi atualizado pelo Ato de 1999 Concernente Punio de Graves Violaes ao Direito Humanitrio Internacional, conforme ser melhor explicado na sesso trs dessa parte (NATIONAL LEGISLATIVE BO- DIES, 1999). Por tais atos, o Parlamento revestiu a Corte belga de jurisdio universal para crimes contra os direitos humanos. A Corte da Blgica, dessa forma, atenderia denncias de vtimas de crimes contra os direitos humanos cometidos pelo mundo, julgando tais violaes cometidas por estrangeiros, ocorridas fora da Blgica e sem requisitos como o de a vtima ser belga ou a presena de um cidado belga no local (HUMAN RIGHTS WATCH, 2003). Dessa forma, em resposta aos supostos discursos fomentadores de dio de AbdoulayeYerodia Ndombasi, o juiz belga Damien Vandermeersch emitiu, em 11 de abril de 2000, com base na jurisdio universal da Corte belga em casos de crimes contra direitos humanos, um mandado de priso contra o Ministro das Relaes Exteriores da Repblica Democrtica do Congo. A ordem foi envia- da Interpol e a todos os Estados, inclusive Repblica Democrtica do Congo (CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIA, 2002). No dia 17 de outubro de 2000, a Repblica Democrtica do Congo iniciou procedimentos contra a Blgica na Corte Internacional de Justia, requerendo que a Corte declarasse que a Blgica deveria anular o mandado de priso. Ao mesmo tempo, a RDC requereu indicao de medidas provisrias, de acordo com art. 41, I do Estatuto da CIJ, argumentando que o mandado de priso estava barrando Abdoulaye de exercer seus deveres de Ministro das Relaes Exteriores, pois o impedia de cumprir misses em qualquer outro Estado. Yerodia cessaria suas funes de Ministro das Relaes Exteriores em 20 de novembro de 2000, motivo pelo qual a Corte negou o pedido de indicao de medidas provisrias (CORTE INTERNA- CIONAL DE JUSTIA, 2000). O presidente da Corte indicou o dia 15 de maro de 2001 como limite para entrega do memorial da Repblica Democrtica do Congo e 31 de maio de 2001 para o memorial da Blgica. Aps os devidos pedidos de extenso de prazo, o memorial da RDC foi entregue em 15 de maio de 2001 e o da Blgica em 28 de setembro de 2001 (CORTE INTERNACIIONAL DE JUSTIA, 2001a; CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIA, 2001b).
2. ALEGAES DAS PARTES 2.1. ALEGAES DA REPBLICA DEMOCRTICA DO CONGO 2.1.1. ALEGADA VIOLAO SOBERANIA DA RDC POR PARTE DA BLGICA Demonstrando que houve violao da sua soberania, a Repblica Democrtica do Congo arma que apenas normas de direito internacional poderiam contrabalancear a regra das imunidades, ou seja, normas internas de direito domstico, por si s, no poderiam cumprir tal funo. Ainda, defende que 73 CIJ cada Estado internaliza as regras de direito internacional da forma que entender ser mais benca ao seu pas. Por m, no se deve esquecer do princpio essencial existncia das relaes entre naes civiliza- das: o respeito soberania e imunidade daqueles que conduzem tais relaes (CIJ, 2001a, p. 11). Na tentativa de defender sua posio, o pas africano arma que a administrao da justia criminal , em princpio, territorial, ou seja, as jurisdies 10 penais so diretamente relacionadas ao local institu- do para tal poder. Assim, o poder de punir do Estado est diretamente relacionado com o local em que acontecem os crimes: dentro de seu territrio. H, contudo, possibilidades de extenso dessa jurisdio; contudo, estas no podem ultrapassar os limites impostos pelo direito internacional. A questo da jurisdi- o penal est ligada, tambm, com o princpio da personalidade, que possui dois lados: a nacionalidade do acusado e a nacionalidade da vtima (CIJ, 2001a, p. 21). Por m, ao emitir o mandado de priso, a Blgica violou seriamente o princpio de soberania, segundo o qual um Estado no pode exercer autoridade no territrio de outro Estado. Ainda, feriu o prin- cpio de igualdade de soberania entre todos os membros na ONU, exposto no artigo 2, pargrafo 1, da Carta das Naes Unidas: A Organizao e seus Membros, para a realizao dos propsitos mencionados no Artigo 1, agiro de acordo com os seguintes Princpios: 1.A Organizao baseada no princpio da igualdade de todos os seus Membros [...] (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1945).
2.1.2. ALEGADA VIOLAO AO DIREITO COSTUMEIRO INTERNACIONAL Inicialmente, o Congo defendeu que a Blgica acredita que as regras de direito interno tem prece- dncia sobre as regras de direito internacional. O artigo 5, pargrafo 3, da lei belga de 16 de junho de 1993 dene que a imunidade inerente ao carter ocial de uma pessoa no impede a aplicao de tal lei: 3 - Limmunit attache la qualit of- cielle dune personne nempche pas lapplication de la prsente loi. (LEI DE 16 DE JUNHO..., 1993). Ou seja, mesmo que a pessoa seja ocial de um Estado e tenha imunidades devido a sua posio e suas aes ociais, a Blgica pode exercer sua jurisdio universal em relao ao possvel caso judicial. A RDC alega que esta lei pode ter outra interpretao, em conformidade com as suas obrigaes e com os princpios do direito internacional (CIJ, 2001a, p. 7). Deve se ter em conta que as regras de direito internacional a respeito da proteo das imunidades so superiores quelas de direito interno dos Esta- dos. Assim, tendo em vista a prtica belga, fundamental que a Corte freie tal comportamento. Ainda, h a violao diplomtica da imunidade do Ministro das Relaes Exteriores e da soberania do Estado, como reconhecido pela jurisprudncia da Corte e pelo artigo 41, pargrafo 2, da Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas de 18 de abril de 1961: Artigo 41 Inviolabilidade Pessoal dos Funcionrios Consulares [...] 2. Exceto no caso previsto no pargrafo 1 do presente artigo, os funcionrios consulares no podem ser presos nem submetidos a qualquer outra forma de limitao de sua liberda- de pessoal, seno em decorrncia de sentena judiciria denitiva. [...] (CASA CIVIL, 1965).
2.2. ALEGAES DA BLGICA Primeiramente, em seu memorial, o Reino da Blgica defendeu que a Corte Internacional de Jus- tia no teria jurisdio para esse caso. Para embasar tal discurso, apresentou quatro motivos e um argu- mento subsidirio perante a Corte: 1. Tendo em vista que Yerodia Ndombasi no mais o Ministro das Relaes Exteriores e ocupa qualquer outra funo ministerial, no h mais uma disputa entre as partes neste sentido na Clusula Opcional de Declaraes das Partes. A Corte, consequentemente, no tem jurisdio no caso. 2. Pelo fato do Yerodia Ndombasi no ocupar mais posies ministeriais na Repblica Democr- tica do Congo, o caso est sem objeto e a Corte no deve proceder com o julgamento dos mritos do caso. 3. Atualmente, o caso est materialmente diferente do que quando apresentado pela RDC. Sendo assim, ou a Corte no tem jurisdio no caso ou a aplicao do caso perante a Corte inadmissvel. 10 Jurisdio o poder que o Estado detm para aplicar um direito a um determinado caso, visando soluo do con- ito, sendo a jurisdio penal a aplicao desse poder no mbito do direito penal. 74 UFRGSMUNDI 4. Pelas novas circunstncias em relao a Yerodia Ndombasi - e aqui refere-se sua sada da funo de Ministro das Relaes Exteriores -, o indivduo perdeu sua imunidade diplomtica, logo, o caso assumiu carter de simples ao de proteo do indivduo por parte do governo congols. A partir disso, sabendo que, antes de se recorrer Corte Internacional de Justia, todas as instncias domsticas devem ter sido esgotadas e no o foram, no h jurisdio para a Corte. 5. O princpio non ultra petita, de que uma Corte no pode decidir um caso para alm do que foi pedido pelas partes, limita a jurisdio da Corte sobre as alegaes nais feitas no Memorial da RDC (CIJ, 2001b, p.35).
2.2.1. ALEGADA LEGALIDADE DO MANDADO DE PRISO PERANTE O DIREITO BELGA E O DIREITO INTERNACIONAL A Blgica, em seu memorial, procurou defender-se primeiramente alegando que o mandado de priso no estaria violando nenhuma lei belga ou de direito internacional. Ademais, alega que o mandato de priso de Yerodia no infringe a soberania da RDC e nem cria uma obrigao para tal Estado. O deman- dado esclarece que tal mandado nacional, no sendo necessrios requerimentos internacionais para sua expedio (CIJ, 2001b, ps. 68-69). Buscando comprovar a legalidade do mandado de priso, a Blgica citou as bases legais e jurisdi- cionais de tal ordem: primeiro, a lei do Ato de Junho de 1993 Concernente Punio a Graves Violaes s Convenes de Genebra de 1949 e aos Protocolos Adicionais I e II de 1977, que inicialmente tinha a funo apenas de adaptar a lei belga s Convenes de Genebra de 1949 e ao Primeiro Protocolo Adicio- nal de 1977. No entanto, com a abrangncia do Segundo Protocolo Adicional, tal lei belga passou a ser base da jurisdio universal da Corte belga para julgar os crimes estipulados. J com a emenda de 1999, cou estipulado que a imunidade associada capacidade ocial de uma pessoa no previne a aplicao da lei da jurisdio universal para violaes de direitos humanos (CIJ, 2001b, ps. 74-76). Em segundo lugar, foram apresentadas acusaes sucientes para que fosse instaurado um pro- cesso, com base na lei de 1993/1999. A Blgica deixa claro que no foi uma investigao com cunho pessoal. Das doze pessoas que prestaram queixa, cinco eram belgas e sete eram congoleses; oito desses indivduos reclamaram por injrias sofridas possivelmente por serem da etnia Tutsi (CIJ, 2001b, p. 78). Em terceiro lugar, em relao alegao da RDC de que no seria possvel, de acordo com leis internas belgas, haver um processo perante a Corte sem que ambas as partes estejam no pas, a Blgica alega que, de acordo com tal legislao, o juiz no teria agido fora da legalidade (CIJ, 2001b, p. 79). A m de comprovar que a Lei da Jurisdio Universal in abstentia (contra algum que no se en- contra no territrio belga, por exemplo) permitida pelo Direito Internacional, a Blgica alega que a lei de 1993/1999 apenas incorpora nacionalmente uma obrigao reconhecida pelo direito internacional (a punio contra crimes de direitos humanos). Assim, a jurisdio universal no viola a soberania de um Estado, apenas corresponde luta contra a impunidade de crimes contra os direitos humanos interna- cionais (CIJ, 2001b, p. 95).
2.2.2. EXCEO DA REGRA DA IMUNIDADE EM CASOS DE CRIMES CONTRA O DIREITO HUMANITRIO INTERNACIONAL Em relao possvel violao do direito de imunidade dos Ministros de Relaes Exteriores, a Blgica levantou a questo de que implcito que a funo e a aplicao desse privilgio so limitadas pelas circunstncias envolvidas nas aes da pessoa que possui funes ociais. Ou seja, tais imunidades so reconhecidas para que a pessoa possa exercer suas funes ociais, no para que ela esteja imune a ser punida por atos praticados na sua vida pessoal ou meramente pela sua posio ocial (CIJ, 2001b p. 118-119). Nesse sentido, so elencadas proposies de situaes: Ministros das Relaes Exteriores em of- cio so geralmente imunes a processos perante cortes estrangeiras; com exceo, os ministros em aes ociais so responsveis por atos que ocasionam graves crimes internacionais; a imunidade no cobre atos realizados na vida pessoal do ministro; e, por m, um ex-ministro no possui mais imunidade por atos ociais exercidos em funo de seu cargo (CIJ, 2001b, p. 120). Por m, a Blgica arma que as imunidades so relativas em casos de crimes contra humanidade. Assim, mesmo que o Sr. Yerodia estivesse em funo do seu cargo de Ministro das Relaes Exteriores, praticando atos ociais (discursos), ele cometeu um crime contra o direito internacional humanitrio ao incitar o dio e a discriminao populao, o que resultou na morte de milhares de pessoas. 75 CIJ 3. PRINCPIOS JURDICOS ENVOLVIDOS 3.1. JURISDIO SOBRE O CASO Sabendo-se que, no nosso caso de estudo, tanto a Blgica como o Congo aceitaram a jurisdio da Corte, pode-se partir para o julgamento da questo. No nosso caso, a Blgica, r da ao, props quatro argumentos, por meio dos quais sustentava a impossibilidade de a Corte julgar o caso em funo da sua falta de jurisdio. Todos eles tiveram por base o fato de o senhor Yerodia no mais ser, poca da emisso do mandado, Ministro das Relaes Exte- riores do Congo e, logo, segundo a Blgica, no gozar mais de imunidade diplomtica. Os argumentos foram, em suma: 1) ausncia do objeto - o que no foi aceito, j que o mandado de priso ainda estava em circulao -; 2) mudana drstica na situao do caso - o que o tornaria substancialmente diferente e re- quereria sua anulao -; 3) alegao de que o caso estava relacionado a protees diplomticas de cunho poltico e no mais envolvia a imunidade diplomtica em si, apenas a ao de proteo diplomtica (que se refere a qualquer indivduo comum); e 4) ausncia de disputa legal entre as partes (GOLDMANN, 2009). Todos os argumentos, de maneira geral, so desarmados pela norma de que s se pode contestar a jurisdio por aes ocorridas at a data de entrada pela parte autora (no caso, a RDC). Ou seja, havendo mudanas na situao dos envolvidos j ao decorrer da ao, a presena ou ausncia de jurisdio no pode mais ser questionada.
3.2. JURISDIO UNIVERSAL 3.2.1. ESCOLHA DO FORO COMPETENTE Antes de adentramos no terreno propriamente dito do princpio da Jurisdio Universal, faz-se ne- cessrio que discutamos algumas noes preliminares de uma parte da doutrina do Direito Penal Interna- cional. O primeiro aspecto a ser analisado a escolha do foro competente 11 para processar e julgar o ilcito. Tal dilema pode ser de baixssima complexidade, quando, por exemplo, todos os elementos - v- timas, suspeitos, consequncias, objetos e local do crime - so pertencentes mesma nao. Como se pode imaginar, para esses casos, o juiz com competncia para o julgamento o designado pelo ordena- mento jurdico domstico 12 do pas, sem qualquer envolvimento de cortes internacionais, j que, como parte do princpio bsico de igualdade entre os Estados - todos soberanos dentro do anrquico Sistema Internacional 13 - e da no interveno destes nos assuntos internos de outros, regra geral que cada na- o tenha competncia exclusiva para o julgamento de seus nacionais sobre crimes cometidos dentro de suas fronteiras (SHAW, 2008, p. 673). Em se tratando, entretanto, dos crimes chamados transnacionais, a escolha do tribunal adequado se d de maneira mais complexa, j que, como complemento regra geral - que as cortes domsticas julgam os crimes de seu pas -, h a possibilidade de um juiz ser competente para um caso ocorrido no exterior. Pode-se, pois, inferir que, embora o quesito territrio seja, de fato, o mais importante para se analisar a jurisdio de um caso, ele no o nico (SHAW, 2008, p. 654). Tal diculdade observada, por exemplo, no estudo do nosso caso, no qual a Blgica tem a in- teno de processar o autor de um crime que no foi perpetrado em seu territrio e, alm disso, no tem como seu nacional o suspeito ou, tampouco, as vtimas (BBC, 2000). Pode, ento, a Blgica processar e julgar um cidado de outro pas, acusado de cometer um ato que no tem qualquer vinculao com al- gum habitante belga? A m de discutir essa questo, sero expostos, abaixo, brevemente, alguns pontos relacionados aos direitos dos pases de julgar crimes que se passaram alm de suas fronteiras.
3.1.2. JURISDIO TERRITORIAL E JURISDIO EXTRATERRITORIAL O Reino da Blgica tem jurisdio para acusar e julgar os crimes dos quais denunciou o ento Ministro das Relaes Exteriores do Congo? Essa pergunta, que apenas outra forma de colocar a inter- 11 Qual tribunal tem legitimidade, tem a permisso, para proceder ao julgamento. Competente signica detentor de competncia, nesse contexto, sinnimo de capacidade, autorizao e permisso. Foro a Corte em sentido amplo - englobando no s os juzes responsveis, mas tambm o ordenamento jurdico (as leis) a ser levado em conta. 12 Conjunto de leis (escritas ou no) de um pas. 13 Na relao dos Estados com os outros Estados, eles se encontram na mesma posio. No h um que tenha mais poder que o outro, ou que possa mandar dentro de assuntos internos que no sejam os seus, assim como tambm no existe uma entidade que possa faz-lo, como, por exemplo, um governo global. 76 UFRGSMUNDI rogao feita ao nal da sesso anterior, carrega um termo de fundamental importncia para os assuntos tratados daqui para frente: jurisdio. Recapitulando o que j foi discutido na Parte 1 do trabalho, segun- do denio da Anistia Internacional, jurisdio , em seu sentido amplo, simplesmente a legtima au- toridade legal de uma instituio (legislativa, executiva ou judicial) para decidir questes legais (ANISTIA INTERNACIONAL, 2007, traduo nossa). Como foi dito, h casos em que o Direito Internacional, por meio tanto de costumes como de tratados, prev e permite que uma corte nacional julgue um crime que ocorreu fora de suas fronteiras. A essa possibilidade d-se o nome de e jurisdio extraterritorial - em oposio jurisdio territorial. Ento, embora jurisdio esteja intimamente ligada ao territrio, no est exclusiva- mente amarrada a este. Muitos Estados tm jurisdio para julgar crimes que aconte- ceram fora de seu territrio e, alm disso, h pessoas, propriedades ou situaes que esto imunes jurisdio territorial, muito embora o caso l tenha se passado (SHAW, 2008, p. 647, traduo nossa). Como mais comumente aceitos, existem alguns princpios que norteiam a legitimao do proces- so conduzido extraterritorialmente. O pas interessado em proceder ao julgamento deve-se enquadrar em pelo menos um desses, conforme observamos no apontamento da Anistia Internacional: Cortes nacionais, frequentemente, citam pelo menos um desses princpios de ju- risdio extraterritorial, referindo-se a crimes sob a legislao nacional, quando eles [os pases] exercem jurisdio sobre crimes internacionais ou de interesse do Direito Internacional (AI, 2007, traduo nossa). O princpio da personalidade (ou nacionalidade) ativa est relacionado origem do suspeito autor do crime, de forma que o Estado ao qual pertence o cidado acusado tem jurisdio sobre o caso, ou seja, tem o poder de julgar o processo. O princpio da personalidade (ou nacionalidade) passiva funciona de maneira similar ao primeiro, mas diz respeito vitima do suposto crime. O pas de nacionalidade da vtima pode pedir o caso para si. O princpio do interesse nacional menos objetivo que os dois primeiros, j que se refere a uma situao que pode gerar consequncias e repercusses para a segurana, a economia, a populao ou algum outro aspecto importante de um determinado pas. O Estado que se sentir amea- ado ou prejudicado pode, ento, solicitar o caso para ser julgado em suas cortes domsticas (AI, 2007). Voltando, agora, ao nosso caso de estudo: sabendo que as incitaes de dio que, supostamente, geraram muitos homicdios a cidados da etnia Tutsi no se passaram na Blgica, em qual categoria de jurisdio extraterritorial esse pas se enquadra, para ter tido a inteno de ter o ru extraditado para den- tro de suas fronteiras e ter seu prprio tribunal procedendo ao julgamento?
3.1.2.1. Princpio da Jurisdio Universal Como observado a partir da breve explicao de trs dos quatro tipos de jurisdio extraterritorial na seo anterior, o Reino da Blgica no preenche nenhum dos requisitos expostos para invocar o di- reito legtimo de julgar o processo - j que o ru e tampouco as vtimas no so de nacionalidade belga e o crime no representa ameaa direta ao pas ou exerceu qualquer outro tipo de inuncia sobre ele. H, entretanto, uma ltima categoria que no foi explanada e que o ser a partir de agora, que a que d nome a este subcaptulo. A jurisdio universal um princpio que diz respeito permisso, ao poder que o pas tem de punir certos crimes, tendo eles sido cometidos por quem quer que seja, de qualquer que seja a nacio- nalidade, com ou sem alguma conexo com o territrio, os cidados ou o interesse nacional desse pas (MALANCZUK, 1997, p. 123). mais comumente aceito internacionalmente que, ao menos de maneira implcita, essa doutrina tenha ganhado fora no nal da Segunda Guerra Mundial (MALANCZUK, 1997, p. 113). equivocado, entretanto, imagin-la como um dispositivo legal bem denido e com as suas linhas rigorosamente tra- adas, j que esse um princpio claramente pertencente ao direito costumeiro, no havendo um tratado multilateral assinado por todos os pases abordando detalhes sobre o que todos consideram ser a juris- dio universal (KHOJASTEH, 2007). Mais largamente aceitas, h duas categorias de crimes que esto sujeitas a tal jurisdio pelos pases que demonstram interesse em exerc-la, que so a dos crimes de guerra 14 e a da pirataria (SHAW, 14 Uma denio de Crimes de Guerra pode ser encontrada no artigo 8 do Estatuto de Roma (formador do Tribunal Pe- nal internacional), que contm, dentre outros vrios exemplos: tortura e tratamento desumano, inclusos exper- 77 CIJ 2008, p. 668). Com a tendncia internacional de maior ateno proteo aos direitos humanos e ao combate impunidade - de, por exemplo, estadistas que cometem violaes a direitos humanos em es- tados de exceo 15 -, porm, o princpio tem ganhado fora e sua abrangncia vem se tornando maior. Malcolm Shaw reconhece que outros crimes tambm caminham para a submisso jurisdio universal, tais como: crimes contra a paz 16 e crimes contra a humanidade 17 . H, tambm, outras denies como, por exemplo, a da Aliana das Organizaes No Governamentais Americanas para o Tribunal Penal Inter- nacional, que incluem, ainda, os crimes de tortura, genocdio e trco de escravos (KHOJASTEH, 2007). importante salientar, mais uma vez, que no h um conceito certo ou errado sobre os assuntos relativos jurisdio universal, j que, como costuma acontecer com tpicos que no esto previstos legalmente de forma escrita e explcita, as caractersticas do caso concreto, juntamente com a interpre- tao e a argumentao das partes, podem ser os fatores decisivos.
3.1.3. A BLGICA E A JURISDIO UNIVERSAL Como foi bastante explorado no estudo do nosso caso, a Blgica, fazendo uso de uma doutrina bastante aceita, porm no unnime, incorporou o princpio da jurisdio universal ao seu ordenamento jurdico 18 de forma bastante peculiar. Esse trabalho de elaborao de um estatuto que regule a Jurisdio Universal dentro do seu ordenamento - sabendo que, segundo as leis belgas, toda a conduta legal de carter internacional que for seguida internamente deve ser incorporada legislao domstica 19 - de longa data. Os primeiros esforos comearam ainda na dcada de 1950, aps as Convenes de Gene- bra de 1949, e culminaram com a promulgao da primeira lei sobre o assunto em 16 de junho de 1993 (BAKER, 2009, p. 152). La loi du 16 Juin, como ela chamada no seu pas, relativa represso de infraes graves s Con- venes Internacionais de Genebra de 12 de agosto de 1949 e aos Protocolos I e II de 8 de junho de 1977, tinha, inicialmente, em seu texto, elementos que davam ao Reino belga condies de poder processar e julgar crimes de guerra, no importando onde, por quem ou contra quem eles haviam sido cometidos. Essa mesma lei foi estendida, em 10 de fevereiro de 1999, adicionando os crimes de genocdio e crimes contra a humanidade em seu escopo, alm de no mais reconhecer a imunidade diplomtica a chefes e ministros de Estado. Por mais fora do comum que pudesse parecer essa permisso - de processar um presidente de outro pas, por exemplo -, quando questionada acerca desse assunto, a corte belga com- petente para dar esse posicionamento armou que era, de fato, possvel que esses ociais fossem alvo de julgamento desde que j tivessem deixado a funo. Logo, s estariam imunes a essa jurisdio os portadores de imunidade diplomtica no exerccio de sua funo. A deciso belga foi baseada no Direito Costumeiro Internacional (BAKER, 2009, p. 154).
3.2. IMUNIDADE DO MINISTRO DAS RELAES EXTERIORES Anteriormente, vimos situaes em que um Estado tem a competncia ou seja, o poder de ju- risdio para apreciar um caso. Nesse captulo, trilharemos o caminho reverso: abordaremos a peculiar situao em que, devido a determinado fator, um pas no possui o poder de jurisdio que, em situaes ordinrias, deteria. Especicamente, no nosso caso, o fator impeditivo de jurisdio a ser analisado a imentos biolgicos; srias injrias mentais ou fsicas; ataques massivos a populaes civis no diretamente envolvidas nas hostilidades da guerra; e ataques a materiais e infraestrutura de misses de ajuda humanitria. Estes se enquadram como sendo srias violaes Conveno de Genebra de 1949 e aos costumes internacionais relativos ao Direito da Guerra (CENTRO DE INFORMAES DAS NAES UNIDAS PARA O BRASIL, 2001). 15 Segundo denio da Encyclopaedia Universalis, estado de exceo aquele no qual se encontra um pas que est frente a um grave e excepcional perigo, que no existe em tempos normais - como, por exemplo, a guerra ou uma invaso estrangeira em seu territrio. Com ele, a nao tem que abrir mo das regras normais de conduta (leis e dis- positivos legais, inclusive) que regem a vida civil, em prol da segurana e da defesa da soberania. o oposto a Estado de Direito (ENCICLOPAEDIA UNIVERSALIS, 2014). 16 Sinnimo de Crime de Agresso que, segundo denio dada pela Anistia Internacional - formulada pela Assembleia Geral das Naes Unidas -, o emprego de fora armada por um Estado contra soberania, a integridade territorial ou a independncia poltica de um outro Estado, de maneira incompatvel com a Carta da ONU (ANISTIA INTERNA- CIONAL, 2012, traduo e grifo nossos). 17 Denio de Crimes Contra a Humanidade pode ser encontrada no artigo 7 do Estatuto de Roma. Estes so uma srie de crimes cometidos como parte de uma ao sistemtica contra a populao civil, como, por exemplo, o assas- sinato, a escravizao, a deportao ou a transferncia forada, dentre outros (CINUB, 2001). 18 Conjunto de leis e outros dispositivos jurdicos de um pas. 19 O adjetivo domstico quer dizer relativo ao pas internamente. Ex: o contrrio de voos internacionais so voos domsticos (ou nacionais). 78 UFRGSMUNDI instituio da imunidade do Ministro das Relaes Exteriores 20 , uma das razes pelas quais a Repblica Democrtica do Congo recorreu Corte Internacional de Justia aps o mandado de priso expedido pelo juiz belga Damien Vandermeersch (CIJ, 2000, p. 3). A imunidade de jurisdio 21 , seja aquela exercida por Estados soberanos ou a exercida por diplo- matas ou outros representantes estatais, tem como fundamento o princpio de direito internacional do respeito integridade territorial e independncia poltica entre os Estados (SHAW, 2008, p. 697), no existindo, entre esses, relao de autoridade, mas sim de igualdade. A imunidade pressupe que as cortes domsticas de um Estado no podem julgar os atos de outros Estados soberanos (BROWNLIE, 2008, p. 323-325). Por uma interpretao extensiva, tal restrio de jurisdio tambm se aplica aos representan- tes desses Estados no desempenho das relaes internacionais 22 (CASSESE, 2005, p. 128). Ressalta-se, logo, que os ociais de Estado so benecirios da imunidade que conferida ao Estado (COMISSO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2011, pargrafo 15). O Estado, por seu turno, ao ser o verdadeiro titular da imunidade de seus ociais, pode suspend-la se julgar necessrio, o que eventualmente permite que uma corte estrangeira aprecie casos relacionados a esses ociais. A imunidade do Estado soberano e dos agentes ligados a ele sofreu alteraes no decorrer de his- tria. O desenvolvimento das relaes internacionais, em especial do comrcio internacional, contribuiu para que surgissem diversas correntes que oscilaram entre si no tocante aos limites impostos institui- o da imunidade de jurisdio, existindo, assim, desde teorias mais extremistas de defesa absoluta das imunidades at teorias que defendem a limitao de certas imunidades especialmente a imunidade do Estado (SHAW, 2008, p. 701-8). Atraindo nossa ateno imunidade diplomtica, pode-se dizer que esta foi de fundamental im- portncia para o desenvolvimento do direito diplomtico 23 . O desenvolvimento deste ramo do direito internacional no completamente codicado, possuindo em muitos aspectos o costume como fonte geradora de direito (WICKREMASINGHE, 2003, p. 388) teve seu marco com a Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas, adotada em 1961 na Conferncia das Naes Unidas sobre Intercmbio e Imunidades Diplomticas. Diplomatas sempre necessitaram, no decorrer da histria, de imunidades e privilgios para a efetiva desenvoltura de suas funes nos pases aos quais so enviados (MALANCZUK, 1997, p. 124). Sobre o tema, expe Chanaka Wickremasinghe: A cooperao internacional, de onde uem benefcios polticos, econmicos, sociais e culturais, inteiramente dependente de um efetivo processo de comunicao [expres- so nas relaes diplomticas]. essencial, por isso, que o direito internacional proteja e facilite esse processo de comunicao, e para esse m que o direito diplomtico moderno procura garantir uma balana apropriada entre o pas que envia e o pas que recebe uma misso diplomtica. (WICKREMASINGHE, 2003, p. 389, traduo nossa). Apesar de todo o privilgio atribudo aos agentes diplomticos, a Conveno de Viena deixa claro, em seu prembulo, que a nalidade de tais privilgios e imunidades no beneciar indivduos [em seus interesses privados], mas, sim, a de garantir o ecaz desempenho das funes das Misses diplomticas (CASA CIVIL, 1965, p.1), ou seja, proporcionar e facilitar o funcionamento da tarefa diplomtica do agente, atendendo ao interesse pblico do Estado que ele representa. A imunidade atribuda a diplomatas e a outros ociais de Estado possui, para o direito internacio- nal, basicamente duas formas: a imunidade ratione personae, ou imunidade pessoal plena, e a imunidade ratione materiae ou imunidade funcional. A imunidade ratione personae ou imunidade pessoal plena atribuda a determinados ociais de Estado em virtude de seu ofcio. Esse tipo de imunidade geralmente cobre atos tanto ociais quanto da vida privada do seu detentor, visto que a interferncia nas funes ociais do indivduo pode se dar por atos de ambas as naturezas ocial e privada (WICKREMASINGHE, 2003, p. 389). A imunidade plena, por esse motivo, privilgio geralmente atribudo aos mais altos escales de ociais de Estado, como os Chefes de Estado e de Governo, o Ministro das Relaes Exteriores e os agentes diplomticos 24 . Seu 20 O Ministrio das Relaes Exteriores de um pas a ponte entre este e a comunidade internacional. o principal meio pelo qual um Estado conduz suas relaes diplomticas (WATTS, 1994, p. 98). 21 A imunidade pode ser entendida como o direito de uma entidade, indivduo ou propriedade de no estar sujeito a uma determinada jurisdio (COMISSO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2008, p. 27-8). 22 Logo, sob uma primeira anlise, uma entidade que no est ligada ao aparelho estatal, em termos gerais, no goza de imunidade (SHAW, 2008, p. 728). 23 O direito diplomtico o direito por meio do qual as relaes internacionais so conduzidas e os processos de co- municao, no nvel internacional pblico, so facilitados (WICKREMASINGHE, 2003, p. 388, traduo nossa). 24 Chefes de governo e ministros das relaes exteriores, por desempenharem funes semelhantes s do chefe de Estado de um pas no que tange s relaes internacionais, gozam de inviolabilidade pessoal e de imunidade da ju- risdio criminal aspectos que caracterizam a imunidade ratione personae a qual tais agentes detm. O Ministro das Relaes Exteriores tem imunidade jurisdicional criminal em qualquer Estado, no estando limitado imunidade 79 CIJ fundamento repousa na importncia das funes exercidas por essas pessoas. O Ministro das Relaes Exteriores, cargo analisado no nosso caso, por exemplo, um dos mais importantes representantes de um Estado no cenrio internacional, sendo responsvel pela concluso de tratados em nome do Estado que representa (WICKREMASINGHE, 2003, p. 400) funo que compartilha, nos termos da Conveno de Viena sobre Direito dos Tratados (artigo 7, pargrafo 2, alnea a), apenas com os chefes de Estado e de governo e cujo desempenho fundamental para a manuteno das relaes internacionais de qualquer pas. A imunidade ratione materiae ou funcional, por sua vez, mais restrita e ligada apenas aos atos ociais do agente seus atos privados no esto sujeitas a esta imunidade. Em detrimento de estar ligada condio do indivduo, tal imunidade atribuda a determinados ociais de Estado cujas funes so de menor importncia para a manuteno das relaes internacionais (WICKREMASINGHE, 2003, p. 390). Em resumo: enquanto a imunidade ratione personae tem seu foco no status do indivduo que dela detentor, indiferentemente da natureza ocial ou privada dos atos realizados, a imunidade ratione materiae preocupa-se com o ato sem si este deve ser ocial -, no estando atrelada pessoa do agente estatal e, portanto, no o protegendo de atos privados. Vale lembrar que, ao contrrio da imunidade diplomtica, cujas garantias esto na Conveno de Viena, as imunidades de Chefes de Estado e de Governo e de Ministros das Relaes Exteriores ainda dependem do direito internacional costumeiro (WATTS, 1994, p. 36) para serem evocadas embora a Co- misso de Direito Internacional tenha desenvolvido trabalhos no sentido de codic-las (torn-las normas escritas) (AKANDE, 2013). Exposta essa diculdade adicional, os juzes da Corte Internacional de Justia devem apurar, no presente caso do Mandado de Priso, se existe uma norma costumeira que indique a imunidade ratione personae do Ministro das Relaes Exteriores (dadas as acusaes, contra o Sr. Ministro Yerodia Ndom- basi, de incitao a crimes previstos na Conveno de Genebra de 1949 e em seus Protocolos adicionais). Para a deciso, deve-se levar em conta que no existem casos anteriores que abordem a questo da imu- nidade pessoal plena do Ministro das Relaes Exteriores. A jurisprudncia pertinente, por isso, referente s normas costumeiras de imunidade ratione personae atribudas a chefes de Estado. Assim, o caso mais emblemtico talvez seja o caso Kadha, da Cour de Casssation francesa. Nele, o lder lbio Muammar Ka- dha foi denunciado pelo crime de homicdio, como cmplice do bombardeio de uma aeronave em 1989, que matou 156 passageiros, incluindo 15 cidados franceses. A corte francesa, pelo status de Chefe de Estado de Kadha, acabou por decidir, em 2001, que este gozava de imunidade perante a jurisdio penal estrangeira (ZAPPAL, 2001, p. 595-6). Apesar da comparao entre os dois casos, importante salientar que muitos juristas defendem que a analogia no uma base convel para fundamentar decises judi- ciais e criar normas jurdicas (WATTS, 1994, p. 40). Portanto, guardadas as semelhanas existentes entre as guras do Chefe de Estado e do Ministro das Relaes Exteriores, suas diferenas devem ser levadas em conta para evitar que a analogia seja um mtodo equivocado de soluo de conitos. A deciso da Corte deve ser fundamentada na necessidade funcional do cargo do Ministro das Relaes Exteriores e, por isso, devem ser elaborados critrios que estabeleam a legalidade ou no de determinada medida processual penal dirigida contra um ocial de Estado, para que essa medida no impea ou atrapalhe o exerccio de suas funes. Ademais, essencial analisar se o objetivo da imunidade ratione personae, na hiptese desta ser atribuda ao Ministro, no est sendo ampliado de maneira abusiva, abrindo espao para que excessivas violaes (de direitos humanos, por exemplo, como no caso estuda- do) estejam imunes de punio. REFERNCIAS AKANDE, Dapo. Should the International Law Commission Overrule the ICJ in its Articles on Immunity of State Ofcials from Foreign Criminal Jurisdiction? EJIL: Talk! 2013. Disponvel em: <http://www.ejiltalk.org/ should-the-international-law-commission-overrule-the-icj-in-its-articles-on-immunity-of-state-ofcials- -from-foreign-criminal-jurisdiction/>. Acesso em: 21 fev. 2014. ANISTIA INTERNACIONAL. Universal Jurisdiction: The duty of states to enact and implement legislation. 2007. Disponvel em: <http://www.amnesty.org/en/library/asset/IOR53/003/2001/en/a866e900-d8f0-11dd-ad8c-f- 3d4445c118e/ior530032001en.pdf>. Data de acesso: 21 de maio de 2014 perante s Cortes de um pas em especco como o caso dos agentes diplomticos, que tm sua imunidade pessoal plena somente em relao ao Estado onde ele desempenha sua misso diplomtica (EVANS, 2003, p. 400). 80 UFRGSMUNDI _____. Le crime dagression ou crime contre la paix. 2012. Disponvel em: <http://www.amnestyorleans.fr/?- q=content/le-crime-dagression-ou-crime-contre-la-paix>. Data de acesso: 21 de maio de 2014. BAKER, Roozbech B. Universal Jurisdiction and the Case of Belgium. 2009. Disponvel em: <http://works. bepress.com/roozbeh_rudy_baker/5 >. Acesso em: 21 de maio 2014. BBC. Arrest warrant for minister upheld. 2000. Disponvel em: <http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/1062330. stm>. Acesso em: 14 fev. 2014. BBC. Prole: Laurent Kabila. 2001. Disponvel em: <http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/1121068.stm>. Acesso em: 11 fev. 2014. BROWNLIE, Ian. 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A disputa judicial do tpico que ser debatido nessa edio da Corte Internacional de Justia das Naes Unidas motivada pelo Mandado de Priso (que d nome ao caso, em ingls, chamado de Arrest Warrant), expedido por um juiz belga, contra o ex-Ministro das Relaes Exteriores da Repblica Democrtica do Congo (RDC), o Senhor Abdulaye Yerodia Ndombasi. A acusao feita pelo juiz foi a de que o Senhor Abdulaye, quando discursou para a populao congolesa em 1998, teria incitado dio racial contra a etnia tutsi, o que conguraria um crime de violao dos direitos humanos. O conito se deu em torno, principalmente, de duas questes: 1) a legitimidade da Blgica em invocar o Princpio da Jurisdio Universal baseado em uma lei domstica, conhecida como Lei de 18 de junho de 1993 e 2) a suposta no considerao, por parte da Blgica, da imunidade diplomtica do ru o Senhor Abdulaye -, uma vez que ele era Ministro das Relaes Exteriores da RDC quando teria cometido o crime alegado pelo juiz belga. 82 UFRGSMUNDI ASSEMBLEIA GERAL DAS NAES UNIDAS HISTRICA (1974) A Crise do Petrleo de 1973 e seus Impactos Internacionais Bruna Lersch 1 Gabriela da Costa 2 Guilherme Lara 3 Joo Arthur Reis 4 Joo Gabriel Burmann 5 Patrcia Machry 6 INTRODUO A Assembleia Geral o maior rgo da Organizao das Naes Unidas (ONU). Nela participam todos os membros da organizao, inclusive os observadores e organizaes convidadas. Por ser o maior rgo da ONU, as pautas discutidas em suas reunies so bastante variadas, pois so impostas por um grande nmero de pases, que possuem condies diferentes de poder econmico e poltico no mundo. As decises desse comit no possuem carter vinculante, ou seja, no so de cumprimento obrigatrio. Contudo, o fato de ser uma deciso da totalidade dos pases da ONU torna as decises da Assembleia Geral moralmente vinculantes: aqueles pases que no as cumprem podem ser vistos como desrespeita- dores das regras feitas elaboradas pela maioria. Esse comit de Assembleia Geral aqui simulado ser histrico, no sentido de que ocorrer no passado. Ser simulada uma sesso ordinria do rgo do ano de 1974, mais especicamente do dia 30 de setembro de 1974, data da entrega das credenciais de participao dos delegados dos pases. Nessa simulao est prevista a participao de 40 representaes de pas, previamente selecionados pelos or- ganizadores do comit. O fato de ser um comit histrico, no passado, signica que os delegados devem tomar cuidado com seu comportamento, seus discursos e a utilizao dos fatos histricos, que devem se restringir at a data da simulao. No sero permitidas o uso de informaes posteriores a essa data, que possam modicar os rumos do debate, sob a possibilidade de interveno da mesa para que isso no acontea. 1. HISTRICO 1.1. A BALANA DE PODER NO ORIENTE MDIO O Oriente Mdio o territrio onde se encontram trs continentes: a frica, a sia e a Europa. a ligao da poro leste da sia com a bacia do Mediterrneo, conectando assim o ocidente e oriente 1 Graduanda do 5 semestre de Relaes Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 Graduanda do 3 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Graduando do 3 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Graduando do 7 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 5 Graduando do 7 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 6 Graduanda do 5 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.82-104 83 AGH 74 do mundo. Por este motivo, desde muito tempo uma regio por onde passam inmeras rotas de co- mrcio que levam produtos de todas as partes do mundo aos portos da Europa, e vice-versa. Em virtude desta posio geogrca estratgica e da presena de recursos energticos como petrleo e gs natural, o Oriente Mdio foi, principalmente a partir do sculo XIX, objeto de cobia das potncias 7 ocidentais. Alm disso, a existncia de expressivas divergncias tnicas, culturais e religiosas na regio fez dela um local de contnua tenso e conito ao longo dos ltimos dois sculos. A ambio dos pases ocidentais e seus desejos de inuncia direta neste local devido a seus recursos, somados ascenso de uma srie de movimentos nacionalistas dos povos rabes e judeus, fez o equilbrio de poder 8 no Oriente Mdio alte- rar-se inmeras vezes, estando ainda hoje sensvel a todas essas variveis. A polmica criao do Estado 9
de Israel um ponto crtico na compreenso desta balana, bem como as consequncias causadas pelo seu estabelecimento. 1.1.1. CRIAO DO ESTADO DE ISRAEL: PROBLEMAS COM RABES, PALESTINOS, SRIA E LBANO A criao do Estado de Israel relaciona-se diretamente s origens do sionismo poltico 10 e do con- ito entre rabes e judeus. Para entender esse conito, importante saber quem exatamente so estes povos. Os rabes so os povos provenientes da pennsula arbica e que falam a lngua rabe. Os rabes palestinos so, mais especicamente, aqueles que tm suas origens na regio da Palestina. A maioria dos povos rabes muulmana, ou seja, seguidora da religio islmica, uma religio fundada por Maom no sculo VII. Contudo, h ali tambm rabes cristos e judeus, sendo estes ltimos os seguidores da religio judaica. Fonte: YOSHIDA, Mario. ATLAS Geogrco Escolar. Rio de Janeiro: IBGE, 2007 Ainda no incio da era crist 11 , a regio que corresponde ao Estado de Israel foi conquistada pelos romanos, e grande parte dos judeus que l viviam foi expulsa (MOSHE, 1997). Eles espalharam-se pela Europa, onde passaram a viver entre cristos, e por outras regies do Oriente Mdio e do norte da frica, vivendo entre os rabes. A regio cou sob o controle dos romanos at 1516, quando foi conquistada pelo 7 Potncias so pases que conseguem exercer inuncia em todos os demais, expandindo seu poder em escala glob- al. So considerados importantes e poderosos em virtude de suas grandes foras militares, econmicas e polticas. Costumam ter suas opinies ouvidas por outros pases e tem a capacidade e o poder de intervir militarmente e investir na economia de praticamente qualquer lugar. 8 O equilbrio de poder se verica quando as potncias possuem capacidades militares similares, de forma que nenhu- ma seja mais poderosa ou possa sobrepor-se a outra (KEGLEY & WITTKOPF, 2005). 9 Estado um pas dotado de estrutura prpria e instituies pblicas (governos, foras armadas, administrao) que o controlam (HOUAISS, 2004). Na cincia poltica existem diversas interpretaes do conceito, mas a utilizada aqui entende o Estado como um territrio delimitado por fronteiras, composto de populao e um governo, cuja principal funo prover segurana para a populao e manter o controle do territrio. 10 Movimento dos judeus que defende a criao de um Estado judeu na terra de Israel (MOTYL, 2000). 11 Era Crist ou Era Comum o perodo que se inicia a partir do nascimento de Jesus, considerado o primeiro ano do nosso calendrio (BBC, 2009). 84 UFRGSMUNDI Imprio Turco-Otomano. Os turcos estabeleceram uma dominao feudal na regio que foi responsvel pelo empobrecimento da civilizao 12 que, at ento, era extremamente desenvolvida e prspera. Desde a dominao romana, os judeus espalhados pelo mundo sofreram fortes ondas de perse- guio. Em meados do sculo XIX, foram vtimas de massacres por parte da Rssia (quando esta ainda era governada por czares), que, em conjunto com outras naes da Europa Oriental, contribuiu para espalhar o anti-semitismo 13 . A situao foi ainda mais agravada com a ascenso do nazismo na Alemanha no pe- rodo entre as duas guerras mundiais, resultando nas perseguies de Adolf Hitler aos judeus europeus. Milhes deles foram vtimas do genocdio 14 que cou conhecido como Holocausto. Assim, desde o m do sculo XIX, o sionismo crescia como uma forma de reao judaica a essa discriminao. A partir de meados do sculo XIX, as potncias europeias comearam a voltar seus interesses para essa regio devido a sua grande importncia geopoltica 15 , aproximando-se dos cristos e dos poucos judeus que permaneceram na regio para estabelecerem sua inuncia. Em 1917, a Inglaterra promove a Declarao Balfour, que prometia a criao de um lar para os judeus na Palestina. Tal Declarao permitiu uma aproximao com as comunidades judaicas, algo que os ingleses desejavam para obter apoio dos judeus contra os turcos. Ao nal da Primeira Guerra Mundial, em 1918, a Inglaterra derrota os turcos e divide a regio com seus aliados franceses: sob o domnio francs caram a Sria e o Lbano, deixando a Palestina, a Transjordnia e o Iraque sob o controle britnico (KRAMER, 2008). Essa repartio do territ- rio entre Inglaterra e Frana foi realizada secretamente, atravs do Acordo de Sykes Picot 16 . Fonte: BBC, 2001. Disponvel em: <http://bit.ly/imagem2agh74>. ltimo acesso: 15/05/14 12 A regio era dotada de grandes rotas comerciais que ligavam o Ocidente ao Oriente por terra. Atravs delas, circu- lavam os produtos que geravam riqueza para a civilizao. Com a invaso dos turcos, o comrcio foi desviado para os oceanos, e a infraestrutura de estradas existente por terra foi abandonada (VISENTINI, 2012). 13 Preconceito ou dio direcionado a judeus por motivos tnicos, religiosos e culturais. 14 Genocdio, segundo o dicionrio Houaiss (2004), um crime contra a humanidade, um assassinato em massa, que extermina uma comunidade ou grupo tnico, racial ou religioso. Na Segunda Guerra Mundial, cerca de seis milhes de judeus foram assassinados, em um extermnio liderado pelos alemes nazistas no governo de Adolf Hitler. 15 Por ser, como mencionado anteriormente, a regio onde se encontram a Europa, a frica e a sia, e tambm por ser rica em petrleo e recursos naturais. 16 O Acordo deixava a Palestina sob administrao internacional, no sendo rea de inuncia especicamente britnica e nem francesa. 85 AGH 74 Desde ento, baseados na Declarao de Balfour, um enorme nmero de judeus passou a migrar de volta para a regio palestina, comprando terras e instalando fazendas coletivas militarmente fortica- das, chamadas de Kibbutz. Os ingleses, estabelecidos no Oriente Mdio em virtude da diviso de Sykes Picot, permitiam que essas massas de judeus migrassem de volta Palestina. Esses fatos causaram res- sentimento entre os rabes palestinos que habitavam a regio desde a expulso dos judeus pelos roma- nos, levando os judeus a estabeleceram organizaes armadas para se protegerem. No nal da Primeira Guerra Mundial, a Palestina contava com aproximadamente 60 mil judeus e, ao nal da Segunda Guerra Mundial, com aproximadamente 400 mil. Os judeus desejavam o estabelecimento de um lar judeu na regio, ao passo que os rabes desejavam a retirada dos britnicos (VISENTINI, 2012). Em 1943, no Oriente Mdio, a Sria e o Lbano tornavam-se independentes da Frana e a Trans- jordnia livrava-se tambm da dominao britnica. Nesta onda de independncias, comea a emergir um nacionalismo rabe, e, em 1945, criada a Liga dos Estados rabes/ Liga rabe, formada por Arbia Saudita, Egito, Imen, Iraque, Lbano, Sria e Transjordnia. A Liga era, teoricamente, uma tentativa de dar maior expresso poltica s naes rabes, criando um espao para se discutir problemas econmicos e polticos destes pases (THE NEW COLUMBIA ENCYLOPEDIA, 2013). Contudo, na prtica, quem partici- pava eram as elites conservadoras destes pases, que mantinham seus vnculos com a Inglaterra para as- segurarem apoio desta internacionalmente, no contexto ps-Segunda Guerra Mundial, e regionalmente, devido aos problemas da questo judaica (VISENTINI, 2012). Fonte: BBC, 2001 Disponvel em <http://bit.ly/imagem3agh74>. Acesso em 15/05/14 Em 1942, atravs de uma declarao conhecida como Programa Biltmore 17 , a Palestina foi de- nida como o local onde seria estabelecido o Estado judeu, acentuando o conito com os rabes da regio - j existente desde a Declarao Balfour (FELDBERG, 2008). O Holocausto, contudo, gerou uma presso psicolgica que tornou esta uma questo de urgncia. Assim, em 1947, a Organizao das Na- es Unidas (ONU) elabora um plano de partilha, segundo o qual o territrio palestino compreenderia um Estado judeu e outro Estado rabe palestino, com a cidade de Jerusalm sendo internacionalizada por ser considerada sagrada pra muulmanos, cristos e judeus. Os judeus aceitaram o plano, porm os rabes opuseram-se fortemente criao do Estado judeu na regio. Nesse contexto, os britnicos retiram-se da regio, pois manter sua dominao na Palestina estava sendo muito custoso em virtude da situao ex- tremamente conituosa que criaram (FELDBERG, 2008). Com a retirada britnica, os judeus proclamam, 17 Resultado da Conferncia de Biltmore, em Nova Iorque. 86 UFRGSMUNDI em 14 de maio de 1948, o Estado de Israel, sem o consentimento dos pases vizinhos. Estes consideravam a partilha uma violao ao direito de cada povo de decidir seu destino (ou direito de autodeterminao dos povos, que consta na Carta das Naes Unidas), e consideravam negativa a segregao do pas para dar vantagens aos judeus. Alm de todos os ressentimentos existentes entre rabes e judeus desde o incio das migraes judaicas de volta para a Palestina, estes pases tambm viam na criao de Israel um meio atravs do qual os pases ocidentais imperialistas - interessados no controle do petrleo e em garantir seus interesses econmicos - penetrariam no Oriente Mdio. Assim, no dia seguinte, a Liga rabe declara guerra contra o novo Estado. Porm, as foras is- raelenses eram superiores em treinamento e equipamento e, entre dezembro de 1948 e janeiro de 1949, Israel j conquistara 80% da Palestina, o que gerou presso para que um cessar-fogo fosse rapidamente assinado (VISENTINI, 2012). Uma srie de acordos de armistcio entre Israel e os demais pases - Egi- to, Lbano, Sria e Transjordnia foi realizada com superviso das Naes Unidas (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1949a; ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1949b; ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1949c; ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1949d). Os palestinos se viram sem seu Estado proposto pela ONU e passam ento a constituir uma enor- me massa de refugiados em pases vizinhos. O Estado de Israel foi imediatamente reconhecido pelos Estados Unidos e pela Unio Sovitica, e os palestinos comearam a organizar-se em grupos anti-impe- rialistas e antisionistas, fundando, em 1964, a Organizao para a Libertao Palestina (OLP). A Organi- zao a principal representao dos povos palestinos, e defende a criao de seu Estado. favorvel luta armada para atingir esse m, e tambm se posiciona fortemente contra o sionismo. Muitos pases, como os Estados Unidos, consideram a OLP uma organizao terrorista e se ope sua existncia, no a reconhecendo nos fruns de discusso internacional. 1.1.2. GUERRA DOS SEIS DIAS Aps a vitria israelense na chamada Guerra do Estado de Israel, vericou-se uma ecloso de revo- lues com um vis socialista e anti-imperialista na regio. Na dcada de 1950, Tunsia, Marrocos e Arglia tornaram-se independentes de sua metrpole europeia, a Frana. No Egito, um golpe militar transformou o pas em uma Repblica sob a liderana do ocial Gamal Abdel Nasser, que se tornou extremamente popular graas a seus discursos anticolonialistas, consolidando-se como a mais importante liderana rabe. Essa revoluo desencadeou um processo de radicalizao sentido no s no Egito, mas em todo o mundo rabe (HALLIDAY, 2005). Juntamente com esses pases, outros como a Sria, a Lbia, o Imen e o Om simpatizavam e cooperavam com a URSS, que os abastecia com material blico e aumentava assim sua inuncia na regio (VISENTINI, 2012). Este aumento de inuncia preocupava aos Estados Unidos, que iria, assim, fortalecer cada vez mais seus laos com Israel, como forma de aumentar sua atuao na regio e contrapor-se inuncia sovitica 18 . Fonte: Elaborao prpria. 2014. Com base em: <http://bit.ly/imagem4agh74>. 18 Terminada a Segunda Guerra Mundial, o mundo passou a ser marcado pela Guerra Fria, disputa por poder e inun- cia entre os Estados Unidos (maior smbolo do capitalismo e potncia do Ocidente) e a Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (o mais signicativo expoente do comunismo e a maior potncia do Oriente). Assim, ambos disputavam por aliados e por zonas de inuncia em todas as partes do mundo. 87 AGH 74 O regime de Nasser preocupava enormemente os pases do Ocidente - em especial Frana e In- glaterra, que tinham nsias de recuperar sua posio inuente no Oriente Mdio -, devido a seu carter anticolonialista e anti-imperialista. A aproximao dos pases da regio com o comunismo tambm preo- cupava, inclusive a Israel, pois uma relao forte com a Unio Sovitica resultaria, para os rabes, em uma fonte signicativa de armamentos. Todos esses acontecimentos deixaram os israelenses preocupados com sua posio no mundo rabe. Apesar de possurem uma economia forte e um aparato militar pode- roso, temiam os levantes rabes e desejavam, portanto, manter sua superioridade na regio. A situao atingiu seu ponto crtico em 1956, com o episdio que cou conhecido como Crise do Canal de Suez: em uma tentativa de obter os recursos necessrios para as reformas sociais e econmicas prometidas para o Egito, Nasser nacionalizou o Canal de Suez. Construdo no sculo XIX, tem importn- cia porque liga o Mar Vermelho a um porto do Egito no Mar Mediterrneo, mar que d acesso a vrios pases da Europa. Atravs desse canal, naes europeias como a Inglaterra e a Frana podiam ter acesso ao comrcio com o Oriente. Com a nacionalizao, o porto israelense no Golfo de qaba (que acessa o Mar Vermelho atravs do Estreito de Tiran) caria inutilizado, visto que o acesso ao Mediterrneo estaria bloqueado. Ingleses e franceses, que detinham o controle do canal antes da nacionalizao, alinharam-se a Israel, pois viam nisto uma forma de enfrentar os movimentos rabes e recuperar sua inuncia na re- gio. Juntos, os trs pases atacaram o canal e derrotaram o exrcito egpcio. Suas aes foram, contudo, barradas por um ultimato sovitico que exigiu a retirada das tropas do Egito, situao que consolidou a inuncia e presena da Unio Sovitica no Oriente Mdio, sendo reforada posteriormente atravs dos acordos de cooperao assinados com o Egito, e tambm com a Sria e o Iraque. Fonte: TexasGOPVote.com. Sem Data. Disponvel em: <http://bit.ly/image- m5agh74>. Acesso em 11/05/14. O perodo que se seguiu crise de Suez caracterizou-se pelo acirramento das tenses entre rabes e judeus. Cresciam os movimentos nacionalistas e a fora dos movimentos palestinos. Em 1967, Nasser probe navios israelenses de acessarem o Golfo de kaba, atravs do fechamento do Estreito de Tiran (acesso de Israel ao Mar Vermelho). Duas semanas depois, em resposta motivada por toda a situao que se arrastava desde a Guerra de Suez, Israel ataca o Egito, a Sria e a Jordnia em um conito que cou conhecido como Guerra dos Seis Dias, devido a sua curtssima durao. A vitria israelense rpida e lhe rende a anexao de territrios com enorme importncia estratgica: do Egito, conquista a Pennsula do Sinai; da Jordnia, a Cisjordnia; e da Sria, as Colinas de Gol (VISENTINI, 2012). A ONU exigiu que Israel retirasse suas foras dos territrios ocupados, ordem que no foi acatada (UN, 1967). Aps o ocorrido, todos os pases socialistas do Oriente Mdio romperam relaes diplomticas 88 UFRGSMUNDI com Israel, que, por sua vez, encontrava-se em uma posio mais confortvel: o mundo rabe estava derrotado, os palestinos comeavam a fugir e o alinhamento com as potncias ocidentais forticava-se (HALLIDAY, 2005). Uma enorme massa de judeus que vivia em outros pases rabes migrou para Israel, agora consolidada como a nao militarmente superior da regio, enquanto os pases vizinhos recebe- ram um contingente ainda maior de refugiados palestinos, j que no Estado de Israel sofriam ainda mais represlias. Os pases rabes recusaram assinar acordos de paz com Israel e, em 1970, reconheceram o direito palestino de criar um Estado nacional (VISENTINI, 2012). Fonte: Elaborao prpria. 2014. Com base em MUNDO VES- TIBULAR, 2008. Original disponvel em: <http://bit.ly/image- m6agh74>. Acesso em 11/05/14 1.2. A GUERRA DO YOM KIPPUR 1.2.1. O CONFLITO ISRAEL X EGITO E SRIA Em 6 de outubro de 1973, uma coalizo rabe (composta por Iraque, Jordnia, Arglia, Marrocos e Tunsia, liderados por Egito e Sria e recebendo apoio de Cuba), aproveitando-se do feriado judaico de Yom Kippur (dia do perdo), iniciaram uma ofensiva contra Israel, ainda em resposta Guerra dos Seis Dias. O ataque foi motivado por uma tentativa de recuperar os territrios perdidos para Israel na guerra de 1967 e pela recusa de Israel em reconhecer os direitos de soberania e autodeterminao do povo pa- lestino (HUSSEIN, 1977), bem como por uma tentativa dos pases rabes de expandir seu prestgio e poder de barganha. Na primeira semana de guerra (a quarta guerra rabe-israelense), devido ao fator surpresa do ata- que, Egito e Sria tiveram xito em suas investidas. Contudo, Israel possua um poder militar superior, desenvolvido com apoio militar dos Estados Unidos, que passara a ajudar os israelenses atravs de uma ponte area durante a guerra. Assim, por conta desses dois fatores, ainda na segunda semana de confron- to, Israel pode recuperar suas foras na ofensiva militar, conseguindo fazer a Sria retroceder nas Colinas de Gol. A partir de ento, Israel manteve o controle da guerra que, em 26 de outubro, terminou com a 89 AGH 74 sua vitria, com o recuo egpcio e srio e com o retorno das fronteiras estabelecidas em 1967. Com a Guerra de Yom Kippur e seus desdobramentos, os pases rabes alteraram a congurao regional corrente em 1967 e provaram para o mundo no serem atores polticos desprezveis, bem como mostraram que as potncias ocidentais teriam que cumprir algumas de suas exigncias (HUSSEIN, 1977). Em suma, ao m dessa guerra no houve grandes vencedores, mas uma das repercusses desse conito foi o m do mito de invencibilidade israelense, pois ao sofrer o ataque surpresa os israelenses tiveram grandes perdas humanas que abalaram a prpria autoconana de Israel. Alm disso, inegvel que os israelenses s tiveram condies de reagir no momento em que os Estados Unidos interviram, concluin- do-se que foi somente por conta desse apoio norte-americano que Israel conseguiu enfrentar a guerra (GRINBERG, 2002). 1.2.2. PARTICIPAO EXTERNA NO CONFLITO: APOIO DOS EUA, DA URSS E DE PASES DA REGIO Em 1973, a conjuntura internacional da Guerra Fria era de novas disputas por esferas de inun- cia 19 . Potncias mdias como Japo e Alemanha buscavam ampliar seus domnios para conquistar um grau de inuncia semelhante inuncia exercida pelas grandes potncias. Desse modo, eram favor- veis a um equilbrio baseado em um mundo dividido em 5 blocos (EUA, URSS, China, Japo e Alemanha). J os EUA buscavam a coexistncia pacca com a Unio Sovitica, pois acreditavam ser mais benco para seus interesses um mundo dividido em trs blocos (EUA, URSS e China), onde poderiam exercer sua hegemonia. Por m, a URSS almejava um mundo bipolar, somente divido entre ela e os EUA (MASSIAH, 1977). Esse contexto de busca por esferas de inuncia tornam essa fase da Guerra Fria especialmente complexa no que se refere a alianas e apoios. Assim sendo, surge a possibilidade de alguns pases con- quistarem alguma autonomia, optando por no se alinhar a nenhuma potncia. Nesse sentido, a derrota rabe na Guerra dos Seis Dias, que abalou a autoridade moral da regio 20 , intensicou a resistncia dos pases rabes submisso aos Estados Unidos, que era o grande apoiador de Israel (HUSSEIN, 1977). assim que a Arbia Saudita deixou de ser um pas incondicionalmente defen- sor dos interesses norte-americanos 21 e passou a gurar ainda mais como uma potncia regional rabe, mesmo que ainda mantivesse essa sua aliana com os EUA. J o Egito, enquanto via sua resistncia expanso israelense fracassando e pases de sua regio aumentando sua magnitude poltica, a partir de 1967, resolve deixar de tentar ser a nica potncia regional fazendo frente a Israel no norte da frica e no Oriente Mdio e passa a promover a aliana entre todos os pases rabes contra o Estado judaico. Enquanto isso, a Arglia estava buscando se tornar o centro industrial do Magreb 22 . Para conquistar essa industrializao, o presidente Boumediene apostou em uma economia socialista controlada pelo Estado, em que foram tomadas medidas como a nacionalizao da indstria do petrleo em 1971. Em suma, a coligao dos pases rabes era dirigida por Egito e Sria, tendo como potncias secundrias a Arbia Sau- dita, que atuava como controladora da produo de petrleo, e a Arglia, maior incentivadora do mundo rabe da luta por libertao nacional e contra o colonialismo (HUSSEIN, 1977). Por sua vez, Israel, ciente de seu poderio militar e poltico, tambm resolve adotar uma postura de autonomia em relao aos Estados Unidos. Israel torna-se determinada a constituir-se como a potncia regional que faz frente a todos seus vizinhos. Assim, acaba transformando-se em uma ameaa ainda maior para os pases rabes, pois na medida em que Israel estivesse dependente dos Estados Unidos, este garantiria uma moderao de fora para que Israel no desestabilizasse de forma denitiva a regio com investidas desproporcionais. 19 Uma esfera de inuncia uma rea ou regio onde um Estado tem um grande prestgio ou exerce uma dominao cultural, econmica, poltica e/ou militar. Durante a Guerra Fria as duas superpotncias (EUA e URSS) praticaram uma con- stante busca por esferas de inuncia com o intuito de se defender da superpotncia inimiga, bem como enfraquec-la. 20 Quando o Imprio Otomano teve seu m, a identidade rabe que era garantida pelas autoridades otomanas se per- deu ao mesmo tempo em que os pases do ocidente introduziram nos pases rabes parte de seus valores e princpios. Com o sionismo e a Guerra Fria cresceu o desejo da comunidade rabe de retomar sua identidade. Nesse sentido, Israel representava uma nova verso do colonialismo das grandes potncias ocidentais (GRINBERG, 2002). Desse modo, a moral da comunidade rabe cou fragilizada ao ser derrotada por uma das inimigas da sua busca pela iden- tidade rabe. 21 Durante a 2 Guerra Mundial os EUA haviam protegido os sauditas de ataques dos italianos, de modo que o governo saudita permitiu a construo de base militar norte-americana em seu territrio. Mas foi no incio da Guerra Fria que a relao entre Arbia Saudita e Estados Unidos foi fortalecida. Com o intuito de conter o aumento de inuncia so- vitico no Oriente Mdio os EUA deram grande destaque s relaes EUA-Arbia Saudita. Contudo, a divergncia entre rabes e norte-americanos fez com que a Arbia Saudita se posicionasse, em relao aos conitos rabe-israelenses, divergentemente dos EUA. Alm disso, as relaes econmicas entre os dois pases, com empresas estadunidenses explorando petrleo no pas, datam do perodo entreguerras, com a criao da California-Arabian Standard Oil Co., em 1933 (posteriormente chamada Aramco). 22 Regio Noroeste do continente Africano; considerada a parte ocidental do mundo rabe. 90 UFRGSMUNDI Os Estados Unidos tentavam manter relaes estreitas com Israel devido a sua posio estratgica no Oriente Mdio, com muitos americanos vendo a razo para a existncia do Estado de Israel somente sob a tica dos benefcios que isso traz para os EUA. Todavia, no se deve concluir a partir disso que os Estados Unidos ignoraram a importncia estratgica dos Estados rabe. Ainda que apoiando a perspectiva israelense do conito, os EUA mantiveram o fornecimento de equipamentos militares para pases rabes aliados, como Lbano e Arbia Saudita 23 . J a URSS, buscando estender sua esfera de inuncia e fazer contraposto aos EUA, passa a in- condicionalmente apoiar os pases rabes na luta por maior poder regional e reconhecimento do Estado palestino. O apoio da URSS passou a aumentar posteriormente a Guerra dos Seis Dias, quando uma das potncias regionais rabes mais inuente, o Egito, passou a ser considerado denitivamente pelos norte- -americanos como aliado sovitico. 1.3. O AUMENTO DO PREO DO PETRLEO E A CRISE ECONMICA 1.3.1. A ORGANIZAO ECONMICA MUNDIAL PS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E A ORGANIZAO DOS PASES EXPORTADORES DE PETRLEO (OPEP) Aps a Segunda Guerra Mundial, a economia mundial passou por um processo de reestruturao de suas estruturas. Seguindo a tendncia da criao de instituies para a soluo de problemas de segu- rana, como a Organizao das Naes Unidas (ONU), foram criadas instituies especcas para assun- tos econmicos. Esse conjunto de instituies multilaterais e fruns de dilogo viriam posteriormente a compor o Sistema ONU 24 . Em 1944, ainda antes do m da Segunda Guerra Mundial, foi criado o Sistema Bretton Woods, nome dado ao conjunto de acordos econmicos, monetrios e nanceiros assinados por 44 pases para reorganizar a economia mundial. Algumas dessas instituies, como o Fundo Monetrio Internacional e o Banco Mundial, existem at hoje para auxiliar pases com problemas nanceiros e pro- mover projetos de desenvolvimento e infraestrutura. A novidade implementada pelos Acordos de Bretton Woods foi a submisso de todos os pases signatrios a um novo sistema monetrio: cada pas deveria adotar uma poltica para sua moeda nacional que mantivesse sua cotao 25 dentro um determinado valor ligado ao dlar. O dlar, por sua vez, estaria ligado ao ouro em uma taxa xa de equivalncia (no caso 35 dlares a cada 31,10 gramas). O signicado disso tudo era indito: todas as moedas do mundo estariam agora relacionadas a um determinado mon- tante em dlar, que estaria ligado a um montante em ouro. Em outras palavras, se reconhecia a proemi- nncia da economia estadunidense, concedendo a ela o papel de referncia de todas as demais moedas, ou seja, a garantia de que aquela moeda valia o que valia porque estava relacionada ao dlar (VISENTINI, 1992a; VISENTINI, 1992b, p. 16). Esse foi o chamado padro dlar ouro. Esse padro monetrio no possui muitas diferenas do existente anteriormente, baseado na libra esterlina, a moeda inglesa, com relao ao ouro. Contudo, marcava a mudana de hegemonia 26 , de pas com maior capacidade econmica do Reino Unido para os Estados Unidos. Portanto, toda a organizao econmica mundial, o valor das moedas e, por conseguinte, o valor das mercadorias estava agora rela- cionado ao dlar ouro. Os Estados Unidos de 1944 at a dcada de 1970, todavia, no mantiveram sua economia sempre no mesmo ritmo de crescimento. Ao papel de guardio da economia mundial, os EUA somaram o de po- lcia do mundo. Percebendo suas capacidades militares e o respaldo internacional que possua, os EUA adotaram como poltica principal a conteno da expanso do socialismo sovitico e com isso passou a realizar intervenes em vrias partes do mundo, aumentando fortemente seus gastos militares. Entre esses conitos destacam-se e a Guerra da Coreia (1950-1953) e a Guerra do Vietn (iniciada em 1956, 23 Os EUA precisavam de muitos parceiros na regio do Oriente Mdio por ela ser uma regio estratgica. Dessa forma, eles no se limitaram aliana com Israel, investiram tambm em alianas com pases rabes, mesmo que esses pases, como o caso da Arbia Saudita, fossem inimigos de Israel. Isso foi uma forma de tambm garantir que a regio, que composta majoritariamente por pases rabes, no acabasse sendo dominada pela URSS, j que ela tinha a simpatia de boa parte desses pases. 24 Conjunto de mecanismos internacionais de discusso centralizados na estrutura da ONU. 25 Cotao o valor de um bem ou ttulo com base na moeda de um pas. Nesse caso, a cotao signica o preo da moeda de um pas com relao a moeda aceita internacionalmente como padro ou seja, que todos pases usam para comerciarem entre si. A cotao de uma moeda em relao a outra determinada pela unidade monetria no Brasil, por exemplo, o Banco Central com base na quantidade disponvel daquela moeda dentro do pas (oferta) e na busca por essa moeda (demanda). 26 Hegemonia, como aqui entendemos, signica o pas que possui maiores capacidades dentro do sistema internacio- nal de Estados. Trs elementos principais denem uma hegemonia: as capacidades militares (ou seja, poder exercer a fora sem medo de retaliaes), as capacidades econmicas (ou seja, a posse dos meios de pagamento que permita comprar outros pases), e a legitimidade de suas aes (ou seja, que suas aes tenham o apoio da maior parte dos outros pases). 91 AGH 74 com a entrada estadunidense no conito em 1961 e se estendendo at o presente ano, 1974, ainda que esteja procurando retirar-se de l). Enquanto isso, pases como o Japo e a Alemanha Ocidental, que apesar de fortemente afetados pela derrota na Segunda Guerra Mundial, se tornavam os principais beneciados com os investimentos de reestruturao por parte dos EUA. Consequentemente, estes pases voltavam a demonstrar economias fortes e altas taxas de desenvolvimento. Deve-se ressaltar tambm outro fator de grande importncia na economia mundial ps-guerra: o petrleo. Desde a Primeira Guerra Mundial, o petrleo j havia se convertido na principal fonte de energia do mundo. Assim, o desenvolvimento dos pases est fortemente vinculado disponibilidade de petrleo para fazer funcionar suas indstrias, desenvolver produtos ou mover meios de transporte. At o ano de 1960, no havia nenhuma organizao internacional responsvel pelo controle da explorao ou dos preos do petrleo. A explorao mundial de petrleo era fortemente concentrada em 7 empresas, conhecidas como Sete Irms 27 , que agiam como um cartel 28 para controle do produto. Em 1960, foi criada a Organizao dos Pases Exportadores de Petrleo (OPEP), com o objetivo de coordenar as polticas petrolferas dos pases produtores, tornando possvel controlar a oferta mundial e impulsionar os preos e os lucros para os pases produtores. Com a OPEP, os maiores produtores de petrleo passa- riam a discutir e a adotar aes comuns com relao venda desse produto. O objetivo era aumentar os lucros para os pases que detinham as reservas, atravs de polticas regulatrias da explorao por parte de empresas estrangeiras, que pagavam pouco pelo petrleo extrado, e o vendiam a preos muito maio- res. At 1973, seus membros eram: Arglia, Lbia, Nigria, Arbia Saudita, Emirados rabes Unidos (EAU), Ir, Iraque, Kuwait, Catar, Indonsia, Equador e Venezuela. Em 1968, foi criada a Organizao dos Pases rabes Exportadores de Petrleo (OPAEP), pelos pases rabes integrantes da OPEP. Essa organizao surgiu com o objetivo de utilizar o petrleo como um instrumento poltico. Em outras palavras, os pases reconheceram a importncia do petrleo na eco- nomia mundial, e seus consequentes poderes enquanto detentores desse recurso. Assim, a OPAEP sur- giu como uma forma de fazer uso do petrleo para melhorar as condies econmicas e de inuncia internacional dos pases membros. Essa percepo da importncia do petrleo e do potencial de uma organizao que unisse os pases produtores surgiu com a Guerra dos Seis Dias de 1967 e o embargo 29 de petrleo realizado por alguns pases rabes do Oriente Mdio, como retaliao ao apoio ocidental a Israel durante a guerra. O embargo foi movido inicialmente aos EUA, Holanda, a Portugal, Rodsia e frica do Sul. Aos EUA por serem os maiores apoiadores de Israel; Holanda por deter a posse da Shell, uma das maiores empresas de petrleo do mundo; Portugal devido a luta contra a independncia de suas col- nias africanas; e Rodsia e Africa do Sul, devido aos regimes de apartheid que mantinham. Em 1973, a OPAEP era formada por Arbia Saudita, Arglia, Bahrein, Egito, EAU, Iraque, Kuwait, Lbia, Qatar e Sria. 1.3.2. A CRISE ECONMICA DOS ANOS 1970 E O AUMENTO DO PREO DO PETRLEO O incio da dcada de 1970 de fundamental importncia para entender os acontecimentos du- rante a Guerra do Yom Kippur. Em 1969, Richard Nixon foi eleito presidente dos EUA e assumiu um pas envolvido na Guerra do Vietn e com uma economia problemtica: os altos gastos no conito, as polti- cas pblicas internas e a concorrncia de Japo e Alemanha Ocidental diminuram signicantemente a reserva estadunidense de ouro, impactando em uma desvalorizao 30 do dlar e, por conseguinte, uma valorizao das outras moedas 31 . Como o Sistema Bretton Woods determinava uma taxa xa da relao entre o ouro e o dlar, uma diminuio nas reservas signicava uma diminuio no valor do dlar. Pelo 27 Nos anos 1960 as Sete Irms eram: Esso, Texaco, Socony, Socal, Shell e a British Petroleum (BP). Atualmente, aps fuses entre as prprias empresas, so apenas quatro: Shell, BP, ExxonMobil e Chevron. 28 Forma de concorrncia em que empresas, voluntaria ou involuntariamente, passam a agir de modo coordenado para xar preos ou cotas de produo, dividir clientes e mercados ou para eliminar concorrentes e aumentar os preos dos produtos, a m de obter maior lucro. comum em mercados em que existe um nmero pequeno de rmas e com produtos homogneos (iguais). 29 Embargo aqui signica a restrio ao comrcio com algum pas. No caso, alguns pases rabes como o Iraque, a Sria, o Kuwait, a Lbia e a Arbia Saudita, limitaram a venda de petrleo aos EUA e a Inglaterra, que apoiavam Israel na Guerra contra o Egito. 30 Uma desvalorizao de uma moeda quando esta, em regime de cmbio xo (que no utua livremente pelas in- uncias do mercado), perde valor em relao a outra moeda. Uma desvalorizao do dlar em relao libra esterli- na, por exemplo, signica uma queda no preo de cada dlar em termos de libras. Basicamente, quando uma moeda perde poder de compra em relao a outra moeda ou, como no caso, perde poder de compra de maneira geral (em relao a vrias moedas), visto que se precisa de mais dessa moeda (a desvalorizada) para importar a mesma quanti- dade de bens do exterior. Em oposio, a valorizao quando, em cmbio xo, uma moeda se valoriza perante outra moeda ou perante vrias, ou seja, ganha poder de compra. 31 Foi o caso do marco alemo, moeda da Alemanha Ocidental. Em maio de 1972, o pas deixou o Sistema de Bretton Woods, o que signicava no manter mais uma taxa xa de converso da sua moeda. 92 UFRGSMUNDI fato de o dlar ouro ser o padro internacional de valor, uma diminuio no preo do dlar signicava uma diminuio tambm nos preo das outras moedas. Objetivando recuperar a economia estadunidense e controlar as taxas de inao e de emprego, em agosto de 1971 Nixon declara o m do padro dlar ouro: em outras palavras, o dlar estadunidense no seria mais convertvel a um valor de ouro no era mais necessrio que o dlar estivesse relaciona- do a uma quantidade especca de ouro sicamente existente. Era o m do padro surgido em Bretton Woods. Agora o preo do dlar poderia ser determinado pelos EUA da forma que eles quisessem. O preo da moeda passou assim a variar devido oferta e a demanda por dlar, no que cou conhecido com pa- dro dlar utuante ou seja, o valor do dlar variava diariamente. O economista Paul Krugman, explica os impactos do ato de Nixon: O atual padro monetrio [padro ps-Bretton Woods] no especica nenhum papel especial para o ouro; na verdade, o Federal Reserve [equivalente ao Banco Central dos EUA] no obrigado a vincular o dlar a nada. Ele pode imprimir a quantidade de moeda que achar apropriado (KRUGMAN, 2014, traduo nossa). O m do padro dlar ouro e o incio do padro dlar utuante causou uma desvalorizao geral de todas as moedas, medida que grande parte dos Bancos Centrais do mundo passou a emitir moeda 32 , pois no se sabia quais seriam as consequncias do ato de Nixon. Como havia mais quantidade de moeda nacional na maior parte dos pases, o valor delas com relao ao dlar era diminudo. A diminuio abrup- ta do valor das moedas no foi acompanhada por uma diminuio no valor dos produtos, acarretando um aumento da inao mundial ou seja, os bens passaram a car mais caros para os consumidores. A inao se espalhou pelos setores da economia mundial, e como era de se esperar, chegou at o petrleo insumo bsico para produo industrial e de energia , aumentando em muitas vezes o seu preo de mercado. A situao piorou quando do incio da Guerra do Yom Kippur em outubro de 1973 por ao da OPAEP, ao erguer o embargo de petrleo e consequentemente aumentar ainda mais seu preo. Em janeiro deste ano, os presidentes do Egito e da Sria pases membros da OPAEP e beligerantes da guerra contra Israel encontraram-se para discutir sobre o uso do petrleo como uma arma poltica. A guerra se inicia no dia 06 de outubro e, seis dias depois, os Estados Unidos do inicio a Operao Nickel Grass para apoiar Israel com suprimentos e armamentos. Como retaliao ao apoio estadunidense, em 16 de outubro, a Arbia Saudita, Ir, Iraque, EAU, Kuwait e Catar anunciam unilateralmente um aumento do preo de petrleo em 70%, de 3,57 para US$ 5,11 o barril, e um corte progressivo de produo (YERGIN, 1991, p. 606). Um dia depois, a OPAEP declara apoio s aes de uso do petrleo como retaliao ao apoio ocidental a Israel na guerra e recomenda um embargo do produto. O presidente Nixon parece no se importar e anuncia um pacote de ajuda para Israel, no dia 19 do mesmo ms. o ponto decisivo para o embargo de petrleo movido pela OPEP contra os EUA e posteriormente levantado a outros pases. Tam- bm iria se cortar 5% a produo de petrleo com relao a setembro e continuar os cortes de maneira progressiva, mensalmente, at que seus objetivos fossem alcanados. A guerra se encerraria no dia 26 de outubro, mas o embargo sobre o petrleo se manteve. Em novembro, os pases rabes anunciaram um corte de 25% na produo esses cortes na produo, por diminurem a quantidade de petrleo produzido, levavam a aumentar o preo do produto, que agora por ser mais escasso se tornava mais caro. Em janeiro de 1974, foi anunciado um congelamento de preos at abril. Todavia o impacto do embargo total para os EUA, a Holanda, Portugal, a Rodsia e a frica do Sul j havia se espalhado pelo sistema econmico mundial. As empresas de petrleo foram obrigadas a aumentar seus custos drasticamente e o preo do petrleo subiu a US$ 12 o barril at o m do ano. A reduo da produo do produto tambm causou fortes impactos nas economias europeias e no Japo. O embargo foi encerrado em 17 de maro de 1974, aps avanos no processo de paz iniciado entre os beligerantes e mediado pelos EUA. Todavia, os impactos do embargo continuaram sendo sentidos ao longo do ano. Com o aumento do preo e com a menor disponibilidade do produto, foi causada uma reao em cadeia: as empresas petrolferas aumentaram o preo do petrleo por elas comercializado; os pases passaram a economizar seu consumo de petrleo; e o preo dos derivados do petrleo por exemplo, combustveis e produtos industrializados em geral para o consumidor nal se elevou. Por m, teve incio o racionamento e o temor da falta do produto, colocando em risco o funcionamento de fbri- cas, meios de transporte e gerao de energia eltrica nas grandes cidades de muitos pases do mundo. Houve tambm um impacto no preo dos produtos industrializados, que se mostrou signicativo principalmente para os pases em fase de industrializao ou para os pases no industrializados. O preo 32 O ato de emitir moeda signica imprimir mais notas ou ttulos papis com valor de dinheiro e disponibiliz-los no mercado para utilizao dos consumidores. Geralmente feito pelo Banco Central ou por uma autoridade mone- tria do pas. 93 AGH 74 dos alimentos e matrias-primas tambm tem um grande aumento, uma vez que diminuem os subsdios 33
para produo destes j que os pases no possuem mais tantas reservas disponveis. Em outras palavras, por no terem mais abundncia de recursos disponveis os governos de pases subdesenvolvidos no podem continuar nanciando a produo agrcola em seu pas. Assim, esses produtos tem um aumento nos preos, dicultando a venda e a competitividade com os produtos semelhantes de outros pases do mundo. Resumidamente, o aumento do preo do petrleo e o embargo signicavam que os pases do Ocidente no poderiam mais manter seu consumo de energia crescendo a 5% ao ano, como estava ocor- rendo, nem comprar petrleo barato e exportar produtos industrializados a preos muito mais altos do que o de produo. Em outras palavras, no era mais possvel manter os mecanismos de explorao dos pases em desenvolvimento. Nesse sentido, as palavras do X do Ir, Reza Pahlevi, em entrevista ao jornal New York Times em 1973, parecem ser uma boa sntese: claro que [o preo do petrleo] vai aumentar, [...] Vocs [pases do Ocidente] au- mentaram o preo do trigo vendido a ns em 300%, o mesmo ocorreu com o acar e com o cimento [] Vocs compram nosso petrleo bruto e nos vendem ele de volta beneciado na forma de produtos petroqumicos, por uma centena de vezes o preo que vocs o compraram [...] Seria no mnimo justo que, daqui para frente, vocs pa- guem mais pelo petrleo. Poderamos dizer umas 15 vezes mais (SMITH, 1973). 2. APRESENTAO DO PROBLEMA 2.1. CESSAR-FOGO E SITUAO DO ORIENTE MDIO EM 1974 A Guerra do Yom Kippur arrastou-se durante cerca de duas semanas. Aps o ataque surpresa dos egpcios e srios, Israel organizou-se e convocou os reservistas das Foras de Defesa de Israel (FDI), mobi- lizando grande parte da populao que serviu como reforo s tropas nacionais regulares: era o incio da contraofensiva israelense. Os territrios ocupados pelos rabes nos primeiros dias do conito j come- avam a ser cercados por Israel e as capitais Cairo, do Egito, e Damasco, da Sria, j estavam ameaadas (MISHAL, 2008). Ao mesmo tempo em que Egito e Sria percebiam o quanto as foras israelenses tinham penetra- do em seus territrios, aumentavam as hostilidades entre os protagonistas da Guerra Fria, com a URSS ameaando intervir efetivamente no confronto a m de defender os pases rabes de um massacre, e os EUA apoiando e armando Israel. Essa generalizao do conito comeou a preocupar as duas grandes superpotncias, levando-as a apoiar a deciso do Conselho de Segurana das Naes Unidas (CSNU) de emitir, no dia 22 de outubro, a resoluo nmero 338, estabelecendo o cessar fogo e o incio das nego- ciaes (MISHAL, 2008). O documento da ONU decretava que todos os grupos envolvidos na guerra deveriam cessar as aes militares em um perodo de at 12h aps a adoo da resoluo. Alm disso, ainda era expressa a necessidade de se fazer cumprir a resoluo de nmero 242, adotada em 1967, que dizia respeito Guerra dos Seis Dias (CONSELHO DE SEGURANA DAS NAES UNIDAS, 1973a). Tal resoluo armava que, para manter uma paz justa e duradoura no Oriente Mdio, era fundamental que Israel devolvesse os territrios ocupados durante aquela guerra, reconhecendo a soberania, integridade territorial e indepen- dncia polticas de todos os Estados da regio (CONSELHO DE SEGURANA DAS NAES UNIDAS, 1967). Apesar dos esforos da comunidade internacional para pr m ao conito, o prazo previsto pelo CSNU no foi atendido. Durante dois dias ainda houve ataques militares, resultando no total isolamento do exrcito egpcio pelas foras israelenses e na retomada dos ltimos territrios que ainda se encontra- vam sob o domnio rabe. Apenas no dia 24 de outubro os combates terminaram e o cessar-fogo entre Egito e Israel foi nalmente assinado, em 11 de novembro, no sendo formalmente raticado pela Sria. A partir do momento em que o embate militar estava suspenso, comeou o perodo das nego- ciaes: ambos os pases deveriam retornar s posies ocupadas em 22 de outubro, dia de adoo da resoluo do CSNU; as linhas de suprimento 34 , que antes isolavam o exrcito egpcio, seriam reestabe- 33 Subsdios governamentais tem a inteno de reduzir o preo nal dos produtos vendidos pelos produtores, para que estes produtos possam competir com os produzidos por outros pases. Pode ser feito atravs de emprstimo de dinheiro, diminuio de impostos cobrados, e at mesmo pagamento de valores para que se produza determinado produto. 34 Linhas de suprimento referem-se infraestrutura que possibilita o abastecimento de tropas durante conitos. Em 94 UFRGSMUNDI lecidas a m de liberar mantimentos e medicamentos para os soldados e para a populao; tropas das Naes Unidas, as quais haviam sido mandadas para o local como forma de proporcionar estabilidade ps-conito, foram alocadas em pontos estratgicos com o objetivo de garantir que os acordos fossem cumpridos (MISHAL, 2008). Depois da guerra, a situao do Oriente Mdio fragilizou-se ainda mais. Embora Israel tenha obti- do xito devido a sua superioridade militar, o pas teve seu status na regio afetado, pois se percebeu, nos primeiros dias do conito, que o seu poderio no era inabalvel. Ficou claro que, mesmo com suas con- quistas territoriais, Israel no era capaz de impor um acordo de paz baseado somente em seus interesses. Chegou-se ao ponto de, em novembro de 1973, instalar-se, por deciso governamental israelense, a Co- misso Agranat com o intuito de investigar os possveis responsveis pela falta de preparo de Israel diante de um conito eminente (DERSHOWITZ, 2003). Alm disso, os prprios EUA, enquanto superpotncia aliada do pas, mudaram sua postura internacional, envolvendo mais ativamente os interesses rabes nas negociaes e reatando relaes diplomticas com o Egito em novembro de 1973 (MAGNOLI, 2006). 2.1.1. DISPUTAS ACERCA DA DELIMITAO DAS FRONTEIRAS ISRAEL-EGITO E ISRAEL-SRIA A delimitao das fronteiras entre Israel e seus vizinhos rabes um problema que causa insta- bilidade na regio desde a criao do Estado judaico. Com o armistcio da Guerra do Estado de Israel assinado em 1949 entre os pases da regio, desenhou-se limites territoriais, denominados como Green Line (Linha Verde, em ingls) 35 . No entanto, com a j citada Guerra do Seis Dias, Israel ocupou e anexou todos esses territrios, aumentando a extenso de suas fronteiras. Mesmo com a resoluo nmero 242 do Conselho de Segurana da ONU, a qual determinava as retiradas das tropas israelenses e devoluo das reas dominadas aos pases rabes, Israel manteve tais regies sob seu domnio. O pas alegava que s negociaria a devoluo dos territrios se a comunidade rabe os reconhecesse enquanto Estado so- berano e estivesse disposta a rmar um tratado de paz (MISHAL, 2008). Sendo assim, a Guerra do Yom Kippur teve um carter de busca pela retomada dessas regies que estavam ocupadas por Israel. Ao nal do conito, o Egito ocupava parte signicativa da Pennsula do Si- nai, reconquistada nas primeiras trs horas de guerra, enquanto Israel expulsou as foras srias das Colinas de Gol e manteve-se ocupando a Cisjordnia e a Faixa de Gaza (MISHAL, 2008). Entretanto, mesmo aps a tentativa no muito bem-sucedida de recuperao de seus territrios, os pases rabes continuavam reclamando o seu direito de posse sobre as regies. A ONU mantinha-se rearmando o que fora estabelecido na resoluo 242 e pressionando Israel para que retirasse suas tro- pas. Nesse contexto, em janeiro de 1974, Israel e Egito acordaram a retirada de Israel da margem ocidental do Canal de Suez (MAGNOLI, 2006). As negociaes entre Israel e Egito foram fortemente incentivadas e apoiadas pelo Secretrio de Estado dos EUA, Henry Kissinger 36 . Esse teve importante papel na nego- ciao com a Sria e a resoluo do confronto nas Colinas do Gol. Quando aprovada a resoluo do CSNU declarando o cessar-fogo haviam ainda muitas disputas entre Israel e Sria e por isso no houve modicaes naquela frente. Uma soluo foi obtida em Maio de 1974 quando os dois pases assinaram um Acordo de Desengajamento. 2.1.2. POPULAES REFUGIADAS - PALESTINOS NO LBANO, SRIA E JORDNIA A criao do Estado de Israel resultou num problema conhecido como A Questo Palestina: cerca de 1 milho de rabes tiveram que deixar a regio palestina onde foi determinado pela ONU o estabelecimento do Estado judeu. Esse fator est na raiz de todos os conitos que se seguiram entre os dois povos. As Guerras rabe-israelenses resultaram em um escala enorme de refugiados, tanto que, em 1964, um grande grupo formado por lideranas rabes fundou a Organizao para Libertao da Pales- tina (OLP), com o objetivo de defender a Palestina da expanso judaica por meio da luta armada, bem como rearmar a autodeterminao dos povos, como j explorado (CLEVELAND, 2004). A Questo Palestina se agravou a partir da Guerra dos Seis Dias, quando Israel tomou territrios de maioria rabe, resultando em grandes uxos migratrios das populaes dessas regies para pases vizinhos que no estavam ocupados. Em grande parte, esses refugiados destinaram-se Jordnia, esta- belecendo bases da OLP no pas. No entanto, em 1970, o governo jordaniano voltou-se contra as foras guerrilheiras da OLP, pois as aes armadas destes contra Israel estavam gerando inmeras represlias israelenses ao pas. O episdio cou conhecido como Setembro Negro e resultou na morte de milhares de palestinos e na expulso da OLP da Jordnia. Aps esse fato, os rabes expulsos seguiram para o Lba- termos prticos, so estradas ou mesmo rotas martimas por onde passam transportes abastecidos com alimentos, remdios e armamentos, por exemplo. 35 Regies como Cisjordnia, Faixa de Gaza, Colinas de Gol e Pennsula do Sinai permaneceram como possesses rabes. 36 O Departamento de Estado dos EUA o equivalente ao Ministrio de Relaes Exteriores do Brasil. 95 AGH 74 no e para Sria, transferindo suas bases para l (BAILEY, 1984). Com a Guerra do Yom Kippur, o nmero de refugiados aumentou, agora incluindo tambm par- celas signicativas das populaes egpcia e sria, as quais fugiam de um novo conito que se desenhava. Embora os enfrentamentos tenham tido um m com o cessar-fogo, as hostilidades ainda permaneceram, principalmente entre Israel e as guerrilhas da OLP. O principal objetivo da OLP a criao de um Estado Palestino, assunto veementemente negado de ser negociado por Israel. Alm disso, algumas faces mais radicais da organizao palestina, com seu discurso abertamente contra a existncia de Israel, aca- bavam por dicultar o contato entre palestinos e israelenses. Portanto, a guerra do Yom Kippur no trou- xe nenhum avano para essa causa da OLP, pelo contrrio somente agravando a situao dos palestinos, que seguiram enfrentando problemas nos pases onde se instalavam. 2.2. INFLUNCIAS REGIONAIS E INTERNACIONAIS: O CONFLITO COMO PONTE ENTRE A SITUAO DE INSTABILIDADE REGIONAL E O CONFRONTO URSS-EUA Para uma melhor compreenso da maior parte dos acontecimentos internacionais ocorridos des- de 1945, deve-se levar em considerao a disputa por reas de inuncia existente entre Estados Unidos e Unio Sovitica: a Guerra Fria. A Guerra do Yom Kippur no diferente. Nesse conito, a participao dos EUA e da Unio Sovitica e de outros pases da regio foram de grande relevncia nos impactos que a guerra trouxe para o sistema internacional como um todo. Apesar do ambiente poltico do Oriente Mdio ser muito mais complexo do que a dicotomia da disputa entre Israel e palestinos, a simplicao no caso da guerra do Yom Kippur vlida. A despeito de suas rivalidades internas, marcadas principalmente pelas divises do islamismo que predominam em cada um dos pases, o grupo rabe de pases produtores de petrleo agiu de modo mais ou menos homog- neo. At mesmo o pas persa da regio, o Ir, historicamente um pas opositor Arbia Saudita princi- pal fora poltica da regio , aderiu ao embargo de petrleo. Desse modo, procurar-se- demonstrar a inuncia da disputa estratgica entre EUA e URSS na conjuntura da Guerra do Yom Kippur e quais os impactos do comportamento dos atores regionais, dentro dessa lgica. Os EUA desde o incio foram grandes defensores e parceiros de Israel, inclusive sendo o primeiro pas a reconhec-lo internacionalmente. A principal forma de auxlio dos EUA para Israel na forma de forma de doao de recursos, atravs do forte poder de inuncia da comunidade judaica estaduni- dense. Essa comunidade se formou principalmente com a migrao de judeus europeus no perodo do entreguerras e na Segunda Guerra Mundial. Aos poucos, constituiu relaes profundas com setores da sociedade americana e obteve representao no Congresso, alm de fundar instituies de nanciamen- to ao sionismo ao redor do mundo, mas principalmente em Israel. A execuo do lobby se d atravs de instituies de nanciamento, grandes empresas de comunicao, e atravs de presena em centros de estudo que mantm contato com o Congresso. Portanto, o poder de Israel na regio tem por trs o apoio dos EUA, seja na proviso de armamentos, seja no fornecimento e desenvolvimento de novas tecnologias de produo de armamentos. O apoio estadunidense age como um fator de dissuaso para Israel contra ataques de seus inimigos regionais ou seja, devido a seu grande poderio, Israel tem a ideia de que per- suadiria seus rivais a no ataca-los: seria isso a dissuaso aqui tratada. Durante o conito de 1973, os EUA mantiveram seu apoio incondicional a Israel, inclusive com o envio de suprimentos e armamentos, atravs de uma ponte rea, na chamada Operao Nickel Grass. Durante 32 dias, os EUA entregaram cerca de 22 toneladas em tanques, artilharia, munies e suprimen- tos. sabido que o embargo de petrleo movido pela OPEP foi uma reao a essa operao de apoio dos EUA a Israel. De acordo com Visentini (2012, p. 44), a guerra do Yom Kippur foi impulsionada pela postura estadunidense favorvel a intransigncia de Israel na regio: A alienao ocidental constituiu um reexo da vitria do pr-sionista [Henry] Kis- singer sobre os interesses petrolferos do Departamento de Estado. Na verdade o governo dos EUA sentia-se feliz, pois a debilidade rabe desmoralizava a URSS, que Washington desejava ver fora do Oriente Mdio. Se considerarmos que os EUA foram, em alguma parte, responsveis por essa conagrao, po- demos considerar que o objetivo nal dos rabes no era recuperar os territrios ocupados por Israel naquele momento. Antes disso, travavam uma guerra limitada 37 : as aes militares possuam objetivos 37 Guerra limitada aquele confronto em que o uso da fora de baixa intensidade e totalmente dentro do controle do Estado beligerante. Alm disso, as guerras limitadas so marcadas por terem um objetivo poltico bem delimitado antes do uso da fora. Assim, a fora utilizada como um modo de levar um conito para resoluo atravs de nego- ciaes diplomticas. 96 UFRGSMUNDI polticos bem denidos e claros. No buscavam seno uma vitria ttica 38 contra Israel para, assim, atrair uma mediao mais equilibrada dos EUA: imaginavam que assim seria buscada uma negociao mais sria, para que ento os rabes nalmente conseguissem reconquistar seus territrios. Se os EUA estavam envolvidos no conito, a URSS tambm estava. Mantendo relaes com o Egito desde o governo de Nasser, os soviticos eram os responsveis pela congurao militar do Egito devido aos repasses de armamentos. Contudo, essa relao no era muito estvel. Com a ascenso de Sadat presidncia egpcia e as poucas perspectivas de avano nas relaes Egito-URSS que s forneciam um pequeno apoio econmico e armamentos de penltima gerao, especialmente armamentos tticos, como fuzis de assalto e armas leves para os soldados , esse expulsa os cerca de 18 mil tcnicos soviti- cos presentes no pas (VISENTINI, 2012, p. 43). Esse fato marcar o incio de um afastamento progressivo entre os dois pases. As relaes mais signicativas da URSS eram com a Sria, principalmente desde que Hafez al-Assad assumiu o poder em 1970. Em 1972, foi assinado um pacto de segurana entre os dois pases, com o porto de Tartos 39 sendo cedido para uso dos soviticos, e esses fornecendo cerca de US$ 135 milhes em arma- mentos para a Sria. Durante a guerra de 1973, os soviticos tambm forneceram apoio Sria e o Egito, principalmente com armamento antiareo e tanques que iam sendo destrudos no conito. 2.3. IMPACTOS DA CRISE ECONMICA NO SISTEMA INTERNACIONAL Entende-se aqui a crise econmica decorrente da Guerra do Yom Kippur e do embargo do petr- leo como uma parte de um movimento mais complexo de reestruturao do poder mundial dos Estados Unidos. So sabidas as condies em que os EUA saram da Segunda Guerra Mundial e o papel de lide- rana econmica assumida por estes no perodo do ps-guerra, expresso pelo padro dlar ouro. J se mencionou tambm o m do padro dlar ouro em 1971 e os impactos imediatos desse ato. Contudo, cabe levantar questes mais complexas acerca desse acontecimento. Primeiramente, faz-se til esclarecer a opinio de Samir Amin (1978) sobre esse processo. O cres- cimento do poderio econmico do Japo e da Europa Ocidental colocaram em cheque a predominncia econmica dos EUA, que no m da dcada de 1960 e incio da dcada de 1970, passa por um perodo de pouco destaque nesse aspecto, sofrendo com taxas crescentes de desemprego e inao. A diferena dos EUA face a seus concorrentes se dava, em um primeiro momento, devido a maior diferena entre as taxas de produtividade e o preo dos salrios. Isso signica que pelos salrios no EUA serem mais baixo no pas, restava maior lucro para as empresas, e os produtos podiam ser vendidos a um preo mais baixo, se tornando mais competitivos em relao aos outros pases. Todavia, essa diferena desapareceu em um momento, principalmente devido ao aumento do salrio, e a segunda vantagem estadunidense, a exis- tncia de reservas para cobrir custos internacionais, tambm ou seja, o dlar, ainda com lastro no ouro, usado para pagar gastos em outros pases, na poca advindos principalmente da Guerra do Vietn. Aos poucos a credibilidade econmica e de polcia do mundo do pas diminua devido aos maus resultados no Vietn. As consequncias foram conhecidas: m da conversibilidade do dlar em ouro e a queda do preo do dlar e de outras moedas. Visentini (1992b, p. 12) explica melhor o processo: O dlar inacionava-se ao ser emitido em maior quantidade para cobrir o rombo or- amentrio [com a guerra do Vietn], o que depreciava as exportaes do Terceiro Mundo, valorizava as americanas e dava incio a uma inao mundial. O que a passagem acima quer dizer que o poder de compra do dlar o que se pode comprar em um dia com determinada quantidade de dinheiro se alterava rapidamente, encarecendo os produ- tos. Isso ocorria pelo fato de haver muita moeda circulando, que passava a impresso para as empresas de que haveria maior procura pelos bens, ao que era respondido com um aumento dos preos. Contudo, essa moeda era usada para pagar gastos no exterior, e no dentro dos EUA. A questo importante para os demais pases se deve ao fato de que o dlar a moeda padro de comrcio internacional: no momento em que ela se desvaloriza compra menos coisas hoje do que comprava ontem todos os pases sofrem. Os principais afetados so os pases do Terceiro Mundo que dependem da venda de seus produtos para 38 Vitria ttica signica vitria no campo de batalha. Esta diferente da vitria estratgica, que implicaria em algum tipo de derrota plena das foras armadas israelenses ou ento uma rendio devido aos constrangimentos econmi- cos e de recursos da guerra. 39 Porto srio localizado no litoral do Mar Mediterrneo. Sua importncia para a URSS se deve por ser um dos poucos locais em que navios de guerra soviticos ainda que em pequena quantidade podem car estacionados em guas quentes e de fcil acesso aos Oceanos. A URSS possui frotas no Mar Negro impedida por tratado de passar pelo Estreito de Bsforo em casos de guerra; no Mar do Leste, mais vulnervel a Marinha dos EUA; e no Mar de Barents, prximo ao Polo Norte, que tem seu acesso bloqueado durante parte do ano. 97 AGH 74 outros pases exportaes mas que no vendiam mais tanto, devido ao aumento do preo de seus produtos com relao ao dlar devido desvalorizao dessa moeda. Assim, com seus produtos enca- recidos, eles foram menos comprados e os pases do Terceiro Mundo passaram a ter prejuzos. Esses acontecimentos em 1971 aconteciam ao mesmo tempo em que a produo de petrleo nos EUA atingia seu pico. Enquanto isso, demais pases concorrentes (especialmente Japo e Alemanha Ocidental) alcanavam um pico de importao do produto. Em outras palavras, os EUA eram menos dependentes de petrleo estrangeiro do que seus concorrentes no sistema internacional pelo fato de o produzirem internamente. A URSS na poca encontrava-se em situao semelhante a dos EUA, inclusive sendo fornecedora de petrleo para todo o campo socialista na Europa Leste. Assim, preciso entender que o embargo de petrleo movido pela OPEP contra os EUA em 1973, decorrente da Guerra do Yom Kippur, no foi to prejudicial ao pas quanto foi para os outros pases desenvolvidos no produtores de petrleo, como o Japo e a Alemanha Ocidental. Por mais paradoxal que parea essa anlise, tambm se pode estend-la para a URSS: na poca, um dos pases mais autos- sucientes do mundo, produtor de petrleo e demais matrias-primas, os soviticos seriam beneciados em caso de um aumento no preo desses produtos, permitindo adquirir de forma mais barata tecnologia avanada estrangeira. Ou seja, devido ao ganho que o pas teria vendendo petrleo por um preo mais alto, poderia comprar tecnologia estrangeira sem prejudicar tanto suas reservas de dinheiro. A tendncia tambm para o longo prazo que essas tecnologias passassem a custar menos, devido a crise que asso- laria os pases dependentes de importaes de petrleo. No entanto, alm de Japo e Europa Ocidental, quem sai prejudicado pela crise so os pases do Terceiro Mundo, principalmente aqueles em desenvolvimento. Dependentes de importaes de produtos industrializados produzidos pelos pases desenvolvidos, esses pases se veem fortemente afetados pelo aumento do preo desses produtos 40 . Ainda que tenham incorrido lucros maiores para suas economias, decorrentes do aumento do preo das matrias-primas ou do petrleo no caso daqueles exportadores do produto essa diferena no signicativa para diminuir as consequncias do aumento do preo dos produtos industrializados. E mesmo que tal evento pudesse beneciar a produo industrial caso os governos se utilizem de polticas de promoo da industrializao e diminuio da importao de produtos industrializados de outros pases, a tendncia em pases do Terceiro Mundo no a converso desse ganho econmico em capacidade do pas. Como a renda concentrada e as empresas do setor industrial desses pases possuem grande quantidade de capital estrangeiro vindo dos EUA, da Europa Ocidental os ganhos tendem a se concentrar em uma elite no interessada nos interesses daquele pas, mas sim nos interesses de onde vem o capital que criou sua indstria. Isso ao contrrio de emancipar, dar maior independncia de ao internacional ao pas, fortalece ainda mais o ciclo de dominao dos EUA e de outros pases oci- dentais (AMIN, 1978, p.43). Os pases produtores de petrleo, organizadores do embargo, tambm no so beneciados. Vi- sentini (2012, p. 47) fala em especial dos pases rabes: [] apesar de certos ganhos imediatos, a nova renda do petrleo acabar no favore- cendo os pases rabes e muulmanos. Os desequilbrios internos das sociedades lo- cais se aprofundaram, desestruturando o tecido social e corrompendo as elites, pois cresceram a dvida, o consumo e a inao. Muitos dos pases do Golfo sequer pos- suam um Banco Central e os petrodlares [dlares advindos da venda do petrleo] acabaram retornando ao Ocidente. Paradoxalmente aqueles que se beneciam so as empresas produtoras de petrleo, justamente aquelas as quais os pases da OPEP se opunham e que foram a motivao para a criao da organizao. O aumento do preo do petrleo pela organizao no passou de 70% do valor de setembro de 1973. Boa parte do aumento que alcanou quatro vezes o valor do produto foi causado pelas companhias petrolferas que manipularam a crise e o medo de escassez com uma especulao para aumentar seus lucros (VISENTINI, 2012, p. 47). Essa manipulao era feita visando a aumentar seus lucros, vendendo um produto que era altamente demandado, mas com uma pequena oferta. Em outras palavras, independente do preo que as empresas atribussem ao petrleo, ele seria vendido, pois era uma necessidade bsica da populao e das indstrias dos pases por isso que aproveitaram para aumentar ainda mais o preo. O poder de cartel da OPEP tambm foi afetado aps o embargo, devido criao da Agncia Internacional de Energia. Proposta por Kissinger ainda em 1973, ela foi criada em 1974 com o objetivo de organizar a poltica energtica de seus pases membros e de intervir no mercado de petrleo quando 40 Os produtos industrializados exigem grandes quantidades de petrleo para serem produzidos, seja em sua com- posio, seja na gerao de energia. Assim, quando o preo do petrleo aumenta, a tendncia haver um aumento tambm no preo desses produtos. 98 UFRGSMUNDI necessrio (SCOTT, 1994). Em outras palavras, era a criao de um rgo equivalente a OPEP, mas com- posta pelos pases desenvolvidos e consumidores de petrleo, que tambm detinham a sede das maiores empresas petrolferas. Assim, essa foi uma tentativa dos pases desenvolvidos de reagir internacional- mente aos privilgios polticos e econmicos obtidos pelos pases do OPEP com o controle do petrleo. 3. AES INTERNACIONAIS PRVIAS A discusso sobre a guerra entre rabes e israelenses de 1973 no demorou a ser levada ao Con- selho de Segurana da ONU. A primeira Resoluo sobre esse conito foi aprovada no dia 22 de outubro, aps intensas negociaes entre os Estados Unidos e Unio Sovitica. A Resoluo 338 exigia um cessar fogo imediato entre as partes conitantes, que deveria ser implementado em um mximo de 12 horas a partir da aprovao da resoluo (CSNU, 1973a). Como os combates no foram interrompidos, uma nova resoluo foi aprovada no dia seguinte - a Resoluo 339 - renovando o pedido para um cessar fogo imediato, nos termos estabelecidos na resoluo anterior. Alm do mais, uma equipe de observadores da ONU deveria ser enviada para supervisionar o cessar fogo entre Israel e Egito (CONSELHO DE SEGURAN- A DAS NAES UNIDAS, 1973b). Novamente, a tentativa de encerrar as agresses falhou, e os observa- dores da ONU foram impedidos de se posicionar de ambos os lados da linha estabelecida no cessar-fogo. Os combates s se encerraram no dia 26 de outubro de 1973, quando o Conselheiro de Segurana Nacional do Egito, Hafez Ismail, entrou em contato com os Estados Unidos, declarando que o Egito es- tava disposto a comear dilogos diretos com Israel para a paz. No dia anterior, havia sido aprovada uma nova Resoluo do Conselho de Segurana da ONU, a Resoluo 340. Dessa vez, demandava-se que as foras militares retornassem para as posies anteriores s que ocupavam no dia 22 de outubro. Tambm foi decidido enviar uma Fora de Emergncia das Naes Unidas, que deveria ser composta de pessoal de Estados-membros da ONU que no estivessem compondo o Conselho de Segurana. O nmero de observadores militares em ambos os lados do conito deveria ser aumentado e relatrios dirios seriam enviados ao Secretrio-Geral da ONU (CONSELHO DE SEGURANA DAS NAES UNIDAS, 1973c). A Re- soluo 341, do dia 27, aprovava o envio dessa Fora de Emergncia (UNEF, do ingls United Nations Emergency Force) para a zona do conito (CONSELHO DE SEGURANA DAS NAES UNIDAS, 1973d). Desse momento em diante, Henry Kissinger Secretrio de Estado dos Estados Unidos poca serviu como intermedirio entre os pases rabes e Israel, criando as bases para uma possvel futura conferncia de paz. Aps a derrota contra Israel, tanto o Presidente do Egito, Anwar Sadat, quando o da Sria, Hafez Assad, demonstraram interesse em abandonar posies mais radicais e prosseguir os esforos de paz com a mediao estadunidense (KISSINGER, 1994, p. 739). No dia 15 de dezembro, o Conselho de Segurana aprovou a Resoluo 344, apoiando a organizao de uma Conferncia de paz a ser organi- zada em Genebra (CONSELHO DE SEGURANA DAS NAES UNIDAS, 1973e). Esta teve incio no dia 21 do mesmo ms e foi presidida conjuntamente pelos Estados Unidos e pela Unio Sovitica, com apoio do Secretrio-Geral da ONU. Participaram os ministros de Relaes Exteriores da Jordnia, do Egito e de Israel, mas no da Sria. Dessa forma, aps algumas discusses, a conferncia foi adiada. Embora a conferncia em si no tenha resultado em nenhum acordo, possibilitou o desenvolvimento posterior das negociaes entre Israel, Egito e Sria. Depois disso, Henry Kissinger seguiu cumprindo papel de intermedirio entre as partes, o que resultou na assinatura de um Acordo de Separao de Foras, assinado entre Israel e Egito, no dia 18 de Janeiro de 1974. Conhecido como Sinai I, seus termos garantiam que Israel retrocedesse suas tropas das reas ocupadas a oeste do Canal de Suez, que se encontravam sob sua posse desde o nal das hostilida- des. As foras israelenses na fronteira foram recuadas de modo a se estabelecer zonas de segurana para o Egito, Israel e a ONU. Um acordo em moldes semelhantes foi assinado com a Sria em 31 de maio do mesmo ano. Fo- ram devolvidos os prisioneiros de guerra de ambos os lados, Israel recuou da maior parte dos territrios que havia ocupado durante os confrontos e foi estabelecida uma zona tampo entre os dois pases. No mesmo dia, foi aprovada a Resoluo 350 do Conselho de Segurana, estabelecendo a Fora das Naes Unidas de Observao da Separao (UNDOF, do ingls United Nations Disingagement Observer Force). Essa fora atua de modo a supervisionar o cessar-fogo entre Sria e Israel e o respeito s reas de separa- o (CONSELHO DE SEGURANA DAS NAES UNIDAS, 1974). 99 AGH 74 4. POSICIONAMENTO DOS PASES As posies de Egito e Sria, os dois beligerantes rabes do conito, so muito semelhantes. Am- bos objetivam avanar na reconquista dos territrios perdidos nos conitos anteriores com Israel, prin- cipalmente no de 1967. Alm disso, ambos os pases so aliados da Unio Sovitica, que participou da guerra fornecendo armamentos e suprimentos para os dois pases ainda que o Egito esteja progressiva- mente se afastando de Moscou e aproximando-se de Washington. A deciso da OPEP de usar o petrleo como arma poltica partiu da sugesto dos dois pases, ambos membros da OPAEP. A aliana com a Unio Sovitica se d mais por motivos estratgicos do que por alinhamento ideolgico: esta serve na medi- da em que os soviticos fornecem armamentos e assistncia econmica, demonstrando quo perigoso pode ser a presena sovitica na regio, de apoio a pases crticos a Israel. A Lbia talvez seja o pas desse bloco que mais incondicionalmente apoie Egito e Sria, inclusive sendo um aliado da URSS. A posio de Israel, o outro beligerante do conito, fortemente condenatria da agresso militar que sofreu por parte do Egito e da Sria, que articularam os demais pases rabes produtores de petrleo para fazerem uso do petrleo como arma econmica e poltica contra Israel e seus aliados. A fora de Is- rael para resistir contra os ataques rabes residiu principalmente no apoio que recebeu dos EUA, seu prin- cipal apoiador na resistncia, fato que d a Israel uma grande capacidade de dissuaso no Oriente Mdio. As demais relaes de Israel se articulam atravs do eixo de relaes do bloco capitalista aliado dos EUA. A Arbia Saudita um dos pases de maior destaque no debate. Forte opositor de Israel, mas tambm aliado histrico dos EUA no Oriente Mdio, a Arbia Saudita o centro de referncia para o posicionamento da maior parte dos pases rabes e usa esse fator como centro de sua poltica externa, marcada pela unidade rabe e solidariedade islmica. O pas defende que a Guerra do Yom Kippur no uma tentativa de destruio do Estado de Israel, mas sim uma forma dos Estados rabes recuperarem os territrios ocupados por Israel e de chamarem a ateno dos EUA para a regio, em busca de um aliado de maior conana do que a URSS. A Arbia Saudita possui as maiores reservas de petrleo do mundo e foi um dos principais organizadores do aumento do preo do petrleo. O pas se ops inicialmente ao embargo de petrleo devido sua aliana ao EUA, mas, ao perceber a intransigncia desse quanto ao apoio a Israel, aprovou juntamente aos pases da OPAEP um embargo aos pases apoiadores de Israel. O Kuwait teve um forte papel nessa mudana de posio da Arbia Saudita quanto ao embargo, demonstrando o protagonismo de quem um dos pases fundadores da OPEP. O Kuwait tambm um forte defensor do Egito e da Sria contra Israel e no mantm relaes diplomticas com esse pas. Apesar das relaes com os EUA, o Kuwait um dos pases que mantm o posicionamento mais assertivo em prol da unidade rabe, tendo importante peso na deciso da Arbia Saudita em seguir apoiando os esforos rabes e clamando pela devoluo dos territrios ocupados por Israel. As grandes reservas de petrleo desse pas o fazem grande defensor do aumento do preo realizado pela OPEP, em reunio convocada e realizada nesse pas. Os Emirados rabes Unidos possuem um posicionamento bastante semelhante ao da Arbia Sau- dita, uma vez que mantm relaes prximas com os EUA, mas tambm se posicionam contrariamente a Israel, em prol da unidade rabe, e favoravelmente ao aumento do preo do petrleo e ao embargo. Posio semelhante a do Iraque, outro pas de destaque na regio, que defende fortemente o direito dos pases produtores de petrleo de aumentar o preo do produto e do uso do mesmo como arma poltica contra Israel. Cabe lembrar que existe uma grande rivalidade entre Iraque e Israel, bem como entre o Iraque e o Ir. As posies dos trs so antagnicas tambm nessa discusso, e achar uma convergncia entre elas uma grande diculdade que os pases tero de resolver. Om mantm uma posio de apoio aos interesses dos rabes e alinhada Arbia Saudita, porm menos crtica ao Estado de Israel do que os outros pases anteriormente citados. Apesar de no ser da OPEP ou OPAEP, Om apoia o aumento do preo do petrleo, conforme a posio do Ir, seu maior alia- do regional. Com posio condizente a da Arbia Saudita tambm podemos mencionar a Tunsia, tanto no apoio ao aumento do preo do petrleo, quanto a posio anti-Israel e pr-rabe. Dentro desse bloco, encontra-se a Jordnia, um pas com boas relaes com os EUA e o Iraque e com um relacionamento conturbado com Israel e com a Sria. No que consta questo do petrleo, a Jordnia se posiciona favoravelmente OPEP, uma vez que passou a receber maior auxlio econmico de seus vizinhos rabes produtores de petrleo. Sobre a Guerra do Yom Kippur, a neutralidade jordaniana foi decisiva, pois aumentou as chances de resistncia de Israel contra os rabes. O pas possui relaes conturbadas com Israel e Sria devido ao problema dos palestinos que migram em massa para territrio jordaniano, fugindo das opresses cometidas por Israel e Sria. Antes do conito, a Jordnia tinha rela- es estveis com Israel, inclusive alertando-o do risco de um ataque. Contudo, no conito, posicionou- 100 UFRGSMUNDI -se como apoiadora da Sria e da causa dos rabes. Todavia, esse foi um posicionamento tmido devido s relaes desse pas com os EUA e com a Inglaterra, apoiadores de Israel. O posicionamento do Lbano segue um pouco a linha do apoio aos rabes inclusive na questo do petrleo , mas tendendo para a neutralidade. O apoio se deve aos fortes laos com a Sria e com a Arbia Saudita, bem como ao problema dos palestinos, que se refugiam em grande nmero no pas. Por isso, o pas defende fortemente a criao de um Estado Palestino, para reduzir essa populao em seu pas, posicionando-se contrariamente a Israel. Entretanto, a aliana com os Estados Unidos e a proximi- dade de Israel tornam essa posio libanesa pouco assertiva. Outra posio bastante singular a do Bahrein, que se posiciona favoravelmente ao Egito e Sria, advogando a devoluo dos territrios ocupados por Israel, mas contrariamente ao aumento do petrleo. O pas no faz parte da OPEP, apesar de sua economia depender basicamente dos recursos do petrleo. Por esse motivo, com o aumento do preo do petrleo e com o consequente aumento dos preos de outras matrias-primas e produtos industrializados, o Bahrein teve sua economia afetada. Portanto, vai contra as aes da OPEP e mantm-se fortemente alinhado aos EUA. Posio semelhante a do Afega- nisto, que apoia a causa dos rabes, pois depende de boas relaes com esses pases, mas condena as decises da OPEP, conforme posio dos EUA. Antes prximo da URSS, em 1973, o Afeganisto passou a ter relaes externas mais independentes e prximas do Ir, Paquisto e EUA. O Paquisto, vizinho do Afeganisto, tambm um grande aliado dos EUA e se posiciona favoravelmente ao Estado de Israel e contra as aes da OPEP, pelos mesmos motivos de Afeganisto e Bahrein. O Ir foi um dos pases que capitaneou o aumento do preo do petrleo, como um membro da OPEP. Contudo, devido a sua aliana com os EUA, o Ir contra o embargo aos pases que apoiam Israel. O pas tambm apoia os israelenses no conito contra os rabes, utilizando essa disputa como forma de aumentar o antagonismo com seu maior rival regional, o Iraque. A posio da Indonsia bastante seme- lhante do Ir, pois tambm membro da OPEP, teve sua economia beneciada pelo aumento do preo do petrleo, mas vai contra o embargo por ser aliada dos EUA. A maior diferena reside na assertividade com que a Indonsia apoia Israel: no vai contra o pas, porm busca uma mediao dos interesses dos EUA com os pases rabes da OPEP. Como pases-membros da OPEP, temos tambm Equador e Venezuela, dois pases sul-ameri- canos que apoiam fortemente a deciso da OPEP de aumento do preo do petrleo, mas que no se posicionam sobre o embargo devido a suas relaes prximas com os EUA e sua distncia da regio do Oriente Mdio. Buscando maior autonomia no cenrio mundial atravs da OPEP, ambos os pases se mantm neutros quanto ao conito rabe-israelense, mas favorveis a medidas que tragam maior esta- bilidade para a regio. A Nigria um pas-membro da OPEP e apoia o aumento do preo do petrleo. A poltica externa do pas marcada por uma caracterstica de no-alinhamento aos interesses capitalistas dos EUA nem aos socialistas da URSS. Busca uma posio independentista que garanta as melhores condies para o desenvolvimento de sua nao. Nesse sentido, conta com o apoio de Gana, que defende o aumento do preo do petrleo como uma forma de os pases que antes eram explorados pelas grandes potncias possam obter maiores recursos econmicos de suas riquezas naturais. Apesar do no-alinhamento, a Nigria rompeu relaes com Israel e por isso se posiciona mais favoravelmente aos rabes, numa posi- o mais prxima da Arglia, outro pas no-alinhado. A Arglia uma forte opositora a Israel e grande patrocinadora de movimentos de libertao nacional pelo mundo, inclusive das iniciativas palestinas de criarem seu prprio Estado. Como pas-membro da OPEP, aderiu ao aumento do preo e ao embargo de petrleo. Outro pas de posicionamento no-alinhado a Iugoslvia, que, apesar de ter um regime socialista, rompeu com a URSS. O pas defende a criao de um Estado Palestino e apoia os rabes na luta contra Israel. Devido a sua economia frgil e dependente, contudo, a Iugoslvia se manifesta contraria- mente ao aumento do preo do petrleo, que afetou de maneira considervel sua economia, causando instabilidades e crescimento da dvida externa. Os Estados Unidos so a superpotncia capitalista da Guerra Fria e consigo renem o posicio- namento de diversos pases que fazem parte do chamado bloco capitalista ocidental do sistema inter- nacional. O pas historicamente o maior aliado de Israel e um dos principais mantenedores da grande capacidade militar daquele pas. Por isso, os EUA do total apoio s iniciativas israelenses e se opem vee- mentemente s aes do Egito e da Sria, as quais os EUA interpretam como parte da estratgia sovitica de ganhar maior inuncia e poder no Oriente Mdio. Os EUA foram alvo direto do embargo de petrleo movido pelos pases da OPEP em represlia ao seu apoio a Israel durante o conito. Assim, manifestam-se fortemente contra esse embargo e contra o aumento do preo do petrleo, que, no entendimento es- tadunidense, criou uma situao de instabilidade econmica no mundo. Todavia, os Estados Unidos no mencionam o fato de que suas empresas petrolferas se beneciaram das aes da OPEP, pois passaram a lucrar muito mais com a venda do petrleo, nem que as consequncias desse aumento no foram to 101 AGH 74 grandes na economia do seu pas que j estava com problemas , mas que, pelo contrrio: serviu para desestabilizar outros pases concorrentes a sua economia, ainda que aliados no bloco ocidental. Um dos pases que foi afetado pelos efeitos da deciso da OPEP foi a Repblica Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental), que teve uma reduo do suprimento de petrleo justo em um momento de grande cresci- mento econmico baseado fortemente na importao de petrleo vindo do Oriente Mdio. Por esse mo- tivo, o pas se manifesta contrariamente ao aumento do preo do produto e contrariamente ao embargo. Quanto ao conito rabe-israelense, o pas possui um comprometimento grande com a segurana de Israel e condenou as aes do Egito e da Sria, mantendo a posio da OTAN de apoio a Israel. Dentro do bloco capitalista, essa posio tambm defendida pelo Reino Unido da Gr-Breta- nha, que possui grande participao no conito rabe-israelense, visto que tinha controle da regio antes da criao do Estado de Israel. O pas foi vtima do embargo de petrleo e possui uma das posies mais contundentes de apoio a Israel, junto com os EUA, tendo tambm fornecido suprimentos a Israel durante a guerra. A posio de Portugal e da Austrlia apesar dessa no fazer parte da OTAN semelhante dos EUA e da Inglaterra, estando alinhados ao bloco capitalista. O Canad tambm alinhado aos in- teresses do bloco da OTAN, condena as aes da OPEP e apoia o Estado de Israel, apesar de manter uma postura mais moderada, em busca de esforos que estabilizem a regio e atuando inclusive atravs de misses da ONU. Como membro da OTAN e aliada dos EUA, a Turquia o pas mais prximo da regio do Oriente Mdio que se opem s aes da OPEP e tambm apoia o Estado de Israel contra os rabes e luta contra os esforos soviticos de aumentar sua inuncia na regio. A Frana, apesar de fazer parte do bloco capitalista ocidental e de ser membro da OTAN, favo- rvel aos pases rabes nas questes territoriais e tem uma postura bastante crtica a Israel. Com uma poltica externa marcada por uma tentativa de se afastar da disputa entre EUA-URSS, a Frana uma fornecedora de armamentos para alguns pases rabes e mantm bastante proximidade com Egito, Sria e Lbano, fruto de seu passado colonialista na regio. Por isso, defende a criao de um Estado Palestino, bem como a devoluo dos territrios ocupados ilegalmente por Israel. Contudo, ainda contra as aes da OPEP de aumento do preo do petrleo e ao embargo e, nesse ponto, mantm a posio de seus aliados do bloco capitalista. A Unio das Repblicas Socialistas Soviticas a superpotncia antagonista aos EUA na Guerra Fria, com uma ideologia socialista. Possui grande inuncia sobre o posicionamento de seus pases sat- lites, como so conhecidos os pases tambm socialistas da Europa Oriental. A URSS apoia o Egito e a Sria no conito rabe-israelense como uma forma de aumentar sua inuncia na regio e diminuir o poder de Israel e dos EUA. Forneceu apoio aos pases beligerantes, porm no possui relaes muito estveis com esses pases. Essa aliana est condicionada fortemente ao apoio sovitico com material e recursos eco- nmicos. A manuteno dessas aes fundamental para que a URSS continue aumentando sua inun- cia naquela regio. O pas no se posiciona claramente quanto s aes da OPEP, uma vez que estas no a afetam diretamente, pois possui autossucincia energtica. Assim, a superpotncia socialista entende essas aes como mais uma forma de enfraquecer o poder dos pases capitalistas no mundo e, princi- palmente, no Oriente Mdio. A Ucrnia possui um posicionamento semelhante ao da URSS, apoiando os pases rabes, buscando diminuir a inuncia das potncias capitalistas na regio e apoiando as aes da OPEP, pois o aumento do preo tambm elevou o preo de outras commodities, como alimentos, que a Ucrnia uma grande exportadora. A posio da Repblica Democrtica da Alemanha (Alemanha Oriental) semelhante da URSS tambm, apoiando fortemente os pases rabes contra Israel e tambm apoiando as aes da OPEP. H um grupo de pases que se encontram na chamada sub periferia do sistema internacional, que se encontram em condies de desenvolvimento econmico acelerado e que possuem um posicio- namento semelhante. Mxico, Argentina e Brasil passam por um acelerado processo de crescimento econmico, baseados em uma estratgia de substituio de importaes, com grande dependncia de petrleo estrangeiro. A deciso de aumento do preo do petrleo pela OPEP afetou o crescimento desses pases e desencadeou situaes de crise de dependncia energtica. Por esse motivo, os trs so contra as aes da OPEP e contra o embargo. Quanto ao conito rabe-israelense, os pases possuem uma posio neutra, defendendo o direito internacional, condenando a agresso cometida por Egito e Sria, mas tambm criticando a ocupao ilegal de territrios por Israel. Nesse aspecto, o Brasil quem se po- siciona de modo mais autnomo, sendo mais crtico de Israel, numa tentativa de aumentar suas relaes com pases rabes, como Iraque e Arbia Saudita, para obter vantagens econmicas no suprimento de petrleo mais barato. Por m, na sia, trs pases possuem posies bastante singulares. A Repblica Popular da China era aliada da URSS, mas, a partir de 1971, passou a se aproximar dos EUA. Atualmente um forte opositor do socialismo sovitico, defendendo um regime socialista maoista, conforme os preceitos do governo de Mao Zedong. Defende a libertao dos povos do Oriente Mdio do julgo dos soviticos e uma aproxima- o desses pases com a China e com os Estados Unidos. A China apoia as aes da OPEP, pois o aumento 102 UFRGSMUNDI do preo do petrleo permitiu o aumento das exportaes chinesas e a explorao de petrleo na China, com um consequente aumento das vendas para outros pases da sia. A ndia, por sua vez, contrria s aes da OPEP, pois o aumento do preo do petrleo afetou a frgil economia indiana. O pas entende que a desregulamentao do sistema monetrio e nanceiro mundial, com o m do Sistema de Bretton Woods em 1971 e com o aumento do preo do petrleo, so os principais fatores para o desemprego, a recesso econmica, o aumento da inao e a ecloso de greves e revoltas no pas. Quanto ao con- ito rabe-israelense, a ndia se posiciona favoravelmente aos rabes e condena as polticas agressivas de Israel, defendendo tambm a criao de um Estado Palestino. De modo geral, prximo da URSS, mas mantm uma poltica de no-alinhamento, privilegiando as relaes com pases do Terceiro Mun- do. Por ltimo, o Japo mudou sua poltica externa em funo dos eventos ocorridos durante a guerra do Yom Kippur. Passando por uma fase de grande crescimento econmico, recuperando-se das perdas econmicas decorridas da Segunda Guerra Mundial, o Japo fortemente dependente do petrleo rabe vindo do Oriente Mdio. Contudo, aliado dos EUA e constitui o chamado bloco capitalista. Antes um apoiador de Israel, o Japo passou a apoiar os pases rabes, aps ter sofrido um embargo provisrio de petrleo, movido por Arbia Saudita e Kuwait. Por j sofrer gravemente os impactos do aumento do preo do petrleo, o pas mudou de seu apoio a Israel e passou a condenar a ocupao ilegal dos territrios rabes, inclusive de Jerusalm Oriental. Na questo do petrleo, ainda se posiciona de modo fortemente contrrio ao aumento abusivo do preo do petrleo realizado pelas empresas petrolferas estrangeiras, que comprometem a capacidade de crescimento e competitividade internacional da economia japonesa. 5. QUESTES A PONDERAR: 1. Quais sero os impactos do cessar-fogo e como se conguraro as relaes entre os pases do Oriente Mdio, principalmente Egito, Sria e Israel? 2. Como as disputas territoriais podero ser resolvidas? O que fazer para que as fronteiras sejam delimitadas de um modo que seja aceito por ambos os pases beligerantes? Como os demais pases podem participar desse processo? 3. A quem o aumento do preo do petrleo beneciou e a quem prejudicou? Com base nisso, a ao da OPEP foi benca para os pases membros da organizao? 4. O que os pases podem fazer para diminuir a vulnerabilidade de suas economias e da econo- mia mundial a crises como essa do petrleo? 5. Qual o impacto da Guerra Fria e das disputas por rea de inuncia no Oriente Mdio na Guerra do Yom Kippur de 1973? Como os pases podem utilizar esse conito para denirem sua postura internacional frente disputa da Guerra Fria e ao mundo dividido entre o bloco capitalista e o bloco sovitico? REFERNCIAS AMIN, Samir. 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RESUMO A Assembleia Geral da das Naes Unidas (AGNU) o principal e mais representativo da rgo ONU, or- ganizao responsvel por manter a paz e a estabilidade do sistema internacional de Estados. Na terceira edio do UFRGSMUNDI, a AGNU ser simulada historicamente, como o encontro ordinrio do rgo no ano de 1974. O tpico a ser debatido ser A Crise do Petrleo de 1973 e seus impactos no sistema internacional. Devero ser abordados nas discusses dos delegados, aspectos referentes aos impactos econmicos e estratgicos da crise causada pelo aumento do preo do petrleo por pases membros da OPAEP (Organizao dos Pases rabes Exportadores de Petrleo) em retaliao ao apoio estadunidense Israel durante a Guerra do Yom Kippur, e em apoio Sria e Egito, beligerantes do conito. A guerra do Yom Kippur durou de 6 de Outubro de 1973 at o dia 26 daquele mesmo ms, enquanto o aumento do preo do petrleo s teve m em maro de 1974. Espera-se que durante o comit os delegados possam debater os impactos econmicos da crise do petrleo, ao mesmo tempo em que buscam solucionar as instabilidades da regio do Oriente Mdio e Levante, marcados pela inten- sa disputa entre rabes e israelenses. 105 CDH CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS Impacto de Sanes Econmicas sobre os Direitos Humanos Luiza Lopes 1 Othon Schenatto 2 Joana Vaccarezza 3 Lvia Costa 4 INTRODUO O Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organizao das Naes Unidas (ONU) um rgo intergovernamental criado em 2006 para fortalecer e promover a defesa dos Direitos Humanos no mun- do, bem como reconhecer as violaes de direitos humanos e criar recomendaes para elas. O rgo composto por 47 pases eleitos pela Assembleia Geral 5 da ONU 6 , e substitui a Comisso de Direitos Humanos da ONU 7 existente entre 1946 e 2006 exercendo funes similares a esta. Sediado em Genebra, na Sua, o CDH cria recomendaes 8 para a Assembleia Geral da ONU. Dentre diversos assuntos, o CDH trabalha com proteo e promoo dos direitos de minorias, de po- pulaes nativas, diminuio das desigualdades de gnero, promoo da democracia, da liberdade de expresso, do direito alimentao, da liberdade de crena e religio, combate escravido e ao trco de pessoas, etc (CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DAS NAES UNIDAS, 2014). 1. HISTRICO Sanes internacionais so medidas que um pas (ou grupo de pases, como a Unio Europeia) toma contra outro pas (ou contra outro alvo, como empresas, grupos ou pessoas) 9 . Essas medidas so contrrias ao interesse do pas alvo das sanes e so uma reao a alguma ao ou comportamento do pas-alvo que desrespeite alguma lei do Direito Internacional 10 ou que oferea alguma ameaa ter- 1 Estudante do 5 semestre de relaes internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 Estudante do 5 semestre de relaes internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Estudante do 3 semestre de relaes internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Estudante do 5 semestre de relaes internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 5 A Assembleia Geral da ONU o rgo que rene todos os pases membros da organizao. Nela, os pases podem discriminar sobre qualquer assunto que quiserem, tendo cada membro um voto. As resolues aprovadas por esse rgo no so obrigatrias. 6 Os pases so eleitos de acordo com a seguinte paridade por regio: 13 da frica, 13 da sia, 6 da Europa Oriental, 8 da Amrica Latina e Caribe, e 7 da Europa Ocidental e Outros (que inclui a Amrica do Norte, a Oceania e a Turquia). 7 A Comisso de Direitos Humanos da ONU foi extinta e substituda em 2006 em funo de receber inmeras crticas por permitir que pases com pouco ou nenhum respeito pelos direitos humanos zessem parte dela. 8 Ao contrrio de outras medidas tomadas por rgos da ONU, como as resolues do Conselho de Segurana, as recomendaes aprovadas pelo CDH no so obrigatrias, ou seja, os pases no so obrigados a segui-las. Mesmo assim, as recomendaes do CDH exercem grande presso sobre os pases, pois possuem grande legitimidade. 9 Neste guia de estudos, ns concentramos nossa ateno nas sanes internacionais voltadas para outros pases, e no a grupos de pessoas ou indivduos. 10 Direito Internacional o conjunto de normas e valores que guiam as relaes entre os pases. Essas normas podem vir tanto de tratados internacionais, como de costumes repetidos e obrigatrios de comportamento nas interaes ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.105-128 106 UFRGSMUNDI ritorial a outros pases. Elas buscam pressionar um pas para que este modique e repare estas aes e comportamentos, para prevenir impactos maiores dessas aes e para punir o pas em questo. Dentre outros motivos, as sanes podem ser utilizadas para levar pases em guerra a encerr-las, deter e punir o terrorismo, promover direitos humanos, restaurar lderes polticos eleitos democraticamente, promover o desarmamento de um pas (DECAUX, 2008). A noo disseminada sobre as sanes diz que ela uma alternativa pacca guerra. Como disse o ex-presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, em 1919: Uma nao que sofre um boicote uma nao prestes a se render. Aplique este re- mdio econmico, pacco, silencioso e mortal e no haver necessidade para o uso da fora. um remdio terrvel. No custa nenhuma vida fora da nao boicotada, mas faz um tipo de presso que, no meu julgamento, no pode ser resistido por ne- nhuma nao. (KONDOCH, 2002?, traduo nossa). Entretanto, como veremos adiante, nem sempre as sanes levam a nao a se render ou a bus- car modicar seu comportamento, o que levanta dvidas sobre sua eccia. Muitas vezes, elas apenas trazem privaes populao do pas, sem afetar a elite poltica e, consequentemente, no conseguindo atingir o seu objetivo de modicar a poltica interna do pas. As sanes internacionais podem ser aplicadas por diversos motivos, desde violaes de direitos humanos a ameaas paz internacional, e podem assumir vrias formas. Vamos separar essas formas em cinco categorias diferentes (BOSSUYT, 2012), a m de melhor compreenso: 1. Sanes econmicas: so medidas que afetam a capacidade de produo e de consumo de um pas, e que atingem grande parte se no toda a populao do pas. Exemplos de san- es econmicas so a imposio de limitaes a importaes e/ou exportaes de produtos do/para o pas, ou sanes que atinjam o seu sistema nanceiro. Esse tipo de sano ser mais bem trabalhado adiante; 2. Sanes diplomticas: diminuem as relaes diplomticas entre os pases. Medidas como a expulso de embaixadas e embaixadores, o cancelamento de vistos diplomticos 11 de polti- cos e autoridades do pas esto entre os exemplos de sanes diplomticas. Embora diminua signicativamente o dilogo entre os pases, esse tipo de sano no afeta to diretamente a populao como um todo; 3. Sanes militares: afetam as capacidades de defesa do pas-alvo. Entre os exemplos desse tipo de sano est a interrupo de vendas e transferncia de armamentos ou de suprimentos militares para o pas e a interrupo de assistncia ou treinamento militar entre os pases; 4. Sanes culturais: tem como exemplos o banimento de atletas do pas de competies inter- nacionais ou de artistas de eventos internacionais. Embora no afete o pas de maneira ma- terial, esse tipo de sano busca causar um impacto psicolgico na sua populao, causando constrangimentos morais que levariam a uma mudana de comportamento do pas; 5. Outros tipos de sanes: como exemplo, o impedimento de viagens a cidados de um deter- minado pas, ou de passagem de determinados navios ou aeronaves. Para compreender melhor essa dinmica entre o uso de sanes e o seu impacto sobre os direitos humanos, cabe retomar a trajetria histrica do uso de sanes buscando um maior entendimento das sanes econmicas e perceber suas nuances ao longo do tempo, em meio s diferentes correlaes de fora no sistema internacional de pases. 1.1. PRIMEIROS REGISTROS DE SANES ECONMICAS Sanes econmicas fazem parte da prtica diplomtica desde a Grcia Antiga. Um dos casos caso mais conhecido o Decreto de Megara feito por Pricles em 432 a.C. como resposta ao sequestro de trs mulheres (STE. CROIX, 1972, p. 252-260; FORNARA, 1975, p. 222-26). A sano consistia na limitao entrada de produtos de Megara no mercado de Atenas. No longo prazo, essa medida contribuiu para a ecloso da Guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas. Por terem sido pouco documentadas e estudadas ao longo da histria, costuma-se xar o incio histrico das sanes econmicas em 1765 com a Lei do Selo, lanada pelo governo da Inglaterra, que entre pases, ou ainda dos chamados princpios gerais de direito. 11 Vistos diplomticos so vistos concedidos s autoridades e aos diplomatas de um pas, que permite a sua livre cir- culao entre os pases, bem como a inviolabilidade de seus bens. 107 CDH dizia que os habitantes das treze colnias inglesas na Amrica do Norte tinham de axar selos em todos os jornais, folhetos e em numerosos documentos legais que circulassem por elas. Como os selos eram ingleses, na prtica essa lei servia como uma forma de explorao, pois ao compr-los os colonos trans- feriam recursos para a Inglaterra. Em resposta a essa medida, os colonos passaram a boicotar produtos ingleses e, por m, a medida foi revogada no ano seguinte (RENWICK, 1981, p. 5). Alm desse caso citado, costuma-se englobar nos primeiros registros de sanes econmicas outros acontecimentos anteriores Primeira Guerra Mundial, tal como o ocorrido entre 1767-70, mais uma vez envolvendo a Inglaterra e suas ento colnias norte americanas: mais um decreto, dessa vez o Ato Townshend, que criou impostos sobre diversos produtos, como o ch, vidro, papel, rechaado pelos colonos, dando origem aos primeiros anseios do Boston Tea Party 12 e seus desdobramentos no processo de independncia dos Estados Unidos (RENWICK, 1981, p. 5). Fazendo um salto histrico at 1912 13 , chegamos Itlia com seu bloqueio econmico sobre a Turquia com vistas a conquistar a Lbia. Com o apoio de outras correlaes de fora internacionais, a Itlia consegue tomar a Lbia do ento Imprio Otomano (DUPUY, 1970, p. 926). 1.2. SANES ECONMICAS PS GUERRAS MUNDIAIS. A maioria dos episdios de sanes econmicas que antecederam a Primeira Guerra Mundial cul- minou em conitos armados, seja entre grupos civis de um pas, seja entre potncias 14 ou entre metrpo- les e suas colnias ou regies subordinadas. somente a partir de 1918 e mais claramente aps 1944 que se comea a pensar que a vantagem de uma sano econmica estaria principalmente em seus reduzidos custos em comparao com a guerra, em poder substitu-la. Durante a Segunda Guerra Mundial, o objeti- vo das sanes econmicas era justamente desencorajar aes militares do pas atingido por sanes, ou servir como ferramenta a um objetivo estratgico de desmobilizao do inimigo de modo que um futuro embate militar fosse evitado, como no caso das sanes dos Estados Unidos sobre o Japo entre 1940- 41. Essas sanes visavam a cortar o suprimento de petrleo do Japo, sem o qual suas foras armadas no poderiam agir, e redesenhar o equilbrio de foras no Sudeste Asitico. Outro exemplo so as sanes dos Estados Unidos sobre a Argentina (1944-47), que tinha o objetivo de neutralizar a inuncia nazista sobre a regio, alm de fragilizar o governo de Juan Domingo Pern. no perodo aps a Segunda Guerra Mundial, a partir da consolidao da superioridade blica e econmica norte-americana, que as sanes econmicas passaram a ser aplicadas com outros ns diplo- mticos, sem esquecer a centralidade de sua capacidade de desmobilizao militar. Esse perodo mar- cado por fortes presses econmicas encabeadas pelos Estados Unidos para assegurar o cumprimento de sua agenda de interesses internacionais. A presso que fez sobre a Frana e Reino Unido para retirar suas tropas de Suez, no Egito, e a coero sobre Egito para que parasse de apoiar o Imen e o Congo em troca de ajuda alimentcia servem de bons exemplos dessa nova aplicao das sanes (HUFBAUER et al, 2007, p. 34). Sanes econmicas tambm foram utilizadas para alterar regimes polticos de diversos pases. No perodo da Guerra Fria, por exemplo, os Estados Unidos aplicaram sanes contra o governo socialista de Cuba (que duram at hoje), Repblica Dominicana, Brasil e Chile (HUFBAUER et al, 2007, 48). possvel armar que as sanes econmicas s quais esses pases foram submetidos contriburam ainda que no se possa determinar o quanto contriburam para os golpes aplicados nos presidentes democraticamen- te eleitos Rafael Trujillo, da Repblica Dominicana em 1961, Joo Goulart no Brasil em 1964 e Salvador Allende no Chile em 1973. Alis, a partir do sculo XX que se nota uma grande utilizao de sanes econmicas com objetivo de alterar regimes governamentais, visto que essa uma maneira relativamen- te menos agressiva de a opinio pblica perceber agresses externas (corpo miditico, sociedade civil, etc.), mas que podem ser to intervencionistas e violentas quanto propriamente uma interveno militar estrangeira, desestabilizando a balana de pagamentos de um pas e aumento seu endividamento exter- no, criando maiores laos de dependncia com os grandes centros capitalistas de poder. 1.3. SANES ECONMICAS A PARTIR DE 1990 Os discursos de defesa da democracia e da liberdade de expresso encabeados pelos EUA e pela Unio Europeia ganham fora a partir da dcada de 1990, ano da Guerra do Golfo quando o Conselho de 12 Boston Tea Party foi um protesto ocorrido em 1773 em que diversos colonos invadiram navios ingleses na cidade de Boston e atiraram caixotes de ch no mar. 13 O espao de tempo entre 1770 e 1912 pode ser consultado em nosso apndice no nal do livro. 14 O termo potncia se refere ao pas que considerado de destaque no globo por ter grandes capacidades militares, econmicas e estar envolvido nas dinmicas internacionais mais importantes. 108 UFRGSMUNDI Segurana da ONU aplica inmeras sanes comerciais, nanceiras e militares ao Iraque, por suas tropas terem invadido o Kuwait. Alm do Oriente Mdio, visvel a aplicao de sanes econmicas - especial- mente sob o manto do discurso de violaes de direitos humanos - no continente africano (Nigria, Togo, Burundi, Camares, pases que viviam maiores conitos internos tais como guerras civis e de grandes recursos energticos, como o petrleo.). Sanes econmicas tambm foram e so usadas principalmente para coibir aes terroristas desde 1970, com intensicao a partir dos anos 2000, depois do atentado s Torres Gmeas nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. Em 1980, por exemplo, os EUA aplicaram sanes econmicas con- tra a Lbia, Sria, Iraque e Imen por apoiarem atividades terroristas com armamentos e auxlio tcnico. A Guerra ao Terror promovida pelo ex-presidente americano George W. Bush baseou-se fortemente em sanes econmicas; importante frisar que a utilizao de sanes uma maneira estratgica de con- seguir apoio (ou melhor, de no ser vetado) pela comunidade internacional dado que tido como uma forma diplomtica e pacca de resoluo de conitos. No entanto, no caso da Guerra ao Terror, notria a utilizao de sanes como o incio de uma futura interveno militar propriamente dita, como ocorri- do no Afeganisto e no Iraque, locais que sofreram duras violaes de guerra e de soberania. 1.4. SANES ECONMICAS NOS DIAS ATUAIS Sanes econmicas foram feitas primeiramente para penalizar um ator internacional sobre um determinado ato e constrang-lo a alterar sua postura. Mas e quando o custo nanceiro to grande e capaz de jogar um pas falncia? Como avaliar a legitimidade e grau de impacto (muitas vezes violento) de sanes? Este o foco dos estudos atuais sobre sanes internacionais. Vista como uma alternativa no violenta e menos dispendiosa em comparao com o estado de guerra, importante lembrar que, com o uso de sanes, ocorre um processo contraditrio. Isto visvel na medida em que os pases que aplicam sanes utilizam um discurso de defesa dos direitos humanos para justicar o seu uso, enquanto os pases alvo dessas sanes frequentemente passam por violaes de direitos essenciais justamente por causa dessas sanes, que afetam mais sensivelmente grupos vul- nerveis, tais como crianas, idosos, determinados grupos tnicos e religiosos minoritrios e mulheres. Para grande parte dos diplomatas, trata-se, no entanto, de uma boa alternativa interveno armada. Entretanto, diversas organizaes humanitrias internacionais contestam esse tipo de ao pelos danos sociais delas decorrentes. O contexto internacional de uso de sanes atualmente se insere no modo de produo capitalis- ta guiado pelo poder blico e nanceiro de grandes potncias como os Estados Unidos. Isso acaba tor- nando as sanes como mais um instrumento de poder da poltica internacional guiada por estes pases e seus interesses. importante lembrar que diversos outros instrumentos internacionais liderados pelas grandes potncias, assim como as sanes, tambm servem para impor determinadas polticas e condies aos outros pases. Nos anos 1970, por exemplo, os pases latino-americanos entraram em uma situao de endividamento exterior intensivo, provocada muitas vezes pelas imposies de rgos nanceiros inter- nacionais, tais como o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Interamericano de Desenvolvi- mento (BID). Isso acontece porque, apesar de estes rgos oferecerem grandes somas de dinheiro que pases com economias mais fracas precisam para o seu processo de desenvolvimento, essas ofertas de emprstimo sempre esto ligadas a algumas condies que o pas deve cumprir, tais como maior abertura econmica que desfavorece os termos de troca, alm de austeridade econmica que corta garantias so- ciais e privatiza os bens pblicos, deixando em completo abandono a populao mais pobre e explorando ainda mais a classe trabalhadora. Alm disso, essas condies muitas vezes tem como efeito a subordina- o desses pases s potncias que tm mais controle sobre esses rgos; essa situao de dependncia ocasionada via os emprstimos que foram feitos com juros altos, resultando em grande endividamento. Isso gerou, no caso da Amrica Latina, altas taxas de desemprego, nveis de pobreza extrema, crianas desnutridas e subnutridas e baixa expectativa de vida (UNICEF, 2001). No incio dos anos 1980, um novo modelo de desenvolvimento comeou a se impor no mundo atravs desses rgos: o neoliberalismo 15 . Assim, com presses diretas exercidas pelo FMI e pelo Ban- co Mundial, diversos pases passaram de um extremo ao outro com uma srie de desregulamentaes, privatizaes e leis de livre mercado, aumentando ainda mais o nmero de pessoas na linha da pobreza, violando a garantia de direitos bsicos essenciais. importante ter isso em mente na medida em que, embora diversos pases sejam condenados pelas grandes potncias por no conseguir garantias de di- 15 Em linhas gerais, o neoliberalismo o conjunto de ideias polticas e econmicas capitalistas que defende a no participao do Estado / governo na economia. Ganhou fora na dcada de 1970, atravs da Escola Monetarista do economista Milton Friedman, como uma soluo para a crise que atingiu a economia mundial em 1973, provocada pelo aumento excessivo no preo do petrleo. 109 CDH reitos humanos aos seus cidados, muitas dessas violaes ocorrem justamente pelo regime poltico e econmico mundial, por exemplo, o capitalismo neoliberal que s aumenta a margem de mais pessoas na pobreza e se preocupa prioritariamente com o lucro das grandes bancos e corporaes. Farzana Bari, ati- vista paquistanesa e diretora do Centro de Excelncia em Estudos de Gnero da Universidade de Quaid- -e-Azam, arma que os organismos nanceiros internacionais so os principais responsveis pelo fato de os direitos humanos no se mostrarem prioritrios para os pases (BARI apud GOMBATA, 2013). Ela arma: O tipo de monoplio do mundo hoje est cada vez mais anulando a competio em favor dos negcios e no das pessoas [...] Muitos Estados 16 e naes no conseguem assegurar direitos fundamentais. A economia neoliberal baseada em livre mercado, na liberalizao e na globalizao colocou ainda mais pessoas em risco. 2. APRESENTAO DO PROBLEMA 2.1. TIPOS DE SANES INTERNACIONAIS As sanes internacionais se dividem entre aquelas que so aplicadas pelo Conselho de Segurana da ONU, chamadas de sanes multilaterais, e aquelas que so aplicadas por um pas ou grupo de pases sem passar pelo crivo da ONU, chamadas de sanes unilaterais. 2.1.1. SANES MULTILATERAIS Sanes multilaterais se referem a sanes aplicadas por organismos representativos da comuni- dade internacional de pases. Pode ocorrer dentro da ONU ou entre pases participantes de um mesmo rgo regional, como o Mercado Comum do Sul (Mercosul) ou a Unio Africana. Neste guia, vamos estu- dar mais detalhadamente as sanes multilaterais aplicadas pela ONU, pois nos moldes dessas sanes que as outras ,as multilaterais, se baseiam. A Carta das Naes Unidas prev em seu Captulo VII referente a aes que podem ser tomadas pela Organizao das Naes Unidas (ONU) contra ameaas paz internacional e atos de agresso que o Conselho de Segurana (CS) o organismo da ONU 17 que pode discriminar aes a serem tomadas em conjunto pelos pases contra esse tipo de ameaa. O Artigo 41 desse captulo prev que tais medidas podero incluir a interrupo completa ou parcial das relaes econmicas, dos meios de comunicao ferrovirios, martimos, areos, postais, telegrcos, radiofnicos, ou de outra qualquer espcie e o rom- pimento das relaes diplomticas (BRASIL, 1945), medidas que, como vimos antes, constituem sanes internacionais. Este captulo tambm determina que todos os pases so obrigados a cumprir com as decises do CS. A Carta das Naes Unidas uma carta assinada por todos os pases membros da Organizao das Naes Unidas. Ao assinarem tal carta, eles concordam com todas as suas disposies e se comprome- tem a cumpri-las. Assim, todos os pases, ao menos em teoria, concordam que o Conselho de Segurana tem o poder de decidir sobre as medidas e sanes que vo ser aplicadas por todos eles a um pas ou grupo de pases 18 . importante ressaltar esse fato na medida em que, embora existam 193 pases partici- pantes da ONU, apenas 15 participam do Conselho de Segurana, sendo 5 permanentes 19 . Esses 5 mem- bros permanentes possuem poder de veto sobre as decises, o que signica que, se algum desses pases no concorda com as medidas sendo discutidas, elas no podero ser aprovadas. Os outros membros no possuem poder de veto e possuem um mandato de apenas dois anos no Conselho, o que faz com que tenham uma inuncia muito pequena nas decises do CS. Na prtica, isso faz com que as decises feitas pelo Conselho de Segurana tenham uma inuncia signicativamente maior dos interesses e per- cepes dos membros permanentes do conselho. Assim, quem tem o controle sobre esse tipo de deciso um grupo muito restrito de pases. 16 Palavra utilizada neste guia como sinnimo de pas, signicando a forma de organizao poltica deste. 17 O Conselho de Segurana da ONU , juntamente com a Assembleia Geral da ONU, o principal rgo da ONU. Ele composto por 15 Estados membro, sendo 5 permanentes e 10 eleitos para mandatos de 2 anos, de acordo com a seguinte paridade: 2 assentos para Amrica Latina e Caribe, 2 para frica, 2 para sia, 2 para Europa Ocidental e Outros, e 1 para o Leste Europeu. O ltimo assento alterna entre sia e frica. O Conselho de Segurana zela pela manuteno da paz e da segurana internacional. 18 Alm dessas sanes que devem ser impostas por todos os pases obrigatoriamente, o Conselho de Segurana tam- bm pode recomendar a aplicao de sanes, sem que elas sejam obrigatrias. 19 Os membros permanentes do Conselho de Segurana so: Estados Unidos, Rssia, China, Frana e Reino Unido. 110 UFRGSMUNDI A maior parte das sanes que o CS j aplicou foi aprovada depois de 1990 aps a crise da Unio Sovitica. Isso aconteceu porque a poltica da Guerra Fria fazia com que a Unio Sovitica (atualmen- te Rssia, membro permanente do CS) vetasse praticamente qualquer iniciativa estadunidense no CS e vice-versa. Com o m da Unio Sovitica, um novo consenso poltico se formou, e as decises do CS foram destravadas, aumentando consideravelmente o nmero de sanes aprovadas. Muitas vezes, elas so utilizadas em funo de razes que no oferecem ameaa material a outros pases, como violaes internas de direitos humanos. Desde ento, diversas organizaes tem criticado as sanes do CS, indicando que elas so ine- cazes e so aplicadas por motivos no previstos na Carta da ONU. Um exemplo do ltimo caso so as sanes aplicadas contra a Lbia de 1992 a 1999, criadas para forar o pas a entregar para tribunais inter- nacionais alguns cidados lbios suspeitos de participar de um atentado terrorista que explodiu um avio da companhia area Pan Am, com passageiros em sua maioria dos Estados Unidos, em 1988. Em 1999, o pas decide entregar estes suspeitos, tornando este um dos nicos casos em que se pode armar que as sanes do CS atingiram os objetivos pretendidos. Na maior parte dos casos, as sanes sozinhas no surtiram efeito no pas alvo, e o uso de foras militares foi necessrio para provocar as mudanas requeri- das pelo CS. Nos casos em que foras militares no foram utilizadas, pouco efeito foi visto no sentido de o pas alvo modicar seu comportamento de acordo com os pedidos do CS. Por m, a crtica mais sria a essas sanes o fato de elas impactarem amplos setores, se no toda a populao do pas, enquanto apenas uma pequena elite poltica que tem responsabilidade pelos atos do pas (KONDOCH, 2002?). O caso das sanes abrangentes (que afetam diversos setores da populao) impostas ao Iraque em 1990, s quais se seguiu uma crise humanitria no pas, com aumento nos ndices de desnutrio, escassez de medicamentos, dentre outros efeitos, um dos exemplos que melhor representa essas crticas. Essas ltimas crticas tem feito o CS modicar o tipo de sano que eles adotam, priorizando san- es com alvos mais limitados (as chamadas sanes inteligentes), como contra indivduos ou grupos que inuenciem diretamente no tipo de mudana ou aes buscadas pelo Conselho, ou priorizando embargos contra produtos que estejam diretamente ligados ao conito em questo. Ou, mesmo quando aplicam sanes abrangentes, criam excees e brechas nas sanes para que produtos essenciais, como alimentos e remdios, tenham livre circulao (KONDOCH, 2002?). Outra questo controversa a denio de quando uma sano deve ser interrompida. Em alguns casos, apenas outra resoluo do Conselho de Segurana pode por m s sanes por ele aprovada. Isso cria um dilema, na medida em que todos os membros permanentes do conselho devem aprovar essa resoluo. Como cada membro tem suas razes polticas e interesses particulares na implementao das sanes, eles podem ter vises diferentes sobre quais so os objetivos delas e quando devem ser inter- rompidas. Isso cria srias dvidas sobre o quo legtima a manuteno do regime de sanes contra um pas, sobre quanto tempo elas devem car em vigor e em que momento os objetivos so alcanados. A- nal, mesmo que todos os outros membros do Conselho de Segurana concordem com o trmino de san- es a um determinado pas, se um membro permanente do Conselho vetar o trmino, ele pode sozinho manter o regime de sanes contra esse pas pelo tempo que quiser (CHESTERMAN; POULIGNI, 2003). Sob a tica do Direito Internacional, existem controvrsias sobre at que ponto so legais as san- es do CS. Mesmo estando estas legitimadas pela Carta da ONU, outros instrumentos do Direito Inter- nacional, como o Direito Internacional Humanitrio 20 e os Direitos Humanos, colocam limitaes sua aplicao. Mais especicamente no caso das chamadas sanes abrangentes (sanes econmicas que afetam toda a populao), existem srias violaes dos direitos fundamentais das populaes locais, o que as tornam ilegais no ponto de vista de muitos juristas. mesmo contraditrio que, muitas vezes, se utilize as violaes aos direitos humanos praticadas por um pas como motivo para aplicar sanes que violam mais ainda os direitos reconhecidos internacionalmente das populaes locais (KCHLER, 1994). 2.1.2. SANES UNILATERAIS O outro tipo de sano internacional existente so as chamadas sanes unilaterais. Esse tipo de sano aplicado sem o controle por parte da ONU e resultante de aes independentes de um pas ou grupo de pases (como a Unio Europeia, por exemplo) contra um pas de fora desse grupo. Esse tipo de sano ocorre com muito mais frequncia e pode ocorrer por motivaes mais diversas do que as sanes multilaterais. Diversos tratados internacionais tornam esse tipo de sano ilegal do ponto de vista do Direito Internacional. Por exemplo, a Assembleia Geral das Naes Unidas em 1974 aprovou um documento chamado Carta de Direitos e Deveres Econmicos dos Estados. O artigo 32 dessa carta determina que 20 O Direito Internacional Humanitrio diz respeito a leis e direitos das pessoas que esto em territrios alvos de con- itos armados. 111 CDH nenhum Estado pode utilizar ou encorajar o uso de medidas econmicas, polticas ou de qualquer outro tipo para coagir outro Estado com o m de obter deste a subordinao do exerccio de seus direitos so- beranos (traduo nossa). Na prtica, isso signica que nenhum Estado pode, de acordo com o Direito Internacional, aplicar sanes por conta prpria. Mesmo assim elas so muito utilizadas para fazer pres- so poltica entre os pases (KCHLER, 1994). As sanes unilaterais so aprovadas de maneira diferente em cada pas. Cada Estado possui uma legislao prpria que regulamenta o processo de deciso sobre quando aprovar uma sano ou no. Nos Estados Unidos, por exemplo, so atos do Congresso Nacional que aprovam ou rejeitam sanes que o pas aplica. J as sanes da Unio Europeia (UE) so propostas por um dos pases membros e, antes de serem aprovadas, precisam passar por uma srie de rgos internos da Unio Europeia para anlise. Estes dois ltimos atores (EUA e UE) so os que mais se utilizam de sanes unilaterais para fazer presso poltica. Entretanto, em diversos lugares a prtica de sanes unilaterais est presente, como entre os pases do Oriente Mdio, entre os pases africanos, etc. Algumas dessas sanes perduram ao longo das dcadas, como o caso do duro embargo econmico imposto a Cuba pelos EUA, que ser posteriormente melhor explorado. Ao contrrio das sanes do CS, que precisam ser negociadas e po- dem ser barradas por um dos membros permanentes que no veja motivo para sua aplicao, as sanes unilaterais dependem apenas dos interesses do pas em questo e podem ser aplicadas por motivos bem mais diversos, como sobre o pretexto de ameaa segurana nacional (ressaltando que o pas pode in- terpretar o que quiser como ameaa segurana nacional), ou por violaes de direitos humanos. Esse tipo de sano no sofre nenhum tipo de constrangimento, apesar de ser muito criticado, especialmente por pases em desenvolvimento. 2.2. IMPACTOS HUMANITRIOS X DIREITOS HUMANOS Impactos humanitrios so acontecimentos que interferem diretamente na sobrevivncia fsica, sade, bem-estar e aspectos crticos do desenvolvimento de um indivduo. Os impactos podem ser cau- sados por desastres naturais, catstrofes causadas pelo homem, conitos armados, epidemias ou, como vamos abordar em seguida, pelo uso de sanes econmicas internacionais. Uma crise humanitria ocorre quando os impactos so sentidos por um longo perodo de tempo e em uma rea extensa de terra, impedindo o acesso de um grande grupo de pessoas a uma ou vrias de suas necessidades fundamentais como comida, gua potvel ou um abrigo seguro. Cada crise humanitria diferente e exige respostas de curto, mdio e longo prazo. A condio humanitria de um pas, regio ou bairro pode ser vericada visualmente e medida atravs de uma srie de indicadores sociais e econmicos (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 2004). Os Direitos Humanos, por sua vez, so direitos que todas as pessoas possuem, simplesmente por serem pessoas. So direitos que no podem ser negados, revogados ou transferidos e independem de qualquer fator particular de uma pessoa, como etnia ou religio. Os Direitos Humanos so protegidos sob o Direito Internacional e fundamentados na Declarao Universal dos Direitos Humanos, criada em 1948 na recm-formada Organizao das Naes Unidas. A Declarao, composta por 30 direitos considera- dos fundamentais, a base da luta universal contra a opresso e a discriminao, defendendo a igualdade e a dignidade das pessoas. Apesar de seu carter no vinculante, ou seja, de os pases no serem obriga- dos por lei internacional a cumprir os seus princpios, esta estimula o comprometimento dos governos na defesa desses atravs da presso internacional. Os Direitos Humanos representam opo e oportunidade. Signicam liberdade de escolha, seja de uma carreira ou de um parceiro. Incluem o direito ao trabalho remunerado e o direito de viajar livremente. Em resumo, se relacionam com a prpria existncia de um indivduo, seus sonhos e seus objetivos. Em funo disso, no possvel medi-los. Quando as pessoas falam de indicadores de Direitos Humanos, elas esto se referindo medida do grau em que estes esto sendo cumpridos (ONU, 2004). Para saber se um pas respeita os Direitos Humanos, preciso identicar uma srie de indicadores e acompanhar suas me- didas, dentre os quais esto os indicadores de condies humanitrias. Os ltimos so a base sobre a qual especialistas de Direitos Humanos consideram se existe uma violao ou constrangimento dos direitos fundamentais. Em funo disso, ao abordar o impacto causado por sanes econmicas internacionais, os especialistas se referem muito mais aos impactos humanitrios. 2.3. TIPOS DE SANES ECONMICAS As sanes econmicas podem ser dividas em duas categorias: sanes comerciais e sanes nanceiras. importante lembrar que, quando aplicadas, elas eliminam todas as relaes comerciais e/ 112 UFRGSMUNDI ou nanceiras que ocorrem entre o pas que sanciona e o que sancionado, e no apenas aquelas regidas por acordos comerciais ou por contratos entre empresas dos pases. As sanes comerciais mais utilizadas so a limitao das importaes de produtos do pas-alvo e a limitao de exportaes de produtos do pas que aplica a sano para o mesmo pas-alvo. A ttica mais utilizada para a limitao de importaes o aumento do preo de qualquer produto originrio do pas- -alvo. Assim, quando esses produtos entram em mercados estrangeiros, eles no so atraentes em com- parao com produtos nacionais mais baratos. Por outro lado, ao negar ao pas sancionado a importao de produtos crticos, como alimentos, o pas que sanciona desestabiliza o mercado interno do pas-alvo, obrigando-o a pagar mais caro para substituir esses alimentos que no so produzidos internamente. As duas formas de sano comercial so geralmente utilizadas em conjunto. Quando apenas uma delas escolhida, normal que exista uma preferncia por sanes de exportao (de produtos do pas que sanciona para o pas-alvo). A preferncia ocorre porque, ao sancionar importaes, o pas que san- ciona acaba esgotando as opes do seu prprio mercado interno, o que pode causar insatisfao da sua populao (HUFBAUER et al, 2007). As duas formas, porm, so menos utilizadas do que as sanes nanceiras, que so mais prejudiciais. Sanes nanceiras, por sua vez, incluem a suspenso de emprstimos a empresas (geralmente realizados por bancos), interrupo de emprstimos ao pas por parte de instituies nanceiras inter- nacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetrio Internacional e m de qualquer tipo de ajuda nanceira bilateral previamente estabelecida entre os dois pases. Sanes nanceiras tambm incluem o congelamento ou apreenso de fundos de investimento (forma de aplicao nanceira) do pas-alvo que estejam dentro do controle do pas que sanciona. Os pases-alvo so frequentemente atingidos com a interrupo de ajuda externa e nanciamentos ociais. J as restries privadas (para pessoas fsicas) de crdito ou investimento so mais raras. Quando um pas pobre o alvo, os fundos retidos so muitas vezes insubstituveis (HUFBAUER et al, 2007). Sanes nanceiras so mais prejudiciais porque um pas que sancionado dessa maneira pode demorar meses at readquirir a conana internacional necessria para que se retome o fornecimento de emprstimos. As sanes nanceiras tambm so mais difceis de escapar. No caso das sanes comer- ciais, comum que pases que no apoiam o sancionamento do pas-alvo se tornem seus novos parceiros de comrcio. Alm disso, o preo alto dos produtos embargados ou a diculdade de se conseguir certos produtos abrem um campo de atuao ideal para contrabandistas e a formao de um mercado negro. O impacto nal das sanes comerciais , portanto, menor. 2.4. JUSTIFICATIVAS PARA O USO DE SANES ECONMICAS As sanes econmicas so uma ferramenta de diplomacia internacional que tm como objetivo coagir um pas-alvo a responder a uma determinada situao de uma maneira que agrade ao pas reme- tente da sano O uso de sanes pressupe a disposio do pas que sanciona de interferir no processo de tomada de deciso de um outro governo soberano. No entanto, essa interveno se d de maneira ponderada, complementando uma eventual censura diplomtica, sem a introduo imediata de aes drsticas como o uso de fora militar (HUFBAUER et al, 2007). No entanto, ao sancionar outro pas, o pas remetente no justica a sua ao nesses termos. As justicativas mais comuns para a aplicao de uma sano internacional so o envolvimento do pas-al- vo em comportamentos denominados censurveis, como o descumprimento de artigos na Declarao Universal dos Direitos Humanos, a cumplicidade a aes classicadas como terrorismo internacional, a busca por proliferao nuclear (ou seja, pela capacidade de fabricao prpria de bombas nucleares) ou passividade em relao ao desenvolvimento do cultivo de narcticos. Na grande maioria dos casos, as sanes econmicas so utilizadas por grandes potncias inter- nacionais precisamente porque estas so grandes e podem inuenciar eventos em uma escala global. Grandes potncias, como os Estados Unidos, buscam uma poltica internacional mais ativa, pois tal atitu- de esperada delas (HUFBAUER et al, 2007). comum que o custo para uma grande potncia da emisso de uma sano seja menor do que o custo de no tomar nenhuma ao. No ltimo caso, tal custo se materializa na falta de conana da comunidade internacional na capacidade de liderana e envolvimen- to do pas nos conitos mundiais. Frequentemente, sanes so lanadas para responder a indignao nacional derivada de algum acontecimento externo e para preparar o pblico para medidas mais severas caso estas sejam necessrias para defender os interesses vitais da nao. Outra justicativa para o uso de sanes econmicas a transformao do pas-alvo em um exemplo para a comunidade internacional, a m de que outros pases ou os lderes destes que por acaso 113 CDH estejam contemplando polticas semelhantes ao do pas-alvo sejam desestimulados. Mesmo que a polti- ca externa do pas sancionado mude pouco ou no mude, a aplicao de uma sano refora os valores do pas remetente: arma que o pas que sanciona no concorda com as aes do pas-alvo e que aes acompanharo a sua censura diplomtica (HUFBAUER et al, 2007). Finalmente, um objetivo mais extremo no uso das sanes econmicas a desestabilizao de um alvo, geralmente um governante ou mesmo o prprio pas sancionado As sanes ainda podem ser acompanhadas de aes secretas montadas pelos servios de inteligncia do pas remetente, como a assistncia aos opositores de um lder do pas-alvo. Em situaes mais severas, a fora militar pode ser empregada, seja pelo estabelecimento de tropas nas fronteiras do pas-alvo ou por uma ao militar completa de ocupao. 2.5. IMPACTOS DAS SANES ECONMICAS Quando as Naes Unidas ou os Estados Unidos impem sanes contra um regime [...] eles no pretendem criar diculdades desnecessrias para as pessoas inocentes, especialmente para as crianas e bebs. Boas intenes, no entanto, no se traduzem automaticamente em bons resultados. (ALBRIGHT, 2000, pg. 155). Impactos humanitrios so consequncias inevitveis da utilizao de uma poltica de sanes econmicas. Para que estes sejam minimizados, necessrio um acompanhamento da situao humani- tria nos pases sancionados antes, durante e aps o perodo das sanes. Os impactos variam em tipo e grau e dependem do tipo de sano aplicada e da sua durao (EYLER, 2007). A utilizao de sanes nanceiras pode gerar impactos humanitrios e, consequentemente, vio- laes dos Direitos Humanos ao criar um efeito negativo na economia, aumentando a inao e di- minudo o comrcio. Qualquer um desses resultados impacta negativamente no aumento do custo de mercadorias, especialmente nos setores econmicos alvos das sanes. A ameaa da imposio de uma sano nanceira tambm pode fazer com que doadores internacionais reconsiderem o seu apoio ao - nanciamento de operaes humanitrias no Estado sancionado. Finalmente, empresas estrangeiras, des- conhecendo a sua legislao nacional em matria de sanes, podem limitar um comrcio legtimo por medo de agir em violao destas leis (HUFBAUER et al, 2007). J a utilizao de sanes comerciais possui uma tendncia maior a causar impactos nas condi- es humanitrias. Alm de diminuir a disponibilidade de empregos nos setores afetados, ela diminui o poder de compra dos seus funcionrios, o que afeta todos os outros setores da economia do pas que fornecem bens e servios que eventualmente seriam consumidos por tais indivduos. A restrio do co- mrcio e do papel da indstria pode, igualmente, reduzir os fundos locais para funes governamentais, como o fornecimento de segurana e servios sociais. Alm disso, os servios prestados por algumas indstrias, como o apoio direto no fornecimento de sade e educao aos seus funcionrios e depen- dentes e o pagamento das penses de antigos funcionrios, podem ser suspensos. Em pases onde o san- cionamento afeta a importao de combustveis, como o petrleo, um dos principais efeitos negativos a falta de disponibilidade e o aumento do custo da energia, seja para o uso domstico, o transporte ou a produo (HUFBAUER et al, 2007). Porm, nem sempre os efeitos experimentados pela populao aps a aplicao de uma sano so facilmente identicados. Agncias governamentais nacionais so geralmente a fonte principal de informao da qual muitos rgos internacionais (ONU, Banco Mundial, etc.) dependem quando reali- zam avaliaes da condio humanitria e econmica de um pas. No entanto, as fontes nacionais de dados so algumas vezes tendenciosas ou imprecisas, deixando de reetir toda a populao de forma abrangente (EYLER, 2007). Algumas agncias humanitrias no governamentais realizam levantamen- tos mais rigorosos, porm esses so ocasionais e geralmente limitados em pequenas reas geogrcas. Fora do sistema das Naes Unidas, organizaes de Direitos Humanos e agncias de monitoramento da sociedade civil, como a HumanRightsWatch, o SIPRI (Instituto de Pesquisa Internacional sobre a Paz de Estocolmo - traduo livre) e o Conselho Noruegus para os Refugiados, entre outros, buscam coletar informaes sobre muitos pases. Abordagens tendenciosas dos efeitos de uma sano econmica podem ser frequentemente en- contradas em propagandas governamentais (ONU, 2004). Ao ter os seus bens conscados como parte de uma sano econmica aplicada Libria, o presidente do pas ordenou a confeco de outdoors que culpavam as sanes econmicas internacionais por problemas estruturais j existentes muito antes da sua aplicao, resultado de duas extensas guerras civis. Os outdoors objetivavam manobrar a opinio pblica, tornando-a favorvel ao governo e desfavorvel ao inimigo de fora. Alm disso, foi constatado 114 UFRGSMUNDI que o corte governamental, em dlares, realizado em programas de assistncia social pelo governo ultra- passava em muito o valor da renda perdida pelos efeitos da sano. igualmente importante destacar que os efeitos causados por uma sano econmica podem ser obscurecidos por eventos simultneos que tambm contribuem para crises humanitrias como guerras, migraes em massa ou crises nanceiras, alm de problemas de governana no pas-alvo. Apenas um acompanhamento da situao anterior ao recebimento da sano pode determinar quais efeitos so causados por qual acontecimento e, ainda assim, geralmente com pouca clareza. 2.5.1. IMPACTOS DAS SANES ECONMICAS EM MINORIAS E GRUPOS VULNERVEIS Embora as sanes econmicas internacionais afetem a populao dos pases sancionados como um todo, alguns grupos dentro dela so mais prejudicados que outros. Indivduos abaixo da linha da pobreza, mulheres, crianas, grupos tnicos desfavorecidos, idosos e refugiados so alguns dos grupos mais vulnerveis. Discriminados pelo resto da sociedade, estes indivduos possuem de maneira geral ren- dimentos mais baixos. Assim, eles so menos capazes de obter bens e servios necessrios para a sua sobrevivncia (ONU, 2004). Os costumes ou leis locais de alguns pases podem criar vulnerabilidades. Mesmo quando um indi- vduo no possui uma renda baixa, ele pode ter negado o seu direito participao em certos programas governamentais, a fundos ou at mesmo a propriedade ou ter que pagar um valor maior por certo servio ou item simplesmente por pertencer a uma minoria. Qualquer lei que crie este tipo de vulnerabilidade uma infrao clara dos Direitos Humanos. Dentro dos grupos mais vulnerveis a sanes econmicas esto as crianas. Fisicamente mais vulnerveis a doenas e ao estresse fsico, elas so menos capazes de identicar ou adquirir sozinhas os recursos necessrios para um bom desenvolvimento e crescimento (GARFIELD, 1999). Em muitos pases, o segundo grupo mais afetado so as mulheres, por possurem menor escolaridade e rendimentos mais baixos do que os homens. Como geralmente so responsveis pela criao dos lhos, possuem me- nor tempo para dedicao exclusiva ao mercado de trabalho e enfrentam discriminao na contratao. Alm disso, mulheres e crianas so os usurios mais frequentes de servios pblicos, e a deteriorao desses servios durante crises econmicas e sociais pode afet-los mais severamente (ONU, 2004). Finalmente, grupos que possuem menor acesso informao e educao se tornam imediata- mente mais vulnerveis s sanes econmicas. Entre estes esto os residentes de reas rurais e os gru- pos sociais discriminados. Rdios, televises e redes sociais so um meio importante para a transmisso de informao sobre como acessar, adquirir e utilizar recursos escassos. Na ausncia destes meios, o indivduo se torna dependente e frgil. 3. AES INTERNACIONAIS PRVIAS Apesar dos desaos humanitrios, quando comparadas a intervenes militares, sanes ainda so encaradas como melhores polticas para constranger pases que violem leis do Direito Internacio- nal ou que ameacem a paz e a segurana internacional, e so mais facilmente aceitas pela comunidade internacional do que uma guerra aberta (GARFIELD; DEVIN; FAUSEY, 1995). Atualmente, sofrem sanes das Naes Unidas pessoas e entidades ligadas aos grupos terroristas Al-Qaeda e ao Taliban, bem como os seguintes pases: Repblica Democrtica do Congo, Repblica Centro Africana, Costa do Marm, Eri- treia, Guin Bissau, Ir, Iraque, Lbano, Libria, Lbia, Sudo, Repblica Popular Democrtica da Coreia e Somlia. Mesmo assim, sanes econmicas so bastante controversas em meio comunidade internacio- nal, especialmente as sanes unilaterais. Por um lado, elas so muitas vezes efetivas para evitar ou con- ter violaes dos Direitos Humanos e do Direito Internacional e so uma alternativa interveno militar nos pases agressores. Por outro, tm impactos profundos na economia dos pases atingidos e na sua po- pulao (BOSSUYT, 2000). Desde o fracasso das sanes econmicas contra o Iraque, que causaram uma crise humanitria profunda, esse aspecto das sanes econmicas tem sido mais criticado. Desde ento, diferentes pronunciamentos tm sido feitos por diversas organizaes intergovernamentais (OIs) e no governamentais (ONGs) tanto defendendo quanto condenando o uso de sanes internacionais. A seguir, faremos um breve resumo de algumas dessas posies defendidas por organizaes internacionais. 115 CDH 3.1. GRUPO DOS 77 + CHINA O grupo dos 77 uma coalizo de pases em desenvolvimento da ONU. O grupo discute polticas a serem tomadas buscando seu fortalecimento e o desenvolvimento econmico. Em 2000, durante a Cpula do Sul, o G77 emitiu uma declarao, na qual criticou o efeito negativo de sanes econmicas sobre o desenvolvimento dos pases. Segue abaixo o pargrafo 48 dessa declarao, que resume a con- denao expressa por esses pases: 48. Rejeitamos rmemente a imposio de leis e regulamentaes com impacto extraterritorial e outras formas de medidas economicamente coercitivas, incluindo sanes unilaterais contrrias a naes em desenvolvimento, e reiteramos a urgente necessidade de sua eliminao imediata. Enfatizamos que tais sanes no apenas minam os princpios consagrados na Carta da Organizao Naes Unidas e no di- reito internacional, mas tambm ameaam severamente a liberdade de comrcio e investimentos. Portanto, apelamos comunidade internacional para que no reco- nhea estas medidas nem as aplique (G77, 2000, traduo nossa). 3.2. COMISSO DE DIREITOS HUMANOS DO CONSELHO ECONMICO E SO- CIAL DAS NAES UNIDAS (ECOSOC) Tambm no ano de 2000, a Comisso de Direitos Humanos do Conselho Econmico e Social das Naes Unidas emitiu um estudo sobre sanes econmicas e seu impacto sobre os Direitos Huma- nos. Foi feita uma reviso das limitaes e razes que so legitimas para usar sanes de acordo com o Direito Internacional e com a Carta da ONU. Nesse estudo, foi dado destaque para os efeitos negativos de medidas que restringem o aproveitamento dos Direitos Humanos e humanitrios por parte da popula- o visada pelas sanes. Rearmou-se que a ameaa [ paz e segurana internacional] no pode ser determinada com base em motivos polticos, motivos que levem em considerao polticas e interesses de Estados em particular, mas sim por genuno interesse internacional (BOSSUYT, 2000). Nesse relatrio, a Comisso pediu para que se levasse em considerao um teste de 6 perguntas ao tratar de sanes econmicas: 1. As sanes so impostas por razes vlidas? Sanes devem ser impostas somente quando houver genuna ameaa ou violao de fato paz e segurana internacional. No devem ser motivadas por benefcios econmicos ou polticos por parte de um ou mais Estados. 2. As sanes visam s partes relevantes? Sanes no devem atingir os civis que no esto en- volvidos com a ameaa paz e segurana internacional, nem devem atingir, ou resultar em danos colaterais a terceiros Estados ou povos. 3. As sanes visam os bens ou objetos relevantes? Sanes no devem interferir no livre uxo de bens humanitrios e no devem atingir bens necessrios para garantir a subsistncia bsica da populao civil, nem provises mdicas essenciais ou materiais educacionais de qualquer tipo. O alvo deve ter uma relao razovel com a ameaa de violao ou real violao da paz e da segurana internacionais. 4. As sanes so limitadas no tempo de maneira razovel? Sanes legais podem perder sua legitimidade quando aplicadas por um grande perodo sem a obteno de resultados signi- cativos. Sanes que se mantiverem por muito tempo podem ter efeito negativo aps o cessar dos delitos. 5. As sanes so efetivas? Sanes devem ser minimamente capazes de alcanar o resultado desejado em termos de ameaa, ou violao de fato, da paz e da segurana internacional. Sanes formatadas de modo a no afetarem o delito de forma efetiva devem ser tomadas como inecazes. 6. As sanes so isentas de crticas motivadas por violaes dos princpios de humanidade e dos ditames da conscincia pblica? A reao de governos, organizaes intergovernamen- tais (OIs), Organizaes No Governamentais (ONGs), especialistas e do pblico geral devem ser levadas em considerao no que tange a avaliao de regimes de sanes. 3.3. HUMANRIGHTSWATCH A HumanRightsWatch (HRW) uma organizao no governamental que monitora violaes dos Direitos Humanos e humanitrios em todo o mundo. Ela elabora relatrios peridicos sobre a situao 116 UFRGSMUNDI dos Diretos Humanos nos diferentes pases e age na esfera internacional, frequentemente apelando aos pases e organizaes internacionais para que tomem medidas necessrias para proteger os direitos fun- damentais dos diversos povos. Dentre essas medidas, guram as sanes econmicas. Em setembro de 2013, um pesquisador da HRW na frica publicou um relatrio sobre a crise na Repblica Centro-Africana. Na ocasio, ele pediu que a ONU condenasse as violaes de Direitos Huma- nos e de leis do direito humanitrio internacional perpetradas pelos integrantes do grupo rebelde Seleka. Este grupo havia deposto o presidente eleito e estava cometendo diversas atrocidades contra os civis centro-africanos. Atualmente, os lderes Seleka esto agindo sob a suposio de que no h ameaa porque ningum est prestando ateno. Mas ns sentimos que o Conselho de Segurana da ONU po- deria fazer algo sobre isso, disse Lewis Mudge, o autor do relatrio. Eles poderiam colocar certos lde- res Seleka que tem cometido abusos de Direitos Humanos na lista de sanes. Isso vai enviar uma forte mensagem ao Seleka de que o mundo est comeando a prestar ateno e que o mundo est assistindo (BESHEER, 2013, traduo nossa). Mesmo assim, a ONG, el proteo dos Direitos Humanos, condena sanes econmicas abran- gentes, advogando pelo uso de sanes inteligentes. Em 2000, ela enviou uma carta ao Conselho de Segurana da ONU pedindo pela reconsiderao das sanes ao Iraque, que sofria uma grave crise huma- nitria, resultado das sanes que o pas sofria, na viso da organizao (GLOBAL POLICY FORUM, 2000). 3.4. LIGA DE ESTADOS RABES - OU LIGA RABE A Liga rabe uma organizao composta por pases rabes localizados entre o Norte da frica e o Oriente Mdio que buscam, desde 1945, reforar os laos econmicos, culturais, polticos e sociais entre si. Tambm um espao para resoluo de controvrsias entre os membros. Ao lidar com sanes econmicas, a Liga segue um padro semelhante ao adotado pela ONU de adotar sanes frente a ameaas paz internacional e aos Direitos Humanos. Isso visvel no forte grau de intervencionismo da Liga na sua regio, uma das mais instveis do planeta (HELLQUIST, 2014). O caso mais recente de forte interveno da organizao se deu no caso da Sria, em que, desde o princpio dos conitos, houve diversas tentativas de se chegar a uma soluo em mbito regional, sem envolver as grandes potncias no conito. As violaes de direito humanitrio e de direitos humanos cometidas, assim como o no cumprimento por parte do governo srio do plano de paz que havia sido acordado ainda em 2011, levaram a Liga a suspender a Sria da organizao e determinar a suspenso de todas as relaes comerciais de seus membros com o pas, alm do congelamento dos bens do governo srio em bancos dos Estados-membros. A Sria um pas estimado por todos ns, ento doloroso tomar essa deciso, disse o Sheikh Hamad, do Qatar, sobre a suspenso da Sria e as sanes. Ns queremos achar uma soluo para o problema dentro de um padro rabe (MACFARQUHAR, 2011). 3.5. MERCADO COMUM DO SUL (MERCOSUL) O MERCOSUL uma unio aduaneira de pases sul-americanos 21 que visa formao de um mer- cado comum, atravs da livre circulao de bens e servios, o estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoo de uma poltica comercial conjunta em relao a terceiros Estados, ou agrupamentos de Estados. O bloco tambm visa coordenar as posies dos pases membros do MERCOSUL em foros econmico-comerciais regionais e internacionais. O MERCOSUL defende o livre comrcio, adotando sanes econmicas apenas para punir Esta- dos-membro que desrespeitem os acordos comerciais vigentes. Em caso de ruptura da ordem demo- crtica em algum membro, o MERCOSUL pode sancion-lo atravs de sua suspenso da organizao, como est denido pelo artigo 5 do Protocolo de Ushuaia (MERCOSUL, 1998). o caso do Paraguai, que perdeu o direito de participar das decises do MERCOSUL quando o presidente eleito Fernando Lugo foi destitudo do poder. Essa destituio constituiu um desrespeito s leis e ordem democrtica do pas. Mesmo assim, as relaes econmicas entre os outros membros do MERCOSUL e o Paraguai foram man- tidas, pois os outros pases-membro do bloco entenderam que aplicar sanes econmicas seria fazer a populao comum sofrer por um ato que no foi de sua autoria, na medida em que os responsveis pela destituio do presidente foram os membros do congresso paraguaio. Fico feliz de que no exista uma sano ou um bloqueio econmico que prejudica o pas e especialmente as pessoas humildes do Paraguai. Alegramos-nos de que no tenham exercido uma sano assim, armou Fernando Lugo sobre a reao do MERCOSUL sua deposio (LUGO... 2012). 21 So membros permanentes a Argentina, o Brasil, o Paraguai, o Uruguai e a Venezuela. 117 CDH 3.6. ASSOCIAO DE NAES DO SUDESTE ASITICO (ASEAN) A ASEAN uma organizao regional composta por pases do Sudeste Asitico 22 que tem como objetivos acelerar o crescimento econmico dos seus membros, fomentar a paz e garantir a estabilidade na regio. O modelo adotado pela ASEAN para a soluo de controvrsias diferenciado em relao aos comumente adotados por outras organizaes intergovernamentais. Contrria rigidez regulamentar, inexibilidade e punies - como sanes econmicas e incurses militares a pases violadores de pontos presentes em seu acordo fundamental, sejam membros da organizao ou no - a organizao, por meio do ASEAN way (caminho ASEAN, traduo nossa), procura resolver seus impasses de forma a priorizar o dilogo e a valorizar os pontos em comum presentes nos assuntos tratados no bloco de pases. A busca por evitar animosidades vem das divergncias entre seus membros e associados, que dicilmente sero superadas, mas so deixadas de lado visando coeso do bloco (SEVERINO, 2000). A funcionalidade desse modelo pode ser exemplicada com o caso de Mianmar. O pas passou por um perodo de transio poltica, depois de mais de trinta anos de ditadura, em que grupos progressistas e opositores se enfrentaram violentamente. A junta militar que dominava o pas fazia uso de seu aparato coercitivo para a manuteno de seu poder. Em 2011, a Unio Europeia, Estados Unidos, Reino Unido, Canad, Noruega, Sua e Austrlia impuseram sanes econmicas contra Mianmar, mas desde sempre o pas encontrou na ASEAN seu principal interlocutor para amenizar as tenses em torno do caos poltico vivido internamente. Graas ao resultado positivo das discusses sobre o futuro de Mianmar a nvel re- gional atravs da ASEAN e s efetivas medidas tomadas para o apaziguamento do pas, para a garantia de direitos bsicos, da liberdade de expresso e do desenvolvimento do pas, as sanes comearam a ser suspensas em 2012. Em momento algum a ASEAN imps medidas rgidas contra Mianmar (SANCTIONS- WIKI, 2013). 3.7. UNIO EUROPEIA A Unio Europeia (UE) um bloco composto por 28 pases da Europa. O bloco desenvolve uma poltica comercial comum, busca criar uma integrao econmico-social e um mercado comum e repre- senta o maior Produto Interno Bruto do planeta, frente dos Estados Unidos. Dentre os seus membros, esto alguns dos pases mais desenvolvidos econmica e tecnologicamente. Ao contrrio da ASEAN, o bloco possui forte inclinao ao intervencionismo e resoluo rgida de conitos. Dada a sua alta posi- o entre as potncias do mundo atual, o papel por ela assumido de agente estabilizador se reete muitas vezes em sua poltica de sanes. De acordo com a Comisso Europeia, sanes so um instrumento de natureza diplomtica ou econmica que buscam alterar signicativamente atividades e polticas re- lacionadas violao do Direito Internacional ou Direitos Humanos, ou polticas que no respeitem a soberania constitucional ou os princpios democrticos (UNIO EUROPEIA, 2008). No so raros os casos de atuao por parte da UE, tanto em conjunto com outros pases quanto unilateralmente, em regies sensveis poltica e economicamente do mundo, como em Mianmar, na Sria e, mais recentemente, na Ucrnia. Suas aes em diversos momentos culminam em futuras aes ado- tadas pelo Conselho de Segurana das Naes Unidas. Apesar de ser muito parecida com outras organi- zaes como a Liga rabe ou a Unio Africana em termos estruturais, a Unio Europeia, assim como os Estados Unidos, possuem grande pro atividade na imposio de sanes econmicas a pases violadores de Direitos Humanos ou que tomem medidas consideradas perigosas para a segurana de seus pases. Por ter um papel importante na economia global, as medidas adotadas pelo bloco costumam ter um efeito mais severo nos pases sancionados do que as adotadas por outras organizaes internacionais (SANCTIONSWIKI, 2012). 3.8. UNIO AFRICANA A Unio Africana (UA) uma organizao pan-africana que visa cooperao para o desenvolvi- mento da regio, a integrao entre os pases africanos e o fortalecimento do bloco africano. A Assem- bleia Geral da UA tem o poder de determinar a imposio de sanes contra pases como punio por no pagamento das contribuies estatutrias Unio, violao dos princpios constados no Ato Consti- tutivo e nas regras da organizao, no cumprimento das decises da UA e mudanas inconstitucionais de regime (UNIO AFRICANA, 2014). O caso mais recente de sanes econmicas aplicadas pela UA o da Repblica Centro-Africana (RCA), j citado. A UA suspendeu o Estado-membro da organizao e imps sanes aos responsveis do movimento Seleka, que havia tomado o poder no pas e deposto o presidente, Franois Boziz. 22 Membros da ASEAN so Brunei, Camboja, Indonsia, Laos, Malsia, Mianmar, Filipinas, Singapura, Tailndia e Vietn. 118 UFRGSMUNDI A organizao uma das que emitem maior nmero de sanes, em especial contra seus mem- bros, normalmente por motivos de graves violaes humanitrias ou da legalidade da ordem poltica vi- gente. A organizao considerada muito avanada em sua poltica proativa de paz e segurana, da qual a doutrina de sanes contra mudanas inconstitucionais de governo uma parte vital, tendo em vista sua poltica de tolerncia zero para golpes de Estado. Sua prtica, apesar de intervencionista, normal- mente se restringe ao continente e tem a nalidade de manter a paz e o equilbrio na regio (HELLQUIST, 2014). A Repblica Centro-Africana, Madagascar, Costa do Marm e o Nger compem os principais casos de pases sancionados pelo Conselho de Paz e Segurana da Unio Africana dos ltimos 4 anos, pelos motivos anteriormente citados. 4. ESTUDOS DE CASO 4.1. IR A Repblica Islmica do Ir tem sido vtima de diversas sanes diferentes ao longo de sua histria. As primeiras sanes econmicas que o pas sofreu aps a Segunda Guerra Mundial foram de iniciativa do Reino Unido e dos Estados Unidos, de 1951 a 1953. Elas tinham como objetivo reverter as nacionaliza- es de companhias petrolferas feitas pelo ento Primeiro Ministro, Mohammed Mossaddeq, bem como desestabilizar seu governo. As principais companhias que exploravam petrleo no pas eram estrangeiras, como por exemplo a Anglo-IranianOilCompany, companhia inglesa (que hoje se chama BrittishPetro- leum) que na poca possua o monoplio de explorao sobre as reservas no sul do Ir. As nacionali- zaes tirariam muitos dos benefcios que essas empresas e seus pases usufruam na explorao do petrleo iraniano. Esta situao levou a uma crise interna que terminou com a derrubada de Mossaddeq do cargo de primeiro ministro por parte do X Reza Pahlavi, com o apoio da agncia de inteligncia es- tadunidense, Central IntelligenceAgency (CIA) (BYRNE, 2013). A segunda onda de sanes ao Ir aps a Segunda Guerra Mundial veio em 1979, quando ocorre a deposio da monarquia iraniana e o Ir vira uma Repblica Islmica comandada por um aiatol 23 . As sanes direcionadas ao Ir consistiam em congelamento de ativos (por exemplo, contas bancrias ira- nianas nos Estados Unidos) e duraram at 1981, tendo como objetivo pressionar a libertao de refns estadunidenses, presos no pas desde a Revoluo Iraniana de 1979, bem como desestabilizar o novo regime e resolver disputas relacionadas nacionalizao de empresas estrangeiras no Ir. As sanes aplicadas ao pas foram relevantes para que o Ir libertasse os refns estadunidenses. Em 1984, um novo conjunto de sanes estadunidenses entrou em vigor contra o Ir, visando a abalar a atividade de grupos terroristas supostamente apoiados pelo governo iraniano e forar o pas a terminar a guerra contra o Iraque 24 . Essas sanes proibiam a venda de armas ao Ir e mais tarde foram ampliadas na forma de di- culdades nas exportaes e importaes entre Estados Unidos e Ir (HUFBAUER et al, 2007). Em 1995, os Estados Unidos interromperam o seu comrcio de petrleo com o Ir e aprovaram o ILSA, Iran and Libia Sanctions Act (em portugus, Ato de Sanes ao Ir e Lbia, traduo nossa). Esse ato intensicou consideravelmente as sanes ao Ir e os seus impactos. Em vez de serem voltadas diretamente ao pas, esse ato penaliza as empresas que zerem investimentos superiores a 20 milhes de dlares no setor energtico do Ir, ou superiores a 40 milhes de dlares na Lbia, sejam elas empresas estadunidenses ou no. Para as empresas que zerem esse tipo de investimento, o presidente dos Esta- dos Unidos deve escolher duas medidas entre seis possveis para penalizar a empresa. Essas penalizaes afetam a capacidade de exportao e de importao da empresa de maneira pesada e afetam tanto em- presas estadunidenses quanto as de outros pases que atuem nos Estados Unidos. Em 2006, esse ato foi renovado e renomeado para Iran Sanctions Act (em portugus, Ato de Sanes ao Ir, traduo nossa), na medida em que foram retiradas as sanes contra a Lbia. Estas sanes foram e vm sendo aplica- das em funo da criao do programa nuclear iraniano, que visa a desenvolver a produo e consumo de energia nuclear no pas. Os Estados Unidos e seus aliados vm acusando o pas de desenvolver esse programa para ns no paccos e vem tentando pressionar o pas de diversas formas a abandonar seu programa ou limit-lo de acordo com as regras da Agncia Internacional de Energia Atmica (HUFBAUER et al, 2007). 23 Aiatol o ttulo que se d ao lder religioso que ocupa o mais alto cargo da hierarquia religiosa do islamismo. 24 A guerra entre Ir e Iraque foi um conito armado que durou de 1980 a 1988, por vrios motivos, desde disputas por territrios na fronteira entre os dois pases at medo por parte do Iraque que a Revoluo Iraniana se estendesse ao pas. 119 CDH Alm das sanes dos Estados Unidos, o Ir vem sofrendo desde 2006 com sanes do Conselho de Segurana da ONU e da Unio Europeia, alm de outros pases, pelo mesmo motivo. Enquanto o CS aplicou sanes praticamente voltadas apenas para a venda de armas para o Ir, a Unio Europeia aplicou sanes econmicas e em 2012 aplicaram um embargo ao petrleo iraniano. Estima-se que as sanes econmicas sobre o Ir faam com que ele perca cerca de 60 bilhes de dlares em investimentos anuais (KRAUSE-JACKSON, 2010). Considerando-se que o pas possui um PIB de 548 bilhes de dlares, esse valor representa uma perda de mais de 10% de seu PIB, uma quantia con- sidervel. As vendas de petrleo do Ir caram mais de 40% aps as sanes. Como as sanes tambm afetam uma srie de produtos de importao, o pas no consegue comprar diversos produtos demanda- dos pela populao pelo mercado tradicional, o que tem aumentado signicativamente as compras pelo mercado negro criminoso do pas e o contrabando de produtos. O pas tem tentado desenvolver uma economia de resistncia, substituindo produtos estran- geiros por produtos internos e vendendo seus produtos atravs de terceiros pases. O nvel de inao do pas tem chegado a nveis histricos, conforme os preos dos produtos internos, especialmente de produtos bsicos como alimentos, roupas e medicamentos, vo subindo e deixando a populao exposta insegurana alimentar. Tambm se estima que a produo interna de automveis tenha sido duramente afetada, caindo aproximadamente 40%. Isso signica um aumento no desemprego do pas, o que tem srias implicaes negativas para a populao local, especialmente a mais pobre, que a mais afetada por esses efeitos. Estima-se que a populao vivendo na linha da pobreza tenha subido de 22% para 40% aps as sanes (FARSHNESHANI, 2014). Um dos efeitos mais srios das sanes sobre a sade da populao, especialmente dos iranianos com doenas graves como cncer, HIV/AIDS, que passam a tem o acesso a medicamentos necessrios para seus tratamentos drasticamente reduzido. O impacto das sanes internacionais sobre o Ir tem sido to intenso que o pas comeou a si- nalizar uma mudana na sua poltica externa, demonstrando maior disposio de dilogo e negociao com os pases rabes e ocidentais, especialmente com os Estados Unidos, tradicionalmente visto como inimigo do pas. Em 2013, o novo presidente eleito, Hassan Rouhani, assumiu a liderana do pas, apre- sentando um discurso diferente do seu antecessor, Mahmoud Ahmadinejad, que batia-se frontalmente com os pases ocidententais e no estava disposto a desistir do programa nuclear iraniano, nem ceder s presses internacionais. O novo discurso, que coloca a recuperao econmica do pas acima de seu programa nuclear (sinalizando maior disposio de abrir mo dele), busca a resoluo de disputas com pases vizinhos e apresenta uma maior disposio de negociar com o ocidente, demonstra a percepo generalizada no pas de que ele precisa adotar uma nova posio frente aos outros pases, de que precisa modicar sua poltica externa. Essa percepo provavelmente foi muito inuenciada pelo impacto das sanes internacionais sobre o pas, o que tem sido comemorado pelo governo do norte-americano Barack Obama e sugere que as sanes econmicas podem ser efetivas para mudar a poltica de um pas. 4.2. LBIA Como o Ir, a Lbia tambm sofreu sanes econmicas por um extenso perodo de tempo. As sanes aplicadas ao pas possuam diversos objetivos, que variavam em grau de acordo com a poca do sancionamento. A primeira onda de sanes, aplicada pelos Estados Unidos, esteve diretamente ligada deciso da presidncia estadunidense de enfraquecer o regime de Muamar Kada. Sua justicativa prin- cipal, porm, foi a de que a Lbia estaria apoiando nanceiramente grupos terroristas, especialmente os ligados ao atentado terrorista contra o voo 103 da companhia Pan Am. De um total de 270 vtimas, 189 eram estadunidenses. Dois lbios foram acusados pelo atentado. O clamor por justia da sociedade estadunidense, iniciado em 1988 (data do atentado) continuou at 1996, quando o presidente estadunidense Bill Clinton assinou a Lei de Sanes do Ir e da Lbia, declarando que o patrocnio do terrorismo pela Lbia no seria ignorado, especialmente aps o que o presidente armou ser um histrico longo e documentado de violaes obscenas de Direitos Humanos e do Direito Internacional. A Lei, que inicialmente objetivava aumentar a presso sobre a Lbia para que os suspeitos do atentado fossem extraditados, adquiriu como objetivos secundrios negar Lbia (e ao Ir) o dinheiro que seria utilizado para o nanciamento do terrorismo, limitar os recursos necessrios para a obteno de armas de destruio em massa e reduzir as ambies regionais do presidente da Lbia. Entre o incio das manifestaes e a aprovao da Lei, Kada seguidamente manifestou-se em programas de rdio e de televiso dizendo que as ameaas de sanes pelos Estados Unidos s fariam a Lbia tentar uma aproximao maior Unio Sovitica. Alm disso, o presidente declarou que guerri- lheiros rabes que objetivavam a libertao da Palestina poderiam treinar no territrio lbio. Em 1994, porm, ele armou que, caso os Estados Unidos decidissem por um embargo de petrleo, por exemplo, eles estariam prejudicando tanto os lbios quanto os estadunidenses que por ventura trabalhassem em 120 UFRGSMUNDI empresas no pas. Segundo ele, seria errado punir todo um povo pela ao de dois indivduos (os acusa- dos do atentado). Em janeiro de 2001, quando questionados a respeito da manuteno do sancionamento, Estados Unidos e Reino Unido declararam que a entrega de um veredito contra os suspeitos, que se encontravam em julgamento, do atentado contra o voo 103 no seria suciente para o m da poltica de sanes eco- nmicas contra a Lbia. A Organizao das Naes Unidas havia aderido ao sancionamento da Lbia em 1992 com uma srie de sanes econmicas prprias. Seu nico motivo declarado, porm, foi a busca pela extradio dos acusados pelo atentado. Em seguida declarao dos dois pases, o Conselho de Segurana da ONU armou que a Lbia deveria preencher uma srie de pr-requisitos como a compen- sao para as famlias do atentado e a aceitao da responsabilidade pelo ato de terrorismo para que o levantamento das sanes aplicadas pela organizao fosse considerado. Em 2003, o Secretrio de Estado estadunidense, Colin Powell, armou que o levantamento das sanes aplicadas pelas Naes Unidas no afetaria as sanes bilaterais aplicadas pelos Estados Unidos sobre a Lbia. Segundo ele, o pas continuava muito preocupado com outros aspectos do comportamento da Lbia e, em especial, do seu presidente, como o registro pobre de cumprimento dos Direitos Humanos, a falta de instituies democrticas, seu papel destrutivo na perpetuao de conitos regionais na frica, e de forma mais preocupante, sua busca por armas de destruio em massa. As sanes s viriam a ser le- vantadas quando o pas se comprometesse a tomar medidas denitivas contra o terrorismo internacional, melhorando seus ndices humanitrios e o sua taxa de envolvimento em conitos. Finalmente, no incio de 2006, Muamar Kada abriu mo voluntariamente do programa lbio de fabricao de bombas nucleares. Segundo ele, a Lbia no possua inimigos contra quem utilizar uma bomba que eventualmente fosse fabricada, logo, no haveria motivos para a o gasto de dinheiro com o programa. De acordo com o presidente, o mundo e a aliana haviam mudado desde o incio do sancio- namento da Lbia e o pas estava consciente de tal fato. O programa de sanes aplicado pelos Estados Unidos e, por alguns anos, pela Organizao das Naes Unidas foi encerrado em 2006 e considerado um sucesso. Os lbios acusados pelo ataque terro- rista ao voo 103 foram extraditados para julgamento e as famlias das vtimas foram indenizadas. A Lbia abriu mo de qualquer programa que objetivasse a produo de armas de destruio em massa. E nal- mente, destacou-se atravs do seu comprometimento com a reformulao da Organizao da Unidade Africana e, em seguida transformada em Unio Africana, nanciando parte considervel as operaes iniciais da nova organizao. 4.3. CUBA A Repblica de Cuba encontra-se sob embargo comercial, econmico e nanceiro dos Estados Unidos desde 1960. O embargo foi iniciado em resposta expropriao em massa de propriedades es- tadunidenses no territrio cubano e ao relacionamento estreito de Fidel Castro com a Unio Sovitica (HUFBAUER et al, 2007). As sanes contra Cuba proibiram o comrcio, viagens e investimentos diretos e tinha como objetivo principal a desestabilizao do regime de carter socialista de Castro. Em fevereiro de 1962, aps a desastrosa invaso da Baa dos Porcos 25 , a administrao americana de John F. Kennedy proibiu praticamente todas as importaes de Cuba. Em outubro, as relaes entre os pases atingiram um novo ponto baixo aps a descoberta de que a Unio Sovitica estaria instalando ms- seis nucleares em Cuba. Os Estados Unidos impuseram ento uma quarentena naval em torno de Cuba at que os msseis fossem totalmente retirados (HUFBAUER et al, 2007), no episdio que cou conhecido como a Crise dos Msseis de 1962. Quando a Unio Sovitica entrou em colapso no incio da dcada de 1990, era esperado que o regime de Fidel Castro se desintegrasse devido perda de seu principal parceiro comercial e provedor nanceiro. Quando o regime de Castro no caiu, os Estados Unidos impuseram sanes econmicas mais rigorosas, criando a Lei da Democracia Cubana, que proibia empresas dos EUA com lias no exterior de negociar com Cuba (HUFBAUER et al, 2007). Apesar da presso dos Estados Unidos por quase quatro dcadas, Fidel Castro s se aposentou em 2008, quando Cuba passou a ser governada por seu irmo, Ral Castro. Apesar disso, ele ainda consultado em assuntos de grande importncia para o pas, atitude aprovada por unanimidade na Assembleia Nacional cubana. As sanes estadunidenses so regularmente condenadas no mbito da Organizao das Naes Unidas. Em 2007, uma votao na Assembleia Geral da ONU condenou, por 184 votos a 4 (os pases que votaram contra foram: Estados Unidos, Israel, Ilhas Marshall e Palau), a utilizao do embargo econmico. 25 Tentativa de invaso fracassada do sul de Cuba por exilados cubanos contrrios ao novo regime de Castro, que foram apoiados e nanciados pelos Estados Unidos. 121 CDH Apesar de esta ltima votao ter condenado o embargo pela 16 vez consecutiva, a Assembleia Geral no pode produzir resolues vinculantes, ou seja, com poder de lei para encerrar denitivamente a punio. Apesar da vigncia do embargo, importante notar que nem todo comrcio entre Estados Unidos e Cuba est proibido. Desde 2000 foi autorizada a exportao de alimentos dos Estados Unidos para Cuba, condicionada ao pagamento exclusivamente vista. Durante a dcada de 1990, os Estados Uni- dos enviaram mais ajuda humanitria a Cuba que todos os ento quinze membros da Unio Europeia e a Amrica Latina. No entanto, a compra de remdios problemtica (GARFIELD; DEVIN; FAUSEY, 1995). Embora a legislao estadunidense no discorra sobre a compra de medicamentos por Cuba de empresas norte-americanas ou suas subsidirias no exterior, os pedidos de licena so frequentemente arquivados ou negados. O desenvolvimento da medicina preventiva, porm, permitiu a Cuba a manuteno de bai- xas taxas de mortalidade infantil e de um programa de imunizao e tratamento contra doenas comuns (INTER-AGENCY STANDING COMMITTE, 2004). 5. POSICIONAMENTO DOS PASES A Repblica Islmica do Afeganisto foi palco de conitos internacionais nos quais sanes eco- nmicas foram utilizadas para atingir ns especcos. Por essa razo, o Afeganisto se preocupa com a utilizao desse instrumento de resoluo de conito e o consequente desgaste causado por ele. A Repblica da frica do Sul sofreu os impactos de sanes econmicas na poca do Apar- theid 26 . No entanto, graas s sanes, o regime que subjugava a maior parte de sua populao teve um m. Como membro da Unio Africana, tem aplicado sanes em pases vizinhos onde h instabilidade poltica e violao dos Direitos Humanos e atuado fortemente na busca pela estabilidade e paz regional, acatando com frequncia a modelos mais duros e coercitivos para a resoluo de controvrsias. A Repblica Federal da Alemanha costuma ser muito ponderada quanto ao seu posicionamento com relao s sanes; j tendo sido historicamente alvo de sanes econmicas internacionais, atual- mente relativiza seu uso dependendo do tamanho do impacto econmico que causar com essa ao. Como membro da Unio Europeia, o pas aplica diversas sanes em conjunto com os outros pases membros dessa organizao. A Repblica de Angola um pas em desenvolvimento que faz parte da Unio Africana e do G77. Possui uma poltica externa bastante ativa em escala regional. Sua principal preocupao se encontra no fortalecimento regional e no no intervencionismo de pases de fora em assuntos do bloco africano. Dentro do bloco, Angola tem uma atuao bastante forte em misses de paz, pedidos e imposies de sanes e intervenes militares, visando manuteno do equilbrio na regio e legalidade. O Reino da Arbia Saudita um tradicional aliado dos pases ocidentais no Oriente Mdio. Mesmo cometendo diversas violaes de Direitos Humanos, em especial no quesito de liberdades democrticas e de imprensa (o pas uma monarquia), e nas liberdades individuais das mulheres, o pas goza do apoio dos pases ocidentais, e no passou por nenhum tipo de sanes ou mesmo condenao desses pases. O pas tem interesse na presena dos Estados Unidos na regio, e assim favorvel prtica internacional de aplicao de sanes econmicas, que serve para enfraquecer seus inimigos regionais como Ir e Sria. A Repblica Democrtica e Popular da Arglia apresenta uma postura cautelosa ao tratar de sanes econmicas. Embora tenha aprovado sanes implantadas pela Liga rabe contra a Sria, apre- sentou ressalvas quanto ao tipo e durao destas. Sua representatividade na Liga, no entanto, baixa. A Arglia j foi sancionada durante a dcada de 1990 pela Unio Europeia, durante a sua Guerra Civil, sob a justicativa de que as sanes seriam um estmulo ao reestabelecimento da democracia. A Comunidade da Austrlia segue rotineiramente e expressamente todas as recomendaes e regimes de sanes do Conselho de Segurana da ONU e aplica sanes por conta prpria, como no caso das sanes a Fuji, Mianmar e Zimbbue. Isto demonstra o reconhecimento do pas de que as sanes so um recurso legtimo da poltica internacional. No caso das sanes unilaterais, o pas tem um histrico de aplicao de sanes inteligentes, com exceo do caso da Sria, em que o pas restringiu o comrcio de diversos bens e servios, desde tecnologias compra de produtos de luxo e petrleo. 26 O regime de Apartheid na frica do Sul era um regime que exclua a populao negra do pas em benefcio da popu- lao branca, que era dominante, apesar de minoritria. Esse regime estava institudo em leis e na prpria Constituio do pas. Quem no era branco deveria viver em uma rea limitada do territrio sul-africano e no podia votar nem participar do governo nacional, alm de estar sujeito a outras polticas segregacionistas. 122 UFRGSMUNDI A Repblica Federativa do Brasil membro do MERCOSUL e do G77. Tradicionalmente um pas no intervencionista, defende a soberania e a autonomia das naes, assim como preza o dilogo como meio de resoluo de conitos e desavenas entre pases. Por conta de tais caractersticas, busca inter- mediar embates internacionais atravs de uma soluo que permeie o senso comum e decises multila- terais. Apesar de normalmente contrrio a sanes com nalidade poltica, atua com frequncia sancio- nando pases em termos de violaes comerciais, que, segundo o pas, no conguram interveno na soberania de outros pases. O Canad cumpre um papel relevante na defesa da no proliferao nuclear no mundo. Sob esse argumento, o pas possui uma postura rgida em relao ao Ir, principalmente, apesar da recente mudan- a de tom da comunidade internacional na abordagem do tema. A Repblica Centro-Africana tem passado por um aumento no nmero de conitos ligado a rivalidades religiosas dentro do pas. Estima-se que milcias armadas ligadas a grupos cristos tenham perseguido polticos e civis muulmanos, depois que um grupo rebelde tomou o poder no ano passado. Como consequncia, diversos pases tem ameaado utilizar sanes inteligentes contra indivduos li- gados a esses grupos, e existem sanes do Conselho de Segurana da ONU que at mesmo prevem a atuao de tropas europeias no pas para garantir a segurana da populao (ONUBR, 2014). Em 2013, o pas j havia sido suspenso da Unio Africana. A Repblica Popular da China mantm uma poltica de no-interveno nos assuntos internos de outros pases e preza seus interesses econmicos. Parte dessa poltica a animosidade chinesa em rela- o a sanes econmicas. Pequim faz parte do G77, que, como j foi dito, condena sanes econmicas, especialmente as unilaterais. Junto com a Rssia, a China vetou as tentativas do Conselho de Segurana de impor medidas restritivas Sria. No CSNU tambm criticou as sanes ao Zimbbue 27 e a Mianmar. Entretanto, ocasionalmente faz uso de ameaas e presses econmicas pontuais e informais contra em- presas e pases para obter um comportamento mais favorvel sua economia e sua posio de poder na esfera internacional. Pequim no se preocupa em justicar suas medidas com base em violaes do Direito Internacional ou humanitrio, ao contrrio do discurso utilizado pelos EUA e Unio Europeia, pois isso vai de encontro a sua poltica de no-interveno em assuntos alheios. A Repblica Democrtica do Congo possui grupos rebeldes internos que tem utilizado fora ar- mada e violncia para tentar tomar o poder. O pas est sob um embargo de armas do Conselho de Se- gurana da ONU para impedir o acesso a armas por parte desses grupos, porm mesmo assim diversas violaes de Direitos Humanos continuam ocorrendo. Assim, diversas sanes inteligentes tm sido aplicadas para punir e constranger indivduos que violem esse embargo, bem como punir os grupos re- beldes. A fraca governana desse pas faz com que estes grupos tenham muita fora. O governo se de- clara a favor de sanes econmicas A Repblica da Coreia possui um papel histrico sancionador, adotando um discurso de defesa dos Direitos Humanos e de no-proliferao nuclear, semelhante ao dos Estados Unidos, na sua regio. A Repblica da Costa do Marm apresenta uma postura cautelosa ao tratar de sanes econmi- cas. Como membro da Unio Africana, o pas entende que esforos de cooperao regionais so a melhor alternativa para a resoluo de conitos internacionais. O pas foi sancionado trs vezes durante a dca- da de 2000. A primeira sano, aplicada por Estados Unidos e Unio Europeia, foi justicava como uma tentativa de restaurao da democracia durante a sua Guerra Civil (1999-2002). A segunda, aplicada pela Organizao das Naes Unidas em 2004, foi acionada aps o ataque a um campo militar francs ocupa- do por rebeldes e constituiu-se apenas em um embargo de armas. A terceira e ltima sano, classicada como sano inteligente, cassou os privilgios de viagem e ativos nanceiros de trs polticos do pas. A Repblica de Cuba um pas notoriamente contra sanes econmicas, haja vista as grandes mazelas sociais e econmicas sofridas ao longo de sua histria por conta de embargos internacionais. Adota uma postura combativa a esse instrumento e procura apoiar outras formas de resoluo de conito que no interram no bem estar de grupos vulnerveis da sociedade. A Repblica rabe do Egito adota uma postura cautelosa ao discutir sanes econmicas. O pas j foi sancionado multilateralmente em 1956, aps a nacionalizao do Canal de Suez e em 1978 pela Liga rabe, que buscava a desistncia por parte do Egito das negociaes de paz com Israel, mediadas em Camp David pelos EUA. Em transio aps acontecimentos internos, o Egito atualmente d prioridade s relaes domsticas e no internacionais. No entanto, o pas recentemente colaborou com o Ir durante o perodo em que este foi sancionado, fornecendo auxlio nanceiro atravs do Banco de Desenvolvi- mento Egpcio-Iraniano. 27 No Zimbbue, o CS aplicou sanes contra o comrcio ilegal de diamantes, usado para nanciar atividades de milcias. 123 CDH Os Estados Unidos da Amrica se expem como defensores dos Direitos Humanos, da demo- cracia e das liberdades individuais. Devido ao seu poder sobre a esfera internacional, adotam um forte carter intervencionista em relao a outros pases. Para punir ou prevenir abusos dos Direitos Humanos e ameaas ou violaes da paz e da segurana internacional, defendem sanes econmicas, alm de outras medidas. Os EUA so os maiores aplicadores de sanes unilaterais atualmente. A Repblica Francesa adota um discurso de proteo dos Direitos Humanos e interveno nos pases agressores ou altamente instveis politicamente. Adota a imposio de medidas restritivas contra pases violadores dos Direitos Humanos, tanto as da ONU quanto sanes unilaterais impostas em con- junto pela Unio Europeia. Tradicionalmente tem uma atuao mais forte em regies que j zeram parte dos territrios franceses ultramar, em especial no norte da frica, visando estabilidade, combate ao terror e manuteno do seu interesse em tais pases. Costuma fazer uso de suas foras armadas unilate- ralmente em regies cujas sanes econmicas no surtiram o efeito desejado. A Repblica da Gmbia foi multilateralmente sancionada por Estados Unidos, Japo e Unio Eu- ropeia aps a aplicao de um golpe de Estado e da instalao de um governo no democrtico no pas. Com economia basicamente agrria, o pas sofreu principalmente com perda dos auxlios ao desenvol- vimento. Sendo assim, posiciona-se contrariamente utilizao de sanes econmicas, especialmente em pases que j enfrentam diculdades relacionadas pobreza extrema da populao. A Repblica do Haiti um dos pases mais pobres da Amrica Latina. Altos ndices de pobreza e desemprego zeram com que as sanes econmicas aplicadas entre 1991 e 1994, em funo de um golpe de Estado contra o presidente eleito democraticamente, fossem duramente sentidas pela popula- o mais pobre, com preos de produtos bsicos importados subindo drasticamente. Desde ento, o pas tem passado por instabilidades polticas e sociais. Em 2004, foi aprovada pelo Conselho de Segurana da ONU a criao de uma misso de paz no pas, formada por tropas de diversos pases lideradas pelo Brasil, para dar suporte polcia nacional e maior estabilidade ao governo de transio para uma democracia no pas. Em 2010, um forte terremoto atingiu o pas, criando uma situao humanitria catastrca, fazendo com que a misso de paz assumisse diversas atividades de auxlio humanitrio. Em 2013, o pas props Caricom, uma comunidade de pases do Caribe, que ela adotasse sanes contra a Repblica Domini- cana, pas vizinho ao Haiti, quando este negou cidadania a mais de 300 mil pessoas, lhos de imigrantes haitianos no pas. A Repblica da ndia possui posicionamento ambguo quando se trata de imposio de sanes e intervenes. Um dos mais importantes pases emergentes, dotado de uma enorme populao e de uma poderosa economia, o pas se apresenta como um dos lderes do mundo em desenvolvimento. Segue as recomendaes do G77 sobre a imposio de sanes, caso se julguem necessrias, tendo em vista a busca do bloco e da prpria ndia por fazer frente ao intervencionismo exagerado. O posicionamento indiano acerca das rodadas de sanes impostas contra o Ir demonstra essa atitude. Por outro lado, no que tange a questes internas e diretamente ligadas ao interesse indiano, a interveno pelas mais diver- sas vias se d com frequncia, como nas disputas comerciais, polticas e territoriais com Bangladesh, Sri Lanka e Paquisto - regies com fortes laos histricos, onde h grande ao indiana econmica, poltica e militar desde a independncia desses pases. A Repblica Italiana, preocupada com a consequncia da imposio de sanes econmicas so- bre pases vizinhos, pondera criticamente seu uso. Seus principais parceiros comerciais apreciam uma dose de tolerncia maior em situaes onde o uso de sanes econmicas seria normalmente conside- rado. A Repblica Islmica do Ir tem sido vtima de diversas sanes desde a sua criao em 1979. Atualmente, o pas sofre embargo ao seu petrleo por parte dos Estados Unidos e da Unio Europeia, alm de sofrer sanes para compra de armamentos por parte do Conselho de Segurana da ONU e sanes importao e exportao de produtos por parte dos Estados Unidos. Os Estados Unidos e seus aliados se opem ao programa de energia nuclear do Ir, o qual eles suspeitam que possa estar sendo de- senvolvido para ns militares, e aplicam sanes para pressionar o pas a abandonar o programa nuclear, ou no mnimo dar sinais claros de que no desenvolve o programa para ns militares. As sanes tm afe- tado severamente as condies de vida do pas, com um nmero crescente de famlias vivendo na linha da pobreza, com o acesso a medicamentos cando cada vez mais restrito, com o desemprego aumen- tando e o preo geral de bens bsicos crescendo consideravelmente. Apesar disso, o pas no tem dado sinais de que pretende abandonar seu programa nuclear, armando que no possui ambies militares. O antigo presidente Mahmoud Ahmadinejad fazia diversas declaraes hostis ao ocidente, mostrando relutncia em negociar sobre o programa com pases ocidentais. Para amenizar os problemas derivados das sanes, o ex-presidente tentou substituir os produtos importados por nacionais ou por substitutos de pases asiticos que no sancionaram o pas. Em 2013, um novo presidente, Hassan Rohani, assumiu o poder e tem se mostrado mais aberto ao dilogo com os Estados Unidos, interrompendo algumas opera- 124 UFRGSMUNDI es do programa nuclear em novembro de 2013 para sinalizar disposio de negociar com o ocidente. O presidente recentemente deu um discurso sobre a ilegalidade das sanes internacionais e seu fracasso enquanto instrumento poltico, uma vez que elas no alcanam geralmente seus objetivos. A Repblica do Iraque um pas fortemente marcado pelas aplicaes de sanes econmicas em seu territrio, tendo tido inmeros problemas socioeconmicos por essa atuao. sabido que essa regio vem sido alvo de um jogo internacional de longa data e por isso esta deve ser analisada com cuida- do. Os impactos sociais que o Iraque sofreu fazem dele um opositor a esse tipo de resoluo de conito. O Estado de Israel um pas cuja histria se sustenta na utilizao de sanes internacionais. Dado a longa questo da Palestina conito de terras entre rabes e judeus, a aplicao de sanes uma ferramenta comum para manuteno de seu poder na regio, mesmo com presso internacional para eliminao desse tipo de instrumento coercitivo. Adotando um posicionamento semelhante vizinha Coreia do Sul, o Japo igualmente estabelece uma identidade de defensor dos Direitos Humanos. Em uma postura combativa a qualquer desestabiliza- o da sua regio, o pas defende com veemncia a utilizao de sanes econmicas, aplicando-as com frequncia Coreia do Norte. O Mxico, assim como o Brasil, vem aumentando sua inuncia e buscando um papel cada vez mais proativo nas questes inerentes ao meio. A busca por empoderamento internacional se d, inclusive, com posicionamentos contrrios aos norte-americanos, seus maiores parceiros, em questes de grande relevncia, como na defesa contra o uso da fora em territrio srio e na sua disposio ao comrcio com naes que sofreram sanes unilaterais. So contrrios ao uso da fora para a resoluo de conitos e observam na no interveno e no dilogo as nicas possibilidades viveis para resoluo controvrsias polticas. A Repblica da Unio de Mianmar desde a sua independncia e adoo de uma poltica externa independente preza pela coexistncia pacca entre os diversos Estados da comunidade internacional. Sua projeo de poltica externa se d baseada nos princpios da igualdade dos povos, da autonomia decisria (e no-alinhada) frente ao sistema internacional e na oposio ao colonialismo, imperialismo, agresso, hegemonia e interveno estrangeira. Desta forma, Mianmar busca, assim como a ASEAN, OI da qual faz parte, o dilogo e a no interveno como formas de resoluo de controvrsias, visto que medi- das coercitivas no so consideradas profcuas para a manuteno das boas relaes entre pases. Ajuda estrangeira, que tenha o desenvolvimento como nalidade, no entendida como forma de interveno em assuntos internos pelo pas. Os Pases Baixos alinham-se com outras potncias ocidentais quanto ao embargo de pases chave no Oriente Mdio, endossando seu apoio ao combate de redes terroristas ao redor do mundo. A Repblica do Paraguai, tradicionalmente um pas no-intervencionista, sofreu recentemente ameaas de sanes econmicas devido deposio de Fernando Lugo, presidente do pas de 2008 2012. O processo de impeachment, que durou apenas 36 horas, foi considerado um golpe de Estado pela maior parte dos pases da Amrica do Sul. Apesar das ameaas, o Paraguai no foi sancionado multila- teralmente pelo MERCOSUL ou pela UNASUL. A nica sano econmica imposta partiu da Bolvia, que interrompeu o fornecimento de gs para o pas. Antes disso, o Paraguai j havia sido sancionado pela Liga das Naes durante a Guerra do Chaco (1932-1935) e pelos Estados Unidos durante uma tentativa de gol- pe de Estado aplicada pelo General Cesar Oviedo, comandante das foras armadas. Seguindo a poltica anterior, o governo atual posiciona-se contrariamente utilizao de sanes econmicas. O Reino Unido da Gr-Bretanha e da Irlanda do Norte outro pas que defende a interveno que for necessria para proteger os Direitos Humanos e a democracia e combater o terrorismo. Assim como a Frana, faz parte da Unio Europeia e impe sanes econmicas acordadas por essa organiza- o, alm das impostas ou sugeridas pela ONU. A Federao Russa ctica quanto ao discurso ocidental de proteo aos Direitos Humanos para defender sanes econmicas. Considera medidas restritivas um tipo de interveno estrangeira nos as- suntos internos dos pases sancionados. No CSNU, a Rssia tem se posicionado contra sanes econ- micas, condenando especialmente as sanes unilaterais por parte da UE e dos EUA. Moscou geralmente aplica sanes econmicas voltadas a pases vizinhos, especialmente antigos membros do bloco sovi- tico, quando questes diretamente ligadas aos interesses econmicos e geopolticos russos esto em questo. A Repblica do Senegal tem participado de sanes multilaterais atravs da Comunidade Econ- mica de Estados da frica Ocidental, organizao internacional da qual participa. As sanes colocadas sobre todos os Estados-membros so uma moratria 28 sobre a importao, exportao e produo de 28 Moratria, neste contexto, se refere proibio de importao, exportao e produo de armas leves, ou de com- ponentes destas. 125 CDH armas leves. A moratria tem por objetivo diminuir o acesso de milcias locais e grupos rebeldes a esse tipo de arma, visando a aumentar a segurana local. Alm disso, em 2012 o pas ameaou sancionar o vizinho Gmbia, em funo de diversas execues de prisioneiros que no passaram por julgamentos adequados, em uma clara violao aos Direitos Humanos desses indivduos. A Repblica da Serra Leoa foi alvo de sanes econmicas durante o perodo em que esteve em Guerra Civil (1991-2002). As principais sanes aplicadas ao pas foram sanes comerciais relacionadas especicamente a produo de armas leves. Alm disso, o pas j foi sancionado devido ao seu envol- vimento no trco de diamantes. Setenta por cento da populao da Serra Leoa vive em situao de pobreza extrema. Em funo disso, o pas foi um dos primeiros onde as chamadas sanes inteligentes foram aplicadas. Uma sano econmica usual, seja nanceira ou comercial, teria aniquilado a economia j extremamente fraca do pas. O pas contrrio utilizao de sanes econmicas, mesmo as consi- deradas inteligentes. Desde que grandes manifestaes contra o governo de Bashar al-Assad resultaram numa guerra civil entre o governo e grupos opositores no pas em 2011, a Repblica rabe Sria tem sido alvo de di- versas sanes por parte de uma ampla gama de atores, como o Conselho de Segurana da ONU (com relao a venda de componentes de uso militar), a Unio Europeia, os Estados Unidos, a Liga rabe, den- tre outros (sanes econmicas). O governo de Assad diz que essas sanes, somadas expulso do pas da Liga rabe, visam a enfraquecer o governo da Sria, e armar os interesses americanos na regio. O governo acusado de reagir de maneira extremamente violenta contra a oposio do pas, e mesmo de utilizar armas qumicas contra civis. Entretanto, as sanes tm como efeito uma exposio ainda maior- da populao a situaes de risco humanitrio, somadas aos efeitos da guerra. A Repblica Federal da Somlia um dos pases com situao poltica mais instvel de todo o globo. Sem um poder estatal centralizado nem uma ampla aceitao interna, o pas vive h dcadas imer- so num panorama crtico. Grupos terroristas e milcias tm liberdade para fazer frente ao poder estatal, que sofre com a grande ineccia na formulao e implementao de polticas pblicas, inclusive de uma poltica externa. Por conta do ambiente catico presente no pas, vrias sanes e incurses militares fo- ram propostas e impostas, de modo a tentar combater as quimeras desse Estado, proteger civis inocentes e constituir um governo amplamente reconhecido e estvel - condies essenciais para a pacicao da regio de grande importncia para o mundo. De toda forma, o governo somali permite, e vrias vezes solicita, ajuda estrangeira, sendo uma das medidas aprovadas o uso de sanes econmicas contra seus ofensores, desde que em consonncia com a execuo de seu interesse maior. Tal ajuda no pode ser confundida com intromisso estrangeira em assuntos internos, o que amplamente criticado pelo pas. A Repblica do Sudo tem sua histria demarcada negativamente pela aplicao de sanes eco- nmicas em seu territrio e por isso posiciona-se contra ao uso delas; a longa questo de Darfur originou inmeros embargos (seja como sancionador ou alvo) e serviu parcialmente para o incio da resoluo do conito, descrito como genocdio por inmeros pases da comunidade internacional, na mesma localidade. A Repblica do Sudo do Sul no v com bom grado a aplicao de sanes econmicas inter- nacionais, ainda que tenha sido auxiliada por elas no seu processo de independncia. H uma disputa internacional na regio que envolve outros Estados ediculta a compreenso da situao atual da regio. Sanes econmicas que fragilizam sobremaneira a economia local so vistas com distanciamento e no como a primeira forma de resoluo de conitos. A Confederao Sua um pas neutro historicamente, mas que vem adotando uma postura que tem incomodado seus vizinhos europeus; um polmico plebiscito sobre restrio imigrao europeia foi aprovado pela populao sua com maioria sim. Pases da Comunidade Europeia prometem revidar com possveis sanes econmicas, tais como a Frana. A Confederao Sua tem a tradio do ponde- ramento quando o assunto sano econmica. A Repblica de Uganda sofre, atualmente, ameaas de sanes de econmicas graas procla- mao de uma lei anti-homossexualidade. A lei, vista com reprovao por inmeros pases ocidentais e pela Organizao das Naes Unidas, endurece penalidades j existentes contra homossexuais, esta- belecendo a priso perptua para reincidentes. H pouco tempo, o Banco Mundial cancelou um em- prstimo de R$ 90 milhes para Uganda pela mesma razo. Em 1978, a Uganda j havia sido sancionada pelos Estados Unidos sob a justicativa de desrespeito aos Direitos Humanos. Uganda reprova o uso de sanes econmicas com este m, pois acredita que elas so utilizadas com o objetivo de impor uma viso ocidental sobre o pas. A Repblica da Turquia possui uma atuao muito forte em termos regionais e globais. Seu po- sicionamento costuma ser a favor de sanes e da interveno para a manuteno da estabilidade ou defesa de seu interesse. Apesar de ter buscado uma soluo pacca para o cessar das sanes contra o Ir, o histrico turco demonstra muito mais aes incisivas e intervencionistas. O caso de maior repercus- 126 UFRGSMUNDI so atualmente a ao turca na situao na Sria: a Turquia interveio econmica e militarmente contra o regime de Bashar al-Assad, em defesa dos rebeldes, atitude que aproximou a Turquia Unio Europeia em termos de poltica externa. Sanes de carter mais brando tambm so adotadas contra pases que venham a ferir o interesse ou a histria turca como contra a Frana quando esta condenou um episdio de suposto genocdio cometido pela Turquia em 1915. No momento atual, a Ucrnia enfrenta ameaas de sanes econmicas da Rssia, aps a deposi- o do seu ex-presidente Viktor Yanukovych. Entre a Unio Europeia e a Rssia, o pas considerado uma espcie de territrio-tampo, sujeito s vontades do bloco e da grande potncia. Alm disso, sanes ameaadas pelos Estados Unidos contra a Rssia, aps a invaso de territrios ucranianos, podem afetar a Ucrnia, que depende quase que exclusivamente de suas relaes comerciais com os russos. Previa- mente, o pas j foi sancionado pela Rssia aps o desmantelamento da Unio Sovitica, da qual fazia parte. As sanes tinham como objetivo a devoluo de ogivas nucleares da URSS que permaneciam no territrio da Ucrnia. De 2003 a 2012, a Repblica do Uzbequisto sofreu sanes dos Estados Unidos na forma de corte assistncia militar em funo da situao deplorvel dos Direitos Humanos no pas. A Unio Eu- ropeia tambm aplicou um embargo de armas ao pas de 2005 a 2009. O pas est sendo ameaado de receber novas sanes, em funo de denncias de aumento do trco de pessoas no pas. O pas assume uma posio neutra frente s sanes, buscando de maneira fraca resolver os problemas relacionados aos Direitos Humanos, para evitar receber novas sanes. A Repblica Bolivariana da Venezuela radicalmente contrria utilizao de sanes econmi- cas como mtodo punitivo. O pas j demonstrou tal fato auxiliando pases sancionados, como Cuba, na recuperao de sua economia. Em 2006, os Estados Unidos estabeleceram a proibio da venda de arti- gos e servios relacionados defesa para a Venezuela devido suposta falta de cooperao venezuelana em aes de contra-terrorismo. Em 2011, a Venezuela foi novamente sancionada pelos estadunidenses porque sua companhia de energia estatal apoiou o Ir durante a sua crise energtica. A Repblica Socialista do Vietn j foi sancionada em diferentes perodos da sua histria. As sanes econmicas de maior durao foram aplicadas pelos Estados Unidos durante a Guerra do Viet- n (1955-1975), quando o pas encontrava-se dividido entre Vietn do Sul (apoiado pelos EUA) e Viet- n do Norte (apoiado pela URSS). As sanes estadunidenses buscavam enfraquecer as foras militares, apoiadas pelos soviticos, do Vietn do Norte. Aps a vitria deste e a formao da Repblica Socialista do Vietn, as sanes diminuram gradualmente at que as relaes comerciais foram normalizadas. O Vietn voltou a ser sancionado pelos Estados Unidos em 1978 devido a acusaes de violao de Direitos Humanos. O pas posiciona-se contrariamente utilizao de sanes econmicas. REFERNCIAS ALBRIGHT, Madeleine K. Economic Sanctions and Public Health: A Viewfrom the Department of State. 2000. Annals of Internal Medicine, 132(2): 155-157. ANSELMO, C. A Organizao Mundial do Comrcio e os Direitos Humanos, Um Encontro Necessrio. 2010. 90 f. 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Disponvel em: <http://eeas.europa.eu/cfsp/sanc- tions/docs/index_en.pdf>. Acessoem: 09 fev. 2014. RESUMO O Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organizao das Naes Unidas (ONU) um rgo inter- governamental criado em 2006 para fortalecer e promover a defesa dos Direitos Humanos no mundo inteiro, bem como reconhecer e discutir as violaes a estes direitos, alm de criar recomendaes para que tais vio- laes sejam evitadas. Decises de um pas, sejam elas a armao de uma poltica econmica, a deciso da entrada em um conito ou o posicionamento em uma questo importante da Agenda Internacional, podem ser coagidas por outros pases atravs de uma srie de medidas. Isso signica que um Estado com maior poder no Sistema Internacional pode convencer outro a aes convenientes aos seus interesses. Entre as principais ferra- mentas de convencimento na poltica mundial esto as Sanes Multilaterais e as Sanes Unilaterais. Aplicadas pela Organizao das Naes Unidas, por um grupo de pases ou individualmente, elas se dividem em sanes econmicas, militares e diplomticas, entre outras. Porm, importante destacar que estas, em especial as San- es Econmicas, tambm constituem uma forma de violao de direitos, especialmente de populaes vul- nerveis como minorias tnicas e religiosas, pessoas da comunidade LGBTIQ, indivduos que vivem prximo ou abaixo a linha da pobreza e, em muitos casos, mulheres e crianas. necessrio que as reais consequncias da aplicao de Sanes Econmicas sejam trazidas ateno do Sistema Internacional. Desse modo, o Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU deste UFRGSMUNDI tratar do tema O Impacto das Sanes Econmicas nos Direitos Humanos, buscando discutir a validade da sua utilizao, mecanismos alternativos a ela e formas de impedir que populaes muitas vezes afastadas dos grandes centros de deciso do Estado sofram por suas aes de poltica externa. 129 UA ASSEMBLEIA GERAL DA UNIO AFRICANA Atores Militares No-Estatais e Foras Militares Estrangeiras no Continente Africano Ana Carolina de Sousa Melos 1 Jlia Oliveira Rosa 2
Katiele Rezer Menger 3
Leonardo Albarello Weber 4
O dia em que toda a riqueza da frica estiver efetivamente sob a autoridade soberana da frica da Cidade do Cabo ao Cairo, de Dar es -Salaam a Dakar poder -se - enm julgar com todo rigor a exortao imperecvel de Kwame Nkrumah: Procurai primeiramente o reino poltico e todo o restante vos ser dado em suplemento. (WONDJI; MAZRUI, 2010, p. 149) INTRODUO O continente africano, considerado o bero das civilizaes, sofreu por sculos com o domnio direto de potncias 5 ocidentais em seu territrio. Desde o perodo das grandes navegaes, iniciadas no sculo XV, pases europeus se encarregaram de colonizar tais territrios, deixando seu povo total- mente dependente dessas metrpoles. Esse processo de colonizao, intensicado no sculo XIX com a Conferncia de Berlim e com a partilha da frica, gerou consequncias na dinmica dos novos pases africanos, as quais so sentidas at hoje em seu desenvolvimento. Os nos movimentos de independncia dos pases africanos se deram ao longo do sculo XX, prin- cipalmente aps a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria criou um novo cenrio de dominao no con- tinente africano, quando as potncias em oposio, EUA e Unio Sovitica, passaram a exercer inuncia direta na poltica dos Estados africanos, eliminando, de certa forma, a preponderncia europeia, exercida por tantos sculos, e j enfraquecida pelos movimentos de independncia. Cabe aqui ressaltar que o tipo de relaes estabelecidas nesse perodo so bem diferentes daquelas que se deram desde o sculo XV com pases europeus, na medida em que agora trata-se de pases africanos soberanos, e no mais col- nias. Enquanto os europeus buscaram subjugar os povos africanos de forma a torn-los dependentes, as superpotncias da Guerra Fria enxergavam, contudo, nesses novos pases, potenciais aliados, devido a sua posio estratgica (OLIVEIRA, 2009). Para garantir esses aliados, EUA e Unio Sovitica contriburam com ajuda nanceira e militar, nanciando movimentos internos que lhes eram favorveis (OLIVEIRA, 2009). , ento, nesse contexto da ecloso de movimentos de independncia e Guerra Fria que surge a Organizao da Unidade Africana, uma organizao criada na tentativa de promover um ambiente de estabilidade poltica para esses novos Estados que surgiam no globo. As fragilidades da instituio, no entanto, tornaram necessria a criao de um novo organismo, surgindo, assim, a Unio Africana (UA), em 2002, a qual tem como principal objetivo fomentar a cooperao entre os pases-membros, visando a alcanar o desenvolvimento africano nas reas sociais, polticas, econmicas e culturais. Trazendo uma nova mentalidade por parte dos membros, a UA vem trabalhando na tentativa de diminuir, cada vez mais, as intervenes estrangeiras nos assuntos internos ao continente. 1 Graduanda do curso de Relaes Internacionais da UFRGS do 5 semestre. 2 Graduanda do curso de Relaes Internacionais da UFRGS do 5 semestre. 3 Graduanda do curso de Relaes Internacionais da UFRGS do 3 semestre. 4 Graduando do curso de Relaes Internacionais da UFRGS do 7 semestre. 5 O termo potncia se refere ao pas que considerado de destaque no globo por ter grandes capacidades militares, econmicas e estar envolvido nas dinmicas internacionais mais importantes. ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.129-154 130 UFRGSMUNDI A organizao dividida em diversos rgos para garantir seu melhor desempenho, sendo a As- sembleia Geral da Unio Africana o rgo supremo da organizao. A Assembleia Geral conta com reu- nies ordinrias, que ocorrem uma vez por ano com os chefes de Estado dos pases-membros, e decises tomadas por consenso. No sendo alcanada a unanimidade, os membros trabalham com dois teros de aprovao. Durante as reunies, cada pas tem direito a um voto, no havendo o poder de veto para nenhum dos membros. Cabe ressaltar que os pases preservam o direito de se abster 6 na votao. Os pases podem, ainda, sofrerem sanes 7 , de acordo com o Artigo 23 do Ato Constitutivo por falta de contribuies nanceiras ou no cumprimento das decises tomadas pela Assembleia ou por mu- danas consideradas inconstitucionais em seus governos, perdendo, assim, o direito de participao na organizao. Nessa reunio ordinria, vamos discutir o problema da militarizao do continente e suas consequncias para o desenvolvimento dos pases africanos. 1. HISTRICO 1.1. O SCULO XIX E A PARTILHA DA FRICA Nos ns do sculo XIX, Frana, Reino Unido, Alemanha e Portugal detinham entrepostos comerciais e mantinham estreitas relaes de comrcio em diferentes regies da frica. Apesar disso, sua inuncia na esfera poltica das provncias, com as quais se relacionavam, era muito reduzida. Todavia, entre 1876 e 1880, essa conduta de dominao passiva e contida comea a ser alterada ao passo que, quando algumas naes europeias comeam a demonstrar explcito interesse no continente, desencadeado um proces- so em que todas as potncias da poca buscam um domnio efetivo sobre alguns territrios africanos. Deixando de lado suas prticas de dominao indireta e fazendo anexaes, ampliando seus domnios de entrepostos comerciais para controle poltico e transferindo um contingente da metrpole para se xar nos territrios e consolidar sua dominao, essas potncias do incio ao processo de partilha da frica. Nesse contexto, teve espao a Conferncia de Berlim (em que estiveram presentes: Portugal, Alemanha, Gr-Bretanha, Frana, Espanha, Itlia, Holanda, Dinamarca, Blgica, Estados Unidos, Sucia, ustria- Hungria e Imprio Otomano), que aconteceu entre os anos de 1884 e 1885, na qual acertou-se a distribuio de territrios, a aprovao de tratados de navegao e o estabelecimento de regras de ocupao do continente africano. Tal foi o sucesso da empreitada de partilha e conquista da frica pelas potncias europeias, que, em 1914, apesar dos focos de resistncia africana, com exceo da Libria e da Etipia, toda a frica estava dominada (BOAHEN, 2010). Durante o perodo de dominao colonial, a frica foi submetida aos costumes e s regras da Europa. As religies milenares foram suprimidas e tiveram que dar espao ao cristianismo. As fronteiras que dividiam os povoados foram substitudas pelo mapa elaborado na Conferncia de Berlim, que visava to somente a otimizar a partilha entre as naes europeias e, portanto, ignorava quase totalmente as divises pr-existentes (j existiam sistemas polticos e divises territoriais na frica antes da coloniza- o). Os sistemas polticos vigentes foram substitudos por governanas europeias, e o continente passou a ser encarado como uma rea de inuncia e reserva estratgica disposio dos poderes coloniais (FERREIRA, 2008, p. 3). Apesar da usurpao fsica e material que os africanos sofreram nos anos de colo- nialismo, vlido lembrar que a colonizao trouxe alguns benefcios ao continente, como a construo de escolas, ferrovias e estradas. 6 Absteno, aqui, o termo que dene o ato de um membro optar por no emitir um voto a respeito de uma deciso, nem favorvel, nem contrrio. 7 Punio imposta a membros da organizao que venham a descumprir os princpios que regem os artigos do Ato Constitutivo da Unio Africana. 131 UA Figura 1: Mapa da diviso do continente aps a Conferncia de Berlim
Fonte: infoescola.com.br 1.2. A DCADA AFRICANA E AS INDEPENDNCIAS Pode-se considerar que esse domnio colonial se estendeu at a dcada de 1960, quando estourou a maioria dos movimentos de independncia. Durante o perodo de dominao colonial africana, o mun- do passou por duas grandes guerras, que zeram propagar seus efeitos sobre a frica, uma vez que quase todos os colonizadores tomaram parte no conito. Mais de um milho de soldados africanos participa- ram da Primeira Guerra Mundial. J na Segunda Grande Guerra, as relaes africanas com o mercado de armamentos foram expandidas consideravelmente. O declnio das potncias europeias e o prestgio de ideais progressistas e democrticos, tambm consequncias da Segunda Guerra Mundial, seriam fatores fundamentais para a exploso dos movimentos de libertao africanos. Os Estados Unidos e a Unio Sovitica, que, depois da Segunda Guerra Mundial, adentraram for- talecidos no cenrio internacional, no haviam tomado parte na partilha da frica e, portanto, no inte- ressava a eles que a Europa continuasse com seus domnios no continente. Para os Estados Unidos, o exclusivismo europeu sobre os recursos e mercados africanos no os era conveniente, pois eles expan- diam sua indstria e buscavam novos mercados, enquanto, para a Unio Sovitica, dar apoio ao processo de descolonizao era uma oportunidade de ampliao de sua rea de inuncia internacional, sendo o prprio processo emancipatrio um expoente da diminuio dos domnios das potncias imperialistas. Entretanto, medida que acirravam as tenses entre Estados Unidos e URSS, os norte-americanos foram alterando sua postura frente aos movimentos de libertao nacional africanos, ao ponto de se aliarem a potncias imperialistas e condenarem movimentos emancipatrios que estivessem alinhados aos ideais soviticos anal, grande parte dos movimentos emancipatrios tinha ligaes com a URSS e, logo, inclinao poltica a ideais de esquerda. Contudo, a luta pela independncia dos pases africanos ganhou fora em fruns internacionais e, apesar dos entraves promovidos pelos colonizadores europeus e mesmo pelos Estados Unidos, as primeiras independncias no tardaram a se concretizar. A forma e o tempo de luta por independncia variou muito em cada um dos 54 pases africanos. O tipo de colonizao que sofreram tambm foi um dos determinantes de como seria sua emancipao. Alm disso, os Estados Unidos, preocupados com a inuncia que a URSS poderia ter sobre as jovens naes, no mediram esforos para substituir a inuncia europeia nos pases africanos pela sua prpria 132 UFRGSMUNDI preponderncia. Isso foi facilitado pelo fato de que, logo que rompiam alguns vnculos com os antigos colonizadores, as naes africanas se encontravam margem do mercado mundial e ainda dependentes das naes europeias em muitos aspectos, dado que sua indstria e agricultura eram atrasadas, des- preparadas para concorrer no mercado internacional em posio de igualdade. Alguns lderes africanos empreenderam esforos para superar essa realidade, identicando os principais problemas de seus pases e tentando fortalecer seus pases recm-criados por meio de iniciativas de industrializao ou de coope- rao coletiva para a soluo de seus problemas. Muitos pases africanos se juntaram ao Movimento dos Pases No Alinhados 8 , que compreendiam tambm pases da Amrica Latina e da sia que padeciam das mesmas demandas. Cientes das carncias dos novos pases africanos, os Estados Unidos zeram a eles ofertas de incluso em programas de ajuda militar e econmica, condicionando tal ajuda a benefcios a serem con- cedidos a empresas norte-americanas em solo africano. No obstante a isso, deu assessoria e nancia- mento a grupos armados que se opusessem a governos cuja orientao era claramente anticolonialista e socialista alinhada s polticas da URSS. Na contramo de tais prticas, muitos pases buscaram um alinhamento URSS e a Cuba, o que, em plena Guerra Fria, acirrou as tenses entre os pases africanos alinhados s polticas dos EUA e os alinhados s polticas soviticas, levando a uma militarizao ainda maior do continente e a um acirramento de muitos conitos intra e interestatais. Foi na dcada de 1970 que a frica tornou-se, mais claramente, um dos palcos da Guerra Fria. Interpretando erroneamente lutas de libertao nacional ou guerras civis como mero embate entre co- munismo e capitalismo, os EUA e a URSS maximizariam o impacto desses conitos na frica e no mundo, militarizando-os ainda mais. A Frana, muito mais motivada por seus interesses neocoloniais do que por ideologia, tambm atuaria nessas guerras, ora com ajuda militar, ora com intervenes diretas, principal- mente na derrubada de governos de vis mais nacionalista que agissem em desacordo com a dependn- cia para com a antiga metrpole. Na dcada de 1980, a crise econmica mundial, iniciada nos anos 1970, mostraria seus resultados, aprofundando a vulnerabilidade das economias africanas frente aos pases desenvolvidos. Na primeira metade dos anos 1980, a retomada da corrida militar pelos EUA contra a URSS acabaria gerando um recuo do lado sovitico, que gradualmente retirou seu apoio s lutas de revoluo nacional e aos governos de esquerda (VISENTINI, 2007). Tal conjuntura desestabilizou o continente africano, e a dcada de 1980 veio a ser repleta de golpes militares. Figura 2: Mapa da frica movimentos de indepen- dncia durante a Guerra Fria
Fonte: leste4aquecimentoglobal.blogspot.com 8 O Movimento dos Pases No Alinhados teve sua origem na Conferncia de Bandung, em 1955. Composto, de modo geral, de pases em desenvolvimento, o movimento negava o alinhamento a um dos dois blocos da Guerra Fria, pregando um posicionamento independente e uma agenda de discusso mais adequada aos problemas do Terceiro Mundo. 133 UA 1.3 O CONTINENTE NO CONTEXTO DO PS GUERRA FRIA Como citado, a crise econmica mundial iniciada na dcada de 1970 comearia a pr em xeque o incipiente desenvolvimento alcanado pelos africanos. As duas crises do petrleo dessa dcada, que resultaram no aumento do preo dos hidrocarbonetos, foram uma das principais diculdades econmi- cas do continente, que no produzia petrleo pronto para uso, precisando import-lo. Somado a isso, o preo das commodities 9 , que compunham a maioria das exportaes africanas, decaiu. Ou seja, as importaes tornaram-se mais caras, e as exportaes, mais baratas 10 . Para enfrentar a falta de recursos que a atingiu na dcada seguinte, a frica precisou contrair mais emprstimos com pases e instituies nanceiras internacionais, principalmente com o Fundo Monetrio Internacional e com o Banco Mundial. Guiadas por princpios econmicos liberais 11 , essas organizaes dispunham-se a ajudar o continente em troca de ajustes estruturais em suas economias. De modo geral, as medidas exigidas envolviam a reduo dos gastos do governo, de tarifas comerciais, desregulamentao do mercado de trabalho e privatizaes. Uma das medidas que mais teria efeito na fragilizao da ordem social nos pases africanos foi a diminuio do papel do Estado na economia, o que signicou, entre outras coisas, o m de certos sub- sdios 12 produo agrcola, e mesmo os gastos sociais com educao e sade. Funcionrios pblicos e soldados foram demitidos, gerando um nmero maior de desempregados e de pessoas desalojadas da economia. Mesmo parte das elites viu-se prejudicada, a qual acabaria se dedicando ao mercado negro ou mesmo se tornando senhores da guerra. Essa expresso refere-se normalmente a chefes militares que no se submetem ao comando central das Foras Armadas de seus pases. Neste contexto, porm, trata- -se, de modo mais amplo, daqueles indivduos que acabaram estabelecendo controle sobre uma regio do pas que habitavam. Muitas vezes, isso ocorreu com parceiros estrangeiros, que tinham interesse no controle de regies estratgicas, principalmente nas regies ricas em minrios e recursos energticos (SCHMIDT, 2013, p. 197). Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos haviam ajudado a reprimir movimentos nacionalistas e pr-democracia, caso isso signicasse aproximao com a URSS ou projetos muito independentes do Ocidente. No lugar deles, os EUA apoiaram governos autoritrios que assegurassem a estabilidade em suas regies e fossem aliados seus. Entretanto, com a eroso da bipolaridade, a partir da metade da dca- da de 1980, o interesse estadunidense em sustentar o autoritarismo dos governos que ele havia apoiado diminuiu. Porm, embora esse tipo de governo no-democrtico- perdesse fora, o que se seguiu no foi a prevalncia de processos graduais de democratizao e melhoria de vida na frica, mas sim a disper- so do poder militar e o surgimento, ou agravamento, de conitos. Uma multiplicidade de novos e velhos atores protagonizaria os conitos africanos na dcada de 1990: senhores da guerra, grupos paramilitares e gangues sem ideologia ou programas denidos avan- aram sobre o vcuo de poder que se formava em funo do desengajamento dos Estados Unidos e da URSS na frica, alm da prpria falta de capacidade dos pases em ocupar tal vcuo. O declnio de regimes autoritrios abriu espao para o agravamento de divises baseadas na etnia ou cl, de forma que diferen- tes grupos armados passassem a reivindicar o controle de suas respectivas regies (SCHMIDT, 2013). No caso da presena estrangeira na frica, ocorreram algumas transformaes. Ao contrrio das interven- es militares estrangeiras de antes, agora no era mais o governo africano e seu apoiador externo que detinham o monoplio da coero, no caso de uma ao conjunta. Esta agora envolveria pases vizinhos, soldados renegados, antigos mercenrios transformados em empresas militares privadas, foras de ma- nuteno de paz baseadas localmente, foras enviadas pela ONU, ou seja, formas distintas e irregulares de poder militar (SCHMIDT, 2013). O nanciamento das guerras tambm se diversicou, no estando mais apenas a cargo de alguma potncia extrarregional, mas passando a ser sustentado pelo trco de drogas e armas, lavagem de dinheiro, pilhagem das populaes locais e dos recursos naturais. Assim, j que distintos grupos lucravam, e ainda lucram, com as guerras na frica, muitos acordos de paz ou de cessar-fogo encontraram diculdade em sua implementao efetiva. 9 O termo commodity normalmente utilizado para se referir a bens cuja produo mundialmente padronizada, ou seja, em que no h diferena de qualidade signicativa. So habitualmente substncias extradas da terra e que mantm at certo ponto um preo universal. Exemplos: caf, trigo, soja, petrleo, minrio de ferro. 10 Importaes mais caras e exportaes mais baratas signicam que o saldo da balana comercial dos pases afri- canos, isto , a diferena entre o que eles compravam de outros pases e o que eles vendiam para outros pases, tor- nou-se negativo. Logo, esses pases africanos acabavam desenvolvendo dvidas, agravando sua situao econmica. 11 O Liberalismo Econmico a escola de pensamento dominante na Economia e engloba uma srie de tericos. Os princpios liberais bsicos envolvem uma viso pessimista acerca da atuao do Estado na economia, alm de acredi- tarem que os indivduos (ou as empresas) sempre fazem investimentos de forma mais eciente e contribuem para o bem-estar geral. Assim, as chamadas foras de mercado deveriam ser deixadas livres, e o papel regulador e interven- tor do Estado deveria ser minimizado. 12 Auxlio nanceiro a pessoas ou empresas com o objetivo de fomentar determinada atividade econmica. 134 UFRGSMUNDI Uma das crises mais relevantes no ps Guerra Fria ocorreu na Repblica Democrtica do Congo (RDC), antigo Zaire. Devido sua posio central no continente e sua riqueza em recursos naturais, o pas tem papel estratgico nos conitos africanos e ainda se mantm como grande foco de instabilidade. Embora tenha experimentado algum tempo de governo de vis nacionalista e que buscava um maior desenvolvimento para o pas aps sua independncia da Blgica, em 1960, o Congo acabaria sendo go- vernado por mais de 30 anos por Mobutu Sese Seko que, com a ajuda das Naes Unidas e do Ocidente, manteve-se no poder at 1997. Nesse ano, o guerrilheiro Laurent Kabila, apoiado pelos vizinhos Ruanda e Uganda, conduziu a derrubada de Mobutu. Entretanto, depois de chegar ao poder, Kabila rompeu com seus antigos aliados, os quais responderam apoiando grupos separatistas dentro do territrio congols. Para resistir, Kabila pediu ajuda a Angola, Zimbbue e Nambia, que contiveram a ofensiva contra o novo presidente. A crise congolesa emblemtica em demonstrar que certos conitos, embora tenham traos de guerras civis, facilmente extrapolam as porosas fronteiras africanas, transformando-se em guerras entre pases. Por isso, os violentos conitos separatistas na Repblica Democrtica do Congo foram cha- mados de Primeira e Segunda Guerra do Congo (Guerra Mundial Africana) (SPOHR; ANDRIOTTI; CERIOLI, 2013, p. 118). Embora a ONU tenha enviado misses de paz, o pas continua instvel, mesmo depois que Joseph Kabila assumiu o lugar de seu pai, em 2001, conduzindo realizao de eleies. Pas vizinho da RDC, Ruanda herdou da colonizao alem e belga a rivalidade tnica entre a mi- noria tutsi e a maioria hutu: um diviso tnica articial e criada pelos belgas, inexistente anteriormente colonizao. Em 1990, depois de quase duas dcadas do governo pr-hutu do presidente Juvnal Hab- yarimana, os tutsis, refugiados em pases vizinhos, invadiram o pas, culminando no assassinato de Hab- yarimana em 1994. A situao deu origem a um violento genocdio em Ruanda contra os tutsis e hutus moderados. Por isso, parte da populao ruandesa se refugiou em pases vizinhos e at mesmo integrou as milcias ruandesas que invadiram a RDC entre 1996 e 2003, participando da extrao ilegal de minerais congoleses e apoiando grupos separatistas, tornando tais fronteiras foco de ilegalidade e violncia. Alm disso, cabe mencionar o caso das independncias das colnias portuguesas. Essas ocor- reram muitos anos depois da maioria do continente, reexo da manuteno da ditadura de Salazar na metrpole, Portugal. Desgastado internamente, o regime de salazarista s permitiu a independncia de Angola em 1975. Entretanto, Angola mergulhou em uma longa guerra civil entre grupos de orientao marxista, apoiados pela URSS, e outros grupos, apoiados pelo Ocidente e pela frica do Sul do apartheid. O conito s terminou, de fato, em 2002, com vitria do Movimento Popular de Libertao de Angola (MPLA). Outra colnia portuguesa de grande extenso, Moambique passou por um processo semelhan- te, com uma guerra civil ndada apenas em 1992. Paralelamente s crises no centro do continente, o regime racista do apartheid ainda vigorava na frica do Sul. Basicamente, o apartheid era um regime de segregao racial entre brancos e no brancos no qual a minoria branca governava o pas. Mesmo que recebesse crticas do Ocidente, a segregao dentro do pas s seria derrubada na dcada de 1990. importante destacar que a minoria branca que governou a frica do Sul envolveu-se nas guerras civis angolana e moambicana, contra os grupos que acabariam vencendo tais conitos, alm de s ter dominado poltica e territorialmente a Nambia por longo perodo, dando independncia ao pas somente em 1990. Em parte, o m do apartheid no pas deveu-se atuao dos Pases da Linha de Frente. Pertencente regio da frica Austral, esse grupo de pases atuou conjuntamente em organismos internacionais pela condenao e presso sobre o regime, culminando em eleies democrticas sul-africanas em 1994. O grupo era constitudo por Angola, Mo- ambique, Botsuana, Tanznia e Zmbia. Por m, cabe contextualizar o surgimento da Unio Africana (UA), em 2002. O continente africano presenciou, desde a poca das independncias, processos de integrao distintos 13 , que estiveram ini- cialmente vinculados ao Pan-Africanismo 14 e ao anticolonialismo. A predecessora da UA foi a Organiza- o da Unidade Africana (OUA), criada em 1963, que gradualmente englobou os pases que se tornavam independentes em torno do ideal de autodeterminao dos povos, ou seja, de que cada nao tem o direito de escolher seu governo, de denir sua prpria histria. A Organizao cresceu at 1994, quando a frica do Sul ps-apartheid tornou-se membro. Entretanto, como a frica passava por crises econmi- cas e polticas, por um esvaziamento estratgico em virtude do m da Guerra Fria e por novos conitos intra-africanos, a OUA mostrou-se incapaz de fornecer uma base de ao que respondesse tanto aos problemas do subdesenvolvimento como aos de carter mais poltico (PAES; HOSCHEIDT; FILHO, 2013, p. 141-143). Nesse contexto, a OUA foi substituda pela Unio Africana, a qual engloba as vrias iniciativas de mbito regional que surgiram no continente. Destaca-se uma das mais importantes diferenas entre as duas organizaes: a possibilidade de a UA realizar intervenes em seus pases-membros quando 13 Alguns exemplos so: a ECOWAS, sigla em ingls de Comunidade Econmica dos Estados da frica Ocidental e a SADC, sigla em ingls de Comunidade para o Desenvolvimento da frica Austral. 14 O Pan-Africanismo prope a unidade poltica de todos os povos africanos como forma de superar a dependncia econmica e poltica dos pases desenvolvidos. 135 UA estes passam por crises, via sanes ou mesmo incurses militares ou de manuteno de paz (PAES; HOSCHEIDT; FILHO, 2013, p. 141-143). Atualmente, dentre os pases africanos, apenas o Marrocos no faz parte da organizao, enquanto que Guin-Bissau, Egito e Repblica Centro Africana esto suspensos visto que seus governos chegaram ao poder atravs de golpes de Estado. 2. APRESENTAO DO PROBLEMA A partir dos atentados terroristas de 11 de Setembro contra os EUA, torna-se perceptvel uma al- terao na poltica de segurana ao redor do mundo, seguindo uma tendncia j iniciada com a invaso ao Kosovo 15 , em 1999, de invaso territorial sob a justicativa de interveno humanitria. O principal foco desse novo sculo tem sido a forte campanha contra o terrorismo, encabeada especialmente pelos EUA e Europa, aps o anncio de George W. Bush de uma Guerra ao Terror Global. Tal campanha tem sido usada amplamente como justicativa para intervenes, tanto no Oriente Mdio, quanto na frica. A doutrina da Guerra ao Terror mundial e as polticas da ONU de combate ao terrorismo tm servido como argumento, principalmente por parte dos EUA e de pases europeus, como a Frana, para a realizao de invases embasadas na proteo aos direitos humanos, mas que muitas vezes so, de fato, motivadas pela busca por recursos naturais, principalmente petrleo. Outro grande desao da Unio Africana em sua luta contra a multiplicao de conitos no territ- rio africano est relacionado questo da proliferao de armas e facilidade com que elas chegam ao continente. No se pode dizer que essa disponibilidade de armas a responsvel pelos conitos na frica de forma direta, mas indiretamente ela os agrava e intensica. A facilidade de acesso est relacionada ao m da Guerra Fria, dados os baixos preos com que os produtos foram ofertados no mercado mundial 16 . Outra consequncia da Guerra Fria no continente foi o problema das minas terrestres, instaladas num sistema de lay and forget (do ingls, instale e esquea) que impede localizao do material hoje em dia, no permitindo o acesso a reas muitas vezes frteis, o que gera problemas de segurana alimentar. O continente africano, em especial, tem visto um crescimento rpido da militarizao em seu ter- ritrio, tanto pela Guerra ao Terror quanto pela percepo, por parte das potncias europeias, da impor- tncia dos seus recursos energticos e das novas parcerias com os pases emergentes (ROBERTO, 2013). Enquanto a existncia de grupos armados remete poca das independncias, as empresas militares privadas, que sero explicadas posteriormente, assim como as misses de paz da ONU, tm levantado questes sobre a legitimidade das novas polticas de segurana implementadas na frica. Ademais, a cria- o de comandos estabelecidos por foras estrangeiras, principalmente de grandes potncias, e a cres- cente presena das Foras Armadas francesas em suas ex-colnias, justicada pela herana das relaes coloniais como uma obrigao em continuar protegendo os povos africanos, contrapem-se aos ideais da Unio Africana como um organismo que vem lutando pela construo de um mecanismo prprio para soluo dos conitos internos. 2.1. GRUPOS ARMADOS: A PRESENA DOS ATORES NO ESTATAIS Segundo documento da UNICEF (MCHUGH; BESSLER, 2006, p.1), grupos armados so aqueles que utilizam-se de armamentos e fora para atingir objetivos que promovam mudanas dentro de um pas, regio ou na prpria forma de interao entre os pases no mundo. Isso poder ser feito em mbito econmico, poltico, ou social. A principal caracterstica a sua falta de ligao com o aparato ocial dos governos dos pases de uso da fora ou de organizaes governamentais, por isso a identicao como atores no estatais. Por sua vez, o terrorismo no algo recente no continente, j existindo desde as independncias e, no ocasionalmente, patrocinado por pases mais poderosos, os quais, por sua vez, procuravam am- pliar sua rea de inuncia na regio. A denio de terrorismo ampla e, por vezes, contestada. Para os propsitos desse tpico de militarizao na frica, terrorismo ser toda aquela atividade que visa a 15 A invaso do Ksovo pelas foras da Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN), liderada pelos EUA, ocor- reu em 1999, durante a guerra da Iugoslvia. Poder-se-ia considerar como o incio da poltica de invaso de territrios soberanos no ps Guerra Fria. 16 Com o nal do conito, que por dcadas ops a Unio Sovitica, socialista, e os EUA, capitalista, chegou ao m tam- bm a corrida armamentista protagonizada pelos dois rivais, pela falta de um inimigo iminente hegemonia estaduni- dense. Dessa forma, muitas das armas produzidas em massa por esses pases e seus aliados passaram a ser ofertadas a baixos preos no mercado de armas internacional, chegando frica. 136 UFRGSMUNDI interromper uma ordem vigente, por meio de violncia e pnico, com efeitos colaterais e objetivando intimidar o alvo geralmente, o governo de um pas (SCHMID, 2011, p.35-36). Nesse sentido, no difcil perceber que grupos no estatais podem estar envolvidos em atos de terrorismo, uma vez que admitam que este o terrorismo - possa ser um dos caminhos para atingir seus ideais. Uma das caractersticas desse novo sculo nas questes securitrias a forte presena de atores no estatais nas questes relacionadas defesa e segurana dos pases. O continente africano possui um vasto histrico de presena de atores no estatais disputando o papel poltico. Tendo surgido, em sua grande maioria, durante a Guerra Fria nas lutas de independncia, diversos desses grupos foram for- mados dentro de uma poltica das grandes potncias, especialmente dos Estados Unidos, de fomentar a derrubada de governos favorveis ao comunismo. Ao mesmo tempo, tentava-se colocar no poder grupos que pudessem suprir as necessidades por recursos naturais das grandes potncias. Na ltima dcada, foi possvel notar uma concentrao maior de grupos armados e organizaes terroristas, como o Exrcito de Resistncia do Senhor (LRA, do ings, Lords Resistence Army) e o M23, que atuam na fronteira de Uganda com Ruanda, clulas da Al-Qaeda, e o Boko Haram (atuante na Nigria), focando suas atividades em regies especcas, como o Chifre da frica e o norte e noroeste do continente. Uma caracterstica marcante dos conitos atuais nos pases africanos , certamente, o seu carter intraestatal/internacional, com camadas de complexidade devido presena de diferentes faces e gru- pos rebeldes. No Sudo, por exemplo, em fevereiro de 2003, o governo entrou em combate contra dois movimentos rebeldes 17 que o acusavam de preconceito aos cidados sem origem rabe. Para defender o governo foi, ento, armada uma milcia, os Janjaweed, desenvolvendo-se um conito, o qual teve como resultado uma crise humanitria com diversas mortes e refugiados. Somente no ano seguinte foi assinado um Acordo de Cessar-Fogo, organizado pelo Chade, alm da criao de uma misso da Unio Africana, a AMIS. As obrigaes da operao estavam inteiramente relacionadas ao conito na regio de Darfur. Mais tarde, porm, o mandato foi entregue ONU na misso UNAMID (Misso das Naes Unidas e da Unio Africana para Darfur), inaugurando uma operao de paz hbrida cheada tanto pela organizao regional, quanto pelas Naes Unidas. Vale lembrar, no entanto, que a misso da UA no obteve muito sucesso, e pases, como o Chade, ainda sofrem com o transbordamento do conito para suas regies de fronteira (SANTOS, 2011, p. 85). As fronteiras, extremamente porosas dos pases africanos, so, no toa, outra das causas da grande quantidade de grupos armados presentes no continente. Nesse quesito, a cooperao entre as naes vizinhas de grande importncia para evitar que os conitos transbordem para outros pases, alastrando-se pelo continente. Como um grande exemplo dessa porosidade e suas consequncias tm- -se os conitos da dcada de 1990, que, com os genocdios em Uganda, Burundi, Ruanda e Repblica Democrtica do Congo, envolvendo os hutus e tutsis, contou com a fuga de lderes de grupos rebeldes, os quais acabavam por atuar em conitos de pases vizinhos ou apoiar movimentos armados na regio. O carter internacional que as lutas armadas ganharam no continente africano, durante a Guerra Fria, deixou como herana armamentos e pessoal capacitado, criando uma oposio forte e treinada. A falta de representatividade de diversos grupos, conjuntamente s independncias e lgica de dividir para conquistar aplicada pelas metrpoles - que incentivavam as desavenas sem grande lgica - deixou cicatrizes profundas no continente. Isso cou visvel no conito entre hutus e tutsis, em Ruanda, em que diferenas fsicas, praticamente inexistentes, foram utilizadas durante o domnio belga para opor social- mente as duas etnias, dando maior representao poltica aos hutus em detrimento dos tutsis, como comentado anteriormente. Os anos de conito social culminaram na guerra civil, aps o m do domnio colonial, quando ambos os lados tiveram que disputar o poder desse novo pas independente. As conse- quncias dessa poltica de dividir para conquistar foram sentidas, em 1994, com o genocdio de tutsis e hutus, sobre o qual falaremos mais na sesso mais adiante. Outro caso emblemtico o de Uganda, com o Exrcito de Resistncia do Senhor, um grupo armado contra o governo, criado em 1987 e liderado por Joseph Kony, que proclama ser mensageiro de Deus. O grupo tem sido acusado de cometer mutilaes e estupros em massa, alm de sequestrar e treinar crianas como soldados. Forado a sair do pas, em 2004, por foras militares da Uganda, o grupo acabou por transferir sua base via fronteiras mal protegidas para a Repblica Democrtica do Congo, Sudo do Sul e Repblica Centro Africana. (BIRYABAREMA, 2014). Em junho de 2012, uma ofensiva da ONU foi lanada, em parceria com a Unio Africana, que cedeu 5 mil homens, para acabar com o LRA. As causas do conito ainda no so exatamente claras, abarcando desde fatores econmicos at tnicos, assim como a prpria interveno de pases mais poderosos tm criado retaliaes frequentes, especialmente aes dos Estado Unidos, que, desde o incio do sculo tm patrocinado esforos do governo de Uganda no combate ao LRA.Como viemos tentando demonstrar, 17 SLM/A. do ingls Sudan Liberation Movement/Army (Movimento/Exrcito de Liberao do Sudo) e o JEM, do ingls Justice and Equality Movement (Movimento de Igualdade e Justia). 137 UA sempre h um interesse estratgico por detrs dessas aes empreendidas por grandes potncias. Nesse sentido, Uganda j era considerado um pas rico em cobre e cobalto, mas, em 2006, foram descobertas grandes reservas de petrleo na regio, tornando o territrio ugandense muito visado. A Repblica De- mocrtica do Congo, por sua vez, tambm sofre ainda com diversas faces rebeldes, muitas formadas antigos membros do LRA, mostrando, mais uma vez, o carter transnacional dos conitos africanos e a porosidade das fronteiras. No norte e noroeste da frica, na regio conhecida como Sahel e Magreb (representadas nos ma- pas a seguir), no Deserto do Saara, possvel perceber uma crescente militarizao no estatal, em que grupos de carter transnacional 18 aproveitam a instabilidade dos pases e governos locais para garantir seus interesses. O conito no Mali foi um exemplo, quando a organizao da Al-Qaeda do Magreb Islmi- co (AQMI), que objetiva a construo do califado islmico 19 , apoia e arma movimentos rebeldes aliados. Figura 3: Mapa regio do Sahel
Fonte: enca.com Figura 4: Mapa da regio do Magreb
Fonte: terramaganize.terra.com.br As origens da AQMI remontam uma ligao direta com o governo argelino, que estaria em busca de alianas para superar os embargos internacionais em armamentos que sofria, acreditando que a luta conta o terrorismo seria a maneira de fazer parcerias com os poderes ocidentais. Assim, o governo aca- bou por impulsionar o conito, a partir da sua participao na Guerra Global ao Terror, para ns de obter as capacidades militares que anteriormente, lhe eram vetadas em funo dos embargos. Assim, a Arglia passa a militarizar-se de maneira mais consistente, apoiada por uma nao externa os EUA-, ao mesmo 18 Um grupo transnacional pode ser denido como um que no se restringe a apenas um pas, atravessando fronteiras e agindo em diferentes lugares. necessrio que exista intensa cooperao entre os pases para lidar com esse tipo de ameaa. 19 O califado islmico seria um tipo de reino do Isl, que reuniria todas as naes islmicas e retomaria o auge da religio islmica, com prosperidade e de nacionalismo rabe. A ideia tem origem nos reinados em 660 a.C., quando houve a expanso do Imprio Muulmano. 138 UFRGSMUNDI tempo em que oferece uma justicativa para a presena estadunidense na regio, num espao em que diversas clulas terroristas iro responder com contnuo aumento de violncia (ROBERTO, 2013). A pre- sena francesa igualmente marcante na regio, tentando manter controle de suas antigas colnias e j tendo assinado acordos de parceria militar com a regio francfona. Em adio a isso, aps a derrubada de Muammar al-Gadda, que governou a Lbia entre 1969 e 2011, o norte da frica e o Oriente Mdio foram inundados por armas provenientes do conito lbio, pois tanto os rebeldes quanto os apoiadores do ex-presidente lbio dirigiram-se a outros pases aps a morte deste. Portanto, ca visvel a diferena em termos de origens dentre os prprios grupos armados no-es- tatais africanos. Como j foi apresentado anteriormente, os pases africanos contemporneos congregam diversas etnias numa s nao. Assim, algumas vezes, atores no-estatais armados surgem devido a uma insatisfao, de determinado setor populacional, frente falta de representao poltica em um pas, por exemplo. Desta maneira, surgiram muitos movimentos separatistas em diversas naes africanas. A am- pliao do nmero de pases democrticos, com a onda de independncias nos anos 1960, abre espao para que o sentimento de opresso de certas minorias tnicas ou religiosas manifeste-se na vontade por criar um novo pas. Esse processo era intensicado pelas duas superpotncia, EUA e Unio Sovitica, poca da Guerra Fria, pois estas fomentavam, cada uma de um lado, grupos separatistas dentro de pases que convinham a seus interesses estratgicos, ou seja: aliando-se ao inimigo do seu inimigo. Uma conse- quncia desse fenmeno seria uma diviso interminvel anal, sempre existir uma minoria, at mesmo dentro de outra minoria. Consequentemente, os pases responsveis por congregar diferentes grupos tnicos sob uma mesma identidade nacional - por vezes, falha na hora de oferecer representatividade, o que faz com que setores da populao respondam com violncia a tal fato. Alm das ambies separatistas descritas acima, movimentos terroristas podem, tambm, ser im- pulsionado por outros pases mais poderosos, interessados em apoiar grupos favorveis a eles em de- terminada regio. Existem organizaes terroristas transnacionais que trabalham em busca de objetivos mais amplos, alm do separatismo, muitas vezes sendo auxiliadas por grandes potncias. O que ca claro nessa discusso sobre movimentos separatistas e a ascenso de atores no esta- tais que o papel dos governos dos pases enfraquecido: ou ao no servir como representante dos seus cidados, ou ao sofrer intervenes justicadas de maneira ambgua, ou ainda ao reprimir manifestaes de insatisfao com apoio externo de pases interessados na manuteno do poder como est, respon- dendo apenas com fora, e no com dilogo. Enquanto um pas no consegue criar a coeso nacional necessria para controlar o seu territrio, surgem problemas para a manuteno da segurana, a qual deveria ser o principal bem comum que um goveno pudesse proporcionar a seus cidados. O sentimento de insegurana tambm alimenta, por sua vez, a insatisfao daqueles que j no tm representatividade. preciso, portanto, pensar em como reintegrar as minorias e os antigos membros de grupos armados de volta sociedade daquela nao. 2.2. MISSES DE PAZ DA ONU Desde sua criao, em 1945, as Naes Unidas tm sido presena marcante na frica. Das 68 operaes categorizadas como misses de paz, entre 1948 e 2013, um total de 29 ocorreu no continente africano. Misses de paz se denem como operaes desenvolvidas geralmente por organismos inter- nacionais, objetivando a promoo, manuteno, imposio e consolidao da paz. Por promover um ambiente pacco, compreendem-se todas as aes posteriores ao incio de um conito, utilizando me- canismos de soluo pacca de controvrsias, previstos na carta da ONU. As misses de manuteno de paz so as misses voltadas para um cenrio ps-conito. J as misses de imposio de paz so aquelas em que a ao externa nas mos da ONU torna-se necessria para restaurar a paz e a segurana em um ambiente de desordem. Por m, as misses de consolidao da paz so todas as medidas que visam a solucionar os efeitos remanescentes do conito aps seu trmino (MARINHA DO BRASIL, 2014). O Conselho de Segurana das Naes Unidas que responsvel por votar a utilizao de misses de paz, enquanto o oramento destas deve ser aprovado pela Assembleia Geral da ONU. No Conselho de Segurana, h discordncias frequentes entre membros, o que tem continuamente afetado sua imple- mentao, principalmente em funo de que, dentro do Conselho, existem pases com poder de veto ou seja, seu voto automaticamente anula a deciso (CONCEIO, 2009, p.2). Em termos de composio, cada misso conta com civis, militares e especialistas, autorizados a utilizar fora somente para autode- fesa em caso de ataques. muito importante ter em mente que ao contingente militar dessas operaes no permitido o uso indiscriminado da fora, na medida em que se entende que no se pode construir um ambiente de paz com mais violncia (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 2014). Alm da aprovao do Conselho de Segurana, as misses de paz da ONU s podem ser estabe- lecidas se houver o consentimento do governo do pas em que ela ser implantada (ONU, 2014). Quanto 139 UA discusso sobre aprovao ou no de operaes, vale destacar que existe hoje uma discusso corrente acerca de a presena das misses de paz da ONU serem realmente ecazes na busca dos seus objetivos. O que se pode armar que, embora no apresentem eccia garantida, as misses de paz ainda so o melhor mecanismo para estabilizao de um ambiente de conito (VASCONCELOS, 2012, p. 69). A maior problemtica envolvendo as misses de paz tornou-se ainda mais complexa, em 2009, quando a Assembleia Geral da ONU estabeleceu o princpio da responsabilidade de proteger, atravs da resoluo A/63/677 (ONU, 2014). De acordo com esse conceito, ento, os pases cariam obrigados a proteger seus cidados em situaes de guerra e genocdio. Porm, no havendo aes nesse sentido, outros pases teriam o direito - e o dever - de intervir militarmente, desconsiderando a deciso soberana do governo do pas em questo (SCHMIDT, 2013, p.194). No que tange frica, importa ressaltar que o continente continua sendo um foco importante das misses de paz da ONU e conitos atualmente: das quinze operaes vigentes atualmente, oito so na frica (ONU, 2014) 20 . Segundo Ferreira (2010, p. 150), enquanto, na primeira dcada do sculo XXI, possvel perceber o declnio do nmero de conitos na frica, houve, ao mesmo tempo, um crescimento signicativo das misses de paz da ONU. Ademais, importante observar as misses de paz como ferra- mentas de resoluo do conito e no solues nais (SCHMIDT, 2013, p.194). Contudo, no ps Guerra Fria, muitas vezes as misses de paz, apoiadas pelas grandes potncias, foram utilizadas como forma de beneciar esses pases poderosos. Observa-se que, por vezes, a situao problemtica dos pases assolados por conitos , de certa forma, intensicada em importncia para que as potncias conseguissem atingir objetivos prprios, como colocar no poder um governo favorvel a seus objetivos. Haveria, portanto, um conito de interesses entre os dessas potncias e os das prprias foras rebeldes e grupos armados, contra os quais as misses de paz eram designadas para lutar (SCH- MIDT, 2013, p.194). Um dos locais mais volteis no continente, o qual conta com uma presena constante da ONU, com a misso UNOSOM I e II, a Somlia. O pas foi tomado por um conito durante os anos 1990 21 , no pas tornou-se uma granada prestes a explodir, quando milcias islmicas e cls passaram a disputar o poder entre si, enfrentando-se pelo poder, devido retirada do apoio dos EUA, os quais no viam mais necessidade em empreender esforos ali dado o m da disputa com a Unio Sovitica. Dessa forma, em 1992, o Conselho de Segurana decide enviar a UNOSOM I (primeira misso de paz para a Somlia), obje- tivando proteger o auxlio humanitrio que chegava ao pas e organizar um cessar-fogo. A operao, no entanto, no obteve nenhum sucesso. Mais tarde ainda no mesmo ano foi enviada uma fora multinacional, a UNITAF, cuja nalidade era garantir a proteo para a chegada de comida, remdio e outros recursos bsicos para a populao. Apesar de apresentar um grande contingente militar, a UNITAF no era autorizada a intervir no conito militarmente. Ambas as operaes foram desenvolvidas somente at 1993, quando foram, ento, segui- das pela UNOSOM II (que durou at 1995), a qual visava a acabar com as milcias da Somlia. Entretanto, a violncia contra a populao culminou em massacres e protestos contra a ONU e os EUA que co- mandavam as foras ali empregadas -, levando ao encerramento da misso, em 1995, sem resultados (SCHMIDT, 2013, p.203-204). Esse no foi o nico fracasso das misses de paz das Naes Unidas no continente. O massacre em Ruanda, em 1994, um dos pontos mais sensveis da histria da ONU, em que a tomada de deciso para prevenir o genocdio de tutsis foi feita tarde demais: cerca de 800 mil pessoas foram mortas. A mis- so da ONU, a UNAMIR, esteve no pas de 1993 at 1996, sem sucesso em prevenir o acontecimento. A grande crtica remanescente dessa atuao das Naes Unidas est na sua incapacidade de lidar com o conito, permitindo que a guerra civil se alastrasse e trouxesse maiores consequncias. O caos em que se transformou Ruanda, durante esse perodo, provocou um medo generalizado nas foras internacionais que ali atuavam, causando a retirada de tropas de diversos pases: em abril de 1994, aps a morte de 10 soldados belgas, o Conselho de Segurana da ONU determinou a retirada de 90% do contingente militar, comprometendo a continuidade da operao (SILVA, 2003, p. 84). Da mesma maneira, as misses no Sudo 22 , apesar de terem logrado a assinatura de acordos de paz serem assinados, vm se mostrando incapazes de encontrar uma soluo permanente para o conito 20 Segundo o site da ONU, as misses esto no Mali, Repblica rabe Saaraui Democrtica, Repblica Democrtica do Congo, Darfur (no oeste do Sudo, sendo essa uma operao em conjunto com a Unio Africana), em Abyei (tambm no Sudo), Sudo do Sul, Costa do Marm e Libria. Disponvel em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/resources/ statistics/factsheet.shtml>. Acesso em 15 fev 2014. 21 O conito na regio data das dcadas de 1960 e 1970, devido a disputas territoriais com a Etipia, vizinha somali. 22 A UNISFA existe desde 2011 e ca em Abyei (zona de conito entre Sudo e Sudo do Sul), com a Etipia sendo o maior contribuinte com tropas; a UNMIS durou de 2005-2011, era no Sudo; e a UNMISS, que est no Sudo do Sul, iniciou em 2011. 140 UFRGSMUNDI ou para evitar massacres, estupros e o grande nmero de refugiados que foge para os pases vizinhos. A situao em Darfur tem, inclusive, transbordado para pases vizinhos, como para a Repblica Centro-Afri- cana e para o Chade. Apesar desses problemas, houve casos de misses bem sucedidas, como a ONUMOZ, em Mo- ambique, esgotada pela guerra civil quando da poca da implementao da operao. Nesse caso, os dois lados, rebeldes (Resistncia Nacional Moambicana - RENAMO) e governo, assinaram um acordo de paz, em 1992, criando, a partir disso, um mandato para a misso foi criado. O sucesso da operao foi condicionado pela realizao de uma eleio democrtica, em 1994, e tornou-se coerente por ter obje- tivos palpveis e realistas dentro do seu contexto, assim como pelo apoio de ambas as partes do conito (BRANCO, 2003, p.97). Da mesma forma, a misso de paz na Nambia, a UNTAG, de 1978, tambm foi exemplo de opera- o bem sucedida por ter ambos os lados em conito enxergando a soluo diplomtica como melhor sada. Cabe aqui ressaltar que a UNTAG foi responsvel pelo processo de independncia da Nambia em relao frica do Sul, a qual, ainda na poca sob o regime do apartheid , ocupava o seu territrio (BRAN- CO, 2003, p.86-88). Fica, dessa forma, v-se que o mandato da ONU s eciente quando h uma parti- cipao das foras internas na criao do acordo de paz a ser implementado, assim como exibilidade e cooperao das partes com a presena estrangeira no territrio (BRANCO, 2003, p. 99). Como um exemplo mais atual, h a Repblica Centro Africana (RCA), pas que tem hoje sua partici- pao suspensa na Unio Africana 23 devido a um golpe de Estado, em 2002, o qual desencadeou coni- tos internos os quais foram motivados pelo grupo de foras aliadas rebeldes Slka. Com a subsequente crise humanitria beirando ao genocdio, o pas tem sido a mais recente pauta nas discusses de envio de misses de paz. No incio de 2014, o Conselho de Segurana da ONU autorizou a extenso do mandato do Escritrio da ONU, responsvel pela construo de paz 24 dentro da RCA, alm de autorizar a Unio Europeia a utilizar foras militares para intervir no pas. 2.3. FORAS MILITARES ESTRANGEIRAS Em um contexto de relao entre colnia e metrpole, a presena de foras militares estrangeiras era lgica dentro do continente africano. Tal poltica permaneceu durante o perodo de independncias at os dias atuais. O estabelecimento de bases militares estrangeiras dentro do continente tem sido, as- sim, pauta de diversas discusses aps os ataques de 11 de Setembro de 2001, empreendidos contra os EUA. Como consequncia do ocorrido, uma das principais preocupaes do governo estadunidense pas- sa a se congurar na organizao islmica Al-Qaeda, criada por Osama Bin Laden, que atua de maneira constante no norte da frica, em pases como Mali, Nger, Arglia e Mauritnia. Esse novo contexto, que se inaugura a partir do 11 de Setembro, denominado Guerra ao Terror, marcado pela ampliao do brao militar das grandes potncias em outros continentes, tendo a frica como um dos focos. Alm disso, cabe ressaltar que as investidas militares, visando a marcar presena cada vez mais ativa no continente, objetivam tambm garantir o fornecimento do petrleo africano a essas potncias, as quais tendem a aumentar gradativamente sua dependncia em relao aos recursos energticos existentes na regio (ROBERTO, 2013). A criao do AFRICOM (Comando dos Estados Unidos para a frica), em 2006, demonstra, portan- to, a congurao desse objetivo de acabar com as supostas ameaas terroristas no continente. A orga- nizao nasce, assim, visando a defender os interesses estadunidenses no territrio africano, de modo a criar uma capacidade para lidar com crises e acabar com ameaas transnacionais. Ativado somente em 2008, o AFRICOM apresenta uma sede central na Alemanha e conta hoje com um contingente de 2 mil homens. Visando sua nalidade, o AFRICOM tem auxiliado no treinamento de Foras Armadas de pases africanos aliados, como a Nigria. Vale ressaltar, no entanto, que a presena estadunidense ainda relativamente pequena e, por isso, busca apoio de outros pases dentro e fora da frica, a exemplo da Frana e Espanha onde cam alocadas foras de resposta rpida para o norte africano. O fato de sua sede estar localizada em um pas fora da frica a sede est localizada em uma localizao prxima a cidade de Stuttgart, na Alemanha - um ponto de grande discusso, pois entende-se que o pas que abrigar essa sede pode vir a ser alvo de di- versas ameaas, como as que os EUA sofre em suas embaixadas, instaladas em outros pases (ESTERHUY- 23 Segundo o Ato Constitutivo da Unio Africana (Artigo 30), pases-membros, cujo governo tenha ascendido atravs de golpe (portanto, um ato no democrtico), tero seu mandato suspenso at que um governo democraticamente eleito tome o poder (UNIO AFRICANA, 2011. Constitutive Act of the African Union. Disponvel em <http://www.au.int/ en/sites/default/les/ConstitutiveAct_EN.pdf > Acesso em 19/04/2014). 24 Do ingls, peacebuilding. O conceito diz respeito no apenas a parar com o conito, mas tambm estabelecer ope- raes de criao de capacidade estatal e transparncia na realizao de eleies e processos democrticos. 141 UA SE, 2010). O debate sobre o local de hospedagem da sede do AFRICOM est sedimentado no medo por parte dos governos de respostas negativas de seu eleitorado, que, em boa parte, no v como vantajosa a presena de militares estrangeiros no continente. O AFRICOM tem hoje operaes na Libria, treinando as Foras Armadas do pas, assim como na frica Central, onde treina militares para enfrentar o Exrcito de Resistncia do Senhor, um grupo popu- lar cristo armado que se encontra principalmente no Norte de Uganda (DOOM; VLASSENROOT, 1999). Alm disso, em 2011, participou ativamente da campanha area que bombardeou a Lbia , na investida que procurou derrubar o governo de Muamar Kada, considerado, pelas potncias ocidentais, como di- tatorial (AFRICOM, 2013). Anteriormente ativao do AFRICOM, outras polticas semelhantes j vinham sendo implemen- tadas, como os comandos menores, criados com parcerias regionais 25 . No Djibouti, por exemplo, os EUA estabeleceram, em 2002, o Campo Lemonnier, uma base naval para compor a Fora Tarefa Conjunta Combinada do Chifre da frica, tambm sob comando dos EUA. Essa, por sua vez, estabelecida apenas no ano seguinte, tem como objetivo promover operaes que aumentem a capacidade dos pases aliados e proporcionem um ambiente de segurana e a estabilidade regional, de modo a proteger os interesses norte-americanos na regio (PLOCH, 2011). Segundo Schmidt (2013, p.218), a escolha dos pases em que a AFRICOM atua no parece ter ne- nhum outro critrio que no seja de interesses polticos e/ou econmicos do EUA, buscando pases ricos em petrleo e gs, ou que tenham importncia estratgica. Um bom exemplo dessa armao a Nig- ria: o pas hoje a principal potncia econmica na frica (BBC, 2014), alm de contar com signicativas reservas petrolferas do Golfo da Guin, as quais compem cerca de 95% da pauta exportadora do pas, tendo os EUA como principal destino (OEC, 2014). Igualmente importante, nesse sentido, a regio do Saara-Sahel, sendo a presena de atores no- -estatais motivada ali pelo argumento da Guerra ao Terror. Isso porque, do ponto de vista do combate a organizaes terroristas, o deserto da regio poderia ser utilizado por esses grupos como um campo de treinamento, j que h uma certa diculdade em se exercer algum tipo de controle estatal. Como exemplo disso, localizada na Arglia, h a AQMI (Al Qaeda no Magreb Islmico), um desses grupos que contribuem para justicar a presena estadunidense na regio. Utilizando-se do discurso de promoo da democracia e dos direitos humanos, os norte-americanos acabam por assumir uma posio ambgua ao apoiar governos autoritrios. Posio essa que contribui para exacerbar as j latentes contradies internas desses pases (PREUSSER; ESTRADA, 2013; ROBERTO, 2013). Figura 5: Mapa da regio Saara-Sahel
Fonte: www.bbc.co.uk 25 EUCOM (Europa), CENTCOM (Comando Central) e PACOM (Pacco). 142 UFRGSMUNDI Figura 6: Mapa da atuao da organizao AQMI
Fonte: calame-incisif.over-blog.com (Traduo: elaborao prpria) A criao da Pan Sahel Initiative (PSI, ou Iniciativa Pan Sahel), em 2002, foi a primeira atitude a demonstrar essa poltica do Departamento de Estados dos EUA, a qual oferece apoio logstico e treina- mento militar contrainsurgente que incluiu os governos da Mauritnia, Mali, Nger e Chade (PREUSSER e ESTRADA, 2013, p. 6). A PSI foi depois ampliada para a Iniciativa Contraterrorista Trans-Saara em 2005 e em 2010 vira uma Parceria que inclui 11 pases 26 . Visando a seus objetivos, a presena dos EUA no Saara- -Sahel fortaleceu suas relaes com a Arglia, de forma a facilitar o acesso ao Golfo da Guin e ao petr- leo (ROBERTO, 2013). Tambm nessa direo, em 2008, a reativao da IV Frota da Marinha dos Estados Unidos, posicionada no Atlntico Sul e no ativa desde os anos 1950, demonstra claramente esse objetivo de marcar presena em regies de potenciais estratgicos. Contudo, cabe observar que se utilizar da luta contra o terrorismo internacional como justicativa para a militarizao do continente africano acaba por interferir, direta ou indiretamente, nos conitos lo- cais, dando a eles a ideia de que todos esses apresentam a mesma origem comum: os grupos terroristas. Dessa forma, vale fazer a crtica sobre at que ponto os problemas da frica so, hoje, causados por con- tradies internas dos sistemas que guiam cada pas ou acontecem como reexo dessas intervenes. As aes militares estrangeiras no continente contribuem para danicar as relaes entre os grupos internos dos pases, impossibilitando a busca de solues paccas. Alm disso, a situao tambm piora as re- laes desses grupos com os EUA, na medida em que aqueles se sentem oprimidos pelas aes destes, incentivando a formao de grupos rebeldes. Alm dos argumentos que se utilizam a Guerra ao Terror como justicativa para bases militares no continente, possvel ainda pensar na poltica norte-americana de presena na frica como uma resposta s relaes cada vez mais fortes dos pases africanos com pases emergentes 27 , em especial os BRICs (Brasil, Rssia, ndia e China) 28 . Pode-se notar que China e Brasil tm investido de maneira intensa no continente em busca tanto de recursos naturais, quanto de parcerias estratgicas. No caso do Brasil, 26 Marrocos, Arglia, Tunsia, Lbia, Mauritnia, Mali, Nger, Chade, Senegal, Nigria e Burkina Faso. 27 Os pases emergentes podem ser congurados como aqueles que ainda no atingiram nveis sociais e econmicos para serem classicados como desenvolvidos, mas que, no entanto, apresentam altos ndices de crescimento, j tendo superado o nvel de subdesenvolvimento de pases mais pobres. 28 A denominao BRICs atribuda a esses pases antes citados pretende uni-los a partir das tendncias semelhantes de crescimento que vm apresentando nas ltimas dcadas, os quais tendem a atingir nveis de desenvolvimento econmico capazes de ultrapassar as potncias ocidentais tradicionais. Fora o Brasil, que ainda no atingiu esse marco, China, Rssia e ndia j apresentam ndices altssimos de crescimento. 143 UA tais relaes se desenvolvem principalmente com os pases africanos localizados na costa do Atlntico Sul 29 , no sentido da proteo desse espao como um benefcio comum. Em oposio a essa ideia, a dou- trina de Guerra ao Terror, do ex-presidente estadunidense, George W. Bush, apoia-se na segurana como caminho para fortalecer relaes, e no em parcerias que permitam o desenvolvimento e infraestruturas permanentes na contraparte africana (ROBERTO, 2013, p.1-2; ESTERHUYSE, 2013, p.77). Alm dos EUA, naes europeias, baseadas em seus vnculos coloniais, ainda mantm fortes rela- es com pases africanos. Como exemplo disso, em 2004, a Unio Europeia criou a APF (African Peace Facility), um fundo desenvolvido para custear as operaes de paz africanas, com 440 milhes de euros disposio. O uso dos recursos da APF , porm, limitado ao uso de dirias e ajudas de custo, comuni- cao, transporte e ans, no podendo custear treinamento militar ou compra de armamentos (SANTOS, 2011, p.171). O principal exemplo de permanncia das relaes entre ex-colnias e metrpoles a comunidade de pases que eram antes colnia da Frana. A manuteno desses contatos permitiu Frana possuir uma rea de inuncia ampla na frica, intervindo tanto militar, quanto poltica e economicamente de forma frequente em assuntos internos dos pases africanos desde os anos 1960. Segundo o Ministro da Defesa francs, Paris manter o foco nas suas relaes exteriores na frica francfona e na expanso militar nos pases do Sahel, especialmente Chade, Costa do Marm e Nger, mas tambm em Burkina Faso, mantendo o nmero de 3 mil soldados (FERSOVICH, 2014). A crise na Repblica Centro Africana tem despertado fortes interesses da Frana, que apoiou a aprovao pelo Conselho de Segurana da ONU de uma misso de paz em outubro de 2013, alm de outra misso com nanciamento da Unio Europeia, ainda no aprovada. Junto aos Estados Unidos, a Frana mantm um grande contingente de tropas no Djibouti, pas que possui uma posio estratgica por ser caminho para o Oriente Mdio. Alm disso, conta com gran- des foras no Gabo e no Senegal e foras menores na Libria, Chade, Repblica Democrtica do Congo, Mali e Costa do Marm (FRANA 2014) 30 . O principal argumento para justicar a presena francesa na frica o de apoio aos Estados Unidos no combate ao terrorismo, especialmente de fundamentalistas islmicos. Enquanto algumas das tropas esto fora do pas em misses de paz em diversos locais diferen- tes, cerca de oito mil soldados esto estacionados em bases, defendendo especicamente os interesses franceses no continente africano. Os objetivos franceses na regio so bem claros: mesmo diversicando suas fontes de matria-prima, a Frana ainda tem na frica seus principais fornecedores de petrleo e metais. Manter a estabilidade do continente africano signica garantir os interesses franceses ao manter essa troca (HANSEN, 2008). No entanto, a presena francesa no Chade criou diversas tenses com o pas vizinho Sudo, por intervenes frequentes no conito em Darfur. Da mesma forma, o exrcito francs na Costa do Marm, que auxilia a misso da ONU, teve diversos embates com a populao civil durante a guerra civil ivoriana 31 . Quanto presena francesa no continente, vale ainda citar o Nger: o pas hoje o quarto maior produtor mundial de urnio, a matria-prima para a produo nuclear. As condies territoriais francesas tornam o pas extremamente dependente desse tipo de fonte energtica, sendo seu principal meio de obter energia eltrica cerca de 75% da matriz energtica (IEA, 2009). Dessa forma, a Frana tem mantido relaes estreitas com esse pas africano, buscando garantir a explorao desse recurso (FEBBRO, 2013). Nesse sentido, o pas europeu agiu fortemente no Mali, pas vizinho ao Nger, quando l eclodiram ata- ques terroristas protagonizados por rebeldes islmicos e por comunidades da etnia tuaregue (REUTERS, 2013), com medo de que o movimento se espalhasse para os pases prximos, de modo a prejudicar o comrcio francs (FREBBRO, 2013). 29 A parceria com pases do Atlntico Sul importa para a defesa das camadas de recursos naturais do pr-sal brasileiro, uma regio que pode ser suscetvel a invases, a no ser que existam parcerias militares para proteger os recursos em ambos os lados. 30 Por vezes em auxlio a misses de paz, mas tambm com bases prprias. Disponvel em: <http://www.defense.gouv. fr/operations/rubriques_complementaires/carte-des-operations-exterieures>. Acesso em 16/02/2014. 31 A guerra civil na Costa do Marm iniciou em 2002 quando o exrcito tentou derrubar o ento presidente, Laurent Gbabo. Apesar do m do conito em 2007, em 2011 ele eclodiu novamente, com uma interveno da ONU. 144 UFRGSMUNDI Figura 7: Mapa dos pases africanos com bases militares francesas
Fonte: Elaborao prpria perceptvel a grande presena de Foras Armadas estrangeiras no continente africano, principal- mente dos EUA e da Frana. O Reino Unido tambm possui contingentes na frica, apesar das reduzidas atividades depois da crise econmica de 2008 32 (SANTOS, 2011, p.174). Atualmente com trs operaes, sendo duas no Qunia e uma em Serra Leoa (THE BRITISH ARMY, 2014) 33 , existe uma presso para que a presena na regio do Deserto do Saara seja aumentada. A presena de exrcitos estrangeiros para defender os interesses de naes extrarregionais (que no a soberana do seu territrio) uma questo complexa: do mesmo modo como o treinamento militar necessrio em diversas Foras Armadas de pases africanos, a violao aos direitos humanos da populao local, cometidas pelos soldados de po- tncias extrarregionais e a proliferao de armamento na regio problemtica. Mais que isso, a presena estrangeira cria instabilidades e diculta a cooperao com os pases vizinhos, que, por sua vez, temem represlias e possveis invases. 2.4. A PRIVATIZAO DA GUERRA? Algumas misses de paz da ONU e da prpria Unio Africana contratam Empresas Militares Privadas (EMP) ou Empresas de Segurana Privada (ESP) 34 , popularmente referidas como tropas de mercenrios, que oferecem servios especializados relacionados com a guerra e outros conitos, incluindo operaes de combate, planejamento estratgico, inteligncia, apoio operacional e logstico, treinamento, compras e manuteno. (GENEVA, 2008, p.1). Apesar de no serem recentes existem relatos de mercenrios desse tipo h sculos, tendo atingido seu pico na Guerra dos Trinta Anos 35 e continuando em diversos conitos na histria , essas empresas militares acabaram ganhando nova fora com intervenes no Oriente Mdio aps os ataques do 11 de Setembro, quando os EUA incorporam tais companhias como essenciais para a realizao das operaes no Iraque (CRUZ, LEO & DUARTE, 2011). Na frica, contudo, tais empresas j vinham sendo alvo de crticas desde os anos 1960. Boa parte da clientela das EMPs era formada por chefes de Estado, que buscavam essa soluo para lidar com si- tuaes de conito e instabilidade internas nos seus pases (CRUZ, LEO & DUARTE, 2011, p.5). possvel traar a origem das empresas militares privadas no continente com a criao da Executive Outcomes, em 1989, por um ex-militar da frica do Sul, cuja primeira operao bem sucedida foi em Angola durante a guerra civil. Sua atuao continuou quatro anos depois, em contrato feito com o governo e, mais tarde, em Serra Leoa, tambm contra grupos armados, alm de ter atuar na Repblica Democrtica do Congo. 32 A Crise Financeira de 2008 inciou-se nos Estados Unidos e espalhou-se para diversos pases no mundo devido grande interdependncia entre os pases no mundo globalizado de hoje. 33 As unidades no Qunia so de Apoio e de Treinamento. A unidade em Serra Leoa de Treinamento. Fonte: http:// www.army.mod.uk/operations-deployments/22724.aspx. Acesso em 16/02/2014. 34 Do ingls, Private Military Companies e Private Security Companies. 35 1618-1648. A Guerra dos Trinta Anos foi uma srie de guerras entre diversas naes europeias, por motivos variados. O m da guerra coloca incio Paz de Vesteflia, que convencionado como o comeo do sistema internacional de Estados-Nao soberanos. 145 UA Contribuiu para a consolidao desse tipo de fora militar o contexto de nal da Guerra Fria, no incio da dcada de 1990, a partir do desengajamento militar das grandes potncias devido ausncia de um inimigo iminente. Com o m do conito, a demanda por armamentos caiu bruscamente no mercado internacional, causando uma queda nos preos que facilitava o acesso a eles, o que, por sua vez, tornou vivel a alternativa de privatizao da guerra. Dessa forma, as foras combatentes saem das mos dos governos dos pases e vo para o controle de agentes particulares (MENDES, 2010 apud CASAS, 2012). Esse processo, no entanto, enfraquece a ideia do monoplio do uso da fora , que diz respeito soberania dos Estados seus territrios. Isto , dentro dos limites territoriais de um pas, o governo desse pas soberano (supremo) nas decises, tendo, em contrapartida obrigaes (DIAS, 2010). A defesa de sua populao um desses deveres. A concepo de uso das EMPs, portanto, contribui para debilitar a funo do governo dos pases enquanto provedores de segurana, tirando deles a legitimidade do mono- plio do uso da fora uma ideia do pensador Max Weber. Alm disso, o fenmeno se torna ainda mais preocupante quando no h uma legislao internacional que regule crimes ou exageros cometidos por essas empresas, no havendo uma obrigao de responder por suas aes, apesar de diversas tentativas (GENEVA, 2008, p.4; CRUZ; LEO; DUARTE, 2011, p.10-15). Entre os exageros e crimes mais comuns cometidos por agentes de EMPs, esto os casos de tortu- ras promovidas tanto contra civis, quanto contra militares de um pas onde as empresas atuam. Alm dis- so, comprovada informao de assassinatos cometidos indiscriminadamente contra cidados nacionais sem motivos aparentes. Em 2009, inclusive, estourou na imprensa um escndalo sobre colaboradores de EMPs que mantinham escravas sexuais na regio dos Blcs poca dos conitos naquela rea (GASPAR; LAPA, 2011, p. 87). Infelizmente, como j dito antes, no h ainda nenhum tipo de regulamentao acerca da responsabilidade sobre os crimes cometidos por esses agentes (GENEVA, 2008, p.4). possvel perceber a importncia das EMPs no continente africano no s pelas diversas empre- sas que se originaram na frica, e mais especicamente, na frica do Sul, mas tambm por legislaes de alguns pases que regulam a atuao das mesmas em seu territrio, tais como Uganda, frica do Sul e Angola. A regulao legal dessas empresas militares privadas pode banir a existncia de atividades mili- tares que no as do prprio governo, regular a atividade ou at mesmo proibi-la (CRUZ; LEO; DUARTE, 2011, p.19). Recentemente, tem surgido uma tendncia, dos pases ocidentais, de utilizarem rmas militares privadas para realizar treinamento de grupos armados ou das prprias Foras Armadas de naes afri- canas. Alm disso, diversas empresas petrolferas e de minerao contratam empresas militares privadas para proteger os gasodutos e o escoamento da produo (CRUZ; LEO; DUARTE, 2011, p.19). Enquanto os pases desenvolvidos se inclinam na busca por empresas militares para misses humanitrias, os pases em desenvolvimento tm demonstrado uma tendncia em utilizar tais empresas para ns de reforo das suas Foras Armadas. Esse processo, como j referido anteriormente, oferece margem para o enfraque- cimento da soberania desses pases, ao mesmo tempo que o torna dependente de empresas particulares em situaes de instabilidade. Empresas essas que, por sua vez, visam a seu prprio benefcio, no tendo em mente os interesses do Estado em que desempenham sua funo. Alm disso, h sempre o risco de excessos cometidos pelos agentes dessas empresas, podendo ou no eclodir, assim, uma crise humani- tria localizada. 3. AES INTERNACIONAIS PRVIAS 3.1. A ORGANIZAO DA UNIDADE AFRICANA NA RESOLUO DE CONTRO- VRSIAS A Organizao da Unidade Africana, criada em 1963 por 32 pases africanos independentes, nas- ceu como uma tentativa desses novos pases de se inserirem nas relaes internacionais de forma ativa. Desde o comeo, os pases africanos entenderam que unidos eram mais fortes e tinham mais chances de alcanarem seu objetivo: ter voz no cenrio global. No entanto, a organizao no cumpriu a plenitude das metas que inspiraram sua criao, devido s grandes diculdades ao longo do percurso na constru- o de um ambiente pacco de cooperao entre os pases africanos (SANTOS, 2011, p. 45 -47). Em termos de conitos, sabido que o continente africano se caracteriza por ser um ambiente instvel e vulnervel a aes externas, tendo em vista todas as intervenes at hoje sofridas, j referidas anteriormente. Nesse sentido, a OUA buscou, enquanto existiu, criar um ambiente mais estvel no con- 146 UFRGSMUNDI tinente, a m de promover o desenvolvimento dos pases-membros. As aes desenvolvidas pela orga- nizao, nessa direo, no foram satisfatrias para a resoluo de conitos na regio devido a divises internas entre os pases africanos. Essa falta de articulao colaborou para tornar o continente um local propenso para aes externas, que, ao longo dos anos, ajudaram a intensicar o processo de militarizao. Ainda assim, apesar de suas fragilidades enquanto organizao, cabe ressaltar a Operao de Apoio Manuteno de Paz no Chade, na dcada de 1980, na qual foras africanas foram empregadas no auxlio operao desenvolvida pelas Naes Unidas para o pas, numa ao de monitoramento. Embora tenha enfrentado muitas diculdades em sua elaborao, a operao deu incio ao processo de desenvolvimento de operaes de interveno prprias dos pases africanos, que teria continuidade e aprofundamento com a criao da Unio Africana, em 2002. O surto de conitos na dcada de 1990 trouxe tona questionamentos sobre a efetividade da OUA na soluo de controvrsias, levando os membros a criar o Mecanismo para a Preveno, Gerenciamento e Resoluo de Conitos, em 1992, em busca de uma postura mais proativa em relao aos problemas internos do continente. Dessa forma, cinco misses de paz foram desenvolvidas pela organizao em um curto espao de tempo: Ruanda, Burundi, Comores, Repblica Democrtica do Congo e Eritreia-Etipia. Vale aqui destacar o contraste entre as aes desenvolvidas pela OUA e as atividades empregadas pela ECOWAS (do ingls Comunidade Econmica dos Estados Africanos Ocidentais) na Libria e em Serra Leoa, na mesma poca. Essa organizao, criada em 1975, conta com 15 membros 36 e tem como objetivo promover a integrao econmica em todos os campos (ECOWAS, 2013). Para tal, a ECOWAS desenvolve tambm operaes de promoo e manuteno de paz, atravs de intervenes militares, como a insta- lada no Mali nos dias de hoje (ROBERTO; CLOSS; RONCONI,2013, p. 16). Atualmente, h a promoo de operaes conjuntas da ECOWAS com a Unio Africana no sentido de estabilizar o continente. 3.2. A CRIAO DA UNIO AFRICANA E O SUCESSO DAS INTERVENES IN- TERNAS Em 2002, em uma iniciativa encabeada por Muammar Kadda - ento presidente da Lbia - criada a Unio Africana, uma organizao cujos principais objetivos so promover a paz, a segurana e a estabilidade do continente atravs de uma poltica comum de defesa (UNIO AFRICANA, 2013). Para tal, estabeleceu-se o Conselho de Paz e Segurana, desenvolvido nos moldes do Conselho de Segurana da ONU, com a nalidade de discutir as aes conjuntas dos pases-membros para a resoluo de conitos na frica (SANTOS, 2011, p. 63). Dessa forma, o Conselho o rgo responsvel por analisar e decidir sobre a implementao de uma misso de paz protagonizada pela organizao (GNERO, 2012, p. 136). Dessa forma, a Unio Africana j nasce com uma pr-atividade substancialmente superior da organizao que lhe deu origem no mbito da paz e segurana, a OUA. Alm disso, a nova organizao conta com um oramento total maior, o que lhe permite empregar aes mais ambiciosas na construo de um ambiente estvel no continente. Nesse sentido, a UA tem promovido operaes para treinamento de pessoal militar, intercmbios de inteligncia militar e informaes, alm do desenvolvimento de dou- trina militar 37 e capacidade coletiva 38 (SANTOS, 2011, p. 64). Como forma de legitimar suas aes, a Unio Africana adota, no mbito do Conselho de Paz e Segurana, o princpio da Responsabilidade de Proteger, uma herana da ONU. Segundo esse funda- mento, em caso de conitos internos, como j referido anteriormente, em que o Estado seja incapaz de proteger a populao civil, cabe organizao faz-lo, de modo a impedir a morte de pessoas inocentes e garantir a construo da paz no territrio (QUAGLIA; OLMEDO, 2013, p. 7). Assim, desde sua criao, a Unio Africana j estabeleceu cinco misses de manuteno de paz, aos moldes daquelas desenvolvidas pelas Naes Unidas, contando, por vezes, com seu apoio, sendo elas: AMIB (Burundi), AMISEC (Comores), UNAMID (Darfur) 39 , AMIS (Sudo) e AMISOM (Somlia). A UNA- MID, uma operao compartilhada entre a Unio Africana e a ONU, localizada no Sudo, foi criada para lidar com o conito em Darfur. Iniciou suas operaes em 2007 e ainda est ativa. Essa parceria visa criao de foras de paz somente formadas por africanos, provavelmente numa tentativa de diminuir a 36 frica do Sul, Nger, Chade, Burundi, Etipia, Tanznia, Lbia, Nambia, Guin, Gmbia, Costa do Marm, Guin Equa- torial, , Qunia, Nigria e Zimbbue (PREMIUM TIMES, 2014). 37 Uma doutrina militar o conjunto de princpios que um pas (e, nesse caso, uma organizao) adota para guiar suas aes na rea militar, desde a compra de novos equipamentos e tipo de treinamento de tropas, a estratgias de defesa e ataque. 38 Por capacidade militar, entende-se todo material, tecnolgico e humano do qual dispe um pas (ou, nesse caso, uma organizao). 39 Misso conjunta com as Foras das Naes Unidas. 147 UA presena estrangeira, numa resposta aos fracassos da ONU, especialmente na Somlia e Ruanda. Apesar da melhora em 2009, tal parceria enfrenta problemas nas suas concepes do que deveria ser a misso, falta de cooperao do governo, alm da falta de equipamento adequado, tendo recebido diversas cr- ticas, por ser uma misso da ONU disfarada, sendo alvo de ataques frequentes de grupos armados (SANTOS, 2011, p.81-88; LYNCH, 2014). Esse movimento teve impulso com o estarrecimento da comunidade africana frente ao genocdio em Ruanda, durante a guerra civil que ops tutsis e hutus, sobre o qual constatou-se um atraso signica- tivo nas aes da ONU para conter as consequncias do conito. Cabe aqui ressaltar que existe uma dis- posio prvia de ao por parte da UA em situaes nas quais a ONU se abstm devido aos seus critrios de instalao de misses de paz. Para as Naes Unidas, no vlida a instalao de uma misso de ma- nuteno de paz onde no h paz para ser mantida. Esse princpio, no entanto, coloca a organizao re- gional em alerta, dado que a omisso da ONU pode colocar em risco a paz e a estabilidade do continente. Atualmente, a Unio Africana, utilizando-se da African Standby Force 40 - criada em 2003, mas que ainda no se tornou completamente operacional 41 - montou a Fora Multinacional Centro-Africana (do francs, FOMAC). A FOMAC possui tropas do Gabo, Chade, Camares, Congo e Guin Equatorial, uma fora militar sem carter permanente e que organiza misses em nome da Comunidade Econmica dos Estados da frica Central (ECCAS), que existe dentro da Unio Africana. A criao da African Standby Force surge, assim, como uma resposta aos problemas das misses da ONU. Em dezembro de 2013, a FOMAC tornou-se MISCA (em portugus, Misso de Suporte Internacional Liderada pela frica para a Re- pblica Centro Africana), que alm de contar com apoio francs, e ainda estando sob controle da Unio Africana, j possui tambm um mandato do Conselho de Segurana da ONU. A presena francesa no pas ir duplicar de 600 para 1.200 tropas (REDMAN; MOSHIRI, 2013). As foras estrangeiras, teoricamente, no devem intervir no conito, servindo apenas como protetores de agentes da ONU, cidados franceses e auxiliar com a logstica. Alm disso, a Unio Africana, aliada a diversas organizaes regionais dentro do continente, tem procurado utilizar a African Standby Force em situaes de crises humanitrias. A utilizao de foras dessas organizaes regionais reduz o gasto de deslocamento das foras da ONU, assim como no colo- ca um peso to grande na Unio Africana, que tem diversas limitaes nanceiras. Entretanto, preciso uma cooperao continental para melhorar a infraestrutura rodoferroviria para que o deslocamento rpido e estratgico dessas foras possa ser feito (SANTOS, 2011, p.143). Alm disso, as misses coor- denadas apenas pela UA na Somlia (a AMISOM) e em Darfur (a AMIS) sofreram amplamente com a falta de recursos para manterem-se ativas. Dessa maneira, o sucesso das misses de paz da Unio Africana depende de uma gesto sustentvel de recursos, tanto humanos quanto nanceiros, repassados pelos pases africanos ou por doaes externas (FERREIRA, 2010, p.151). 3.3. AS AES DA UNIO AFRICANA NO MBITO JURDICO Como j tratado anteriormente, a questo da proliferao de armas no continente, devido prin- cipalmente ao barateamento dos preos com o nal da Guerra Fria, demandou uma atitude da Unio Africana enquanto organizao que busca a estabilidade do continente. Dessa forma, em 2000, foi assi- nada a Declarao de Bamalo sobre uma Posio Comum Africana quanto Proliferao, Circulao e Trco de Armas Leves e de Pequeno Calibre. A declarao tinha como objetivo acabar com o costume de pases, externos ao continente, fazerem da frica um depositrio internacional de armas. Uma nova reunio, convocada em 2005, delegou, ento, Unio Africana o compromisso de adotar um instrumento jurdico para obrigar os signatrios da declarao a cumprirem com o que havia sido acordado anos antes (SANTOS, 2011, p. 41-44). Tambm problemtica a questo das minas terrestres, instaladas ao longo do continente poca do conito bipolar entre as duas superpotncias, EUA e Unio Sovitica. As diculdades de localizao dessas minas, fabricadas com sistemas pouco tecnolgicos, torna grandes extenses de terras, por vezes frteis, inutilizveis. De modo a impedir que o problema continue afetando, assim, o desenvolvimento econmico de regies do continente, a ainda Organizao da Unidade Africana trabalhou no sentido de consagrar uma Conveno para tornar o territrio africano livre dessas minas. O movimento africa- no acabou inspirando uma ao a nvel das Naes Unidas, que, em 1999, estabeleceu a Conveno de Ottawa (SANTOS, 2011, p. 41-44), que probe o uso, a produo, a estocagem e a transferncia de minas terrestres antipessoais (ICBL, 2014). 40 Pode ser traduzida como Fora Africana de Pronto Emprego. 41 O clculo que ser completamente operacional quando possuir 25 mil homens, entre civis e militares. O problema surge em misses que exigem um grande nmero de agentes, como Darfur, que ocuparia quase todo o contingente (SANTOS, 2011, p.144). 148 UFRGSMUNDI 4. POSICIONAMENTO DOS PASES Uma das fundadoras da Unio Africana e propulsora da ideia de solues africanas para problemas africanos, a Repblica da frica do Sul um dos pases mais importantes no tpico a ser debatido. Este pas defende a autonomia das naes africanas frente s naes estrangeiras e acredita que a presena destas na frica como foras militares s aceitvel em raros casos, como em conitos em que a atua- o diplomtica, ou mesmo militar, dos pases africanos mediadores de conitos j no surte efeitos no processo de pacicao. A Fora Nacional de Defesa da frica do Sul desempenha um papel importante no continente, tendo atuado em inmeras naes africanas e participado de misses de paz da ONU. A frica do Sul tambm estabelece marcos regulatrios para organizaes militares no-estatais, que visam a limitar tais atividades, bem como evitar que civis tomem parte delas. A Repblica de Angola no favorvel presena de foras militares estrangeiras no continente africano e busca o reforo de suas foras militares domsticas, pois acredita que elas so um meio de reforar a independncia e a autonomia. O governo angolano tem feito esforos para criminalizar ativi- dades mercenrias e regularizar companhias privadas de segurana. A Angola um pas de representa- tividade na Unio Africana, dada sua potencial expanso econmica e militar. Todavia, o pas carece de infraestrutura e tem muitos recursos ainda no explorados. A Repblica rabe Saaraui Democrtica se coloca a favor das intervenes protagonizadas pela ONU e Unio Africana, assim como da presena de foras militares estrangeiras, agindo de forma individual. A busca pelo reconhecimento de sua soberania perante o Marrocos o principal impulso desse governo em seu apoio a essas foras externas que agem em seu territrio. Alm disso, as incurses mi- litares promovidas pelo governo marroquino, em busca do territrio rebelde, tornam o Estado do Saara Ocidental frgil dentro da comunidade africana, necessitando dessas colaboraes para alcanar sua estabilidade. Um dos grupos terroristas que mais preocupa o ocidente, o AQIM (Al-Qaeda no Magreb Islmico, sigla em ingls), teve suas origens num grupo oriundo da Repblica Popular da Arglia, o que faz este pas, especialmente por sua parceria com o governo norte americano na Guerra ao Terror, ser funda- mental para o tpico a ser debatido. H evidncias de que vrias aes do AQIM foram movidas pelo prprio governo argelino que, por combater grupos islmicos contrrios ao seu regime desde a guerra civil, queria mostrar-se como um possvel aliado no combate ao terrorismo. Hoje a Arglia, aliada aos EUA e a onze pases africanos (Marrocos, Arglia, Tunsia, Lbia, Mauritnia, Mali, Nger, Chade, Senegal, Nigria e Burkina Faso) forma a Parceria Contraterrorista Trans-Saara que busca combater grupos terroristas na regio do regio do Magreb-Sahel. Os Estados Unidos tm bases militares no Burkina Faso, sendo este pas favorvel presena mili- tar estrangeira no continente africano. Na regio em que se localiza, h vrios focos de grupos armados, o que o torna vulnervel proliferao dessas organizaes em seu territrio. Um dos temores do governo que conitos existentes em territrios vizinhos ultrapassem suas fronteiras porosas e ponham em risco a frgil estabilidade do pas. A Repblica do Burundi passa por um processo de estabilizao, visto que, em 1991, teve incio uma guerra civil e, apenas em 2006, foi assinado um tratado de cessar-fogo, que ainda passou por muitas violaes. O pas tem grupos rebeldes atuantes em seu territrio e em territrios vizinhos, sendo este um cenrio propcio propagao da violncia na regio, bem como da proliferao de atores militares no estatais. Os EUA promovem misses de democratizao e desenvolvimento no Burundi, que os v como importantes aliados no processo de estabilizao. Dona de milhares de jazidas de petrleo, a Repblica do Chade tem fortes relaes econmicas e militares com os Estados Unidos, com a China e com a Frana. Ano passado, o Chade interveio no Mali dando apoio aos franceses. Este pas se comprometeu perante a comunidade internacional a no apoiar organizaes militares no estatais. O arquiplago da Unio dos Comores tem a Frana como um provedor de ajuda militar. Tambm, os Comores veem na Unio Africana uma grande parceira das ilhas, pois a organizao prestou apoio militar e diplomtico durante as crises, em momentos de eleio e golpes de Estado. A Repblica Democrtica do Congo (RDC) um dos pases mais ricos em minrios do conti- nente, mas continua um grande foco de conitos, mesmo depois de mais de 10 anos do m ocial da guerra civil. Milcias apoiadas por Ruanda e Uganda continuam explorando as minas do leste do pas ile- galmente. Embora o governo de Joseph Kabila tenha buscado aproximar-se deu seus vizinhos e mesmo do ocidente, as acusaes mtuas acerca do apoio que cada pas da regio d a determinadas milcias continua. Assim, a RDC contrria presena estrangeira no pas, mesmo que permita observadores da 149 UA ONU e tenha se mostrado mais cooperativo nesse sentido. Devido s frgeis foras do Exrcito Nacional, o governo costuma associar-se a milcias, embora negue que d apoio a grupos armados. O pas tambm profundamente afetado pelo uxo de refugiados, trco de armas e pela porosidade de suas fronteiras. A Repblica da Costa do Marm conta com a presena de foras de paz da ONU e da Frana, l instaladas desde 2010 para auxiliar na estabilizao aps um processo eleitoral conturbado. A Unio Afri- cana e a Comunidade Econmica dos Estados da frica Ocidental (ECOWAS) tiveram papel fundamental no processo que garantiu a posse do presidente democraticamente eleito. Esse episdio de interveno bem sucedida da UA teve boa repercusso, e reforou o papel desta organizao regional na estabiliza- o do continente. A Costa do Marm tem acordos militares bilaterais com a Frana e, recentemente, tem fechado parcerias de cooperao militar com a China. Entretanto, ela reconhece o papel da Unio Africana como um frum importante, e acredita em programas de auxlio mtuo entre pases africanos. A importncia da Repblica do Djibouti no tpico a ser debatido diz respeito, principalmente, a sua localizao, pois sua costa parte da rota do petrleo e permite acesso facilitado ao Oriente Mdio, fazendo do Djibouti um territrio estratgico muito visado por potncias estrangeiras. Os Estados Unidos, a Frana e o Japo tm bases permanentes l, que acabam por movimentar a economia do pas, bem como lhe trazem ganhos militares. L acontece a maior movimentao de VANTs (veculos areos no- -tripulados) depois do Afeganisto. A Eritria tem suas relaes com os Estados Unidos e com a Unio Europeia estremecidas, dado que algumas prticas autoritrias de seu governo acabaram por afast-lo de parcerias com ocidente (ape- sar de a Eritreia ainda ser parceira norte-americana na guerra ao terror). O pas vive mltiplos impasses territoriais com naes vizinhas e acusado de dar suporte a grupos militares em alguns pases fronteiri- os para desestabilizar seus governos. Pas que se v como irradiador de estabilidade no Chifre da frica e , de fato, uma potncia re- gional, a Etipia abriga a sede da Unio Africana e consolidou-se como um aliado estratgico dos EUA na luta contra o terrorismo. Os etopes opem-se a uma srie de grupos separatistas dentro do pas e atualmente tm tropas na Eritreia e na Somlia. Na primeira devido a problemas de fronteira e na segunda para desmantelar a rede terrorista Al-Shabaab. O pas igualmente acusado de apoiar grupos armados em pases vizinhos, embora arme que estes so legalmente contratados para atuarem junto ao exrcito. Apesar de a assistncia militar estadunidense ter sido limitada devido a violaes dos direitos humanos, a Etipia ainda um dos grandes recebedores de ajuda dos EUA. Apesar de ter acordos de cooperao com os Estados Unidos e com a Frana, a Repblica Ga- bonesa apoia as prticas de crescimento dos pases africanos por meio do auxlio mtuo e integra mo- vimentos de no alinhados. O Gabo exerce um papel importante na Unio Africana enquanto mediador de conitos e auxiliar em processos de pacicao e estabilizao, alm de ser engajado na promoo da estabilidade na frica Central. A Lbia, depois de dcadas do regime de Muammar Kadaf, agora apoia a presena estrangeira no continente, visto que o governo atual fruto de uma interveno da OTAN que contribuiu para a queda de Kadda. Alm disso, inmeros grupos armados continuam agindo no pas, o que refora o apoio lbio s iniciativas antiterroristas. O novo governo permite a atuao de empresas militares privadas, especial- mente estrangeiras, que vm sendo contratadas para proteger a infraestrutura petrolfera. Ainda com tropas da ONU em seu territrio, a Libria um apoiador explcito de parcerias com potncias extrarregionais, visto que considera a interveno feita pela ONU algo essencial ao m de sua guerra civil. A presidente do pas tambm fez uma declarao bastante favorvel ao AFRICOM, contra- riando os outros membros da ECOWAS. Alm disso, a Libria tem sido cada vez mais cobrada pelos mer- cenrios que agem atravs de suas fronteiras, ao que o governo tem respondido com um combate maior a essas atividades. Madagascar passa por uma profunda crise econmica e social, com um governo no reconhecido internacionalmente desde 2009. Com um novo presidente eleito recentemente, busca reaproximar-se dos investidores internacionais para voltar a receber ajuda econmica. Embora no possua uma posio clara sobre presena militar estrangeira, o pas membro da SADC, que tem tentado afastar o AFRICOM do continente. O Malaui tem uma agenda de poltica externa bastante condizente com a dos EUA e participa de uma srie de programas de assistncia militar patrocinados pelos EUA. O pas um dos maiores aliados americanos na frica Austral e defende esse tipo de cooperao. O Mali passou por um golpe de Estado em 2012 e intervenes militares da Frana e da ECOWAS em 2013. A instabilidade foi inicialmente causada por um movimento separatista da etnia tuaregue, que proclamou um Estado independente no norte do pas. Com um novo governo civil eleito em 2013, o Mali 150 UFRGSMUNDI um forte defensor da Parceria Contraterrorista Trans-Saara, visto que os tuaregues tm sido vistos como associados a grupos terroristas que atuam na regio do Sahel, como a Al-Qaeda no Magreb Islmico (AQMI). Como ainda passa por problemas desse tipo e tem irradiado instabilidade para seus vizinhos, o Mali deve ter um papel destacado na discusso, em defesa da presena estrangeira no continente, assim como de combate a grupos armados no estatais. A Mauritnia tem preocupaes semelhantes s do Mali, j que tem recebido maior uxo de refu- giados deste pas desde o incio dessa crise. A Mauritnia tambm deseja desalojar a AQMI de seu territ- rio e integrante da Parceria Contraterrorista Trans-Saara Moambique no tem uma postura to receptiva quanto presena estrangeira no continente. Embora o partido de oposio Resistncia Nacional Moambicana (RENAMO) tenha voltado a armar-se e causar violncia no pas, o governo moambicano no o tipicou como terrorista e tem buscado nego- ciar. Assim, o pas menos favorvel penetrao externa no pas e atuao de grupos armados e pode desempenhar um papel mais crtico na discusso, junto dos outros membros da SADC que se opem ao AFRICOM. Do mesmo modo, a Nambia, embora tenha uma poltica externa aberta e bom relacionamento com o ocidente, tambm integra o SADC. O grupo no rejeita a ajuda externa, mas tem recusado a cons- truo de bases militares e envio de tropas ao continente. Ao mesmo tempo, o povo nambio teve sua independncia assegurada graas a uma interveno da ONU, o que o torna mais favorvel presena da organizao. Um dos pases mais afetados pela crise no Mali, o Nger apoia, assim como a maioria dos pases do norte da frica, a luta global contra o terrorismo e a presena estrangeira no continente. O Nger possui sua prpria parcela da populao da etnia tuaregue e os milhares de refugiados vindos do pas vizinho geraram efeitos semelhantes no territrio nigerino. O aumento da instabilidade em certas regies do pas e o fortalecimento de grupos separatistas contribuem para que o governo continue apoiando a Parceria Contraterrorista Trans-Saara e os planos dos EUA de modo geral. Pas mais populoso e com a maior economia da frica, a Nigria tem um papel decisivo na frica Ocidental. Os nigerianos veem-se como lderes da ECOWAS e buscam irradiar sua inuncia atravs da organizao. O pas tambm alvo da atuao de grupos terroristas, como o extremista islmico Boko Haram e o Movimento pela Emancipao do Delta do Nger (MEND). Com exceo de alguns grupos con- tratados pelo governo para questes especcas de segurana, a Nigria geralmente contra a atuao de milcias privadas. Alm disso, o aumento da pirataria no Golfo da Guin tem aumentado a ateno internacional sobre a regio e sua riqueza em recursos. Entretanto, o governo nigeriano no deseja ver nenhum desses assuntos sendo usado como motivo para a penetrao de marinhas e tropas estrangeiras nos pases do Golfo. Por isso, embora faa parte da Parceria Contraterrorista Trans-Saara, a Nigria j se declarou, atravs da ECOWAS, contra os objetivos do AFRICOM. O Qunia teve uma poltica externa estvel de alinhamento ao ocidente durante dcadas. Assim, constituiu-se como um dos maiores recebedores de assistncia militar americana no leste africano e es- pecialmente no Chifre da frica. Em 2011, o pas interveio na Somlia para desmantelar a rede terrorista Al-Shabaab, com respaldo da ONU e da Unio Africana. Em resposta, o Al-Shabaab realizou um atentado a um shopping center na capital queniana, Nairbi, em 2013. Tambm no ano passado, os EUA e a Unio Europeia opuseram-se eleio dos novos presidente e vice-presidente, porque estes esto com proces- sos em andamento no Tribunal Penal Internacional. Em resposta, o governo queniano buscou diversicar seus parceiros internacionais e assinou acordos de comrcio, crdito e investimento com pases emer- gentes, como China e ndia. Assim, essa recente mudana na poltica externa queniana o coloca numa posio ambgua na discusso, j que ainda mantm um papel militar e estratgico essencial aos EUA, enquanto busca novas alianas. A Repblica de Ruanda favorvel presena de foras da ONU e da Unio Africana, assim como o treinamento de foras militares estrangeiras no continente. Os acontecimentos da guerra civil no pas, que ops tutsis e hutus, e o consequente genocdio ali constatado so pontos que embasam esse posi- cionamento de Ruanda frente questo, na medida em que o pas s conseguiu alcanar a estabilidade atravs da ajuda externa. Assim, o pas hoje um dos grandes colaborados da Unio Africana em opera- es de construo e manuteno de paz, enviando tropas e pessoal especializado para o processo de reestabelecimento da estabilidade em seus vizinhos africanos. A Repblica do Senegal tem fortes vnculos militares com a Frana e com os Estados Unidos, que a apoiam com equipamentos e treinamento. Apesar de j ter feito meno a uma possvel reduo desse vnculo, o Senegal favorvel a programas de assistncia ocidentais a pases do terceiro mundo. Tambm, tem ele um histrico de participao em misses de paz da ONU em vrios pases africanos, o que o torna uma nao de peso dentro da Unio Africana. Ainda, importante para o tpico a ser debatido 151 UA a insegurana na regio senegalesa separatista de Casamanca, dado que os conitos propagados pelo grupo rebelde da regio fazem sentir seus efeitos na Guin-Bissau e na Gmbia. Para a Repblica de Serra Leoa, um dos pases mais pobres da frica e do mundo, as intervenes encabeadas pela ONU e pela Unio Africana so bencas, assim como o desenvolvimento de atividades militares por potncias ocidentais. Os anos de guerra civil no pas s foram cessados com ajuda de tropas estadunidenses e britnicas, embasando, assim, seu posicionamento frente questo em debate. Empre- sas Militares Privadas da frica do Sul foram contratadas pelo governo local tambm durante o perodo de guerra civil, na tentativa de solucionar o conito. A Repblica Federal da Somlia entende a necessidade das aes estrangeiras promovidas em seu territrio. Os anos de guerra civil, com duas misses fracassadas das Naes Unidas, deixaram con- sequncias graves nos setores social e econmico do pas. O problema da fome a grande causa da ao dos piratas somalis, que atacam navios mercantes de passagem pela costa. O movimento responsvel pelo processo de forte militarizao da regio que vem ocorrendo nos ltimos anos, protagonizado por foras martimas de membros OTAN, alm de marinhas individuais, como a Rssia. Para a Repblica do Sudo, foras externas, sejam elas ou no nomeadas pela ONU ou pela Unio Africana, no so legtimas para agir em casos de conito interno em um pas. No caso de seu em- bate com o agora independente Sudo do Sul, o Sudo se coloca contrrio interveno dessas foras, tendo inclusive, se oposto ao denominada pela ONU para estabilizar a regio. J a Repblica do Sudo do Sul, o mais novo pas do sistema internacional, nascido em 2011, se posiciona de maneira fa- vorvel s intervenes promovidas pelas Naes Unidas ou pela Unio Africana, assim como em relao s atividades militares desenvolvidas por pases de modo individual no continente africano. O governo sul-sudans entende a necessidade de ajuda externa nesse primeiro momento de sua histria em que est se construindo, no qual a situao da populao ainda se encontra debilitada em termos sociais e econmicos, alm da fragilidade institucional, natural de um Estado recm-criado. Para a Repblica Unida da Tanznia, no h problemas na promoo de atividades militares por parte de potncias ocidentais ou empresas privadas. Da mesma forma, enxerga as operaes de paz da ONU e da Unio Africana como bencas para a construo de um ambiente estvel no continente afri- cano. A Tanznia sempre buscou fazer parte ativamente dessas operaes, enviando tropas sempre que preciso. Cabe ressaltar a presena de grupos armados no-estatais, como a Al Qaeda, que tem ameaado presena no territrio nacional. A Repblica Togolesa favorvel s intervenes promovidas pela ONU e Unio Africana, da mesma forma que defende as atividades militares de pases externos frica, como no caso dos EUA e da Frana, dois de seus grandes aliados ocidentais. Alm disso, o Togo sempre buscou participar ativamente das aes que tivessem como nalidade promover a estabilidade do continente africano, a m de desen- volver a frica como um todo, acreditando profundamente na efetividade da Unio Africana, mas sem esquecer de suas fragilidades e limitaes. A Repblica de Uganda se coloca levemente favorvel a intervenes da ONU, desde que sejam voltadas para o combate de grupos rebeldes. No entanto, o pas contrrio a qualquer tipo de atividade militar estrangeira no continente, embora aceite a presena de Empresas Militares Privadas. Essas em- presas foram, inclusive, responsveis pelo treinamento de tropas de Uganda para sua atuao na misso de paz da Unio Africana na Somlia. Isto , o pas aceita aes empreendidas pela comunidade africana, sem interferncias externas diretas. A Repblica do Zimbbue se coloca de forma extremamente contrria presena estrangeira no continente africano. 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RESUMO A Unio Africana (UA), criada em 2002, tem como principal objetivo promover a cooperao nas ques- tes de segurana para que se alcance o desenvolvimento africano nas reas sociais, polticas, econmicas e culturais. Trazendo uma nova mentalidade por parte dos membros, a UA vem trabalhando na tentativa de dimi- nuir, cada vez mais, as intervenes estrangeiras nos assuntos internos ao continente. Esse ano, pela primeira vez no UFRGSMUNDI, o comit da Unio Africana vai discutir o tpico Atores Militares No-Estatais e Foras Militares Estrangeiras no Continente Africano. O debate vai se focar nas intervenes de grupos externos, ou mesmo internos, ao continente, e como elas interferem nos conitos internos, muitas vezes contribuindo para intensic-los. Ao mesmo tempo, buscamos mostrar a evoluo da Unio Africana nessa ltima dcada, a qual tem se tornado cada vez mais protagonista na resoluo de controvrsias na regio, atuando como fora pa- cicadora em ambientes de conito e mostrando a capacidade dos pases africanos em resolver seus assuntos internos. 155 AGH 47 ASSEMBLEIA GERAL DAS NAES UNIDAS HISTRICA (1947) A Partilha da Palestina Andr Frana 1
Elisa Eichner 2 Jssica da Silva Hring 3
Jordy Bolivar Pasa 4 Natlia Regina Colvero Maraschin 5
INTRODUO A Assembleia Geral das Naes Unidas (AG) um dos seis principais rgos da ONU e o nico no qual todos os membros da organizao esto representados de maneira igualitria e podem votar. Entre algumas de suas funes gerais esto admitir novos membros, supervisionar os outros rgos das Naes Unidas e selecionar o Secretrio-Geral; suas funes mais importantes, contudo, so deliberar e fazer recomendaes sobre assuntos dentro do escopo da Carta da ONU, tendo em vista os princpios de manuteno da paz e da segurana internacionais e a cooperao entre as naes. As decises tomadas pela AG no so vinculantes, o que signica que esse rgo no tem capacidade para compelir a ao dos Estados; entretanto seus pareceres possuem um grande peso na opinio pblica internacional devi- do a seu carter democrtico. A Assembleia Geral se rene uma vez por ano a no ser quando existem sesses especiais e anualmente elege um novo presidente originrio de um dos cinco grupos de pases (frica, sia-Pacco, Europa Oriental, Amrica Latina e Caribe e Europa Ocidental e outros). Em novembro de 1947, depois de meses de deliberao, delegaes de 56 pases se reuniram na sede da AG em Nova Iorque para determinar uma soluo para a questo da Palestina, uma disputa entre rabes e judeus que se estendia desde o nal do sculo XIX e havia atingido um ponto insustentvel. Esse o encontro que ser simulado em nosso comit. 1. HISTRICO E AES INTERNACIONAIS PRVIAS A Palestina uma estreita faixa de terra que serve de passagem entre a frica e a sia e que foi, ao longo de sua histria, invadida e conquistada pelos mais diversos povos. Por abrigar a cidade de Jeru- salm, sagrada para os cristos, os judeus e os muulmanos, o territrio palestino considerado a Terra Santa por esses trs grupos religiosos 6 (FINGUERMAN, 2005). 1 Estudante do 7 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 2 Estudante do 3 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 3 Estudante do 7 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 4 Estudante do 5 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 5 Estudante do 5 semestre de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 6 Para os judeus, esse o local que abrigou os grandes reinos de sua civilizao. Para os cristos, Jerusalm foi o local onde Jesus Cristo pregou e acabou sendo morto. Para os muulmanos, a cidade sagrada, pois foi o local de ascenso do Profeta Maom ao Isl ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.155-172 156 UFRGSMUNDI Um dos muitos povos que ocuparam o territrio palestino foi o judeu. Antigamente, os judeus viviam no reino de Jud e no reino de Israel, uma regio que cobre o sul e o oeste da atual Palestina, mas ao longo de sua histria sofreram diversas disperses pelo mundo, as quais caram conhecidas como disporas 7 . A primeira dispora ocorreu em 587 a.C., quando o rei da Babilnia, Nabucodonosor, invadiu o territrio judeu e seus habitantes foram enviados para o territrio babilnio (onde hoje ca o Iraque), s podendo retornar 50 anos depois, em 538 a.C. Quase seis sculos depois, em 63 a.C., a Judeia sofreu uma nova invaso e foi transformada em uma provncia do Imprio Romano, fato que originou uma re- volta que foi reprimida apenas no ano 70, quando o general romano Tito destruiu Jerusalm e forou os judeus a uma nova dispora pela sia, Europa e norte da frica. com os romanos que se inicia a histrica perseguio aos judeus, devido a no aceitao de seus cultos e costumes, principalmente aps o surgi- mento do cristianismo (SZKLARZ, 2013). J no sculo VII, a Palestina foi ocupada pelos persas da dinastia Sassnida, que converteram toda a regio em domnio e residncia rabe. Mesmo no estando politica- mente unicados, os palestinos mantinham uma unidade atravs da lngua, da religio e dos costumes (HALBROOK, 1981). Por m, em 1516, a Palestina se tornou uma provncia do Imprio Otomano, realidade que se estendeu at o m da Primeira Guerra Mundial, em 1918. O movimento nacionalista judaico, por sua vez, nasceu nos anos 1850, como resposta ao des- membramento do estilo de vida judeu tradicional e s tentativas dos judeus de se incorporarem aos Estados Europeus onde viviam, com o objetivo de preservar a identidade dos judeus como um povo (STE- VENS, 1962). Nesse contexto, ocorreu a emergncia do antissemitismo 8 como uma fora poltica forte, alimentada pela inveno da cincia das raas e pelo Darwinismo social 9 ; como consequncia, os judeus passaram a ser perseguidos pelas populaes e governos de diversos pases: tiveram que enfrentar os pogroms na Rssia, acusaes de traio como o Caso Dreyfus 10 na Frana, e o surgimento de polti- cas racistas em vrios pases da Europa Leste. Esse antissemitismo teve como resultado o fortalecimento dos movimentos nacionalistas judaicos, especialmente de um deles, o Sionismo 11 . Em 1897, Theodor Herzl, considerado o pai do Sionismo, concebeu um projeto de colonizao para ser empreendido no local escolhido para acolher a nao judaica e organizou, em 1897, na Sua, o Primeiro Congresso Sionista, que fundou a Organizao Sionista Mundial e raticou que a Palestina deveria ser o local para a criao de um Estado Judeu (GOMES, 2001). A grande premissa da ideologia sionista era de que a existncia dos judeus em comunidade poderia ser conseguida apenas na terra de Israel, o lugar histrico onde a identidade judaica foi formada e que se constitua na base de suas crenas e valores. Para tentar obter apoio dos pases europeus ao projeto, os sionistas armavam que um Estado judeu no Oriente Mdio ajudaria a estabilizar a regio e criaria um bastio europeizado frente sia, ou, nas palavras de Herzl, uma sentinela avanada da civilizao contra a barbrie (HERZL apud PINSKY, 1978, p.137). A estratgia de colonizao da Organizao Sionista Mundial era, com o apoio de uma me- trpole, promover a imigrao intensiva de judeus para a Palestina e adquirir terras, que, mesmo sendo cedidas a particulares, se tornariam propriedade inalienvel do povo judeu 12 (GRESH, 2002); para esse m, no Segundo Congresso Sionista, realizado em 1898, foi criado o Fundo Nacional Judaico, entidade que centralizava a arrecadao para a compra de terras e colonizao da Palestina (GOMES, 2001). nessa poca de grandes perseguies e de orescimento das ideias sionistas que os primeiros judeus comearam a imigrar da Europa; apesar de a maioria ter preferido seguir para os EUA, alguns partiram para a Palestina para se juntar a algumas pequenas comunidades de judeus j existentes nesse territrio. De incio, os imigrantes foram bem recebidos pelos rabes nativos, mas por volta de 1880 co- mearam a surgir atritos em torno de questes de explorao de gua e terras frteis. Em 1886, com o desenrolar da situao, ocorreu o primeiro choque violento entre palestinos e judeus imigrantes quando os rabes da aldeia Yahudiya atacaram o assentamento judaico mais antigo, Petach Tikiva, acarretando ataques em outras partes do territrio e levando ao primeiro protesto palestino organizado contra o pro- jeto judaico de colonizao, considerado uma ameaa comunidade rabe (GOMES, 2001). Em 1907, frente ao projeto sionista e aos conitos na Palestina, Yitzhak Epstein 13 publicou um arti- 7 Dispora o termo usado para denir o deslocamento, forado ou incentivado, de uma grande quantidade de pes- soas de uma determinada regio para outras. 8 Antissemitismo a hostilidade contra judeus baseada no dio ao histrico tnico, cultural e religioso desse povo. 9 O Darwinismo social e a cincia das raas buscavam aplicar na sociedade conceitos de evoluo e sobrevivncia dos mais aptos para justicar a diferenciao entre povos (superiores e inferiores) e o racismo. 10 Acusado de espionagem a favor da Alemanha, o militar judeu Alfred Dreyfus foi julgado na Frana por alta traio, submetido degradao militar em 1895, e condenado priso perptua. Apesar das contundentes provas de sua inocncia, ele foi condenado por um tribunal militar, pela segunda vez, em 1899, sendo em seguida indultado. Sua inocncia s foi verdadeiramente reconhecida em 1905 e, no ano seguinte, foi reabilitado pelo governo francs. (O CASO DREYFUS..., 2006) 11 O nome Sionista vem de Sio, uma colina de Jerusalm, representando o regresso terra prometida (GRESH, 2002, p.22) 12 Isso signica que os rabes no podiam arrendar, comprar nem trabalhar nas terras de posse de judeus. 13 Epstein era um dos poucos lderes Sionistas que era palestino. 157 AGH 47 go no Hashiloah 14 em que ele arma que, como as boas terras na Palestina esto em sua grande maioria ocupada, o estabelecimento judeu requereria o m da posse dos rabes. Epstein props como soluo a criao de um Estado binacional e um programa inclusivo de assentamentos. Contudo, essa ideia de coo- perao entre os dois povos encontrou poucos adeptos (JEWS FOR JUSTICE IN THE MIDDLE EAST, 2001). Em 1911, a disputa que se centrava na luta pela terra se estendeu tambm para uma luta pelos empregos. Os judeus sionistas passaram a evitar o trabalho rabe em suas fazendas e a Histadrut (Federa- o Trabalhista Judaica) excluiu os rabes de empregos em empresas e comrcio de judeus (HALBROOK, 1981). Quanto mais numerosa se tornava a imigrao judaica e a compra de terras por judeus, mais se agravava o problema do desemprego e deslocamento rabes. No contexto do incio dos conitos que originariam a Primeira Guerra Mundial e pela necessi- dade de conquistar o apoio de diversos grupos, a Gr-Bretanha acabou se envolvendo em promessas e acordos contraditrios que inuenciaram a situao da Palestina. Interessados em garantir o apoio dos rabes na guerra, principalmente na frente contra os turco-otomanos, os britnicos prometeram que, em caso de vitria, os povos rabes ganhariam um Estado rabe independente no Oriente Mdio; esse acordo, que inclua em seus limites a Palestina, foi formalizado por meio de correspondncias entre Hu- sayn, Emir 15 de Meca, e McMahon, Alto Comissrio Britnico no Egito (1915-1916). Simultaneamente, a Gr-Bretanha e as outras potncias da Entente 16 , prevendo a desintegrao do Imprio Otomano ao m da guerra, negociaram entre si a diviso do Oriente Mdio, que tomou forma no acordo secreto Sykes- -Picot 17 , em 1916. Segundo esse acordo, a regio da Palestina caria sob o controle britnico (COMIT PARA O EXERCCIO...,1990). Por m, em 1917, como resultado da intensa busca de apoio do Movimento Sionista e da necessidade da Gr-Bretanha de conquistar o apoio das massas judaicas dos Estados Unidos e da Rssia devido ao desenrolar da guerra , Arthur Balfour, Secretrio das Relaes Exteriores britni- co, emitiu a Declarao Balfour; nela, armava que seu governo oferecia apoio iniciativa de construo de um lugar nacional para o povo judeu na Palestina. Mesmo estabelecendo que nenhuma medida que prejudicasse os direitos civis e religiosos das comunidades no judaicas da palestina deveria ser tomada, a Declarao se chocava diretamente com as promessas feitas a Husayn de criao de um Estado rabe no Oriente Mdio (UNSCOP, 1990). Assim, a Declarao Balfour representou uma grande conquista para os Sionistas e recebeu o apoio ocial do governo dos Estados Unidos, alm de outros pases. A partir dela, o movimento Sionista passou a focar seus esforos na imigrao em massa dos judeus para o territrio Palestino e na busca de um apoio amplo ao Sionismo (GOMES, 2001). Importa ressaltar, contudo, que os sionistas permaneceram minoria entre os judeus 18 at o nal da Segunda Guerra Mundial (JEWS FOR JUSTICE IN THE MIDDLE EAST, 2001). Com o trmino da Primeira Grande Guerra e a instalao, como previsto pelo acordo Sykes-Pi- cot, do Mandato britnico sobre a Palestina, em 1918, os sionistas tiveram autorizao para criar suas prprias instituies no territrio palestino. A Agncia Judaica, o rgo que representava a Organizao Sionista e que foi reconhecida no texto do mandato como um corpo pblico, na prtica passou a repre- sentar um governo dentro de outro. No texto do mandato britnico foi includa tambm a Declarao Balfour. Um ano depois, em 1919, foi realizada a Conferncia de Paz de Paris, onde foi decidido o des- tino dos pases perdedores da guerra e foi criada a Liga das Naes, a precursora da ONU. No artigo 22 do Pacto da Liga das Naes foi introduzido o Sistema de Mandatos, que estabelecia que determinados territrios deveriam permanecer sob tutela de naes mais adiantadas para que pudessem alcanar seu desenvolvimento e a independncia plena, o que levou ao reconhecimento, por parte da Liga, do Manda- to britnico sobre a Palestina em 1922 (GRESH, 2002). Simultaneamente a essa conferncia, o presidente americano Woodrow Wilson enviou a Comisso King-Crane para as antigas provncias otomanas, com o objetivo de realizar uma pesquisa de opinio com os povos da regio sobre o seu arranjo territorial ps-guerra. Em suas concluses, a Comisso recomendou a modicao do Programa Sionista para a 14 O Hashiloah era um dos principais jornais que servia de suporte s ideias sionistas. 15 Emir, em rabe, signica comandante. 16 A Trplice Entente foi uma aliana militar entre Reino Unido, Rssia e Frana para combater a Trplice Aliana (Ale- manha, Imprio Austro-Hngaro e Itlia) na Primeira Guerra Mundial. 17 A Rssia havia entrado nas negociaes do Acordo Sykes-Picot, mas com a ecloso da Revoluo Bolchevique em 1917 ela se retira. Posteriormente os russos denunciam a existncia desse acordo para o resto do mundo. 18 Comumente toma-se judasmo e sionismo como sinnimos, o que se trata, na realidade, de um erro. O sonho de fundar um Estado prprio, materializado posteriormente na campanha da Palestina, jamais foi unnime entre os ju- deus. A ideia Sionista de retornar ao lugar de origem conquistou muitos adeptos dentre esse povo, principalmente de- vido ao seu forte apelo religioso, mas era vista por uma parcela signicativa dos judeus, especialmente pelas correntes de esquerda, como apenas um devaneio romntico. Assim, importante armar que nem todo judeu sionista, e que a diferenciao entre esses dois grupos, que apesar de relacionados no so idnticos, essencial. 158 UFRGSMUNDI Palestina, devido a um extremo sentimento anti-sionista no territrio e inevitabilidade de conito e uso da fora se os objetivos sionistas fossem alcanados (ESTADOS UNIDOS DA AMRICA, 1919). Ainda durante a Conferncia de Paz de Paris, Emir Faisal, rei do Reino rabe da Sria, e Chaim- Weizmann, personalidade da Organizao Sionista Mundial, assinaram o Acordo Faisal-Weizmann de cooperao entre rabes e judeus para a construo de um lar judeu na Palestina ( importante observar que no foi utilizada a palavra Estado) e de uma nao rabe em grande parte do Oriente Mdio. Esse acordo durou apenas alguns meses, sendo rompido tanto pelos rabes e pelos judeus quanto pelas po- tncias mundiais, que j haviam dividido a regio entre si. A Organizao Sionista Mundial realizou em 1920 uma Conferncia Sionista que declarou o de- sejo do povo judeu de viver amigavelmente e em paz com a populao no judaica da Palestina (LIS- SOVSKY, 2009). Logo em seguida, contudo, a situao na regio se agravou: os britnicos, frente aos mpetos conquistadores de Abdullah, irmo do Rei do Iraque, dividiram o territrio palestino e criaram a Transjordnia (na regio da Palestina ao leste do Rio Jordo), fato que limitou as possibilidades do projeto de colonizao dos judeus; alm disso, os Estados Unidos emitiram uma Resoluo Conjunta em que aprovaram o estabelecimento na Palestina de um Lar Nacional para o Povo Judeu. Sob esse contexto, a Palestina palco dos conitos de 1920 e 1921 e o massacre de Hebron em 1929 19 . Como resposta crescente violncia, os britnicos estabeleceram em 1930 a Comisso de Inqurito Shaw, que identicou como causa dos conitos a animosidade racial por parte dos rabes, como consequncia do desapontamento de suas aspiraes polticas e nacionais e medo de seu futuro econmico (THE SHAW COMMISSION..., 2014). Para denir solues, a Comisso encarregou John Hope-Simpson de conduzir uma investigao sobre as possibilidades de futuras imigraes e assentamentos na Palestina; o Relatrio Hope-Simpson concluiu que no havia terras sucientes para suportar a imigrao contnua e recomen- dou o cessamento da imigrao de judeus segundo os dados levantados, cerca de 30% dos rabes j estavam sem terras (THE HOPE-SIMPSON REPORT, 2014). Com a ascenso de Hitler ao poder na Alemanha, em 1933, a imigrao de judeus aumentou e as posies se radicalizaram. Em 1936, a resistncia palestina contra o governo britnico e a colonizao sionista iniciou uma rebelio que cou conhecida como Grande Revolta rabe. Frente a esse transtorno de grandes propores, uma nova Comisso Real, encarregada de analisar os distrbios, emitiu em 1937 o Relatrio Peel, que recomendava como soluo para a crise a partilha da Palestina em um Estado judeu e outro rabe, ambos independentes, com Jerusalm e a regio limtrofe permanecendo sob o manda- to britnico (GRESH, 2002). A recomendao da partilha foi aceita pelo governo britnico em seu Livro Branco 20 de 1937 e uma nova comisso, de nome Woodhead, buscava recomendar limites de fronteiras para rabes e judeus; contudo, nem os rabes nem os sionistas caram contentes com essas iniciativas (GOMES, 2001). Os palestinos transformam ento sua rebelio em uma revolta popular armada, liquidada pelas foras britnicas apenas em 1939. Como resultado dos confrontos, os palestinos perderam vrios de seus lderes, que foram em grande parte presos e mortos, fragmentando e enfraquecendo seu mo- vimento poltico. Nesse contexto, os pases rabes assumiram a causa palestina, colocando-a em foco (GRESH, 2002). Em 1939, frente impossibilidade de conciliar as duas partes conitantes e diante da iminncia da Segunda Guerra Mundial, na qual era novamente essencial contar com o apoio rabe, a Gr-Breta- nha publicou outro Livro Branco, o MacDonald White Paper, declarando que estava descartada qualquer inteno de criar um Estado judeu na Palestina ou de tornar a Palestina um Estado rabe. A imigrao judaica foi limitada e foi dada ao alto comissrio britnico carta branca para restringir a compra de terras por judeus. O Livro Branco previa ainda o m do Mandato britnico para 1949, quando a Palestina deveria se tornar independente, com um governo partilhado entre judeus e rabes (UNSCOP, 1990). Como a po- pulao judaica estava distante de alcanar a maioria para poder controlar o governo nessa perspectiva (no chegavam a 20% da populao total), os sionistas pressionaram a conquista de um Estado judeu, intensicando a violncia e realizando atentados contra ociais e sedes do Mandato britnico (REINO UNIDO, 1946). Foi aps o Holocausto na Segunda Guerra Mundial considerado o pice do antissemitismo 19 Os conitos de Nebi Musa (1920) ocorreram durante a comemorao do festival rabe Nebi Musa e foram causados pela tenso crescente entre rabes e judeus. Tendo incio com a perseguio rabe aos judeus da cidade de Jerusalm, o conito causou as mortes de 5 judeus e 4 rabes. Devido resposta lenta das autoridades britnicas, a comunidade judaica passou a buscar uma organizao paralela administrao do Mandato. Os conitos de Jafa (1921) tiveram in- cio com uma briga entre dois grupos polticos judeus que foi entendida por rabes da cidade como um ataque. A partir disso, rabes passaram a atacar os judeus, que revidaram, tendo como resultado a morte de 47 judeus e 48 rabes. O Massacre de Hebron (1929) se refere ao assassinato de 67 judeus e destruio de suas casas e sinagogas. Os ataques foram realizados por rabes incitados por rumores de que os judeus estavam massacrando rabes em Jerusalm e buscando controle de locais sagrados. Aps o incidente, os britnicos evacuaram os judeus de Hebron. 20 Um Livro branco um documento ocial, publicado por um governo ou uma organizao internacional, que rma as polticas governamentais e serve de informe ou guia sobre algum problema e como enfrent-lo. 159 AGH 47 que ocorreu a mobilizao efetiva para a criao de um Estado Judeu na Palestina, tanto por parte dos sionistas como das potncias mundiais (PILATI; PIRES, 2008). Os sobreviventes dos campos de concen- trao haviam cado deslocados: como muitos no queriam voltar para seus pases de origem e algumas naes europeias e os EUA se recusaram a acolher o uxo de centenas de milhares, um grande uxo de navios repletos de imigrantes comeou a se dirigir para o territrio palestino, mas os passageiros foram em sua maioria barrados e extraditados pelas foras britnicas (GRESH, 2002). Nesse contexto, em 1945, os dirigentes sionistas denunciaram o bloqueio britnico imigrao para a Palestina, armando que ele representava uma sentena de morte para os judeus libertos (GRESH, 2002, p.27). Em resposta, a Gr- -Bretanha formou uma Comisso anglo-americana de Inqurito, junto aos Estados Unidos, com o intuito de analisar o judasmo europeu e realizar um novo estudo da questo palestina. Durante alguns meses de 1945 e 1946, a Comisso ouviu membros de organizaes judaicas, cris- ts e rabes, alm de representantes dos mais diversos pases e especialmente da recm-criada Liga dos Estados rabes 21 . Em seu relatrio nal, aprovado por unanimidade, a Comisso deniu que a Palestina no deveria ser um Estado Judeu nem um Estado rabe, devendo permanecer sob o mandato britnico at a realizao de um acordo para que sua administrao passasse para a ONU. Recomendava, tambm, a revogao das limitaes impostas pelo White Paper de 1939 imigrao e compra de terras. Contu- do, o relatrio da Comisso no agradou nem aos sionistas, nem aos rabes, nem aos britnicos, que, em situao econmica crtica no ps-guerra, teriam que continuar arcando com o custo da administrao da Palestina. Assim, quando os Estados Unidos declaram publicamente sua satisfao com os resultados da Comisso, esses grupos explodiram em protestos e violncia (LISSOVSKY, 2009). Aps realizar mais algumas conferncias a respeito do problema da Palestina, o governo britni- co apresentou o Plano Morrison, ou Plano Morrison-Grady, que propunha a diviso do territrio palestino em quatro zonas ou provncias: uma rabe, abarcando cerca de 40% da rea total; uma judaica, com 17% do territrio; e duas britnicas, somando 43% da Palestina. As provncias rabe e judaica seriam autno- mas, mas o governo central seria administrado pelo alto-comissrio da Gr-Bretanha. A Agncia judaica considerou o plano inaceitvel, por no representar uma independncia real e por negar, de acordo com sua percepo, os direitos judaicos em quase 85% do territrio. A Liga rabe tambm recusou veemen- temente a proposta, armando que a autonomia provincial abria um caminho para o estabelecimento de um Estado Judeu na Palestina, e apresentou, por sua vez, uma proposta para que a Palestina se tornasse um Estado rabe independente (LISSOVSKY, 2009). A violncia e os ataques terroristas na Palestina promovidos por judeus e rabes no cessa- ram e um conito intenso entre foras armadas judaicas e as foras britnicas estava ocorrendo. Nessa situao, o governo britnico e a Agncia Judaica se engajaram em negociaes informais em que os bri- tnicos ameaaram levar o problema da Palestina para as Naes Unidas, caso no fosse alcanada uma soluo. Frente a essa ameaa, os representantes sionistas chegaram a admitir que se lhes fosse ofere- cido um Estado Judeu vivel em uma rea adequada da Palestina, eles estariam dispostos a discuti-lo. O porta-voz dos rabes palestinos, contudo, armou que eles combateriam qualquer espcie de partilha com todos os meios de que dispusessem (LISSOVSKY, 2009, p.322). Em mais uma tentativa de resoluo, em fevereiro de 1947, os britnicos apresentaram seu ltimo projeto: o Plano Bevin. Este propunha a manuteno do mandato por mais cinco anos, nos quais seria preparada a independncia da Palesti- na como um Estado binacional e nos quais os poderes administrativos, legislativos e nanceiros seriam concedidos para as administraes locais rabes e judaicas. O novo plano foi prontamente rejeitado por judeus e rabes, os primeiros por motivos de delimitao de rea e os segundos por j haverem armado que se oporiam a qualquer tipo de partilha. Assim, frente a esse novo impasse e interminvel violncia, a Gr-Bretanha decidiu por transferir o problema da Palestina para a ONU (GOMES, 2001). 2. APRESENTAO DO PROBLEMA 2.1. PROPOSTAS PARA A PALESTINA Com o lanamento da Declarao de Balfour, a Inglaterra se viu entre dois compromissos possi- velmente contraditrios sobre o futuro da Palestina: o movimento sionista passou a interpretar aquela como armao da criao de um Estado judeu, enquanto aos rabes havia sido prometida a indepen- dncia de toda a regio. Devido a esse conito poltico entre as duas comunidades do Mandato britnico 21 A Liga rabe uma organizao de Estados rabes criada em 1945 por sete pases (Egito, Iraque, Transjordnia, Lbano, Arbia Saudita, Sria e Imen), com o objetivo de coordenar e reforar os laos econmicos, sociais, polticos e culturais entre eles, alm de mediar disputas. 160 UFRGSMUNDI da Palestina, em agosto de 1936, foi anunciado o estabelecimento da Comisso Real ou Comisso Peel, liderada pelo Lorde Robert Peel (PRE-STATE ISRAEL..., 1998). Assim teve incio o processo que, nalmente, levaria os judeus e rabes a transformar suas aspiraes em demandas mais prticas, tendo em conside- rao instrumentos como o Estado, o territrio e as fronteiras. Vrias das ideias levantadas pela Comisso inuenciaram os lderes britnicos, judeus e rabes a considerar a possibilidade de utilizar a geograa para separar as duas comunidades na Palestina (GALNOOR, 1995). A Comisso Peel ouviu uma grande quantidade de depoimentos no perodo em que esteve em territrio palestino e, em julho de 1937, recomendou a partilha da Palestina entre os dois povos e a aboli- o do Mandato Britnico nos territrios judeu e rabe. Apenas uma rea que ia de Jafa, na costa do Mar Mediterrneo, at Jerusalm caria sob a administrao britnica e superviso internacional. Segundo o relatrio da Comisso, o Estado judeu deveria ocupar a faixa costeira, que se estende do Monte Carmelo, no extremo norte do pas, at o sul de Beer Tuvia. O Estado rabe seria institudonas regies de monta- nha, abarcando toda a parte central e sul do territrio (Imagem 1) (GALNOOR, 1995). De acordo com as recomendaes feitas, at o estabelecimento dos Estados, os judeus deveriam ser proibidos de comprar terras na rea destinada ao Estado rabe. Para evitar problemas de demarcao, foi proposto que as tro- cas das terras fossem feitas simultaneamente e somente com a transferncia da populao de uma regio pra outra. A demarcao ocial das fronteiras seria feita por um comit tcnico de partilha. O Governo Britnico aceitou as recomendaes da Comisso Peel sobre a partilha da Palestina e o projeto foi aprovado pelo Parlamento Ingls. Os judeus caram divididos quanto deciso, mas os revisionistas 22 se posicionaram de maneira totalmente contrria a ela: no 20 Congresso Sionista, decla- raram que a proposta era inaceitvel. Tambm os rabes rejeitaram o plano, dizendo recusarem-se a con- sider-lo como uma soluo. Como resultado, o projeto acabou sendo arquivado e o Governo Britnico deu incio a uma nova onda de negociaes, com o objetivo de melhorar a proposta anteriormente ela- borada. Para esse m, foi formada uma nova Comisso de Inqurito, chamada de Comisso Woodhead, por ser presidida pelo Sr. John Woodhead. Essa nova Comisso caria encarregada de: recomendar os devidos limites de fronteiras para as reas rabes e judaicas e o enclave britnico; exigir a incluso do me- nor nmero de rabes e empresas rabes em territrio judaico e vice-versa; e possibilitar que o Governo Britnico continuasse cumprindo com as obrigaes do Mandato (GALNOOR, 1995). Trs formas alternativas de partilha foram analisadas pelos quatro membros da Comisso Woodhead: 1. O Plano A seguia o mesmo modelo de partilha proposto pela Comisso Peel: o Estado judeu caria situado na regio costeira; haveria um corredor na regio central do pas, saindo de Jerusalm em direo ao litoral, que caria sob a inuncia britnica e onde prevaleceria o Mandato; por m, o resto da Palestina pertenceria ao Estado rabe. A Comisso apontou que esse projeto era impraticvel pois no acabaria com as tenses entre rabes e judeus, j que as demandas dos dois povos no seriam integralmente atendidas e que a Galileia, grande regio ao norte do pas, no deveria estar includa no Estado judeu. 2. O Plano B foi elaborado nos mesmos moldes do plano A, com a diferenade que a Galileia e uma pequena poro sul foram excludas do territrio judaico. Esse plano foi preferido por um dos membros; porm, foi rejeitado pelos outros membros pelo fato de que qualquer dispo- sio diferente da Galileia e de Haifa poderia causar ainda mais tenses entre os rabes e os judeus, por serem regies de grande interesse para ambos. 3. O Plano C previa a reteno da parte sul e norte da Palestina sob Mandato e a partilha da regio central do pas em um pequeno Estado judeu costeiro, um Estado rabe e um corre- dor permanente, chamado Enclave Jerusalm. O Plano C foi preferido por dois membros, incluindo o Sr. Woodhead, que o viram como a melhor forma de partilha dentro dos termos referidos. Os quatro membros concordaram ser o Plano C a melhor opo, visto que conside- raram os Planos A e B inviveis. 22 Os revisionistas formavam uma ala mais radical do judasmo. Extremamente nacionalistas, os primeiros grupos re- visionistas defendiam o Mandato Britnico, a m de obter ajuda na conquista de suas causas. Com o passar do tempo, as restries imigrao e a busca inglesa por atender tambm os interesses rabes levaram a violentas campanhas do grupo contra autoridades britnicas na regio. 161 AGH 47 Figura 1: Plano A Figura 2: Plano B Figura 3: Plano C Fonte: Jewish Virtual Library Devido ao resultado emitido pela Comisso, o Plano C foi o nico dos trs planos a receber an- lises mais detalhadas. Ficou denido que a regio norte da Palestina caria sob Mandato Britnico, at que ambas as novas Naes concordassem com a sua independncia como parte do Estado judeu ou do Estado rabe, ou como um Estado palestino independente. Por sua vez, as regies de Haifa e Acre, bastante disputadas, s teriam sua independncia concedida se isso pudesse ser feito com segurana, considerando a responsabilidade britnica de proteger locais sagrados e defender novos Estados contra agresso. O territrio sul caria sob o Mandato por pelo menos 10 anos, e nenhum Estado independente poderia ser criado ali se mesmo uma minoria de seus habitantes se opusesse. Por m, a imigrao para os territrios, segundo o Relatrio, seria regulada por consideraes polticas, sociais e psicolgicas, alm de econmicas, e os judeus teriam preferncia durante o processo de imigrao (GALNOOR, 1995). A Comisso Woodhead tambm fez recomendaes sobre o futuro poltico dos territrios sob Mandato, discutiu perspectivas oramentrias e, nalmente, declarou que os interesses de ambos os Estados exigiam que esses territrios zessem uso de uma forma modicada de partilha, chamada de Federalismo Econmico. Seguindo esse modelo, os dois Estados entrariam em uma espcie de Unio Aduaneira 23 apenas nos territrios mantidos sob o Mandato, nos quais o Poder Mandatrio determinaria 23 A expresso Unio Aduaneira simboliza a associao de um grupo de pases que se caracteriza por dois pontos: a adoo de uma tarifa externa comum quer dizer que todos os pases do grupo aplicaro a mesma taxao em relao importao de bens de pases fora do grupo e a livre circulao das mercadorias oriundas dos pases asso- ciados (WOLLFENBTTEL, 2007). Estado judeu Estado rabe Mandato Britnico 162 UFRGSMUNDI a poltica scal 24 a ser adotada naquela regio aps consultar ambos os Estados. A receita aduaneira se- ria,ento, recolhida pelo Mandato, e o excedente lquido distribudo entre as trs reas, de acordo com uma frmula a ser acordada, e sujeita a reviso peridica. A proposta inicial era de que a participao de cada rea seria de um tero (GALNOOR, 1995). Entretanto, aps as anlises dos termos, o Relatrio da comisso concluiu que no se poderia esperar que os Estados rabe e judeu aprovassem um regime que iria priv-los do direito de exigir mudanas que considerassem necessrias na poltica scal dos demais Estados-membros da unio. Uma Unio Aduaneira, portanto, seria impossvel de ser estabelecida com sucesso, exceto em condies que seriam incompatveis com a concesso de independncia scal para os dois Estados. Assim, a proposta de Federalismo Econmico teve m. Assim que o Relatrio da Comisso Woodhead foi apresentado, os representantes rabes se uni- ram em oposio partilha e demandaram a criao de um Estado rabe independente em todo o terri- trio sob Mandato. Os judeus, por sua vez, propuseram o aumento do territrio designado instalao do Estado judeu. Os objetivos de rabes e judeus eram visivelmente inconciliveis. Levando em conta esse cenrio, o governo britnico declarou que a partilha no seria uma soluo prtica (GALNOOR, 1995), e o plano foi abandonado. 2.2. O FIM DO MANDATO BRITNICO E A CRIAO DA UNSCOP Em 1939, com o incio da Segunda Guerra, os judeus palestinos se viram em uma delicada situao: no poderiam mais conar nos ingleses como protetores da causa sionista, mas precisavam apoi-los contra o Eixo, que estava exterminando a populao judaica na Europa e poderia vir a dominar o Oriente Mdio. Ao mesmo tempo, contudo, os ingleses ampliavam as restries em seu Mandato, pois haviam se comprometido politicamente com os rabes a reduzir a imigrao judaica para a Palestina o que ocorreu justamente numa poca muito complicada para os judeus na Europa. Em reao s restries, o povo judaico comeou a se unir em manifestaes contrrias presena britnica. Com o m da guerra, os horrores dos campos de concentrao foram amplamente divulgados, e os sionistas conquistaram a simpatia internacional para sua causa. O assassinato em massa de judeus no Holocausto levou os sobre- viventes judeus e os sionistas a perseguirem seu objetivo de formar um Estado com ainda mais urgncia, em busca da segurana de seu povo (PILATI; PIRES, 2008). Como consequncia, as tenses no territrio palestino se intensicaram. Apesar de ter sado vitoriosa da Segunda Guerra Mundial, a Gr-Bretanha sofreu enormes preju- zos humanos e materiais, que culminaram no declnio de seu poderoso Imprio Mundial. Confrontados com a necessidade de reconstruo de sua nao e com srios problemas econmicos e nanceiros, os britnicos no tinham mais condies de manter o Mandato na Palestina e controlar a situao que se agravava. Assim, em abril de 1947, o Reino Unido enviou uma carta ONU, na qual deixava clara sua pretenso de pr m ao Mandato e passava Organizao a tarefa de decidir o que fazer com o territrio palestino (SCHULZE, 2008). Desse modo, a ONU formou em 1947 o Comit Especial das Naes Unidas para a Palestina (UNS- COP do ingls United Nations Special Committee on Palestine). O Comit deveria elaborar um relatrio, fazendo recomendaes acerca da situao da Palestina, para ser apresentado na prxima sesso da As- sembleia Geral. Durante o vero de 1947, o UNSCOP foi regio para investigar a situao e recomendar a poltica a ser adotada, tendo por base entrevistas realizadas com rabes e judeus. O UNSCOP concluiu que as alegaes de ambos os lados eram vlidas, mas que seus objetivos eram inconciliveis. A nica soluo encontrada era a partilha da Palestina em dois Estados diferentes, para separar as comunidades em um Estado judeu e outro rabe (SCHULZE, 2008). 2.3. A CONFIGURAO TERRITORIAL DA PALESTINA Os dados apresentados a seguir so base para a denio do futuro da regio palestina, sendo informaes especcas que devem corroborar os trabalhos e o debatedos delegados durante as sesses. O mapa 1, abaixo, representa a distribuio da posse territorial entre judeus e outros rabes, incluindo terras pblicas, no ano de 1947. Em tons escuros as terras sob posse judaica. O mapa 2 repre- senta a distribuio populacional entre judeus e Palestinos por subdiviso do Mandato britnico. O azul representa a populao judaica; o vermelho, a palestina. O tamanho dos crculos diferencia o total popu- lacional, numa escala que vai de 0 a 200 mil, passando por 10 mil, 50 mil e 100 mil habitantes. 24 Poltica Fiscal o nome dado s aes do governodestinadas a ajustar seu nvel de gastos, assim monitorando e inuenciando a economia de um pas. Basicamente, a forma de articular uma poltica scal atravs da arrecadao efetiva de impostos, aplicando seus recursos da forma mais racional e ecaz possvel (SANTIAGO, 2011). 163 AGH 47 O mapa 3 apresenta os aquferos da regio, que so o Costeiro e o da Montanha, demarcados em azul esquerda e direita do mapa, respectivamente. As setas indicam em que sentido corre as guas subterrneas. Em azul claro est a chamada rea de recarga do aqufero, por onde penetra a gua para o subsolo. Em azul escuro, o Mar da Galileia ao Norte e o Mar Morto ao Sul. Esto tambm indicados os rios da regio. Esses recursos hdricos so essenciais para a atividade humana e so considerados estratgicos por todos os pases. Da indstria agricultura, do consumo humano ao animal, a gua fundamental para o desenvolvimento econmico em especial numa regio rida. O controle das nascentes de um rio, por exemplo, uma capacidade-chave que possibilita a um pas afetar a todos os outros por onde passar seu curso como no caso da construo de um desvio ou da implantao de uma hidreltrica. Por isso, no mundo inteiro, pases que dividem rios e aquferos fazem acordos sobre o uso das guas para que no haja o benefcio de um em benefcio de outro. A gura 7 traz em verde as reas com as terras mais frteis da Palestina. Destas, destaca-se o Vale do Jezeel ao Norte e a Plancie Costeira. Em marrom escuro tm-se as cadeias de montanha; em marrom claro, o Deserto de Negev. A sudeste encontra-se o Vale do Jordo. Figura 4: Mapa 1 - Posse de terra judaica na Palestina (1947) Figura 5: Mapa 2 - Distribuio populacio- nal por subdiviso territorial (1946) Fonte: Palestine Rembered Fonte: Palestinian Academic Society for the Study of International Relations (PASLA) 164 UFRGSMUNDI O mapa 5 traz o oleoduto Mosul-Haifa, tambm conhecido como Oleoduto do Mediterrneo, que atravessam a regio, levando o petrleo produzido no Iraque para exportao atravs da costa do Mar Mediterrneo. Na Palestina, o petrleo iraquiano 25 chega ao porto de Haifa aonde pode ser renado e/ ou exportado. Esta representa uma das maiores atividades econmicas da regio e o porto encontra-se, em 1947, sob domnio rabe. Outra atividade econmica de grande importncia para a regio a indstria de potssio, bene- ciada pelas maiores reservas mundiais deste componente qumico, s margens do Mar Morto. Seu uso ocorre, principalmente, na produo de adubos. Estas representaes grcas sero muito importantes para a elaborao de uma proposta para administrao da Palestina. Durante a Reunio da Assembleia Geral, importante que aspectos como dis- tribuio da populao, da gua e de terras agricultveis sejam levadas em considerao pelos senhores, com vistas a uma soluo justa para todas as partes. Alm disso, outros pontos devem ser destacados, como a importncia cultural e estratgica que determinada rea pode ter para os grupos e como evitar o desenrolar de um novo conito. 25 O petrleo produzido pela Iraq Petroleum Company, uma consrcio de empresas americanas, inglesas e francesas. Figura 6: Mapa 3 - Recursos de gua na Palestina Figura 7: Mapa 4 - Regies da Palestina Fonte: Blog do International Law Project Fonte: site do Ministrio das Relaes Exteriores de Israel 165 AGH 47 Figura 8: Mapa 5 - Oleoduto Mosul-Haifa Fonte: Elaborado pelos autores 2.4. AS DEMANDAS DAS PARTES 2.4.1. RABES A posio dos rabes possui forte inuncia de um iderio denominado Pan-Arabismo, que pro- pe a unio de todos os povos de origem arbica. Inicialmente, esta unio era pensada como a formao de uma grande Nao rabe, do Iraque ao Norte da frica. No entanto, os processos de independncia e formao de Estados autnomos na regio como Arbia Saudita, Sria, Jordnia e Lbano dicultou politicamente a viabilizao dessa idia. O Pan-Arabismo se renovou numa grande vontade popular e das lideranas polticas de aproximao e promoo da cooperao entre os pases rabes. Assim, em 1947, a nica parte no independente da regio o Mandato Britnico da Palestina. Por diversos motivos, a criao de um Estado judeu na Palestina signicaria uma grande derrota deste movimento. O Mandato Britnico faz a ligao entre o Norte da frica e Oriente Prximo e une, por terra, o Mediterrneo ao Mar Vermelho. Ou seja, estratgico para a integrao fsica e econmica dos povos rabes, alm de abarcar lugares sagrados para o Islamismo e ser, de longa data, ocupada por povos de origem rabe. Os povos da regio tiveram um papel importante na luta dos Aliados contra o Imprio Turco-O- tomano, que dominava a regio, durante a Primeira Grande Guerra. Lhes foi prometida pela Inglaterra a independncia e, assim, a demanda pela formao de um Estado rabe na Palestina no s a aplicao do princpio de autodeterminao dos povo, constante Carta das Naes Unidas, mas tambm uma compensao de guerra (CAMASMIE, 1948). As lideranas do Oriente Prximo propem a formao de um Estado independente e soberano, democrtico e comprometido com a liberdade religiosa das minorias. No excluem, assim, a existncia de comunidades judaicas num futuro Estado palestino, mas ope-se a qualquer forma de criao de um Estado judeu. Em sua maioria, criticam fortemente a posio das Grandes Potncias interessadas na Par- tilha, acusando-as de imporem seus interesses e lanarem um novo Acordo Sykes-Picot 26 (CAMASMIE, 1948).
2.4.2. JUDEUS O movimento Sionista prope h cerca de um sculo a criao de um Lar Nacional Judeu, onde membros da comunidade judaica atravs do globo possam se reunir sob uma ptria. Esse desejo advm, 26 Como explicado no histrico, o Tratado Sykes-Picot (l-se Saiks-Pic) foi rmado secretamente entre ingleses e franceses em 1916, determinando a diviso ps-Primeira Guerra Mundial do Oriente Mdio de acordo com seus inte- resses e administrao. 166 UFRGSMUNDI entre outros motivos, da constate perseguio sofrida por seguidores da religio atravs da histria, em especial na Europa. Alm das recentes e trgicas polticas de massivo extermnio de judeus pelos regimes nazifascistas, a perseguio aos judeus remonta s Cruzadas do sculo XI, s Inquisies da Pennsula Ibrica do sculo XV ao XIX, ao massacre por cossacos na Ucrnia no sculo XVII e aos pogroms contra judeus no Imprio Russo ao nal do XIX. A populao judaica formou, seguidamente, uma minoria apartada da populao em que estava inserida no exterior, tendo descriminados seus direitos polticos, religiosos, econmicos e etc. Fortale- ceu-se, assim, o movimento para a formao de um pas judeu onde seu povo no mais fosse subme- tido a tais perseguies. Os judeus se articulam atravs da Organizao Sionista Internacional e outros rgos, comprando terras e incentivando a imigrao regio onde se planeja a recriao do Reino de Israel (CAMASMIE, 1948, pag. 43-44). Com base na Declarao de Balfour, pretendem formar l seu Lar. Em 1942, em Nova Iorque, a Conferncia Biltmore, um Congresso Sionista Extraordinrio devido guerra, resultou numa declarao da comunidade judaica internacional com a inteno de que a Palesti- na se tornasse um Estado judeu. Rejeitavam o Livro Branco ingls de 1939, que impedia sua imigrao e a compra de terras na regio. A declarao produzida na Conferncia expressamente apoiava o desenvol- vimento econmico, agrrio e nacional dos vizinhos rabes, bem como a plena cooperao [do povo judeu] com os vizinhos rabes (EXTRAORDINARY ZIONIST CONFERENCE, 1942). 2.5. SITUAO ATUAL No momento em que a Inglaterra repassou o mandato da Palestina para as Naes Unidas, a din- mica regional j era bastante discrepante entre judeus e rabes. A Grande Revolta rabe (1936-1939) teve consequncias que fomentaram o desenvolvimento das comunidades judaicas no territrio palestino, ao mesmo tempo em que enfraqueceram a coeso rabe. Este fato decorre, entre outros pontos, da supe- rioridade adquirida pelos judeus em termos de organizao militar, institucional e econmica durante os anos de resistncia. Ao mesmo tempo, a publicao do Livro Branco pela Inglaterra fortaleceu a atuao de grupos sionistas na regio, momento em que o movimento rabe estava disperso e sem liderana. As divises dentro do territrio da Palestina se acentuaram com a Declarao de Balfour, que facilitou a imigrao e compra de terras pelos judeus, e tambm contribuiu para o processo de mar- ginalizao dos rabes. Deste modo como explicitado nos mapas acima , aos poucos ocorreu um movimento de apropriao territorial pelos judeus e um crescente movimento demogrco na regio. A Revolta rabe de 1936-1939 foi o ponto mais alto desse processo de afastamento entre judeus e rabes, porque, apesar do sofrimento causado a milhares de judeus, o conito fortaleceu o movimento sionista e sua luta por independncia. No seu decorrer os judeus buscaram desenvolver sua economia em separado da economia rabe, e pleitearam pela construo de um porto em Tel Aviv. Importa lembrar que o con- trole de meios de infraestrutura, como portos, um ponto essencial para a autonomia e desenvolvimento econmico de um grupo (KHALIDI, 2001). A revolta rabe tambm fez com que os britnicos dessem apoio milcia judaica Haganah 27 , enquanto o principal lder dos rabes palestinos, o Haj Amin Al-Husseini, foi obrigado a se exilar. A assis- tncia se deu atravs de armamentos e treinamento militar. Assim, em colaborao com as autoridades britnicas, muitos judeus tiveram sua primeira experincia militar. Em 1930, por exemplo, havia cerca de 6000 mil judeus participando como polcia auxiliar para deter os rebeldes, o que melhorou sua experin- cia, treinamento e organizao militar. O m da Revolta rabe trouxe problemas signicativos para os rabes palestinos. Perdeu-se cerca de 10% da populao adulta masculina, houve perda para os comerciantes e pequenos empresrios, e os britnicos tambm conscaram boa parte de seus armamentos, ao que foi realizada nos anos subse- quentes. Sobretudo, a expulso de diversos lderes rabes em 1937 e o controle do Conselho Muulmano pelos ociais britnicos reduziram a capacidade de organizao dos rabes diante dos judeus e das deci- ses inglesas a respeito do futuro da Palestina (KHALIDI, 2001). Durante o mandato britnico, judeus e rabes vivenciaram diversos momentos de tenso, em sua maioria violentos, como o Massacre de Hebron em 1929 e o atentado ao Hotel Rei Davi em 1946. Gru- pos extremistas como o Irgun pr-judeu e a Mo Negra pr-rabe atuaram no s uns contra os outros, mas tambm em confrontos com o prprio Governo britnico. Depois da proclamao do Livro Branco pela Inglaterra, a situao se tornou bastante catica, devido a uma onda de insurgncia judaica contra as medidas britnicas. O aumento da intensidade do conito ocorreu a partir de 1944, com as aes do grupo Irgun. A Haganah, que em princpio se opunha a estas aes, iniciou um perodo 27 A Haganah foi criada com o intuito de oferecer apoio aos imigrantes judeus na Palestina. Ela se destaca dentre as demais organizaes Sionistas, pois apresenta a Palmach, sua fora de elite e ncleo da organizao militar do movi- mento judaico na Palestina. 167 AGH 47 de cooperao com estas organizaes paramilitares, criando o Movimento de Resistncia Judaica, que se dissolveu um ano aps sua criao, depois do episdio do Hotel Rei Davi quando 91 pessoas foram mortas, em uma ao direcionada s autoridades britnicas. 3. POSICIONAMENTO DOS PASES
Os pases rabes (Arbia Saudita, Egito, Imen, Iraque, Lbano e Sria) formam uma frente po- ltica nica sob a coordenao da Liga rabe. A proposta fundamental desta organizao o estabele- cimento de uma soberania rabe independente. Isso se traduz no m imediato de qualquer forma de administrao estrangeira e na oposio formao de um Estado judeu na Palestina. A Arbia Saudita, como pas membro da Liga rabe, se mantm deliberadamente contra a cons- tituio de um Estado judeu no territrio da Palestina. No prembulo de sua carta fundadora, a ONU se comprometeu a combater povos e naes agressoras para, assim, estabelecer a paz mundial e garantir a segurana internacional (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1945). Baseados nesse argumento, os lderes sauditas defendem que as Naes Unidas trabalhem no sentido de proteger o povo palestino das intenes vistas como tirnicas dos judeus (ASSEMBLEIA GERAL DAS NAES UNIDAS, 1947b). Seus discursos tendem a apelar pelo resguardo da justia e do direito internacional acima de quaisquer outros princpios. O Afeganisto mantm uma postura semelhante dos demais pases rabes durante o debate. Para esse grupo de pases, os anseios judeus no Oriente Mdio so agressivos e ameaam no somente a sobrevivncia dos povos dessa regio como tambm a segurana do sistema internacional (AG, 1947b). O representante afego tende a apelar para os princpios da Carta da ONU para embasar sua oposio proposta de fundao de um Estado judeu na Palestina, buscando assim garantir a proteo dos palesti- nos e a integridade de seu territrio. A frica do Sul, que h pouco se tornou independente do Reino Unido, passando a fazer parte da Commonwealth britnica (a comunidade de naes que faziam parte do imprio britnico), dissociou-se completamente da posio de sua ex-metrpole e se posiciona a favor da partilha da Palestina em um Estado rabe e um Estado Judeu, com unio econmica, expressando sua posio durante as votaes do UNSCOP (GOMES, 2001). A Argentina tende a se manter neutra durante o debate. Graas ao seu relativo distanciamento do conito em questo, o pas sul-americano concentra seu discurso na promoo da paz mundial e da se- gurana na comunidade internacional, reforando os valores da carta da Organizao das Naes Unidas, sem interferir de forma incisiva na resoluo do tpico debatido (AG, 1947e). Acredita-se que o represen- tante argentino destacar a importncia histrica da reunio e a responsabilidade depositada nas mos dos ociais ali presentes, enfatizando a importncia da tomada de uma deciso consciente e equilibrada. Assim como o Canad e os Estados Unidos, a Comunidade da Austrlia adota uma postura ctica quanto a uma possvel reconciliao. Da mesma maneira que outras ex-colnias britnicas, o pas defen- de o m do Mandato Britnico e a independncia, assim que possvel, da Palestina. A Austrlia favorvel criao dos dois Estados a partir da partilha da Palestina; embora, assim como o Canad, acredite que essa no a melhor opo a ser adotada, os australianos a veem como a soluo mais cabvel para o momento, devido s enormes tenses regionais (AG, 1947c, 1947e). A Repblica Federativa do Brasil est entre os defensores da partilha; contudo, acredita que essa deve ser apenas uma medida temporria, que s deve ser tomada porque seria impossvel instaurar um governo nico em um pas envolvido em tamanha tenso interna. O pas defende fortemente a preserva- o da unidade poltica da regio, e diz ser esse o objetivo a ser buscado (AG, 1947a). Assim como o Brasil, o Reino da Blgica diz ter certeza de que a questo da Palestina a deciso mais difcil enfrentada pelas Naes Unidas at ento, por envolver mudanas substanciais na congu- rao poltica da regio e abarcar interesses conitantes. O povo belga entende o movimento sionista visto sua relao com seus cidados judeus , mas, analisando os dois lados da situao, percebe que ambos os povos esto em busca de ideais fortemente justicveis, no conseguindo armar quem tem mais direito a terra. A Blgica diz no ter certeza se a partilha da Palestina a medida mais justa a ser tomada, mas defende essa posio por temer que, caso ela no seja instaurada, nada mais seja feito para solucionar a disputa (AG, 1947b). 168 UFRGSMUNDI O Canad, favorvel partilha do pas, tambm muito ctico ao tratar de uma possvel reconci- liao entre os povos palestinos. Para eles, se o Reino Unido, que buscou a unio entre rabes e judeus durante dcadas, no conseguiu concretiz-la, no ser um plano adotado na Assembleia, seja ele qual for, que far isso acontecer. O pas defende que a questo palestina de responsabilidade internacional, e que todos os pases deveriam ajudar a encontrar uma soluo cabvel para o problema (AG, 1947a). A China, desde o incio das discusses sobre a questo da Palestina na ONU, vem defendendo que uma soluo vivel para a situao s pode ser alcanada atravs do consenso e cooperao das partes envolvidas.A China coloca os interesses dos habitantes da Palestina em uma posio de extrema impor- tncia para a tomada de decises, e acredita que todos os fatores que culminaram na presente situao devam ser levados em conta. A China busca conciliar interesses rabes e judeus, de maneira a garantir a paz na Palestina (AG, 1947c) A Repblica de Cuba se mostra contrria partilha da Palestina em dois Estados. Os cubanos, apesar de preocupadas com os interesses judaicos, posicionam-se dessa maneira por acreditarem que a partilha no uma forma justa de resoluo do conito; para eles, existem muitos interesses rabes que tambm merecem ser considerados. Alm disso, demonstram dvidas sobre a legalidade da partilha e consideram a possibilidade de ela ser injusta, j que os rabes ocupam o territrio palestino h vrios sculos. Cuba, por j ter sofrido a ameaa de perder parte de seu territrio, tende a colocar-se no lugar do povo rabe, no sendo capaz de se posicionar a favor de algo que um dia ela tanto temeu (AG, 1947c). A Repblica rabe Unida do Egito defende que o problema da Palestina foi articialmente criado pelo movimento sionista, que estimulou a imigrao para a regio e hoje quer formar um Estado. , por tanto, contrrio a planos de partilha. No entanto, assim como o Lbano, advoga por um forte compromis- sos com a proteo das minorias, garantindo um ambiente seguro para os judeus que se encontrarem no novo Estado rabe (AG, 1947k) Os Estados Unidos da Amrica se mostram favorveis criao de dois Estados, um rabe e um judeu. Para esse pas, a independncia da Palestina deve ser realizada assim que possvel, e os locais sa- grados devem ser reconhecidos e protegidos. Os norte-americanos acreditam que no se deve perder tempo discutindo quem tem as melhores razes e o maior direito s terras. Para eles, certo que nunca se chegar a um acordo que agrade a ambas as partes simultaneamente; a partilha se coloca, assim, como a nica forma possvel de soluo, no momento, de um conito de tamanho choque de interesses (AG, 1947a). A Etipia, um dos poucos pases africanos a participar da Organizao das Naes Unidas, acredita que uma proposta de diviso da Palestina no apresenta uma proteo adequada aos interesses de rabes e judeus, defendendo a opinio de que a resposta para o problema no se encontra em uma partilha ba- seada na religio (AG, 1947d). Contudo, a Etipia busca no se opor ao desejo da maioria, adotando uma posio neutra. Os etopes tm relaes estreitas tanto com povos judeus em virtude dos Beta Israel ou Falashas, os judeus negros que habitam o pas, e contnua troca de bens e servios entre os etopes e os habitantes dos assentamentos judeus da Palestina e com os pases rabes, que cercam seu territrio (CAROL, 2012). Sua tendncia encontrar uma soluo que seja aceitvel para ambos os lados da disputa. A Frana encontra-se dividida. Ao mesmo tempo em que o pas o abrigo europeu de uma quan- tidade expressiva de rabes e compartilha com esse povo uma forte conexo cultural, os franceses as- sistiram de perto a perseguio e o assassinato de milhes de judeus durante o holocausto na primeira metade do sculo XX e carregam, assim como outras naes europeias, um sentimento de culpa que a fora motriz do apoio fundao de um Estado nacional judeu (AG, 1947c). Assim, espera-se que o representante francs defenda a procura de pontos em comum entre as exigncias rabes e judaicas, de forma a possibilitar a coexistncia pacca desses povos na mesma regio. O Imen defensor da criao de um Estado rabe na regio da Palestina. O governo iemenita entende que a criao de uma nao judaica signicaria a cesso do territrio a um poder estrangeiro e seria, ento, ilegal. De qualquer forma, entendem que a partilha no est de acordo com os princpios das Naes Unidas (AG, 1947k). A ndia foi um dos trs pases membros do UNSCOP que apresentou a proposta de um Estado uni- trio dividido em uma provncia rabe e outra judaica, tendo em vista o territrio limitado, a necessidade de manuteno da integridade econmica e social da Palestina e o princpio de que tanto judeus quanto rabes tem relaes profundas com a regio e so responsveis por seu desenvolvimento. Segundo a delegao indiana, uma soluo que no divide o territrio uniria as aspiraes nacionais e interesses dos dois povos, alm de ser um passo importante em direo cooperao entre rabes e judeus e entre a nova nao e os pases vizinhos. A ndia busca, sobretudo, uma soluo que evite segregaes raciais e religiosas entre a populao (AG, 1947i). 169 AGH 47 O Estado Imperial do Ir defende a plena autodeterminao da Palestina. O governo iraniano cr que a populao palestina deve ser consultada e ela decidir qual deve ser sua forma de governo, sua religio ocial etc. Cabe a ONU, cr a Prsia, assegurar a independncia da Palestina, sendo possvel im- plantar solues temporrias, como uma Federao provisria at a denio do novo status palestino (AG, 1947k) O Iraque favorvel a emancipao da Palestina como Estado rabe pela presena histrica na regio. Defendem que o destino da regio deve ser democraticamente decidido pela consulta vontade dos locais, no verdadeiro esprito da autodeterminao (AG, 1947h). Grande detentor de reservas de pe- trleo, inclusive exportando-o via oleodutos para a Palestina, para o Reino do Iraque a questo estrat- gica. Sua relao com as potncias ocidentais, nesse aspecto, de interdependncia, mas de oposio de posies quanto a soluo para a questo. O Lbano, embora se alinhe aos pases rabes, mantm uma postura mais favorvel a formao de um estado laico e no ligado a nenhum grupo tnico. Dos membros da Liga rabe, o pas mais diferente, sendo uma repblica de maioria crist. Apoiam a formao de um Estado democrtico que se compro- meta com a proteo de todas as minorias, assim como este o (AG, 1947g). A Repblica da Libria se mostrou inicialmente em dvida quanto capacidade e legitimidade da ONU para determinar a partilha. Alm disso, defendeu a imigrao dos judeus para os territrios dos membros das Naes Unidas como soluo alternativa para o destino do grande uxo de refugiados ju- deus do ps-guerra. Como nenhuma dessas duas questes foi abordada durante as reunies do UNSCOP, o pas resolveu abster-se na votao. A Libria tem sido alvo de fortes presses dos Estados Unidos para que a diviso da Palestina seja aprovada e, como os liberianos possuem laos histricos com os EUA e dependem da ajuda nanceira norte-americana, provvel que o pas mude sua posio para se colocar a favor da partilha (GOMES, 2001). O Reino da Noruega a favor da partilha da Palestina em dois Estados, um judeu e outro rabe. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Noruega foi controlada pelas foras nazistas e diversos judeus fo- ram vtimas das polticas segregacionistas por eles aplicadas. Diante disso, este pas acredita que dever da comunidade internacional resolver o problema enfrentado pelos judeus na atualidade. A Noruega tambm faz parte do Plano Marshall e costuma apoiar as decises tomadas pelos EUA. No que diz respei- to Jerusalm, o Governo Noruegus concorda que a cidade seja administrada internacionalmente, ao invs de pertencer a um nico Estado (CAMASMIE, 1948; AG, 1947e). O Reino da Sucia considerado um pas neutro em termos de poltica internacional, o que per- mitiu que durante a Segunda Guerra Mundial milhares de judeus se abrigassem neste territrio, fugindo das aes tomadas pelas foras nazistas. O Governo Sueco a favor da partilha da Palestina e defende o direito judeu autodeterminao. Foi um juiz sueco que presidiu a UNSCOP, e desde ento este pas tem apoiado a criao de dois Estados na Palestina, alm do estabelecimento de uma unio econmica entre ambos e do reconhecimento de Jerusalm como cidade internacional (CAMASMIE, 1948; AG, 1947f). Os Pases Baixos se mostram favorveis partilha da Palestina em dois Estados, mas costumam se abster das votaes. Atualmente, os Pases Baixos esto bastante preocupados com a independncia da Indonsia, pas com maioria muulmana, e no do interesse deste pas concordar com qualquer deciso que venha a prejudicar seu relacionamento com um pas muulmano. Durante as discusses, este pas deve apoiar o estabelecimento de uma unio econmica entre o pas judeu e o rabe, e colaborar com os EUA, devido ao Plano Marshall (CAMASMIE, 1948; AG, 1947f). O Paquisto um forte apoiador da causa rabe. Sua histria guarda semelhanas com o debate sobre a Palestina: foi criado a partir da separao da antiga colnia britnica em ndia e Paquisto, este ltimo um pas muulmano. Defende o direto autodeterminao dos rabes e preocupa-se com a pos- sibilidade de uma onda de separatismos aps a criao de um Estado judeu. Alm disso, entende como direito natural o dos rabes de deterem uma nao prpria (AG, 1947h) O Reino Unido um dos pases mais importantes na discusso a respeito da partilha da Palestina, que esteve sob seu controle por muitos anos. Diante das diculdades do ps-guerra, tornou-se difcil para o Reino Unido manter sua presena na regio, principalmente com a escalada do conito entre judeus e palestinos e com a presso exercida pela sociedade britnica. Apesar de ser de interesse ingls criar dois Estados, o Reino Unido no quer se comprometer com um dos lados e criar problemas diplo- mticos com o outro. Assim sendo, este pas deve analisar a possibilidade de se manter neutro na votao, apesar de apoiar a criao de dois Estados autnomos (CAMASMIE,1948; AG, 1947f). A Sria um pas fronteirio ao Mandato britnico da Palestina, membro da Liga rabe, e por isso altamente interessado na debate. Sua posio de total oposio criao de um Estado judeu na regio, por ausncia de uma base legal para que a ONU seja capaz disso, bem como por entender que a existn- 170 UFRGSMUNDI cia de uma identicao religiosa no ser legitimadora da criao de um Estado prprio. O governo srio condena a ao das potncia com interesse em dividir a regio para se fazerem presentes ali (AG, 1947j) A Turquia, por sua vez, possui uma relao delicada com o tema. Segundo Fernandes (2010), apesar de, durante a Segunda Guerra Mundial, ter recebido milhares de refugiados judeus que fugiam da campanha nazista na Europa, o pas muulmano tambm viu a emergncia de movimentos antissemitas em seu territrio nas primeiras dcadas do sculo XX. Grupos conservadores que assumiram o controle poltico turco nesse perodo chegaram at mesmo a instituir leis que ameaavam os direitos civis dos ju- deus na nao, classicando-os como inferiores aos turcos muulmanos e os impedindo de se comunicar em suas prprias lnguas. Portanto, espera-se do representante turco uma posio que leve em conta es- ses dois aspectos de seu pas, balanceando a receptividade turca aos judeus durante o holocausto, o que demonstraria apoio da Turquia a causa judaica, com a rejeio interna e discriminao que esses sofreram dentro das fronteiras da Turquia, denunciando possvel oposio dos turcos aos judeus. A Repblica Popular da Polnia acredita que a nica opo capaz de resolver a situao na Pa- lestina sua diviso em dois Estados. A Polnia faz parte do eixo de inuncia sovitica e deve apoiar as decises que a Unio Sovitica tomar nesta reunio, que devem ser favorveis criao de um Estado Judeu. Alm disso, a Polnia tambm concorda que o estabelecimento de uma unio econmica entre os Estados Judeu e Palestino possa ser a melhor opo para manter a paz e a segurana aps a partilha (CAMASMIE, 1948). A Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS) considera claro que o problema da Pales- tina deve ser solucionado tendo em vista os propsitos e princpios da ONU de manuteno da paz e se- gurana internacionais. Partindo do princpio de que tanto rabes quanto judeus habitantes da Palestina representam um papel importante na economia e na cultura do pas e tm demandas legtimas, a URSS acredita que a melhor soluo para a disputa seria o estabelecimento de um Estado rabe-judeu unitrio, dual e democrtico (AG, 1947m). Todavia, frente aos resultados apresentados pelo UNSCOP, os soviticos chegaram concluso de que ambos os povos no desejam viver em conjunto; a nica soluo vivel para esse contexto seria, portanto, a criao de dois Estados, um rabe e outro judeu, como maneira de salvaguardar o interesse de ambas as populaes e garantir o princpio de autodeterminao dos povos e a paz (AG, 1947b). A Repblica Socialista Sovitica da Ucrnia tem uma relao muito prxima com a Unio Sovi- tica, mas considerada um Estado autnomo. Neste sentido, durante esta reunio da Assembleia Geral, pode se esperar que a Ucrnia vote de acordo com o voto da Unio Sovitica, isto , favorvel partilha da Palestina em dois Estados soberanos (CAMASMIE, 1948). Espera-se que o Uruguai, graas parcial neutralidade e distanciamento em relao ao tema em questo e tambm sua tradicional linha de defesa da paz mundial, promova uma viso equilibrada que leve em conta tanto o histrico de perseguio dos judeus e o holocausto quanto a delicada situao dos palestinos em seu prprio territrio. O representante uruguaio, durante os debates, deve defender a criao de dois Estados nacionais independentes na regio da Palestina como meio de garantir os direitos humanos e civis de ambos os povos e possibilitar o futuro pacco do Oriente Mdio (AG, 1947b). REFERNCIAS CAMASMIE, Jorge. Partilha da Palestina em Estados rabe e Judeu. Rio de Janeiro, 1948. CAROL, S. From Jerusalem to the Lion of Judah and Beyond. Universe: Bloomington, 2012. O Caso Dreyfuss. Morasha, Edio 54, setembro de 2006. Disponvel em: <http://www.morasha.com.br/con- teudo/artigos/artigos_view.asp?a=638&p=0> Acesso em: 03 abr 2014. 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Judeus imigravam em massa para a Pa- lestina, fugindo das perseguies sofridas na Europa e em direo ao local que acreditavam ter o direito divino de habitar. Os impasses resultantes pela posse da Palestina deram incio a escalada do conito entre rabes e judeus. A Gr-Bretanha, apesar de ter sado vitoriosa da II Guerra Mundial, sofreu enormes prejuzos humanos e materiais, no tendo mais condies de manter o Mandato da Liga das Naes sobre a Palestina e de controlar as tenses que se intensicavam na regio. Foi a partir desse momento que, depois de diversas tentativas mal sucedidas de dar uma soluo ao conito, os britnicos decidem transferir o problema da Palestina para a ONU. Assim, em novembro de 1947, os pases se renem na sede provisria da Assembleia Geral das Naes Unidas em Flushing Meadows, Nova Iorque, para determinar uma soluo para a Questo Palestina, que havia atingido um ponto insustentvel. 173 AC AGNCIA DE COMUNICAO Jade Knorre 1
Paula Moizes 2
Sarita Reed 3
Vinicius Fontana 4
INTRODUO Na cobertura de um acontecimento, o jornalista quem rene as informaes mais importantes a m de apresent-las ao pblico em forma de notcia. Desse modo, este trabalho pretende guiar o sujeito no campo do jornalismo, mostrando parte do universo da prosso, assim como alguns de seus veculos. Considerando que se constitui em um ofcio que se aperfeioa no s com a teoria, mas tambm com o exerccio do dia-a-dia, os textos aqui apresentados servem de base para pr em prtica as habilidades jornalsticas. O aluno ser introduzido primeiramente ao universo do jornalismo, mostrando-se o papel do jor- nalista na sociedade e alguns elementos bsicos da prosso. As sees seguintes apresentam os veculos que sero colocados em prtica na simulao das Naes Unidas: jornalismo impresso, radiojornalismo, fotojornalismo e webjornalismo. 1. A PROFISSO O jornalismo uma forma de comunicao, til, em sociedade. Todos os acontecimentos mun- diais e opinies que eles estimulam constituem o material bsico para o jornalismo. partir disso que o jornalista ir interpretar os fatos e inform-los para a sociedade. O papel de informar (BOND, 1959) do jornalista consiste em noticiar sobre todos os acontecimentos, questes teis e problemticas social- mente relevantes. A informao deve ser exata e, na medida do possvel, imparcial. O ideal de imparcialidade alcanado pelo jornalista que quer evitar erros, tendenciosidade, pre- conceitos e sensacionalismo. A prtica da imparcialidade talvez nunca seja plenamente alcanada por conta de uma srie de fatores, mas ela deve ser buscada. Os jornalistas tardaram a descobrir que as no- tcias nunca poderiam ser objetivas, ou seja, o espelho da realidade. A objetividade pode ser uma meta, mas no uma meta alcanvel. Grande parte dos jornalistas busca ser o espelho da realidade descrevendo fatos vericveis e vericados, citando fontes credveis e contrastando fontes (SOUZA, 2005: 36). O jornalismo uma prosso atrativa. Os mitos por trs da prosso, a sua imagem pblica, entre outros fatores fazem do jornalismo uma prosso cobiada. Porm, ser um bom jornalista difcil. A prosso exige grandes capacidades prossionais, assim como muito conhecimento e uma boa cultura geral. Ateno atualidade, domnio dos assuntos, compromissos ticos, capacidade de relacionamento interpessoal, capacidade de comunicao na lngua materna e em lnguas estrangeiras e aptido na ob- teno de informao correta so apenas algumas das habilidades enumeradas por Souza (2005) que um bom jornalista deve ter. Para muitos, o jornalismo no apenas uma prosso, mas um estilo de vida, por exigir tanto do prossional. 1 Estudante de Comunicao Social habilitao Jornalismo, 5 semestre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2 Estudante de Comunicao Social habilitao Jornalismo, 5 semestre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul 3 Estudante de Comunicao Social habilitao Jornalismo, 8 semestre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul 4 Estudante de ps-graduao em Jornalismo Esportivo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.173-186 174 UFRGSMUNDI As qualidades de um bom jornalista no cam por aqui. Um bom jornalista deve ser curioso, persistente, imaginativo e ousado. Deve estar disposto a desaar estereti- pos, expor mitos e mentiras (SOUZA, 2005: 29). A m de transmitir uma informao precisa e independente, o jornalismo precisa de liberdade por parte do Estado e da prpria empresa jornalstica. Segundo Bond (1959: 2), uma imprensa livre no pode estar sujeita a qualquer presso, seja ela governamental ou social. Assim, o jornalista com liberdade de expresso capaz de redigir um texto livre de presses externas e o mais prximo da realidade. Publicando uma matria imparcial, o jornalista estar exercendo a sua funo de orientar (BOND, 1959). Nossa sociedade est cada vez mais complexa, assim, um assunto pode se desdobrar em vrios. Desse modo, o cidado precisa ser guiado atravs do emaranhado de informaes que o rodeiam. papel do jornalista fazer com que chegue ao pblico no s a notcia, mas tambm explicaes, interpretaes e contextualizaes orientados no sentido de ajudar o indivduo a compreender melhor o que l ou ouve (BOND, 1959). Souza (2005) aponta outro signicado para o conceito informar no jornalismo. Ele assinala que a principal funo do jornalismo, inserida dentro do conceito de informar, a vigilncia e o controle dos poderes. Um jornalista deve publicar as aes dos agentes de poder, assim como analisar essas aes, expor o contexto em que se praticam e explicar as suas consequncias possveis. Desse modo, signica igualmente trazer para o espao pblico os assuntos socialmente relevantes que poderiam passar des- percebidos (SOUZA, 2005: 11). Alm isso, o jornalismo tambm se dedica a entreter o pblico. O jornal, o rdio e a televiso bus- cam atravs do entretenimento atrair os leitores, ouvintes e telespectadores. O pblico precisa de uma distrao para suportar os efeitos desestabilizantes desta abertura ao mundo (WOLTON, 2007) que o jornalismo proporciona. Logo, a soluo para sg-lo consiste em lev-lo a programas de qualidade a partir dessa necessidade da banalidade. A diversidade que o jornalismo apresenta a prpria condio para que o mesmo desempenhe seu papel de abertura ao mundo. A variedade tambm est presente no jornalismo nas aptides que ele engloba. Uma grande diver- sidade de pessoas, com as mais diferentes competncias, atrada para a prosso do jornalismo, pois ela faz uso dessa diversidade de talentos. O jornalismo, como um todo, uma modalidade de comunicao social rica e diversicada (SOUZA, 2005: 12). Em sua extenso, o jornalismo no compreende apenas os campos do jornal e da revista, como tambm do rdio, da televiso, da revista especializada, do jornal comercial, entre outros. O jornalismo que se faz na imprensa regional e local diferente do que se faz nos grandes jornais e revistas. O jornalismo esportivo diferente do internacional, assim como o jornalismo alemo diferente do jornalismo brasileiro. So diferenas que fazem os jornalismos diferentes entre si, no contedo, na forma de contar as histrias e de debater as problemticas (SOUZA, 2005). 2. ELEMENTOS BSICOS 2.1. PAUTA A pauta um projeto de cobertura de um acontecimento. o exerccio mais importante que todo aspirante a jornalista deve fazer, segundo Pinto (2009: 59). Para sugerir uma pauta, necessrio seguir etapas. Primeiro, deve-se examinar se o acontecimento escolhido uma notcia (ver seo Valores-not- cia). Em seguida, o jornalista deve hierarquizar as informaes de sua pauta, determinando qual ser o as- sunto principal a ser tratado. O prossional precisa tambm prever as etapas da apurao, de forma com que sejam listadas todas as fontes possveis (ver seo abaixo) que sero usadas na notcia. Por ltimo, necessrio que se antecipe ao mximo a edio do material, [...] imaginar como ser a reportagem, que ttulo ela ter, se h boas imagens para acompanh-la, etc (PINTO, 2009: 59). 2.2. FONTES DE INFORMAO Qualquer entidade que possua dados suscetveis de serem usados pelo jornalista na sua prosso pode ser considerada uma fonte de informao. Essas fontes podem ser classicadas de acordo com sua provenincia (internas ao rgo informativo, externas e mistas) ou de acordo com seu estatuto (ociais 175 AC estatais, ociais no estatais, ociosas e informais). Podem ser fontes pessoas, livros, documentos, en- tre outras, mas o principal meio de obteno de informao so as entrevistas pessoais. Visto a enorme quantidade de fontes possveis, dever do jornalista selecionar as melhores. As fontes humanas devem ser escolhidas pela sua qualicao para falar sobre algum assunto, pela sua competncia e credibilidade, pela oportunidade e pertinncia do contato e, obviamente, pela sua disponibilidade para falarem com o jornalista (SOUZA, 2005: 49). Quando se trata de um assunto que apresenta muitas variveis, as fontes devem sempre ser con- trastadas. A relao dessas fontes com o jornalista de negociao, na maioria das vezes. O entrevistado tenta divulgar o que lhe interessa e omitir o que no lhe interessa. O jornalista competente busca fugir dos signicados iniciais que a fonte d a um acontecimento, mas, acima de tudo, o prossional deve saber aproveitar as informaes que a fonte lhe d e as pistas para encontrar novas informaes que a fonte lhe sugere (SOUZA, 2005: 51). Alm disso, o jornalista deve respeitar, quando possvel, o pedido que algumas fontes podem fazer de no serem identicadas e at mesmo de no divulgar o que lhe foi dito. 2.3. VALORES-NOTCIA H dois sentidos para o que notcia. Em seu sentido amplo, ou lato sensu, a notcia seria o ma- terial de trabalho do jornalista no geral. Segundo Traquina (2005), difcil denir fora de seu contexto histrico que tipo de acontecimento possui valor para o jornalista, porm, ele estabelece alguns funda- mentos do que seria objeto de uma notcia. Se h algum dos seguintes requisitos, o acontecimento possui potencial para ser objeto de uma cobertura por parte da imprensa. o que ele chama de valores-notcia. Resumidamente, so os seguintes: Notoriedade: noticia-se algo sobre uma pessoa ou rgo de grande importncia social. Ex: presidentes, cientistas, autoridades ociais, times de futebol, universidades. Relevncia: so fatos que possuem importncia direta na vida das pessoas. Ex: aumento das passagens de nibus, novos direitos. Notabilidade: algo grande em si, fcil de ser percebido por todos. Ex: manifestaes pblicas, acidentes de grandes propores, grandes espetculos. Inesperado: quando determinada coisa foge do padro. Ex: ataques terroristas, falecimento de alguma celebridade jovem. Conito: quando h violncia fsica ou simblica, disputas. Ex: troca de ofensas entre autori- dades, brigas em estdios de futebol. Infrao: alguma infrao lei. Ex: desvio de dinheiro, condutas repreensveis no trnsito. A escolha dos assuntos que sero abordados por um jornal segue critrios como estes, chamados por alguns autores de critrios de noticiabilidade. Souza (2005) ainda cita outros valores-notcia, como proximidade, momento do acontecimento, continuidade e at negatividade. H muitas listas de valores- -notcia, mas todas elas tm utilidade na construo da agenda do jornal. Segundo Benetti (2008), o discurso jornalstico possui cinco elementos a serem considerados: quem diz e para quem?, para que dizer?, o que dito?, em quais condies? e a forma de dizer. Quando o jornalista produz algo, seja para a televiso, para o rdio, para a internet ou jornal impresso, o prossional deve ter em conta a responsabilidade que possui ao veicular algo. Ele deve levar em con- siderao os valores-notcia, porm no pode levar algo ao extremo. O jornalismo deve trabalhar para sociedade, para a melhoria dela como um todo, no devendo favorecer particulares ou a si mesmo. Ao prossional urge ter em mente que a informao deve ter relevncia social, no podendo ser dada a todo custo, respeitando a privacidade alheia, o sigilo de suas fontes e, principalmente, o seu pblico, no im- pelindo-o constrangimentos e difundindo inverdades. Dito isso, tem-se a base para discutir o concreto, o material jornalstico em si. Basicamente, h trs grandes gneros jornalsticos por excelncia: a notcia, a reportagem e a entrevista. 2.4. NOTCIA A notcia, em seu sentido textual, geralmente um texto curto, que visa informao precisa e mais instantnea possvel. Aquele fato narrado quase em cima da hora pelo rdio, a matria que veicu- 176 UFRGSMUNDI lada pelos portais de notcia instantaneamente, o jornal na televiso, todos so exemplos de notcias. Ela deve possuir o carter de imediatismo, sendo que o tempo a ser transcorrido entre o fato e a publicao deve ser o menor possvel, sob pena de que todos j saibam o que aconteceu e a matria deixe de ser interessante. Os veculos jornalsticos, ao longo do tempo, criaram rotinas para prever o imprevisto e o ines- perado. Segundo Traquina (2005), o jornalista deve estar atento para os movimentos inslitos, estando preparado para agir perante a mais adversa das situaes. 2.5. REPORTAGEM Traquina (2005, p. 47) aponta que, para prender um tipo de ateno que demanda tempo e von- tade de ler, no apenas de se informar, a reportagem necessita de a) realismo grco; b) criao de am- bientes, com a utilizao de palavras concretas e a descrio detalhada para transmitir a sensao de que se est ali; e c) a utilizao de metforas, [] teis para a dramatizao do acontecimento. 2.6. ENTREVISTA A entrevista considerada um gnero jornalstico apenas quando publicada isoladamente ou como parte importante de um texto. A entrevista, como gnero, deve ser distinguida da entrevista en- quanto tcnica de obteno de informaes. Esse modelo consiste em expor as respostas dadas por um entrevistado s perguntas de um entrevistador, segundo Souza (2005, p. 172). 3. JORNALISMO IMPRESSO 3.1. HISTRICO A imprensa surge na Europa nos ns da Idade Mdia. O panorama sociocultural da Europa feudal era, segundo Marques de Melo (2003, p. 35), (...) do mais sombrio isolamento rural, onde a ignorncia predominava entre servos e proprietrios. As produes culturais, a leitura e a escrita connaram-se aos bispados, abadias e mosteiros. No sculo XI originam-se as feiras, que consolidam a emergncia de um novo grupo social nas cidades. O comerciante passa, ento, a querer melhorar sua produo e a qualida- de de seu produto, procurando desenvolver-se intelectualmente, buscando assim, formas de ampliar sua atividade mercantil. Para que os jovens pudessem aprender sobre o comrcio emergente, foram criadas as escolas leigas por ricos comerciantes. O comrcio traz a necessidade da comunicao escrita e surge uma classe letrada independente da Igreja. A criao das primeiras universidades que vai consolidar a formao dessa nova elite intelec- tual europeia. Segundo Marques de Melo (2003, p. 40), [...] a efervescncia cultural que estimula essas entidades, acentuaria a produo de livros manuscritos [...]. A produo de livros manuscritos tambm cresce na medida em que se fortica o Renascimento italiano. A procura de livros era tamanha que os copistas no davam conta de todos os pedidos. Surge ento um comrcio editorial. A necessidade da imprensa comea a emergir, tambm. O preo do livro manuscrito elevado, e a imprensa torna-se uma necessidade social na Europa. Ela vem para atender a inmeras necessidades: satisfazer as universidades e movimentos renascentistas, atividades da nascente burguesia, organizaes administrativas e Igreja. A informao como necessidade das atividades trazidas pela urbanizao gera a imprensa peridica. A introduo da imprensa na colnia portuguesa acontece s em 1808, com a vinda famlia real e a criao de academias, bibliotecas, instituies cientcas, entre outras atividades culturais. O atraso dessa implementao da imprensa no Brasil se d por diversos fatores. Um deles que a natureza feito- rial da atividade desenvolvida pelos portugueses leva em considerao apenas os interesses comerciais, deixando de lado o desenvolvimento e aperfeioamento da colnia. No havia ambiente propcio para o desenvolvimento de escolas, bibliotecas, universidades e a imprensa. A predominncia do analfabetismo tambm ajudou para o atraso da implantao da imprensa no Brasil. No existia um pblico que tinha in- teresse em livros, assim, no existia a necessidade social de uma imprensa. A predominncia da vida rural no Brasil colnia, precariedade da burocracia estatal, um mercado interno fraco e o reexo da censura e do obscurantismo portugus no Brasil tambm levaram ao surgimento da imprensa no pas s em 1808. 177 AC A primeira fase autntica da imprensa brasileira surge com a necessidade da imprensa para mo- bilizar a opinio da populao brasileira em favor da Independncia e contra a dominao lusa (SODR, 1983). Um tipo de peridico caracterstico da imprensa ps-Independncia o pasquim. Ele interessava o pblico popular e reetia o ambiente agitado da poca. A imprensa no II Imprio dividida por Sodr (1983) em trs fases: conciliao, agitao e refor- mas. Na fase de conciliao (1840), a imprensa se aproxima com a literatura, com a publicao de roman- ces e folhetins nos jornais. Na fase da agitao, ocorre a retomada do debate poltico, nas campanhas de abolio e Repblica. Em 1870, na fase das reformas, acontecem avanos tecnolgicos, como a criao do telgrafo e do telefone. nesse perodo em que as primeiras agncias internacionais de notcias sur- gem no pas. No perodo da Repblica a imprensa adquire um carter comercial. O processo de urbanizao e crescimento dos centros urbanos favorece a circulao de informaes. Nesse perodo de transfor- maes, a imprensa conheceu mltiplos processos de inovao tecnolgica que permitiram o uso da ilustrao. A qualidade da impresso tambm melhora. A imprensa comea a se tornar uma grande em- presa, com o crescimento da prossionalizao nas imprensas. O contedo dos jornais comea a mudar, aparecendo os artigos, crnicas, entrevista e reportagens. S em 1970, o jornalismo da Indstria Cultural consolida-se no Brasil 5 . A produo cultural da poca ca sob o estreito controle do Estado. Para incentivar o conglomerado empresarial da Indstria Cultural, o regime cria instituies. Uma colaborao efetiva do regime militar na expanso dos grupos privados observada. Consolidam-se organizaes como Globo, Abril, Folha e Estado. neste perodo em que a empresa jornalstica passa a ter predomnio sobre o jornal, e seu contedo ca subordinado lgica empresarial. Assim, a notcia passa a ser mercadoria. 3.2. O ESTILO O jornalismo impresso impe o domnio da lngua e da sua gramtica, assim como algumas tcni- cas de redao. Dominar a lngua escrita imprescindvel para um redator. Para isso, necessrio que se pratique a escrita e leia muito. Apesar disso, saber escrever no o bastante. preciso que o texto sgue o leitor, mas sem deixar de lado o principal objetivo: manter informados os leitores. Souza (2005, p. 90) classica algumas regras que fazem do texto jornalstico um texto informativo capaz de chegar a um grande nmero de pessoas. Uma boa notcia escrita de forma clara, sem dvidas ou ambiguidades. A linguagem do texto tambm deve ser simples, por exemplo: entre dois sinnimos deve preferir-se o mais comum (SOUZA, 2005, p. 90). Ao receber a pauta, o jornalista ir receber tambm o nmero de caracte- res que seu texto pode ter, ou seja, o espao que ele poder ocupar no jornal. Esse espao deve ser res- peitado pelo prossional. Alm disso, o jornalista deve selecionar as informaes de sua notcia, deixando de lado as evidncias e irrelevncias informativas, de modo que o essencial do texto seja imediatamente compreendido. O autor tambm destaca que um texto jornalstico deve ser cativante e agradvel, de for- ma que tenha ritmo para prender o leitor at a ltima frase. O jornal dirio e a ideia de sntese consagraram um mtodo de fazer notcia chamado mtodo da pirmide invertida. Fundamentalmente, consiste em colocar as informaes mais importantes no topo do texto e as complementares abaixo. Assim, o redator consegue tornar sua matria mais sinttica, dando de incio ao leitor o que considerado como basilar, teoricamente prendendo a ateno do receptor para as descries que vm posteriormente. O primeiro pargrafo, considerado de fundamental importncia, o que os jornalistas chamam de lide. Para se fazer um bom lide, deve ser possvel, somente com as informaes deste, responder s seguintes perguntas: quem?, onde?, quando?, como? e por que?. Traquina (2005, p. 46) destaca que a lin- guagem jornalstica, em especial a notcia, deve possuir certos traos que ajudam na compreenso, como a) frases curtas; b) pargrafos curtos; c) palavras simples; d) sintaxe direta e econmica; e) a conciso; e f) a utilizao de metforas para incrementar a compreenso do texto. Outro elemento importante de uma notcia o ttulo. Ele deve ser objetivo e curto, de forma que o leitor compreenda o que ser tratado na notcia logo no ttulo. Exemplo de notcia de impresso, publicada no Jornal do Comrcio em 05/04/2013: Aumento da passagem suspenso na Capital Uma liminar do Tribunal de Justia do Estado (TJ/RS) concedida aos vereadores do P-Sol no m da tarde desta quinta-feira suspendeu o aumento das passagens em Porto Alegre. Com isso, o preo da tarifa de nibus retorna para R$ 2,85 e o de lotao para R$ 4,25 at as 19h desta sexta-feira. A deciso foi 5 Termo que designa a situao cultural da sociedade capitalista industrial. 178 UFRGSMUNDI anunciada enquanto ocorria uma manifestao no Centro da cidade contra o reajuste vlido desde o dia 25 de maro, que passou a tarifa para R$ 3,05 e R$ 4,50, respectivamente. A prefeitura no ir recorrer da deciso. Se o tribunal arma que esse o valor, ns acolheremos, armou o vice-prefeito, Sebastio Melo (PMDB), ao receber a intimao das mos dos vereadores do P-Sol Pedro Ruas e Fernanda Melchiona, na Cmara Municipal. A prefeitura deve agora informar esta deciso para as empresas de nibus, armou Ruas. A ao cautelar foi ajuizada contra o municpio de Porto Alegre, a Empresa Pblica de Transporte e Circulao (EPTC) e o Conselho Municipal de Transporte Urbano (Comtu). As trs partes precisam assinar o documento. A Associao dos Transportadores de Passageiros (ATP) de Porto Alegre informou, por meio de sua assessoria, que seguir a deciso que a EPTC e o Comtu tomarem. 4. RADIOJORNALISMO 4.1. HISTRICO H uma srie de polmicas acerca da origem do rdio. Segundo Rodrigues (2008), a verso ocial de que a primeira transmisso radiofnica foi realizada pelo cientista italiano Gugliemo Marconi em 1895. Porm, tambm h relatos de que, em 1893, o padre gacho Landell de Moura teria efetuado a transferncia de voz por um canal, dois anos antes de Marconi, tornando-se o inventor extraocial do veculo. Conforme Rodrigues (2008), a primeira transmisso civil que se tem notcia no Brasil ocorreu no dia 6 de abril de 1919, a partir de um estdio improvisado na Ponte dUchoa, no Recife, pelo radiotele- grasta Antnio Joaquim Pereira, colocando em funcionamento a Rdio Clube de Pernambuco. Porm, o fato teve pouca repercusso na poca, sendo que a Rdio Clube no funcionava regularmente, apenas de forma experimental. Foi nos anos 20 que o rdio demonstrou seu potencial como difusor da cultura e da informao. A primeira radiotransmisso massiva, considerada como ocial, foi realizada por Ro- quete Pinto, considerado o pai da radiocomunicao no Brasil. Em 1922, ele foi responsvel pela famosa transmisso do discurso do presidente Epitcio Pessoa para a cidade do Rio de Janeiro por meio de uma antena instalada no alto do Corcovado, em plenas comemoraes ao Centenrio da Independncia. Ele tambm criou a primeira emissora com funcionamento regular do pas: a Rdio Sociedade do Rio de Ja- neiro, no nal de 1922. A partir dessa data, o rdio no parou mais de crescer. Em 1931 o Governo Vargas permite a ex- plorao comercial das emissoras. Assim, o veculo cresce de modo a tornar-se o meio ocial de inter- locuo entre o Estado e a Nao. Surgem os famosos programas de notcias Voz do Brasil, em 1935, e Reprter Esso em 1941, alm de diversas transmisses esportivas em tempo real. J em 1942, nascem as novelas do rdio, sendo Em Busca da Felicidade a pioneira, atingindo grandes ndices de audincia. O rdio, juntamente com o jornal impresso, foi um dos veculos de comunicao hegemnicos at a dcada de 50. Nessa poca, surgia um novo jeito de transmitir informao, que em breve estaria em todos os lares: a televiso. Segundo Prata (2008), foi um momento de crise na radiodifuso, j que aquele dispositivo aliava o som com a imagem. Contudo, ao contrrio das previses apocalpticas, a ra- diofonia permaneceu no cenrio da comunicao, inclusive expandindo suas fronteiras com a melhora na tecnologia. Agora, com a internet, o rdio passa por uma reinveno que, segundo Ferraretto, no ir extingui-lo, e sim explorar as possibilidades trazidas pela web. o que est ocorrendo com a difuso de radiowebs e podcasts (ver seo Adaptaes do jornalismo impresso, radiofnico e televisivo internet), sem prejuzo perceptvel antiga transmisso por ondas eletromagnticas. Conforme Ferraretto (2007, p.13), o rdio deve: Buscar complementao nas possibilidades oferecidas pelas tecnologias que [...] vo sendo introduzidas a cada dia. Acima de tudo, necessrio recordar aquilo que o faz um veculo diferente dos demais: a possibilidade de acompanhar o ser humano em simultaneidade a quaisquer de suas atividades, oferecendo seja informao, seja entretenimento. Ou seja, para os que pensavam que a radiofonia iria morrer, ela est crescendo dentro das novas plataforma e reinventando-se, cando mais moderna e adaptado aos tempos multimdia. Seja nos mo- 179 AC dernos iPhones ou nos antiquados rdio-relgios, sempre h o charme, a condencialidade e o compro- misso com o ouvinte que o rdio conquistou em cerca de um sculo de histria. 4.2. CARACTERSTICAS DO RADIOJORNALISMO A voz, instrumento de comunicao humana por excelncia. Enquanto os demais animais trinam, sibilam e at mesmo imitam, o homem desenvolveu e aprimorou dispositivos fonticos para melhor inte- ragir com os demais. Por meio da fala possvel expressar um sentimento, contar uma histria, emitir uma opinio, alm de diversos outros tipos de exposio. A voz possui um determinado alcance nas situaes comuns, limitado pela distncia, entre o som emitido e o ouvido. Contudo, imagine a capacidade da voz de forma ilimitada, podendo ser ouvida em qualquer canto do mundo, desde que se tenha um receptor adequado. Eis ento o rdio, denido por Meditisch (2001) como sendo o meio de comunicao que transmite informao sonora em tempo real se no for feito de som e no for instantneo, ento no rdio. O rdio um dos primeiros veculos massivos de comunicao, utilizado por jornalistas em ampla escala devido praticidade e instantaneidade de suas informaes. Segundo o censo de 2010 (Funda- o Instituto Brasileiro de Geograa e Estatstica IBGE, 2011), atualmente considera-se que 100% dos brasileiros tenham acesso radiofonia atravs de alguma plataforma, seja celular, internet ou o prprio. H 300 milhes de receptores de ondas radiofnicas no pas (IBGE, 2011), o que transforma este veculo no mais difundido dentro do territrio brasileiro. Com todo o poder de difuso da informao trazido pelo rdio, como o jornalista constri as notcias e quais so as tcnicas para melhor aproveitamento do potencial de tal meio de comunicao? Jornalismo e rdio possuem uma estreita relao: o comunicador utiliza-se das potencialidades do meio para divulgar notcias, opinies, transmitir eventos, realizar entrevistas, etc. Enm, as possibilidades so imensas. A radiodifuso comporta desde matrias longas, como as reportagens e os documentrios, at programas com matrias curtas e concisas. Cada um dos gneros jornalsticos possuem peculiarida- des j abordadas neste trabalho. Contudo, h determinadas diretrizes para a produo de contedo que se mantm como base geral para uma comunicao ecaz e franca entre emissor e ouvinte. 4.2.1. LINGUAGEM Primeiramente, Meditisch (1999) ressalta que a linguagem do rdio apresentada [...] como a composio de palavra falada, msica, rudos e silncios (p.121). Ou seja, o silncio pode conter tanta signicao quanto uma frase, portanto, necessrio que o jornalista possua ideias articuladas e no deixe grandes espaos para no angustiar ou frustrar o ouvinte. O que mais prende a ateno do pblico, muitas vezes, no somente o que se diz, mas a forma que se diz. Segundo Jung (2004), o segredo de um bom locutor est em criar um padro espontneo de fala, sem impostar a voz como os garbosos narra- dores de outrora. Porm, isso no signica desleixo. O emissor deve quebrar um pouco o ritmo de fala para manter a ateno do ouvinte, mostrando que acredita e se importa com o contedo que est sendo repassado. Falar com calma as palavras, articular todos os fonemas, destacar palavras-chave e impor rit- mo voz, so boas estratgias para no transformar uma notcia em algo montono. 4.2.2. REDAO Pode no parecer, mas escrever uma das tarefas mais importantes do jornalista de rdio, alm de ser uma das mais desaadoras. O texto para ser lido em voz alta possui caractersticas distintas do de leitura visual. Ele deve ser simples, conciso, ter frases curtas, ser prximo da fala e, principalmente, feito para que o leitor entenda. Klckner (1997) e Nucci (2006), em seus respectivos manuais, apontam regras simples, mas que funcionam para a tal tipo de redao: Preferir sempre a ordem direta: O mdico disse que o paciente deve ser operado ao invs de o paciente dever ser operado, disse o mdico; Valorizar a pontuao, destacando sua funo fontica, fazendo frases curtas e com vrgulas sucientes para respirar. Evitar construes longas e sem pontuao do tipo: o acusado foi ontem at a DELEGACIA DE POLCIA DO QUARTO DISTRITO para prestar depoimento dele- gada FULANA DE TAL sobre o crime ao qual ele respondia; Outra dica colocar barras aps o ponto nal e duas ou trs no nal do pargrafo: O VATI- CANO anunciou hoje o incio do Conclave./ A informao foi dada pela assessoria ocial do Pas.//; 180 UFRGSMUNDI Escrever nmeros, nomes prprios e palavras de destaque por extenso e em caixa-alta: O jo- gador NEYMAR, do SANTOS, marcou QUARENTA E DOIS gols na temporada passada ao invs de o jogador Neymar, do Santos, marcou 42 gols na temporada passada; Abrir siglas, a no ser que j seja consagrada pelo uso. O MINISTRIO PBLICO DA UNIO ao invs de o MPU; o INSS ao invs de o INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL; Se for um programa ao vivo, principalmente os de longa durao, retome algumas ideias para o ouvinte relembrar ou at mesmo para situar o receptor que chegou atrasado na conversa; A capacidade de improviso importante, porm o fundamental preparar-se para evitar ru- dos (falhas) na comunicao; Exemplo de notcia para rdio: LOC- Mdicos, tcnicos e assistentes sociais do INSS paralisaram as atividades no Rio Grande do Sul./ Conforme levantamento do Sindicato dos Trabalhadores Federais da Sade, Trabalho e Previdncia, cerca de NOVENTA POR CENTO das agncias no abriram hoje./ A categoria exige a abertura de concur- so pblico para VINTE MIL vagas, alm de graticao por desempenho e m do fator previdencirio./ Segundo o presidente do Sindicato, GIUSEPE FINCO, a paralizao deve terminar na QUINTA-FEIRA./// 5. FOTOJORNALISMO 5.1. HISTRICO Na metade do sculo XIX, a fotograa ganhou espao em meio crise de conana que atingia as imagens manuais. Desenhos e gravuras, em suas funes documentais, no mais convenciam os cida- dos da sociedade industrial em expanso. A fotograa se adaptou melhor a realidade da nova poca por assegurar o contato com o referente, alm de ser produzida de forma relativamente mais rpida que as imagens feitas mo. A imagem fotogrca cou estreitamente ligada mdia impressa entre os anos 1920 e a Guerra do Vietn (ROUILL, 2005). No perodo anterior a virada do sculo XX, no entanto, o valor informativo da fotograa era nmo, j que as mquinas ainda no estavam aptas a captar o instante. O longo tempo de exposio necessrio para a captao da imagem fazia com que apenas coisas ou estados de coisas fos- sem fotografados. No havia a possibilidade de fotografar movimentos. Outra conjuno que dicultava a insero da fotograa na rea da informao era a impossibilidade de reproduzir as imagens em grandes quantidades. Avanos tcnicos possibilitaram, por volta de 1900, que o instante pudesse ser capturado e, a partir da, eventos inesperados, guerras, atividades esportivas e outros tipos de acontecimento puderam ser fotografados. Pouco tempo depois, surgiram tambm as primeiras cmeras fotogrcas de pequeno porte, que tornaram a atividade mais gil e prtica. Mas os progressos tcnicos da cmera precisavam ainda se aliar a algum tipo de procedimento que aumentasse imensamente a capacidade de difuso das imagens. Aps dcadas de pesquisa, vericou-se um avano nas tcnicas de heliogravura 6 e do ofse- te 7 , o que tornou possvel, enm, a reproduo industrial de fotograas atravs da tipograa. Apoiado na aliana entre a imagem instantnea e a tipograa, o fotojornalismo se estabelece na metade de 1920 (ROUILL, 2005). 5.2. COMPONENTES DA IMAGEM O fato da imagem fotogrca se diferenciar das anteriores por ser tecnolgica, imagem-mquina, fez com que acentuassem em demasia o seu carter automtico. Por muito tempo, acreditou-se que a fotograa era uma perfeita impresso do real, ou seja, a inuencia do homem no processo era subestima- da. S que o fotgrafo no mostra sem se mostrar (ROUILL, 2005). As fotos, sempre singulares e subje- tivas, se constroem atravs das escolhas que o fotgrafo faz entre os diversos elementos de composio de uma imagem. Abaixo, resumimos alguns desses componentes: 6 Processo pelo qual se grava uma fotograa em uma placa de metal utilizando-se uma camada de gelatina sensibilizada. 7 Tcnica de impresso em que imagens passam de uma chapa metlica para uma bobina de borracha e da para o papel. 181 AC O enquadramento, de acordo com Sousa (2004), o espao da realidade visvel representado na fotograa. Ao enquadrar uma cena, o fotgrafo deve priorizar o que importante para sua composio, retirando de quadro elementos que possam desviar o olhar para reas de menor importncia. So diversas as denominaes e as tipologias dos planos de enquadramento. Aqui, vamos considerar quatro tipos de planos: Os planos gerais so abertos e tem como principal funo ambientar o observador, mostrando uma localizao. So utilizados frequentemente para imagens de paisagens e eventos de massa como protestos e shows.
Os planos de conjunto so como os gerais, porm mais fechados. Esse tipo de enquadramento permite a distino clara de indivduos ou outros elementos.
J nos planos mdios, o ambiente no facilmente identicado. De forma geral, pode-se dizer que esse plano caracteriza-se pela ao da parte superior do corpo do personagem, da cintura para cima.
182 UFRGSMUNDI Outro tipo de plano considerado mdio o chamado plano americano, no qual o personagem enquadrado dos joelhos para cima.
O grande plano, por sua vez, enfatiza detalhes como um cadeado, uma or ou partes do corpo humano.
O ngulo que a cmera forma com a superfcie quando a foto tirada tambm inuencia bastante a produo de sentidos de uma imagem. Quando a altura da cmera e a do objeto fotografado a mesma, tem-se o ngulo normal.
Chamamos ngulo picado quando a tomada feita de cima para baixo. Essa angulao tende a desvalorizar o elemento fotografado.
183 AC J quando a foto tirada de baixo para cima, o ngulo utilizado o contrapicado, que tende a valorizar/exaltar o motivo fotografado.
Um dos princpios mais reconhecidos da fotograa a regra dos teros. A tcnica consiste em dividir uma imagem retangular em nove quadros, sendo traadas duas linhas imaginrias na horizontal e outras duas na vertical.
Os pontos de cruzamento dessas linhas so polos de atrao visual (SOUSA, 2004). De acordo com a regra, o assunto principal da fotograa deve ser posicionado sob uma dessas reas a m de se formar uma composio harmoniosa e agradvel de se ver. Outra questo importante que ao posicionar o tema de destaque fora do centro da imagem, obriga-se o espectador a mover seu olhar pela fotograa. Isso faz com que ele apreenda melhor o contexto e o ambiente no qual o assunto principal est inserido. importante ressaltar que existem diversos outros mtodos de se fotografar alm da regra dos teros. Como apontado por Sousa (2004), a composio , de alguma maneira, instintiva. 184 UFRGSMUNDI Nas imagens que ilustram entrevistas, o fotgrafo geralmente busca evidenciar os detalhes do entrevistado que contribuam para a representao da sua personalidade. Assim como em outros tipos de fotograa, o ideal que o fotojornalista varie as posies, o enquadramento, a iluminao e os pontos de vista (SOUSA, 2004). 6. WEBJORNALISMO 6.1. HISTRICO As primeiras pesquisas sobre rede mundial de computadores, ou seja, a Internet, surgiram na Guerra Fria. No incio, ela era usada apenas para ns militares ou por estudantes e pesquisadores, at que comearam a comercializ-la, possibilitando ao usurio comum o uso da rede em suas prprias casas. Em 1991, o engenheiro ingls Tim Bernes-Lee desenvolveu a World Wide Web, o que possibilitou a utilizao de uma interface grca e a criao de sites visualmente interessantes e mais dinmicos. Com a interface WWW, aumentou consideravelmente o nmero de servidores conectados ao sistema e a Internet alcan- ou a populao em geral, revolucionando o mundo e principalmente a comunicao. Aos poucos a tecnologia se desenvolveu e facilitou cada vez mais o envio e recebimento de mensagens, principalmente por meio do email e chats de conversa. Em 2004, surgiu a primeira rede social, o Orkut. A partir de 2005, surgiram os sites que abrigam vdeos enviados por colaboradores e que logo se tornaram uma febre, como o YouTube e Google Video. No mesmo ano apareceram tambm os primeiros blogs. Com o passar dos anos as redes sociais foram mudando, se reinventando e se adaptando a realidade da sociedade. Assim, surgiu o Facebook, o Twitter, entre outros. Entre tantas novidades, fez-se necessrio ao jornalismo uma adaptao s novas plataformas. As- sim como as redes sociais facilitam na divulgao das notcias, a webauxilia na pesquisa e na busca de informaes noticiosas. A internet exige atualmente uma comunicao multimdia, o que levanta ques- tionamentos por parte de comunicadores sobre a continuidade do jornalismo e a convergncia de mdias. 6.2. CARACTERSTICAS DO JORNALISMO ONLINE Independentemente de suas mltiplas denies, o jornalismo online apresenta algumas ca- ractersticas especcas em relao a aspectos que quase sempre existiram nas mais diversas mdias, em diversos graus. Segundo Mielniczuk (2001), as caractersticas mais interessantes do jornalismo online so: instantaneidade, interatividade, perenidade (memria, capacidade de armazenamento de informao), programao, hipertextualidade, personalizao de contedo, customizao. O grau de instantaneidade do jornalismo online o mais alto entre as mdias, seguido pelo rdio. A capacidade de transmitir instantaneamente um fato o que mais impressiona na web: muito rpido, fcil e barato inserir ou modicar notcias nesse suporte. Apesar disso, algumas falhas podem ser detec- tadas por conta da rapidez com a qual as notcias so escritas. Muitas vezes a informao deixa de ser apurada da maneira mais completa e, em alguns casos, a falta de uma conferncia anterior a publicao online provoca a existncia de inmeros erros de portugus. A instantaneidade permitiu que se desenvolvesse a interatividade entre os usurios da web. As mdias tradicionais sempre tiveram algum tipo de troca de opinies, como nas sees de cartas de jornais e TVs e nos telefonemas para programas de rdio, mas nessa nova fase a interatividade atinge seu ponto mximo. possvel navegar mais facilmente e escolher para que direo a leitura vai seguir, tudo isso de forma mais automatizada com a ajuda dos hiperlinks. Esta estrutura narrativa exige uma maior concen- trao do leitor, mas esse o objetivo do webjornalismo: um jornalismo feito por meio da interao entre emissor e receptor (CANAVILHAS, 2001). O leitor pode tambm enviar formulrios com comentrios sobre uma notcia e ver suas observaes colocadas imediatamente disposio de outros leitores. Outro ponto interessante na web o arquivamento de material: ele pode ser guardado indenida- mente e o custo de armazenamento de informao baixo. Alm disso, na web possvel guardar grande quantidade de informao em pouco espao e essa informao pode ser recuperada rapidamente com ferramentas de busca rpida. 185 AC 6.3. ADAPTAES DO JORNALISMO IMPRESSO, RADIOFNICO E TELEVISIVO INTERNET O estilo de texto para a internet deve ser curto, na ordem direta, com palavras-chave destacadas. O estilo deve ser informal, porque a internet um meio de comunicao individual e pessoal, e tambm porque isso capta a ateno do leitor e deixando-o informado em poucas linhas sobre as notcias. Devi- do instantaneidade da internet, o leitor pode trocar facilmente o site ou mudar de pgina atravs dos hiperlinks, caso no se sinta satisfeito com contedo do texto ou at mesmo com o tamanho do texto. A plataforma mais utilizada para transmitir notcias curtas e rpidas so os sites e as redes sociais como o Twitter (onde se pode escrever no mximo 140 caracteres) ou o Facebook, usadas principalmen- te por empresas de comunicao que j se adaptaram ao jornalismo multimdia. H tambm os blogs, plataformas que permitem o uso de textos mais longos com utilizao de hiperlinks, fotos e arquivos audiovisuais e sonoros. Assim como o jornalismo impresso, as rdios tem se adaptado cada vez ao sistema da web. possvel transformar uma rdio tradicional em radioweb, fazendo com que ela ganhe um alcance mui- to maior em suas transmisses. Assim como possvel criar uma radioweb de qualidade, tendo apenas a internet como plataforma, usando os podcasts: arquivos de udio digital, em geral no formato MP3, que podem ser descarregados diretamente para os tocadores de mdias. No caso da mdia televisiva, at mesmo os maiores sites jornalsticos j publicam matrias em vdeo. No Brasil, o portal de notcias G1, da Rede Globo, dedica uma seo inteira aos vdeos exibidos nos telejornais da emissora, alm de transmitir, ao vivo, a programao da Globo News. A internet permite a utilizao conjunta de vrias linguagens, diferentemente do jornalismo tra- dicional. Na web, o jornalismo pode usar de diversos tipos de mdia e de formatos de arquivos de com- putador, como o texto e hipertexto, udio e imagem esttica (fotos) e em movimento (vdeo). Todo esse desenvolvimento da Internet deixa margem para discusses sobre o futuro das mdias convencionais. Para Jenkins (2009), esses mltiplos suportes miditicos da internet e o uxo de contedos que se d por meio deles podem ser entendidos como convergncia, mas essa palavra deve ser usada com cautela. Convergncia uma palavra que consegue denir transformaes tecnolgicas, mercadolgicas, cultu- rais e sociais, dependendo de quem est falando e do que imaginam estar falando (JENKINS, 2009, p.29). Ou seja: quem faz a mudana so as pessoas, a convergncia no ocorre por meio de aparelhos, por mais sosticados que sejam; ela ocorre dentro dos consumidores e em suas interaes sociais com outros. REFERNCIAS BOND, F. Fraser. An Introduction to Journalism. Nova Iorque: The Macmillan Co., 1959. CANAVILHAS, Joo Messias. Webjornalismo: consideraes gerais sobre jornalismo na web. Portugal: Uni- versidade da Beira Interior, 2001. Disponvel em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/_texto.php3?html2=canavilhas- joao-webjornal.html>. ltimo acesso em: 01/04/2013. FERRARETTO, Lus Artur. Possibilidades de Convergncia Tecnolgica: Pistas para a Compreenso do Rdio e das Formas do seu uso no Sculo 21. In: Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao, 2007. Santos. CD-ROM. HAYE, Ricardo. Sobre o Discurso Radiofnico. In MEDITISCH, Eduardo (org.). Teorias do Rdio. Florianpolis, Insular, 2005. IBGE - Instituto Brasileiro de Geograa e Estatstica. Censo demogrco 2010: resultados preliminares da amostra. Rio de Janeiro, 2011. Disponvel em: <http://censo2010.ibge.gov.br/> Acesso em 25/03/2013. JENKINS, Henry. Cultura da convergncia: a coliso entre os velhos e novos meios de comunicao. So Paulo: Aleph, 2009. JUNG, Milton. Jornalismo de Rdio. So Paulo: Contexto, 2004. KLCKNER, Luciano. 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RESUMO Em 2013, pela primeira vez o UFRGSMUNDI conta com uma Agncia de Comunicao. Ela servir como um exerccio de apurao e difuso de informaes sobre a conjuntura dos comits da simulao. A proposta que sejam desenvolvidas matrias que sero publicadas em um blog, que ser atualizado constantemente, e em um jornal, que ser lanado ao nal do projeto. A Agncia de Comunicao ir abordar os veculos de jornalismo impresso, radiojornalismo, webjor- nalismo e fotojornalismo. No blog, as postagens sero concisas, uma vez que o tempo de apurao e redao ser menor. Alm de textos e fotos, na pgina da Agncia tambm sero postados udios de entrevistas com os delegados. J as matrias produzidas para o jornal sero mais longas e elaboradas. Assim, os participantes tero a oportunidade de trabalhar com trs diferentes mdias e perceber as particularidades de cada uma de- las. O principal meio de coleta de informaes ser atravs das entrevistas. Os reprteres podero abordar os participantes dos comits a m de obter fontes para suas matrias. Acompanhando, estaro os fotgrafos, que sero responsveis por registrar o andamento das sesses para ilustrar as matrias. Ao nal das entrevistas, os reprteres devem editar as gravaes e redigir seus textos que sero publicados no blog e no jornal. Podendo ser rotativas, as funes de reprter e fotgrafo sero imprescindveis para a cobertura completa e verdica do UFRGSMUNDI. 187 CELAC COMUNIDADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS Regulao e Democratizao da Mdia na Amrica Latina Bruna Coelho Jaeger 1
Lucas Larentis 2
Marlia Bernardes Closs 3
Thas Jesinski Batista 4
INTRODUO A Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) tem origem na Declarao da Cpula da Unidade, adotada pelos Chefes de Estado e de Governo da Amrica Latina e do Caribe du- rante reunio de Cpula realizada na Riviera Maya, Mxico, em fevereiro de 2010. Naquela ocasio, houve consenso em constituir um novo mecanismo de concertao poltica e integrao, para abrigar os trinta e trs pases da Amrica do Sul, Amrica Central e Caribe. A CELAC herdeira do Grupo do Rio e da Calc, a Cpula da Amrica Latina e Caribe sobre Integrao e Desenvolvimento. Segundo o ento presidente do Mxico, Felipe Caldern, o antrio do encontro em que foi criada a comunidade, o objetivo do novo organismo projetar globalmente a regio, em temas como o respeito ao direito internacional, a igualdade entre Estados, o respeito aos direitos humanos e a cooperao. Alm disso, consenso entre os lderes que a criaram que a comunidade dever trabalhar sobre a base da soli- dariedade, da incluso social e da complementaridade. Para o Brasil, a CELAC contribui para a ampliao tanto do dilogo poltico, quanto dos projetos de cooperao na Amrica Latina e Caribe. O novo meca- nismo tambm facilita a conformao de uma identidade prpria regional e de posies latino-america- nas e caribenhas comuns sobre cooperao e desenvolvimento. Tendo sido sua primeira cpula em Caracas-Venezuela em dezembro de 2011, a CELAC pode ser vista como fruto do trabalho de armao poltica da Amrica Latina frente aos Estados Unidos, especial- mente alavancado pelo falecido presidente da Venezuela, Hugo Chvez. Depois de sua morte em maro de 2013, muitos previram um futuro incerto para a CELAC. Entretanto, a presena em Havana (Cuba) dos 33 pases que compem a cpula, em janeiro de 2014, reete que o bloco - que no inclui os Estados Unidos nem o Canad - se mantm vivo, mesmo com as divergncias internas. Dessa forma, o UFRGSMUNDI promover uma prxima cpula da CELAC, a qual reunir os presi- dentes e chefes de Estado das naes latino-americanas e caribenhas, onde os delegados representaro os interesses da presidncia e da sociedade de seus respectivos pases. O tema em pauta a questo da regulao e democratizao da mdia na Amrica Latina, a qual representa um enorme desao a ser de- batido e superado. 1. HISTRICO 1.1. HISTRIA DA MDIA A histria da mdia remonta ao sculo XV, com o desenvolvimento da tecnologia da prensa mvel, 1 Aluna do stimo semestre do curso de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 2 Aluno do quinto semestre do curso de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 3 Aluna do stimo semestre do curso de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 4 Aluna do terceiro semestre do curso de Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ISSN: 2138-6003 | v2, 2014 | p.187-207 188 UFRGSMUNDI em 1440, pelo alemo Johannes Gutenberg. Pela primeira vez na histria, a literatura atingia as massas, devido ao baixo custo de impresso, ocasionando um grande aumento na alfabetizao da populao europeia. A imprensa possibilitou o nascimento de inmeras publicaes peridicas nos sculos sub- sequentes, marcando o nascimento da mdia. Alm disso, considera-se que a criao da imprensa foi essencial para a exploso do movimento renascentista 5 na Europa, um importante marco na histria da civilizao ocidental. Isto demonstra que, desde seu incio, a mdia tem tido um papel fundamental no de- senvolvimento da nossa sociedade (WHIPPS, 2008). A imprensa no tardou a se disseminar pelo mundo. Na Amrica Latina, destacado o papel dos jesutas como grandes impulsores da nova tecnologia, sendo um importante instrumento utilizado pelos colonizadores para o ensino do catecismo e propagao dos valores europeus (SANTANNA, 2001). Durante os sculos que se seguiram, a mdia impressa atingiu a posio de principal meio de co- municao e disseminao de ideias, alcanando um nmero cada vez maior de pessoas. Na segunda metade do sculo XIX, evidente a ascenso das grandes agncias de notcias as europeias Havas, Reuters e Wolf e a norte-americana Associated Press. Estas eram responsveis pelo envio de notcias do exterior para os jornais, por meio de telegramas. Sua importncia foi tal que as agncias zeram uma es- pcie de partilha do mundo, cando a Amrica Latina sob a inuncia da Reuters e da Havas, o que deniu o estilo editorial dos pases da regio. Foi neste perodo, tambm, que a expresso Amrica Latina foi utilizada pela primeira vez pelos franceses. Alguns historiadores apontam que a construo deste termo promoveu uma espcie de separao da Amrica em dois continentes, caracterizando uma medida que visava contrapor o aumento do poderio estadunidense 6 . Com o passar do tempo, o termo foi apropria- do pelos defensores do ideal integracionista na regio e utilizado como instrumento a m de rmar uma identidade comum entre os pases (SANTANNA, 2001). Ao nal do sculo XIX possvel perceber outro grande marco da histria da mdia: o surgimento do rdio. A ento nova tecnologia foi amplamente desenvolvida durante a Primeira Guerra Mundial e promoveu uma grande revoluo no campo das comunicaes, uma vez que possibilitava que as notcias fossem transmitidas a uma velocidade surpreendente. Durante o perodo entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o rdio popularizou-se, tornando-se gradualmente uma mdia de massas. Apesar disso, a mdia impressa manteve seu posto de veculo miditico dominante. Em tempos de guerra, a mdia assumiu o papel essencial de manter o moral dos soldados em alta e de disseminar ideias, tornando-se uma indispensvel arma para qualquer Estado. Na Segunda Guerra Mundial, este papel tornou-se ainda mais importante devido aos avanos tecnolgicos realizados nas dcadas anteriores, ocasionando o incio de uma guerra psicolgica, caracterizada pela ampla propa- ganda. Esta foi um instrumento muito utilizado pelas potncias da poca para propagar seus ideais e, consequentemente, aumentar sua inuencia nas mais diversas regies do mundo. O prprio surgimento dos regimes totalitrios na Europa, como o Nazismo e o Fascismo, teve como elemento fundamental a utilizao da mdia para a disseminao da propaganda ideolgica fascis- ta. Em contrapartida, pases como Inglaterra e Frana passaram a utilizar os mesmos meios para comba- ter os regimes fascistas, criando rdios pblicas e disseminando ideias por outros veculos de mdia. Na Amrica Latina, o potencial do rdio tambm foi logo notado, marcando o surgimento e o fortalecimento das chamadas rdios nacionais em diversos pases da regio. Estas emissoras surgiram bem estruturadas e apresentavam programas culturais e musicais, mas tambm possuam um m poltico em si. No Brasil, por exemplo, Getlio Vargas utilizou amplamente o potencial da Rdio Nacional para realizar propagan- da de governo. Alm disso, passou a ser muito comum a disseminao dos ideais fascistas e nazistas nas colnias italianas e alems espalhadas pelo mundo. Os pases latino-americanos eram um grande foco deste tipo de propaganda, ocasionando uma intensa reao do governo norte-americano, que passou a incentivar a produo de programas de rdio musicais, radionovelas e noticirios voltados para o continente. Outra forma de mdia que ganhou espao nesta poca foi o cinema, atravs dos cinejornais exibidos antes dos lmes de co e dos prprios lmes, que funcionavam como um veculo de propa- gao ideolgica. Este foi o incio de uma prtica que se tornaria muito recorrente nas dcadas subse- quentes, caracterizada pela utilizao da mdia pelos EUA para aumentar sua inuncia na Amrica Latina (DINIZ, 2009). 1.2. HISTRIA POLTICA E ECONMICA DA AMRICA LATINA Aps o m da Segunda Guerra Mundial, observou-se no mundo uma tendncia integrao re- 5 O Renascimento foi um movimento cultural, cientco e artstico que se originou na Europa, no nal do sculo XIV. Durante o perodo que se seguiu, ocorreram importantes transformaes em diversos campos da vida humana, demar- cando a passagem da Idade Mdia para a Idade Moderna. 6 Durante o sculo XIX, a economia dos EUA cresceu aceleradamente, tornando-se uma das maiores do mundo a ns do sculo. Alm disso, a expanso territorial para o oeste, fazendo o pas ocupar um grande territrio banhado pelo Atlntico e pelo Pacco, teve o papel fundamental de aumentar enormemente a competitividade do pas e de permitir a sua pro- jeo no Pacco, fatores essenciais para o estabelecimento dos EUA como grande potncia mundial (CUMINGS, 2009). 189 CELAC gional, ou seja, Estados vizinhos passaram a organizar-se em grupos, a m de defender seus interesses comuns de forma coesa. importante notar que estes interesses podem variar. A integrao econmica, por exemplo, busca a reduo progressiva de barreiras comerciais entre os pases, de forma a promover uma aproximao e um fortalecimento das economias envolvidas. J a integrao poltica tem como objetivo principal a criao de uma unidade poltica regional, a m de criar um bloco coeso no cenrio internacional e integrar as polticas domsticas dos Estados membros (LOPES, 2011). Na Amrica Latina no foi diferente. Em 1948 foi criada a Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL) no mbito da ONU. Esta comisso, por meio de diversas publicaes e da propagao de ideias, teve papel fundamental na construo de novas relaes econmicas e comerciais entre os pases da Amrica La- tina, uma vez que seus pensadores, como Ral Prebisch e Celso Furtado, desenvolveram o ideal integra- cionista. Prebisch vinculava os problemas do desenvolvimento dos pases latino-americanos ordem in- ternacional vigente na poca, que era baseada em um centro (pases desenvolvidos) industrializado e uma periferia (pases subdesenvolvidos) agroexportadora. Estas ideias foram essenciais na criao, em 1960, da Associao Latino-americana de Livre Comrcio (ALALC) e do Mercado Comum Centro-Americano, primeiros processos formais de integrao da Amrica Latina. (FUNDAO ALEXANDRE GUSMO, 2010). Tambm depois do m da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a Unio Sovitica dis- param como potncias mundiais, em busca de reas de inuncia no globo. Essa disputa, chamada de Guerra Fria, levou corrida espacial e ao desenvolvimento de satlites. O primeiro lanamento de sa- tlite na rbita terrestre aconteceu em 1957, pela Unio Sovitica. J na dcada de 1960, comearam os lanamentos de satlites comerciais, destinados comunicao no militar. Estes satlites, mais tarde, seriam fundamentais para o desenvolvimento das telecomunicaes que conhecemos hoje. Neste perodo, evidente a utilizao da mdia para a difuso do American Way of Life 7 , marcan- do um aspecto fundamental do conito: a guerra ideolgica. Esta era especialmente importante para a ordem interna dos Estados Unidos e da Unio Sovitica, pois promovia a coeso da opinio pblica (NYE, 2009). Ademais, estes ideais foram largamente disseminados por todo o mundo, sobretudo nas chamadas zonas de inuncia das superpotncias. Este perodo marca tambm o m da hegemonia das agncias de notcias europeias, aps o surgimento do conceito de livre uxo da informao, criado pelos Estados Uni- dos. Desta forma, os norte-americanos alcanaram a hegemonia informativa, ou seja, os EUA passaram a ter supremacia sobre a informao mundial, possuindo as principais agncias de notcias do mundo e inuenciando a mdia de diversas regies do planeta (SANTANNA, 2001). No auge da Guerra Fria, diversos movimentos de esquerda passaram a ganhar fora na Amrica Latina, no que se conhece como a falncia do pacto populista 8 . Como medida para manter suas po- sies e evitar que governos anados com o pensamento socialista surgissem na esfera de inuncia dos Estados Unidos, as elites de diversos pases latino-americanos arquitetaram golpes militares a m de derrubar governos democraticamente eleitos, recebendo apoio direto dos Estados Unidos (BARBIAN, 2008). A mdia nos regimes militares sofreu com censuras, mas os grandes grupos apoiaram as ditaduras em troca de concesses e isenes scais. Com o m da Guerra Fria e a vitria do campo capitalista, os Estados Unidos assumiram uma po- sio dominante no mundo constituram uma hegemonia - e as ideias capitalistas tiveram, atravs das mdias e dos satlites, alcance global, j que os televisores e rdios j haviam se popularizado no mundo e na Amrica Latina. O mundo capitalista exigia agora uma democracia liberal, com o mercado aberto. A ideia de cons- truo de uma democracia latino-americana deveria estar vinculada necessidade de abertura dos mer- cados e menor interveno do governo na economia (TONIAL, 2003, p.137). Assim, a Amrica Latina inicia seu processo de redemocratizao, mas, durante a transio dos regimes militares para os regimes democrticos, o poder se manteve com as elites de cada pas, e esses grupos no foram afetados. O que aconteceu na Amrica Latina foi uma redemocratizao poltica, mas no econmica ou social (FERREI- RA, 2011). As elites ainda se mantinham no poder, e a mdia ainda era controlada majoritariamente pelos grandes conglomerados. Com essa redemocratizao conservadora, a elite guiou o processo de acordo com seus inte- resses (TONIAL 2003), e esses interesses encontraram respaldo no projeto neoliberal. Na dcada de 1970, 7 American Way of Life uma expresso utilizada pela mdia para se referir ao estilo de vida estadunidense, baseado nas liberdades individuais e na premissa de que qualquer um pode alcanar o Sonho Americano. Esta concepo tambm est largamente centrada no consumo como fonte de felicidade e sinnimo de qualidade de vida. 8 A expresso pacto populista se refere ao modelo conhecido como nacional-desenvolvimentista, de articulao entre uma burguesia nacionalista e progressista com setores do proletariado mediada pelo Estado (BARBIAN, 2008). Alm dis- so, segundo Maria Helena Capelato, o populismo representa a introduo social de uma nova cultura poltica baseada no papel interventor do Estado, caracterizando uma resposta s reivindicaes sociais como legislao trabalhista, reforma agrria (em alguns casos) e melhoria nas condies polticas e sociais do trabalhador a partir do reconhecimento deste como sujeito da histria (CAPELATO, 2001). 190 UFRGSMUNDI o capitalismo atravessa um perodo de desacelerao, com a queda na taxa de lucro e a falta de investi- mentos, alm das duas crises do petrleo, em 1973 e em 1979 (CAMPOS, 2010, p. 86). Era necessria uma nova poltica econmica que recuperasse as taxas de lucro e, assim, pe-se em prtica o neoliberalismo, doutrina que surgiu na dcada de 1940, mas que at ento no havia sido praticada. O neoliberalismo pregava medidas como a no interveno do Estado na economia, as privatiza- es, a abertura do mercado, o combate aos sindicatos, o corte de gastos pblicos e o controle sobre a moeda. A primeira experincia neoliberal aconteceu no Chile, em 1973, quando o general Augusto Pinochet assumiu o poder e adotou medidas neste sentido. Depois do Chile, a Argentina, em 1976, lide- rada pelo general Jorge Rafael Videla adotou medidas neoliberais. A Inglaterra, com a Primeira-Ministra Margaret Thatcher, e os Estados Unidos, com o presidente Ronald Reagan, mergulham no neoliberalismo em 1979 e 1980, respectivamente. Na dcada de 1990, a maioria dos pases latino-americanos (como, por exemplo, Argentina, Bolvia, Brasil, Costa Rica, Colmbia, Mxico, Paraguai, Peru e Venezuela) elegeu representantes que colocaram em prtica medidas neoliberais (AUGUSTIN, 2010). Essas prticas neoliberais na Amrica Latina foram estabelecidas no Consenso de Washington de 1989. Esse orientava os pases da regio para que houvesse a reduo do papel do Estado e a abertura dos mercados. As polticas neoliberais foram impostas atravs de presses de rgos internacionais, pois o Banco Mundial, o Fundo Monetrio Internacional e o governo estadunidense impunham regras que os pases latino-americanos deveriam seguir para receber nanciamentos. Alguns desses pases seguiram, logo, essas regras, pois precisavam dos nanciamentos para reestruturar suas economias, que estavam em crise (CAMPOS, 2010). importante destacar que os efeitos do neoliberalismo foram divergentes nos pases desenvol- vidos e nos pases em desenvolvimento e subdesenvolvidos. A Amrica Latina se tornou extremamente dependente do capital externo e, devido s medidas adotadas pelo governo, a desigualdade e a concen- trao de renda cresceram bastante. O neoliberalismo aumentou as desigualdades entre a elite e as clas- ses de baixa renda dos pases latino-americanos, e entre os pases desenvolvidos e os subdesenvolvidos. Devido abertura comercial, s privatizaes, desregulamentao e liberalizao nanceira, a con- centrao de renda e a sada de capital para os pases ricos aumentaram consideravelmente (AUGUSTIN, 2010). A mdia ajudou na disseminao do pensamento neoliberal atravs de propagandas e apoio aos governos. Era de interesse dos donos dos grandes meios de comunicao que o neoliberalismo conti- nuasse, pois ele beneciava sua classe, e o neoliberalismo inuenciou no processo de concentrao da mdia: ao pregar o livre mercado, grandes grupos compravam os menores, criando verdadeiros oligop- lios 9 dos meios de comunicao na Amrica Latina. Essa concentrao dos meios de comunicao nas mos de poucos, que pertenciam elite do pas, tem efeitos mesmo nos dias de hoje, que sero aborda- dos mais adiante (MASTRINI, 2009). Alm do aumento das desigualdades e da concentrao da mdia, o neoliberalismo tambm in- uenciou o processo de integrao na Amrica Latina. Em 1990, com o neoliberalismo como poltica econmica dominante no continente americano, o governo dos Estados Unidos lana a Iniciativa para as Amricas que tinha como objetivo a formao de uma zona de livre comrcio em toda a Amrica (ALCA - rea de Livre Comrcio das Amricas) (ESTEVES, 2008). Mas uma contraposio latino-americana criada em 1991, com a assinatura do Tratado de Assuno entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que visava construo de uma zona de livre comrcio na regio, o chamado Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). A partir dos anos 2000, porm, a regio comea um novo processo poltico, com a ascenso de governos politicamente esquerda, com projetos para o fortalecimento nacional. Alguns pases, como Venezuela, Argentina, Bolvia e Equador, iniciam processos para combater o monoplio de informao que os grandes grupos de mdia possuem, atravs da regulamentao, por exemplo. O cenrio da batalha na Amrica Latina est ntido: de um lado, elites conservadoras e grupos de mdia que querem manter seu poderio econmico e poltico; de outro, governos progressistas empenhados em reverter a excluso social provocada por dcadas de neoliberalismo. Pela primeira vez, est sendo contestada a absurda con- centrao dos setores de informao e entretenimento nas mos de um reduzido nmero de corporaes (MORAES, 2011). 9 Oligoplios so situaes em que somente algumas empresas controlam todo o mercado. 191 CELAC 2. APRESENTAO DO PROBLEMA 2.1. MDIA COMO PODER: A INFLUNCIA DOS MEIOS DE COMUNICAO E A FUNO SOCIAL DA INFORMAO O sculo XX foi, sem sombra de dvidas, o sculo das imagens: ocorreram o desenvolvimento do cinema, o nascimento e a consolidao da mdia televisiva e a proliferao das cmeras, dos vdeos e dos DVDs. Esse fenmeno pode ser observado tambm pelo crescente nmero de horas em que as pessoas passam em frente da televiso e das telas de computador, dos telefones celulares, etc. Tudo isso fomen- tou informalmente um treinamento e alfabetizao visual capaz de fazer com que o pblico seja atingido rapidamente por mensagens e determinados valores. A mdia, calcada nas imagens em movimento, apre- senta um claro papel educador, pois, ao mesmo tempo em que entretm e informa, materializa, dando ao seu produto o estatuto de realidade. Ao longo da histria, as imagens foram utilizadas com o objetivo de fazer propaganda de: 1) uma determinada cultura ou ideologia; e 2) um determinado estilo de vida. Nesse sentido, o cinema, a televi- so, o rdio, e mesmo a Internet servem como instrumentos para validar o poder de determinados pases e grupos sociais ou econmicos. Dessa maneira, mais do que simplesmente divertir e entreter, a mdia foi assumindo um papel independente dentro da sociedade, ou seja, ela comeou a participar da vida poltica e da vida social, interferindo nos rumos destas. Entretanto, dado que a mdia uma indstria privada, os seus donos esto ligados s elites do pas ao qual pertencem como ser posteriormente explicado. Por isso, apesar de defenderem que so rgos autnomos, as informaes veiculadas, as telenovelas, os jornais, os lmes, os videogames, os programas e at mesmo os sites muitas vezes veiculam os interesses dos donos dessas empresas, os donos dos meios de comunicao. Assim, as diversas ideias que so passadas, desde as informaes at o estilo de vida que so mostrados diariamente atravs de uma chuva de imagem para todos, representam um padro social, econmico e poltico que reete os interesses dos empresrios donos das principais companhias midi- ticas (como a Rede Globo, a RBS, Bandeirantes, Facebook, Google, etc). Dessa forma, tudo o que vemos, ouvimos e sentimos atravs da mdia passou por um ltro: no um ltro da imparcialidade, mas um ltro de interesses dos empresrios, pois importa para eles determinar o que vamos consumir, comer, vestir e, mais do que isso: o que vamos pensar. Pensar sobre o qu? Sobre a sociedade e sobre a poltica, seja ela nacional ou internacional. O problema que, muitas vezes, somos induzidos a acreditar que os nossos pensamentos e cren- as so formulados apenas a partir das nossas experincias e da nossa educao. Contudo, a mdia - sem que na maioria das vezes consigamos perceber - conduz imagens, vdeos, entrevistas e informaes para formar opinies e fazer com que acreditemos que vieram do nosso prprio julgamento. Por exemplo, durante as eleies para a presidncia do Brasil em 1989, os principais grupos miditicos atuaram com o objetivo de decidir qual seria o candidato vencedor. Primeiramente, todos os resultados das pesquisas de inteno de voto, antes de serem divulgados, eram analisados pelos editores - o trabalhador responsvel por denir o texto nal que vai ser publicado pelos jornalistas - para que o candidato apoiado pela mdia, na poca Fernando Collor de Mello, no aparecesse muito atrs do candidato que a mdia no apoiava, Lus Incio Lula da Silva. Alm disso, jornais, como o Jornal Nacional, da rede Globo, mostravam diaria- mente mais tempo de imagens de Collor falando sobre suas propostas, enquanto mostravam Lula dando informaes confusas e em um tempo menor (MUITO ALM DO CIDADO..., 1993). O telespectador no tem como calcular o tempo de apario de cada candidato ou vericar se foi alterado o seu discurso. Assim, naturalmente passamos a prestar mais ateno no candidato mais mostrado e que aparentemente fala melhor. O resultado a histria j nos contou: o impeachment do presidente Collor em 1992. Esse processo de inuncia da mdia sobre a realidade acontece tambm nas Relaes Internacio- nais em dois nveis: o primeiro nvel trata da maneira como a nossa mdia nacional aborda a atuao do nosso pas no exterior. E, em um segundo nvel, trata do modo como os pases mais desenvolvidos utili- zam as imagens e a informao para consolidar seu maior poder no Sistema Internacional. Um exemplo do primeiro nvel o caso brasileiro, pois a Rede Globo, a maior companhia de televiso e rdio do pas, est vinculada a grupos de interesse estrangeiros (principalmente da Europa e dos EUA) (HERZ, 2008). Nesse sentido, quando o governo brasileiro prefere aproximar-se dos aliados latino-americanos (como Bolvia, Venezuela, Cuba) a Rede Globo produz uma enxurrada de crticas a esses pases, com o objetivo de gerar na sociedade uma averso aproximao com os vizinhos. importante notar que, na maioria das vezes, no conseguimos perceber que estamos sendo levados e gostar ou no de alguns pases. Con- tudo, todas as informaes que recebemos atravs da mdia so para exaltar ou denegrir a imagem deles, e no temos acesso a informaes primrias (livres de interesses) para formarmos nossa opinio. Tudo o 192 UFRGSMUNDI que vemos e ouvimos passa por uma lente, mas essa lente foca apenas no que interessa aos detentores dos meios de comunicao, ou seja, aos donos do poder. No segundo nvel, no qual os pases utilizam a mdia para manter o padro internacional de desen- volvimento versus subdesenvolvimento (ou seja, de pases ricos e pobres), podemos destacar o caso dos Estados Unidos. Os EUA so o pas mais rico do mundo e, desde o incio do sculo XX, utilizam o cinema como meio de impor o seu modelo de sociedade, de valores e de consumo. Podemos perceber que tudo que veiculado no cinema estadunidense torna-se moda para o resto do mundo: as roupas que usamos, os nossos dolos, o que comemos, o padro de beleza, as msicas, etc. Somos ensinados, diariamente, sem que percebamos, a agir de acordo com a sociedade dos Estados Unidos, como se zssemos parte da mesma cultura mundial. Alm disso, somos treinados a acreditar que tudo que nacional pior e que no tem valor cultural. Dessa maneira, sem querer, passamos a defender a liderana e a superioridade dos EUA. O que mostra que o uso da imagem serve aos interesses de consolidar a hegemonia (liderana, supremacia, predomnio, inuncia) de determinado pas sobre os demais. Karl Marx, no seu livro A Ideologia Alem, redigido em 1847, disse que as ideias dominantes de uma poca sempre foram as ideias da classe dominante: Os pensamentos da classe dominante so tambm, em todas as pocas, os pensa- mentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa so- ciedade tambm a potncia dominante espiritual. A classe que dispe dos meios de produo material dispe igualmente dos meios de produo intelectual; de tal modo que o pensamento daqueles a quem recusado os meios de produo intelec- tual est submetido igualmente classe dominante. Os pensamentos dominantes so apenas a expresso ideal das relaes materiais dominantes concebidas sob a forma de ideias e, portanto, a expresso das relaes que fazem de uma classe a classe do- minante; dizendo de outro modo, so as ideias e, portanto, a expresso das relaes que fazem de uma classe a classe dominante; ou seja, so as ideias do seu domnio (Marx, 1976, p.55-56). Entretanto, o acesso informao parte essencial para a evoluo da sociedade e dos cidados. Por isso, perceber que as informaes que recebemos so simplicadas e distorcidas um primeiro pas- so fundamental para vermos por de trs da cortina e por de trs dos interesses dos donos dos meios de comunicao. Claramente, o acesso informao como conhecimento, ou seja, sem interferncia de interesses, bastante complexo nas sociedades de hoje. Poucas pessoas, mesmo entre os especialistas e intelectuais, tm condies de perceber essas distores. Por isso, o grande desao para o acesso a informaes e para o futuro da mdia o estabelecimento de um programa de democratizao das co- municaes, que permita o acesso irrestrito s vrias facetas da realidade da informao. 2.2. MDIA COMO PODER NA AMRICA LATINA: OS MEIOS DE COMUNICAO COMO ATORES POLTICOS Desde a sua criao, a mdia na Amrica Latina tem ntima relao com questes de poltica e po- der, como a concentrao de propriedade e riqueza. Como j foi anteriormente explicado, nos anos 1990, a Amrica Latina passou por um perodo no qual o neoliberalismo foi adotado como poltica dominante, e suas consequncias disso para a mdia e para as polticas nos meios de comunicao so sentidas at hoje: em funo da adoo do neoliberalismo, houve a falta de qualquer regulao por parte dos gover- nos dos pases no que tange s empresas ligadas aos meios de comunicao. Ou seja, todos os tipos de atividades privadas da mdia desenvolveram-se livremente sem aes governamentais para impedir que alguns grupos se destacassem frente aos demais, seja por vias legais ou por vias ilegais. Assim, ocorreu na Amrica Latina um fenmeno conhecido como concentrao da mdia: os meios de comunicao - se- jam eles televiso, rdio, jornais, etc - caram concentrados nas mos de alguns poucos donos em cada pas. Tais donos dos meios de comunicao geralmente so grandes empresas ou grandes conglomera- dos, que podem ser regionais, nacionais ou at globais (MORAES, 2011). Segundo Moraes (2013), houve, poca, a concentrao dos meios de infotelecomunicaes - convergncia tecnolgica entre setores de informtica, telecomunicaes e mdia - na mo de um reduzido nmero de megagrupos, a qual persiste at hoje. A mdia latino-americana hoje o que se chama de oligopolizada - ou seja, est concentrada na mo de poucos donos. Para compreender a atual concentrao dos meios de comunicao latino-americanos, neces- srio primeiramente que se entendam algumas noes de economia. Quanto mais uma empresa produz em grandes propores, mais ela vai economizar em termos de custos de produo, pois esta compra matria-prima e maquinrio (seus insumos) em grandes quantidades. So as chamadas economias de 193 CELAC escala: se uma empresa produz em larga escala um determinado produto, esta vai produzir com menos custos - ou seja, de maneira mais lucrativa - do que uma empresa que produz em pequena escala. Assim, em setores da economia de um pas nos quais h economia de escala, bastante difcil que empresas pequenas e/ou novas sejam competitivas ou lucrem tanto quanto empresas maiores (e mais ricas). Em termos prticos, a probabilidade de este setor da economia ser concentrado na mo de algumas grandes empresas e, consequentemente, serem poucas pessoas as que conseguem dominar esse setor, grande. A mdia na Amrica Latina um destes exemplos. Anal, os custos de acesso a bens necessrios para a introduo nas empresas na mdia so altssimos. Assim, apesar de algumas diferenas, a economia de escala tambm se aplica facilmente no setor da mdia. No lugar de matria-prima e maquinrio, as empresas precisam adquirir bens como uma fre- quncia de rdio, uma antena para a televiso ou os bens necessrios para ter uma mdia digital; Isso se d, tambm, porque, alm desses bens, grupos de mdia que j esto trabalhando h bastante tempo e em larga escala possuem j habilidades importantes, ou o conhecimento da atividade o know-how - que s so adquiridos com a experincia de mercado. Alguns exemplos do know-how adquirido por esses grupos so o conhecimento de qual tipo de programa ganha mais audincia em determinados ho- rrios, ou quais so os melhores fornecedores de determinados tipos de servios de comunicao. Ainda, existem dois conceitos fundamentais para que se compreenda a formao de oligoplio nos meios de comunicao latino-americanos: a delizao de clientes e as barreiras de entrada. O primeiro se refere ao fato de que, quanto maior a empresa, mais capacidade ela tem de criar vnculos com os clientes e, consequentemente, novas empresas no mercado tm maiores diculdades de captar audincia. As bar- reiras de mercado relacionam-se a isto: a existncia de empresas maiores e j consolidadas no mercado diculta o surgimento de novas rmas que consigam competir ou ser bem sucedidas, pois teriam de co- mear zeradas, com novos investimentos, e competir pelos clientes j captados pelas demais empresas. Estes fatos, aliados s polticas neoliberais j descritas anteriormente e falta de qualquer ao dos governos para evitar que isso acontecesse, tiveram como consequncia a formao dos oligoplios men- cionados. Uns poucos donos dos meios de comunicao passam a lucrar e se tornam ricos proprietrios de mdias, inuentes em seus respectivos pases tanto em termos polticos, quanto sociais e econmicos. So os chamados bares da mdia latinoamericanos: donos das mdias que no apenas concentram as maiores propriedades, mas tambm que concentram as maiores audincias (MARTNEZ, 2008). Exemplos disso so os quatro maiores conglomerados latino-americanos - Globo, do Brasil; Cis- neros, da Venezuela; Clarn, da Argentina; e Televisa, do Mxico juntos, eles tm 60% dos faturamentos dos mercados latino-americanos (MORAES, 2013). Segundo o projeto Donos da Mdia (2014), o mercado da televiso brasileiro quase completamente dominado por apenas seis redes - Globo, SBT, Record, Band, Rede TV e CNT-, e as mesmas seis empresas so responsveis por 92% da audincia televisiva bra- sileira. Sozinha, a rede Globo detm 16,2% da mdia impressa, 54% da TV aberta e 44% da TV paga, alm de ser a maior captadora de verbas publicitrias e patrocnios (MORAES, 2013), deter mais de 120 canais no mundo inteiro e atingir mais de 120 milhes de pessoas por dia (LAMBERT, 2012). Os bares da mdia latino-americanos so muitas vezes donos no s de um meio de comunica- o, mas, muitas vezes, de diversas mdias, muitas delas transnacionais. O grupo venezuelano de Gustavo Cisneros, por exemplo, no s detm a gigante rede de televiso Venevisin (que tem 67% da audincia venezuelana) e chega a mais de 500 milhes de pessoas do mundo inteiro, mas tambm possui aes na televiso chilena Chilevisin, na colombiana Caracol TV e no mundial canal de TV Direct TV (LAMBERT, 2012). O argentino Clarn, por sua vez, controla 31% da circulao de jornais, 40,5% da receita da TV aber- ta, 23% da receita da TV paga. As mexicanas Televisa e TV Azteca formam conjuntamente um duoplio que detm 69% da TV aberta e 31,3% da TV fechada (MORAES, 2013). No Chile, lvado Saieh, dono da companhia Consrcio Periodstico de Chile S.A. (Copesa) dono de seis jornais, seis revistas e seis esta- es de rdios, enquanto Agustn Edwards, lder no grupo El Mercrio, dono de 22 jornais, 14 estaes de rdio e uma agncia de notcias (LAMBERT, 2012). Ainda, a concentrao monopolstica da mdia na Amrica Latina est h dcadas concentrada na mo de algumas dinastias familiares proprietrias de meios de comunicao. Segundo Moraes (2013), as famlias Marinho, Civita, Frias, Mesquita, Sirotsky, Saad, Abravanel, Sarney, Magalhes e Collor (Brasil), Cisneros e Zuloaga (Venezuela), Noble, Saguier, Mitre, Fontevecchia e Vigil (Argentina), Slim e Azcrraga (Mxico), Edwards, Claro e Mosciatti (Chile), Rivero, Monastrios, Daher, Carrasco, Dueri e Tapia (Bolvia), Ardila Lulle, Santo Domingo e Santos (Colmbia), Verci e Zuccolillo (Paraguai), Chamorro e Sacasa (Ni- cargua), Arias e Gonzlez Revilla (Panam), Picado Cozza (Costa Rica), Ezerski, Dutriz e Altamirano (El Salvador), Marroqun (Guatemala) e Canahuati, Roshental, Sikafy, Willeda Toledo e Ferrari (Honduras) so exemplos de dinastias que enriqueceram e concentraram propriedades de mdias. Por outro lado, alm da concentrao da propriedade, alguns bares da mdia tambm so atores polticos nos seus respectivos pases. O maior exemplo o Brasil: um em cada dez polticos na Cmara de Deputados tambm dono de propriedade de mdia, bem como um em cada trs no Senado (LAMBERT, 2012). 194 UFRGSMUNDI Frente ao cenrio de grande concentrao e oligopolizao miditica na Amrica Latina, perce- be-se que os donos da mdia so atores extremamente relevantes na vida poltica e econmica de seus pases. Desta maneira, em funo de reterem grande parte dos meios de comunicao, so capazes de controlar o uxo de informaes em seus pases, bem como so capazes de controlar quais informaes chegaro a seu pblico. Em ltima instncia, por possurem grande parte dos leitores/audincia nacio- nais, os bares da mdia tm poderes de decidir quais, quando e como os contedos informativos iro para a casa dos espectadores e, consequentemente, inuenciam grandemente na opinio popular que ser formada a partir da informao advinda das mdias. Assim, alm das mdias atuarem como meios de comunicao, estas atuam como formadoras de opinio, valendo-se de suas capacidades oligopolsticas. A partir de ento, grande parte da mdia latino-americana comeou a trabalhar a divulgao de informaes conforme entendessem. Ou seja, determinados meios de comunicao passaram a subjugar seu trabalho - especialmente, o jornalismo - vontade poltica de seus donos: parte da imprensa latino- -americana hoje divulga fatos, dados e informaes se - e somente se - estas forem teis para as vontades e demandas sociais dos bares. Assim, a mdia - que devia ser imparcial e plural e devia ter como funo exclusiva a divulgao dos fatos sociais de seus pases - passa a atuar como ator poltico e capaz de mudar toda a opinio social nacional. importante, tambm, que se compreenda a posio das mdias hegemnicas no atual contex- to latino-americano. Historicamente, as dinastias familiares que dominam os meios de comunicao na Amrica Latina so ligadas a governos conservadores e politicamente posicionados direita. Dois exem- plos claros disto so o apoio de empresas como a rede Globo e o grupo Clarn s ditaduras militares da segunda metade do sculo XX de seus respectivos pases. Desde a ascenso de uma srie de governos de esquerda na Amrica Latina nos ltimos anos, a atuao dos meios de comunicao destacou-se ainda mais como uma atuao poltica e no apenas miditica. Como ser melhor trabalhado na seo de es- tudo de casos, em pases como Brasil, Venezuela, Argentina, Equador e Bolvia, a mdia hegemnica atua hoje como oposio declarada aos governos atuais. Percebe-se que h clara divergncia de interesses entre os donos das mdias de tais pases e os governos de esquerda, o que se reete no fato de os meios de comunicao exercerem o papel de oposio aos atuais comandantes dos Estados. A atuao da mdia como ator poltico to forte que, em pases como Brasil e Argentina, especialistas chamam os meios de comunicao oligopolsticos de Partido da Imprensa (ARAJO, 2010). Segundo Fonseca (2012), a mdia latino-americana hoje atua seguindo seus interesses privatistas - ou seja, seus prprios interesses - em detrimento dos interesses pblicos da sociedade. J segundo Matta (2011), os meios de comunicao hoje prezam muito mais por seus prprios lucros do que pela qualidade de seus servios. Assim, uma mdia que tem atuao poltica e que concentrada em termos de propriedade busca a manuteno de governos neoliberais nos pases latino-americanos, questo que ser tratada na seo a seguir. Existe outro fator que aumenta a complexidade da situao latino-americana: alm da descrita existncia de oligoplios sobre os meios de comunicao, tais oligoplios se do sobre um produto es- pecco: a informao que advm das mdias. A informao tem a funo social comunicar os fatos da realidade aos cidados. Consequentemente, a oligopolizao deste bem mais sria que a de outros bens comercializveis. Por exemplo, a oligopolizao do mercado de sapatos traria srias consequncias para uma sociedade; entretanto, a oligopolizao dos meios de comunicao faz com que a divulgao da notcia que concentrada em poucas mos consequncia bem mais grave que a concentrao da produo de sapatos. 2.3. REGULAO DA MDIA: IMPORTNCIA, MODELOS E DESAFIOS A regulao da mdia um ponto bastante polmico nos debates atuais. Isso se deve principal- mente ao fato de que a mdia uma indstria privada e bastante concentrada, como j explicado anterior- mente. fcil perceber esse fato no nosso dia-a-dia, quando procuramos sites, jornais e revistas para nos informar: a grande maioria repete informaes, ou seja, sempre nos deparamos com as mesmas notcias, artigos e opinies, apenas escritos por autores ou jornalistas diferentes. A funo essencial da mdia informar a sociedade, ou seja, no emitir nem formar opinies, mas sim fornecer a ns a informao em sua forma pura, para que possamos dar o nosso prprio juzo de valor de acordo com nossa cultura e experincias. Contudo, j vimos que a realidade no corresponde ao ideal de informaes sem distores e interesses. O problema maior que nos encontramos totalmente inseridos em um sistema no qual os meios de comunicao dominantes reetem apenas os interesses e os valores das elites (sejam nacionais ou internacionais). No que essas elites no tenham o direito de expressar suas vises de mundo, a questo que no h pluralidade de opinies, nem todos tem o direito de expressar atravs dos meios de comunicao as suas opinies e suas ideias. Esse problema reexo do oligoplio referido anteriormente. 195 CELAC Frente a um cenrio de profunda oligopolizao da mdia, que traz como consequncia a manipu- lao da informao, tem-se a necessidade de fazer o que se chama de regulao dos meios de comuni- cao. Regular os meios de comunicao signica estabelecer regras mnimas para o cenrio miditico via legislao internas ao pas. Atualmente, os processos de regulao dos meios de comunicao na Amrica Latina se dividem em duas formas bsicas. A primeira a regulao da mdia cujo objetivo regu- lar os contedos que so veiculados em um pas. Por exemplo, existem leis hoje em pases como Bolvia e Jamaica que probem a veiculao de qualquer incitao ao dio, violncia ou ao preconceito, seja este tnico, religioso ou sexual (ESTADO PLURINACIONAL DA BOLVIA, 2011; JAMAICA, 2005). Este tipo de regulao tambm pode ter como objetivo evitar certos tipos de parcialidades na mdia no que se refere poltica destes pases, ou evitar que informaes errneas ou difamaes sejam divulgadas. Ainda, pode- -se regular os contedos miditicos no que tange ao uso de drogas e ao tabaco, para evitar publicidades deste gnero. A segunda a regulao dos meios de comunicao no que tange s propriedades midi- ticas. Este tipo de medida tem como objetivo desfazer os grandes oligoplios miditicos que hoje temos no continente americano, pois geralmente estabelece uma quantidade mxima de tipos de mdia ou de audincia que um nico dono ou uma nica rede pode ter. Grande parte da regulao de propriedade de mdia existente na Amrica Latina hoje no permite, por exemplo, que o dono de um tipo especco de mdia televiso ou rdio, entre outros possua aes ou propriedades em outro tipo de mdia: a chamada Lei de Meios, a qual no permite o cruzamento de propriedades. Outra maneira de regular a propriedade dos meios de comunicao estipular um mximo de canais de televiso/tiragem de jornais/ frequncia de rdio que uma determinada rede pode obter. Por outro lado, a regulao da mdia pode permitir que os governos estabeleam censura sobre os meios de comunicao, evitando que crticas sejam veiculadas, o que pode ser prejudicial prevalncia da democracia e da liberdade de expresso. O debate em torno da regulao da mdia tambm se baseia em um conceito bastante difundi- do na nossa sociedade: a democratizao. Democratizar as mdias signica passar por um processo de regulao que faz com que os meios de comunicao de um pas sejam um espao mais plural, no qual mais atores, com as mais diversas opinies, tenham voz e no apenas as grandes e poderosas mdias. Enquanto a regulao, como visto anteriormente, diz respeito ao controle dos contedos veiculados e da estrutura do setor dos meios de comunicao, a democratizao dos meios de comunicao o pro- cesso que faz com que estes sejam plurais, com mais grupos de comunicao atuando e demonstrando diferentes pontos de vista sobre as notcias e informaes transmitidas. Assim, entende-se que regulao dos meios de comunicao e democratizao destes so coisas diferentes, mas no necessariamente separadas: a regularizao da mdia de forma democrtica no deve ser entendida como censura em si ou como meio de acabar com os meios de comunicao dominantes, mas sim uma forma de criar novos canais, sites, jornais e revistas que tenham o mesmo alcance de distribuio e veiculao do que aqueles que j dominam o mercado. Essas novas agncias poderiam fornecer sociedade contrapontos s informaes dominantes, e outras ideias que no estamos habituados a receber pela mdia (tais como relacionadas cultura, poltica, sociedade, valores, diverso, etc). Atualmente, existe um complexo debate na Amrica Latina que envolve, de um lado, aqueles que defendem a regulao dos meios de comunicao, por acreditarem que regular signica democratizar, e, de outro, aqueles que entendem que qualquer tipo de regulao dos meios de comunicao representa uma ameaa liberdade de expresso e liberdade de mercado. Para estes, a regulao em termos de contedo fere a liberdade de discurso que deve, para muitos, ser plena inclusive quando divulgando inverdades ou contedos racistas -, bem como a regulao em termos de propriedade fere a liberdade de mercado, o que lhes seria prejudicial, pois, com esta mantida, as empresas com maior qualidade e com maior ecincia dominam o mercado. Desta maneira, o debate sobre a regulao dos meios de comuni- cao se polariza entre por aqueles que querem a manuteno da situao vigente e aqueles que querem uma atuao mais ativa dos governos quanto regulao. Para os primeiros, a regulao dos meios de comunicao um desrespeito aos princpios da liberdade de expresso. Como ser posteriormente melhor comentado, diversos documentos de legis- laes internacionais, como a Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ou a Conveno Americana de Direitos Humanos, clamam pela irrestrita liberdade de expresso. Liberdade de expresso signica o direito de manifestao de qualquer tipo de opinio, ideologia ou pensamento, sendo estes li- vres de qualquer censura, punio ou coero. Assim, para que os meios de comunicao possam exercer seu papel fundamental - o de informar o cidado - essencial que seja assegurada a liberdade de expres- so. Do contrrio, se existem mecanismos que impeam ou dicultem esta - a censura, por exemplo -, o trabalho das mdias e dos meios de comunicao acabam tendo seus trabalhos prejudicados. Assim, o limite entre a regulao dos meios de comunicao e prticas como censura muito tnue. Um exemplo disso foi a censura exercida pelo regime militar brasileiro, que durou entre 1964 at meados da dcada de 1980: sob a justicativa da regulao dos meios de comunicao - poca, a justicativa era evitar o avano da ameaa comunista -, o governo militar limitou e censurou grande parte das mdias brasileiras, especialmente aquelas que tinham crticas ou contestaes ao regime vigente. Ademais, muitas vezes a 196 UFRGSMUNDI regulao dos meios de comunicao feita por motivos polticos e objetiva tirar a voz de atores polticos opositores. Desta maneira, percebe-se que muitas vezes a regulao miditica extrapola a nalidade de democratizar os meios de comunicao e acaba tolhendo direitos fundamentais, como a liberdade de expresso. Ademais, existem outros argumentos utilizados contrariamente regulao dos meios de comuni- cao. A regulao das mdias pressupe necessariamente a interferncia dos governos dos pases neste setor do mercado. Assim, h quem argumente que haveria perda de ecincia de mercado. Anal, se de- terminados grupos so oligoplios na rea dos meios de comunicao - ou seja, conseguiram conquistar espao signicativo no mercado de um pas -, estes grupos conseguiram desenvolver seus negcios de maneira lucrativa e, provavelmente, conquistaram seus clientes porque tm produtos de qualidade. Consequentemente, a regulao dos meios de comunicao por parte dos governos s faria com que a qualidade das mdias casse, segundo tal lgica, pois as empresas ou grupos miditicos que eram do- minantes no mercado perdero espao para rmas menores e, supostamente, com menos qualidade e ecincia para conseguir audincia e clientes. Desta maneira, pode-se perceber que, assim como existem argumentos em prol da regulao dos meios de comunicao, esta pode ser um fator que tanto censura quanto limita as qualidades dos meios de comunicao de um pas. Em alguns pases que tm governos ditatoriais, por exemplo, comum que as mdias, extremamente reguladas, no sirvam como meios de comunicao de fato, mas como canal de propaganda do regime. Entretanto, ilusrio que isso ocorre somente em pases governados por ditaduras: em regimes considerados democrticos, pode-se ver o mesmo acontecer. O jornalista da revista Veja, Rodrigo Constantino, aponta que Defender a liberdade apenas quando estamos de acordo com o que dito muito fcil. O teste vem justamente quando precisamos defender essa liberdade para ideias que abominamos, que rejeitamos com toda a nossa fora, que batem de frente com nossas ideologias (CONSTANTINO, 2014, 1). Alm disso, aqueles que se posicionam contrariamente democratizao da mdia argumentam que no preciso promover uma regulao, visto que a mdia j se encontraria democratizada, pois como h muitas empresas, canais, jornais e estaes de rdio diver- sos, compostos por prossionais diferentes. Dessa forma, muitas ideias e opinies diversas j estariam disposio da sociedade. Por m, outro argumento central de que os meios de comunicao, como se encontram atualmente, buscam ouvir todos os lados de uma questo, diferentes opinies e ideologias. Por outro lado, importante que se esclarea uma importante questo a respeito da regulao miditica: muitas vezes, por mais que parea um paradoxo, a regulao da mdia de um pas pode signi- car at mais liberdade de expresso. Isso porque, em pases com uma mdia extremamente oligopolizada, apenas uns poucos grupos de poder podem emitir suas opinies e divulgar as informaes conforme lhes convm. Assim, regular pode signicar dar espao e liberdade de expresso queles que, sem regulao, jamais o teriam. importante ressaltar que a democratizao da mdia no pode ser garantida apenas com a cria- o de novas agncias. Esses novos canais, jornais, revistas, sites, etc, devem ter a mesma oportunidade de veiculao (ou seja, de chegar facilmente a todos ns) que aqueles que dominam os meios. Garantir essa facilidade de circulao no tarefa fcil e depende dos legisladores e governantes de cada pas. Cabe relembrar que a mdia como qualquer outro setor econmico e que, portanto, torna-se difcil que todos os estratos da sociedade consigam obter um espao nesse mercado, j que a manuteno e o desenvolvimento de uma empresa de comunicao so bastante custosos nanceiramente. Assim, a democratizao da mdia s pode ser viabilizada se houver leis que estabeleam a concesso de espaos para novas agncias. Na televiso, por exemplo, isso quer dizer que os canais que costumamos assistir continuaro existindo normalmente, contudo, haveria um espao obrigatrio (ex: 50% das opes de canais) para aqueles que ainda no so veiculados por no terem condies nanceiras e inuncia que os outros j detm - tais como canais pblicos e comunitrios. O desao ainda maior do que parece. Para que todos ns possamos ter acesso a informaes de qualidade, preciso cobrar dos nossos candidatos a partir do momento das eleies. Contudo, esse no um processo simples, pois se trata de reverter uma estrutura histrica dos meios de comunicao, que data da poca do regime militar (HERZ, 2008). Portanto, natural que encontremos grandes diculdades para romper com essa lgica de mercado que no prioriza o bem estar da sociedade, mas sim o lucro das grandes empresas. Dessa forma, tal como escreveu o jornalista Daniel Herz, em sua famosa obra A Histria Secreta da Rede Globo, estabelecer um controle pblico e democrtico sobre os meios de comunicao de massa um problema em aberto para as democracias contemporneas. Do contrrio, os referidos meios caro sujeitos apenas aos ditames autoritrios e s convenincias exclusivas do mercado (HERZ, 2008: 324-325). 197 CELAC Dado que grande parte do nanciamento das grandes companhias de comunicao de massa ad- vm dos investimentos feitos com dinheiro pblico (seja via impostos, na forma de iseno e de constru- o de redes de cabos e antenas de transmisso, seja via comerciais de rgos pblicos) seria fundamen- tal que houvesse transparncia por parte dessas empresas, j que elas fornecem um bem pblico, que a informao. A censura, por outro lado, diz respeito proibio de veiculao de determinadas informa- es que contrariam os interesses de um governo autoritrio. Esse o processo que ocorreu na Amrica Latina durante as dcadas de 1960 e 1970, quando as ditaduras desses pases impediam a livre circulao de informaes. Curiosamente, a maioria das companhias de comunicao de massa que atuam hoje na Amrica Latina foram fundadas durante esse perodo, atendendo aos interesses dessas ditaduras, como o caso da Rede Globo, que foi criada em 1965 (HERZ, 2008; CASTRO, 2011). 2.4. PRINCIPAIS CASOS NA AMRICA LATINA 2.4.1. ARGENTINA Desde 2003, a Argentina vem passando por um processo de reformulao poltica muito similar ao que ocorreu no Brasil. Os governos progressistas de Nstor Kirchner (2003-07) e de Cristina Kirchner (2007-14) buscaram adotar um programa de reformas polticas, sociais e econmicas que distanciassem o pas da dependncia externa (CARMO, 201). Em relao aos meios de comunicao, os conitos entre o governo e a mdia se intensicaram nesse perodo. Ainda em 2004, foi formado um frum, La Coalicin por una Radiodifusin Democrtica, que reuniu centenas de personalidades e organizaes polticas (sindicatos, universidades, movimentos sociais). Esse frum elaborou 21 propostas para a democratizao da radiodifuso no pas. Segundo La Coalicin, um dos graves problemas era a estrutura do mercado de comunicao, cuja estrutura jurdica era a mesma desde a ditadura na Argentina. Essa proposta popular de democratizao defendia que toda pessoa tem direito a investigar, pesquisar, receber e difundir informaes, opinies e ideias sem censura prvia, atravs do rdio e da televiso, observando o respeito ao Estado democrtico e aos direitos huma- nos. Essa proposta evoluiu, at que, em 2009, foi lanada a Lei de Meios, que organizou o sistema de co- municao no pas. Segundo essa nova lei, nenhum grupo privado de comunicao pode deter diversos meios de comunicao simultaneamente (ou seja, no controlar jornais, revistas, rdio, televiso, etc, ao mesmo tempo). As empresas que possurem mais do que 24 licenas 10 (canais) de TV a cabo e 10 licenas de servios abertos (TV aberta, rdio AM-FM, jornais), tero que devolver o excesso de concesses no prazo de um ano a partir da validao da lei, que ocorreu em outubro de 2013(REPBLICA ARGENTINA, 2014). O j mencionado Grupo Clarn, principal oligoplio de comunicao do pas da Amrica Latina, entrou na justia para impedir que a lei fosse implementada, alegando que feria a liberdade de expresso. Entretanto, a justia no considerou verdadeira a alegao. Alm disso, o Grupo Clarn havia sido um dos principais articuladores da oposio ao governo Kirchner, promovendo e estimulando as manifestaes que ocorreram contra o governo em 2012. Cabe destacar que a Lei de Meios j permitiu instalar 152 rdios em escolas pblicas de primeiro e segundo grau, 45 canais de TV e 53 rdios FM universitrias. Alm de criar o primeiro canal de TV aberta e de 33 estaes de rdio vinculados aos povos originrios (os descendentes diretos das comunidades indgenas que j ocupavam o territrio antes da chegada dos colonizadores europeus). Por m, a Lei de Meios resguarda 33% dos meios de comunicao do pas para entidades sem ns lucrativos (os estados da federao, o governo argentino, o municpio, as universidades, as comunidades, entre outros). Nesse sentido, a Argentina aparece como um exemplo de um pas que iniciou o processo de democratizao das comunicaes. Entretanto, esse processo no tem sido simples, visto que o governo tem sofrido for- tes presses dos setores conservadores da mdia. 2.4.2. BRASIL Como j mencionado, a mdia brasileira extremamente concentrada nas mos de algumas pou- cas redes ou empresas. A televiso concentrada, tanto em termos de propriedade quanto em termos de audincia, na mo de seis grandes empresas, dentre as quais a rede Globo a maior e mais inuente. Tais empresas tambm possuem outros tipos de mdia - as chamadas mdias cruzadas -, como jornais e frequncias de rdio. Assim, onze famlias hoje controlam grande parte das propriedades dos meios de comunicao brasileiros (FONSECA, 2012). Alm das dinastias familiares, que dominam principalmente o mercado televisivo, outros grupos destacam-se, como a Editora Abril - responsvel pela propriedade de 69% dos mercados de revistas e 14% dos mercados de TV por assinatura (HERZ, 2014) - e jornais como O Estado de So Paulo e Folha de So Paulo, que representam, sozinhos, 10% da tiragem nacional (HERZ, 10 Licena o nome dado concesso de direito de transmisso de televiso ou rdio. 198 UFRGSMUNDI 2014). Segundo Daniel Herz (2014), os dois grupos mencionados so os dois primeiros times de donos da mdia brasileira. H mais dois grupos de pessoas que controlam grande parte dos meios de comunica- o social no Brasil, quais sejam grupos regionais menores, ligados a redes maiores de TV, especialmente, e os pequenos donos da mdia - grupos regionais ainda menores e veculos independentes, com pouca inuncia na comunicao social brasileira e longe da parte mais dinmica do mercado (HERZ, 2014). As- sim, as seis principais redes (Globo, SBT, Rede TV, Record, Bandeirantes e CNT) dominam hoje 667 vecu- los de comunicao, dos quais, alm da televiso aberta, a Rede Globo domina a televiso por assinatura e segmentos de jornais e revistas, enquanto a Record e a Rede TV dominam tambm emissoras de rdio (DONOS DA MDIA, 2014). Assim como em diversos outros pases da Amrica Latina, a mdia brasileira tem atuado como ator poltico no cenrio do pas. Historicamente, as dinastias familiares das grandes redes de comunicao brasileiras so ligadas a grupos politicamente conservadores, politicamente direcionados direita e/ou neoliberais. Anal, com governos neoliberais, a mdia brasileira no corre riscos de que medidas em favor da desconcentrao sejam feitas. O exemplo mais claro de atuao da mdia brasileira como ator poltico a rede Globo. A rede Globo nasceu na dcada de 1960, no Brasil, e foi criada por uma famlia de empresrios que j tinha propriedades de rdio e jornais. A partir de ento, a rede Globo comeou a crescer e a manter contato com redes de meios de comunicaes menores e regionais, criando aquilo que Herz, Osrio e Grgen (2002) chamam de coronelismo eletrnico: criao de redes de contato e inuncia entre grupos maiores e menores, os quais se alinham poltica e ideologicamente, em um momento em que a televiso comeava a se interiorizar no Brasil. O j mencionado apoio da Globo ditadura civil-militar brasileira e a sua atuao no perodo de redemocratizao brasileira so provas disto: nas eleies de Tancredo Neves (1985), Fernando Collor (1989) e Fernando Henrique Cardoso (1994), a rede Globo atuou ativamente em prol destes candidatos - fato que foi decisivo para os resultados eleitorais (GOULART, 2008). Apesar de o Brasil ter hoje uma mdia extremamente concentrada na mo de poucos donos, ne- nhum tipo de regulao consistente at hoje foi feita para mudar tal situao: o Brasil um dos pases mais atrasados na Amrica Latina no sentido de democratizao da mdia. Grande parte das legislaes sobre o assunto do perodo da ditadura civil-militar, com regras arcaicas e que pouco servem para a democratizao dos meios de comunicao brasileiros. A atual Constituio Federal brasileira, de 1988, prev, no seu captulo de Comunicao Social, que os meios de comunicao no podem ser objeto de monoplio ou oligoplio. Entretanto, tal captulo nunca foi plenamente cumprido. No ano de 2010, ltimo ano que o Brasil esteve sob o mandato do ex-presidente Lula, este apre- sentou um projeto de lei com o objetivo de regular os meios de comunicao brasileiros. Segundo Lam- bert (2012), o texto propunha medidas de regulamentao de contedo - como a proibio de qualquer apologia ao racismo e de discriminao social - e a reduo da concentrao de propriedade. poca, o texto foi considerado autoritrio por grande parte dos donos de meios de comunicao no Brasil e, pou- co depois, o projeto de lei j estava arquivado. Muito disto se deve j mencionada grande presena dos bares da mdia no Senado e na Cmara de Deputados, montando o que alguns especialistas chamam de bancada das telecomunicaes. Durante o governo Lula, com o intuito de tornar a mdia um espao mais democrtico, foi criada uma empresa pblica de comunicao - a Empresa Brasil de Comunicao (EBC) - em 2008. Ainda, foi realizada a Conferncia Nacional de Comunicao (I Confecom), com obje- tivos semelhantes. Tais medidas, entretanto, no foram sucientes para que a concentrao de poder na mdia se alterasse. 2.4.3. MXICO Assim como o Brasil, o Mxico tem atualmente seus meios de comunicao extremamente con- centrados nas mos de alguns poucos e inuentes donos. Ainda, no pas tambm se identica uma forte relao entre os empresrios donos dos meios de comunicao e a classe poltica mexicana (SOUSA et al, 2014). O meio miditico mais popular e mais concentrado no Mxico a televiso. O principal canal de televiso mexicano, a rede Televisa, concentra atualmente 70% da audincia do pas (LAMBERT, 2012), alm de ter uma penetrao de 96,5% do territrio nacional (SOUSA et al, 2014). O grupo controlado pela famlia Azcarraga - uma das mais ricas do pas. A segunda maior emissora a TV Azteca, tambm com grande alcance e inuncia no pas. O Mxico tem, todavia, uma caracterstica bastante diferente do Brasil: h uma grande concentrao no setor das telefonias, sendo grande parte desta de propriedade de Carlos Slim, atualmente o segundo homem mais rico do globo. Sua empresa, a Amrica Mvil, controla 84% do mercado de telefonia xa e da internet do pas (BORGES, 2014). At 1988, quando Carlos Salinas de Gortati assume a presidncia mexicana, no houve algum tipo de articulao poltica no Mxico em prol da regulao da mdia. Alm disso, a partir do governo de Gor- tati, as tendncias neoliberais so exacerbadas no pas, alm de ser promovida uma srie de privatizaes 199 CELAC (SOUSA et al, 2014). A partir de ento, foram aprovadas leis de carter neoliberal, culminando na chamada Lei Televisa, de 2006, que deu ainda mais liberdade para a formao de monoplios no pas (SOUSA et al, 2014). O Mxico tem atualmente um dos governos mais neoliberais dentre os latino-americanos. O pas governado, hoje, por Enrique Pea Nieto, poltico do Partido Revolucionrio Institucional (PRI), de cen- tro-direita. Recentemente, tem-se noticiado escndalos de ligaes entre o PRI e a Televisa. O jornal The Guardian divulgou que, em 2012, a Televisa vendeu seus servios ao PRI, com o declarado objetivo poltico de aumentar o status do ento candidato presidncia, Pea Nieto (LAMBERT, 2012). Assim, percebe-se que a questo da regulao da mdia mexicana um fator extremamente relevante para os clculos polticos. Em uma aparente contradio, o pas hoje empreende um processo de regulao da mdia. O pro- jeto atualmente debatido, apresentado pelo presidente Nieto, prev a instituio de um rgo delegado de poderes para obrigar a venda de aes de empresas com mais de 50% do mercado, alm de regula- es de preos e multas para grandes concentraes, com o objetivo de ajudar o crescimento de em- presas menores (LIMA, 2013). Ainda, o projeto prev a criao de novas redes de transmisso digital para a televiso aberta, alm de um canal estatal com programas culturais e educacionais. Ademais, as redes existentes sero obrigadas a oferecer programaes gratuitas para TV a cabo (LIMA, 2013). Atualmente, o projeto encontra-se tramitando na Cmara de Deputados. O principal e declarado objetivo da regulao da mdia mexicana a democratizao dos meios de comunicao e um mercado com empresas com maiores capacidades de concorrncia. Entretanto, exis- tem outros fatos que devem ser levados em considerao. O mercado televisivo mexicano - concentrado nas duas grandes redes mencionadas acima - ainda no tem grande participao das aes e dos investi- mentos de Carlos Slim. Assim, percebe-se que a regulao ser uma grande oportunidade para que atores como Slim - com muitos recursos nanceiros e capacidade publicitria - dominem esta parcela do merca- do. Desta maneira, a regulao dos meios de comunicao mexicanos tem de ser avaliada com cuidado. 2.4.4. VENEZUELA Desde 1999, a Venezuela vem passando por um processo de transformao poltica, social e eco- nmica, que de certa forma impulsionou o movimento de governos progressistas na regio nos anos consecutivos (como Brasil, Argentina, Bolvia, Equador, El Salvador, Nicargua, Uruguai). Desde o incio do governo de Hugo Chvez, que construiu a chamada Revoluo Bolivariana, a sociedade venezuelana as- sistiu a enormes mudanas estruturais no pas. Alm das reformas econmicas que procuraram diminuir a concentrao de renda - que era uma das piores da Amrica Latina -, o governo Chvez buscou ampliar os direitos sociais da populao carente, nanciando essas polticas atravs da nacionalizao dos lucros do petrleo fonte de energia abundante no pas (BARROS, 2007). Esse movimento foi acompanhado por um processo de busca por democratizao das comu- nicaes. Assim como nos outros pases da Amrica Latina, a maioria da mdia estava ligada a interesses estrangeiros, se opondo nacionalizao do petrleo e aos programas sociais propostos pelo governo Chvez. Nesse contexto, o governo venezuelano implementou a Lei de Responsabilidade Social no Rdio, na Televiso e em Meios Eletrnicos, que basicamente procura estabelecer um maior acesso da popula- o s informaes. Alm disso, a Lei estabelece que ao menos 3 horas dirias de programas de rdio e televiso devem ter contedo cultural e educativo, com enfoque pedaggico para crianas e adolescen- tes. No mnimo 7 horas dirias da programao dever ser de produo nacional. Os nicos meios que no tm essa obrigatoriedade so aqueles sem ns lucrativos. Alm disso, 85% da publicidade veiculada devem ser produzidos nacionalmente. Os rdios devem veicular ao menos 50% de sua programao com msicas venezuelanas e 10% com msicas latino-americanas e caribenhas (REPBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA, 2010). Alm de procurar estabelecer um maior acesso informao, a Lei se enquadra nos objetivos gerais do governo venezuelano, que so: a defesa da aproximao com os vizinhos da regio, a ampliao da cidadania, a diminuio da dependncia externa e o aprofundamento do acesso educao pblica e de qualidade. 3. AES INTERNACIONAIS PRVIAS A comunidade internacional e rgos internacionais diversas vezes j debateram o tema dos meios de comunicao e da liberdade de expresso. Aqui, destacam-se as resolues e decises mais 200 UFRGSMUNDI importantes sobre o assunto. Primeiramente, a Declarao Universal dos Diretos Humanos, de 1948, disse a respeito do Direito de Privacidade (Artigo 12): Ningum deve ser submetido interferncia arbitrria sobre sua privacidade, famlia, lar ou correspondncia, nem a ataques sobre sua honra e reputao. Todos tm o direito de proteo da lei contra tais interferncias ou ataques (ASSEMBLEIA GERAL DAS NAES UNIDAS, 1948). Ainda, sobre o Direito de Liberdade de Opinio e de Expresso (Artigo 19): Todos tm o direito liberdade de opinio e expresso; esse direito inclui a liberdade de sustentar opinies sem interferncia e a liberdade de procurar, receber e transmitir in- formaes e ideias atravs da mdia e independentemente de fronteiras (AGNU, 1948). Por sua vez, a Declarao Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, arma que: (Captulo 1, Artigo 4): Todos tm o direito de liberdade de investigao, ou de opinio e liberdade de expresso e disseminao de ideias, por qualquer meio de comunicao (ORGANIZAO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1948). Outro documento importante sobre o assunto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos (1966). Segundo seu Artigo 19: Todos devem ter o direito de liberdade de expresso; esse direito deve incluir a liber- dade de procurar, receber e transmitir informaes e ideias de todos os tipos, inde- pendentemente de fronteiras, sejam elas de forma oral, escrita ou impressa, em forma de arte, ou atravs de qualquer meio de comunicao escolhido (ASSEMBLEIA GERAL DAS NAES UNIDAS, 1966). Assim, percebe-se que os quatro documentos buscam assegurar internacionalmente a liberdade incondicional de expresso. Por outro lado, o Artigo 20 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos de 1966 diz que qualquer propaganda para guerra deve ser proibida por lei (AGNU, 1966), mostrando uma aparente contradio no documento, pois, primeiramente, este clama pela total e incondicional liberda- de de expresso, mas, posteriormente, rege pela proibio de propagandas de guerra. J a Conveno Americana de Direitos Humanos, de 1969, em seu Captulo 2, Artigo 12, diz que: (1) Todos tm o direito de pensamento e de expresso. Esse direito inclui liberdade de procurar, receber e transmitir informaes e ideias de todos os tipos, independen- temente de fronteiras, sejam elas de forma oral, escrita, impressa, na forma de arte, ou atravs de qualquer meio de comunicao. (2) O exerccio do direito fornecido no inciso anterior no deve ser submetido censura prvia, mas deve ser estar sujeito imposio de responsabilidades que devem estar expressamente estabelecidas por leis em toda a sua amplitude necessria para assegurar: Respeito aos direitos ou re- putao de outros; Proteo da segurana nacional, ordem pblica, sade pblica ou moral. (3) O direito de expresso no deve estar restrito a meios ou mtodos indire- tos, tais como abuso de controle governamental ou privado sobre jornais, emissoras de rdio, ou equipamentos utilizados na disseminao de informao, ou por outros meios que impeam a comunicao ou a circulao de idias e de opinies (4) Qual- quer propaganda para guerra ou toda a apologia ao dio nacional, racial ou religioso que constitua incitaes violncia sem lei ou qualquer outra ao similar contra qualquer pessoa ou grupo em qualquer nvel, incluindo raa, cor, religio, idioma, ou nacionalidade deve ser considerada como ofensas punveis por lei (ORGANIZAO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969, grifo nosso). Assim, percebe-se que o documento supracitado, apesar de clamar pela liberdade de expresso e proibir qualquer tipo de censura a esta, d limites a este, pois assegura o respeito a algumas respon- sabilidades, como a segurana nacional e a ordem pblica, alm de proibir a propaganda guerra ou incitao ao dio e ao racismo, entre outros. Por sua vez, a Declarao dos Princpios sobre Liberdade de Expresso, de 2000, diz que: Princpio 1: Liberdade de expresso, em todas as suas formas e manifestaes um direito fundamental e inalienvel de todos os indivduos. Adicionalmente, um requi- sito indispensvel para a existncia de uma sociedade democrtica. [...] Princpio 4: O acesso informao em poder do Estado um direito fundamental de cada indivduo. Os Estados tm a obrigao de garantir o pleno exerccio deste direito. Este princpio 201 CELAC s admite limitaes excepcionais que devem estar previamente estabelecidas em lei, em caso de perigo real e iminente que ameace a segurana nacional em socie- dades democrticas.[...] Princpio 12: Os monoplios ou oligoplios na propriedade e controle dos meios de comunicao devem estar sujeitos a leis anti-trust, uma vez que conspiram contra a democracia ao restringir a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exerccio do direito dos cidados informao. Em nenhum caso essas leis se aplicam exclusivamente aos meios de comunicao. A concesso de fre- quncias de transmisso de rdio e televiso deve considerar critrios democrticos que garantam a igualdade de oportunidades de acesso para todos os indivduos. (OR- GANIZAO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2000). Em adio ao documento anteriormente comentado, a Declarao dos Princpios sobre Liberdade de Expresso da Organizao dos Estados Americanos (OEA) assegura que funo dos Estados e, con- sequentemente, dos governos assegurar o acesso informao aos cidados e que este no deve ser desvirtuado pela formao de oligoplios ou monoplios questo que fundamental para a regulao dos meio de comunicao. A CELAC tambm tem as seguintes manifestaes sobre o assunto: primeiramente, a Declarao Especial sobre a Defesa da Democracia e a Ordem Constitucional na CELAC, de 2011, diz que: Rearmamos que a democracia, o desenvolvimento sustentvel, o respeito de todos os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais, inclusive o direito ao desenvolvi- mento, so interdependentes e se reforam mutuamente, com igual base nos prin- cpios de objetividade, imparcialidade e universalidade (COMUNIDADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS, 2011). J o Plano de Ao da CELAC, de 2014, arma sobre Cultura e Dilogo entre Culturas: Promover a integrao cultural da regio, trabalhando em conjunto para a prote- o do patrimnio e para a promoo e divulgao da diversidade das expresses culturais que caracterizam a identidade da Amrica Latina e do Caribe e promover em todos os nveis da cultura em favor do crescimento econmico, erradicao da pobreza, desenvolvimento sustentvel, gerao de emprego e da integrao latino- -americana e caribenha (COMUNIDADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARI- BENHOS, 2014a). A Declarao de Havana, tambm da instituio e armada em 2014, diz que: Raticando hoje o nosso compromisso irrevogvel para fortalecer esta rea do di- logo poltico ecaz. Temos sido, somos e seremos diferentes e, a partir dessa diversi- dade, que temos de identicar os desaos e objetivos comuns de convergncia que nos permitam avanar na integrao da nossa regio. Fortalecer nossa democracia e todos os direitos humanos para todos, dar mais oportunidades para o nosso povo, construir sociedades mais inclusivas; melhorar a nossa produtividade; estreitar o nos- so comrcio, melhorar a nossa infraestrutura e conectividade e redes necessrias que cada vez mais unam nossos povos; trabalhar pelo desenvolvimento sustentvel, para superar as desigualdades e por uma distribuio mais equitativa da riqueza, a m de que todos e todas possam sentir que a democracia d sentido s suas vidas. Essa a misso da CELAC, essa a tarefa que fomos convocados e essa a responsabilidade poltica que teremos adiante, e da qual deveremos prestar contas a nossos povos (COMUNIDADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS, 2014b). Finalmente, a Declarao Especial sobre a Cultura como Promotora do Desenvolvimento Huma- no, de 2014, arma: Artigo 4: Enfatizar a contribuio da cultura para erradicar a pobreza, reduzir as de- sigualdades sociais, ampliando as oportunidades de emprego e reduo das taxas de excluso social, como parte da promoo de sociedades mais equitativas [...] Artigo 8: Apoiar a adoo das medidas necessrias para proteger o conhecimento tradicional e o conhecimento como parte da identidade da Amrica Latina e do Caribe (COMUNI- DADE DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS, 2014c). Assim, percebe-se que os pases da CELAC estabeleceram que a informao, a cultura e, conse- quentemente, os meios de comunicao tm uma grande funo social no desenvolvimento dos pases latino-americanos. 202 UFRGSMUNDI 4. POSICIONAMENTO DOS PASES Historicamente, a Argentina tem enfrentado um grande debate acerca do projeto de democrati- zao dos meios de comunicao. Desde 2003, a Argentina passou a adotar medidas polticas e econmi- cas que tinham como objetivo ampliar o acesso da populao a bens bsicos e, especialmente, diminuir as altas taxas de desemprego do pas. Esse carter progressista do governo sofreu forte oposio da mdia argentina que, seguindo o padro latino-americano, controlada por apenas alguns grupos privados, verdadeiros oligoplios empresariais. Em 2009, foi promulgada a lei de meios (2009) que terminou com o direito desregulado das companhias miditicas de possurem dezenas de canais de televiso e rdio, bem como jornais. Nesse sentido, o governo argentino cr que a democratizao da mdia um processo fundamental para o aumento da educao e da cultura de um pas. Anal, acredita que a privatizao da informao se ope ao interesse de consolidar uma mdia livre e democrtica. Semelhantemente, a Venezuela, a partir do governo do presidente Hugo Chvez, adotou inme- ras medidas para melhorar a distribuio de renda e as condies de vida do povo venezuelano de renda mais baixa. Nesse processo, o governo venezuelano incluiu o acesso informao entre os itens bsicos para a promoo da cultura e educao. Por isso, o governo implementou a Lei de Responsabilidade Social no Rdio, Televiso e Meios Eletrnicos (RESORTE), cujo objetivo principal permitir que a popu- lao tenha maior acesso s informaes atravs dos meios de comunicao. Nesse sentido, o governo venezuelano entende que os meios de comunicao no devem ser exclusivamente privados e voltados para a obteno de lucros. Anal, a informao um bem pblico. Para a Venezuela, uma mdia livre uma mdia que possa atender os interesses de toda a populao (SCHOOL OF THE ARTS & MEDIA, 2013). A posio venezuelana se assemelha de Cuba, pois ambos defendem a democratizao da mdia. Pela constituio do pas, proibida a posse privada de meios de comunicao, j que o acesso infor- mao considerado um bem essencial da populao; assim, toda mdia pblica. Existem trs grandes jornais de circulao nacional e mais quatorze jornais regionais, alm de diversos canais de televiso e rdio (SCHOOL OF THE ARTS & MEDIA, 2013). Seguindo a tendncia dos governos progressistas latino-americanos, desde o governo de Mau- rcio Funes (2009-2014), El Salvador vem passando por um processo de mudanas polticas, sociais e nos meios de comunicao. Em 2013, o governo apresentou um projeto de lei de meios pblicos e lei de radiodifuso comunitria. O objetivo dessas leis criar normas e polticas para a correta apresentao do servio pblico de comunicao, visando apoiar o respeito cultura, ao meio-ambiente, igualdade de gnero e integrao na Amrica Central. Alm disso, dene a comunicao como um servio pblico de interesse social, um direito da populao e um dever do Estado em prestar esse servio, e no das empresas privadas. As leis tambm preveem a possibilidade de o governo expropriar empresas privadas de comunicao com ns lucrativos (ou seja, tornar pblicas essas empresas). Alm disso, as leis estabe- lecem um cdigo de tica para o jornalismo (SCHOOL OF THE ARTS & MEDIA, 2013). No Haiti, por outro lado, a principal preocupao implementar uma reforma nas comunicaes, com o objetivo de modernizar e desenvolver a mdia, criar cdigos de tica, qualicar os prossionais de mdia e fornecer assistncia tcnica s associaes de imprensa. Dado o quase estado de guerra civil que vive o pas devido misria e atuao de rebeldes armados, a mdia no tem um grande papel como ator poltico no Haiti. Em comparao aos outros pases da Amrica Latina, a estrutura de comunicao do Haiti bastante precria (SCHOOL OF THE ARTS & MEDIA, 2013). O Haiti, dessa forma, favor da regula- o da mdia, apesar de no possuir uma estrutura bem desenvolvida de mdia em seu pas. A mdia no Suriname segue o padro da Amrica Latina de ser bastante concentrada em poucas empresas privadas. Cabe destacar que a maioria das empresas de comunicao tem origem estrangeira, especialmente holandesa (a Holanda foi colonizadora do Suriname at 1975). Assim, com o carter pro- gressista do governo, que aderiu UNASUL em 2010, a mdia ampliou suas crticas ao presidente Bouter- se. Em suma, o governo do Suriname se posiciona de maneira favorvel regulao da mdia. Ao contrrio da realidade da grande maioria dos pases latino-americanos, os meios de comuni- cao de Barbados so predominantemente pblicos e estatais. Para isso, foram criadas duas entidades pblicas, o Servio de Informao do Governo (1958) - que responsvel pela disseminao de infor- mao pblica para a populao - e a Corporao de Transmisso do Caribe (1963) que se tornou CTC TV e CTC Rdio. Isso no signica que no existam empresas privadas, mas sim que h o predomnio de empresas pblicas. At mesmo essas empresas privadas so compostas por alguma parcela de capital estatal. Nesse processo, foi criada tambm uma empresa pblica de TV a cabo, a One Caribbean Media, que atua tambm em outros pases da regio, como Trinidad e Tobago e Granada. Ou seja, Barbados se coloca a favor da regulao miditica. 203 CELAC O Brasil posiciona-se favoravelmente regulao dos meios de comunicao. No pas, os meios de comunicao so extremamente concentrados na mo de algumas poucas famlias e, portanto, a regulao da mdia questo de democratizao da comunicao social. Nos ltimos anos, o pas tem tomado algumas medidas neste sentido, como a criao da Empresa do Brasil de Comunicao e da TV Brasil e a promoo de eventos para a discusso do assunto, como o Frum Nacional para a Democrati- zao da Comunicao. Entretanto, tais atitudes no foram sucientes, e o pas continua sendo um dos mais atrasados dentre os latino-americanos em termos de regulao. Granada atualmente um dos pases latino-americanos com a maior quantidade de leis regula- mentando seus meios de comunicao. O objetivo declarado do pas o controle da informao, para evitar qualquer tipo de difamao. Entretanto, o pas hoje , dentre os latino-americanos, dono de um dos maiores nveis de censura. Recentemente, escndalos envolvendo a demisso do jornalista Rawle Titus supostamente em funo de este ter divulgado escndalos de corrupo do governo so exemplo disso. Desta maneira, percebe-se que o pas possui um dos mais baixos nveis de liberdade de expresso no continente americano. Assim como Granada, a Guiana tambm se posiciona favoravelmente regulao dos meios de comunicao, pois entende que este um fator fundamental para a democracia plena no pas. Recente- mente, o pas tem tomado medidas positivas neste sentido, como a Lei de Acesso Informao, de 2011. Dentre os pases latino-americanos, a Jamaica um dos mais avanados em termos de regulao da mdia, especialmente no que tange regulao de contedos. O pas tem legislao especca para proibir qualquer tipo de incitao violncia, ao dio e ao preconceito, seja este religioso, sexual, tnico ou racial. Ainda, o pas hoje regula todo tipo de informao ou publicidade relacionada infncia e probe terminantemente qualquer tipo de publicidade relacionada ao tabaco e ao uso de drogas. Atualmente, o Mxico portador de um dos maiores paradoxos em termos de regulao da mdia na Amrica Latina: h duas dcadas, o pas governado por presidentes que so ideologicamente posi- cionados direita e seguem dogmas econmicos e polticos neoliberais. Em funo disto, o pas hoje tem sua mdia extremamente concentrada nas mos de alguns poucos donos. Entretanto, nos ltimos anos, o pas vem empreendendo um processo de regulao da mdia no sentido de desconcentrao de proprie- dade. Ressalta-se, contudo, que o pas no defende qualquer tipo de regulao em termos de contedo, por considerar que este tipo de medida fere o princpio da liberdade de expresso. Antgua e Barbuda se posiciona contrariamente a qualquer tipo de regulao da mdia, pois acre- dita que isso ameaa a liberdade de expresso. O pas defende que tanto o tipo de concesso quanto o contedo veiculado no devem ser regulados, a m de preservar a liberdade e a democracia. O pas ainda defende que a regulao da mdia um assunto interno. Como Antgua e Barbuda , o Panam defende a liberdade de expresso, e, em funo disto, con- tra a regulao dos meios de comunicao. Alm disso, o pas tambm defende que a mdia um assunto interno e que, por ameaar a liberdade de expresso, a regulao dos meios de comunicao ameaa a democracia. Com uma tradio de monoplio na mdia, a Bolvia tem adotado medidas para democratizar os meios de comunicao e promover o pluralismo de opinies. O pas defende que a comunicao um direito bsico e s pode ser atingido plenamente quando h meios democrticos onde todos possam se manifestar. Um exemplo para os demais pases latino-americanos sobre como regular a mdia a Lei Ge- ral de Telecomunicaes, Tecnologias de Informao e Comunicao, promulgada em 2011, que dividiu as concesses dos meios de comunicao igualmente entre os setores pblico, comercial e social. O governo do Chile posiciona-se favoravelmente em relao regulao dos meios de comuni- cao. O atual governo acredita ser urgente a criao de uma legislao que limite os altos graus de con- centrao da propriedade dos meios de comunicao do pas. Alm disso, faz-se necessria a ampliao do espao pblico na mdia e o desenvolvimento da mdia comunitria. Contudo, historicamente, o Chile sempre se posicionou contra este tipo de regulao e o debate ainda muito recente no pas. Assim sen- do, a posio chilena tende a ser mais cautelosa, atentando para o fato de que a regulao da mdia pode ser usada por governos autoritrios como censura estatal. A Colmbia defende, acima de tudo, o Estado democrtico, e v na regulao da mdia uma amea- a liberdade de expresso e prpria democracia, pois abre espao para a censura estatal. Alm disso, para a existncia plena da democracia, os meios de comunicao no devem se subordinar aprovao estatal. O pas acredita que a liberdade de expresso um direito fundamental e deve ser assegurado. Assim, a Colmbia se posiciona contrariamente regulao dos meios de comunicao sociais. A Costa Rica considera que a regulao da mdia uma ameaa liberdade de expresso, que um direito fundamental dos cidados e um dos pilares da democracia. A mdia do pas considerada por 204 UFRGSMUNDI entidades internacionais uma das mais livres da Amrica Latina, dados os poucos constrangimentos le- gais existentes no setor. Desta forma, o pas se apresenta como um importante opositor regulao dos meios de comunicao. A Repblica Dominicana tambm um grande defensor da liberdade de expresso, considerando que a regulao de meios de comunicao promove a censura e o controle da informao pelo Estado, sendo uma ameaa democracia. Defende que a nica maneira de existir uma mdia realmente livre fomentando a livre concorrncia, sem ingerncias do Estado no setor. Por estes motivos, o pas preocu- pa-se com a situao dos meios de comunicao de alguns pases da Amrica Latina, nos quais se observa uma progressiva diminuio na liberdade de imprensa. O Equador possui posio favorvel regulao da mdia, considerando-a fator essencial para que haja plena liberdade de expresso e democracia no pas, uma vez que a concentrao da propriedade dos meios de comunicao estabelece um monoplio sobre a informao e impede que a pluralidade de interesses seja representada. Nos ltimos anos foram realizados diversos avanos rumo regulao da mdia, dentre os quais se destaca a Lei Orgnica de Comunicao, a qual dispe de diversas medidas que objetivam desconstruir o oligoplio detido pelos principais veculos de mdia do pas, alm de aumentar a participao de meios pblicos e comunitrios no setor de comunicao. Estas medidas colocam o Equador em posio de grande relevncia no debate quanto democratizao da mdia. A Guatemala contra qualquer tipo de regulao miditica e defende que as concesses sejam feitas por leiles, beneciando quem apresentar as melhores condies tcnicas, pois assim garantida a qualidade da transmisso de informaes. O pas contrrio a qualquer medida de democratizao mi- ditica, pois acredita que esta uma questo interna e que a regulao ameaa o princpio da liberdade de expresso. Honduras se posiciona de maneira contrria regulao dos meios de comunicao. No pas, a legislao e os governantes prezam pela livre concorrncia, considerando-a pressuposto fundamental da democracia e da liberdade. O governo atual considera que regular a propriedade e os contedos dos ve- culos de mdia uma afronta livre concorrncia e livre imprensa e, portanto, uma ameaa prpria liberdade individual dos cidados. Embora o Paraguai tenha iniciado, em 2008, um processo de democratizao da mdia com o governo de Fernando Lugo, o atual posicionamento do pas vai contra a regulao dos meios de comu- nicao. O atual governo defende a liberdade de expresso como um direito fundamental, e acredita que uma regulao da mdia ameaa esse direito. O Peru se posiciona de maneira favorvel regulao dos meios de comunicao. O debate to- mou grande importncia no pas no nal de 2013, quando o grupo El Comrcio comprou o grupo Enpen- sa e passou a deter 77% do mercado de mdia impresso. Este fato motivou o presidente Ollanta Humala a fazer um discurso favorvel regulao da mdia, armando que a concentrao neste setor uma afronta liberdade de expresso e democracia. O governo atual tem estudado maneiras para diminuir a concentrao da mdia e um novo projeto de lei esta sendo elaborado. Por este motivo, o Peru se tornou um pas importante na discusso quanto regulao dos meios de comunicao. So Cristvo e Nevis se posiciona contrariamente regulao dos meios de comunicao. O pas acredita que necessrio prezar por uma mdia democrtica, portanto condena qualquer tipo de censura liberdade de expresso. Por este motivo, o pas observa com preocupao os processos de mudanas nas legislaes referentes ao assunto de alguns pases da Amrica Latina - como Equador, Argentina e Venezuela. So Cristvo e Nevis se orgulha de possuir uma mdia livre e plural e acredita que esta representa os mais diversos interesses da sua populao. REFERNCIAS ARAJO, Francisco de Paula. A Lei de Meios e o m da propriedade cruzada. 2013. Disponvel em: <http:// www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed772_a_lei_de_meios_e_o_m_da_propriedade_cruza- da>. Acesso em: 12 maio 2014. ARAJO, Washington. A Inverso de Papeis: A Imprensa como Partido Poltico. 2010. In: Observatrio da Im- prensa. 22 abr. 2010 Disponvel em: <http://www.conversaaada.com.br/brasil/2010/04/22/washington-arau- jo-a-inversao-de-papeis-a-imprensa-como-partido-politico/>. Acesso em: 03 mar. 2014. 205 CELAC ASSEMBLEIA GERAL DAS NAES UNIDAS. Declarao Universal dos Diretos Humanos. 1948. Disponvel em < http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em 20 fev. 2014. ________. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos. 1966. 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Historicamente, as mdias latino-americanas so de posse de alguns poucos donos e, portanto, so oligopolizadas. Como consequncia, a distribuio de informao est hoje concentra- da nas mos de alguns poucos proprietrios e de algumas poucas famlias. Assim, ser debatido na CELAC quais medidas podem ser tomadas pelos pases para a democratizao dos meios de comunicao. 208 UFRGSMUNDI