Revista LII
Revista LII
Revista LII
Academia
Mineira
de Letras
ANO 85 - VOLUME LII - ABRIL, MAIO, JUNHO - 2009
ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Fundada em 25 de dezembro de 1909
Rua da Bahia, 1466 Telefax (OXX31) 3222-5764
CEP 30160-011 - Belo Horizonte-MG
www.academiamineiradeletras.org.br
[email protected]
DIRETORIA AML
Presidente: Murilo Badar
1 Vice-presidente: Miguel
Augusto Gonalves de Souza
2 Vice-presidente: Orlando Vaz
Secretrio Honorrio: Oiliam Jos
Secretrio Geral: Alosio Garcia
1 Secretrio: Fbio Doyle
2 Secretrio: Elizabeth Renn
Tesoureiro: Mrcio Garcia Vilela
1 Tesoureiro: Jos Henrique Santos
2 Tesoureiro: Bonifcio Andrada
REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Publicao trimestral
Diretor: Murilo Badar
Conselho Editorial: Alusio Pimenta, Antenor Pimenta e Eduardo Almeida Reis.
Reviso: Pedro Srgio Lozar
Digitao: Marlia Moura Guilherme
Capa: Liu Lopes
Diagramao: IDM Composio e Arte Ltda.
Impresso: Grfca e Editora O Lutador
Assessoria de Divulgao: Petrnio Souza Gonalves
Ficha Catalogrfca
Revista da Academia Mineira de Letras Ano 85 volume LI
Revista da Academia Mineira de Letras/Academia Mineira de Letras / v. LI/ 2008
Belo Horizonte: Academia Mineira de Letras, 2009.
abril/maio/junho de 2009.
Fundada em 1922
l. Literatura Peridico. 2. Obras Literrias I. Academia Mineira de Letras
ISSN 1982-6680
NDICE
A PTRIA MINEIRA
Ronaldo Costa Couto .............................................................................. 9
O ESCRITOR RONALDO COSTA COUTO
Fbio Lucas ............................................................................................ 17
RESGATANDO UMA GERAO
Elizabeth Renn ..................................................................................... 23
O PROCESSO DE INDEPENDNCIA DO BRASIL E SUAS
RELAES COM OS PASES VIZINHOS
Jos Carlos Brandi Aleixo .................................................................... 39
A POESIA DE AIM CSAIRE
ngelo Oswaldo de Arajo Santos ......................................................... 65
ASPECTOS DA POESIA DE ALPHONSUS DE
GUIMARAENS FILHO
Ivan Junqueira ....................................................................................... 73
A ACADEMIA E ALPHONSUS DE GUIMARAENS
Carmen Scheneider Guimares ............................................................ 85
O ESTADO DE ARTE DA LNGUA PORTUGUESA
Arnaldo Niskier ................................................................................... 101
MAIAKVSKI E VALRY WHITMAN E STEVENS:
CONVERGNCIAS E DIVERGNCIAS UMA VIAGEM DE
RECONHECIMENTO
Onofre de Freitas ................................................................................ 105
4 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Nas pginas da memria
COMO SE FUNDOU A ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Lindolfo Gomes ................................................................................... 121
DILERMANDO CRUZ: POLTICO, POETA E BIGRAFO
Natania A. Silva Nogueira .................................................................. 131
Perfl acadmico
SENHOR DOS TEMPOS
Mrian Pinheiro ................................................................................... 137
A LOBA DA ESTEPE
Jos Renato de Castro Cesar .............................................................. 143
POSFCIO (AINDA QUE TARDIO) A PREFCIO DE
LCIA CASASANTA
*
Ana Lcia Amaral ..................................................................................153
500 ANOS DE LOUCURA ELOGIADA
Adolfo Maurcio Pereira ..................................................................... 157
Cinema
TIRO CERTO CONTRA A MESMICE E A CENSURA
Paulo Augusto Gomes ......................................................................... 165
Teatro
O OFCIO DO TEATRO E OS PODERES
Pedro Paulo Cava ..................................................................................173
Msica
A FILARMNICA E A LITERATURA
Paulo Srgio Malheiros dos Santos .................................................... 179
Artes Plsticas
MENSAGEIRO DA POSTERIDADE
Carlos Perktold ................................................................................... 191
ODE A UM BRASILEIRO (dois, em trs captulos, parte II)
Henrique Leal ........................................................................................197
O PODER JUDICIRIO E A OPINIO PBLICA
Antonio Pedro de Lima Pellegrino e Gabriel Arruda Chueke ........... 203
A LUZ QUE NO SE VIA
Petrnio Souza Gonalves .................................................................. 209
BANDEIRANTES NAS TERRAS ALTAS DA MANTIQUEIRA
Paulo Paranhos ................................................................................... 211
O BICHO DE PEDRA AZUL
Tadeu Franco ...................................................................................... 229
A DANARINA INDIANA
Lucas Viriato ....................................................................................... 233
FORA EM TRANSE
Jairo Polizzi Gusman .......................................................................... 237
SOU DO MUNDO, SOU MINAS GERAIS
Ozrio Couto ....................................................................................... 239
APRESENTAO
O nmero da Revista da Academia Mineira de Letras correspondente
ao segundo trimestre de 2009 mantm o mesmo nvel de qualidade que a
faz to apreciada. Aberta com o discurso de posse do acadmico Ronaldo
Costa Couto, seguido das palavras de recepo do acadmico Fbio Lucas
ao recipiendrio, as demais colaboraes tm a marca inconfundvel do
alto grau de excelncia que as caracteriza.
Merece destaque a conferncia pronunciada pelo acadmico Ivan
Junqueira, a Academia Brasileira de Letras, dentro das homenagens
prestadas ao acadmico Alphonsus Guimaraens Filho, cujo centenrio
ensejou dar realce sua importante obra potica, estendida poesia imortal
de Alphonsus de Guimaraens, patrono da Academia.
Pretendemos no segundo semestre editar nmero especial
comemorativo do Centenrio, pelo que pedimos colaborao dos
acadmicos e dos intelectuais mineiros para maior brilho da publicao.
No fcil a tarefa de manter uma publicao com regularidade,
verdadeiro esforo de Ssifo, inclusive pelo fato de no ter a Instituio
recursos capazes de suportar as despesas editoriais, o que nos obriga a cada
nova edio bater s portas de empresas colaboradores de boa vontade em
busca da publicidade para custe-la.
Ficamos orgulhosos do sucesso alcanado pela Revista, que
pretendemos seja cada vez melhor e mais representativa do verdadeiro
esprito cultural de Minas e das tradies de liberdade e altivez de nosso
povo.
Belo Horizonte, junho de 2009
Murilo Badar - Presidente
A PTRIA MINEIRA
*
Ronaldo Costa Couto**
Este momento dos mais altos a que j me vi alado. Na
viagem que inicio, no mais encontrarei a rasgarem a minha
carne os espinhos que tanto me feriram s por ter porfado
em servir o Brasil e honrar a terra muito amada da minha
Minas Gerais. A solenidade que ora vivemos tem para mim
um toque mgico de reparao e de conforto.***
Academia Mineira de Letras, santurio espiritual da mineiridade.
Casa de Alphonsus de Guimaraens, Diogo de Vasconcelos, Mrio Mattos,
Emlio Moura, Cyro dos Anjos, Abgar Renault, Henriqueta Lisboa,
Gustavo Capanema, Milton Campos, Juscelino Kubitschek de Oliveira,
Pedro Aleixo, Tancredo Neves, Afonso Arinos de Melo Franco, Vivaldi
Moreira e muitos outros mestres das almas e das letras, de hoje e de
sempre.
*
Discurso de posse na Academia Mineira de Letras na cadeira n 16, sucedendo ao acadmico
Jos Afrnio Moreira Duarte, em 16 de abril de 2009.
**
Jornalista, professor universitrio, poltico. Publicou as obras: Tancredo vivo, Histria
indiscreta da ditadura e da abertura, A histria do BID e o Brasil, Memria viva do regime
militar, Braslia Kubitschek de Oliveira, Matarazzo: a travessia, Matarazzo: colosso
brasileiro.
***
Fragmentos do discurso de posse do acadmico Juscelino Kubitschek de Oliveira na
cadeira 34 da Academia Mineira de Letras, em 3 de maio de 1974, sob a presidncia do
acadmico Vivaldi Moreira, momento de altivez e de reconhecimento ao grande mineiro,
no auge da ditadura militar.
10 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Cem anos de brio e brilho cultural: Juiz de Fora, 1909; Belo
Horizonte, 1915. Scribendi nullus fnis, o escrever no tem fm, lema
retirado de fbula de Fedro, contemporneo de Jesus Cristo. A grande
Academia de Minas, terra adorada de tantos mestres das letras. Como,
por exemplo, um chamado Joo:
Minas: patriazinha. Minas a gente olha, se lembra, sente,
pensa. Minas a gente no sabe. (...) O mineiro acha que o
importante ser e no parecer. Sabe que agitar-se no
agir. Sente que a vida feita de encoberto e imprevisto. (...)
No tolera tiranias, sabe deslizar para fora delas. Se precisar,
briga. No tem audcias visveis. Tem a memria longa. Ele
escorrega para cima. S quer o essencial, no as cascas. (...)
A est Minas: a mineiridade.
Minas, nascida da aventura bandeirante, tornou-se fonte e palco
principal da integrao do pas trs sculos atrs. A explorao das
maiores ocorrncias at ento encontradas no Ocidente desencadeou a
primeira grande corrida do ouro, particularmente intensa na primeira
metade do sculo dezoito. Alvarenga Peixoto, patrono da cadeira 12 desta
Academia, em Canto Genetlaco, de 1783:
Aquelas serras, na aparncia feias,
dir Jos oh quanto so formosas!
Elas conservam nas ocultas veias
a fora das potncias majestosas.
Tm as ricas entranhas todas cheias
de prata, ouro e pedras preciosas.
Chegam multides da Europa e tambm dos cafunds dos sertes.
Acelerao da histria, mudanas profundas. Minas se transforma no
centro dinmico da Colnia. Passa a importar mercadorias em alta escala
e por muito tempo. Mais ainda, depois da descoberta do diamante, em
1729. Alimentos, artigos mais elaborados, animais de carga e trao,
gado. Vm escravos e sertanejos de perto e de longe. Produtores rurais,
negociantes, vaqueiros, tropeiros unindo o que o bandeirante desbravou,
criando caminhos, trazendo e levando riquezas, semeando povoados,
integrando o Brasil profundo. Veem-se, convivem, descobrem que falam
a mesma lngua, compartilham imenso territrio, tm muitos interesses e
valores comuns. Sntese do historiador paulistano Luiz Felipe de Alen-
castro, hoje professor titular da Universidade de Paris:
No fnal da dcada de 1750, quando Antnio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho, entrava nos seus trinta anos, Minas
Gerais era o centro do Brasil. Mais ainda, Minas Gerais
estava inventando o Brasil e os brasileiros, um pas e um
povo que at ento no tinham conhecimento de sua prpria
exis tncia. Vinte anos mais tarde, duas geraes j haviam
tido conscincia da nova realidade geogrfca e cultural.
Atrados pelo m do ouro, os criadores dos confns gachos,
os paulistas, os fuminenses, os baianos, os pernambucanos,
os sertanejos do So Francisco, os curraleiros do Maranho
afuam para Minas. Toda essa gente de fala portuguesa at
ento dispersa pela Amrica do Sul mal tinha notcia uma da
outra e, sobretudo, nunca se tinha visto junto.
A conscincia nacional tambm se manifesta em rebelies contra o
domnio portugus, deixando marcas histricas profundas, inclusive nas
artes. Sua expresso maior a Conjurao Mineira de 1789, que sonhou
a separao, a Repblica, a transferncia da capital para So Joo del-
Rei, uma universidade em Vila Rica e bandeira com a legenda Libertas
quae sera tamen, Liberdade ainda que tardia. Tiradentes: Se todos
quisermos, haveremos de fazer deste Pas uma grande Nao.
Mesmo sem se concretizar como rebelio, a Inconfdncia impe-se
historicamente pela fora simblica. Tiradentes se transforma em dram-
A ptria mineira _________________________________________________________________Ronaldo Costa Couto 11
12 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
tico smbolo da liberdade e do inconformismo com a voraz espoliao da
Metrpole. Vira mito e mrtir. As ideias e os ideais da Conjurao ganham
fora crescente ao longo da histria.
notvel que logo a cultura mineira, voltada sobretudo para si
mesma, emoldurada pelas montanhas, produza tantos expoentes nacionais
com perspectiva revolucionria, inclusive do ponto de vista cultural.
Como o quarto ocupante da cadeira 34 desta Academia, Juscelino
Kubitschek de Oliveira, dolo poltico de minha me, Maria Jos Costa
Couto. Menino pobre da tradicionalssima Diamantina, Non da mestra
Jlia ser presidente da Repblica, luz e comandante da travessia acelerada
do pas para a modernidade e o futuro. Tinha muita pressa. Eleito em
outubro de 1955, sonhava avanar 50 anos em cinco.
Em clima de otimismo e quase impossvel democracia, revoluciona
o desenvolvimento brasileiro, promovendo as mudanas mais rpidas,
profundas e slidas da histria. Executa ambicioso programa de 30 metas
setoriais e uma especial e sntese: a construo de nova capital, projeto
que preconizava desde a Constituinte de 1946. Faz poltica, negocia,
viabiliza marcha para o interior, prepara Braslia em 42 meses, inaugura
em 21 de abril de 1960. Traz a indstria automobilstica, atia a naval e
outras, concretiza grandes hidreltricas, rasga mais de 13 mil quilmetros
de rodovias e mais de 3 mil de ferrovias, implanta siderrgicas. A
economia cresce quase 50% reais no seu qinqnio. Parecia que o pas
fnalmente daria certo. Anos JK, anos dourados.
Ou como Tancredo de Almeida Neves, quarto titular da cadeira 12,
nascido na legendria So Joo del-Rei, alma conciliadora, campeo da
pacincia e do entendimento, mas nunca alm dos limites de seus
princpios. Tive a honra de ser seu amigo e auxiliar. Era apaixonado por
histria. Em nossas conversas, lembrava que todas as grandes revolues
brasileiras comearam em Minas. As boas e as ruins. Tolerante, mas
valente, props aos colegas de Ministrio defender bala o ameaado
Palcio do Catete, no auge da crise que levou o presidente Vargas ao
suicdio, em agosto de 1954. Poucos tm a chance de morrer por uma
boa causa. No desperdicemos a nossa. Depois de maro de 1964, lutou
nas trincheiras da resistncia ditadura por mais de 20 anos. Sbio da
vida e da poltica, capaz de criar snteses como esta: A bala que matou
Getlio elegeu Juscelino.
No meio de 1984, aos 74 anos, trocou a segurana do governo de
Minas por candidatura presidencial que sabamos exposta a graves riscos.
Liderou a impecvel travessia pacfca do pas para a democracia e depois
morreu por ela. Senador Afonso Arinos: H homens que do a vida pelo
pas. Tancredo deu mais: deu a morte.
Minas do segundo guardio da cadeira 29, o culto e ameno
governador Milton Soares Campos, formidvel jurista, democrata
intransigente, pensador liberal, modelo de homem pblico, dolo poltico
de meu pai, Francisco Olmpio do Couto. Referncia tica: No subiria
nunca a qualquer posto mediante transaes com os princpios de meu
inabalvel compromisso democrtico e os irremovveis fundamentos de
minha formao espiritual.
Preparo intelectual, sabedoria, cavalheirismo, senso de justia, bom
senso. Sutilmente irnico, intensamente espirituoso. famosa sua resposta
aos que lhe propuseram embarcar tropa bem armada rumo a Divinpolis,
a fm de acabar com justa, tensa e preocupante greve de ferrovirios,
motivada por longo atraso de pagamento: No melhor mandarmos o
trem-pagador?. E a uma reprter, na chegada a Ponte Nova, sua terra,
depois de derrotado por Joo Goulart na eleio para vice-presidente de
1960. Ela: Por que o senhor perdeu, doutor Milton?. Ele: Porque o
adversrio teve mais votos, minha flha. Numa livraria de Belo Horizonte,
ao dar de frente com implacvel adversrio que acabara de comprar mais
de uma dzia de livros: Voc est decorando o apartamento?. Durante
vo turbulento, corao disparado, respirao alterada: Falta de ar,
doutor Milton? No, falta de terra.
De Pedro Aleixo, terceiro ocupante da mesma cadeira 29, jurista
brilhante, homem pblico, vice-presidente da Repblica, voz solitria que
tentou evitar o sinistro AI-5 o golpe dentro do golpe na sombria
reunio do Conselho de Segurana Nacional da sexta-feira-13 de dezembro
de 1968. E que, no ano seguinte, com apoio do prprio presidente Costa
e Silva, ps suas melhores energias num projeto de constituio
liberalizante que coordenou e concluiu. Sua esperana acaba inviabilizada
A ptria mineira _________________________________________________________________Ronaldo Costa Couto 13
14 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
por doena grave e impedimento sem volta do velho marechal. Junta
Militar autonomeada obsta a posse do mineiro, em agosto, e pe no poder,
em outubro, o general gacho Emlio Garrastazu Mdici.
Minas do gnio Carlos Drummond de Andrade, corao rebelde,
revolucionrio das letras: S os mineiros sabem, e no dizem nem a si
mesmos, o irrevelvel segredo chamado Minas. Mesmo ferido na alma
pelo desmonte do belo Cau e outras decepes, jamais deixou de ser
itabirano da gema e fel ao amor pelo cho metlico de Minas. Dir:
A gente est preso a Minas por um cordo umbilical, embora
eu ache que ns exageramos um pouco o lado mineiro dos
mineiros. Minas, de fato, um estado com peculiaridades
muito marcadas. Mas h um pouco de mito em torno de
Minas. Ns criamos uma Minas meio estranha, como se fosse
um pas diferente do Brasil. Criamos um pouco assim de
rocambole em torno de Minas. Agora, a ligao evidente.
Isso uma constante no homem: uma certa fxao sentimental
com sua terra de origem.
Do torrencial Pedro Nava, refundador do memorialismo brasileiro,
juiz-de-forano de alma anarquista, sbio deliciosamente hedonista.
Conforme Drummond, navipoeta e naviprosista, descobridor de insuspei-
tados tesouros submersos no mais fundo da lngua portuguesa:
Minha Minas. Muito mais espanhola que portuguesa, muito mais
cervantina que camoniana, goiesca que nuno-gonalvina. Pelo
tipo de teus flhos. Por tua porcentagem de ferro nas almas.
E do segundo titular da cadeira 20, o sereno e amvel modernista
Emlio Moura, meu professor e amigo para sempre, nome particular da
poesia pura, que via no como a que est nas coisas, mas na idia das
coisas. Poeta superior, inventor de maravilhas como esta: Minha infncia
est presente. / como se fora algum. / Tudo o que di nesta noite, / eu
sei, / dela que vem.
A Minas-patriazinha do regionalista universal Guimares Rosa,
menino da pequenina Cordisburgo que reinventou o idioma, provou que
o serto o mundo, e deixou escrito e assinado que amar a gente querer
se abraar com um pssaro que voa.
Se me pedirem quatro gigantes mineiros da literatura, citarei estes
cinco: Drummond, Guimares Rosa, Pedro Nava, Emlio Moura e Murilo
Mendes. No h como excluir qualquer deles. E todos sabemos que h
outros.
Senhores acadmicos,
O corao deste velho menino da muito amada e pequenina Luz
pulsa feliz por sua generosa escolha para a cadeira 16, cujo patrono o
mdico, militar e bacharel em letras Francisco de Paula Cndido (1805-
1864), respeitado homem pblico e escritor. Seu fundador o marianense
Diogo de Vasconcelos, morto em 1927, poltico brilhante, pioneiro da
historiografa regional, fonte incontornvel de estudo e compreenso das
razes mineiras, autor de Histria antiga das Minas Gerais e de Histria
mdia das Minas Gerais.
Primeiro sucessor: Mrio Mattos, jurista notvel, homem pblico,
duas vezes presidente desta Academia, poeta, teatrlogo, crtico literrio,
contista, criador de Casa das trs meninas, de Machado de Assis e de
O ltimo bandeirante. Assume em 1968 o montes-clarense Waldemar
Versiani dos Anjos, mdico, professor emrito, que escreveu o saboroso
O Jornal de Serra Verde, memrias romanceadas de histrias e casos
mineiros. Sucede-o, em 1980, o professor Flvio Neves, baiano de Caitit,
mdico psiquiatra, bom prosador, com obras literrias ligadas profsso.
O quarto sucessor o belo-horizontino Wilson Castello Branco,
romancista, ensasta, crtico literrio, teatrlogo, jornalista, autor de O
conhecimento secreto do homem e de Mrio de Andrade.
O sexto ocupante da cadeira 16, meu antecessor direto, o doce e
talentoso alvinopolense Jos Afrnio Moreira Duarte, defnido pelo
brilhante acadmico Danilo Gomes como ponto de equilbrio entre
correntes e geraes, iderios estticos e legendas literrias, encarnando
A ptria mineira _________________________________________________________________Ronaldo Costa Couto 15
16 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
as melhores virtudes mineiras. Jornalista, crtico, ensasta, fno poeta e
admirvel contista. Deixou, entre outros livros, O menino do parque,
A muralha de vidro e Tempo de Narciso. Usina de ternura, resumiu-
se assim:
Sou exatamente como, num pequeno poema, Maiakovski disse
que era:
Em mim a anatomia fcou louca: sou todo corao.
Senhor presidente, senhoras e senhores acadmicos,
Estou radiante. Novo ambiente, novas atividades, convivncia
estimulante e rica com bons parceiros de pena e de sonhos.
Devo reconhecimento especial ao enciclopdico acadmico Fbio
Lucas pela bondade de vir de So Paulo para apresentar as saudaes da
Academia. Todos sabem que se trata de um gigante das letras e das lutas
por mudanas para tornar o Brasil melhor, maior e mais justo. Seu aluno,
aflhado, amigo h mais de 40 anos, sei que vou partir sem fagr-lo em
um s instante de mediocridade. Muito obrigado, querido mestre.
Meus melhores agradecimentos e homenagem ao nclito e dinmico
presidente desta Casa, acadmico Murilo Badar, pensador poltico e
homem de ao, escritor consagrado, colega solidrio, perito em
transformar boas idias em timas solues.
Minas tem visgo. paixo vitalcia grudada na alma da gente,
prova de geografa e at de histria. Minas minha, Minas de todos ns.
Minas-patriazinha de um chamado Guimares Rosa, que escorregava
para cima, provou que Minas Gerais muitas e um dia bordou em letras
de ouro a mansa e frme coragem dos mineiros:
Mas sendo a vez, sendo a hora, Minas entende, atende, toma
tento, avana, peleja e faz.
Vida longa e feliz para os acadmicos e a Academia!
O ESCRITOR
RONALDO COSTA COUTO
*
Fbio Lucas**
Na data especial de 16 de abril de 2009, ingressa na Academia
Mineira de Letras, como acadmico, o jornalista, economista, historiador
e cientista social Ronaldo Costa Couto. Um escritor a integrar o sodalcio,
na vaga aberta com o falecimento do saudoso e inesquecvel confrade
Jos Afrnio Moreira Duarte.
Militante da poltica e da administrao pblica, em cujo territrio
alcanou culminncias raras entre ns, cremos que a vocao mais ntima
de Ronaldo Costa Couto seja a de escritor. Para lograr esse objetivo, to
secretamente acariciado, veio se aparelhando duplamente: escreve desde
os albores do aprendizado intelectual e dedica-se fervorosamente leitura
dos melhores autores. Portanto, induz os bons exemplos e pratica a arte
de bem escrever, na busca insofrida do estilo prprio. Ser escritor
aspirao de muitos, mas conquista de poucos, pois requer dedicao
constante, renncia e sofrimento.
H uma sombra de mistrio a encobrir a vocao da escrita. A
importncia da nossa Academia, como das demais, advm de reverenciar
o culto das Letras, ou seja, da arte da comunicao literria. Algo to
obsessivo que a divisa da Academia Mineira de Letras se consagrou pela
*
Discurso de recepo ao acadmico Ronaldo Costa Couto no dia 16 de abril de 2009.
**
Professor, ensasta, autor de: Do Barroco ao Moderno, Mineiranas, O Poeta e a Mdia, Carlos
Drummond de Andrade e Joo Cabral de Melo Neto, Lies de Literatura Nordestina, tica e
Esttica de rico Verssimo. Da Academia Mineira de Letras (cadeira 22).
18 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
mxima extrada de Fedro: Scribendi nullus fnis, ou seja, no tem
fm o escrever. Melhor dizendo: quem experimentou se exprimir por
escrito, nunca mais se libertar dessa atrao.
Certa vez, o escritor argentino Jorge Luis Borges resumiu em duas
negaes o imperativo de nossa misso: No puedo no escribir. A
sentena vale por uma fatalidade.
A nossa insupervel fccionista Clarice Lispector, no romance A
Hora da Estrela, registra, na voz do protagonista, a declarao do
determinismo da escrita: Enquanto eu tiver perguntas e no houver
resposta continuarei a escrever. (cf. A Hora da Estrela, Rio de Janeiro:
Liv. J. Olympio, 1977, p. 15).
Vivemos numa era de puro pragmatismo e, segundo a tica vigente,
tudo tem o seu valor. Da tantos comercializarem o corpo, a alma e o
prprio pensamento. Tudo se apresenta com o seu valor de troca, e muitos
renunciam o valor de uso de sua opinio ou de sua mensagem artstica.
Mas a arte contm uma face que se desloca do mercado. Na essncia,
constitui o que Emanuel Kant denominou ser uma fnalidade sem fm,
ao magnifcar o objeto incomensurvel, irredutvel aos processos
quantitativos.
O escritor, na escala social, o mais livre dos seres humanos. que
sua tarefa se baseia na imaginao criadora, que escapa quase sempre das
amarras do cativeiro. E a leitura equivale a um sonho livre. Jean-Paul
Sartre, no ensaio Que a Literatura?, positiva: Escrever um certo
modo de querer a liberdade (cf. Situations II, Paris: Gallimard, 1948, p.
114). Alm do mais, a mensagem do escritor continua a ecoar no seu
meio, depois de encerrado o seu ciclo biolgico. Suas palavras se tornam
imortais.
Ronaldo Costa Couto, desde antes da fase universitria, j aspirava
ao poder da escrita. Tendo-se destacado no curso de Cincias Econmicas
da Universidade Federal de Minas Gerais como aluno exemplar, despertou
em mim o interesse de aproveitar o seu potencial de analista e escritor,
quando ele passou a ser professor. Da que, convocado pelo grande
mestre, escritor e intelectual Guilhermino Cesar, que preparava o volume
Minas Gerais - Terra e Povo (Porto Alegre: Ed. Globo, 1970), no
trepidei em indicar Ronaldo Costa Couto como colaborador daquela
edio comemorativa dos dois sculos e meio da Capitania de Minas
Gerais. Ele e Mrcio Ribeiro cuidaram da pecuria e da agricultura de
nosso Estado.
Assim, pela primeira vez, me senti ao lado de Ronaldo Costa Couto
na faina de desvendar os mistrios da nossa me cultural, Minas Gerais.
J naquele tempo eu pertencia Academia na qual ingressa o novo
confrade.
E agora nos reencontramos neste sodalcio, mais uma vez reunidos
em torno do esprito de Minas, mas o mais dignifcante e produtivo, o
cultor incansvel da arte de escrever. O outro esprito, fantasmal,
justamente aquele a que nos opomos, feito da esperteza, da vocao
autoritria, do conservadorismo inercial, destruidor, patrimonialista e
impatritico. Pois Minas paradoxal.
No esta, todavia, a primeira aventura acadmica de Ronaldo
Costa Couto. Antes, j tivera ingresso na Academia Brasiliense de Letras,
tendo sido recebido, mediante palavras de carinho e alta afetividade, pelo
acadmico Carlos Chagas. No tudo. C esteve ele, anteriormente, na
Mineira, para receber o Prmio decorrente da publicao da obra Braslia
Kubitschek de Oliveira (Rio de Janeiro: Editora Record, 2001).
Ronaldo Costa Couto encarna adequadamente o engenho mineiro
de lidar com as difculdades e de pulsionar-se para o alto, naquela graciosa
lio de Guimares Rosa, a descrever a habilidade de nossa gente: o
mineiro no tem audcias visveis. Tem memria longa. Ele escorrega
para cima. (cf. Minas Gerais, Manchete de 24-8-1957).
No toa que o jornalista Elio Gaspari, ao relembrar a acuidade
do bigrafo de Tancredo Vivo (Rio de Janeiro: Record, 1995), observa:
Tpico mineiro calado, tem o hbito de falar perguntando e raro que
responda diretamente a uma pergunta. Responde, mas o sujeito tem que
ouvir com ateno para descobrir em que pedao da conversa est a
resposta". Mas acrescenta Elio Gaspari, para completar o seu raciocnio:
Este livro (referia-se a Tancredo Vivo) uma competente surpresa.
Nele surge o Ronaldo Costa Couto indiscreto ao limite de sua
elegncia.
O escritor Ronaldo Costa Couto ___________________________________________________________ Fbio Lucas 19
20 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Depois de ter sido assessor econmico da Secretaria da Fazenda do
Estado de Minas Gerais, no governo de Rondon Pacheco, em 1971, foi
para a Companhia Vale do Rio Doce, no Rio de Janeiro, em 1974, como
superintendente geral de Desenvolvimento, quando, ento, foi convidado
pelo governador Faria Lima para coordenar os grupos de trabalho
encarregados da fuso da Guanabara com o antigo Estado do Rio de
Janeiro. Comandou a Secretaria de Planejamento e Coordenao Geral
do novo Estado at maro de 1979.
Seguiu ento para Braslia, a convite de Mrio Henrique Simonsen,
ministro do Planejamento. No demorou aquela experincia. Ronaldo
Costa Couto acabou convocado para trabalhar com o ministro Joo
Camilo Penna no Ministrio da Indstria e Comrcio.
Chamado pelo governador Tancredo Neves, voltou a Minas no
incio de 1983 para chefar a Secretaria de Planejamento e Coordenao
Geral. Participou intensamente da Administrao, entregou-se luta pela
redemocratizao, campanha das Diretas-J para presidente da Repblica
e ao projeto que elegeu Tancredo Neves presidente em 15 de janeiro de
1985.
Da ter sido governador de Braslia em 1985, ministro do Interior
no perodo de 1985 a 1987 e ministro-chefe do Gabinete Civil da
Presidncia da Repblica no trinio 1987 a 1989. Acidentalmente
acumulou essa ltima tarefa com a de ministro do Trabalho no fnal de
1988.
Falemos mais propriamente do historiador, j vislumbrado nas
biografas de Tancredo Neves e de Juscelino Kubitschek, cuja vida se
apresenta em simbiose com o relato da criao de Braslia. Muitos
coadjuvantes so lembrados, como Oscar Niemeyer, Lcio Costa, Israel
Pinheiro, Burle Marx, Bernardo Sayo e uma srie de personalidades.
que Ronaldo Costa Couto, depois de trepidante passagem pelos rgos
estratgicos da administrao pblica, determinou especializar-se em
histria pela Universidade de Paris Sorbonne (Paris IV), ocasio em
que defendeu tese de doutorado em novembro de 1997, sob a orientao
da historiadora e professora de histria do Brasil, Katia de Queirs
Mattoso.
Valendo-se de fontes vrias e de inmeros depoimentos, pde
Ronaldo Costa Couto tracejar o perfl dos episdios recentes da vida
social e poltica do pas na obra Memria viva do regime Militar Brasil:
1964-1985 (Rio de Janeiro: Record, 1999), trabalho recebido com
louvores dos principais articulistas de poltica dos peridicos brasileiros
de maior circulao. O livro, alis, prolonga o interesse j despertado
pelo anterior: Memria indiscreta da ditadura e da abertura (1998),
decorrente da tese de doutorado defendida em Paris.
O grande desafo do escritor foi enfrentado com a publicao do
estudo biogrfco e scio -econmico Matarazzo: a travessia e Matarazzo:
colosso brasileiro (So Paulo: Planeta, 2004). Nessa obra concentram-se
os atributos mais assimilveis da personalidade intelectual de Ronaldo
Costa Couto. que, ao recolher elementos biogrfcos e ao organiz-los,
valeu-se frequentemente de recursos narrativos, dando graa, interesse e
verve exposio. Essa a feio literria e mais criativa do trabalho.
Alm disso, dadas as caractersticas da famlia Matarazzo e seu
desempenho em impulsionar a atividade empresarial, Ronaldo Costa
Couto teve que lastrear seu plano com informaes buscadas na histria
econmica. Desse modo, acrescenta saga familiar o levantamento das
circunstncias scio-polticas que recebem o pioneirismo industrial e a
propagao do novo esprito realidade brasileira. Vale dizer: os projetos
econmicos da famlia Matarazzo foram transformados em polos de
crescimento e operaram mudanas no quadro econmico do pas.
O esprito inovador consistiu nas origens urbanas do cl industrial,
diferente dos antigos empresrios brasileiros, especialmente paulistas, de
fundamentos rurais na vasta produo do caf, cujo ciclo se encontrava
em declnio e, de certa forma, a deixar o palco para os protagonistas da
produo fabril de maior escala. Entretanto, tambm os Matarazzo
pioneiros ampliaram seus negcios na agropecuria. Mas proclamaram a
vida frugal e o reinvestimento dos lucros, atitude inversa aos bares do
caf.
Assim, na conjuno da saga familiar italiana com o processo de
industrializao, Ronaldo Costa Couto encontrou o foco para a pesquisa
e redao de um documento raro da historiografa contempornea. Conta
O escritor Ronaldo Costa Couto ___________________________________________________________ Fbio Lucas 21
22 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
a histria de um imprio empresarial de tal ordem que, diz a lenda, o
Conde Matarazzo poderia gastar mais de um ano para visitar, cada dia,
um estabelecimento industrial de sua propriedade.
Em determinado captulo do tomo segundo de Matarazzo, Saldo
ouro, o autor aponta o pioneirismo do Conde Matarazzo ao aconselhar o
uso do lcool como combustvel, em substituio do petrleo, cuja
importao, juntamente com a do trigo, pesava negativamente na balana
comercial do pas.
Matarazzo de Ronaldo Costa Couto adiciona outro aspecto escrita
do autor: a presena do esprito jornalstico na utilizao de fontes escritas
e das entrevistas. As citaes ocorrem na medida certa, sempre
esclarecedoras, dignas de um bom pesquisador. E as perguntas, no caso
das entrevistas, ajudam a manifestao esclarecedora de cada entrevistado,
cuja transcrio sempre plena de graa e interesse. Os dois macios
volumes viram uma novela de costumes, to leve e atraente se torna a
leitura.
Perdoem-me a extenso do meu depoimento sobre Ronaldo Costa
Couto. No posso nem devo prolongar-me a fm de no me transformar
no anti-Ronaldo. Saibam que todos ns, acadmicos da Academia Mineira
de Letras, nos engalanamos para receber o seu primeiro confrade no ano
do centenrio da Casa de Alphonsus de Guimaraens, sob a gesto profcua
e fraterna do presidente Murilo Badar. Seja bem-vindo, caro Ronaldo
Costa Couto, h muito aguardvamos este momento para t-lo mais
prximo de ns.
RESGATANDO UMA GERAO
*
Elizabeth Renn**
Segundo Benedito Nunes, a poesia brasileira, no momento em que
surge a gerao de 45, divide-se entre duas linhas de fora: a ditadura da
fantasia (assim nomeada por Hugo Friedrich), marca surrealista da
poesia do aps-guerra e a ditadura da razo, com o intelectualismo de
refexo registrado nas obras de Paul Valry, Jorge Guilln, Eliot ou
Rilke.
De um lado o sentimento de transcendncia e do invisvel, do
encaminhamento de um lirismo na cadeia existencial da poesia pura da
verso bremondiana, e de outro, neutralizando este lirismo subjetivo, os
conceitos de Ponge, que apresenta o realismo potico, a partir da
objetividade de uma poesia descritiva e racional.
Contestadora, porm continuadora e herdeira do movimento de 22,
a gerao de 45, segundo a anlise de Benedito Nunes, sedimentou por
meio desta revoluo literria a experincia e a tradio de 30 em busca
da essncia potica que se perscrutava pelo sentimento e emoo que
elevavam o vulgar e pelo aprofundamento da realidade psquica.
A forma passa a ser o revestimento do contedo signifcativo no
reacionarismo esttico que inspirava a atitude da gerao de 45. A
linguagem elevada altura da essncia, dentro dos limites retricos de
uma dico elevada ligada a um vocabulrio de eleio, previamente
considerado potico.
*
Aula ministrada na Universidade Livre da Academia Mineira de Letras no dia 7 de maio de
2009.
**
Mestra em Literatura Brasileira, Presidente da Academia Municipalista de Minas Gerais,
Presidete Emrita da AFEMIL. Escritora, ocupa a cadeira 21 da Academia Mineira de Letras.
24 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Este exerccio da poesia alcanou em vrios momentos e autores o
fm proposto pelo domnio da forma de maneira racional e equilibrada.
A criao dos poetas de 1930 foi expresso de criao fecunda e
livre, liberta do academicismo expulso pela moderna concepo literria.
Representando um novo comeo, esta fase pde seguir rumos de inveno,
que por serem inusitados foram considerados vlidos como bases para o
aparecimento de uma nova poesia, iniciadora que foi da formao da
nova sensibilidade brasileira. E para esta sensibilidade j encontrada,
que se voltam os da terceira gerao modernista, surgida aps a morte de
Mrio de Andrade, em 1945, e denominada Neomodernismo, tentando
impor a sua dico e a sua auto-defnio.
A gerao anterior forneceu a cada poeta da nova safra as bases
para o estabelecimento de sua poiesis que, independentemente de ser
calcada em um exemplo anterior, pretendeu mais ampla liberdade num
processo de criao positivo, dentro das possibilidades de abertura e
explorao de novos rumos.
Joo Cabral de Melo Neto considera mais instrutivo tentar a
caracterizao desse grupo de autores a partir da atitude crtica que se
formou em relao a ela pelos escritores de geraes anteriores, apesar
de seu carter polmico. Considera a falta de uma nova conscincia,
crtica ou criadora, nesses poetas de 45, e a presena de um novo conceito
de poesia no que se refere a uma extenso, dentro de uma situao
histrica. Os poetas de 45 encontraram uma poesia brasileira determinada.
Portanto, tinham de escrever para aquela sensibilidade existente, mas
com timbre prprio para que sua voz fosse ouvida; por isso h um trao
sintomtico em todos eles: partem da experincia de um poeta mais
antigo, como uma adeso a uma potica que mais lhes fosse afm,
conservando certa tendncia estetizante, que no pretende signifcar uma
atitude mental defnida mas uma plasticidade (o que no conscincia
esttica, ao p da letra) com que muitos desses poetas de 1945 chegaram
a manobrar o verso herdado dos poetas que os antecederam.
Dentro do Neomodernismo, iniciado a rigor com Augusto Frederico
Schmidt, Murilo Mendes, Drummond, Vincius de Morais, Jorge de
Lima, em sua continuidade ou descontinuidade, surge a gerao de 45:
Domingos Carvalho da Silva, Pricles Eugnio da Silva Ramos, Ldo
Ivo, Bueno de Rivera, Afrnio Zuccolotto, Geraldo Vidigal, Cyro
Pimentel, Joo Cabral, entre outros. A gerao de 45, longe de constituir
uma ruptura com a gerao modernista que a antecedeu, foi uma
continuao em posies novas: as da disciplina e da universalidade.
Diferenciou-se, no entanto, da independncia proclamada por Mrio de
Andrade na liberdade de escolha dos gneros, j aconselhada por
Aristteles na sua Potica, quando props uma volta reabilitao do
verso como construo verbal, o que foi a nota dominante desta
gerao.
Na histria da poesia brasileira pode-se verifcar que a poesia
moderna era, a princpio, uma poesia-experincia: confundiu os gneros,
valorizou a livre associao de idias, as expresses e os temas do
cotidiano, a vulgaridade. Com a gerao de 45, h o aparecimento da
depurao formal, a volta severidade dos temas banidos pelo modernismo
de 22 e o restabelecimento de alguns gneros como o soneto e a ode. Em
contraste com o primitivismo de Oswald de Andrade ou o regionalismo
de Raul Bopp, aparece uma preocupao universalista e culturalista
absorvida talvez em Joyce, Rilke ou Pound e voltada para os grandes
temas humanos, individuais ou sociais. Afastando-se do poema-piada,
buscavam a ideal conteno vocabular, revitalizando a mtrica parnasiana
com versos bastante disciplinados. neste senso de medida artesanal,
que a poesia se transforma em artefato e no puro lirismo. O esforo
maior desta gerao, ainda segundo a anlise de Cabral, foi tentar elevar
a linguagem essncia potica, o que, muitas vezes, foi infrutfero,
enveredando para um enftico subjetivismo ou um transcendentalismo
superfcial.
Estas so as palavras de Domingos Carvalho da Silva, em trabalho
crtico publicado na revista Orfeu: a hora de uma nova poesia: a que
se prope a salvar do modernismo o que no era acidental e temporrio e
do passadismo o que no era formalidade e preconceito. ainda este
poeta que em Nota Prvia, quando introduz a sua coletnea de poemas
A Fnix Refratria, defne a temtica inserida em sua obra bem como a
sua tcnica de composio. Refere-se ele a que tcnica e pesquisa no
Resgatando uma gerao ______________________________________________________________ Elizabeth Renn 25
26 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
signifcam formalismo e conveno, mas o primado de uma arte dinmica
e interessada nos problemas humanos e universais da esttica literria e
da vida. Mais importante do que estatutos e regras fxas a expresso da
poesia. E mais adiante: Na edifcao do poema moderno no h
elementos proibidos, desde que se lhes d uma expresso nova.
O poeta do modernismo usou uma voz prpria, sempre renovada
pelo ideal da arte postulado pela gerao de 45. Percebe-se que os temas
so imutveis, locais ou universais; referem-se a um dimensionamento do
Ser, numa expanso, independente de limites da tcnica, em direo ao
universal. Expressam, de uma forma nova, a poesia em sua plenitude.
Para isso, o poeta se apresenta como inventor na sua obra de criao, que
tambm obra de arte, segundo o conceito de T. S. Eliot.
A poesia de 45 o continente de uma forma individualista e pessoal
com seus postulados e regras prprias. Aps a fase desenvolvimentista,
os poetas passam a criadores com suas formas irredutveis dentro do
carter histrico de sua participao numa experincia social comum,
limitada em um perodo de tempo.
Tristo de Athayde assim compara e nomeia as duas direes em
que os modernistas se fxaram: a telrica, com razes no solo brasileiro,
com seus regionalismos e realidades, e a ocenica, numa pendular e
complementar inclinao entre a atrao da terra e a do mar. A gerao
de 45 apresenta-se como continuadora deste ritmo ocenico, na tentativa
de alargamento dos horizontes culturais, numa evoluo de expanso
universalista.
O que parece evidente que a Gerao de 45 surge em decorrncia
de uma necessidade: a de artistas do verso, reclamados at mesmo por
Mrio de Andrade, que em artigo de maro de 1939 dizia estar a poesia
aparecendo apenas como inspirao, o que o decepcionava, considerando
que poesia no apenas lirismo.
O verso livre fora quase substitudo pela linha livre e prosaica e
alguns poetas, temerosos desta incurso, tentaram restaurar as formas
passadistas abolidas pela Klaxon e similares arautos modernistas.
Outro fator que contribuiu para revigorar o senso esttico da poca
foi a voz da crtica, atravs de lvaro Lins, que pedia uma revoluo
pelo estabelecimento da forma artstica e bela, fora dos limites parnasianos
mas numa evoluo esttica; de Srgio Milliet que, em artigo de
dezembro de 1946, no Estado de S. Paulo, considerava o desejo dos
poetas da nova gerao de voltarem ao equilbrio das construes que
resistem ao tempo; de Tristo de Athayde, que, analisando o trabalho
deste grupo de novos poetas, que lanou, em So Paulo, a Revista
Brasileira de Poesia, em dezembro de 1947, e organizou o Congresso de
maio de 1948, que assinalou a presena de uma nova linha de poesia
dentro do Modernismo brasileiro.
Assim, a presena do Neomodernismo aconteceu em decorrncia
de uma misso que lhe foi outorgada e no como uma apropriao de
carter revolucionrio.
No prefcio de sua Antologia da Nova Poesia Brasileira, Fernando
Ferreira de Loanda refere-se ao aparecimento de sua gerao, a de 1945,
que surge entre duas guerras, uma que se mostrou cruenta e devastadora
e outra que se prenunciava muito mais diablica.
Em 1947, Srgio Milliet nota a existncia de uma reao, nem
sempre consciente, contra a poesia descabelada de 22 e faz referncia
ao consciente de um grupo (Pricles, Dantas, Cabral, Domingos), que
realiza uma poesia feita de sobriedade, nobreza, de decantao
voluntria.
Nesse mesmo ano, h o lanamento da Revista Brasileira de Poesia,
um dos porta-vozes do iderio crtico-esttico da nova gerao, em So
Paulo, que no seu nmero inaugural traz o artigo Neomodernismo, de
Pricles Eugnio da Silva Ramos, comentando Srgio Milliet e Tristo de
Athayde, e lembrando Mrio de Andrade na recomendao sobre a
necessidade do artesanato, do cuidado com a forma, afrmando que o
movimento modernista foi uma aventura sem disciplina, e acentuando
como diretrizes da nova poesia o desejo de universalidade aliado ao
trabalho artesanal e o propsito de abandonar o prosaico e o
excrescente.
Em 1948, acontece o 1 Congresso Paulista de Poesia, promovido
pela Revista Brasileira de Poesia, com debates em torno da tese: H
uma nova poesia no Brasil, em que Domingos Carvalho da Silva defendia
Resgatando uma gerao ______________________________________________________________ Elizabeth Renn 27
28 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
o incio da nova fase em 1945 e propugnava pela adoo de uma atitude
sem transigncia com o passadismo e sem compromisso com a Semana
de Arte Moderna. Este poeta e crtico lanou a expresso Gerao de
45, dias aps, em entrevista ao Correio Paulistano, publicada em 9 de
maio de 1948 republicada em 13 de junho de 1948.
A paternidade desta nominao , entretanto, atribuda a Ldo Ivo,
por Tristo de Athayde em A Literatura Brasileira. Manuel Bandeira, em
Apresentao da Poesia Brasileira, diz que a si prprios se chamaram
de gerao de 45. Afrnio Coutinho, em 1949, em A Literatura no
Brasil, consagra esta denominao.
Se esta corrente ou curso, com seu fuir ameno e com poucas
grandes vagas, foi louvada por alguns, mesmo por certos exaltados da
primeira fase do modernismo, certo que tambm foi combatida e o
continua sendo pelo olhar de desdm de outros.
Esta crtica no muito receptiva se fxa, paradoxalmente, no aspecto
de inovao que marca o Neomodernismo: a palavra, com todo o seu
poder intrnseco a valorizar a expresso potica, a partir do seu grau
zero.
O mesmo crtico Alusio Medeiros, em 1948, no jornal Unitrio,
apesar de apontar em Cabral uma verdadeira obsesso pela palavra,
concorda, em nota sobre o Congresso Brasileiro de Poesia, que a nova
poesia brasileira de h muito uma realidade incontestvel.
Esta valorizao e dissecao da palavra, como signifcante e signo,
o que de inusitado marca a poesia de 45.
Bibliografa
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VILA, Affonso. O Poeta e a Conscincia Crtica. Braslia: Instituto
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AZEVEDO FILHO, Leodegno Amarante de. Poetas do Modernismo:
antologia crtica. Braslia: Instituto Nacional do Livro, 1872, v. 6.
COHEN, Jean. A Funo Potica. IN: Estrutura da Linguagem
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COUTINHO, Afrnio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
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Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira S.A., 1959.
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SILVA, Domingos Carvalho da. Praia Oculta. Ed. Brasiliense. So
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SILVEIRA, Alcntara. A Amndoa Inquebrvel. So Paulo: 1962.
Resgatando uma gerao ______________________________________________________________ Elizabeth Renn 29
30 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
A Inveno de Ldo Ivo
Em rigor, Ldo Ivo no pode ser considerado um poeta surrealista.
Este aspecto mais evidente em alguns dos seus primeiros livros. Porm,
na medida em que o poeta consegue transformar, por sua alquimia,
matria em sonho, e o sentido realista de um acontecimento abrigar-se no
fantstico e no inslito, constri um poema surrealista. Caminhos diversos
o levam para o ansiado domnio de uma linguagem potica prpria, criada
pela lucidez de seu testemunho.
Pela frequncia com que certos temas, descries ou evocaes so
relatados, nota-se que so tambm interdependentes e enredam-se nos
ramos do surrealismo, numa sntese de aspecto trplice: psicanaltico,
social e metafsico, sejam eles o sonho, a gua, a noite, a infncia ou a
mulher.
Na obra de Ldo Ivo, transbordam as referncias que o poeta faz
aos sonhos: os verdadeiros, descobertos; os imaginrios, inventados.
Apesar de se posicionar contrrio ao trabalho de analistas e terapeutas
que procuram desnudar as criaturas, reduzindo-as a piscinas vazias,
Ldo Ivo refere-se interpretao feita por um especialista americano de
seus sonhos que sempre se repetiam sob variaes mas que possuam o
mesmo contedo: algum procura de algo, mas que desperta antes da
descoberta. O diagnstico concluiu que a sua signifcao era a de uma
busca obsessiva; a procura por um homem de sua prpria identidade, de
seu self. Esta busca, o poeta a enforma dentro da busca da expresso
artstica e da angstia de seu questionamento potico a tudo que o cerca
e intriga: a vaga, a noite, o vento, a colina, o mar... Ele encarna uma
permanente interrogao: o menino perdido e reencontrado que continua
a interrogar a tudo e a todos na esperana de que sua continuada
inquietao possa transform-lo em linguagem. Veja-se, em Elegia, a sua
tentativa em alcanar um real liberto da angustia de um Tempo que se
alia ao absoluto:
..................................................................................
O poeta est sozinho, raro objeto ao alcance de todos.
E quando ele vai buscar no real a aliana com o tempo
escuta o clamor das coisas que no querem morrer....
..................................................................................
E nos sentimos ento jogados num territrio em
que temos a segurana de nuvens junto a um azul insacivel.
Somos as presas da inesperada revelao....
...............................................................................
Pela sua imaginao, sente a nostalgia do que pressente e no
conhece, atravs da solido que rodeia o seu universo em busca da palavra
exata:
................................................................................
Clssico instante: como o desejo
de recolher num soneto toda a poesia do mundo
vem a necessidade de ser, unidade ligada a todas as coisas.
aqui que se coloca Ldo Ivo: no domnio racional da forma em
que posiciona o seu lirismo em equilbrio e que se transforma, numa
antropomorfzao metonmica, no intrprete-sujeito que procura, atravs
de um mltiplo questionamento-objeto, tudo o que a sua sensibilidade e
subjetivismo sofrem e repassam na fantasmagoria surrealista que
interpreta.
Ldo Ivo inicia a sua aventura atravs da linguagem dentro de um
encaminhamento a que no faltam os elementos postulados por Breton.
Estes se apresentam nas divagaes do poeta em carter repetitivo como
uma constante de inquietao.
Na sua viso surrealista, o poeta une toda a contraditoriedade
existente num duplo de negativo e positivo e segue atravs do racional e
do ilgico at o reino do maravilhoso. A imaginao lana seu voo
libertrio sem nenhum controle do esprito crtico e faz com que as
pequenas formas do cotidiano se metamorfoseiem e cheguem casa do
Resgatando uma gerao ______________________________________________________________ Elizabeth Renn 31
32 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
no-senso ou do fantstico. O poeta se encaminha dentro do surrealismo
que ele mesmo desperta e, para exprimir o absoluto, condiciona sua
misso s palavras de Breton:
Tudo o que sabemos que somos dotados da palavra at um
certo grau e que, por ela, algo de grande e obscuro tende a
se exprimir atravs de ns, porque cada um foi escolhido e
designado por si mesmo, entre mil, para formular o que, de
nossa existncia, deve ser formulado.
Neste procurar exprimir a angstia que o atormenta diante de uma
Totalidade, ainda obscura em sua percepo, mas que pressente e a que
deseja se incorporar, transforma a realidade que o cerca numa supra-
realidade que, paradoxalmente, pela magia do poeta, reduz o estranho e o
sobrenatural ao comum e cotidiano. Objetos e coisas, situaes e condies
to corriqueiros aos nossos olhos crticos acostumados a eles, agigantam-
se e fazem afuir o maravilhoso e o fantstico que contm, mantendo,
porm, sua essncia familiar.
Ldo Ivo faz conviver, nesta supra-realidade, os fantasmas do seu
sonho, o mistrio de suas imagens:
........................................................................
De olhos fechados, vi coisas inditas
que no eram nem sonhos nem verdades:
serragem de lembranas, candelabros
dos sis da minha vida.
Viver para mim falar de coisas
que armazenei durante mil solstcios,
entre o breas e a ilha, no mar verde
fronteiro ao continente.
......................................................................
(Linguagem, O Sinal Semafrico, p. 209)
Colocando o maravilhoso na realidade, os objetos so destitudos
do mistrio, numa descontinuidade de causa e efeito. O supra-real aceito
como real: os mirabilia so lidos como naturalia, referidos assim por
Irlemar Chiampi, dentro de uma relao metonmica, em que se inclui o
encantamento do leitor.
H uma diversifcao nas vises ligadas percepo do emissor
ou de vrios receptores. Assim em Canto, o leitor A pode decodifcar a
mensagem diferentemente do leitor B, ao receber como de Eternidade o
sentido que a Beleza lhe traz, o que pode diferir do que o poeta tentava
transmitir, na sua aceitao da inexorabilidade de uma Morte que
arrebanha a Beleza, mas que se reveste dela tambm:
............................................................................
A beleza no aprende a morrer.
No nos comunicamos com os corpos,
nossa parada jogada com as almas.
As cortinas esvoaam, nutrindo-se de noroeste
e as formigas preferem jantar os mortos.
A beleza quer sempre fcar acordada.
Sempre evitamos o conforto dos abismos.
Por isso so brancas as mortalhas
com que nos cobrimos na hora de dormir.
A beleza no concorda em morrer
e morre
como os antigos deuses, gata, que exaltaram a vida,
como os modernos deuses que insistem em apregoar a
convenincia da morte.
(Jornal, O Sinal Semafrico, p. 110)
Resgatando uma gerao ______________________________________________________________ Elizabeth Renn 33
34 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
O surrealismo o depositrio fel daquele maravilhoso puro de que
nos fala Todorov: os acontecimentos ou elementos sobrenaturais no
provocam reao particular seja nas personagens ou no leitor implcito,
pela sua caracterizao na prpria natureza do que narrado.
Forma e contedo tornam-se, portanto, arbitrrios na sua distino:
o acontecimento que evocado passa a elemento formal. A recproca
tambm verdadeira, neste silogismo em que o procedimento estilstico,
formal, pode conter o contedo sobrenatural.
Quando Ldo Ivo proclama em Os Andaimes do Mundo:
Minha vida como uma janela aberta sobre a sia.
Professo o imaginrio e, neste rito,
renaso a contemplar o inexistente
que fulge luz de meu trpico de gua
como essas ilhas fctcias que no se ajustam
s horas triviais dos navegantes/
terras jamais nascidas, horizontes pensados.
(Linguagem, O Sinal Semafrico, p. 185)
faz sua profsso de f neste maravilhoso que o escolhe, e por suas
plpebras onde o pensamento de sal, v uma for absurda como a
vida (L, SS, p. 185) e concebe um Soneto Noturno, enveredando pela
hiprbole de um maravilhoso que no violenta a razo, na mistura do
natural e do diferente, situando-os num mesmo nvel de aceitao. Veja-se:
Abro as portas do cu e vejo Andrmeda
iluminando os meus estratagemas.
Respiro-me na glria de estar s
enquanto a aurora nasce em meus poemas.
Meus milnios dissolvem-se no p
de minhas mos mudadas em algemas,
e o tempo entronizado sai da m
que transforma as austrlias em diademas.
gua de cristal chamada hora,
brisa de incalculveis evidncias
que corre sobre mim, desembestada,
equiparai-me ao ser que sonho agora,
fazendo-me viver das existncias
onde a vida real imaginada.
(Linguagem, O Sinal Semafrico, p. 228)
por suas metforas e pela metadiegese de seu universo que,
numa supra-realidade, o poeta alcana a explorao de uma realidade
que se supe universal. A imagem potica deixa de ser combinao
apenas de palavras para se traduzir em termos sensoriais, diferente do
que acontece com o texto potico que se apia principalmente nas rimas,
no metro regular ou no discurso emotivo. A leitura potica que o
surrealismo requer despreza as convenes e o mundo do sobrenatural
evocado aceito como natural. Assim o mar que nascia em certos
olhos verdes, o que disseram as plpebras da mulher ou a briga
com o leopardo e o clice de maro, dentro dos mistrios demais
para os nossos olhos incluem-se no paradoxo da linguagem literria:
quando so empregadas em sentido fgurado que as palavras devem
ser tomadas literalmente. Esta literalidade designa o nvel da leitura
prpria da poesia.
No procurar a literalidade das palavras, no seu sentido potico,
Ldo Ivo abandona a sua preocupao com a forma e a medida e as faz
emissrias de/formadas e des/medidas do seu inconsciente, que rompe as
barreiras do interdito e se coloca numa exploso.
Como elemento mgico, a palavra o cerne da poesia e se projeta,
alm de som e musicalidade, e repe sua carga de sinal mesmo ao designar
o cotidiano e o prosaico. Apesar de manipulador de sintagmas, Ldo Ivo
deixa-se dominar pelo inconsciente e recebe a inspirao que o artesanato
procura burilar. No seu labor catrtico, fui a associao ldica de formas
e um quase automatismo bretoniano organiza seus versos. As sinestesias
Resgatando uma gerao ______________________________________________________________ Elizabeth Renn 35
36 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
se combinam e imagens se fundem atravs das evocaes; os sentidos se
tornam cor, cheiro ou sensao, como em As Esttuas:
Brancas formas que o tempo
cobre de ptina
e a noite higieniza
ninfmanas impregnadas de pattico dar
nuas, se abandonam noite que as requesta
falando talvez em linguagem de nuvem
e se insultando com palavras azuis.
Nunca estremecem ou gritam
esses pssaros
feitos da substncia antiga do soneto.
mudas, mas sempre em voo, esperam sempre.
(Cntico, O Sinal Semafrico, p. 135)
A trajetria que empreende o poeta a reduplicao daquela que
seguiu o Homo sapiens, lenta e progressivamente. Desde o seu nascimento,
na negatividade da perda de seu habitat, Paraso-Natureza, assimila sua
impotncia.
Visualizando seu prprio fm, a morte, debate-se na dicotomia
existencial e insolvel: corpo e alma, fnito e infnito.
O poeta recria o Universo e a si mesmo a partir da indeciso entre
Eros e Thanatos, as duas chaves da regresso e da progresso, chaves da
Psicanlise humanstica de Erich Fromm. A realidade procurada como
um todo, a evoluir atravs do tempo e do espao.
Decodifcador de sensaes esotricas, pela sua criao que a
experincia do real se reproduz no momento da percepo.
Ldo Ivo assume muitas faces; mais incisivas so as que se ligam
ora inveno, ora descoberta, independentemente de ordem ou
taxonomia.
A V Feiticeira encarna essa criao, inveno ou descoberta:
Invento a for e, mais que a for, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.
Invento o espelho e, mais que o espelho, o amor
onde eu me vejo, vivo, num sarcfago.
E a vida, este galpo de sortilgios,
deixa que eu a invente, com palavras,
que so drages vencidos pela mgica.
E no me espanta que eu, sendo mortal,
sujeito injria de tornar-me em p,
crie uma rosa eterna como as rosas
inexistentes nesta fora efmera.
Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vs lembranas. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vo.
(Linguagem, O Sinal Semafrico, p. 227)
Resgatando uma gerao ______________________________________________________________ Elizabeth Renn 37
O PROCESSO DE INDEPENDNCIA
DO BRASIL E SUAS RELAES
COM OS PASES VIZINHOS
Jos Carlos Brandi Aleixo*
I Introduo
As notcias da abdicao de Fernando VII, em 2 de maio de 1808,
a favor de Jos Bonaparte e de sua recluso no Castelo de Valenay, e da
resistncia do povo espanhol aos planos de Napoleo Bonaparte,
circularam, rapidamente, pela Amrica. No dia 25 de maio de 1809 no
Alto Peru, hoje Bolvia, na vetusta cidade de Chuquisaca, hoje Sucre
1
,
assim como no seguinte histrico dia 10 de agosto, na Presidncia de
Quito, ocorreram importantes manifestaes de natureza autonomista. A
partir destas efemrides sucessivos territrios da regio proclamaram e
conquistaram a sua emancipao poltica. Nos processos, quer de suas
separaes da Espanha e de Portugal, quer de desmembramentos das
unidades administrativas estabelecidas pelas metrpoles, houve ao lado
de elementos comuns outros singulares. neste contexto que se elaborou
este estudo O Processo de Independncia do Brasil e suas Relaes com
os Pases Vizinhos.
Cabe evocar, inicialmente, dois princpios de particular relevo para
as relaes entre nossos povos.
* Professor universitrio (UnB), Presidente de Honra do Instituto Brasileiro de Relaes
Internacionais (IBRI). Ocupa a cadeira n 19 da AML.
40 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
No sculo XVI, de sua ctedra salmantina, o dominicano Francisco
de Vitria defendeu o princpio da reciprocidade para defnir direitos e
deveres entre seus compatriotas e povos da Amrica. Segundo ele os
espanhis no tinham mais direitos sobre os ndios do que estes teriam
contra os espanhis, se, por sua vez, tivessem sido os descobridores de
Europa
2
.
Merece tambm relevo o artigo XXI do Tratado de Madrid, de
1750. Dito artigo estabelece que em caso de guerra em Europa, entre
Portugal e Espanha, os vassalos de ambas Coroas, em toda a Amrica
Meridional, ou seja, desde o Mxico at a Patagnia, se manteriam em
paz, como se no houvesse tal guerra. Acrescenta o artigo que tal
continuao de perptua paz e boa vizinhana no ter s lugar nas Terras
e Ilhas da Amrica Meridional...
3
Outras potncias europias no conse-
guiram assinar entre si acordos com termos to benfcos para seus sditos
no Novo Mundo. A expresso boa vizinhana aparece no texto mais de
180 anos antes de seu emprego pelo presidente Franklin Delano Roosevelt.
II A Conspirao em Minas Gerais
Um movimento pela independncia, de grande signifcado na
histria do Brasil, foi a Conspirao Mineira, anterior Revoluo
Francesa de 14 de julho de 1789. Entre suas causas endgenas estavam:
a insatisfao com os numerosos e pesados impostos da metrpole (a
quinta parte o quinto do ouro extrado se devia Coroa); certa
decadncia econmica da regio; as difculdades para a ascenso social
dos nascidos na colnia; ausncia de uma universidade, etc. O exemplo
da emancipao dos Estados Unidos, proclamada em 4 de julho de 1776
4
,
e as ideias dos enciclopedistas franceses muito repercutiram no Brasil.
5
Integravam a conjurao advogados, comerciantes, fazendeiros,
funcionrios, mdicos, militares e sacerdotes. Muitos, com grande cultura,
eram poetas e escritores. Na bandeira da futura repblica fguravam um
tringulo e as palavras do poeta latino Pblio Virgilio Maro Libertas
quae sera tamen
6
. A ecloso do levante seria no dia em que o governo
comeasse a cobrana forada dos impostos, alegadamente atrasados, ou
seja, no dia da derrama. A senha combinada para este fm era Tal dia
o batizado. Contudo, aps receber delaes de traidores o Governo
suspendeu a iminente derrama e em maio de 1789 encarcerou quase
todos os envolvidos na Inconfdncia.
Apesar de o movimento contar com o apoio, ou ao menos, com a
simpatia de milhares de pessoas, as Autoridades optaram por uma
represso seletiva. Prenderam e interrogaram cerca de uma centena de
suspeitos
7
sentenciaram vinte e quatro deles, considerados os mais ativos
ou infuentes
8
.
Na madrugada de 19 de abril de 1792, quase trs anos
aps as primeiras retenes, foi lida, durante duas horas, a condenao de
onze rus forca
9
.
Mas poucas horas depois, de acordo com prvia
autorizao da rainha lusitana Maria I, comutou-se, para dez deles, a pena
capital em desterro perptuo, na frica ou na sia. S se manteve o
ditame anterior para o alferes Joaquim Jos da Silva Xavier, Tiradentes
de alcunha
10
.
Pelo seu intimorato e amplo proselitismo, pelo arraigado de
suas convices, por seus esforos para inocentar seus companheiros ou
ao menos para atenuar suas culpas, por professar e assumir a
responsabilidade maior pela sedio, por sua dignidade e intrepidez at o
momento fnal de sua vida, se transformou em heri nacional. Vinte e um
de abril, efemride de sua execuo em 1792, feriado cvico e,
propositalmente, data da inaugurao, em 1960, pelo Presidente Juscelino
Kubitschek, de Braslia, a nova capital do pas.
III O jornalista Hiplito Jos da Costa (1774-1823)
Nasceu, aos 25 de maro de 1774, em Colnia do Santssimo
Sacramento, localidade fundada por portugueses, em 1680, na margem
norte do Rio da Prata. Aps sua entrega Espanha, pelo Tratado de Santo
Ildefonso, em 1777, Hiplito transferiu-se, com seus pais, para Porto dos
Casais (atual Porto Alegre).
Aos 18 anos matriculou-se na Universidade lusitana de Coimbra e,
em 1798, diplomou-se em Direito e Filosofa, tendo adquirido tambm
O processo de independncia do Brasil e suas relaes com os pases vizinhos ___________Jos Carlos Brandi Aleixo 41
42 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
slidos conhecimentos de agricultura, botnica, zoologia, mineralogia,
fsica, qumica e metalurgia.
O Ministro Rodrigo de Souza Coutinho (Conde de Linhares),
estadista de grande descortino, enviou-o, em misso de carter econmico
e cientfco, aos Estados Unidos e ao Mxico
11
(1798-1800). Em 1802
recebeu Hiplito, do mesmo Ministro Coutinho, a incumbncia de obter,
na Inglaterra e na Frana, livros para a Biblioteca Pblica e maquinrio
para a Imprensa Rgia. Ao regressar a Lisboa, foi trancafado pela
Inquisio, ofcialmente por haver viajado sem o devido passaporte, mas,
na realidade, por ser membro da Maonaria. Com a ajuda desta Instituio,
depois de trs anos de crcere, conseguiu evadir-se e chegar a Londres,
via Espanha e Gibraltar.
Por causa da invaso de Portugal, em 1807, por tropas napolenicas,
muitos portugueses se refugiaram na Gr-Bretanha. Hiplito entendeu
que um jornal de lngua lusitana, em um pas com liberdade de imprensa,
seria um extraordinrio instrumento para o desenvolvimento econmico
e social do Brasil. Com a experincia, a partir de 1801, de Diretor Literrio
da Imprensa Rgia Lusitana, fundou, em junho de 1808, o Correio
Braziliense, ou Armazm Literrio que circulou, mensalmente, sob sua
direo, at dezembro de 1822. Advogou a abolio da escravatura, a
interiorizao da capital do pas, a criao de uma Universidade e outras
causas cvicas. Apesar de proibido pela censura, o jornal era lido por
muitos no Brasil. Em seu ltimo ano veio a ser paladino no s da
autonomia como tambm da plena independncia do pas.
Durante suas visitas aos Estados Unidos, ao Mxico, Frana e
Inglaterra (pas de sua residncia permanente de 1808 a 1823), Hiplito
adquiriu amplos conhecimentos sobre os movimentos independentistas
nos territrios hispano-americanos e entabulou relaes pessoais com
vrios de seus lderes.
No Arquivo de Francisco de Miranda, venezuelano Precursor do
Libertador Simn Bolvar, h ao menos trs cartas de Hiplito Jos da
Costa a ele
12
.
Na defesa da emancipao hispano-americana Miranda providenciou
a maior divulgao da Carta a los espaoles americanos da autoria do
jesuta peruano Juan Pablo de Viscardo y Guzmn, expulso do Novo
Mundo como seus companheiros de ordem, por determinao do Governo
de Madri
13
. O Correio Braziliense publicou, j em 1809, em trs fascculos
mensais, um longo estudo estampado na Review de Edimburgo, analisando
o trabalho de D. Juan Pablo Viscarte y Guzmn.
No crculo das relaes de Hiplito estavam tambm o Libertador
Simn Bolvar (Caracas, 1783 Santa Marta, Colmbia, 1830), Bernardo
OHiggins (Chilln, 1776 Lima, 1842), Jos de San Martn (Corrientes,
1778 Boulogne-sur-Mer, 1850) e Matias Irigoyen (Buenos Aires, 1781
Buenos Aires, 1839).
Por esta e outras razes asseverou Barbosa Lima Sobrinho: No
haveria exagero em fazer do Correio Braziliense o campeo, na Europa,
da independncia das Amricas, do Mxico a Buenos Aires, do Chile
Colmbia e Venezuela
14
.
Em 1823 foi nomeado Cnsul do Brasil mas a notcia somente
chegou a Londres depois de seu falecimento, naquela cidade, em 11 de
setembro do mesmo ano.
Em 21 de abril de 1960, data da inaugurao da nova capital, se
publicou nela, o primeiro nmero do Correio Braziliense, com o mesmo
ttulo e grafa (Braziliense com z) do jornal fundado, em Londres, por
Hiplito da Costa. Sob o ttulo Correio Braziliense na primeira pgina se
l: Londres, 1808, Hiplito Jos da Costa Braslia, 1960, Assis
Chateaubriand.
Por iniciativa do Congresso Nacional e decreto assinado pelo
Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2000, Hiplito Jos da Costa
foi declarado, ofcialmente, Patrono da Imprensa Brasileira, e Primeiro de
Junho, aniversrio do lanamento, em Londres, do Correio Braziliense,
passou a ser no Brasil o Dia Nacional da Imprensa.
Os restos mortais de Hiplito da Costa, depois de exumados de seu
tmulo na igreja de Saint Mary, the Virgin, em Hurley, condado de
Berkshire, Inglaterra, em 24 de maio de 2001, foram transportados a
Braslia e depositados, no seguinte 4 de julho, em monumento erigido em
sua memria, nos jardins do museu da Imprensa Nacional, prximo s
instalaes do jornal Correio Braziliense.
O processo de independncia do Brasil e suas relaes com os pases vizinhos ___________Jos Carlos Brandi Aleixo 43
44 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
IV O traslado da famlia real lusitana para o Brasil. Articulaes
da princesa Carlota Joaquina
Napoleo Bonaparte, em seu expansionismo e busca de hegemonia,
promoveu, com Carlos IV da Espanha, o Tratado de Fontainebleau, de 27
de outubro de 1807. Ele programou a fragmentao de Portugal em trs
partes
15
, assim como a repartio das suas possesses ultramarinas.
Desejoso de capturar a famlia real e a frota lusitana, ordenou que seu
general Andoche Junot invadisse o pas. Mas pouco antes de seu ingresso
em Lisboa, o Prncipe Joo com sua me Maria, j declarada louca, sua
esposa, Carlota Joaquina, seus flhos, e cerca de dez mil pessoas mais,
deixaram a capital, no dia 30 de novembro, com destino ao Brasil, em
frota de 14 navios, protegida por uma diviso naval inglesa, comandada
pelo Almirante Sidney Smith
16
.
A princesa Carlota Joaquina, primognita dos Reis Carlos IV e
Maria Luisa, alegando a condio de prisioneiro, no Castelo francs de
Valenay, de seu irmo Fernando VII, desenvolveu planos para ser
reconhecida como Regente, como Rainha do Prata e eventualmente de
todo o Imprio da Espanha. Manifesto seu neste sentido, redigido em 19
de agosto de 1808, chegou a Bogot, Buenos Aires, Caracas, Chuquisaca,
Guatemala, Havana, Lima, Manila, Mxico, Montevidu, Quito,
Santiago
17
.
Se por um tempo o Prncipe Dom Joo simpatizou com algumas
das ambies da esposa, e com a improvvel hiptese de uma nova unio
das coroas ibricas, logo mudou de opinio. Motivado pelas difceis
relaes pessoais entre ambos, pela lembrana de articulaes ou intrigas
da esposa, em Lisboa, contrrias a seu exerccio do poder real, e pelo
temor de provveis complicaes internacionais, frustrou a desejada e
programada viagem de Carlota Joaquina a Buenos Aires.
Vrios fatores foram adversos a Carlota Joaquina, em suas pretenses
de poder poltico, na Amrica. Podemos citar: as derrotas e desterro de
Napoleo, em 1814; o retorno de Fernando VII ao trono espanhol, nesse
mesmo ano; o estabelecimento, no dia 16 de dezembro de 1815, do Reino
Unido de Portugal, Brasil e Algarves; a morte, em 20 de maro de 1816,
no Brasil, da rainha Maria I, a louca; a cerimnia solene, em 6 de fevereiro
de 1818, da ascenso ao trono e ao ttulo de rei por parte de Dom Joo
VI, ao ttulo de rainha por parte de sua esposa Carlota Joaquina; a
proclamao, em 9 de julho de 1816, em Tucum, da independncia das
Provncias Unidas do Rio da Prata, e seu reconhecimento por Dom Joo
VI, no Brasil, em 1821
18
; a poltica inglesa favorvel ao surgimento de
vrios pases independentes na Hispano-Amrica; a partida da famlia
real para Lisboa, em 26 de abril de 1821.
19
V A Independncia do Brasil
Durante o perodo em que a Corte permaneceu no Brasil (1808
1821) o territrio de Portugal europeu experimentou uma situao singular
de dependncia com relao sua ex-colnia americana. Lisboa sofreu
tambm o peso de uma dura ocupao, ora francesa ora inglesa. Sem
considerar devidamente a fora do exemplo de emancipao dos Estados
Unidos nem o crescente movimento de autonomia dos hispano-americanos,
Portugal tentou submeter o Brasil a condies anteriores de Colnia.
Em 19 de janeiro de 1822, cedendo a uma forte manifestao
popular, o prncipe regente Dom Pedro, no acatou ordens no sentido de
voltar ao Velho Mundo e declarou: Como para o bem de todos e
felicidade geral da Nao, estou pronto: diga ao povo que fco. Esta
efemride conhecida como o Dia do Fico e para muitos correspondeu
a uma verdadeira separao entre Brasil e Portugal. No entanto, comemora-
se como data nacional o dia 7 de setembro de 1822, quando o prncipe D.
Pedro, nas redondezas de So Paulo, ao receber outras ordens inaceitveis,
vindas de Lisboa, proclamou: Independncia ou Morte. Foi o famoso
Grito do Ipiranga
20
.
Antes de completados trs anos, com a mediao de Inglaterra, no
dia 29 de agosto de 1825, no Rio de Janeiro, Portugal reconheceu a
independncia do Brasil
21
. Vale recordar que outras metrpoles europias
tardaram muito mais a faz-lo com relao a suas colnias na Amrica: a
Inglaterra e os Estados Unidos frmaram um Tratado de Paz, em Paris,
O processo de independncia do Brasil e suas relaes com os pases vizinhos ___________Jos Carlos Brandi Aleixo 45
46 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
em 3 de setembro de 1783
22
, mais de sete anos depois do famoso 4 de
julho; a Frana demorou at 1838 para reconhecer, defnitivamente, a
emancipao do Haiti, proclamada em 1 de janeiro de 1804
23
. Sabe-se
que Fernando VII, de acordo com ideias legitimistas da assim chamada
Santa Aliana, repudiou at sua morte, em 1833, a autodeterminao dos
povos. Somente algum tempo depois de sua desapario, Madri comeou
a aceitar a independncia de suas ex-colnias.
VI Relaes do Brasil com seus vizinhos na dcada de 1820
24
A) Jos Ignacio de Abreu e Lima (1794-1869), General de Bolvar
Em 1817 a cidade pernambucana do Recife foi cenrio e epicentro
de um importante movimento revolucionrio para a criao de uma
repblica independente. O Poder Central sufocou duramente a rebelio, e
executou vrias de suas cabeas. Muitas pessoas ligadas ao movimento,
por razes diversas, foram para a Colmbia. Entre elas sobressai Jos
Ignacio de Abreu e Lima. No dia 18 de fevereiro de 1819, de Angostura,
ele escreveu uma carta a Simn Bolvar, onde relata seus antecedentes e
se oferece a se sacrifcar pela independncia e pela liberdade da
Venezuela e de toda Amrica do Sul
25
. Abreu e Lima, combatente em
numerosas batalhas, foi heri condecorado com as cruzes de Boyac e de
Puerto Cabello. A pedido do Libertador escreveu, em sua defesa, o
trabalho Resumen Histrico de la ltima Dictadura del Libertador Simn
Bolvar, comprobado con documentos, publicado, primeiramente em
1922 no Rio de Janeiro, por iniciativa de Diego Carbonell, Ministro da
Venezuela no Brasil, e outra vez, em 1983, pelo Centro Abreu e Lima
de Estudos Brasileiros, do Instituto de Altos Estudos da Amrica Latina,
que integra a Universidade Simn Bolvar, com sede em Caracas. Em
1832, a Assembleia Legislativa do Brasil reconheceu seu ttulo de general,
recebido de Bolvar.
26
Seu nome consta, em Caracas, no monumento La
Nacin a sus proceres. Um retrato seu, de autoria do pintor pernambucano
Reynaldo Fonseca, doado, pelo presidente do Brasil, Joo Baptista
Figueiredo a seu homlogo da Venezuela, Luis Herrera Campins, se
encontra no edifcio da Assembleia Nacional.
B) Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846)
Com grande experincia internacional, amplos conhecimentos de
flosofa e cincias naturais, idias liberais e reformistas, assumiu, no dia
26 de fevereiro de 1821, no ltimo ministrio nomeado no Brasil, por
Dom Joo VI, a Pasta de Negcios Estrangeiros e da Guerra. Continuou
nela quando, no seguinte 26 de abril, partiu para Lisboa, com o rei e
cerca de outras quatro mil pessoas. Antes da proclamao da independncia
do Brasil, ocorrida no dia 7 de setembro de 1822, elaborou um projeto de
Tratado de Confederao e Mtua Garantia de Independncia dos
Estados que nele se mencionam, a saber, pelo momento, Estados Unidos
da Amrica Setentrional, Espanha, Portugal, Grcia, Estados Hispano-
Americanos e Haiti
27
. No texto divulgado graas s investigaes do
renomado diplomata e escritor venezuelano, Simn Planas-Suares, se
diz:
... indispensvel que denominada Santa Aliana dos
Prncipes Agressores se oponha a Sagrada Confederao dos
Povos Agredidos. O objeto principal deste congresso ser
ajustar, entre os Estados da Confederao, uma Aliana
Defensiva e a garantia do sistema constitucional de cada um
deles, no caso de serem atacados por qualquer potncia que
tente obrig-los, pela fora das armas, a sujeitar-se ordem
de pessoas que no sejam de sua livre eleio, ou a governar-
se por leis que no estejam de acordo com seus inte resses
28
.
Seguem-se comentrios histricos de Simn Planas-Suares:
"O projeto de um Tratado de Confederao da Independncia das
Naes, nascido da luminosa idia do Comendador Silvestre Pinheiro
Ferreira, um documento de alta transcendncia e signifcao positiva e
O processo de independncia do Brasil e suas relaes com os pases vizinhos ___________Jos Carlos Brandi Aleixo 47
48 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
to conforme s aspiraes da humanidade culta de todos os tempos, que
sua importncia histrica se realiza e aquilata ao contemplar os desejos
da poca presente to de acordo, e por quase idnticos motivos, com os
anseios do passado distante. Por tais razes, a leitura desse projeto em
nossos dias no pode menos que despertar em todo esprito sincero,
democrtico e liberal, um profundo sentimento de admirao e simpatia
pela memria do clarifcado estadista que o concebeu, o qual se considerava
cidado de todo pas livre
29
.
O famoso projeto que acabamos de ler , sem dvida, algo
extraordinrio e ocupar durante sculos as pginas luminosas da histria
universal; pginas que ns, hispano-americanos, devemos recordar sempre
com ntima gratido sem esquecer seu ilustre autor, cujo nome est to
ligado ao reconhecimento da independncia das repblicas sul-ameri-
canas.
30
A vontade manifesta de Pinheiro Ferreira pelo reconhecimento da
soberania e independncia poltica dos novos Estados hispano-americanos,
no s conseguiu que seu governo fosse o primeiro do mundo a faz-lo,
mas tambm que o xito de sua nobre e justa atuao no momento
oportuno se convertesse, sem dvida alguma, em valioso paradigma,
em incitao, logo seguida pelos Estados Unidos e pelas Potncias
europias.
31
Quando Pinheiro Ferreira envia o texto do projeto do Tratado
Legao de Portugal, nos Estados Unidos, recomenda ao agente Schmit,
que se encontrava naquele pas, a servio de Lisboa, que se traslade, com
a maior brevidade possvel, para prximo do Libertador, para tratar do
negcio com sua Excelncia efcazmente, porque considera como o
mais valioso apoio ao propsito que se tenta realizar, a infuncia e o
prestgio militar e poltico do General Simn Bolvar, que na Amrica
imenso
32
.
C) Jos Bonifcio de Andrada e Silva (1765-1838)
considerado o mais culto dos brasileiros de seu tempo. Durante
38 anos na Europa, adquiriu conhecimentos extraordinrios de direito,
flosofa e cincias naturais. Casado com a irlandesa Narcisa Emilia O
Leary, em 30 de janeiro de 1790, em Lisboa, voltou para o Brasil, em
1821, aos 56 anos de idade. No dia 16 de janeiro de 1822 se torna o
primeiro brasileiro a assumir um ministrio, o do Reino e Negcios
Estrangeiros, nomeado pelo Prncipe regente, D. Pedro. Permaneceu nele
at o dia 15 de julho de 1823. Como assessor e orientador seu recebeu,
em nossa histria, o ttulo de Patriarca da Independncia. Em La Paz h
uma esttua dele
33
. Jos Bonifcio propugnou a solidariedade continental.
Em carta a Bernandino Rivadavia, Ministro de governo, em Buenos
Aires, em 10 de junho de 1822, escreveu:
... o mesmo Senhor [Prncipe D. Pedro], como Regente do
Brasil, no deseja nem pode adotar outro sistema que no seja
o Americano, e est convencido de que os interesses de todos
os Governos da Amrica, sejam quais forem, se devem
considerar homogneos, e derivados todos do mesmo princ-
pio; ou seja: uma justa e frme repulsa contra as imperiosas
pretenses da Europa
34
.
Em outra oportunidade afrmou:
O sentido comum, a poltica, a razo que nela se funda, e a
crtica situao da Amrica nos esto dizendo, e ensinando
a todos os que tm ouvidos para ouvir e olhos para ver que
uma liga defensiva e ofensiva, de quantos Estados ocupam
este vastssimo continente, necessrio para que todos e cada
um deles possa conservar intactas sua liberdade e independncia
profundamente ameaadas pelas irritantes pretenses da
Europa
35
.
O processo de independncia do Brasil e suas relaes com os pases vizinhos ___________Jos Carlos Brandi Aleixo 49
50 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
D) Relaes entre o Governo do Brasil e Simn Bolvar
muito compreensvel que inicialmente o Libertador nutrisse
sentimentos de certa preocupao e at certa animosidade com relao ao
Brasil. O prncipe regente D. Pedro, pouco depois Imperador do Brasil,
era flho de Carlota Joaquina, irm do rei da Espanha Fernando VII,
contra quem os insurrectos hispano-americanos lutavam. Sua primeira
esposa, a inteligente Leopoldina de Habsburgo (1797-1826) era flha de
Francisco I, Imperador da ustria. Os legitimistas da Santa Aliana eram
contra o princpio da autodeterminao dos povos e favorveis a Fernando
VII. Com sabedoria e realismo, depois Bolvar passou a compreender as
particularidades do Brasil. Dom Joo VI, ao contrrio de seu cunhado
Fernando VII, j antes de regressar a Lisboa aconselhou seu flho D.
Pedro a encabear o inevitvel movimento de separao do Brasil.
ustria, Inglaterra e Frana, nem sempre pelas mesmas razes, nem com
iguais preferncias de modelo poltico, viam com certo agrado o
surgimento de uma monarquia na Amrica. O Libertador combatia o rei
absolutista espanhol e a Santa Aliana, mas respeitava e at admirava a
monarquia inglesa.
No dia 15 de outubro de 1827, em Bogot, o Presidente Simn
Bolvar, em mensagem ao Presidente da Bolvia, Antonio Jos de Sucre,
disse:
"Aconselho ao Senhor que por todos os meios plausveis trate de
obter e conservar uma boa harmonia com o governo brasileiro. Assim o
exige a poltica e o exigem tambm os interesses da Bolvia, em particular,
e da Amrica em geral. No nos importa sua forma de governo; o que
nos importa , sim, sua amizade, e esta ser mais estvel quanto mais
concentrado seja seu sistema
36
".
Uma das ltimas, seno a ltima audincia concedida pelo
Libertador, como presidente, foi a do dia 30 de abril de 1830, em Bogot,
na qual recebeu a Lus de Souza Dias, primeiro Enviado Extraordinrio e
Ministro Plenipotencirio do Brasil. Disse:
A misso de que vindes encarregado da parte de S.M. ao
governo da Colmbia, me enche de satisfao, porque ela
ser um vnculo de amizade entre ambas as naes. O Imprio
do Brasil, recentemente criado pelo seu ilustre monarca,
uma das garantias mais poderosas que as Repblicas da
Amrica receberam, na conduo de sua independncia.
Dando o vosso soberano o belo exemplo de submeter-se
espontaneamente constituio mais liberal, ele se fez
merecedor do aplauso e admirao do mundo
37
.
Em nvel multilateral, vale recordar o apoio do Brasil luminosa
iniciativa do Libertador de convocar, pela circular de Lima, do dia 7 de
dezembro de 1824, o Congresso Anfctinico de Panam. O Presidente
em exerccio da Colmbia, Francisco de Paula Santander, estendeu o
convite ao Brasil. Pelo decreto de 25 de janeiro de 1826, assinado pelo
Visconde de Inhambuque de Cima (Pereira da Cunha) e por Dom Pedro
I, o Conselheiro Theodoro Jos Biancardi foi nomeado Pleni potencirio
do Brasil junto ao Congresso Anfictinico do Panam, por gozar das
qualidades necessrias de luzes, destemor e patriotismo
38
.
VII Breve comparao
Durante as trs primeiras dcadas do sculo XIX Espanha e seus
territrios na Amrica conheceram maior e mais complexa variedade de
Governos que Portugal e Brasil.
Em maro de 1808, no Levante de Aranjuez, Carlos IV abdicou em
favor de seu flho Fernando VII. Em maio seguinte, em Bayona, ambos
renunciaram em favor de Jos, irmo de Napoleo Bonaparte. Em 25 de
setembro do mesmo ano organizou-se, em oposio ao imperador francs,
em Aranjuez, uma Junta Central. Com a rendio de Madri ao exrcito
invasor em dezembro, a Junta deslocou-se para Sevilha. Esta, em janeiro
de 1809, declarou que as terras da Amrica no eram mais colnias. Em
janeiro de 1810 desintegrou-se a Junta Central e em fevereiro criou-se a
O processo de independncia do Brasil e suas relaes com os pases vizinhos ___________Jos Carlos Brandi Aleixo 51
52 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Regncia de Cdiz. Aps o fm das hostilidades entre Frana e Espanha,
em setembro de 1813, Fernando VII regressou a Madri em 13 de maio de
1814. Na Hispano-Amrica houve obedincia, ora a Fernando VII, ora
Junta de Sevilha, ora s Juntas locais favorveis a graus diferentes de
autonomia, ora a Governos plenamente independentes. Com a vitria do
General Sucre, em Ayacucho, em dezembro de 1824, praticamente cessou
a presena militar espanhola no continente americano. Ela ainda continuou,
at 1898, em Cuba e Porto Rico. Apesar das preferncias monarquistas
de vrios prceres e de gestes de alguns deles no sentido de importar
membros de famlias reais (entre eles Carlota Joaquina), nenhum trono se
estabeleceu na regio. A nica breve experincia no gnero foi a do
mexicano Itrbide, que durante 2 anos (1822-1823) assumiu o ttulo de
Imperador Agostinho I. Houve numerosas batalhas com o surgimento de
heris e caudilhos. A Capitania Geral de Guatemala, os Vice-Reinados
de Nova Granada, do Peru e do Prata sofreram desmembramentos. Em
1840 havia 15 pases independentes de idioma espanhol na Amrica.
O Brasil, com a chegada, em janeiro de 1808, da famlia real
lusitana, tornou-se a sede de domnios em quatro continentes. Foi o nico
caso, na histria colonial do Novo Mundo, da transferncia de um trono
da Europa para a Amrica. O sentimento ultramarino portugus pesou
muito nesta deciso, j cogitada desde o sculo XVII. A Corte no se
instalou em um exlio europeu que poderia ter sido Londres.
Em 16 de dezembro de 1815, o Prncipe Regente criou o Reino
Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Dona Maria I faleceu, no Rio de
Janeiro, aos 20 de maro de 1816. Aps um ano de luto e algumas
protelaes o flho foi coroado Rei, aos 7 de fevereiro de 1818, com o
ttulo de Dom Joo VI.
Portugal europeu resistiu invaso napolenica de seu territrio e
tropas suas combateram, sob o comando do General Wellington. De 1816
a 1820 o general ingls Guilherme Carr Beresford, comandante-chefe do
exrcito de Portugal, exerceu grande domnio sobre a Regncia lusitana.
A revoluo liberal de 1820 logrou modifcar este quadro, e conseguiu o
retorno de Dom Joo VI a Lisboa. Este deixou seu flho Pedro como
Regente no Brasil.
tambm caso mpar que um prncipe nascido na Europa haja
proclamado a independncia de pas na Amrica. outrossim singular
que tendo ele, Pedro I, sido imperador do Brasil, de 1822 a 1831 aps
abdicar em favor de seu flho de menor idade tenha assumido o trono de
Portugal com o ttulo de Dom Pedro IV. Vale acrescentar que no Brasil
no houve grandes batalhas militares na luta pela independncia.
Nos 13 anos de permanncia no Brasil (1808-1821), Dom Joo
tomou duas iniciativas de ampliao territorial. Aps declarar guerra a
Napoleo Bonaparte, em 1 de maio de 1808, ocupou, em represlia, a
Guiana Francesa em 1809. Devolveu-a em 1817. Interveio, em 1810, na
margem esquerda do Rio da Prata
39
. Com o nome de Provncia Cisplatina
esta regio integrou o Brasil independente at o Tratado de 1828, pelo
qual, com a mediao de Londres, Rio de Janeiro e Buenos Aires
asseguraram a criao da Repblica Oriental do Uruguai.
Por outro lado, neste perodo houve apenas uma tentativa sria de
secesso: a Revoluo Pernambucana de 1817 almejou criar uma
Repblica. Ela foi duramente reprimida e vrios de seus lderes foram
executados ou emigraram.
40
VIII Consideraes Finais
O melhor conhecimento do nosso passado deve ajudar-nos a
equacionar e resolver os desafos do presente. Vale recordar a lio
atribuda ao grande Ortega y Gasset: Ni el pasado ha muerto ni est el
futuro en el ayer escrito. Os ideais de justia, liberdade e cooperao de
prceres como Eugnio de Santa Cruz Espejo, dos fervorosos patriotas
da Revoluo de 10 de agosto de 1810, de Tiradentes, Jos Bonifcio de
Andrada e Silva, Hiplito Jos da Costa, e particularmente do Grande
Libertador Simn Bolvar devem ser lembrados.
Este nosso conclave no cenrio privilegiado e hospitaleiro de Quito
nos proporciona novo alento. Em consonncia com os anseios de
integrao de nossos povos os constituintes brasileiros escreveram no
pargrafo nico do artigo 4 da Carta Magna de 1988:
O processo de independncia do Brasil e suas relaes com os pases vizinhos ___________Jos Carlos Brandi Aleixo 53
54 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
A Repblica Federativa do Brasil buscar a integrao econmica,
poltica, social e cultural dos povos da Amrica Latina, visando
formao de uma comunidade Latino-Americana de Naes.
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58 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Notas
1. JUST LLE, Estanislao. Comienzo de la independencia en el Alto Per: los sucesos
de Chuquisaca, 1809. Sucre, Bolvia: Judicial, 1994, 858 p.
2. Non plus quam si illi invenissent nos. Apud GOMES ROBLEDO, Antonio. Idea
y experiencia de Amrica. Mxico: Cultura Econmica, 1958, p. 25. O autor tambm
analisa e compara as idias de Bolvar e Monroe. Muito do pensamento de Vitria
est em seu trabalho Relecciones sobre los ndios y el derecho de la guerra. Madri.
Espasa-Calpe, S. A. Coleccin Austral, 1976.
3. CASTRO, Jos Ferreira Borges de (Org.). Coleo dos Tratados, Convenes,
Contratos e Atos Pblicos Celebrados entre a Coroa de Portugal e as demais
potncias desde 1640 at ao presente. Compilados, coordenados e anotados por
este autor. Lisboa: Impr. Nacional, 1856, vol. 4, p. 44-45. Nas discusses
preparatrias para o Tratado de Madrid foi muito importante a contribuio de
Alexandre de Gusmo, brasileiro nascido na cidade paulista de Santos, membro do
Conselho Ultramarino e Secretrio do Rei Dom Joo V. Ver tambm: CORTESO,
Jaime. O Tratado de Madri. Braslia, Senado Federal, 2001. Fac-smile da edio
de 1953; GOES, Synesio Sampaio. A Paz das Fronteiras Coloniais: Alexandre de
Gusmo, o Grande Obreiro do Tratado de Madrid. In: Misses de Paz. org. de Raul
Mendes Silva Rio de Janeiro. Multimdia, 2003 p. 33-64; OCTVIO, Rodrigo.
Alexandre de Gusmo et le sentiment americain dans la politique internationale.
Paris, Recueil Sirey, 1930.
4 Havia alguns estudantes brasileiros em Bordeaux e em Montpellier. Um deles, Jos
Joaquim de Maia, conseguiu um encontro, em Nmes, com o Ministro norte-
americano em Paris, Thomas Jefferson, em maro de 1787. Seu pedido, ao Governo
de Washington, de apoio causa da emancipao do Brasil, foi recebido com
simpatia mas no se prometeu nenhuma ajuda militar ou poltica. Ver Carta de
Thomas Jefferson a John Jay, escrita de Marselha, no dia 4 de maio de 1787, em:
CASTRO, Therezinha de. Histria Documental do Brasil. Rio de Janeiro, Record,
p. 113; SANTANA, Norma Correa Meyer. A infuncia de Thomas Jefferson na
independncia do Brasil. Braslia, Horizonte, p. 38.
5. Na vasta e rica biblioteca particular do letrado conspirador, cnego Lus Vieira da
Silva, havia obras de muitos autores da Frana e outros pases. Ver: FRIEIRO,
Eduardo. O diabo na livraria do cnego. Belo Horizonte: Itatiaia, 1957, p. 75-82.
6. Termos da Primeira cloga: Libertas quae sera tamen respexit inertem. Ver:
PINTO, Rosalvo Gonalves. Os inconfdentes Jos de Resende Costa (Pai e Filho)
e o arraial da Laje. Braslia: Senado Federal, 1972, p. 61-62.
7. No dia 25 de outubro de 1791 eram 30 os inconfdentes encarcerados em diversas
prises do Rio de Janeiro. Ver: TRRES, Joo Camilo de Oliveira. Histria de
Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, Difuso Panamericana do Livro, vol. III, 2
ed., [1972], p. 579-580.
8. PINTO, Rosalvo Gonalves. Op, cit. Lista dos 24 nomes de condenados, p. 54-6.
9. TRRES, Joo Camilo de Oliveira. Op. cit. p. 504.
10. Sobre o tema, alm dos autores j citados, ver tambm: VIEIRA, Jos Crux
Rodrigues. Tiradentes: a Inconfdncia diante da Histria. Belo Horizonte, 2
Clich, Comunicao & Design Ltda. 1993, 3 vol.; ALENCAR, Gilberto de. Tal dia
o batizado (O Romance de Tiradentes). Belo Horizonte: Itatiaia, 1972, 288 p.;
JOS, Oilliam. Tiradentes. Belo Horizonte: Imprensa Ofcial, 1974, 307p.
11. Suas variadas e argutas observaes e anlises foram registradas no Dirio da
Minha Viagem para Filadlfa (1778-1979), publicado pelo Senado Federal do
Brasil em 2004.
12. Na missiva de 20 de outubro de 1809 Hiplito anuncia sua inteno de imprimir
notcias sobre acontecimentos de Caracas no Correio Braziliense do qual remete a
ele um exemplar. Na Carta de 20 de junho de 1810 cobra o envio de uma revista
prometida. No dia 31 de julho do mesmo ano comunica a viagem de um agente de
confana para o Rio de Janeiro. Ver: CHACON, Vamireh. Abreu e Lima, General
de Bolvar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 69.
13. Sobre Francisco de Miranda e os Jesutas, ver: GRISANTI, Angel. Miranda:
Precursor del Congreso de Panam y del Panamericanismo. Caracas: Jesus E.
Grisanti, 1954, p. 109-133.
14. BARBOSA, Lima Sobrinho. Hiplito da Costa. Pioneiro da Independncia do
Brasil. Braslia: Fundao Assis Chateaubriand, 1966, p. 45. Ver tambm sobre
Hiplito: BENTO, Cludio Moreira. Hiplito da Costa: o Gacho Fundador da
Imprensa do Brasil. Porto Alegre: Gnesis, 2005, 158 p.; CALMON, Pedro. Histria
do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1963, 2 edio (ver ndice onomstico,
vol. 7, p. 2000); CHANDLER, Charles Lyon. O Brasil e os Estados Unidos de
1774 a 1820. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, ano 116, n. 304, p. 4, domingo,
O processo de independncia do Brasil e suas relaes com os pases vizinhos ___________Jos Carlos Brandi Aleixo 59
60 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
26 set. 1943; CASTRO, Therezinha de. Hiplito da Costa. Idias e Idias. Rio de
Janeiro: Biblioteca Nacional do Exrcito, 1985, 2 ed., 112 p.; PEREIRA, Jos Luiz
de Moura. Hiplito Jos da Costa. O Patriarca da Imprensa Brasileira. Braslia:
Studio Z Produes Grfcas Ltda, 1996, 138 p.; RIZZINI, Carlos. Hiplito da
Costa e o Correio Braziliense. So Paulo: Ed. Nacional, 1957.
15. AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina na Corte do Brasil. Rio
de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003, p. 39; MARTINEZ, Pedro Soares. Histria
diplomtica de Portugal. Lisboa: Verbo, 1992, p. 219-220.
16. GOMES, Laurentino. 1808. Como uma rainha louca, um prncipe medroso e uma
corte corrupta enganaram Napoleo e mudaram a Histria de Portugal e do Brasil.
So Paulo: Planeta, 2007, 141 p; WILKEN, Patrick. Imprio deriva. A Corte
Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, 326 p.
Ttulo original: Empire Adrift The Portuguese Courting. Rio de Janeiro, 1808-
1821; ONeil, Thomas. A Vinda da Famlia Real Portuguesa para o Brasil. Rio de
Janeiro: Jos Olympio Prefeitura do Rio de Janeiro, 2007, 125 p.
17. PIMENTA, Joo Paulo G. Com os olhos na Amrica Espanhola: a independncia
do Brasil (1808-1822). In: Cadernos do CHDD. Rio de Janeiro, FUNAG, Ano IV
numero especial, 2005 p. 6. Em D. Jos Presas. Memrias Secretas de D. Carlota
Joaquina. Rio de Janeiro: Irmos Pongetti Zelio Valverde Editores, 1940, p. 237-
243, encontra-se o Manifesto de Dona Carlota Joaquina candidatando-se ao trono
da Amrica Espanhola. de Raimundo Magalhes Jnior a traduo anotada e o
prefcio. Em 1939 R. Magalhes Jr. Publicou o livro D. Carlota. Manuel Jos
Garcia. Agente confdencial da Argentina, no Rio de Janeiro, chegou a elaborar um
plano para coroar Dom Joo Imperador da Amrica. MAGNO, Demtrio. O Corpo
da Ptria. So Paulo: UNESP Moderna, 1997, p. 83. Apud ANJOS, Joo Alfredo
dos. Jos Bonifcio, primeiro Chanceler do Brasil. Braslia: FUNAG, 2008, p. 340,
nota 164. No livro organizado e anotado por Francisca L. Nogueira de Azevedo
Carlota Joaquina. Cartas Inditas, e publicado no Rio de Janeiro, pela Casa da
Palavra, em 2007, est um conjunto de 135 missivas remetidas por Carlota Joaquina
ou recebidas por ela, dividido em 3 categorias: 45 particulares; 40 de gabinete; e 40
polticas. Sua leitura muito til para entender melhor o seu papel na histria.
18. O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves foi o primeiro pas a reconhecer a
independncia das Provncias do Rio do Prata, aos 16 de abril de 1821 (Un
centenario histrico El reconocimiento de la independencia de las Provincias
Unidas del Rio de la Plata por el Reino Unido de Portugal, Brasil y Algarves. La
Nacin. Buenos Aires, sbado, 16 de abril de 1921, ao LII, n 17.789, p. 4; Un
comunicado ofcial de la Legacin de Portugal en Buenos Aires. Ibidem; Centenario
Histrico Cumplido Ayer. Reconocimiento de la Independencia Argentina por
Portugal. La Nacin, Buenos Aires, domingo, 17 de abril de 1921, ao LII, n.
17790, p. 5). interessante aclarar que 16 de abril de 1821 a data da Carta de
Dom Joo VI dirigida a Bernardino Rivadavia em que constava o reconhecimento
da independncia da Argentina. Mas a carta s foi entregue a este destinatrio em
28 de julho de 1821, data em que Joo Manuel de Figueiredo apresentou suas
credenciais. Faleceu ele em 21 de agosto de 1821 e na lpide de seu tmulo foi
escrito: Don Juan Manuel de Figueiredo a nombre de S. M. F. D. Juan VI, Rey de
Portugal, reconoci la independencia de este pais en 28 de julio de 1821. Apud
ANJOS, Joo Alfredo, op. cit. p. 336, nota 138.
Por outro lado, para Oscar Bastiani Pinto o Governo de Buenos Aires foi o primeiro
a reconhecer, ao menos tacitamente, a independncia do Brasil, ao receber
Bernardino Rivadavia, aos 9 de novembro de 1822, ao enviado do governo do
Brasil, Correia da Cmara e ao publicar, no mesmo dia, Decreto reconhecendo a
bandeira e o escudo de Armas do novo Estado. Apud, ANJOS, Joo Alfredo, op.
cit., p. 118-119 e 341, nota 169. Ver tambm Rodrigo Octvio, Alexandre de
Gusmo et le sentiment americain dans la politique internationale. Paris: Recueil
Sirey, 1930, p. 33.
19. Manuel de Oliveira Lima ao concluir seu fundamental livro Dom Joo VI no Brasil,
escreve que Carlota Joaquina, em seus treze anos no pas, pde satisfazer todos os
seus caprichos libertinos, mas nenhuma de suas ambies polticas. (Rio de Janeiro,
Edio Topbooks, 1996. p. 692). Depois da morte de Dom Joo VI, em 10 de maro
de 1826, Carlota Joaquina estimulou seu flho predileto, Miguel, a romper acordos
com seu irmo Pedro I no Brasil, e a declarar-se rei de Portugal. Pedro I abdicou no
dia 7 de abril de 1831, ao trono do Brasil, a favor de seu flho menor, Pedro de
Alcntara (futuro Pedro II)e voltou para Portugal para combater Miguel e suas
foras e no dia 24 de julho de 1833, entrou em Lisboa. Faleceu em 24 de setembro
de 1834 como Pedro IV de Portugal. Entre os estudos sobre Carlota Joaquina e o
perodo de sua permanncia no Brasil, alm de obras citadas antes neste texto,
podem-se consultar: AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina na
Corte do Brasil. Rio de Janeiro. Civilizao Brasileira, 2003; AZEVEDO, Francisca
L. Nogueira de. Para o bem e felicidade destes domnios: correspondncia entre
Carlota Joaquina e Manuel Belgrano. In: Cadernos do CHDD Rio de Janeiro.
Ano IV Nmero especial 2005, p. 71-87; CALMON, Pedro. Histria do
Brasil. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1963, vol. IV. Sculo XIX;
ETCHEPAREBORDA, Roberto. Que fue el Carlotismo? Buenos Aires, Plus ultra,
1971; MARTINEZ, Pedro Soares. Histria diplomtica de Portugal. Lisboa, Verbo,
1992, cap. VI e VII; MESA, Jos de, et al. Historia de Bolivia. La Paz, Editorial
O processo de independncia do Brasil e suas relaes com os pases vizinhos ___________Jos Carlos Brandi Aleixo 61
62 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Gisbert, 2003, Libro V; PEREIRA, Sara Marques. D. Carlota Joaquina: Rainha de
Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 2008, 271 p.
20. Sobre o primeiro imperador do Brasil foi publicado, em 2006, o interessante livro
D. Pedro I, de Isabel Lustosa. So Paulo, Companhia das Letras, 340 p.
21. FREITAS, Caio de. George Canning e o Brasil (Infuncia da diplomacia inglesa
na formao do Brasil). So Paulo: Companhia Editora Nacional. 1958. Ver,
particularmente, o volume II, quinta parte, p. 169-426.
22 PRATT, Julius W. A History of United States foreign policy. Englewood Cliffs,
New Jersey: Prentice-Hall, 1965, 2 ed, p. 27.
23. PRICE MARS, Jean. La Republica de Haiti y la Republica Dominicana. Madrid:
Grfcas Espaa, 1958, vol. I, cap. IX.
24. SANTOS, Luz Cludio Villafae 6. O Brasil entre a Amrica e a Europa. O
Imprio e o interamericanismo (do Congresso do Panam Conferncia de
Washington). So Paulo, UNESP, 2004.
25. A carta, de forma integral, foi publicada em Bolvar y su poca (Cartas y testimonios
de extranjeros notables), compilao de Manuel Prez Vila e prlogo de Vicente
Lecuna, Caracas, Publicaes da Secretaria Geral da Dcima Conferncia
Interamericana. Coleo Histria n 10, tomo I 1953, p. 53-55. Apud CHACON,
Vamireh. Abreu e Lima, General de Bolvar. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1983 p.
75.
26. Pelo Decreto Ministerial n 719, de 11-11-1998, o Ministro de Estado do Exrcito
outorgou 10 Companhia de Engenharia de Combate, com sede na cidade de So
Bento de Una, Pernambuco, a histrica denominao de General Abreu e Lima.
Igual nome foi dado Refnaria de petrleo, em Ipojuca, perto da cidade de Recife.
H fotos de Abreu e Lima no Instituto Histrico e Geogrfco Brasileiro.
27. PLANAS-SUARES, Simn. Notas Histricas y Diplomticas. El reconocimiento
de la Independencia Hispanoamericana y el Proyecto de Confederacion de la
Independencia de las Naciones, do Estadista Portugus Silvestre Pinheiro Ferreira.
Buenos Aires. Imprenta Lpez, 1961. Edio Refundida. O projeto do Tratado se
encontra nas pginas 180-185. citado como fonte original o Arquivo do Ministrio
dos Negcios Estrangeiros de Portugal. Registro de ofcios para a Legao de
Portugal em Filadlfa, p. 65, Livro 2. Silvestre Pinheiro Ferreira tambm autor
da importante obra Manual do cidado em um governo representativo, publicada,
em Paris, em 1834, em trs tomos, e em edio facsmile, em Braslia, pelo Senado
Federal, em 1999.
28. Idem. Ibidem.
29. Idem. Ibidem. p. 179.
30. Idem. Ibidem. p. 187.
31. Idem. Ibidem. p. 188.
32. PLANAS-SUARES, Simn. Op. cit. p. 202. O grande escritor colombiano Raimundo
Rivas afrma que Silvestre Pinheiro Ferreira fgura como um dos iniciadores da
Sociedade das Naes e dos mais perspicazes sustentadores de sua causa. Histria
Diplomtica da Colmbia (1810-1934). Bogot, D.E.: Imprensa Nacional, 1961, p. 89.
33. Encontra-se ela no canteiro central da Avenida Ballivian, entre as ruas 20 e 21, no
bairro de Calacoto, zona sul.
34. Arquivo Diplomtico da Independncia. Rio de Janeiro: Lit. Tip. Fluminense, 1922,
vol. V, p 239 e Arquivo Histrico do Itamaraty, 268-4-6 (Misses Diplomticas e
Consulares Diversas).
A expresso Sistema americano diferenciava os povos americanos do resto do
mundo. As palavras Hemisfrio Ocidental presentes na mensagem do Presidente
James Monroe de 2 de dezembro de 1823 ao Congresso dos Estados Unidos e em
outros documentos no , em sentido rigoroso, correta, porque os territrios do
Alasca Patagnia no constituem a metade do planisfrio.
35. Apud LOBO, Fernando. El Brasil, Bolvar y el panamericanismo. Caracas, p. 5.
Trata-se de um opsculo de 9 pginas, com palavras do Embaixador do Brasil,
Fernando Lobo, lidas pela Rdio Difusora Nacional da Venezuela, no dia 3 de
setembro de 1952. Formava parte de una srie de conversas na preparao da
Conferncia Internacional Americana que ocorreu, em Caracas, em 1954.
A 13 de outubro de 1822 Jos Bonifcio, ciente de notcias de organizao de foras
conjuntas de Portugal e Espanha para subjugar o Brasil com o possvel embora
improvvel apoio de Londres , insta Correa da Cmara a lograr uma federao
com o Governo de Buenos Aires para conjurar as ameaas europias (Arquivo
Diplomtico da Independncia V, p. 244-245).
36. LIMA, Nestor dos Santos. A Imagem do Brasil nas Cartas de Bolvar Rio de
Janeiro, Banco do Brasil, 1978, p. 11. (Prlogo de J. L. Salcedo-Bastardo).
O processo de independncia do Brasil e suas relaes com os pases vizinhos ___________Jos Carlos Brandi Aleixo 63
64 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
37. BOLVAR, Simn. Obras Completas. Caracas. Ministrio de Educao Nacional,
s.d. Vol. III, p. 820. Cabe recordar que anteriormente Dom Pedro I no dia 3 de
fevereiro de 1827 recebeu com manifesto agrado e complacncia em audincia
pblica e solene, a Dom Leandro Palcios, primeiro Enviado Extraordinrio e
Ministro Plenipotencirio da Gran Colmbia no Brasil.
38. Coleo das Leis do Imprio do Brasil de 1826. Parte primeira. Rio de Janeiro,
Tipografa Nacional, 1880, p. 6 e 7. Como vrios outros dos representantes nomeados
por seus governos, Biancardi no conseguiu fazer a viagem ao Panam. As notcias
tardavam semanas e at meses entre a costa do Pacfco e o Rio de Janeiro. Como
no havia linha de navegao direta entre o Brasil e o Panam a viagem era feita
pela Europa. Diz-se que Biancardi enfermou em Salvador, Bahia. A agenda do
congresso era de assuntos internacionais mas houve rumores de que se discutiria o
tema de formas de governo. Isto no era do agrado do Brasil monrquico.
interessante assinalar que dos vrios originais das dez Atas do congresso somente
se conservou um conjunto. O Brasil o adquiriu em maro de 1941, das mos do
Senhor Homero Vitteri La Fronte, que teve o mrito de guard-lo, diligentemente,
at ento. No dia 18 de novembro de 1941 o chanceler do Brasil, Osvaldo Aranha
acompanhado do Decano da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, Pedro
Calmon, durante sesso solene na Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais da Uni-
versidade do Chile, doou a ela cpias fotostticas das Atas da Primeira Conferncia
do Panam, de 1826, convocada por Simn Bolvar. (El Diario Ilustrado, Santiago,
19-11-1941 p. 11; ESCUDERO GUSMN, Julio Las Actas Extraviadas del
Congreso de Panam de 1826. Anales de la Facultad de Ciencias Jurdicas y
Sociales, Santiago, vol. X, n
os
37 ao 40, janeiro-dezembro de 1944, p. 67). Segundo
um compromisso assumido em 1976, pelo Presidente Ernesto Geisel, o Presidente
Fernando Henrique Cardoso, entregou, em depsito, tais Atas Presidente Mireya
Moscoso, no dia 18 de novembro de 2000, durante a X Cimeira Ibero-Americana
realizada no Panam. Elas podem ser vistas no Salo que se encontra no mesmo
edifcio do congresso de 1826. Sobre o tema ver: ALEIXO, Jos Carlos Brandi:
Brasil y el Congreso Anfctinico de Panam So Paulo, Parlatino, 2001.
39. MARTINEZ, Pedro Soares. Histria diplomtica de Portugal. Lisboa: Verbo, 1992,
p. 309-334.
40. Vrias das diferenas nos processos de independncia do Brasil e dos pases
Hispano-Americanos esto expostas e comentadas no trabalho de Leslie Bethel A
Independncia do Brasil, In: BETHEL, Leslie (Org.). Histria da Amrica Latina,
vol. III Da Independncia a 1870. So Paulo: EDUSP, 2001, p. 187-230, e
particularmente nas p. 194-196. Ver tambm: PIMENTA, Joo Paulo G. A
Independncia do Brasil. Um balano da produo historiogrfca recente. In:
Manuel Chust y Antonio Cerrano. Debates sobre las independencias iberoamericanas.
Madrid: AHILA-IBEROAMERICANA, 2007, p. 143-158.
A POESIA DE AIM CSAIRE
ngelo Oswaldo de Arajo Santos*
Uma expresso assombrosa da fria irrompe na obra potica de Aim
Csaire (1913-2008), e a indignao como fora motriz que sustenta
a estarrecedora vibrao de sua palavra. Admirado como uma das mais
altas vozes da poesia francesa, Csaire aparece como um poeta universal,
intrprete singular da condio humana, lanado no turbilho da tragdia
do fnito e do nada, entre o drama da opresso e a nsia da liberdade, a
grandeza e a iniquidade do homem em seu trnsito no orbe.
A clera, a revolta, o riso, a fulgurncia que emergem do magma
humano iluminado pela violncia do grito de Csaire, fagulha do fogo
sagrado do mundo, irrompem em festa na alma que se descobre tomada
por uma invaso redentora. Assim faz seu testemunho Annick Thbia-
Melsan, no intrito do livro em que ela reune depoimentos sobre o legado
do poeta falecido em 2008, na Martinica.
Annick Thbia-Melsan foi conselheira cultural da Embaixada da
Frana no Brasil, no primeiro mandato do presidente Franois Mitterrand,
tornando-se uma personalidade cara nossa cultura. Em Aim Csaire,
Le Legs (Argol ditions, Paris, abril de 2009, 475 pginas), ela articula
textos e depoimentos diversos sobre a herana de Csaire. Nous sommes
de ceux qui disent non lombre o verso de Tropiques No 1 inscrito
no prtico do livro, como emblema de todos os que acompanham a paixo
do poeta na vida e no verbo.
* Escritor e prefeito da cidade de Ouro Preto.
66 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
No Ano da Frana no Brasil, que sucede ao da morte de Csaire,
torna-se imperioso evoca-lo como uma das contribuies mais signifcativas
da lngua francesa histria da humanidade, de modo a tentar faze-lo
conhecido do pblico brasileiro. Distante do imenso, enorme criador de
poesia insulado no Caribe, na sua amada Martinica je suis ngre et je
resterai un Martiniquais , o Brasil poderia acolhe-lo, com o seu famoso
dirio de um retorno ao pas natal, na condio de algum que se ergue
das nossas prprias entranhas e est exilado nesta ptria repartida.
Csaire sempre recusou os apelos para que entrasse na Academia
Francesa, no se vendo feliz entre les petits hommes verts do Instituto. Ia-
se a Fort-de-France, em peregrinao cvica e cultural, ter casa do poeta,
que foi prefeito local e tambm deputado em Paris. Certa vez, estando
Annick Thbia-Melsan em minha casa, em Ouro Preto, telefonamos para
a Martinica. Bonjour, papa Aim!. E o poeta veio conversar, afetuoso, a
saudar a amiga querida como flha e o colega maire da cidade libertria
do Aleijadinho, de Chico Rei e do Tiradentes. Ouvir a sua voz cordial era,
paradoxalmente, entreouvir os vulces e as tormentas do Caribe e o eco
ancestral de todas as postulaes de fraternidade e da busca incessante do
novo.
O poeta Francis Ponge (1899-1988), nascido em Montpellier,
perseguiu a fria da expresso, donde o livro La rage de lexpression
(1952), para jamais sacrifcar o objeto de sua ateno diante de qualquer
achado verbal ou de um arranjo em poema de muitos de tais achados.
Sua determinao obsessiva no sentido de um passo novo na conquista
da essncia das coisas, pouco se importando que se queira ou no dar o
nome de poema ao resultado. uma fria que encantava o pacifsta Murilo
Mendes, debruado sobre os textos em que Ponge esgrima com a palavra
e as coisas.
Em Aim Csaire, a poesia toda fria. Essa fria ontolgica
e orgnica, imemorial e presente, tica e esttica. um combate e uma
procura. Agita-se no aoite da palavra cortante, que vem atravessar cada
sentimento, cada pensamento, para arrancar do ser humano a sua plena
capacidade de reagir. A virulncia da linguagem desarma a violncia da
vida, e a poesia se faz celebrao do labirinto. Contra o dio. Ao pedir ao
seu corao para preserva-lo de todo dio, no cerne da questo essencial
do ns, ele diz, no Caderno de um retorno ao pas natal:
Ne faites point de moi cet homme de haine pour qui je nai que
haine
Car pour me cantonner en cette unique race
Vous savez pourtant mon amour tyrannique
Vous savez que ce nest point par haine des autres races
Que je mexige bcheur de cette unique race
Que ce que je veux
Cest pour la faim universelle
Pour la soif universelle
La sommer libre enfn
De produire de son intimit close
La succulence des fruits.
A razo da palavra o enfrentamento do que vil e torpe na
desumanidade do mundo. O pote laminaire avana contra a moral
hipcrita das convenes e dos costumes para transformar o poema em
arma poderosa dos oprimidos e de uma humanidade aberta a todas as
fraternidades. Se a poesia de Joo Cabral de Melo Neto faca que corta a
sintaxe e com seu gume afado estende o poema que nem carne de sol, o
verso de Csaire lmina que sangra o totem erguido contra a noite do
tempo.
Andr Breton o descobriu, alumbrado, durante a guerra e a
ocupao, ao passar de navio pela Martinica, em 1941, e o admirava, de
modo especial. Prefaciou-lhe o primeiro livro, em 1944, e o atraiu para
o movimento surrealista, no qual a poesia inquietante e perturbadora de
Csaire encontraria fortes sugestes e ressonncias. Como em Chanson
de lhippocampe:
A poesia de Aim Csaire ______________________________________________ ngelo Oswaldo de Arajo Santos 67
68 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
petit cheval hors du temps enfui
bravant le ls du vent et la vague et le sable turbulent
petit cheval
dos cambr que salptre le vent
(...)
petit cheval sans nageoire
sans mmoire
dbris de fn de course et sdition de continents
fer petit cheval damours supputes
mal arraches au siffement des mares
un jour rtif
nous tenfourcherons
et tu galoperas petit cheval
sans peur
vrai dans le vent le sel et le varech
Criador do termo negritude, ao lado do senegals Lopold Senghor
e de Lon Gontran Damas, da Guiana, foi mais longe e mais fundo na
denncia da condio do negro, do preconceito e da discriminao aferrados
nos interstcios do assoalho da civilizao e da carpintaria da cultura.
Abrindo as janelas e escancarando as portas desse edifcio arruinado e
soturno, Csaire escande palavras-fagulha que ardem na terra inteira. E
mira o ser humano, a espcie, ao escrever, no Cahier dun retour...:
Je ne suis daucune nacionalit prvue par les
Chancelleries
Je dfe le crniomtre. Homo sum, etc.
Annick Thebia Melsan est entre os amigos prximos de Csaire e
conhece, como poucos, a sua obra. Desempenha, hoje, papel de especial
importncia na preservao desse legado, por meio de publicaes,
conferncias e flmes documentrios. Ocorre-me, por isso, lembrar aos
organismos de cultura do governo francs a necessidade de sua presena
no Brasil em evento que possa focalizar Aim Csaire por inteiro. Annick
Thebia Melsan h de apresent-lo aos nossos leitores e estudiosos, atravs
de recortes que destaquem as afnidades que dele faro, por certo, uma voz
muito cara sensibilidade dos brasileiros.
O senador Cristovam Buarque marca a presena do Brasil no livro
publicado em Paris. Tendo alcanado a obra de Csaire h pouco, o ex-
governador de Braslia lamenta que no a conheamos na amplitude de sua
monumentalidade. Recorda palavras do poeta ditas h mais de meio sculo,
para enfatizar a sua fora atual: uma civilizao que se mostra incapaz de
resolver os problemas suscitados por seu funcionamento uma civilizao
decadente; a civilizao global est moribunda.
Baluarte da luta contra o colonialismo e o preconceito racial, Aim
Csaire tinha em seus poemas as peas de uma artilharia certeira. Sua
morte provocou manifestaes intensas no mundo inteiro, mas, ainda
assim, o Brasil no registrou maiores referncias sobre a personalidade
e a obra extraordinariamente reverenciadas nos pases francfonos. Seria
uma lacuna no quadro das iniciativas de promoo da cultura francesa a
falta desse ttulo. preciso descobrir Aim Csaire, seu verso contundente
e sua fria, seu humanismo e sua singularidade. E a altura a que elevou a
lngua francesa na construo da poesia.
A poesia de Aim Csaire ______________________________________________ ngelo Oswaldo de Arajo Santos 69
ASPECTOS DA POESIA DE
ALPHONSUS DE
GUIMARAENS FILHO
*
Ivan Junqueira**
ltimo flho do grande poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens
a quem no chegou a conhecer , Alphonsus de Guimaraens Filho viu
a luz do mundo no dia 3 de junho de 1918 e nos deixou em 28 de agosto
de 2008, aos 90 anos de idade. Nascido em Mariana, Minas Gerais, onde
o pai foi juiz e viveu seus ltimos quinze anos, Alphonsus Filho diplomou-
se em Direito e exerceu durante algum tempo o jornalismo, ingressando
em seguida, como tantos de ns o fzeram naquela poca, no funcionalismo
pblico. Membro da Academia Mineira de Letras, da Academia
Marianense de Letras e do Pen Clube do Brasil, radicou-se depois no Rio
de Janeiro e conquistou os prmios Olavo Bilac, da Academia Brasileira
de Letras, de Literatura, da Fundao Graa Aranha, Jabuti, da Cmara
Brasileira do Livro, Lusa Cludio de Souza, do Pen Clube, Manuel
Bandeira, do Jornal de Letras, Prmio de Poesia da Cidade de Belo
Horizonte e Prmio Nacional de Poesia, do Instituto Nacional do Livro.
Sua vida civil, passada quase toda em surdina, muito pouco nos interessa,
j que ele prprio nenhuma importncia atribua aos ouropis mundanos.
E foi assim que o conheci, silencioso e recluso, na condio de seu
transitrio vizinho no bairro do Cosme Velho, onde ambos residamos e
onde, alm de escrever os poemas de meu livro A Rainha Arcaica, que
seria logo aps publicado, eu me ocupava da traduo da poesia completa
*
Palestra pronunciada na Academia Mineira de Letras no dia 15.5.2009, em homenagem a
Alphonsus de Guimaraens Filho.
**
Jornalista, crtico literrio, ocupa a cadeira n 37 da Academia Brasileira de Letras. Reside no
Rio de Janeiro.
74 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
de T. S. Eliot. Enfm, o que aqui me interessa a poesia de Alphonsus
Filho, a alta poesia que nos legou e que foi saudada, entre outros, por
Mrio de Andrade, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
Muito embora essa poesia no guarde relaes particularmente
estreitas com o Movimento Modernista de 1922, o fato que, publicada
pela primeira vez em 1940, ela pertence ao fm daquela dcada de 1930
na qual estreiam os autores que costumo designar como os herdeiros do
Modernismo, entre os quais Carlos Drummond de Andrade, Murilo
Mendes, Henriqueta Lisboa, Emlio Moura, Raul Bopp, Vinicius de
Moraes, Odylo Costa, flho e Manoel de Barros. No resta dvida de que
o primeiro livro de Alphonsus Filho, Lume de estrelas, quer por sua
temtica, quer por sua concepo esttica, est mais prximo do iderio
da Gerao de 45, que preconizava um retorno s formas e aos impulsos
lricos to combatidos pelos modernistas, do que da distenso da
linguagem e do ritmo praticada pelos poetas dos anos 30. Mas a verdade
que a poesia que se escreveu nessas duas dcadas como um mosaico
em que se entrelaam essas e outras vertentes de nossa lrica contempornea,
e os poemas de Alphonsus Filho, que paradoxalmente no podem nelas
ser includos, pagam-lhes certo tributo, sobretudo do ponto de vista da
liberdade de expresso, no fora ele o poeta moderno que . Moderno no
sentido em que o foi Manuel Bandeira, ou seja, para alm do que h de
datado no Modernismo.
Os poetas dessa poca, mais precisamente a da dcada de 1940, se
defrontaram com um grave problema que poderia ser defnido nos termos
de uma terra desolada no que toca ao esgotamento das matrizes literrias.
A tarefa desses poetas era, assim, muito mais rdua do que aquela que
cumpriram seus antecessores. E aqui recordo, guardadas as devidas
propores, a situao em que se encontrava Baudelaire com relao aos
seus antecessores e que assim foi defnida por Valry em clebre ensaio
sobre o autor de Les Fleurs du Mal: O problema de Baudelaire podia
ento devia ento colocar-se da seguinte maneira: ser um grande
poeta, mas no ser nem Lamartine, nem Hugo, nem Musset. Mutatis
mutandis: no ser, para esses poetas da dcada de 1940, nem Drummond,
nem Vinicius, nem Murilo. E talvez seja em razo desse impasse que se
cristaliza a Gerao de 45, na qual Alphonsus Filho costuma escolas-
ticamente ser includo. O desafo desses poetas era, portanto, o de buscar
uma identidade pessoal que lhes permitisse afastar-se da rea de infuncia
daqueles grandes autores dos anos 30, os quais, bom que se lembre, j
encontraram o terreno limpo do hieratismo parnasiano e da evanescente
msica simbolista, que nada tinha a ver com aquela music of poetry de
que nos fala T. S. Eliot.
Claro est que Alphonsus Filho deve algo Gerao de 45, cujos
pressupostos estticos nos remetem necessidade de retorno aos cnones
de um certo e mitigado classicismo, de resgate das formas fxas e das
medidas mtrico-rmicas contra as quais se insurgiu o Modernismo, e at
mesmo de recuperao de um comportamento psicolgico que seria antes
apolneo do que dionisaco. Deve a ela, tambm, certas preocupaes que
se tornaram caractersticas do iderio esttico e doutrinrio daquele grupo,
como a ostensiva e sistemtica reao contra o desleixo formal que
dominou a primeira fase modernista, a busca do equilbrio e a refexo
sobre o humano e o universal, em troca daquela obsesso nacionalista de
que se nutriram os poetas da dcada de 1920. E restaria ainda ponderar,
no que concerne ao emprego de metros tradicionais de que se valeu
Alphonsus Filho, bem como outros autores daquela poca, que h em
todos os grandes poetas um elemento vestigial daquilo que se pode defnir
como a idia parnasiana, apesar do que supem os espritos simplistas
de limitaes escolares. E h ainda, no caso de Alphonsus Filho, uma
herana inextinguvel da vertente simbolista, essa vertente de que seu pai,
do lado de Cruz e Sousa, foi o maior representante entre ns.
Para entender melhor a poesia do autor tome-se o exemplo dos
modelares sonetos que nos deixou e que foram reunidos em 1996 no
volume Todos os sonetos de Alphonsus de Guimaraens Filho. Nele, o
poeta nos ensina, pelo menos, duas graves e belas lies: uma, a de que
o soneto, cujas obscuras origens remontam produo potica dos
trovadores provenais ou, mais historicamente, forma que o siciliano
Piero delle Vigne comeou a cultivar em meados do sculo XIII e que,
pouco depois, foi aperfeioada por Guittone dArezzo, o nico pai do
soneto tal como hoje o conhecemos , sobrevive e sobreviver a
Aspectos da poesia de Alphonsus de Guimaraens Filho _______________________________________ Ivan Junqueira 75
76 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
quaisquer revolues doutrinrias ou eventuais mudanas no gosto
esttico; outra, a de que o autor do volume em pauta deve ser includo,
sem favor nenhum, ao lado daqueles que com maior mestria o praticaram
entre ns, como Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira,
Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Olavo Bilac, Raimundo
Correia, Odylo Costa, flho, Dante Milano, Carlos Pena Filho ou
Alphonsus de Guimaraens, pai do poeta. E pasmem os senhores: a
coletnea rene nada menos que 296 sonetos, e em nenhum momento se
pode dizer que haja desnvel entre eles. Pode-se, isto sim, preferir este ou
aquele, mas seria apenas uma idiossincrasia e irrelevante questo de gosto
pessoal, pois a percia a mesma em cada um deles e, mais do que esta,
a mesma a autntica e funda emoo que os inerva a todos. No foi
toa, portanto, que assim o entenderam, antes de ns, poetas e ensastas da
estirpe de Manuel Bandeira, Mrio de Andrade, Srgio Milliet, Drummond,
Lcia Miguel Pereira e Jos Guilherme Merquior, entre tantos outros.
Herdeiro do lirismo intimista e da refexo religiosa de que se
nutriram muitos de nossos simbolistas, os sonetos de Alphonsus Filho,
que se distinguem da produo daquela escola pela intrnseca modernidade
de seu espectro temtico, so como que organismos vivos, e penso que
cabe aqui esta observao algo tautolgica, porque, em sua grande
maioria, os poetas que entre ns se afeioaram ao soneto nada mais
fzeram do que cultiv-lo in vitro, tornando assim caduca uma forma que,
em sua dinmica e coesa estrutura, simplesmente no tem idade, como
no a tm, de resto, a balada, a ode, o hino, a cano ou qualquer outro
gnero de composio potica. No a forma em si que envelhece, e sim
quem a cultiva. E se no raro a envelhecem, tambm a envilecem, como
aconteceu com muitos dos integrantes da Gerao de 45. Segundo cremos,
a propsito, sua sensibilidade potica transita do Simbolismo ao
Modernismo, mas no passa ortodoxamente, como aqui j sublinhamos,
pelo formalismo de 45. Seus esplndidos e densos sonetos so menos frma
do que forma, e nesta o que encontramos jamais se dissocia de um contedo
que lateja a cada passo, ou seja, de uma emoo que lhe d vida e,
consequentemente, permanncia. E s um poeta de sua tcnica seria capaz
desse milagre, que , de resto, o milagre de toda grande e duradoura arte.
Temos nesses sonetos uma difusa multiplicidade de temas e
problemas: os do amor, da morte, da fugacidade do tempo, do sentido
profundo da f, da caducidade e da contingncia das coisas, do desespero
humano, da ausncia nostlgica de um mundo que se perdeu ou, como
diria Leopardi num poema que dedicou a si mesmo, da infnita vanit
del tutto. Temos neles, ainda, no apenas o zelo pelas mais caras tradies
da lngua, mas tambm o pleno e fundo conhecimento da forma que
elegeu o poeta: Alphonsus Filho esgrima aqui todas as vertentes dessa
difcil, contida e traioeira arte, desde o soneto que se cristalizou durante
a vigncia do dolce stil nuovo, com Dante, Petrarca e Cames, quele que
Surrey e Wyatt modifcaram para criar o link-sonnet, depois cultivado por
Shakespeare, com trs quartetos e um dstico rimado. O que mais
surpreende neste espantoso rcueil de quase trezentos sonetos a
espontaneidade e a graa com que foram escritos, como se o autor nos
desse a impresso de que est livre justamente por estar cativo. O
exemplrio , por assim dizer, cornucpio, e fca difcil, ou quase
impossvel, recorrer a uma nica amostra para que o leitor nos d crdito.
Enfm, que baste o magistral soneto que Alphonsus dedica a Dante
Milano:
A nvoa como uma montanha andando...
Plida como uma mulher da lua...
J a vida se esgara e em luz futua,
desce a noite irreal, vo desmaiando
as invisveis fores, e cantando
o claro sonho, o sonho que a presena
mais casta, em cujas mos repousa a imensa
noite, pelas estrelas resvalando...
E a cousa branca mais se esquiva, ansiosa
de paz e ausncia, doce e luminosa,
para que nela a cabea ainda deponha
Aspectos da poesia de Alphonsus de Guimaraens Filho _______________________________________ Ivan Junqueira 77
78 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
o poeta que o sonho transfgura,
que o sonho envolve, e na luz cega e pura
irreal se torna, e existe porque sonha.
Mas nem s de sonetos sobrevive a poesia de Alphonsus de
Guimaraens Filho, bastando para tanto percorrer a sua imensa obra,
reunida afnal em 2003 sob o ttulo de S a noite que amanhece, onde
esto coligidos as 23 coletneas poticas que publicou, excetuando-se
apenas a ltima, 33 poemas, organizada por seu flho, Afonso Henrique
Neto, tambm poeta, em 2007. J por ocasio de sua estria com Lume de
estrelas, em 1940, observa Manuel Bandeira: Este Lume de estrelas
atesta um grande poeta, no refexo da poesia paterna mas estrela de luz
prpria, que nos revela um poeta forte, chegado ao inteiro domnio do
seu instrumento. E a este se seguiram os juzos consagradores de Carlos
Drummond de Andrade, Alceu Amoroso Lima, Augusto Frederico
Schmidt, lvaro Moreyra, Danilo Gomes, Wilson Martins, Guilhermino
Csar, Jos Guilherme Merquior, Oscar Mendes, Massaud Moyss,
Alfredo Bosi, Gilberto Mendona Teles, Lcia Miguel Pereira, Srgio
Milliet, Fausto Cunha, Vivaldi Moreira. Enfm, a lista seria infndvel, o
que atesta de forma cabal a importncia e a permanncia desse poeta
admirvel, tanto mais admirvel porque jamais pretendeu s-lo, fel sua
maneira de ser, sempre recluso e mineirissimamente silencioso, alheio s
glrias mundanas.
curioso assinalar, no caso de um poeta que se encaminhou
gradualmente para medidas mtricas cada vez mais breves e concisas, a
polimetria dos poemas que compem Lume de estrelas e vrios outros de
seus livros. Isso talvez se explique, como j observamos, pelo fato de que
Alphonsus Filho se situa numa fase de transio entre a distenso da
linguagem dos poetas da dcada de 1930 e o formalismo da Gerao de
45, cujos representantes, como ironicamente j se observou, possuam
nomes longussimos e escreviam poemas curtssimos. A exceo seria
Ldo Ivo, um nome com apenas sete letras, cujos primeiros poemas, pelo
menos at Acontecimento do soneto, publicado em 1946, eram por assim
dizer fuviais. E fuvial voltaria a ser ainda nas odes que escreveu. No
caso de Alphonsus Filho inegvel, j nesses poemas iniciais, a sua
herana simbolista. Leiam-se, por exemplo, os versos da primeira estrofe
do poema Jamais, que abre Lume de estrelas:
Jamais me ajoelharei com tanta f nos adros,
com tanta paz no corao que um pssaro fugitivo em uma
estrada sombria,
com tanta luz nos olhos que so como lumes acesos aos ps
de Deus.
Ai! deixai-me fcar assim, unido ao p, como uma sombra
apenas,
unido ao p agitado pelo vento como as lgrimas da chuva,
unido ao p como a bruma por sobre as lpides dos
cemitrios.
como se o poema tivesse sido escrito na enevoada Mariana, onde
por tantos anos viveu seu pai. Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus! E
nele so evidentes as fundas razes simbolistas de Alphonsus Filho. Mas
bom no confundir, pois so muito distintos a dico e o ritmo potico
de ambos. E aqui me amparo numa passagem do artigo que Manuel
Bandeira publicou no Jornal do Brasil em 14 de setembro de 1960:
Nunca me apliquei a um cotejo entre a obra do pai e a do flho, mas
tenho a impresso que a autonomia do flho em relao ao pai absoluta.
O fato tanto mais notvel quanto, apesar das infuncias modernas,
Alphonsus Filho se afrmou sempre com um fundo simbolista irredutvel.
Pode-se dizer que ele e Onestaldo de Penafort so os dois grandes poetas
de hoje em que persiste intata a sensibilidade simbolista.
Essa impresso de Bandeira haveria de confrmar-se com relao
aos poemas que Alphonsus Filho escreveu ao longo de toda a sua longa
vida. E aqui caberia um breve esclarecimento sobre aquilo que considero
a absoluta modernidade do simbolismo. Na verdade, toda manifestao
artstica pressupe o concurso das formas simblicas. Quando uma
determinada obra no consegue suplantar o nvel da alegoria, torna-se
inferior. A alegoria dirige-se apenas ao raciocnio do leitor, sem sugerir
Aspectos da poesia de Alphonsus de Guimaraens Filho _______________________________________ Ivan Junqueira 79
80 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
nenhuma emoo, essa emoo simblica que o pensador italiano
Benedetto Croce chama o lirismo da obra, e a forma desse lirismo o
smbolo, que fala no somente ao nosso intelecto, mas antes a toda a
nossa personalidade. Enquanto a alegoria estabelece uma relao exata
entre um determinado sistema de ideias e um sistema de imagens, no
ocorrendo assim a possibilidade seno de um nico sentido, o smbolo,
ao contrrio, no corresponde exatamente idia abstrata que exprime, o
que permite, por isso mesmo, mltiplas interpretaes. A alegoria no
passa de uma traduo potica de pensamentos racionais, como ocorre
nos casos das obras escritas durante a baixa Idade Mdia e as primeiras
dcadas da Renascena, enquanto as obras de arte simblicas so frteis
em signifcao, envolvendo sempre maiores desafos para a crtica. de
lamentar assim que, no Brasil, ao contrrio do que ocorreu em outras
literaturas, o movimento simbolista tenha eclodido antes do Parnasianismo,
que levou ao esquecimento momentneo poetas como Cruz e Sousa,
Alphonsus de Guimaraens e esse hoje pouqussimo lembrado Severiano
Resende. A poesia de Alphonsus Filho justamente resgata, em meados do
sculo XX, essa grande tradio que se perdeu.
H muitos outros aspectos, todavia, que devem ser assinalados na
obra potica de Alphonsus Filho. J falamos aqui de seu lirismo intimista
e de sua inequvoca adeso s formas simblicas da linguagem. Mas h
ainda a vertente do misticismo, to bem lembrada por Carlos Drummond
de Andrade em sua crnica Entre Deus e o silncio, includa em
Passeios na ilha. Diz ele: Dir-se-ia que a incurso inevitvel pelos
domnios do amor humano o ter preparado para avaliar e esgotar as
riquezas do amor divino. Acrescenta Drummond que a observao
carece de valor, pois as tendncias msticas neste poeta so realmente
inatas, e seria frvolo dizer que apenas as recebeu, em herana espiritual,
de seu glorioso pai. que tais bens, conclui Drummond, no se
transmitem necessariamente, e admirvel que o flho de nosso grande
poeta seja por sua vez poeta, e muito mais ainda que se afnem os
temperamentos na preferncia pela mesma ordem de temas e sugestes,
entre os quais se podem incluir os da morte, da noite, do sonho e do
mistrio da existncia.
essa inquietao metafsica que o leva a identifcar-se com o
cristianismo e a fxar sua poesia no ambiente que melhor a desenvolveria,
como se v em muitos dos poemas do livro O irmo, publicado em 1950,
nos quais a poesia de Alphonsus Filho, cujos laivos de sombra no fazem
seno realar a luminosidade em que se move, tangencia a manifestao
de um estado permanente da alma em xtase diante de seu criador. Lembra
ainda Drummond, com base em famoso estudo de Rolland de Renville,
que os msticos e os poetas, embora diferindo em suas rotas sob tantos
pontos, acabam por alcanar, em fase fnal da experincia, um modo
comum de conhecimento, que a conscincia tenebrosa, uma espcie de
luz sem sol, tal como o vemos em Novalis, Santa Teresa de vila e
San Juan de la Cruz, que nos fala de uma noche oscura del espritu. E
Alphonsus Filho alcana essa realidade tenebrosa, o que vale dizer: o
sentimento mstico da vida elevou-se maior altura potica. E isto o
que se pode perceber nestas quatro pequenas estrofes do poema Esprito
e vida:
Senhor, na minha fraqueza.
no sei Te ver... Entretanto
como o po de Tua mesa.
No sei Te ver quando estou
preso ao mundo, e tenho o espanto,
e tenho as trevas do mundo.
Bebi Teu sangue e desejo
mais luz... Se me deste a vida,
se me deste a claridade,
a claridade surpresa,
encharcada de pureza,
quero mais luz e mais vida
como quem busca no mundo
mais infncia e mais infncia.
Aspectos da poesia de Alphonsus de Guimaraens Filho _______________________________________ Ivan Junqueira 81
82 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Constituda de mais de 20 coletneas, a obra potica de Alphonsus
Filho numerosa e diversifcada, mas conserva, desde a estria do autor,
aos 22 anos de idade, uma espantosa coeso temtica, formal e estilstica,
o que em parte se explica pelo fato de que ele j revela, apesar de muito
jovem, uma desconcertante maturidade potica, tanto assim que Lume de
estrelas obteve, quando de seu lanamento em 1940, a unanimidade da
crtica e dos grandes poetas da poca. E mais: para quem, como Alphonsus
Filho, produziu copiosamente ao longo de quase setenta anos de atividade
como poeta custa crer tenha ele mantido, durante todo esse tempo, to
alto nvel de realizao esttica, um nvel, alis, que nos d a impresso
de no ter sido jamais necessariamente buscado, assemelhando-se antes a
algo que lhe foi doado como autntica bno, no importa aqui se por
Deus ou por qualquer outra misteriosa entidade. Isso nos remete
sensao que nos assaltou quando lemos pela primeira vez, l pelos anos
60, a poesia de Alphonsus Filho. E essa sensao era a de que estvamos
diante de uma condio rarssima em qualquer literatura: a do poeta puro,
a do poeta assoluto, como a pretendia para si o gals Dylan Thomas.
Tamanha a sua comunho com os temas que desenvolve que
parece nunca haver fendas entre estes e a personalidade do autor, como
se tudo se reduzisse a um tecido inconstil, sem emendas ou costuras.
Da, talvez, a simplicidade e a doura com que nos fala, sempre alheio a
qualquer enfeite ou artifcio, recurso que encontramos amide nos poetas
de hoje. Sua poesia como um prolongamento natural de sua alma, e
nisso que reside o mistrio de sua funda religiosidade. Seu verso no
revela nenhum vestgio de circunstncia: pura e estrita essncia. Sob
esse aspecto, somente Manuel Bandeira, Dante Milano e Odylo Costa,
flho se lhe podem comparar. No h em Alphonsus Filho aquele af
construtivista que observamos em Joo Cabral de Melo Neto ou Ferreira
Gullar, dois altssimos poetas que lhe so, alis, contemporneos de
gerao. claro que nele h sempre busca, h trabalho, h transpirao,
h s vezes at desespero diante da palavra ou da forma que se procura e
no se encontra. E h, acima de tudo, o instinto criador. Por isso, sua
poesia fui com tanta espontaneidade, fel s exigncias de um ritmo sutil
e afnado que todo grande poeta traz consigo desde o bero.
Mas vejo agora, ao fm desta conferncia, que cometi um imperdovel
equvoco: falei demais sobre o poeta e quase no deixei que ele prprio
falasse. Vamos tentar reparar esse erro. Entre as muitas formas poticas
cultivadas por Alphonsus Filho, avulta, sem dvida, a do soneto, como
aqui, alis, j comentamos. Mas algo talvez tenha fcado por dizer.
Disse-o, exemplarmente, Jos Guilherme Merquior quando, no ensaio
Arte maior do soneto, includo no livro O elixir do Apocalipse, observa,
confrmando um pouco o que eu mesmo sublinhei no pargrafo anterior,
que Alphonsus Filho oculta os andaimes da tcnica numa acentuada
singeleza de expresso, e numa economia vocabular que lembra a lio
de Bandeira. Alis, Alphonsus , como esse outro fno sonetista que foi
Odylo Costa, flho, um poeta que foge ao enfeitismo pirotcnico da
maioria das vozes de sua gerao, e que, sob a infuncia do despojamento
bandeiriano, ir tambm evitar at mesmo alguns traos do lirismo de seu
pai, o grande simbolista de Mariana. Sbias palavras. Mas que a ltima
palavra fque, no comigo ou Merquior, e sim com o poeta que nos ensina
o que signifca essa arte maior do soneto. Ouamo-lo:
Nem sei se blasfemei. Se blasfemei,
Deus passe um pano sobre tanto sujo.
Sinto-me exausto numa torre cujo
vrtice tento atingir e no verei.
Nem sei se blasfemei. Apenas sei
que muita vez suponho que em vo rujo,
que me rebelo eu, um caramujo
que nem a prpria casa salvarei.
Nem sei, nem sei se blasfemei. Apenas,
olhando agora para trs, concluo
que eu devia cantar ou ter cantado
no os meus males s, no minhas penas,
mas a Beleza em que j me diluo,
em que me integro, Deus seja louvado.
Aspectos da poesia de Alphonsus de Guimaraens Filho _______________________________________ Ivan Junqueira 83
A ACADEMIA E
ALPHONSUS DE GUIMARAENS
Carmen Schneider Guimares*
Plato foi considerado por toda a Antiguidade no s o mais
celebrado flsofo, mas tambm um grande poeta e um maravilhoso
artista. Amigo e aluno de Scrates, e aps a sentida morte do mestre,
retirou-se para Mgara. Depois de suas andanas pelo mundo Egito,
Cirene, Fencia, Prsia, Grande Grcia (Itlia do sul), principalmente,
regressou a Atenas, onde ensinou flosofa. Suas aulas realizavam-se em
uma propriedade que pertenceu a um senhor chamado Academo, de onde
se retirou o termo Academia para sua escola. Plato foi discpulo de
Scrates. Com ele surgiu a doutrina flosfca, o primeiro sistema completo
de flosofa espiritualista produzido pelo pensamento humano, a qual
expunha um conjunto das idias derivadas das teorias: qualidade, carter
ou condio do que platnico. Plato teria ido a Siracusa ensinar ao rei
Dionsio II a flosofa apropriada ao exerccio do poder. Mas depois de
srios acontecimentos e aps a morte do monarca, assassinado, o flsofo,
na feira de Egina, chegou a ser vendido como escravo a um antigo aluno
seu, que o fez retornar chcara em Atenas.
*
Palestra proferida na Universidade Livre da AML, no dia 19.3.2009, homenagem da AFEMIL
ao centenrio da AML.
**
Escritora, Presidente Emrita da Academia Feminina Mineira de Letras.
A Academia e Alphonsus de Guimaraens _____________________________________ Carmen Scheneider Guimares 85
86 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
salutar o hbito da leitura que revela a Histria da Civilizao
dos povos, principalmente a que se refere biografa dos grandes
pensadores da humanidade. Chega-se aos atos presentes pelos fatos
acontecidos no passado.
A Academia Mineira de Letras, alm da seriedade com que trata
outras matrias ligadas Cultura, criou, pelo saudoso presidente Vivaldi
Moreira, a Universidade Livre, a qual os antigos costumes do magistrio
dinamizam e completam. Aqui se praticam os mais variados exerccios
de docncia com liberdade. Assuntos diversos so tratados por persona-
lidades de destaque em suas reas de atuao. Perpetua-se, desse modo, a
primeira ideia de Academia.
Em maio de 1957, na presidncia de Mrio Matos, j se instalara na
Academia Mineira o Curso de Literatura Brasileira, apresentando
matrcula de mais de 400 alunos. A imprensa noticiou o fato com grande
entusiasmo. Este ano, acaba de ser criado curso de atualizao gramatical,
dentro do novo acordo ortogrfco.
Juiz de Fora, 25 de dezembro de 1909.
Na Cmara Municipal, s 19 horas, na sala de sesses, expe-se
luz e ao porvir a Academia Mineira de Letras. A gnese daquele ato
acorda a cidade, brada circunvizinhana, alerta todo o Estado.
Na antessala, desde a vspera, depois da reunio convocada por
Machado Sobrinho, o primeiro secretrio geral, para marcar-se a data da
sesso solene de fundao da Academia, forte emoo apossara-se
daqueles homens fundadores ilustres, discpulos da palavra e das ideias.
Ali, os notveis de Minas assentavam-se nas ctedras primeiras da
imortalidade, representando o nctar da inteligncia das Alterosas, a
nobreza intelectual de Minas Gerais.
A cultura de um povo registrava-se solenemente para a posteridade.
Onde a palavra estaria guardada com maior desvelo? Onde to bem as
ideias seriam cultivadas para embasamento das geraes futuras?
Como se aqui vivssemos um lance de realismo fantstico, na magia
de uma fabulao, penetramos no recinto da Cmara Municipal de Juiz
de Fora, que se tornava, naquele momento, o maior centro cultural do
estado. Em que momento preciso o presidente Eduardo de Meneses sentiu
embargada a voz? Heitor Guimares, bibliotecrio, mal se comportando
em si de tanto entusiasmo e euforia, tenta acalmar Belmiro Braga,
tesoureiro, que por sua vez, traz as mos trmulas. O secretrio auxiliar,
Brant Horta, com o peito arfante, procura manter a tranquilidade, ao ler
os nomes dos colegas fundadores e demais membros da diretoria:
Dilermando Cruz, Estvam de Oliveira e Luiz de Oliveira, da Comisso
de Contas; Amanajs de Araujo, Belmiro Braga e Jos Rangel, muito
eufricos na Comisso de Recepo; e ainda, Albino Esteves e Lindolfo
Gomes; Machado Sobrinho, secretrio geral, todos perflados imortais.
bom que se criem Academias. A memria de um povo no so
apenas os fatos administrativos de um governo, as escrituras das valiosas
conquistas, o patrimnio fsico, nem ainda as proezas polticas de seus
dirigentes, embora de merecidas glrias. A maior honradez na histria
dos cidados diz respeito criao e preservao das obras culturais de
seus homens, dom maior sobre as demais estabelecidas. Agigantam-se as
artes. A potica e a literatura de expresso moldam a alma do homem que
se declara pela palavra do escritor e pelo canto do poeta. Desde a
instalao da Academia Mineira de Letras, a 13 de maio de 1910, na
mesma cidade de Juiz de Fora, Minas atingiu a maioridade intelectual
que a distingue e enobrece
A cultura de Minas brota do cho de minrio, desse corao de
ouro de suas entranhas, na lembrana do poeta. Mas, especialmente,
cabeas pontuam luminosas por toda parte; fulguraes de ideias
transferem-se para o papel. A lrica e a prosa dos privilegiados aforam
materializadas literariamente. E mais homens e mulheres notveis
despontam para assentar-se nas quarenta cadeiras do sodalcio mineiro de
cultura.
bom que se fundem Academias. As palavras de ontem e as de
hoje estaro resguardadas para o futuro. A Academia Mineira de Letras
atesta a boa valia de suas obras, homenageada no centenrio de sua
fundao.
Os primeiros acadmicos e fundadores da Entidade no apresentaram
nenhum tipo de entrave quando se cogitou da transferncia da Academia
para a capital do Estado, que se deu a 24 de janeiro de 1915. O primeiro
A Academia e Alphonsus de Guimaraens ______________________________________Carmen Schneider Guimares 87
88 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Presidente, em Belo Horizonte, foi lvaro da Silveira, que presidiu a
academia at 1920. E nada se fez sem muita luta e esforo. No dispondo
de sede prpria, as reunies da Instituio marcavam-se em endereos
diversos, como nos edifcios do Conselho Deliberativo, no Instituto de
Educao, alm de serem utilizadas residncias particulares e plateia de
teatros. Preciosas fontes de informaes e provas materiais quanto s
difculdades vividas pela Casa esto contidas no livro de atas da Academia
at o ano de 1927, exibido pelo Presidente Martins de Oliveira aos
acadmicos. Havia ainda a ausncia de recursos fnanceiros que impediam
a concretizao de ideais.
Sob a presidncia valiosa e segura de Murilo Badar, a Academia
Mineira de Letras cuida de registrar sua memria, dando continuidade a
trabalhos editados anteriormente, intitulados EFEMRIDES, com
informaes coletadas com o mximo rigor de acadmicos, entre eles, o
venerando e inconfundvel Martins de Oliveira, que era profundo
conhecedor dos eventos da Academia (...). O memorialista e historiador
acadmico Oiliam Jos, autor de edies anteriores, delegado pelo amplo
descortino do saudoso Presidente Perptuo Vivaldi Moreira, ainda o
responsvel pelo gigantesco trabalho dos cem anos de vida da Academia
Mineira de Letras, dividido em dois volumes: o primeiro, contendo
notcias dos cinquenta anos iniciais, e o segundo, dos cinquenta anos
restantes.
Enaltecer Alphonsus de Guimaraens em sua prpria casa! S me
embala o consolo de saber que o poeta estar compreendendo a fragilidade
destas palavras, no desconforto de que me vejo presa. O poeta ouro-
pretano jamais falava em pblico e chegou a desfalecer, de certa feita,
para livrar-se da tribuna de acusao, no interior do estado. Lembra seu
flho Joo que seria impossvel imagin-lo a bradar, mesmo a falar
naturalmente, face ao tribunal pleno, pela condenao de algum... E
conclui que o promotor interino o substitua nessa parte melanclica da
funo.
A Academia Mineira de Letras, que tambm o teve como fundador
da cadeira de nmero 3, cujo patrono Aureliano Lessa, por ele escolhido,
em tempos ocupada pelos acadmicos Agripa Ulisses Vasconcelos, Oscar
Dias Corra e agora com Angelo Oswaldo de Araujo Santos, referendou-o
para patrocinar esta Casa. Sem que se percebesse, seu nome se ajustou ao
patamar mais alto, tendo sido louvado por aprovao unnime. Patrono,
o que protege espiritualmente, apadrinha. Patrono advogado de suas
causas intelectuais, desde que invocado no misticismo da palavra;
patrocinador deste sodalcio, convocado pelos mritos valiosos de sua
magnfca obra, afm de que dela se valham os acadmicos para deleite e
aprendizado; Patrono, que exemplo e enobrece.
Afonso Henriques da Costa Guimares nasceu a 24 de julho de
1870, em Ouro Preto, na casa de n. 27 da rua So Jos. Seu nome uma
homenagem ao fundador do Velho Reino, j que seu pai aportara a Ouro
Preto, vindo de Portugal, juntamente com o irmo Rafael.
Afonso Henriques fora um pequeno de boa sade e vivia feliz na
companhia de seu pai, Albino da Costa Guimares, de sua me, dona
Francisca de Paula Guimares Alvim, juntamente com seus irmos.
Aquele menino demonstrava certa particularidade: aconteciam-lhe
instantes de desligamento, quando o jovem se retraa dos folguedos, das
correrias pelas vertiginosas ladeiras de Ouro Preto, o que lhe valeu o
apelido de Afonso Sonso. Os amigos e os irmos no imaginavam
como as risadas e pilhrias a ele dirigidas acabrunhavam-no, e ele se
sentia grandemente contrafeito, esclarece Joo Alphonsus.
O jovem ouro-pretano estudou no Liceu Mineiro, depois Ginsio
Mineiro. A chamada sonsice do rapazola nada mais era, certamente, do
que o prenncio de um chamamento que o fzera despertar para os
encantos da poesia. O nimo de poetar bafejava o estudante. Muito cedo,
sentiu-se Afonso Henriques fortemente apaixonado pela prima Constana,
flha de Bernardo Guimares. Desde os estudos de portugus com o
poeta romntico Nenrod Kubitschek, que sua alma lrica sentiu-se
atingida. Dispunha-se a cursar engenharia Civil de Minas, e agora j se
encontrava matriculado no Curso Complementar da Escola de Minas.
Aos 17 anos, passou a destilar amor e poesia prematuramente. O Madrigal,
seus primeiros versos, atesta o nascimento de um poeta que seria
imortal:
A Academia e Alphonsus de Guimaraens ______________________________________Carmen Schneider Guimares 89
90 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Desse-me Deus as cores de uma aurora
E as tintas do arrebol,
O casto azul que os cus tinge e colore
E toda a luz do sol;
Desse-me Deus tudo isso que eu, cantando,
Pediria ao rouxinol
Melodioso e brando
E com tinta e a pena escreveria
Assim muito de leve
(E com a melhor caligrafa)
Na brancura de neve
Desse peito casto e sedutor
As quatro letras da palavra AMOR.
A paixo de Afonso Henriques era correspondida, e de tal forma
que se ofcializou o noivado, embora Constana estivesse ferida de morte,
na terrvel enfermidade da poca, a tuberculose. E nas notas de Joo
Alphonsus, flho do poeta, l-se: Moa dois anos mais jovem do que ele,
e que a morte pela consuno hctica veio levar. A doena implacvel
extremou, espiritualizou o namoro, desde logo admitido como noivado,
numa iluso confortadora para os dois enamorados, pouco mais do que
adolescentes.
Em Kiriale, o poeta est perfeito quando escreve S. Bom Jesus de
Matosinhos. a poca do incio do amor, mas a esse tempo a jovem j
tossia, durante o jubileu de S. Bom Jesus de Matosinhos, na capela do
Alto das Cabeas de Ouro Preto. E o corpo da amada defnhava, sem
resistncia ao mal sem remdio; cresciam no rosto magro os olhos cor de
opala. E Afonso viveu para Constancinha, como lhe chamavam todos,
vida sem outro objetivo a no ser aquela dedicao, at os olhos dela se
fecharem para sempre, aos 17 anos, escreve Joo Alphonsus, na Notcia
Biogrfca, qual nos reportaremos no correr deste trabalho.
Afonso Henriques levava para o papel seu lamento dorido, mas
que, desastradamente, no foi guardado em livros. Abandonou o curso de
engenharia em Ouro Preto, para o qual no se sentia atrado. O pai, Albino
Guimares, pretendeu mand-lo estudar em Coimbra, mas o jovenzinho
no admitia ausentar-se do Brasil. Negou-se a partir para o estrangeiro. E
depois de ele prprio haver tido sobre a cabea a suspeita de estar tambm
com a tsica que levara seu amor, buscou algum alento na dedicao a um
civismo potico. O pas passava por um momento de renovao, aps a
Proclamao da Repblica, e desta poca fcara um poema seu, em
alexandrinos, com o ttulo de Quinze de Novembro.
Afonso Henriques esteve afastado dos estudos at que em 1890 fez
Aritmtica e Geometria no curso Anexo da Faculdade de Direito de So
Paulo, na qual se matriculou no ano seguinte. A amizade que perdurou
por toda a vida, de Jos Severiano de Resende, realada em sua biografa.
Entregou-se ao jornalismo, agora com mais um amigo, Adolfo Arajo,
que viera a fundar A Gazeta. No era jornalismo literrio, mas escrevia
comercialmente para os grandes rgos da poca, Dirio Mercantil,
Comrcio de So Paulo, Correio Paulistano, e especialmente no Estado
de S. Paulo. Neste jornal, na sesso Parnaso, publicava versos, alguns
dedicados s moas com quem o poeta se relacionou, mas sem persistncia.
Escrevia muito e comeava j a selecionar algumas publicaes, com
plano de editar um livro. Alguns vieram a ser inseridos em Kiriale e
Dona Mstica.
Nessa poca, ele frequentava a casa do poeta Jos de Freitas, o
Jacques dAvray, em reunies regadas a bons vinhos, na excelncia da
companhia de escritores e artistas, como Alberto Ramos, Augusto Viana
do Castelo, e o amigo muito especial, Jos Severiano de Resende, mais
tarde ordenado padre, e que, mais tarde ainda, deixara a batina. Nem
mesmo a vivncia nesse ambiente com ilustradas personalidades
infuenciou a conduta pacata ou alterou a modstia de suas atitudes.
Ouro Preto iria lucrar com a reforma do ensino de Benjamim
Constant, que em 1891 criara os cursos de Cincias Jurdicas, Sociais e
Notariado. Foi fundada na capital de Minas, com a ajuda de advogados,
entre eles o poeta Raimundo Correia e o escritor Afonso Arinos de Melo
Franco, a Academia ou Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais. Sem
perda de tempo, os jovens mineiros que estudavam em So Paulo, e entre
eles Afonso Henriques, vieram para bacharelar-se em Ouro Preto. O
A Academia e Alphonsus de Guimaraens ______________________________________Carmen Schneider Guimares 91
92 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
entusiasmo na cidade crescia a cada dia, e o primeiro diretor da Faculdade
foi o presidente do estado, Afonso Pena.
A 15 de julho de 1894, colou grau o acadmico Afonso Henriques
Guimares, j sem o sobrenome paterno Costa. De volta a So Paulo, ali
permaneceu o jovem bacharel, ento com 24 anos, at completar o curso
de Cincias Sociais, interrompido quando de sua ida para Ouro Preto.
Nessa poca, anunciou pelo Dirio Popular a mudana de sua assinatura,
que em trabalhos literrios variava de tempos em tempos, e chegou a
mais de uma dezena. s vezes, era Afonso Guy, Alphonsus de Guymar,
Alphonsus do Castelo Vimaraens, Alphonsus de Vimaraens e um bastante
diferente, encontrado mais tarde, Guy d'Alvim.
Contam alguns dos seus estudiosos e crticos que essa procura
insatisfeita fazia-o esconder-se por timidez e recato, pois parecia querer
fcar semi-oculto pelos pseudnimos variados, para no ser identifcado.
Parece-nos que a realidade de Alphonsus de Guimaraens foi bisbilhotada
por muita gente e mais pelo poeta francs Henry Allorge. Afonso
Henriques chegou ao extremo, no auge do simbolismo, de latinizar o
prprio nome, segundo o flho Joo Alphonsus, trocando-o pelo defnitivo
Alphonsus de Guimaraens.
Os primeiros indcios de que o Brasil pretendia combater o
parnasianismo surgiram no Rio de Janeiro, atravs de publicaes na
Folha Popular, nO Cenculo, e no Fon Fon. Pretendia-se o cultivo do
pensamento livre, do estado da alma atravs de evocaes por meio de
smbolos; lutava-se para a espiritualizao da ideia e da palavra. O estilo
liberto era das intenes primeiras da nova tendncia e espalhou-se por
muitos pases. No Brasil, mesmo assim, o soneto se emparelhava com
vrias das criaes simbolistas. A luta pelo novo modelo contrariava o
realismo desenfreado, notadamente no romance.
Cruz e Sousa era considerado o papa do simbolismo brasileiro, o
Poeta Negro, o Cisne Negro, o Dante Negro. O Simbolismo na
prosa apresentava-se em dois caminhos: no primeiro, mostrava-se como
poema em prosa, e no segundo, como prosa de fco.
Vasco de Castro Lima, em O Mundo Maravilhoso do Soneto, coloca
Alphonsus de Guimaraens como fgura das mais proeminentes entre os
organizadores do Simbolismo no Brasil, juntamente com Emiliano
Perneta, Silveira Neto e Nestor Victor. Esses poetas receberam infuncia
especial dos franceses: Baudelaire, Rimbaud, Mallarm, Verlaine, Gerard
de Nerval e outros, alem dos portugueses: S Carneiro, Eugnio de
Castro, Fialho, Cesrio Verde, Silva Gaio. Manuel Bandeira v maior
semelhana de Alphonsus de Guimaraens com Verlaine, a ponto de
cham-lo o nosso Verlaine.
A poesia do poeta mineiro apresenta-se em tons velados, como a
msica de cmera; marca-se pelo ambiente onde viveu, com a persistncia
da religiosidade, as procisses, a vida devota, o tanger de sinos. Diz-se
que poesia elegaca, tocada sempre pela dorida lembrana da noiva
morta. Alphonsus de Guimaraens associava sua criao um sinal de
amargura, na qual eram encontrados neologismos, em uso entre os
simbolistas. Havia constantes referncias a fores roxas, timidez das
violetas, virgens mortas e penumbras do entardecer. comum dizer-se
que ele gostava ainda de usar a lngua arcaica. Preferia a redondilha,
assim como o soneto decasslabo, com algumas particularidades. E para
tornar melodiosos seus versos, chegou a inovar metros consagrados,
alterando e deslocando acentos, conferindo-lhes um certo tom musical.
Essas criaes so demarcadoras de seu especial estilo.
Alphonsus de Guimares decantava o platonismo em sua poesia. A
espiritualidade das composies fxava-se at mesmo nos ttulos de seus
poemas e sonetos. Parecia, costumeiramente, vagar por mundos idlicos e
paisagens msticas. A magia do simbolismo casava bem com a religiosidade
no verso do poeta; os encantos lunares perseguiam-no e o acompanhavam
em suas composies lricas, muito prprias dos simbolistas. A perfeio
dolente de sua lavra exibia-se em arroubos seresteiros e em madrigais.
Quem l Alphonsus de Guimaraens sente-se pairando entre nuvens de
lirismo celestial. Parece, aos que o estudam, que Alphonsus buscara para
si uma lua especial, a lua que Drummond descobriu e detalhou em versos,
no seu centenrio, incrustada de imagens do prprio poeta.
Os versos de Kiriale e de Dona Mstica, os primeiros escritos em
1891 e 1895, e os segundos, em 1894, e ainda os editados posteriormente
contm poemas da mesma poca da primeira edio do simbolismo
A Academia e Alphonsus de Guimaraens ______________________________________Carmen Schneider Guimares 93
94 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
lusitano o que nos diz Tcito Pace, no livro O Simbolismo na poesia
de Alphonsus de Guimaraens. Havia crticos que defendiam os mtodos
antigos e partiam para a defesa dos cnones pr-estabelecidos do parnasia-
nismo, como Jos Verssimo, que hostilizava Cruz e Sousa na Folha
Popular, e por acrscimo os demais. Outros, porm, sentiam-se encantados
com as novidades da esttica simbolista, arroubos sublimados e a candura
de suas intenes fervorosas. Travavam-se batalhas acaloradas entre os
opositores e os adeptos da novidade. Confitos literrios sempre foram
benfcos ao cenrio cultural do pas. At hoje, no se encontrou uma escola
com esprito de rebeldia e independncia que superasse o Simbolismo.
Em So Paulo, Alphonsus de Guimaraens frequentava assiduamente
a casa de Jacques d'Avray, na luxuosa residncia apelidada Vila Kirial.
Reuniam-se ali tambm Jos Severiano de Resende, Alberto Ramos,
Augusto de Viana do Castelo, alm de artistas e outros poetas.
Alphonsus de Guimaraens regressara de So Paulo, em 1895,
bacharel em Cincias Jurdicas e agora tambm em Cincias Sociais, e
aproveitou a oportunidade para ir ao Rio conhecer Cruz e Sousa e outros
membros de grupos literrios da poca. Mas suas viagens no se repetiram
com frequncia. Havia sido nomeado Juiz Substituto da comarca de
Conceio do Serro, terra que o encantava pelas serenatas sertanejas, nas
quais tomava parte. E a paixo estendeu-se a uma jovem de nome Zenaide,
sua nova musa. Cantava o seresteiro: Brandos violes da lua cheia/
Guitarras trmulas do alm...
A jovenzinha tinha 15 anos de idade, e morava no Largo do
Chafariz. Tudo conspirava para um novo arrebatamento amoroso. A
potica residncia de Zenaide adornava-se com um p de cinamomo, que
entrou para o verso do poeta, assim como um coqueiro e uma fonte...
lembra Joo Alphonsus.
O cinamomo foresce / em frente do teu postigo/ Cada for murcha
que desce/ Morre de sonhar contigo.
O poeta versejava seu amor, repetidas vezes: A fonte dorida chora
/ Por entre seixos do luar/ Quando se fecham, Senhora,/ As janelas do teu
lar/ E o coqueiro, todo em palma/ Beija o cinamomo em for.../ Imagem
das nossas almas/ Unidas no mesmo amor!
E se casaram a 2 de fevereiro de 1897, ela com 17 anos e ele com 26.
O Juiz Substituto ia bem na sua lida forense, mas o trabalho maior
ao gosto de Alphonsus era como cronista de A Gazeta, que se estendera
por vrios anos, onde manteve uma coluna com crnicas satricas e
comentrios humorsticos sobre personagens e fatos do quotidiano. No
esqueceu o verso, entretanto. O ano de 1903 atingiu-o profssionalmente,
quando ocorreu a supresso do cargo de Juiz Substituto, fcando Alphonsus
desempregado e com a famlia j numerosa.
Soares Maciel fundara um semanrio e fez o convite para que o
poeta o dirigisse, depois de ter recusado o que lhe fzera o amigo Adolfo
Arajo que voltasse para So Paulo. A princpio, ele agradeceu a Soares
Maciel, mas acabou aceitando-o. Mais tarde, Alphonsus foi nomeado Juiz
Municipal para a Comarca de Mariana.
A ltima visita do poeta a Belo Horizonte deu-se em 1915,
convidado por Jos Severiano de Resende. poca em que a Academia
Mineira comeava a atuar na capital, e muito propcia chegada de poetas
para o encontro dos intelectuais belo-horizontinos. Era setembro. A
reunio se deu no Clube Acadmico, quando a eles foi oferecido um
banquete. O vate ouro-pretano amava as fores e delas falava constan-
temente em seus versos. Mas falava apenas em seus versos, pois jamais
se apresentaria em pblico para saudaes ou discursos. E quem por ele
fez o agradecimento das boas-vindas do presidente da Academia Mineira
de Letras, Dr. lvaro da Silveira, foi o ex-padre Jos Severiano. Esta
visita est nos anais da Academia, nas Efemrides.
O menino sonso, o jovem tmido e apaixonado, o homem calado e
introspectivo, o poeta que se enclausurava na torre de marfm da poesia
simbolista, embebido do misticismo cristo de suas oferendas lricas, em
veredas descobridoras de caminhos para a vivncia de um Baudelaire
brasileiro, transmudou-se em Alphonsus de Guimaraens: um virtuose da
poesia, que passou quase despercebido de seus contemporneos. Coube
aos crticos mais cuidadosos, uma dcada e meia depois de sua morte,
descobrirem-lhe, na msica encantatria de seu verso e na beleza mstico-
litrgica com que envolveu o mundo de seus sentimentos, os traos
indisfarveis de um extraordinrio poeta.
A Academia e Alphonsus de Guimaraens ______________________________________Carmen Schneider Guimares 95
96 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Esse artista fabuloso foi esquecido enquanto vivo, mas em 1936,
Srgio Milliet nos alerta e recorda que, ainda por infuncia francesa,
acendeu-se um luzeiro no cenrio nacional. que se comemorava na
Frana o cinquentenrio do nascimento do Simbolismo, ao tempo em que
no Brasil o modernismo espraia-se confortavelmente. E a memria sacudida
despertou a saudosa escola. E vieram as comemoraes, e o nome do poeta
ouro-pretano assume o lugar que sempre lhe pertenceu. Estudos surgiram
a respeito do Simbolismo e de Alphonsus. Apenas para citar gente da Casa,
lembramos o que disse Henriqueta Lisboa, convidada a falar sobre ele: A
melhor homenagem que poderamos prestar a Alphonsus de Guimaraens,
pela transcorrncia de seu centenrio, a releitura de sua obra potica, no
esquecida, mas eventualmente afastada de nossas cogitaes pela faina do
quotidiano. Ela havia escrito um substancioso ensaio sobre o poeta, e
declara que agora, releitura, o estimo ainda mais. Parece-me que o
encontro mais lcido e mais determinado como artista. A idia desta
lembrana acatada e a vemos cercar-se de presena real ao trazermos, no
centenrio desta Casa, seu nome e sua gloriosa obra.
O simbolista de Ouro Preto no era s versejador. Cantava o amor
e amava a vida tambm em prosa, e nos deixou precioso exemplo de sua
emotividade ao relatar, em Mendigos, em pginas de um autntico
simbolista sentimental, o texto de Fernandez de Mera. Tratava-se de
belssima declarao e reverncia mulher, falando de Eva: (...) O
paraso perdera para ela todo o encanto, pois vinha dele, do homem
adorado, todo o resplendor que o cercava. Viveria ela assim, em aquele
nicho cintilante, enquanto o seu amado sofreria l fora a rudeza inclemente
dos temporais (dentro da fbula de John Schutze, na qual Deus expulsara
apenas Ado do Paraso). E o espanhol, valendo-se tambm de belssima
criao alegrica, adianta, a respeito da noite sombria que envolvia todo
o universo: Deus abriu as plpebras mulher, e a luz fez-se. E ainda:
Deu-lhe Deus um poder mgico: ftando o cu todo mergulhado na
escurido, com a luz purssima de seus olhos, Eva criou o sol e as
estrelas. E o ritmo virtual prossegue at o encontro dos dois amantes
primeiros. Volta a presena constante do satlite amoroso: Desde ento
a lua a protetora dos amores sinceros.
O Ministrio da Educao, em 1938, mandou que se fzessem
estudos para a publicao da obra de Alphonsus de Guimaraens, o que
aconteceu, sob o ttulo de POESIAS e apresentao com a nota inicial:
Edio dirigida e revista por Manuel Bandeira, com retrato do poeta e
notcia biogrfca de Joo Alphonsus. O volume contm os livros:
Kiriale, So Bom Jesus de Matozinhos, A Catedral, Dona Mstica, Ossea
Mea, Cmara Ardente, Setenrio das Dores de Nossa Senhora, Nova
Primavera, Pastoral, Escada de Jac e Plvis. Na abertura, encontram-se
a poesia de Carlos Drummond de Andrade: Luar para Alphonsus e A
Poesia de Alphonsus de Guimaraens, de Henriqueta Lisboa, alm de
Notcia Biogrfca, de Joo Alphonsus. Exibimos para estas lembranas
algumas estrofes de Drummond:
LUAR PARA ALPHONSUS
Hoje peo uma lua diferente
para Ouro Preto
Conceio do Serro
Mariana.
No venha a lua de Armstrong
Pisada, apalpada
Analisada em fragmentos pelos gelogos.
H de ser a lua mgica e pensativa
A lua de Alphonsus
sobre as trs cidades de sua vida.
E essa lua eu peo; aquela mesma
Barquinha santa, gndola
Rosal cheio de harpas
Urna de padre-nossos
Po de trigo da sagrada ceia
Lua dupla de Ismlia enlouquecida
A Academia e Alphonsus de Guimaraens ______________________________________Carmen Schneider Guimares 97
98 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Lua de Alphonsus que ele soube ver
Como ningum mais veria
De seus mineiros altos miradouros.
E ainda o encontramos, com a voz dorida e triste, na poesia S. Bom
Jesus de Matosinhos, dedicada infeliz Constana:
Foi pelo meado de setembro,
No Jubileu que eu vim a am-la,
Ainda com lgrimas relembro
Aqueles olhos cor de opala...
Era de tarde. O sol no poente
Baixava lento. A noite vinha.
Ela tossia. Pelos ninhos
Cantava a noite, toda luar.
S. Bom Jesus de Matozinhos
Olhava-a como a chorar...
Por vezes, ns o vemos estruturar no verso uma tessitura metafsica.
Alphonsus de Guimares era dono de dois tempos em realidade prpria:
tudo o que se l a respeito de sua vida domstica fala de um homem
comum, apegado ao lar e carinhoso com a mulher e os flhos; calcava os
ps frmes no solo, se o assunto era a famlia. Em seu lar modesto, com
os catorze flhos e a esposa Zenaide, jamais faltou amor e carinho. Em
um modesto lar, recebeu os pais, envelhecidos e doentes, para o trmino
de seus dias, em Mariana. E em um segundo tempo, o nosso Verlaine
brasileiro parecia levitar, quando em transe potico. E relemos as palavras
conclusivas de Manuel Bandeira, em prefcio de sua obra: Na vspera
de expirar, escreveu os seus ltimos versos, em louvor de Santa Teresa:
versos muito serenos, num ritmo esvoaante, em que a alma parece j se
balanar meio desprendida da matria.
A morte de Alphonsus de Guimaraens, a 15 de julho de 1921,
poucos dias antes de completar 51 anos de idade, foi a morte de um
poeta. Fechou os olhos sofridos para ver melhor a lua, o cu, Nossa
Senhora das Sete Dores, rezando o Pastoral aos Crentes do Amor e da
Morte.
(Joo Alphonsus relembra):
...a minhalma
Ser trigo de Deus no cu aberto...
LIVROS CONSULTADOS
GUIMARAENS, Alphonsus. Cantos de Amor, Salmos de prece, (Poemas
escolhidos). Biblioteca Manancial, em convnio com o Instituto Nacional
do Livro MEC, Rio de Janeiro, 1972.
ALPHONSUS DE GUIMARES, OBRA COMPLETA, Ed. Aguilar
(responsabilidade da Biblioteca Manancial), organizado por Alphonsus
de Guimaraens Filho, 1960.
JOS, Oiliam e Martins de Oliveira EFEMRIDES da Academia
Mineira de Letras, 1999.
MARTINS, Wilson. A Crtica Literria no Brasil, 1 e 2 vols. Ed.
Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1985;
PAES, Jos Paulo e Massaud Moiss. Pequeno Dicionrio de Literatura
Brasileira. Ed. Cultrix, So Paulo, 1967.
TAVARES, Hnio. Teoria Literria. Ed. Bernardo lvares S.A., Belo
Horizonte, 1969.
MOISS, Massaud. A Criao Literria. Ed. Universidade de So Paulo.
Edies Melhoramentos, 1965.
LIMA, Vasco de Castro. O Mundo Maravilhoso do Soneto. Livraria
Freitas Bastos S/A, 1987.
A Academia e Alphonsus de Guimaraens ______________________________________Carmen Schneider Guimares 99
O ESTADO DE ARTE DA
LNGUA PORTUGUESA
Arnaldo Niskier*
preocupante o descaso de diversos profssionais de diferentes
reas com a Lngua Portuguesa. Alegam essas pessoas que a simples
troca de um z por um s no muda o valor de uma petio advocatcia,
nem o sucesso de uma boa reportagem. Puro engano: um texto mal escrito
abala a imagem do profssional que o escreveu e, sem dvida, desqualifca
o trabalho.
Infelizmente, o descaso com o nosso idioma notrio e generalizado.
Devemos ter cuidado com o que se fala e com o que se escreve, pois a
imagem do profssional, seja qual for a sua formao, sempre avaliada.
Muitos comunicadores, at renomados, com a desculpa da moderni-
dade atropelam os tratamentos. Isto sem esquecer as frequentes derrapadas
nas concordncias verbal, nominal e pronominal. comum o emprego de
hs (para representar horas), o uso da 2 pessoa para o pronome V. Sa. e
de termos coloquiais imprprios para textos que exigem linguagem
formal, ditada pela norma culta. Parece um festival de mau gosto.
No deveria ser assim. O idioma portugus o sexto mais falado
do mundo, alcanando mais de 230 milhes de pessoas. A comunidade
lusfona constituda por Brasil, Portugal, Angola, Moambique, Cabo
Verde, Guin-Bissau, So Tom e Prncipe (os cinco ltimos na frica)
e o Timor-Leste, Macau e Goa, no Oriente, onde tambm esteve presente
a colonizao portuguesa. O especialista Slvio Elia tinha certeza: apesar
dos pesares, o portugus est em expanso no mundo.
* Da Academia Brasileira de Letras
102 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
A existncia de duas ortografias oficiais da Lngua Portuguesa,
a lusitana e a brasileira, era considerada como largamente prejudicial
unidade intercontinental do portugus e para seu prestgio no
mundo.
Tal situao remontava a 1911, ano em que foi adotada em Portugal
a primeira grande reforma ortogrfca, mas que no foi extensiva ao
Brasil.
Por iniciativa da Academia Brasileira de Letras, em consonncia
com a Academia das Cincias de Lisboa, com o objetivo de se minimizarem
os inconvenientes daquela situao, foi aprovado, em 1931, o primeiro
acordo ortogrfco entre Portugal e o Brasil. Todavia, por motivos que
no importa agora mencionar, o acordo no produziu, afnal, a to desejada
unifcao dos dois sistemas ortogrfcos, fato que levou mais tarde
conveno ortogrfca de 1943. Diante das divergncias persistentes nos
Vocabulrios publicados pelas duas Academias, que evidenciavam os
parcos resultados prticos do acordo de 1943, realizou-se em Lisboa, em
1945, novo encontro entre os representantes daquelas duas agremiaes,
o que levou chamada Conveno Ortogrfca Luso-Brasileira de 1945.
Mais uma vez, entretanto, o acordo no resultou efetivo, pois foi adotado
em Portugal, mas no no Brasil.
No Brasil, em 1971, e em Portugal, em 1973, foram promulgadas
leis que reduziram substancialmente as divergncias ortogrfcas entre os
dois pases. Apesar disso, ainda restavam diferenas srias entre os dois
sistemas ortogrfcos. Orientadas no sentido de reduzir tais divergncias,
a Academia das Cincias de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras
elaboraram em 1975 um novo projeto de acordo que no foi, no entanto,
aprovado ofcialmente por motivos de ordem poltica, sobretudo vigentes
em Portugal.
Nesse contexto houve o encontro do Rio de Janeiro, em 1986, no
qual se congregaram, pela primeira vez, na histria da lngua portuguesa,
representantes no apenas de Portugal e do Brasil, mas tambm dos cinco
pases africanos de lngua portuguesa, emergidos da descolonizao
portuguesa. E aqui vale fazer um parntese, pois implica falar em
cidadania.
O Frum de Debates da XIII Bienal Internacional do Livro do Rio
de Janeiro foi excelente pretexto para focalizar alguns aspectos essenciais
da nossa lngua e literatura. A comear pela discutida entrada em cena do
Acordo Ortogrfco de Unifcao, a que Portugal resiste bravamente.
Segundo seus fllogos, haveria um colonialismo dos ex-colonizados,
impondo 1,4% de alteraes ortogrfcas para Portugal, contra 0,5% do
Brasil. Com o apoio de Cabo Verde e So Tom e Prncipe, existia uma
forte disposio de avanar na matria, como prev o regimento da
Comunidade dos Povos de Lngua Portuguesa (CPLP). Se trs pases
aderissem ao Acordo, ele poderia entrar em fase de execuo.
Em setembro de 2008, a to esperada unifcao aconteceu quando
o presidente Lula assinou o decreto n
o
6.583, cuja ementa clara:
Promulga o Acordo Ortogrfco da Lngua Portuguesa, assinado em
Lisboa, em 16 de dezembro de 1990.
O NOVO ACORDO
No contexto de renovao da lngua portuguesa, sob os efeitos da
implementao do Acordo Ortogrfco de Unifcao, uma unanimidade
a competncia do fllogo e gramtico Evanildo Bechara, responsvel
maior pelo lanamento da 5
a
edio do VOLP (Vocabulrio Ortogrfco
da Lngua Portuguesa), uma obrigao legal da Academia Brasileira de
Letras.
Ao falar no Teatro R. Magalhes Jr., em sesso comandada pelo
acadmico Ccero Sandroni e coordenada pelo imortal Domcio Proena
Filho, Bechara relatou a responsabilidade da ABL pela matria. O
lanamento do VOLP, com 381 mil verbetes atualizados, representa uma
vitria dos praticantes da nossa lngua, que passam a ter uma orientao
ofcial sobre a grafa das palavras, apesar da permanncia de pequenas
zonas de sombra que certamente sero corrigidas com o tempo.
No um trabalho conjunto com a Academia das Cincias de
Lisboa. O texto original do Acordo, de 1985, assinado pelo presidente
Jos Sarney, prev a existncia de um outro Vocabulrio, destinado
nomenclatura, para abrigar termos tcnicos e cientfcos. Este, sim, ter a
O estado de arte da Lngua Portuguesa __________________________________________________ Arnaldo Niskier 103
104 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
colaborao futura de outras instituies culturais, como a Academia
Brasileira de Cincias, a Academia Nacional de Medicina, a Academia
das Cincias de Lisboa, etc. O atual VOLP, cuja primeira edio de
outubro de 1981 e no qual tive o ensejo de trabalhar, ao lado de Antonio
Houaiss um vocabulrio da lngua, nascido com o esprito de
simplicidade que sua maior caracterstica. O objetivo ser compreendido
por todos.
Bechara explicou as razes pelas quais as palavras ideia e heroico
deixaram de ser acentuadas: para aproxim-las da pronncia mais fechada
(abafada) dos demais pases da comunidade lusfona. Da mesma forma
voo e perdoo perderam o circunfexo. Assinala-se uma vertente de grande
respeito tradio ortogrfca, razo pela qual palavras como pontap,
passatempo e montepio continuaram a ser escritas junto, contrariando
regras que esto no Acordo. Prevaleceu a tradio de mant-las
aglutinadas.
O caso do hfen complicado, todos sabemos, mas possvel
encontrar uma certa lgica no seu emprego. Tenente-Coronel tem o hfen,
mas General de Brigada no tem, o que pode infernizar um pouco a nossa
vida. Questo de hbito. Em geral, todas as locues perderam a
hifenizao, j as onomatopias tm hfen (cri-cri, tique-taque, pingue-
pongue, zs-trs, etc). Como o re foi esquecido pelo Acordo (indevida-
mente), manteve-se a tradio: reeleio. Tudo junto. Quem fcou
separado, como exceo, o popular vaga-lume, assim como rega-bofe.
Diz-se que a reforma ortogrfca para ser apreendida pelas
geraes futuras, como se a nossa estivesse condenada confuso.
Aconselha-se o estudo acurado das suas modifcaes, sem o emprego
indesejvel de pegadinhas, para que aos poucos o povo brasileiro,
especialmente os estudantes, se familiarizem com os seus conceitos. A
nossa lngua difcil, mas bela, como afrmou Olavo Bilac, e merece toda
ateno.
MAIAKVSKI E VALRY
WHITMAN E STEVENS:
CONVERGNCIAS E
DIVERGNCIAS UMA VIAGEM
DE RECONHECIMENTO
Onofre de Freitas*
Planejamos, a partir deste nmero da Revista da Academia Mineira
de Letras, oferecer aos seus leitores um estudo de maior extenso sobre
quatro poetas da modernidade Maiakvski e Valry; Whitman e Stevens
os dois primeiros, europeus, e os dois ltimos, americanos, assim
emparelhados, por razes de suas afnidades, que sero demonstradas no
fuir do prprio artigo.
Devido exiguidade de espao, somos forado a dividir o presente
ensaio em duas partes, das quais fcar uma para o prximo nmero.
Com esta participao na sua Revista, tencionamos aduzir s
comemoraes do Centenrio de Fundao da Academia Mineira de
Letras (1909-2009) a nossa carinhosa homenagem.
* Professor, advogado, escritor. Presidente do Ateneu Mineiro.
106 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
PRIMEIRA PARTE
1. INTRODUO
1.1. Proposio
Dou-me por tarefa revisitar quatro autores de personalidade
marcante, dentre os muitos que atuaram na segunda metade do sculo xix
e na primeira do sculo xx. So eles : Vladmir Maiakvski (1893-1930)
e Paul Valry (1871-1945); Walt Whitman (1819-1898) e Wallace Stevens
(1872-1955). Como se v, agrupei-os dois a dois, tendo em vista a
nacionalidade continental de cada par: dois europeus e dois americanos.
A inteno no desdobr-los em estudos separados: a diviso atende
apenas ao meu interesse metodolgico. Importa conhec-los bem, pelo
rastro de infuncias que deixaram na poesia contempornea. Fica assim
justifcado o nosso interesse em rever tais autores.
1.2. Objetivo
Meu propsito ser pois apreci-los comparativamente, com o
objetivo denunciado de lhes assinalar os pontos em convergncia e/ou
divergncia. Ser uma viagem de reconhecimento dos aspectos e problemas
levantados e discutidos sobre tais autores, quando se trata de cotej-los
como ases da modernidade e precursores da poesia vanguardista.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1.
CADA QUAL NO SEU CONTEXTO: DIRETRIZES GERAIS DO FINAL DO
SCULO XIX E DA PRIMEIRA METADE DO SCULO XX
Trato primeiramente dos europeus.
Valry (1871-1945) nasceu antes de Maiakvski (1893-1930),
porm este abreviou sua vida suicidando-se em 1930. J Valry viveu e
atuou at 1945. Ao falecer, em 20 de julho de 1945, recebia funeral com
honras de heri, o que efetivamente foi, como participante da resistncia
francesa, durante a Segunda Grande Guerra (19391945). Se seu corpo
no est no Panthon National foi por atender sua ltima vontade de
ser sepultado no cemitrio de Ste, sua terra natal e fonte de sua inspirao
potica em Cimetire marin.
Os tempos em que ambos viveram eram bem outros. A Europa vira
abalados os ltimos tronos e encaminhava-se para assistir ascenso da
burguesia industrial e aos seus defnitivos atritos com o proletariado. Na
Rssia de Maiakvski a Revoluo Socialista Sovitica impunha ao tsar
suas primeiras e srias derrotas frente ao operariado doutrinado e
politizado pelos ideais marxistas. Lnin (e depois Stlin) assumia a
suprema magistratura para fundar o novo estado e a nova ordem em nome
do povo. Era a fora revolucionria do Partido Comunista que implantava
a sua ditadura.
Engajado na luta pela causa socialista, o jovem campnio
Maiakvski, ainda mal sado da infncia e entrando na adolescncia,
aventurava-se em guerrilhas e escaramuas. Seu fsico avantajado fazia-o
passar por adulto, embora no tivesse mais que doze anos. Preso, libertado
por no ter idade imputvel, recambiado famlia
1
. Uma vez, porm,
iniciado na luta comunista, o rapazelho dela no se afastaria mais,
trocando, entretanto, o fuzil pela caneta. Tendo como trincheira a LEF
2
,
tornou-se um s da propaganda poltica. Viveu, a partir da, todos os
passos da formao, organizao, fomentao, crescimento e vitria do
Partido Comunista. Dir-se- que a poesia e a poltica nasceram juntas em
Maiakvski e caminharam unidas at a sua morte que, sem ter sido um
ato potico, se converteu todavia numa jogada poltica, logrando imantar
e transcendentalizar poeticamente todos os seus escritos. Foi dessa
maneira que, no auge da febre propagandista do comunismo, Maiakvski
1
Maiakvski surge no bojo de uma revoluo camponesa, ele prprio um campnio rude,
emigrado para a cidade em consequncia da morte do pai. A me mais os flhos, entre os quais
o nosso futuro poeta entressado da infncia e ainda meio adolescente, deixaram o campo em
busca de melhor sorte (1907).
2
LEF: a sigla corresponde a Livi Front (Frente de Esquerda).
Maiakvski e Valry - Whitman e Stevens: convergncias e divergncias - uma viagem de reconhecimento ____ Onofre de Freitas 107
108 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
e Khlibnikov se juntaram para criar o Futurismo Russo (1912). Este
movimento coerentemente objetivou estetizar a poltica. Se ao contrrio
do Futurismo Italiano no fomentou a guerra, fez dela o Leitmotiv de sua
temtica preferida para atender ao sentido social de sua arte. A potica de
Maiakvski, depois de viver o seu lado prtico, imediatista e poltico, aos
poucos se sedimentou nas frmulas e princpios que ele mesmo
sistematizou e exps em Como fazer versos (seu nico texto terico) e na
conferncia Abaixo a Arte, Viva a Vida!
Enquanto isso a Frana de Valry se incorporava ao grupo das
naes democrticas, embora estremecida pelas reivindicaes proletrias
que tumultuaram as primeiras dcadas do sculo xx. Cresciam ento as
infuncias marxistas e discutia-se Nietzsche e Schopenhauer. A febre
nacionalista, acirrada pelos interesses econmicos ligados necessidade
cada vez maior de matrias primas, dividia os povos, abrindo perspectivas
de confrontos armados. Duas guerras envolveram a Frana (a de 1914 e
a de 1939), a segunda das quais marcou a vida de Valry e selou a sua
sina de heri da resistncia.
Os acontecimentos que assinalaram a poca de Maiakvski e
Valry tiveram repercusses diferentes na vida literria de cada um
deles: se Maiakvski se fez arauto da revoluo colocando a sua poesia
a servio da propaganda, Valry, no entanto, se recolheu ao ostracismo
voluntrio, entregando-se pesquisa flosfca e matemtica.
Obviamente, a potica de cada qual assumiu aspectos e rumos diversos
como veremos a seu tempo, mais adiante. Por ora digamos em sntese:
Maiakvski exerceu atividade poltica aliada atividade literria,
poetizando a poltica, ao passo que Valry se isolou da vida pblica e
se entregou especulao flosfco-matemtica, intelectualizando a
sua arte.
Ainda nos limites do contexto epocal, vejamos agora os dois
americanos. Da Europa saltemos Amrica, ou antes, aos EE. UU. da
Amrica.
Desde a sua Independncia (1776), os EE. UU. cresceram,
industrializaram-se e enriqueceram-se. Mas se a Independncia custou
aos americanos uma guerra de muitos sacrifcios, com no menos
sofrimentos e trabalhos tiveram eles que pagar para estabelecer o equilbrio
material e moral em que se sedimentaria a grande Nao. Havia as
divergncias msticas que confrontavam o Norte com o Sul, envolvendo
os respectivos Estados em lutas santas, flosfcas e religiosas, e em
disputas polticas e econmicas inevitveis. Dentro desse contexto, a
Guerra de Secesso (1860-1865) mergulhou o pas em convulso
fratricida. Como consequncia ainda de tais disputas, sobreveio o
assassnio de Lincoln (1865), e os americanos durante certo tempo tiveram
que expiar em sacrifcios as suas diferenas. Prevaleceu afnal o consenso,
e a jovem Nao pde respirar o clima de paz, liberdade e fraternidade
ideal to apetecido. Implantam-se desse modo as bases do seu progresso,
descortinando-se, j em meados do sculo xix, a sua vocao de liderana
e hegemonia internacional. dentro desse contexto que nasce, vive e
atua Walt Whitman.
Tal como Maiakvski e Valry, cada qual no seu tempo e cenrio
poltico-social, Whitman (1819-1898) viveu a experincia da guerra
(1860-1865: Guerra de Secesso), defrontou-se com a morte e todos os
horrores da convivncia com feridos e mutilados, sobrevividos aos
combates. Assim pois apurou-se a sua sensibilidade e o seu imaginrio
potico, ao calor das batalhas, diante dos gemidos dos que tombavam na
luta. Constata-se que foi a sua uma vivncia do real sofrido, capaz de
depurar o seu esprito e condicionar a imaginao sensvel, nunca para os
sonhos fantasiosos, mas para a observao e anlise dos fatos e das coisas
na sua verso dolorosa.
Quanto a Wallace Stevens (1872-1955), esse aparece num cenrio
j bem diferente. O progresso fazia a riqueza. A riqueza trazia o bem-
estar, a segurana. O pas se impunha no concerto das naes como uma
economia hegemnica e ensaiava a liderana poltica. De todos estes aqui
tratados, Stevens o nico sem a vivncia de guerras, e aparece num
instante j de aburguesamento e acomodao s circunstncias do
progresso industrial. Era, alis, agente de seguros e gozava de xito na
sua atividade empresarial.
Uma vez assim situados historicamente e contextualizados no seu
tempo, passemos a analis-los e confront-los literariamente.
Maiakvski e Valry - Whitman e Stevens: convergncias e divergncias - uma viagem de reconhecimento ____ Onofre de Freitas 109
110 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
2.2. A potica de Maiakvski
Maiakvski teve grande personalidade. Despertou cedo para o
social quando ainda adolescente, quase bem um menino. Envolto no
caudal da revoluo bolchevista, aguilhoado pela fome e pela misria de
campons emigrado para a cidade, cedo deps a leitura dos clssicos para
viver a poesia do hoje, do agora, dentro da luta proletria. Vida e obra
esto intimamente entrelaadas no caso de Maiakvski. Integrando-se
Revoluo Russa de Outubro de 1917, tornou-se o poeta do socialismo.
Mas a direo antiburguesa do seu talento no desdiz a qualidade da sua
arte nem a viva precocidade de sua percepo do esttico. Em algumas
oportunidades voltou-se para o problema literrio em abstrato, e teorizou
magistralmente, fundado na intuio de artista e nas experincias prprias.
Quando com Khlibnikov arquitetou o Futurismo Russo
3
, engendrou o
seu estilo de vibrao formalista onde a linguagem potica exige o
artesanal, o sofrido prazer do texto criado e recriado na busca impossvel
da expresso fnal. Proclamando o anti-imperialismo e a ao social,
advogou a libertao dos cnones ofciais, numa pesquisa dos processos
de formao da linguagem, mas no aceitou o processo dito palavras em
liberdade. Maiakvski cedo compreendeu que no existe o elo divino da
inspirao fetichista e sim o trabalho insano, a luta invencvel com as
palavras e o seu eterno escapar ante as heranas do indizvel
(SCHNAIDERMAN, 1971).
4
Sua posio antipsicolgica deixou marca profunda na evoluo da
arte moderna. Soube relacionar a forma com o sentido revolucionrio da
sua poesia, mostrando-se original na estruturao das estrofes e fragmen-
tao do metro em polirritmias, onde o verso curto alterna com o longo e
se desloca no branco da pgina, para desenhar as escalas interpretativas
da sua retrica poltica. Eis um exemplo que por si se explica:
3
Maiakvski foi um dos fundadores do Futurismo Russo. Fez parte do grupo dos cubo-futuristas
russos que publicaram o almanaque Sadk sudii (Armadilha para juzes 1910) e lanaram o
manifesto Bofetada no Gosto Pblico (1912).
4
A potica de Maiakvski.
Eu,
com a palavra,
no costumo acariciar
ouvidos;
nem ciciar
semi-obscenidades
a orelhinhas virgens
escondidas,
sob cabelos inocentes.
(Traduo de Augusto de Campos)
5
Valoriza a rima. Chega a afrmar que sem ela o verso se esfarela.
Trabalha a sonoridade suscitando assonncias e ecos. Tira partido dos
jogos de palavras e dos contrapontos irnicos, especialmente porque
confessa quer interessar o auditrio. Veja-se no exemplo seguinte:
BALALAICA
Balalaica Balalaica
[budto laiem oborvala [como um balido abala
scripti bala a balada do baile
laica] de gala]
[s laiem oborvala] [com um balido abala]
oborvala [s laiem] abala [com balido]
[liki bala] [a gala do baile]
laicu bala louca a bala
laica laica
(Traduo de Augusto de Campos)
6
5
MAIAKVSKI, V. M. Maiakvski: poemas, p. 24.
6
Idem, ibidem, p. 68.
Maiakvski e Valry - Whitman e Stevens: convergncias e divergncias - uma viagem de reconhecimento ____ Onofre de Freitas 111
112 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Maiakvski, todavia, cedo se desencantou, no da poesia e sim da
luta poltica e socialista, a servio da qual colocara toda a sua potencialidade
de trabalho potico. A morte em gesto defnitivo e trgico foi seu ltimo
espasmo lrico no s em favor das reformas polticas mas tambm em
favor da luta literria. Fez signifcar que no vale a pena a glria desta
sem os favores da igualdade social e econmica na paz defnitiva dos
interesses humanos. Ficou o seu exemplo de poesia humanitria no
sentido da defesa dos simples, em nome do que, em seu desespero
consciente, se sacrifcava para sair do cenrio da vida e entrar para a
histria como heri e mrtir da intolerncia dos poderosos.
Iniciou sua carreira potica dentro do Construtivismo, tendncia
intimamente ligada ao crescimento da cultura industrial, cujo pathos
intelectual procura expressar na preocupao com o funcional
7
. Esta nova
verso do ver esttico refetia o desenvolvimento das tendncias cubo-
futuristas e o seu centro de divulgao passou a ser a revista LEF, fundada
por ele em 1923.
Maiakvski teve uma viso materialista e utilitarista da poesia,
defendendo, contudo, a literariedade da linguagem potica. Tendo visitado
o Ocidente a Frana e a Amrica contaminou-se da atmosfera dandista
da Paris de Baudelaire, respirou o spleen da Cidade-Luz e Iluminista. Em
Nova Iorque criticou a ostentao capitalista e no arrefeceu sua
idiossincrasia antiburguesa, diante do entusiasmo progressista dos
americanos.
Dele, cumpre ressaltar a resistncia ao passado, externada na
hostilizao aos clssicos e na estetizao da poltica, extraindo a comoo
esttica dos atos pblicos de defnio ideolgica, com a frme confana
no trabalho pessoal e convicto, em lugar da incerteza flosfca de toda
inspirao transcendente. Abandona a diviso entre poesia e prosa, assim
7
O Construtivismo como escola surgiu na Rssia em 1923. Seus lderes: I.L. Selvnski e A. M.
Tchitchrin. Maiakvski manteve-se ao lado mas nunca frente do movimento. Em 1930
chegou mesmo a critic-lo dizendo que, tal como o Futurismo, o Construtivismo endeusou a
tcnica (Apud SCHNAIDERMAN, 1971. Op. cit. p. 36). O Construtivismo traduzia o desejo de
uma sociedade industrial onde natureza e construo humana se harmonizassem. Comeou na
pintura: 1910-1920.
como os cnones obrigatrios de criao literria. Seu trabalho com o
vocabulrio no tem fnalidade esttica, apenas busca a expresso da
atualidade. Os resultados prticos divulgados pela LEF no tm validade
de confsses artsticas absolutas. So meros exemplos. Assim, dentro
dos experimentos do Futurismo Russo, se Khlibnikov considerado seu
mestre tentou extrair o mximo de expressividade do coloquial, livre de
todo o potico anterior, Maiakvski se valeu sempre do ritmo polifnico
em poemas de interesse social. Pregou o afastamento como tcnica
observatria para se ater matria fatual, abandonando as telas picas de
puro emocional. Negou e repeliu o psicologismo. Amadurecer e corrigir.
Necessidade de mudana de tempo e lugar. Poetizar o apotico. Ajustar o
vocbulo como a coroa do dente. Essa a sua tcnica.
Maiakvski o autor russo que mais se destaca pela marca pessoal,
pelo vigor expressivo, pela criao de algo absolutamente novo, colocando
para o leitor um contedo organizado e coerente. Sua poesia hiperblica
e descomunal. spero e revoltado, nunca suave, amigo do coloquial e
do palavro. Revolucionrio na forma e nas concepes sociais. O mais
coerente. A impetuosidade e o estrpito se fazem mediante artesanato
minucioso conforme provam seus escritos de potica, artigos de jornal,
roteiros de cinema, etc. Em sua obra h uma evoluo de formas e uma
densidade, uma expresso de novas realidades (SCHNAIDERMAN,
1971)
8
.
Por fm, sintetizemos as tendncias da potica maiakovskiana:
colocao da arte a servio da revoluo socialista sovitica; frme
postura contra a burguesia capitalista, colocando-se contra a expresso
das elites e sempre a favor do proletariado; repulsa pelos gneros e
metros organizados e discursivos; rejeio de tudo que solene e
acadmico; busca de nova forma: linguagem cotidiana de rua; nada de
termos aristocrticos; s plebesmos; irreverncia e agresso.
8
Opus cit.
Maiakvski e Valry - Whitman e Stevens: convergncias e divergncias - uma viagem de reconhecimento ____ Onofre de Freitas 113
114 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
2.3. A potica de Valry
Bem outra foi a iniciao potica de Valry. Conheceu o Simbolismo
via Huysmans, cujo heri des Esseintes em seu monagismo literrio se
confguraria mais tarde no ideal vivido pelo poeta do Cimetire marin.
Valry mergulhou no sonho simbolista, em que foi iniciado por
Gide, com a inocncia de uma criana que fantasia as suas fantasias. Fez
de Mallarm seu mestre e repetiu em experimentos mtricos todas as
lies de sonhos, de vaguido, de emoes ao embalo das sonoplastias
verbais. Mas Valry possua ouvido italiano, de delicada sutileza para os
sons... e possua... em correspondente qualidade, herana francesa da gil
vibrao mental, que fazia dele um flsofo vocacionado. A melhor
harmonizao entre msica e flosofa se efetua no domnio das
matemticas, uma espcie de campo de provas onde ambas se explicam e
se completam. Valry era tambm um afcionado dos nmeros e um
curioso da essncia invisvel das coisas. Voltou-se para as pesquisas e
inventivas de Leonardo da Vinci, empenhando todo o seu tempo nesse
trabalho solitrio. A esse tempo j era um nome nacional, no apenas
como professor e poeta, mas tambm como conferencista requisitado aqui
e ali, dentro e fora do pas. Casara-se e, atento necessidade de uma vida
familiar, sossegada e ntima, fora morar na tranquila Villejust. Desapareceu
do cenrio social e intelectual. Dedicava-se ento exclusivamente
famlia e a seus estudos. Levantava-se da cama antes do sol, fazia ele
mesmo o seu caf e entregava-se ao trabalho. Os vizinhos comentavam e
expressavam admirao pela constncia de seu amor ao trabalho e
regularidade de seus hbitos. Passaram-se dezessete anos e, quando todos
o supunham estril para a poesia, surpreendeu a todos com o poema La
jeune Parque para mais de 500 versos tecnicamente perfeitos e bem
trabalhados, prova de constncia e convico em suas concepes e
objetivos literrios.
Valry praticou aquilo que sempre pregou. Tambm para ele no
existe inspirao como ddiva dos deuses. Inspirao trabalho,
elaborao, pesquisa. Se ocorre como fruto da maturidade, esta produto
do esforo pessoal e da experincia continuada.
Foi poeta crtico, sempre consciente dessa busca de pureza. Em
seus Cahiers estabelece o sentido das normas fragmentrias, que defne
como relaes com outras cincias. Isso tomou a da Vinci. Destacou as
noes precpuas de esprito, alma, etc., conceitos bsicos para a
estruturao de uma crena e coerncia de aes. Soube estabelecer
relaes analgicas de ordem flosfca, com o que procurou pr a mente
no espelho, com o intuito de fagrar o processo do pensar, mais do
que o pensamento. Dado de corpo e alma ao mister literrio, testemunhou
que o ato de escrever pede sempre um sacrifcio do intelecto. Debateu
o que possvel e impossvel na linguagem, concluindo que toda palavra
abismo sem fm. Soube ser moderno sem perder o fo da tradio,
ligado que sempre esteve a um movimento do dilogo platnico entre
flosofa e literatura.
Coerente com seu apreo pelo que chamou de normas fragmen-
trias e relaes entre artes e cincias, e artes e artes, como j foi
mencionado, explorou a poesia musical ou a sinfonia potica das metforas
musicais. Para ele, poesia e dana tm um fm em si mesmas: fugir ao
prosasmo da linguagem eclipsada pela informao e partir para a
expresso da poesia pura. Igualava a prosa marcha, e a poesia
dana. Assim conseguiu expressar a diferena entre ambas: a prosa restrita
aos movimentos uniformes; a poesia solta na criatividade dos movimentos
lbricos e livres.
Por fm, conclui-se: o que interessa a Valry a conscincia da
linguagem, para tender ao pleno domnio sobre ela. Isso possibilitaria
uma mudana de atitude diante da temtica. O que importa no dar
nfase excessiva aos grandes temas por si j de natureza retrica mas
enfatiza o lado prosaico da vida pela abordagem dos temas menores,
como no exemplo de Baudelaire. Isso sim, valeria (sem trocadilho) como
verdadeira inspirao, nesse caso posta e defnida como a plena
conscincia da linguagem e dos temas. Nesse caso o poema deveria
ter em vista nada mais do que ele mesmo como trabalho de linguagem
(poesia pura). Para Valry, interessado pois antes no processo, poesia
vem a ser no o gozo sensitivo-emocional, porm sim a festa do
intelecto. Da ser considerado o poeta da inteligncia.
Maiakvski e Valry - Whitman e Stevens: convergncias e divergncias - uma viagem de reconhecimento ____ Onofre de Freitas 115
116 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
De Poe a Valry, passando por Baudelaire, Rimbaud, Mallarm,
etc., instaura-se a poesia como essa festa do intelecto. Valry
concretizou, terica e praticamente, a poesia metafsica por excelncia
usualmente tambm chamada de poesia pura. Em que consiste esta e
como ele a realizou? Respondendo a tal indagao, afrma Ren Lalou
(LALOU, 1951) que a de um tipo inacessvel, de um limite ideal dos
desejos, dos esforos e dos poderes do poeta Explica ainda: puro deve
tomar-se no sentido etimolgico: sem nenhuma mistura com aqueles
elementos didticos e aqueles caprichos da sensibilidade que submetem a
expresso literria s vicissitudes do gosto e da moda
9
. necessrio
reinventar seus passos nessa caminhada rimbaudiana. Inclinado
matemtica e versado em flosofa, Valry est situado no pice do gnio
intelectualizado. Com sua fnesse desprit, herana paterna, controlava
convenientemente os arroubos imaginativos e emocionais, de herana
italiana, por parte de me. No exlio voluntrio da Rue Villejust viveu
entregue s prprias locubraes, cata de respostas para as indagaes
do seu esprito irrequieto. Esse trabalho seu rendeu nada menos do que
600 versos tecnicamente perfeitos, trabalhados sim na sua feio rtmico-
formal, porm sobretudo trabalhados no sentido de uma concepo de
altssimo teor intelectivo. Seu apreo pela restaurao do decasslabo
clssico se explica e justifca pelo reconhecimento do valor que este ritmo
pode imprimir ao verso como disciplina do pensamento. O verso de
Valry recebe o trato da forma no pelo pressuposto do mero gnero
formal mas pelo da sua repercusso flosfca. Tal se pode verifcar no
poema bauche dun serpent, onde o ritmo coleante representa a evoluo
do prprio pensamento, que se devora a si mesmo como a serpente que
devora a prpria cauda. E assim em outros textos como Posies, Cantiques
des colonnes, Un feu distinct, etc., poemas de sua coletnea Charmes, as
imagens vo delineando as idias e se depara no apenas uma sntese
esttica de suas tendncias mas ainda um documento psicolgico, prprio
para atrair a ateno do flsofo (LALOU, 1951)
10
.
9
Les tapes de la posie franaise, p. 116.
10
Ibidem.
Transcrevo a seguir o poema Un feu distinct, seguido de sua
traduo, em verdade um eloquente exemplo da sua poesia pura, a
comear pelo modelo da mais silogstica das formas poticas o soneto.
Un feu distinct Um fogo distinto
Un feu distinct m habite, e je vois froidement Um fogo distinto esse que me aclara
La violente vie illumine entire... E faz-me iluminada a vida inteira ...
Je ne puis plus aimer seulement quen dormant Somente em sonhos a minh alma avara
Ses actes gracieux melangs de luminire. Pode viver do amor como parceira.
Mes jours viennent la nuit me rendre des regards; A noite sem viglia coisa rara;
Aprs les premiers temps de sommeil malheureux, Aps o sono leve hora pimeira,
Quand le malheur lui-mme est dans le noir pars O mal que a escurido ento prepara
Ils viennent me vivre et me donner des yeux. Vem me espiar da cama cabeceira.
Que si leur joie clate, un echo m veille Se o eco de uma alegria me desperta
N a rejet qu un mort sur ma rive de chair, Sinto um tremor de morte que se espalha
Et mon rire tranger suspend mon oreille, Em minha carne qual praia deserta;
Comme la vide conque un murmure de mer, Como numa concha oca o mar gargalha
Le doute sur le bord d une extrme merveille, Ao meu ouvido a dvida reaberta:
Si je suis, si je fus, si je dors ou je veille? Se sou, se fui, se durmo ou vivo alerta?
(Traduo de Onofre de Freitas)
(Fim da Primeira Parte)
Maiakvski e Valry - Whitman e Stevens: convergncias e divergncias - uma viagem de reconhecimento ____ Onofre de Freitas 117
Nas pginas da memria
COMO SE FUNDOU A
ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
*
Lindolfo Gomes**
I
S em 1909 foi que voltou baila o antigo projeto da fundao da
Academia Mineira de Letras, pondo-se frente da iniciativa o saudoso e
consagrado poeta e ilustre literato, jornalista e educador Machado Sobrinho.
Machado, com todo o seu admirvel idealismo e entusiasmo, lanou
a iniciativa, e no obstante a incredulidade de muitos plumitivos, alis
justifcvel em vista dos fracassos anteriores, mesmo em se tratando de
simples grmios literrios, encontrou, contudo, apoio e ajuda por parte de
outros entusiastas, elementos de nossos quadros culturais, entre as quais
se destacava o inolvidvel e culto Dr. Eduardo de Meneses, que,
convidado, aceitou o espinhoso cargo de Presidente da Academia.
A Comisso de Estatutos e do Regimento fcou constituda dos
escritores Machado Sobrinho, Amanajs de Arajo e Lindolfo Gomes.
Concludos os trabalhos da Comisso, a sesso inaugural da
Academia realizou-se no salo nobre da Cmara Municipal, na marcante
noite de 25 de dezembro de 1909, sesso esta que teve comeo s 7
horas, prolongando-se at s 11.
*
Mantida a ortografa original do texto que foi publicado nesta Revista no volume XIX, de 1953.
**
Dados biogrfcos no fnal.
122 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Compareceram reunio os fundadores, em nmero de 12, tendo
assumido a presidncia Machado Sobrinho; mas passou-a, em seguida, ao
Dr. Eduardo de Meneses, que convidou para secretrios ste acadmico e
Brant Horta.
Constituda a Mesa provisria, Machado Sobrinho exps brilhan-
temente os motivos da reunio, procedendo em seguida leitura dos
Estatutos e do Regimento, os quais, aps acirrados debates, foram
aprovados, com algumas modifcaes, eliminando-se os artigos referentes
adoo da ortografa simplifca da e criao de uma escola de
jornalistas, assuntos que, voltando a ser discutidos em projeto de 1910,
foram tambm rejeitados por pequena maioria de votos.
Convm notar que a ortografa simplifcada e a fundao da escola
de jornalistas so hoje realizaes ofciais em nosso pas.
Nos debates referentes aos Estatutos e ao Regimento, discutidos e
votados separadamente, tomaram parte Eduardo de Meneses, Machado
Sobrinho, Amanajs de Arajo, Heitor Guimares, Jos Rangel,
Dilermando Cruz e Lindolfo Gomes.
Foram ento iniciados, por ordem, os respectivos trabalhos conforme
as disposies transitrias dos Estatutos, j aprovados, elegendo-se por
escrutnio secreto a diretoria defnitiva, que fcou assim constituda:
Presidente, Dr. Eduardo de Meneses; secretrio-geral, Machado
Sobrinho; secretrio auxiliar, Brant Horta; tesoureiro, Belmiro Braga;
bibliotecrio, Heitor Guimares.
Para completar-se o quadro de 30 acadmicos que, pelos Estatutos,
deviam constituir a Academia, foram a seguir eleitos mais 18 escritores,
fcando -a associao com os seguintes membros perptuos: Eduardo de
Meneses, Machado Sobrinho, Mrio de Lima, Diogo de Vasconcelos,
Mendes Pimentel, Nelson de Sena, Costa Sena, Alphonsus de Guimaraens,
Arduno Bolivar, Carlos Gis, Amanajs de Arajo, Estvo de Oliveira,
Heitor Guimares, Franklin Magalhes, Bento Ernesto Jnior, Mendes de
Oliveira, Joo Massena, Aldo Delfno, Carlindo Lelis, J. Paixo, Mrio
Magalhes, Joo Lcio, Albino Esteves, Belmiro Braga, Brant Horta,
Dilermando Cruz, Francisco Lins, Jos Rangel, Lus de Oliveira e
Lindolfo Gomes.
Em seguida, procedeu-se eleio dos membros das respectivas
comisses, sendo eleitos, para a comisso de Contas Estvo de Oliveira,
Dilermando Cruz e Lus de Oliveira; para a de Bibliografa Brant Horta,
Albino Esteves e Lindolfo Gomes; para a de Recepo Amajs de
Arajo, Belmiro Braga e Jos Rangel.
A seguir o sr. Presidente declarou em belo discurso achar-se fundada
a Academia Mineira de Letras, prorrompendo a numerosa assistncia,
representada por tudo quanto na poca Juiz de Fora possua de mais
distinto em seu escol social e cultural, em estrepitosos aplausos, sendo os
acadmicos ali presentes abraados e felicitados calorosamente.
Mais tarde, em 1910, a Academia elegeu mais 10 membros perptuos
para completar o nmero de 40, de que hoje se constitui o quadro
defnitivo, sendo eleitos em escrutnio sereto: Pinto de Moura, lvaro da
Silveira, Paulo Brando, D. Joaquim Silvrio de Sousa, Jos Eduardo do
Carmo Gama, Avelino Fscolo Carvalho Brito, Gustavo Pena e Aurlio
Pires.
Para quatro vagas que se abriram com a desistncia dos drs. Mendes
Pimentel, Carvalho Brito, Aurlio Pires e Gustavo Pena, que renunciaram
a investidura, foram eleitos o dr. Navantino Santos, Gilberto de Alencar,
Olmpio de Arajo e Plnio Mota.
Cada qual dos acadmicos escolheu o seu respectivo patrono.
A sesso inaugural da Academia, j com o nmero completo de 40
membros eleitos, efetuou-se em 15 de maio de 1910, no Teatro de Juiz de
Fora.
Constituiu esta sesso, em que o traje de rigor foi obrigatrio para
os acadmicos, um dos acontecimentos de maior destaque no mundo
social e intelectual de Juiz de Fora.
A assistncia primava no s por numerosssima, como tambm
pela distino, achando-se resentes tdas as autoridades do Munic pio e
os representantes do govrno de Minas e da imprensa do Rio, de Belo
Horizonte e desta cidade. Tomaram parte na sesso quase todos os
Acadmicos residentes na Capital e em outras cidades do Estado.
O presidente da Academia, Dr. Eduardo de Meneses, Machado
Sobrinho e outros oradores produziram belssimos discursos.
Como se fundou a Academia Mineira de Letras ___________________________________________ Lindolfo Gomes 123
124 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Foi, ento, aclamado por proposta de Lindolfo Gomes, presidente
honorrio da Academia, o grande poeta e publicista Dr. Augusto de
Lima.
Foi assim que se fundou e instalou a Academia Mineira de Letras,
alguns, anos depois transferida para Belo, Horizonte, psto que em pleno
e efcientssimo desenvolvimento de suas atividades culturais continuadas
ainda agora com grande brilho naquela Capital.
II
PEQUENAS NOTAS
Ao transferir-se desta cidade, j a Academia havia adquirido sua
personalidade jurdica; logrado ser considerada de utilidade pblica, pelo
Congresso Estadual. J a Cmara Municipal lhe havia feito doao de sua
biblioteca de 2.000 volumes que a Academia deixou de, ento, receber
por no possuir prdio prprio, para inaugurar a que, pelos Estatutos,
deveria .ser oportunamente instalada.
Realizava ainda semanalmente as suas reunies literrias; j tinha
efetuado diversas sries de conferncias, muitas com a assistncia de
Slvio Romero, que residiu nesta cidade mais de um ano.
O distintivo da Academia por proposta de Eduardo de Meneses
consta da divisa Per litteras et pro patria laborare, inscrita em trno
do Cruzeiro do Sul.
Nas sesses menos solenes, para uso dos acadmicos, admitiu-se
pequeno lao de ftas cr de rosa e azul claro, colocado lapela.
Minas tem, pois, os mais altos motivos para orgulhar-se de sua
Academia de Letras e Juiz de Fora o de haver-lhe servido de glorioso
bero.
III
OUTRAS NOTAS SOBRE A FUNDAO DA
ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Demasiado extensas nos sairiam estas notas se quisssemos narrar
os episdios pitorescos que iam ocorrendo ante as difculdades que se
deparavam a muitos acadmicos empenhado em obter a clssica e
indefectvel casaca, com que haviam de comparecer sesso inaugural
no Teatro Juiz de Fora. Dles poucos eram possuidores de casaca. Os
outros tinham de cavar o aristocrtico trajo.
Mas fsse como fsse, noite todos estavam presentes
magnfcamente encasacados. E palavra que a solenidade decorreu num
ambiente de fna elegncia e aparato impressionante. Belmiro, num grande
sorriso, disse-me ao ouvido: At parece festa de gente rica...
O Lus de Oliveira dizia que aquilo que mais o incomodava no
eram as asas da rabona, mas aqule maldito cheirinho de benzina e
certos desinfetantes hospitalares. Franklin declarava-se invejoso de Jos
Rangel, porque dizia o diabinho nascera para vestir casaca.
Eu, de mim, engafanhotado na casaca do Altivo Halfeld, no me
sentia muito desabituado pois o meu terno casaca1 eu o havia perdido
havia pouco tempo, emprestando-o a um meu parente, ator teatral que
batera com le a linda plumagem, no que fz muito bem.
Desde ento a Academia reencetou normalmente seus trabalhos.
Foram propostos e aceitos vrios scios correspondentes no Brasil e no
Estrangeiro.
Comearam a ser publicadas novas obras da autoria de Acadmicos.
E alguns iam dando a lume as biografas dos patronos de suas cadeiras,
em obedincia ao dispositivo estatutrio.
Eis os nomes dsses patronos, sem dvida os mais consagrados nos
anais histricos e literrios de Minas e do Brasil.
Cadeira Visconde de Arax: Albino de Oliveira Esteves; cadeira
Jos Baslio da Gama: Aldo Lus Delfno; cadeira Aureliano Lessa;
Como se fundou a Academia Mineira de Letras ___________________________________________ Lindolfo Gomes 125
126 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Alphonsus de Guimaraens; cadeira Azevedo Jnor: Amanajs
Alcntara de Vilhena Arajo; cadeira Lucindo Filho: Antnio Vieira de
Arajo Machado Sobrinho; cadeira Manuel Incio da Silva Alvarenga:
Arduno Bolivar: cadeira Lus Cassiano Jnior: Avelino Fscolo;
cadeira Batista Marfns: Belmiro Braga; cadeira Josaf Bento: Bento
Ernesto Jnior; cadeira Alvarenga Peixoto: Carlindo Lelis; cadeira
Frei Santa Rita Duro: Carlos Gis; cadeira Bernardo Guimares:
Dilermando Martins da Costa Cruz; cadeira Paula Cndido: Diogo Lus
d Almeida Pereira de Vasconcelos; cadeira Conde de Prados: Eduardo
de Meneses; cadeira Bernardo de Vasconcelos: Estvo de Oliveira;
cadeira Visconde de Caet: Francisco Augusto Pinto de Moura; cadeira
Claudio Manuel da Costa: Francisco Eugnio Brant Horta; cadeira
Padre Corra de Almeida: Fracisco Lins; cadeira Artur Lbo: Franklin
de Almeda Magalhes; cadeira Fernando de Alencar: Gilberto de
Alencar; cadeira Jlio Ribeiro: Heitor Guimares; cadeira Augusto
Franco: Joo Augusto de Massena; cadeira Brbara Heleodora: Joo
Lcio Brando; cadeira Jos Cndido da Costa Sena: Joaquim Cndido
da Costa; Sena cadeira Corra de Azevedo: Jos Francisco da Paixo;
cadeira Joaquim Felcio dos Santos: D. Joaquim Silvrio de Sousa;
cadeira Evaristo da Veiga: Jos Eduardo da Fonseca; cadeira Xavier
da Veiga: Jos Joaquim do Carmo Gama; cadeira Amrico Lbo: Jos
Rangel; cadeira Aureliano Pimentel: Lindolfo Gomes; cadeira Oscar
da Gama: Lus Joaquim de Oliveira; cadeira Edgar da Mata Machado:
Mrio Antnio de Magalhes Gomes; cadeira Visconde de Sapuca:
Mrio de Lima; cadeira Toms Antnio Gonzaga: Mendes de Oliveira;
cadeira Joo Pinheiro: Navantino Santos; cadeira Jos Eli Ottoni:
Nelson Coelho de Sena; cadeira Manuel Baslio Furtado: Olmpio
Rodrigues de Arajo; cadeira Beatriz R. de Assis Brando: Paulo
Brando; cadeira Jos Baslio da Gama: Plinio Mota; cadeira Conceio
Veloso: lvaro da Silveira.
Em notvel prefcio para um livro de Albino Esteves, escreveu
Silvio Romero:
Excelente foi a idia, por exemplo, da fundao da Academia
Mineira de Letras, e mais ainda o sistema por ela inaugurado de
escreverem os seus scios notcias dos seus patronos e de outros preclaros
escritores desta terra.
Oxal que todos os Estados do Brasil sigam to alevantado
exemplo.
"Por enquanto s Bahia, Pernamhuco e S. Paulo fundaram, alm de
Minas, associaes congneres. Que os outros Estados os acompanhem.
Pelo que me toca, seja-me permitido aqui uma nota quase pessoal;
pelo que me diz respeito, tenho muitas vezes sido censurado, por no ter
dado entrada em meus escritos, a certos e determinados autores
provincianos.
A increpao de todo injusta. Na Histria da Literatura
Brasileira, nos Estudos da Poesia Popular no Brasil, nos Novos
Estudos, nos Outros Estudos de Literatura Contempornea, nos
Ensaios de Sociologia e Literatura, nas Provocaes e Debates
aparecem em profuso os escritores das provncias. Se algum merecimento
me pode caber, como crtico e historiador literrio, ter sido sempre o
defensor constante dos talentos provincianos, contra a estreiteza de
esprito, revelada pelos criticalhos do Rio, no desprezo sistemtico que
tm por norma contra todos os que no fazem parte da panelinha de
elogio mtuo, em que se dessoram a si prprios e fazem moer quantos
lhes so adversos, nomeadamente os bons escritores provincianos.
Slvio, como j tivemos ocasio de afrmar, assistiu a diversas
reunies de nossa Academia.
Os oradores da sesso inaugural (13 de maio de 1910), a que acima
nos referimos, foram o erudito polgrafo Dr. Nelson de Sena (que fez o
discurso ofcial) e o Presidente da A. M. L. o sbio e inesquecvel Dr.
Eduardo de Meneses, iniciando a solenidade.
Ambos produziram magistrais peas oratrias, mais tarde publicadas
no nmero inicial da Revista da Academia (Belo Horizonte, 1922).
Transferida a Academia Mineira de Letras para Belo Horizonte, foi
ali instalada a 24 de janeiro de 1915, em sesso presidida pelo ilustre
intelectual Dr. lvaro da Silveira, que proferiu magnfco discurso, bem
como o orador ofcial, o saudoso e brilhante publicista Dr. Jos Eduardo
da Fonseca.
Como se fundou a Academia Mineira de Letras ___________________________________________ Lindolfo Gomes 127
128 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
IV
CAVACOS ACADMICOS
Terminada a sesso da Academia Mineira em 6 do andante (6 de
maio), em que todos os acadmicos presentes tiveram a palavra e dela
usaram, foram encontradas na sala as seguintes notas de B. B.:
Nosso amigo Joo Montero,
Mesmo tendo desistido,
Vem causar este salseiro,
ste tremendo alarido.
Dirlermando fala fala,
Fala o Lindolfo tambm,
E ns todos nesta sala
A todos dizendo: Amm!
Machado levanta o cabo
E o Carmo Gama retruca!
Que leve os dois o diabo,
Metidos numa combuca.
Franquilin o gorducho
L da Serra do Lenheiro,
Disse solene: So Joo!
L se foi um companheiro!
O moo do Mar dEspanha
Vai falar por dez Joss!
Eu digo assim: no me apanha!
Vou fugir a quatro ps!
Dste enredo de cips
Tu no sais, Amanajs!
Mas, meu Deus! que borborinho!
Fala o Machado Sobrinho.
Isto sesso ou chinfrim?
Diz o gordo Franquilin.
Que sesso! Entorna o caldo,
E sai molhado o meu Aldo!
A chamusco anda cheirando
Essa sesso, Dilermando!
Tomo um banho de salmoura,
Findando o Pinto de Moura.
L se foi o nosso horrio!
Vou-me embora e levo o Mrio.
E vou j cair num golfo
Para fugir do Lindolfo
Finda a sesso amanh,
Pois vai j falar o Brant.
E, meu Deus, eu tenho pena,
Do Ludol e do Massena,
Porque so tais os reveses.
Que fcou rouco o Meneses,
No chinfrim! Isto praga:
A vem o Belmiro Braga! (*)
(*) Os dois versos ltimos so da autoria de Franklin Magalhes. L. G.
(De O Farol de maio, 1911).
Como se fundou a Academia Mineira de Letras ___________________________________________ Lindolfo Gomes 129
130 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Dados Biogrfcos
Lindolfo Gomes nasceu no dia 12 de maro de 1875, na cidade de
Guaratinguet, SP. Romancista, poeta, teatrlogo, ensasta, folclorista,
contista, jornalista, professor, inspetor de ensino, membro da Academia
Brasileira de Filologia, da Academia Carioca de Letras, da Academia
Mineira de Letras, publicou vrios livros, entre os quais, na rea de
folclore, Folclore e Tradies do Brasil (1915), Contos Populares (1918),
Nihil novi... (1927) e Contos Populares Brasileiros (1948), alm de
ensaios e artigos sobre os mais diversos assuntos. Faleceu no dia 15 de
maio de 1953, na cidade do Rio de Janeiro (RJ).
DILERMANDO CRUZ: POLTICO,
POETA E BIGRAFO
Natania A. Silva Nogueira*
Tenho aqui uma difcil tarefa, a de escrever sobre algum que no
poupou, durante toda a sua vida, as palavras. Mas a difculdade a que me
refro no advm da abundncia de textos, mas justamente da ausncia
deles. Dissertar sobre Dilermando Martins da Costa Cruz tatear no
escuro pelos longos corredores da memria. De sua obra pouco foi
preservado, de sua vida, pouco se sabe. Falar de Dilermando Martins da
Costa Cruz resgatar um pedao da memria de Minas Gerais que,
decididamente, no pode e no deve ser perdida.
Caracterizava-se Dilermando Cruz por bela presena fsica,
aliada a uma inteligncia penetrante, vivaz, que tinha veculo
excelente: linguagem cuidada, por vezes original: A tendncia
para os concetti, as iluminuras de trechos, pinceladas
magnfcas, alteraes, metforas imprevistas, tudo revelava
nele poderosa e marcante fgura de homem de letras. (1)
* Professora de Histria na rede municipal de ensino de Leopoldina (MG), especialista em
Histria do Brasil, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), autora de textos nas reas
de Histria e Educao.
132 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Dilermando Martins da Costa Cruz nasceu em Leopoldina no ano
de 1879. Localizado na Zona da Mata mineira, o municpio de Leopoldina
havia conquistado um grande destaque na regio e no Estado, graas
prosperidade proporcionada pela produo cafeeira. Tanto durante o
imprio, quanto na Primeira Repblica, Leopoldina acenava como um
importante centro econmico.
Em discurso feito Assemblia Mineira em 1859, o futuro
visconde de Caravelas, Carneiro Campos, apontava o
signifcativo crescimento da lavoura de caf naquele
municpio, que havia sido criado apenas h cinco anos,
desmembrado de Mar de Espanha. Segundo censo realizado
em 1872, a populao do municpio era de 41.886 habitantes,
dos quais 15.253 eram escravos: um dos maiores plantis de
escravos da Zona da Mata. Em 1900, possua 33.835
habitantes. (2)
Em Leopoldina, Dilermando foi introduzido nas primeiras letras e,
mais tarde, foi enviado para a cidade de Ouro Preto, para estudar no
Colgio Mineiro. De l, foi transferido para Barbacena, prosseguindo os
estudos no Ginsio Mineiro de Barbacena. Formou-se em Direito. Foi
jornalista, advogado, delegado de polcia no Distrito Federal (1917),
Curador de Massas Falidas no Rio de Janeiro (1926). (3)
A poltica era uma de suas paixes. Republicano convicto e poltico
ativo, Dilermando pertencia a um dos blocos polticos mais fortes de
Minas Gerais, o dos silvianistas, liderado por Wenceslau Braz (4) e por
Jlio Bueno Brando (5), com fortes articulaes com a Zona da Mata.
Foi candidato a Deputado Estadual, pela chapa civilista, para as eleies
que se realizariam no dia 12 de maro de 1911. Em fevereiro daquele
ano, durante viagem a Leopoldina, percorreu os distritos em campanha,
com discursos acalorados, em busca de votos. O peridico O Novo
Movimento, de Leopoldina, deu grande destaque aos seus esforos
polticos, como pode ser percebido no trecho abaixo:
Nosso valente colega em breves dias volver novamente
cidade, a fm de percorrer o municpio em propaganda de
sua candidatura que vai encontrando francos aplausos, tal a
vontade que o povo tem de ver colocados na direo dos
negcios pblicos homens da envergadura moral e intelectual
de Dilermando, homens que no se vendem, homens que
sejam representao viva das barrocas tradies mineiras e
no estes pulhas que se arrastam aos ps dos governadores
numa subservincia de cretinos. (6)
Fundou e dirigiu, em Leopoldina, o jornal Folha do Leste, que
circulou na cidade durante dois anos (7). Nos primeiros anos do sculo
XX, Dilermando teve que se mudar para Juiz de Fora, por motivo de
doena na famlia. L ele fundou o jornal Correio da Tarde, em 1906, do
qual foi proprietrio e diretor.
Neste jornal, logo no segundo nmero, o flho distante dava
uma prova de que no esquecera nem a sua terra, nem os
seus amigos, e, para tanto demonstrar, escrevia a respeito de
Leopoldina, chamando a ateno do governo para benefciar
a sua terra, removendo uns tantos estorvos que impediam a
marcha do progresso leopoldinense (8).
Sua participao como jornalista e literato no se limitou aos
peridicos que fundou e dirigiu. Teve participao tambm na revista O
Mensal, em Barbacena, dirigida por Aldo Delphino, da qual era redator.
Foi, tambm, colaborador do Pharol, um dos peridicos de maior
circulao de Juiz de Fora. Escreveu para jornais importantes do Rio de
Janeiro, onde expunha suas ideias polticas e publicava suas crnicas.
Escreveu para o jornal O Pas, principal peridico republicano do
Brasil, que circulou entre os anos de 1884 e 1930. Quintino Bocaiva foi
seu redator-chefe, de 1885 at o incio do sculo XX. Em suas pginas
escreveram, dentre outros, Rui Barbosa, Fernando Lobo, Joaquim Serra,
Alcindo Guanabara, Urbano Duarte e Joaquim Nabuco.
Dilermando Cruz: poltico, poeta e bigrafo ______________________________________Natania A. Silva Nogueira 133
134 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Outro jornal de prestgio, do qual participou, publicando suas
Cartas de Minas, foi a Gazeta de Notcias, peridico republicano fundado
na dcada de 1870 e que circulou no Rio de Janeiro at 1942. Foi um dos
primeiros a abrir espao em suas colunas para a literatura. Em suas
pginas, Jos do Patrocnio sob o pseudnimo de Prudhomme iniciou
a sua campanha pela Abolio, em 1879. Entre seus colaboradores
estavam Machado de Assis, Capistrano de Abreu, e os portugueses Ea
de Queirs e Ramalho Ortigo.
Como poeta, publicou Primeiras Rimas (1896) e Difanas (1908).
Em prosa, publicou as Palestras Literrias. Deixou um romance O
Anacoreta, indito. Mas foi Bernardo Guimares (1911), perfl bio-
biblio-literrio, sua obra mais citada e discutida no meio literrio. Em sua
segunda edio, publicada em 1914, Dilermando resgata o drama A Voz
do Paj, transcrito na ntegra. (9)
Sobre a obra em questo, Irineu Eduardo Jones Corra, em sua
tese Bernardo Guimares e o paraso obsceno: A foresta enfeitiada e
os corpos da luxria no romantismo, tece os seguintes comentrios:
Uma homenagem ao maior poeta de Minas Gerais e o maior
romancista do pas, escolhido pelo bigrafo como seu patrono
na Academia Mineira de Letras. Do homenageado, Cruz
analisa algumas das opes mtricas e temticas da lrica e
discute as infuncias sentimentais determinantes do romance.
Apresenta excerto de Escrava Isaura e alguns poemas na
ntegra entre eles A orgia dos duendes. (10)
Dilermando foi um dos fundadores da Academia Mineira de
Letras, no ano de 1909, em Juiz de Fora. Pertenceu primeira
diretoria, eleita em 25 de dezembro daquele mesmo ano e presidida
por Eduardo de Meneses, sendo escolhido membro da Comisso de
Contas, da qual tambm faziam parte Estevam de Oliveira e Luiz de
Oliveira.
Inicialmente, os doze idealizadores, capitaneados por
Machado Sobrinho e integrados por intelectuais do naipe de
Belmiro Braga, Dilermando Cruz, Amanajs de Arajo e
outros expoentes das letras, elegeram mais dezoito intelectuais
espalhados por todo o Estado e representativos do que de
melhor existia entre a elite acadmica de Minas Gerais.
(11)
Em 1915, os membros da Academia Mineira de Letras concordaram
com a transferncia da sede da Academia para a Capital do Estado.
Dilermando ocupava a cadeira nmero 15, cujo patrono era ningum
menos do que Bernardo Guimares. Dilermando veio a falecer em 1935.
Atualmente a cadeira ocupada por Bonifcio Jos Tamm de Andrada.
(12)
Coube a Dilermando homenagear Bernardo Guimares; cabe a
mim, como conterrnea, traar estas breves linhas sobre esse gigante da
literatura mineira. Um leopoldinense que at poucos meses era
desconhecido de muitos e que agora ressurge para ocupar seu lugar entre
os flhos notveis de Leopoldina e de Minas Gerais.
NOTAS
1. A citao faz parte do livro Efemrides da Academia Mineira de
Letras de Martins de Oliveira e Oiliam Jos, no qual alguns
fragmentos fazem referncia a Dilermando Cruz. Trecho cedido pela
Secretaria da Academia Mineira de Letras.
2. NOGUEIRA, Natania. A. Silva. Ensino Pblico em Municpio
Cafeeiro. Revista Eletrnica de Histria do Brasil, v.2, 1998, p. 58.
3. CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. A Europa dos pobre: Juiz
de Fora na Belle-poque mineira. Juiz de Fora EDUFJF, 1994, p.
19.
4. Wenceslau Brs foi presidente do Brasil (15/11/1914 - 15/11/1918),
e seu governo foi caracterizado por grande austeridade fnanceira,
Dilermando Cruz: poltico, poeta e bigrafo ______________________________________Natania A. Silva Nogueira 135
136 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
foi promulgado o Cdigo Civil Brasileiro e encerrada a Guerra
Sertaneja do Contestado, no sul do pas. Em 1917, o Brasil rompeu
relaes diplomticas com o Imprio Alemo e, em seguida, declarou-
lhe guerra. (Wencelau Brs. Disponvel em http://www.
republicaonline.org.br/, acesso em 26/4/2009.
5. Jlio Bueno Brando (1858-1931) foi um poltico que governou por
duas vezes o estado de Minas, tendo sido um dos mais infuentes da
Primeira Repblica.
6. O Novo Movimento, Leopoldina, n 31, 19 de fevereiro de 1911, p.
03
7. No temos ainda dados referentes ao perodo exato de circulao do
peridico, mas acreditamos que ele tenha sido publicado entre os
anos de 1900 e 1905.
8. LEO, Arthur. Dilermando Cruz. O Novo Movimento, Leopoldina,
n 34, 9 de maro de 1911, p. 2.
9. GUIMARES, Armelim. Atualidades. Disponvel em http://www.
geocities.com/athens/olympus/3583/atual.htm, acesso em 22/4/2009.
10. CORREA, Irineu Eduardo Jones. Bernardo Guimares e o paraso
obsceno: A foresta enfeitiada e os corpos da luxria no romantismo.
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Letras (Cincia da Literatura), Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006, p. 70.
11. Idem, ibidem.
12. Academia Mineira de Letras. Disponvel em http://singrandohorizontes.
blogspot.com/2009/04/academia-mineira-de-letras.html, acesso em
22/4/2009.
13. Idem, ibidem.
Perfl acadmico
SENHOR DOS TEMPOS
Mrian Pinheiro*
Era uma vez um menino de Santa Luzia que, como
muitos garotos de interior, viveu numa fazenda, divertiu-
se catando manga no p, apaixonou-se perdidamente pela
primeira professora e se emocionou a cada cena de amor
interpretada pelas grandes divas do cinema hollywoodiano.
Ainda de calas curtas, tambm precisou aplacar o
sofrimento de uma penosa timidez. Talvez, por isso,
houve o tempo em que preferia a companhia e a linguagem dos animais
de seus semelhantes. Com bom humor conta que fez muita birra at a
me aceitar servir-lhe comida numa bacia junto ao cocho dos cavalos,
ainda que o desejo fosse mesmo de se servir no recipiente onde os bichos
se fartavam. Deu-se por vitorioso com a bacia.
A vida animal e a timidez do modesto menino de interior fcaram
para trs. O garoto cresceu e apareceu. Mas, no sto sagrado da memria,
ele guarda detalhes preciosos de sua vida. Passagens que se confundem
com a histria de nosso tempo. Pessoas e episdios inesquecveis, como
os do tempo de orador talentoso, estudante engajado e militante poltico,
e de quando tornou-se chefe de gabinete do governador do Estado, Milton
Campos. Nessa trajetria de 87 anos de vida, podemos acrescentar ainda
* Jornalista.
138 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
as suas descobertas como advogado, jornalista e escritor. Esta ltima,
talvez, a que mais o revele. Enquanto literato, autor de nove obras e
preparando-se para lanar mais um livro desta vez de memrias
ganhou prestgio e reconhecimento. Hoje um imortal, de temperamento
reservado, mas de alma inquieta. Sempre atento s mazelas do mundo e
disposto a dar a elas, mais que uma leitura crtica, um tempero de humor.
Uma forma especial e notvel de ver o mundo: emocionada e divertida,
como se ainda vestisse calas curtas.
LEGADO DE FAMLIA
Jos Bento Teixeira de Salles um contador de histrias nato. Com
certo esforo, pinam-se os causos mais pitorescos entre inmeros de
igual valor desse atleticano, luziense, nascido em 30 de junho de 1922.
Casado com Maria Amlia Amaral Teixeira de Salles h 55 anos, pai de
3 flhas, av de 8 netos e bisav de 1, ele deixa transparecer logo seu
conhecido humor custico, ao fazer piada com a prpria idade. S sei
que nasci em 22, diz, fngindo no ter a memria privilegiada que exibe
sem modstia.
Caula de uma famlia de cinco flhos, formada por gente
intelectualizada, diz achar que puxou o pai, Manoel Teixeira de Salles,
advogado e orador numa poca em que era importante s-lo. O pai foi um
poeta parnasiano dos bons. Tanto que relembra, na missa de seu
falecimento, quando o poeta Emlio Moura sugeriu famlia que reunisse
seus escritos para a edio de um livro, oferecendo-se inclusive para fazer
o prefcio. O tempo passou e o livro recomendado nunca saiu. Mas Fritz,
seu conhecido e respeitado irmo escritor, teve belos livros publicados,
de poesias, crnicas e pesquisa histrica, assim como o tio Franklin de
Salles, que, da famlia, recebeu o apelido de Cabrito, outro nome
importante da famlia literalizada.
Obviamente, na casa da infncia havia muitos livros. Mas Jos
Bento diz no ter sido obrigado a nada. O prazer da leitura foi natural, a
ponto de faz-lo deliciar-se com clssicos de pensadores como Scrates e
Aristteles. Foi nessa famlia, que lhe parecia seca em expresso de afeto
e de pouca alegria, o que, na viso dele, s a presena feminina d, que,
curiosamente, apurou a sensibilidade. Via o pai chorar feito menino por
qualquer coisa e chorava tambm ao ver os flmes de cinema. Mas, na
balana da vida do escritor, sem dvida h mais sorrisos. Nada foi
planejado. Diz no ter se preparado para ser um escritor nem um jornalista,
simplesmente deixou as coisas acontecerem. E como elas aconteceram...
DO DIREITO PARA A ESQUERDA
O jornalismo, tradio na famlia, se tornou uma atividade
remunerada s depois que foi trabalhar com (governador) Milton Campos,
em 1947. L, acabou se tornando chefe de gabinete e noticiarista do jornal
Minas Gerais o convite para a importante misso recebeu em razo da
liderana estudantil. Antes, Jos Bento estudou no Colgio Santo
Agostinho, era bolsista por mrito, sempre foi bom aluno. E assim
prosseguiu na carreira acadmica. Como estudante, ainda que com certa
modstia, pois faz parecer insignifcante, teve efervescente militncia
poltica. Fez Direito na UFMG e se destacou como orador da turma.
Dentro da escola, foi presidente do Diretrio Acadmico da Faculdade de
Direito, presidente da Unio Estadual dos Estudantes (UEE) e vice-
presidente da Unio Nacional dos Estudantes (UNE). Movimentos,
naquela poca, bastante politizados e muito atuantes, at mais que hoje.
Lutavam contra o regime totalitrio de Getlio Vargas. Uma luta, ele diz,
antifascista. Perigoso era, mas ele ia. Tanto que foi chamado vrias vezes
delegacia de polcia. Recorda que os policiais tinham medo de falar a
palavra comunista. Perguntavam se ele era vermelho. Ningum
naquele tempo tinha tuberculose, sofria-se de pulmo. Tudo 'pegava' pela
boca, relembra, fazendo troa com a histria de ser comunista.
Comunista, que nada! Era um liberalide da pior categoria, se diverte,
contando que, em 64, chamado ao quartel por causa de um carto pessoal
encontrado com uns chineses presos, teve que se explicar. No era nada
de subverso, no. S havia levado os orientais para conhecer a siderurgia
da Belgo Mineira, empresa onde eu trabalhava. Se faziam falcatruas, eu
desconhecia.
Senhor dos tempos __________________________________________________________________ Mrian Pinheiro 139
140 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
O escritor-jornalista at tentou ser advogado, mas fracassou. No
passei de um leguleio, diz com bom humor. O escritrio fcava em frente
Gruta Metrpole que, na poca, passava por uma reforma. Seu scio era
Aroldo Machado. Recordo-me de comentar com ele, debruado sobre
uma janela, que aquela construo bem que poderia ser um botequim.
Dito e feito. Ao fm do expediente ia direto pra l, s atravessava a rua.
Fui um dos pioneiros da gruta por isso. Mas o escritrio fracassou antes
mesmo de me tornar um frequentador assduo de l. No tinha
temperamento para advogado. Achava tudo de uma sordidez humana...,
comenta sem titubear.
I
IDIAS IMORTALIZADAS
A vida pblica foi outra aventura. Jos Bento bem que tentou se
eleger deputado estadual. Recebeu trs votos em Santa Luzia: da tia, da
av e de uma vizinha. O consolo foi ter sido o sexto mais votado em BH,
numa chapa com nomes ilustres, como os de Pedro Aleixo, Alberto
Deodato, Carlos Horta e Simo Vianna. No lamenta, mas teria gostado
de ter seguido a carreira poltica. Mas, para a alegria hoje de seus leitores,
o literato falou mais alto. Ele conta que costumava anotar tudo num
caderno. Uma espcie de dirio. As anotaes, diz, eram cretinas e
imaturas. A certa altura, as palavras faladas e anotadas nem de longe
lembravam as criancices da infncia, ganharam peso e respeito. Jos
Bento escreveu para o Correio do Dia, onde fazia crticas parlamentares
para preencher a coluna intitulada Galeria e Plenrio e, a convite de Cyro
Siqueira, crnicas para o jornal Estado de Minas. J de carteirinha
tambm incursionou pela sucursal de O Globo na cidade e, com Jos
Costa, trabalhou no ento chamado Informador Comercial (hoje Dirio
do Comrcio).
Com tudo isso, o jornalista que gostava de escrever literatura foi se
aperfeioando e logo lanava o primeiro livro da carreira, sobre Milton
Campos, um poltico que aprendeu a admirar e at hoje se emociona ao
falar dele. Milton Campos Uma vocao liberal, editado trs vezes,
estimulou-o a se dedicar mais literatura. Vieram outros tantos, como
Liberta que sers tambm, inspirado num poema de Vincius de Morais,
onde fazia crticas aos militares, e Tarde/Manh, em coautoria com a
flha tambm jornalista Beatriz Teixeira de Salles.
O convite para integrar a seleta nata da Academia Mineira de Letras
recebeu por trs vezes, at que sucumbiu em 1995. Por meio dele, toda
uma famlia de escritores pde ser homenageada. Uma vez l dentro, Jos
Bento Teixeira de Salles recebeu a incumbncia de ressuscitar a Revista
da Academia, inativa desde 1964. Foi seu editor por seis anos, perodo
em que deu incio abertura da publicao que, at ento, s contava
com a colaborao dos acadmicos para escritores nacionais,
principalmente os mineiros. Foi um trabalho muito prazeroso, ressalta.
Os esforos renderam Academia 24 novos nmeros da revista.
Coincidentemente, o mesmo nmero de publicaes feitas desde sua
primeira edio, em 1922, at quando ela deixou de circular.
DADOS BIOGRFICOS
Nascimento: 30 de junho de 1922, Santa Luzia;
Primrio: Grupo Escolar Afonso Pena; Secundrio: Colgio Santo
Agostinho, onde lecionou de 1940 a 1947. Graduado em Direito pela
UFMG (1946);
Presidente do Diretrio Acadmico da Faculdade de Direito da UFMG
(1944), da Unio Estadual dos Estudantes UEE (1945) e vice-presidente
da Unio Nacional dos Estudantes UNE (1946);
Ofcial de gabinete do governador Milton Campos (1947 a 1951). Redator
da Imprensa Ofcial (1951 a 1977), chefe de Departamento do Minas
Gerais e diretor da Imprensa Ofcial por duas vezes, no ano de 1962 e de
1966 a 1967;
Jornalista, redator dos jornais Correio do Dia, Dirio do Comrcio,
Minas em Foco e O Globo. Cronista do jornal Estado de Minas e
colaborador de revistas de Minas e do Rio de Janeiro;
Chefe do servio de divulgao e imprensa da Belgo Mineira (hoje
Arcelor Mitall), por onde se aposentou em 1988. Conselheiro da Fundao
Senhor dos tempos __________________________________________________________________ Mrian Pinheiro 141
142 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
de Arte de Ouro Preto (FAOP), do Conselho Regional de Relaes
Pblicas, integrante do Conselho Estadual da Coleo Mineiriana da
Fundao Joo Pinheiro e membro emrito da Academia de Letras de
Conselheiro Lafaiete;
Eleito em 5 de setembro de 1995 para a Academia Mineira de Letras, de
cuja revista foi editor durante seis anos. Condecorado com a Insgnia da
Inconfdncia (1982), Medalha Santos Dumont (1993), diploma do
Centenrio da Imprensa Ofcial (1991) e Medalha Antnio de Castro
Silva, concedida pela Prefeitura de Santa Luzia.
Autor dos livros:
Milton Campos Uma vocao liberal (trs edies) 1975, 1994 e
2000;
Liberta que sers tambm Fbulas Atuais 1984;
Tarde/Manh (coautoria de Maria Beatriz Teixeira de Salles, 1986);
Brumoso, o rato que virou porco Fbulas Mineiras ( 1989);
No avarandado da memria, Viglias (1998);
Velho Mundo Novo (2003);
Rua da Bahia (2005);
A Estrela Verde (2008)
A LOBA DA ESTEPE
Jos Renato de Castro Cesar*
A loba da estepe. Assim a defniu o flsofo mineiro Moacyr
Laterza (1928-2004), assinalando uma particularidade essencial desta
grande artista plstica brasileira, estrela cristalizada des beaux arts das
Minas Gerais: Heloisa Jaguaribe Selmi Dei Meinberg.
Porta a estirpe da nobreza italiana dos prncipes Selmi Dei, da
cidade imperial de Lucca, e descende do nobre Domingos Jos Nogueira
Jaguaribe, o Visconde de Jaguaribe (1820-1890) e da herona republicana
de 1817, Brbara Pereira de Alencar, vultos histricos queridos do seu
amado Cear (MARTINS FILHO, 1986; PAIVA, 2007).
Lisete Meinberg, como se fez conhecida, honra suas origens: amor
famlia, ao trabalho, histria e cultura. De pequena se refugia na
Arte.
a loba da estepe, porque soube percorrer, solitria e indepen-
dente, os rduos caminhos de um slido trabalho artstico. Profundo,
maduro, racional e prazeroso. Suas telas, seus objetos e esculturas
demonstram uma proporo continuada e uma razo repetida (sic,
GRAVES, 1951) que sustenta a estrutura temtica de sua obra e que
remete s gentes, sua terra, sua cultura e Arte.
Lisete no se mistura no banal da sociedade burguesa. O seu
trabalho calmo e alegre, porm dramtico. Realista, dinmico e
contrastante; leva-nos a meditar sobre o novo, sobre a novidade.
* Escritor, poeta e ensasta. Scio do Instituto Histrico e Geogrfco de Minas Gerais.
144 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Suas obras nos criam um sustollere (Aufhebung) um
suprassumir e um subassumir
11
, de dentro e fora, de liso e spero. Num
vo entre o claro-escuro das palavras inaudveis, inefveis. O vermelho
e o negro harmnicos e desenhados; o azul e o verde; o branco; o
amarelo claro; o verde dourado; o brilhante marrom avermelhado e o
cinza prateado da hematita da sua terra mineira a intriga. E a loba
cava a sua toca...
Sua terra natal pura cor e, de menina, a denomina terra chocolate,
apaixonada pela diversidade de texturas e cores do solo das Minas Gerais
(vila et al., 2006).
Interessada em pesquisas, descobre a especularita, uma variedade
de hematita (Fe
2
O
3
) mais brilhante, que a inspira em utiliz-la nos
quadros, esculturas, vidros e porcelanas, desde os primrdios de sua vida
artstica.
Ao sentir a infuncia, por ela recordada, da Bienal de Veneza, da
Internacional de Kassel, da msica de Wagner e das obras de Marino
Marini, se sente segura pela estrada faz-se uma loba da inovao.
Finesse femmineirit: assim Lisete. Artista nica, inovadora,
amiga e professora. Mulher, me, av, bisav. Amiga sincera que
interpreta o tempo e os modos. Interpreta os rumores e a fama, com toda
a sua pureza de Mulher. Mulher de um outro tempo. Quando, ento, o
amor comeava no altar e depois ia ao leito, ela conta, irnica. Mas, no
banaliza.
O seu incondicional amor pela famlia a leva, resignada e
disciplinada, conquista de um ideal, atravs das cores, das formas, das
linhas, dos estudos e dos materiais. Experimenta no seu singular e
extraordinaire ateli, no centenrio bairro da Serra, em Belo Horizonte,
uma realizao pessoal, profssional e artstica incomparvel.
Bem antes, em sua infncia ainda, reconhece as infuncias maternas.
Sua me, Risoleta Jaguaribe, tornara-se uma grande pintora e estimulava
nela o gosto pela arte: aperfeioamento, refnamento e estilo. O clssico
e o moderno. A loba livre.
A maturidade, como pessoa que se quer artista, encontra o espao
regional da mineiridade: uma paisagem cultural onde o Barroco Mineiro
esplndido; as montanhas das Minas Gerais grandiosas; a Serra do
Curral Del Rey um mito da histria regional; em meio sua juventude
modernista; com o primo e amigo Pedro Nava; habituada gente aristocr-
tica e s nascentes da Serra, onde o povo simples e mestio se encontra.
As viagens martimas e os concursos de Charleston fazem dela uma
teen-ager feliz e segura de si. Mulher feliz, que, artisticamente, descobriu
as cores, as formas e as repeties dos flitos, quartzitos e magmas da
abundante hematita especularita das Minas Gerais, que tanto a atraram,
que as colou, resoluta e segura, em suas telas vibrantes, em cores vivas.
A experincia artstica a espera pela estrada... Histria e mitos... O
classicismo grego a ilumina e passa a transformar uma tcnica peruana
ancestral, que aprende com o artista e professor Feliz Alejandro
Barrenechea (1921). Torna-se uma maga da cermica contempornea.
Da surgem objetos e jias. Aplica o ouro, o cobre e outros metais
na cermica e nos vidros. Produz infnitas tonalidades e escolhe materiais
refnados, ajuntando cacos que recolhe e guarda. Recolhe e guarda...
Lisete e o mundo com seus muitos maneirismos. A loba na
estepe... As minas, os agricultores, os polticos, artistas e professores
brasileiros entre a fome e as ideologias to dispersas, num mundo cada
vez mais global. Igual. Onde ela pesquisa a inovao, desde cedo.
No entorno belorizontino descobre as montanhas, reconhece e
interpreta as faces, as expresses humanas do mundus brasilis. Escolhe
solues e apresenta resultados. Pouco a pouco, procura nas razes
italianas e nordestinas, amadas e idolatradas, a razo do seu viver.
Lisete diferente. Foi ecolgica sem rumor e sem glria. Na sua
roa plantou rvores, hortas e fores. Plantou artes. Criou bichos. No
clube jogou tnis. Veio, viu e venceu a tutti... Com poucas amizades.
Entre tantas homenagens, se gloria, alegre e satisfeita, de um torneio de
tnis, com seu nome, no amado Minas Tnis Clube, que frequenta assdua.
Orgulhosa do clube familiar.
Nasce em 1917. Em 1942 se esposa com o mdico brasileiro,
especialista em medicina esportiva, Francisco Meinberg, atleta de futebol,
o Binga, mtico arqueiro do Clube Atltico Mineiro, desaparecido em
1998.
A loba da estepe __________________________________________________________Jos Renato de Castro Cesar 145
146 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Para conceberem e transcenderem os mundos e as culturas, para
dominarem a estepe e permanecerem em meio aos dolos, esteretipos e
clones animalescos, Lisete e Francisco procuraram a sua forma de viver,
no seu simples e discreto lar, plenos de trabalho intenso. No mundo,
prepararam as suas mscaras adaptadas liberdade e disciplina do
sonho americano e fundaram escolas.
No design, Lisete demonstra e observa aquilo que Graves (1951, p.
233) denomina a arte dos elementos unifcantes e contrastantes. Sua
linha de desenho defne muito da sua personalidade feminina um amor
prprio peculiar e raro, hoje em dia: fneza, simplicidade, clareza e
refnamento. Maturidade e felicidade. Sinceridade e pureza.
Seu trabalho artstico se afrma singular, inovador, precursor de um
estilo prprio a utilizao de pigmentos minerais e terra natural nos
quadros, com formas tridimensionais e tantas outras inovaes. Mas, a
loba simples e vive escondida na estepe. Da sua humana condio
irrompe sua energia, cristalizando-se em quadros, objetos e esculturas.
Diante das transformaes levadas a cabo pelo modernismo, diante
das dicotomias entre expressionistas versus impressionistas, a loba l,
interpretando signos. Chagall, Klee, Delvaux, Magritte, Braque, Matisse,
Dufy, Pollock, Gorky, De Kooning.
De 1948 a 1954 Lisete sofre as fortes infuncias da Bienal de
Veneza, especialmente na fase de Rodolfo Pallucchini, Roberto Longhi,
Guttuso e da famosa coleo de Peggy Guggenheim.
Amadurecida na fadiga de artista consagrada, professora e
administradora pblica, colabora na direo do Museu de Arte Moderna,
em Belo Horizonte, e na transio da Escola Guignard, dal basso
allalto.
Sente-se orgulhosa de ter participado da transferncia da Escola
Guignard do poro do Palcio das Artes para a Fundao Escola Guignard,
hoje na Praa Quatro, instalada no seu belssimo edifcio, situado nas
escarpas da Serra do Curral, em Belo Horizonte.
Na sua frutuosa vida artstica e profssional educa grande parte dos
renomados artistas brasileiros contemporneos e merece o respeito dos
amigos, do grande pblico e dos seus alunos.
Lisete mulher integral, esprito positivo e vivaz. Forma-se na
Escola Normal para fazer-se Professora. Estuda Desenho com Anbal
Matos
12
e Pedagogia com Helena Antipoff e Alade Lisboa. Dedica a sua
vida profssional formao dos artistas mineiros e brasileiros.
Como pintora e retratista, de vigorosos traos ps-modernos,
experimenta a infuncia direta de Alberto da Veiga Guignard, de quem
se torna aluna e amiga, de 1943 em diante. Realiza mais de trezentos
retratos de gente famosa e rica das Minas Gerais e do Brasil.
a precursora no emprego acadmico dos pigmentos naturais
(minerais, terra e outros) em pintura e escultura, e tambm na
tridimensionalidade das telas; criando uma tcnica prpria de construo
e acabamento dos seus quadros e molduras. Inova no uso de tintas,
pigmentos, telas e molduras. Prefere as melhores tintas, materiais e
ferramentas.
Como escultora, revolucionou na escolha e interpretao das formas
e na utilizao, reso e reciclagem de materiais, reciclando as possibili-
dades, os tempos e os modos, perpetuando amores, compreendendo as
dores. Torna-se uma jardineira de mo quente.
Cultiva os seus sonhos, as suas fores prediletas e tantas rvores
frutferas. Educa cinco flhos, centenas de alunos e tantos animais
domsticos. Projeta, desenha e constri com seu marido a casa onde vive
por toda a vida.
No seu pequeno e fantstico atelier sempre atenta, fna, curiosa.
Zelosa e ciumenta consigo mesma, com sua desordem, com suas obras,
objetos, e, principalmente, com sua famlia. Lisete excelente estilista e
costureira e desde menina costura as roupas e vestidos para si e para os
seus amados irmos e irms. Costurava para o marido e para os flhos, e
sempre andou avant-garde na moda.
Exemplo de esposa, amiga e me, Lisete, novantenne, viaja, d
aulas, trabalha e ajuda a cuidar dos netos, quando pode. Os bisnetos
chegam e ela sorri satisfeita e dcil com o tempo, este inclemente ser, to
masculino e hipcrita, que tanto nos castiga como afaga.
Infatigvel viajante, descobre no turismo cultural uma ponte para a
evoluo pessoal, onde a Arte demora num lado e noutro das relaes
A loba da estepe __________________________________________________________Jos Renato de Castro Cesar 147
148 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
humanas. Cr que em cada um existe a Arte. Mas, sustenta que um artista
no pode ser uma pessoa banal.
toda vaidosa quando se gloria de ser, entre poucas, uma artista
consagrada e campe de tnis. Leva sempre as suas mos de madame
machucadas pelo trabalho artstico ps-moderno. Maneja a serra eltrica
e o lana-chamas. Amalgama os metais brutos, o ao, as telas de arame,
vidros e outros materiais speros. Uma completa energia-criativa.
Lisete joga e arrazoa com os elementos da humanidade no dia-a-dia
da vida. Obtm formas, cores, pedaos e coleciona coisas. Cava a terra e
conserva objetos. A loba na estepe assim como uma sinfonia, tocada
lentamente...
Lisete coleciona os resultados enigmticos que desafam o artista.
Prefere doar. Mas vende, quase sempre arrependida, as suas belas obras.
Procura novos caminhos em si mesma. Tapa os prprios buracos que
cava. Desfaz uma coisa, faz outra...
Lisete Meinberg a loba da estepe! La lupa della steppa!
Uma mulher que luta pela vida. Sempre alegre com o instinto e a
ferocidade de uma loba solitria. Solitria na sua estrada, por conta de
uma opo poltica e flosfca. Uma mulher que no se amedrontou
diante do desconhecido, nem tampouco diante do poder masculino
institudo.
Sem polemizar, foi polmica. Afrontou, lcida e segura, as
vicissitudes, as hipocrisias e os abusos do poder que sempre se opuseram
Arte e produo dos saberes artsticos nas Minas Gerais e no Brasil.
Afnal, o mundo das artes plsticas no Brasil uma extensa e rida estepe,
com raros astros cristalizados. Lisete o sabe, muito bem...
Mulher decidida e alegre, Lisete viva, tenaz e sincera. Sempre de
bom humor, sabe brigar sem guardar dio e rancor. Sempre evitou screzi.
Leva consigo o prazer de ensinar os clssicos, as bases tcnicas
consagradas, a importncia do estudo esttico. Na sua totalidade tem
sempre aquele ar de arte grega. um exemplo de honra como artista.
Lisete Meinberg for da Serra. Flor endmica da mineiridade. De
rara beleza. Mulher extraordinria. Me de muitas fores, deu teis frutos.
Foi musa e pongou
13
do bonde com charme, fazendo enciumar o seu
amado Francisco. Fincou com ele profundas razes. Foi flha amada,
mulher e esposa desejada. Me adorada. Av idolatrada. Professora
preferida. Irm querida. Amiga sincera, de poucas e boas palavras.
Lisete continua l na estepe, cuidando da prole, refnando este
mundo que parece, assim, banal. Francisco se foi, engolido pelo tempo,
miservel ilusionista da matria. Mas, ela, Lisete, tem sempre uma palavra
boa, uma idia azzeccata, uma referncia essencial. Nunca disputou com
quem quer que fosse a primazia das suas inovaes
14
.
Lisete no contesta, no reclama, no blasfema, no fala mal de
ningum. Nem conta mentira. Bem-aventurados aqueles que a escutaram,
que a viram trabalhar, que a amaram, que com ela conviveram e que por
ela foram educados.
Sem fazer-se de santa, nem mesmo de vamp ps-moderna, sem
ataques de semideusa urbana, Lisete reconhece o seu tempo. Procura
saber cada vez mais sobre as tendncias alucinantes que a levaram, assim,
humanamente, e, assim, brilhantemente, a tornar-se brava e feroz, em
meio a este mundo carrasco, experimentando essncias, sem se iludir
com as igualdades e sem se imiscuir nas vulgaridades mundanas.
Eterna musa; cativou poetas. Mas no iludiu os moos. Acertou
sempre no alvo. Foi no alvo, guerreira como poucas. Sempre bela e
elegante, educada, fna, realizada e feliz.
Les beaux arts, ragion della bambina.
Oramai, lItalia qua! LAmerica qua!
La lupa della steppa, Brasil-Itlia, sangue latino...
Costruisce la tana con il suo Francisco, Brasil-Germania.
Sceglie lass, la sua tana, perch sapeva gi che era l, la
serra l...
A curare i bambini... Artista sicura, lupa della steppa...
Cura della prole. Lei lo s. Lei lo s. La serra l... La lupa
l...
La serra l. Cura della prole... Cura della prole... La lupa
l.
Instancabile...
A loba da estepe __________________________________________________________Jos Renato de Castro Cesar 149
150 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Falar da loba da estepe falar das Minas Gerais... daquilo que
Minas tem de melhor: a sua gente, com suas palavras, suas obras, sua
histria e suas paisagens. Falar de Lisete recordar Guignard, Laterza,
Amlcar de Castro, Anbal Matos, Inim de Paula, Maria Helena Andrs
e tantos outros... falar do cu plastifcado.
Amores e dores. ndios, brancos e negros. Peitos, bocas e desejos.
O verde escuro da foresta, o azul profundo desse cu. O cho. A terra
chocolate nas mos. E o desejo de arte, ento... Feliz a Nao que
reverencia a memria de seus melhores! Louvores loba da estepe! Eh
viva Lisete Meinberg! Eh viva Minas Gerais! Eh viva o Cear!
Notas
1. Segundo o Prof. Rui Chamone Jorge (1939-1993), citando Pe. Henrique
Cludio de Lima Vaz; este neologismo foi cunhado por Paulo
Menezes para traduzir o substantivo alemo, AUFHEBUNG, do latim
SUSTOLLERE, que signifca: tomar um conceito e elev-lo a uma
signifcao superior, sem negar a signifcao primitiva. Suprassumir
antpoda a subassumir. O primeiro signifcando o movimento do
particular para o universal e o segundo do universal para o particular
(sic, JORGE, Rui Chamone 1991, pg. 56, opus cit.).
2. Anbal Matos (1886-1969) famoso pintor e desenhista fuminense,
diplomado pela Escola Nacional de Belas Artes; professor fundador
da Escola de Arquitetura de MG em 1930. Historiador e escritor. Foi
scio honorrio, diretor e presidente do Instituto Histrico e Geogrfco
de Minas Gerais e da Academia Mineira de Letras.
3. Subir ou descer do bonde em movimento. Do verbo pongar.
4. Morais (2000) aponta Franz Krajcberg a utilizar, tambm, pigmentos
naturais em telas. Porm seu trabalho em perodo posterior aos
experimentos, trabalhos e mostras de Lisete Meinberg.
Bibliografa
1. VILA, Cristina; LANA, Adriano & SOUZA, Jacqueline Prado de
(Org.). Lisete Meinberg. Coleo Circuito Atelier. Editora Com Arte,
Belo Horizonte, 2006.
2. GRAVES, Maitland. The art of colour and design. McGraw-Hill Co,
New York, 1951.
3. JORGE, Rui Chamone. A Mediao na Terapia Ocupacional. Cadernos
de Terapia Ocupacional. Ano III, No. 1, GES.TO, Belo Horizonte,
Setembro de 1991.
4. MARTINS FILHO, Antnio. Episdios da Independncia. Revista do
Instituto do Cear, Tomo C, Ano C, Fortaleza, 1986.
5. MORAIS, Frederico. Franz Krajcberg: Natureza Revolta. GB Arte,
Rio, 2000.
6. PAIVA, Melquades Pinto. Senado do Imprio: o senador Alencar e o
Cear. Revista do Instituto do Cear, Tomo CXXI, Ano CXXI, volume
121, Fortaleza, 2007.
7. www.labiennale.org/en/biennale/history/1973/en/7824.html. Consulta:
17/7/2007.
8. http://pt.wikipedia.org/wiki/Domingos_Jos_Nogueira_Jaguaribe.
Consulta: 17/10/2008.
A loba da estepe __________________________________________________________Jos Renato de Castro Cesar 151
POSFCIO (AINDA QUE TARDIO) A
PREFCIO DE LCIA CASASANTA
*
Ana Lcia Amaral**
Meus queridos meninos, escrevi este livrinho para
todos Vocs, mas, principalmente, para Voc, menino, que
mora no morro, no campo ou nas fazendas, e pouco vai ao
cinema. Voc que no tem biblioteca, nem rdio, nem
televiso. Procurei as histrias mais bonitas, aquelas de
que gostam as crianas do mundo inteiro, crianas que
falam outras lnguas, mas que, como Vocs, gostam de
coisas bonitas.
Este um excerto de um dos belos prefcios escritos por Lcia
Casasanta, dirigidos aos seus pequenos leitores, crianas que ela, com
muito amor e muito carinho, se propunha a alfabetizar. E bom lembrar
que ainda no era moda falar-se em classes desprivile giadas...
Porm, quando chegou o discurso do letramento, carregado de
ideologia mal interpretada, inmeras vezes colocou-se a alfabetizao
em segundo plano. Chegaram a carimbar de elitista uma metodologia
que supostamente era dirigida s classes mdia e alta! E, no satisfeitos
com a rotulagem, removeram-na das escolas de educao.
*
Palavras pronunciadas no lanamento de Selo e Carimbo dos Correios em comemorao ao
Centenrio de Lcia Casasanta na sede da Academia Mineira de Letras no dia 28 de abril de
2009.
**
Mestra em Pedagogia.
154 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
E a, ao longo de algumas dcadas, assistimos ao lento empobreci-
mento do ensino brasileiro. Alguns autores j se referem a elas como as
dcadas perdidas. Nossos alunos no sabem ler: no sabem ou mal
sabem decodifcar, nem conseguem interpretar o que porventura leem.
Recentemente, pesquisas nacionais apontaram o contingente de jovens
analfabetos no Brasil: 14 milhes (boa parte deles nas escolas).
Procurei as histrias mais bonitas, aquelas de que
gostam as crianas do mundo inteiro, crianas que falam
outras lnguas, mas que, como Vocs, gostam de coisas
bonitas.
Em 2008, comemoramos o centenrio de seu nascimento, e no
temos, para lhe apresentar, uma escola pblica brasileira de que possamos
nos orgulhar.
Alguns professores remam vigorosamente contra a mar e conseguem
bons resultados. Mas so casos isolados. E proclamamos, em altos brados,
a necessidade da incluso. Que incluso esta que aceita a subescolarizao,
que permite que alunos saiam da escola sem um mnimo de instrumentao
para o exerccio da to propalada cidadania: saber ler e escrever?
Sua incluso, minha mestra, pressupunha no apenas o ingresso das
crianas na escola, mas a sua permanncia nela; no apenas o ensino
baseado na experincia particular das mesmas, mas o suave caminhar em
direo ao universal, ao mundo da fantasia, ao mundo da cultura que o
apangio da nossa civilizao: as histrias de que gostam as crianas do
mundo inteiro ...
Ah, minha mestra, vejo-a percorrendo os corredores do Adminis-
trao Escolar, com seu sorriso lindo, seus olhos brilhantes, atendendo s
diferentes solicitaes de suas alunas. Foram tantas... inmeras delas de
outras partes do pas, do norte e do sul, do leste e do oeste, colhendo os
frutos dos seus saberes e disseminando-os por este imenso Brasil.
E fco imaginando se, l onde voc se encontra, possvel enxergar
o triste quadro educacional que estamos vendo ser pintado nas escolas
pblicas de nosso pas.
... para Voc, menino, que mora no morro, no campo ou nas
fazendas, e pouco vai ao cinema. Voc que no tem biblioteca,
nem rdio,
nem televiso.
lcito chamar a isto de elitismo?
O que a est expresso, na delicadeza de sua linguagem, a
dedicao aos menos favorecidos, a enorme preocupao em abrir, para
os pequeninos das nossas escolas pblicas, o mundo das letras e, em
alfabetizando-os, abrir-lhes, por meio da magia da fantasia, as portas
necessrias da cidadania.
Lcia Monteiro Casasanta, uma mestra, um mito:
Pois sim? Pois no?
Onde andar voc?
Aqui, bem no fundo do meu peito, acho que contando, para os anjos
pequeninos, as mais belas histrias que a humanidade j produziu...
Posfcio (ainda que tardio) a prefcio de Lcia Casasanta _________________________________ Ana Lcia Amaral 155
500 ANOS DE
LOUCURA ELOGIADA
Adolfo Maurcio Pereira*
Um homem que odeia a si mesmo poder, acaso, amar
algum? Um homem que discorda de si mesmo poder, acaso,
concordar com outro? Ser capaz de inspirar alegria aos
outros quem tem em si mesmo a afio e o tdio? S um
louco, mais louco ainda do que a prpria Loucura, admitireis
que possa sustentar a afrmativa de tal opinio. Ora, se me
excluirdes da sociedade, no s o homem se tornar
intolervel ao homem, como tambm, toda vez que olhar para
dentro de si, no poder deixar de experimentar o desgosto
de ser o que , de se achar aos prprios olhos imundo e
disforme, e, por conseguinte, de odiar a si mesmo. (Erasmo
de Roterdam, em Elogio da Loucura)
Quinhentos anos atrs, em 1509, era divulgado em Paris o Elogio
da Loucura, de Erasmo de Roterdam. Stira atemporal, retrata o mundo
como continente da loucura universal e dos desvarios da institucionalizao
dela. Tanto que, sobre a obra ou dela, pergunta a loucura: Sem mim, o
mundo no pode existir um instante sequer, pois tudo o que est no
mundo no feito por loucos e para loucos?
* Poeta e idealizador do Encontro Mineiro dos Escritores, reside em Cruzlia.
158 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
, ainda hoje, o que h de melhor da anlise das leviandades e
inconsequncias humanas. Obra eruditamente despretensiosa, mas de
estilo nobre e irnica galhardia, o autor, que no deixa de ser conceitual,
destaca-se pela sua justa avaliao do ser humano, suas incoerncias e
veleidades.
De estilo pouco sbrio, mas realista, o texto atualssimo, o que
determina o autor como um escritor moderno, com uma temtica humana,
universal e que extrapolar, com certeza, os cinco sculos da sua
indispensabilidade. A acidez das consideraes do texto, dirigidas num
primeiro momento aos mandatrios laicos e religiosos do seu tempo,
garantem uma modernidade sempre oportuna e nunca extempornea. O
que foi dito l, pode ser repetido ainda hoje, com a mesma propriedade e
oportunidade.
O autor, de nome Desiderius Erasmus e depois Erasmus
Roterodomus e para ns Erasmo de Roterdam, nasceu a 27 de outubro de
1466 (ou 69?), em Roterdam, na Holanda. Filho ilegtimo de um padre,
padre se fez. Moo, aos onze anos, lia Terncio e Horcio, demonstrando
uma precocidade que marcaria toda a sua obra. Perdeu os pais cedo e foi
internado no convento de Stein, onde entregou-se totalmente aos estudos.
Aos vinte anos, escreveu O desprezo do mundo e logo depois Bem da
paz, obras que granjearam-lhe fama. Seus trabalhos mais destacados
foram o Manual do Cristo Militante (1504), Adgios Reunidos (1500),
Dilogos (1518) e o Elogio da Loucura (1509).
J reconhecido pelo mundo culto da sua poca, foi apadrinhado
pelo bispo de Cambrai e, na Holanda, foi protegido por Ana de Brosselons,
a marquesa de Nassau, que lhe props recursos para diversas viagens
pela Inglaterra e Itlia. Doutorou-se pela Universidade de Bolonha, tempo
no qual conviveu com homens clebres, como o papa Jlio II, Aldo
Manuzio e Thomas Morus, este seu grande amigo.
Abandonou o sacerdcio, em favor de uma slida formao
humanista crist, conseguida atravs de grande sensibilidade e de
indiscutvel independncia. Apesar de ser um pacifsta e manter-se sempre
distante dos confitos da sua poca conturbada, aquela citada independncia
estimulou-o para uma obra que atravessou, imponente, cinco sculos,
sempre detentora de uma modernidade que nos estimula a reconhecer no
autor grande clarividncia.
Faleceu na Basilia, aos setenta anos, em 11 de julho de 1536. Em
1553, suas obras, que sempre incomodaram, foram includas no Index,
rol de livros proibidos pela Inquisio, o Santo Ofcio, que de santo, na
verdade, nunca teve nada.
O Elogio da Loucura, originalmente Moriae Encomium, um texto
leve, agradvel e moderno, mesmo depois de cinco sculos. No se atm
s sutilezas verbais to caractersticas da poca. uma verdadeira
vergasta, que no perdoa os poderosos, nem mesmo os da Igreja Catlica,
que ento vivenciava o mximo rigor da Inquisio. Obra aparentemente
superfcial, assombra, pela imperecibilidade e proximidade dos tempos
seguintes e presena circunstancial em todos eles. Com enfoque sempre
atual, deixa-se tergiversar, no mximo, por nuances caractersticas de
pocas, sem nunca magoar, porm, sua essncia de perenidade e
oportunidade.
Interessa-nos, muito, este detalhe: a atualidade da obra. Produto de
uma poca muito distante, a sua inconteste atualidade demonstra uma
obra eterna e sempre oportuna.
O surgimento do texto se deu em 1509 e ele antecipado por uma
carta do autor a Thomas Morus, a quem a obra dedicada. quando o
flsofo e telogo considera, tentando justifcar seu escrito: Quanto a
mim, deixo que os outros julguem a minha tagarelice; mas se o meu
amor-prprio no deixar que eu o perceba, contentar-me-ei de ter elogiado
a Loucura sem estar inteiramente louco.
O Elogio um sarcasmo s, chegando a recomendar: No tens
quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo. A retrica ironizada, os esticos,
amarfanhados ...nunca tendo feito a barba, distintivo da sabedoria (se
bem que tal distintivo seja tambm comum aos bodes). E arrasa a prpria
sabedoria, quando decide que ...loucura o mesmo que sabedoria.
No Elogio so criticados os sbios, uma vez que ...estes, calcando
o pudor aos ps, subornam qualquer panegirista adulador, ou um poetastro
tagarela, que, custa do ouro, recita os seus elogios, que no passam,
afnal, de uma rede de mentiras.
500 anos de loucura elogiada ___________________________________________________ Adolfo Maurcio Pereira 159
160 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Quando notamos, modernamente, a vaidade e prepotncia dos
polticos, a insensatez dos detentores de poder e a incompetncia daqueles
que deveriam gerir a coisa pblica, principalmente, percebemos a
atualidade do Elogio da Loucura, que, em todo momento, retrata a
inconsistncia da personalidade humana, apesar dos ditos evoluo e
progresso cultural. Por isto, principalmente, um texto eterno. E isto at
mesmo por oportunismo do autor, que nada mais fez do que retratar, sem
grandes expectativas, o ser humano, no de um modo amargo, mas de um
modo sardnico, irnico e analisado, quase sempre, s raias do cmico.
Acomodou-se ele, atravs da sua produo maior, na realidade decepcio-
nante da verve humana e suas quase sempre funestas consequncias. Sem
pessimismo aparente, mas com grande dose de mordacidade.
A obra erasmiana apresenta a loucura como uma deidade, que
frutifca a vida e coordena aes humanas. Falando na primeira pessoa, a
loucura eviscera, de forma mordaz, a hipocrisia e a mediocridade sempre
assentes na personalidade humana. Tudo porque ...os jovens mudam
inteiramente de carter logo que principiam a fcar homens e, orientados
pelas lies e pela experincia do mundo, entram na infeliz carreira da
sabedoria. Constatao, acompanhada depois de ela prpria, a loucura,
ser a amenizadora da velhice, porque os velhos so duas vezes crianas.
As concluses do Elogio da Loucura nem sempre so bvias ou se
dispem apenas a causar escndalo. Agregam cismares e estudos de
convenincias, porque os homens tm em si aumentadas ...muito mais a
dose das paixes que a da razo. verdade que o autor s vezes peca,
como o caso da demonstrao, secularmente antecipada, de um
chauvinismo injusto, quando garante: ...a mulher sempre mulher, isto
, sempre louca, seja qual for a mscara sob a qual se apresente, mas
amenizando a possibilidade de qualquer amuo feminino, uma vez que a
loucura tambm mulher.
Nos seus alinhavos mais rspidos, a loucura do Elogio analisa a
tirania, a vaidade, a volpia, a tolice, a devassido, a idiotice, a alegria, a
tristeza, o tdio, a honestidade (...vocbulo sem signifcado para mim...),
a dissimulao (Todos eles so de humor volvel e intratvel, alm de
serem penetrantes demais: tm olhos de lince para descobrir os defeitos
dos amigos, e de toupeira para ver os prprios.), o fngimento, a
imperfeio humana (Falo aqui unicamente dos homens, dos quais no
h um s que tenha nascido sem defeitos...), a beleza, a feiura, a traio
conjugal e mais, muito mais, num dos mais bem sucedidos estudos da
verdade essencial humana.
Sempre com fna ironia, o autor, pela boca da loucura, disseca a
corrupo, a adulao, o amor-prprio e seus acabamentos, as artes, a
sabedoria, a guerra e suas derivaes, a estupidez humana e a adaptao
dos homens aos seus semelhantes. O texto, dinmico e agradvel, tem
tempo at para analisar espanto! a prudncia, que no se acomoda aos
entendimentos de infmia, desonra, inveja, fraudes, confitos. Tanto
quanto serve ao riso, quando aspectos mais solenes so considerados
aureolados por fna ironia, como o caso da cincia, da indstria, da
gramtica, da retrica, da medicina, dos rbulas e dos jurisconsultos. Para
concluir, apoderando-se do entendimento de Pitgoras, que ...o homem
o mais infeliz de todos os animais, pois todos os outros esto satisfeitos
de fcar nos limites prefxados pela natureza, enquanto s o homem se
esfora por ultrapass-los.
Importante frisar que a loucura do Elogio no aquela que motiva
os terapeutas e patologistas. No a loucura das vaidades de Alexandre,
nem a promscua sandice de Nero e Calgula (aqueles uns, que ora
mataram a me e a esposa e ora nomearam seu cavalo senador, o que
poderia at ser razovel, nos dia de hoje, se considerssemos situaes
especfcas). No , tambm, a loucura de Erasmo de Roterdam, a
avassaladora ndole conquistadora de Gengis-Khan ou a sutileza de naja
de Lucrecia Brgia. Tambm, a loucura do Elogio no se molda ldica
desfaatez que envolveu Carlota, a imperatriz do Mxico, saudosa do seu
Maximiliano, e nem ao desgosto da sua xar, Carlota Joaquina, com seu
possvel furor uterino descontrolando uma paixo inexistente pelo Brasil.
Como no , tambm, a loucura do Elogio, o blico messianismo de
Hitler, de Idi Amim Dada ou de Sadam Hussein. No , enfm, uma
loucura assassina e anacrnica, mas aquela outra loucura, diluda, quase
peripattica, sempre loucura de todos ns. No sendo, portanto, a loucura
decantada pelo Elogio aquela outra, tambm no ela aquela menor,
500 anos de loucura elogiada ___________________________________________________ Adolfo Maurcio Pereira 161
162 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
vazada por apenas ...erros do esprito e do senso. Os loucos, segundo o
autor, so intensos, tanto que ...s vezes, um louco que se ri de outro
louco, divertindo-se ambos mutuamente.
, a loucura de Erasmo, aquela que, cnica, nos faz descrer de tudo
aquilo que temos nomeado progresso, principalmente nas especifcaes
humanas, como o caso da cultura, da moral e da educao. O livro nos
alerta e nos faz constatar a atual desvalorizao da vida, a inconsistncia
dos valores e o liberalismo moral, sempre justifcados pela hipocrisia.
Moderno, ento, o Elogio da Loucura? Sim, porque os homens
continuam se desrespeitando, porque os homens continuam alimentando
limites por demais maleveis, porque os homens no se contentam com
ser apenas pecadores humanamente pecadores! mas preferem
engrossar-se na situao de bandidos e sacripantas.
por isto que os homens continuam se matando por nonadas. E os
reis continuam boiando em guas de Narciso. E os papas continuam
redimindo os grandes pecadores e atemorizando os pequenos. E os
presidentes continuam instituindo liberalidades, desde que garantam o
apoio de seus apaniguados, quando tudo fca possvel. E os parlamentares
e congressistas continuam rechaando as normas, preocupados apenas
com favorecimentos pessoais. E os sbios continuam teorizando de forma
pessoal e direcionada. E os jurisconsultos continuam estabelecendo
jurisprudncias de ocasio. E os desembargadores e juzes continuam
vendendo sentenas. E o povo continua aliciado e aliciador, corrupto e
corruptor, fazendo as verdades erasmianas cada vez mais atuais e
oportunas, mesmo depois destes longos quinhentos anos de progresso.
O cenrio, apenas mudado, e tudo como dantes no quartel de Abrantes.
Vigaristas e vigarices imperando, comandando o sempre efciente laissez-
faire dos males pacifcados.
Apesar de toda a circunstancial virulncia do Elogio da Loucura,
Erasmo de Roterdam, por certo, foi o criador daquela mxima que diz
que de poeta e louco todos ns temos um pouco. Isto por ter conseguido,
de maneira magistral, associar os desgnios da loucura sensibilidade,
atravs do desbravamento dos intrincados caminhos desta insensatez
chamada homem.
Bibliografa
Roterdam, Erasmo de. Elogio da Loucura. Col. Universidade, Introduo
de Antonio Olinto, traduo de Paulo M. Oliveira, Rio de Janeiro: Edies
de Ouro, s.d.p.
Roterdam, Erasmo de. A educao de um prncipe cristo, em "Conselho
aos governantes", traduo de Vanira Tavares de Sousa, Braslia, DF:
Senado Federal, n 15, 2003.
500 anos de loucura elogiada ___________________________________________________ Adolfo Maurcio Pereira 163
Cinema __________________________________________
TIRO CERTO CONTRA A
MESMICE E A CENSURA
Paulo Augusto Gomes*
Andrea Tonacci nem brasileiro . Nasceu em Roma, em 1944, e
veio para o Brasil quando tinha 9 anos, radicando-se em So Paulo. L se
iniciou no cinema, dirigindo seu primeiro curta-metragem, Olho por
Olho, aos 22 anos, ao mesmo tempo em que comeou a fotografar flmes
de amigos entre outros, Documentrio de Rogrio Sganzerla e O
Pedestre, de Otoniel Santos Pereira. J em 1968 havia se aproximado de
cineastas mineiros, entre eles Geraldo Veloso, que montou seu Bl Bl
Bl, com o qual Tonacci concorreu, sem ganhar, no primeiro e nico
Festival de Cinema de Belo Horizonte. A convivncia com a capital
mineira resultou na realizao de seu primeiro longa-metragem: Bang
Bang, todo flmado na cidade, exceo de uma nica sequncia.
Era o ano de 1971 e a censura do governo Garrastazu Medici foi
a mais violenta que o Brasil j conheceu. Artistas davam tratos bola
para driblar a vigilncia dos censores, para quem qualquer tipo de audcia
levava a cortes brutais ou mesmo interdio de obras de arte. Era preciso
* Cineasta, membro do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro.
166 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
burlar essa vigilncia e fcou famoso o episdio ocorrido com Chico
Buarque, que criou o personagem Julinho da Adelaide, passando a assinar
algumas de suas msicas com esse pseudnimo. O cinema trazia
complicaes maiores: as imagens jogadas na tela deixavam muito poucas
dvidas sobre a inteno dos autores e somente obras de cunho patritico
e ofcialesco, como Independncia ou Morte, escapavam inclumes. Foi
quando Rogrio Sganzerla lanou seu O Bandido da Luz Vermelha,
decretando a nova palavra de ordem: Quando a gente no pode fazer
nada, a gente avacalha. Era cada vez mais difcil falar da realidade
imediata, a no ser atravs de metforas pesadssimas, muitas vezes
indecifrveis at para seus prprios criadores. A idia de Sganzerla
frutifcou e a ela aderiu toda uma gerao mais nova, constituda pelos
chamados flhos do Cinema Novo: Jlio Bressane, Elyseu Visconti
Cavalleiro, Neville dAlmeida, Sylvio Lanna, Geraldo Veloso, Andr
Luiz Oliveira, Jos Agrippino de Paula, Joo Silvrio Trevisan e outros
inclusive Tonacci. Estava criado o grupo que fcou conhecido como
Cinema Marginal, denominao que muitos de seus integrantes
recusavam a priori.
Subitamente, o cinema brasileiro se viu invadido por uma coleo
de personagens boais, irracionais e esdrxulos. Claro, as histrias se
que se pode usar o termo, no caso que viviam tambm escondiam
outras metforas, mas a simples exposio de fguras to grotescas
deixava evidente que no se podia falar livremente o que se quisesse.
Talvez um paralelo possa ser estabelecido com a ttica de alguns jornais,
a exemplo de O Estado de S. Paulo que, censurado, colocava no lugar
das matrias proibidas receitas culinrias. Foi nesse panorama que surgiu
Bang Bang.
Ligado aos mineiros, Tonacci elegeu Belo Horizonte e arredores
como cenrio de seu flme. Seus amigos ajudaram-no a selecionar um
elenco esplndido, tendo como base atores pertencentes aos quadros de
teleteatro da extinta TV Itacolomi (Antonio Naddeo, Thales Penna) e do
teatro e cinema mineiros, em termos amplos (Ezequias Marques, Jos
Aurlio Vieira, Milton Gontijo, Luiz Otvio Madureira Horta). De fora,
vieram apenas Paulo Csar Pereio, sua namorada Jura Otero (mineira,
por sinal) e Abrao Farc. Geraldo Veloso ocupou-se do som e seu irmo
Tiago fez a fotografa. A msica foi toda retirada de discos, inclusive das
trilhas sonoras de outros flmes, como a que Henry Mancini criou para
Hatari! e a de Michel Legrand para Crown, o Magnfco ou ento eram
usados temas jazzsticos e trechos de canes de bandas de rock famosas
a exemplo de In-a-Gadda-da-Vida, do Iron Butterfy. Era uma equipe
reduzida, mas afada. Tonacci, em entrevista concedida muitos anos aps
a realizao do flme, declarou que havia escrito um roteiro volumoso,
que no pde ser flmado por razes fnanceiras. quela poca, no havia
Embraflme ou leis de incentivo que ajudassem a bancar um projeto; em
se tratando do Cinema Marginal, que mal conseguia espao para sua
exibio quase nunca nos circuitos comerciais, poucas vezes nos
alternativos as difculdades aumentavam. No fazia sentido pensar em
superprodues, nem mesmo em flmar em cores; eram obras baratas, em
preto-e-branco, onde no era comum se fazer mais de um take para cada
plano.
Bang Bang no se interessa em contar uma histria. Fazendo uso
constante do plano-sequncia, em que toda uma ao se esgota antes que
acontea o corte, Tonacci cria alguns personagens marcados pelo humor:
um tipo rabugento, vivido pelo ator Paulo Csar Pereio, que em vrios
momentos veste uma mscara de smio idntica s usadas no flme O
Planeta dos Macacos; um trio de bandidos, composto por um cego que,
a todo momento, d tiros a esmo, um outro que se veste de mulher e
come compulsivamente tudo o que cai em suas mos e um terceiro, que
fuma cigarrilhas e se penteia sem parar; uma mulher, que o homem-
macaco conhece em um bar, com quem anda de carro no caminho de
Ouro Preto ela, tambm uma danarina muito competente (como era a
atriz Jura Otero, que viveu a personagem) que, vestida maneira
espanhola, executa uma coreografa no alto de um edifcio (nica
sequncia flmada em So Paulo). H outros, de importncia menor, como
o bbado que atormenta o homem-macaco no bar em que est a mulher.
Todos esses tipos passam por situaes variadas, que no levam a lugar
algum: nada impediria que a montagem dessas sequncias fosse
modifcada, uma vez que cada uma delas se esgota em si mesma.
Tiro certo contra a mesmice e a censura ____________________________________________ Paulo Augusto Gomes 167
168 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Nada ou muito pouco sabemos de cada um deles: suas
motivaes, embasamentos psicolgicos, maneira de ser e viver. Sobre o
sujeito rabugento, somos informados, por uma manchete de jornal que
um zelador l, que Macaco comandou outro assalto. E s. Ao que tudo
indica, sua quadrilha formada exatamente pelo trio de bandidos. Mais
que personagens, propriamente, Tonacci constri tipos e usa a tcnica da
repetio como uma de suas ferramentas. O cego, magistralmente vivido
por Ezequias Marques, atira a todo instante, sem que se saiba por qu; ele
nem ao menos se justifca, pois no tem falas no flme. No bar, Pereio e
Jura Otero iniciam vrias vezes uma conversa, em funo de erros
cometidos na incluso de frases mas isso no conduz a nada, nem
explica coisa alguma.
Foi preciso que um italiano viesse a Belo Horizonte para ensinar
aos mineiros como flmar sua capital. A brilhante fotografa de Tiago
Veloso j comea chamando a ateno: a sequncia que abre Bang
Bang, quando o homem-macaco irrompe no txi que trafega tranquilamente
por uma avenida da cidade, transformando a vida do motorista em um
inferno particular, ao iniciar uma discusso azeda e hilariante em
funo do caminho escolhido. Belo Horizonte j entra em movimento no
flme, sensao que ir se prolongar em diversos outros momentos.
Tambm essa discusso do homem-macaco com o chofer de taxi
retomada mais frente do flme, em termos quase idnticos. Na verdade,
foram rodados dois takes, sendo que o segundo montado em meio da
narrativa, com praticamente uma nica diferena: ao entrar novamente no
veculo, o homem-macaco ouve, do motorista desesperado, a pergunta:
Voc de novo?!?. Fica a sensao de que, para Tonacci, no havia
como escapar s agruras da vida, que o Brasil vivia naquele momento; s
restava enfrent-las.
Aps os crditos, quando fcamos conhecendo o trio de bandidos
grotescos, novamente surge Belo Horizonte em movimento, quando
Pereio, vindo da rua dos Caets, adentra a avenida Afonso Pena a p, em
direo a seu jipe, com a cmera seguindo-o em um carro. Pereio anda
pelo asfalto de uma avenida quase deserta (o plano foi flmado em uma
manh bem cedo, provavelmente em um domingo). So outros tempos da
cidade, quando a Afonso Pena admitia que veculos fcassem estacionados
no meio da avenida, em 45 graus. Ele entra no jipe, parado em frente ao
ex-cine Arte Avenida e comea a trafegar em direo ao Parque Municipal.
Na trilha sonora, nada de dilogos: apenas os tambores que marcam o
incio de In-a-Gadda-da-Vida. A sequncia totalmente solta, no se
explica mas de uma beleza estonteante. Sua gratuidade sua razo de
ser, to boa e vlida (para usar um termo prprio da poca) como qualquer
outra. Um sinal fecha, Pereio para o carro e, com ele, o veculo que
transporta a cmera. Em seguida, a sequncia se encerra, sem que se
entenda por que o personagem escolheu aquele caminho onde foi parar
ou qual o motivo daquele trajeto. Tonacci no est a fm de explicar nada.
Se que cabe a expresso, trata-se de cinema puro, efciente e muitssimo
bem executado. Cito dois momentos do belo texto de Paulo Emilio Salles
Gomes sobre Bang Bang: A efccia com que (Tonacci) constri a
gratuidade e a desordem acabam exluindo do flme essas duas
caractersticas. E mais: A liberdade godardiana pode ser liberadora.
Essa, seguramente, uma chave para se entender o vio da obra.
Num primeiro momento, Bang Bang parece um flme primitivo,
vinculado aos primrdios do cinema. Para isso, contribui a personagem
do mgico, vivido por Thales Penna, que executa vrios desaparecimentos
e reaparecimentos com os demais personagens, maneira do francs
Georges Mlis. Mas essa apenas a primeira impresso. Fica evidente
para o espectador que est diante de um autor refnado, que investiga e
refete sobre as possibilidades desse mesmo cinema. o que fca claro
diante da presena ostensiva da cmera, que se flma em vrios momentos:
no espelho, quando o macaco faz sua toalete; ao vivo, quando toda a
equipe tcnica flmada, no momento em que Pereio e Jura Otero saem
no jipe pelo mato afora; e na estrada, quando a sombra da cmera e de
Tiago Veloso, que a opera, vista e flmada, refetida no asfalto. Bang
Bang se coloca como uma aposta de Tonacci, quanto s possibilidades e
limites da imagem cinematogrfca, evidente ainda no plano fnal, no qual
a banda sonora ganha a imagem, enquanto risadas so ouvidas em off.
Em entrevista gravada, Tonacci conta como seu espesso roteiro foi
sendo gradativamente minado pela realidade que explodia volta da
Tiro certo contra a mesmice e a censura ____________________________________________ Paulo Augusto Gomes 169
170 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
equipe nas locaes. E como sua histria foi desaparecendo em funo
de uma improvisao construda a partir da estreita convivncia de
tcnicos e atores: uns aprenderam a maneira de ser dos outros e, com
isso, fcou mais fcil e fuente o surgimento de ideias. Mas ele deixa claro
que nada aconteceu ao acaso; que, mesmo por trs de um aparente
descosimento das situaes, existem signos bsicos, cuja totalidade
ou buracos, como ele os chama deve ser preenchida pelo espectador.
Cita ele como exemplo o trio de bandidos, nos quais est refetido o poder
cego, boal e arrogante. No difcil constatar isso. Numa das mais
brilhantes sequncias do flme, o carro com esses bandidos visto a
trafegar noite pelo Viaduto Santa Tereza, iluminado apenas por um
ponto de luz errtico, no interior do veculo, e pelas luminrias dos postes.
uma viso fantstica que a fotografa de Tiago Veloso oferece, com os
refexos das lmpadas escorrendo pela superfcie espelhada do veculo,
em meio ao negror noturno. Metfora mais que evidente do difcil
momento poltico que o Brasil atravessava.
Nos flmes do Cinema Marginal, a morte tambm como
metfora uma presena constante, s vezes a partir do prprio ttulo
(Matou a Famlia e Foi ao Cinema). Bang Bang no se furta a essa
infuncia mas ri dela o tempo todo. Os tiros que o cego desfere a esmo
no acertam ningum (embora uma brevssima cena mostre Pereio
baleando um homem que o espectador mal identifca, no telhado de um
edifcio) e, ao fnal, quando o velho automvel na estrada como que
capota e pega fogo, pelo menos um dos bandidos visto imobilizado na
pista, enquanto o cego tateia pelo cho, atordoado. Mas logo em seguida
o bandido aparentemente morto pe-se de p e se junta aos demais. O
mal parece indestrutvel.
A montagem de Roman Stulbach facilitada pelo parti pris adotado
por Andrea Tonacci. Com o uso insistente do plano-sequncia, sobra
pouco trabalho ao editor: apenas colar as cenas, umas aps as outras, sem
deixar sobras os chamados tempos mortos. Convm no esquecer que
Bang Bang um flme de ao e a regra clssica para esse tipo de obra
nunca esmorecer o ritmo. A isso, talvez, tambm possa ser creditado o
fato de guardar, imune ao do tempo, todo o seu frescor. Junte-se
ainda o fato de que Tonacci, como bem lembrou Paulo Emilio Salles
Gomes, um exmio flmador de automveis, de dentro e de fora, parados
ou em movimento.
Resta dizer que a mistura explosiva de Bang Bang confundiu
totalmente os censores de ento. Sem saber o que cortar no flme afnal,
no h referncias polticas explcitas e as cenas de nudez se resumem a
uma breve exposio de um seio de Jura Otero e Pereio, visto de costas
os vigilantes da moral e dos bons costumes optaram por liber-lo na
ntegra para exibio no Brasil, ao mesmo tempo em que proibiam sua
exportao. Procurando esconder dos estrangeiros o pas que se mostrava
por inteiro sua volta, marcado pela prepotncia e estupidez, acabaram
por transformar Bang Bang em um flme mtico, cuja aura e fora s
fzeram aumentar, com o passar do tempo.
Tiro certo contra a mesmice e a censura ____________________________________________ Paulo Augusto Gomes 171
Teatro __________________________________________
O OFCIO DO TEATRO
E OS PODERES
Pedro Paulo Cava*
Para o ser se tornar humano preciso
encontrar primeiro o teatro.
Augusto Boal
Sempre disse que o teatro mais que uma profsso: um ofcio
ritualstico quase sagrado mas inevitavelmente profano. Aqueles que
o abraam, terminam por se acasalar com a atividade de uma forma
irreversvel e o fazem movidos pela paixo.
Seja de que lado estejamos, dentro ou fora do palco, o teatro nos
torna mais humanos, mais compreensivos, mais generosos.
uma arte da generosidade por excelncia.
Mas nem por isso somos menos crticos e ferozes quando se trata
de reagir a qualquer tentativa de intimid-lo, confn-lo, censur-lo ou de
desrespeit-lo.
* Dramaturgo.
174 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Tratar com desprezo ou indiferena o ofcio do artista cnico no
exerccio de sua profsso, soa como uma declarao de guerra. No foi
toa que lutamos por anos a fo no Congresso Nacional, para que a profsso
fosse reconhecida e tivesse o lugar que merece no rol das profsses
legalmente exercidas. Isso em plena ditadura, lutando contra as vrias
censuras (policial, econmica, poltica, institucional), impostas ao pleno
exerccio de nossa atividade e ao nosso meio de comunicar com o mundo:
a palavra, nossa arma mais letal.
Historicamente o artista cnico tem um perfl diferente dos demais.
Tem uma funo social e poltica comprometida com a comunidade para
a qual fala, j que o exerccio de uma arte coletiva como o teatro e a
caracterstica principal do jogo dramtico o confito nos faz conviver
diariamente com o dissenso, o contraditrio, a crtica, a realidade e a
transmutao dessa mesma realidade em movimento, imagem e palavra.
Teatro dialtica porque a vida assim. Tese, anttese, sntese... parece
simples, mas sabemos o quanto artesanal a criao teatral ou qualquer
criao artstica digna desse nome.
Por natureza somos artesos. Depois de amassado, esmerilado, burilado,
tendo dado forma ao barro teatral que podemos dizer que criamos arte,
mas temos conscincia do quanto efmero. Nunca est acabado, pronto,
encerrado. Nossa arte vive em processo, assim como a Humanidade.
A escuta e o olhar so primordiais nesse processo criativo. Saber
escutar o que outro diz, saber argumentar, criticar, contrapor e receber
com humildade as crticas e elogios dos companheiros de trabalho e do
pblico, e no entender isso como alguma forma de poder, realmente nos
faz diferentes de todas as outras atividades humanas. Nosso ofcio forte/
frgil e efmero, como a prpria vida.
Por isso mesmo, ao ator importa pouco o exerccio do poder. Para
ns, o que d poder a um artista a qualidade do trabalho que ele realiza
e no um ttulo, um cargo, um posto de mando em organismos e instituies
em um mundo cada vez mais competitivo, cruel e pouco generoso.
Para estas funes existem os burocratas da cultura. Esto sempre
de planto e, como baratas, ns os encontramos sempre dentro de
alguma gaveta, armrio ou gabinete. Ali parecem reinar absolutos e deitam
falatrios, expedem memorandos, redigem regras, vociferam conceitos
e escrevem tratados e projetos que nunca saem do papel. No fundo so
seres inseguros e precisam exercitar o poder a qualquer custo porque
no compreendem a alma do artista. Nunca experimentaram o prazer e a
angstia de buscar formas e espaos para se exprimir, nunca exercitaram
o saboroso gosto do ato de criar, de ousar, de transgredir. Chegam aos
poderes e se agarram a eles como nufragos que precisam se manter na
crista da onda, mostrando suas cabeas e pontifcando aos quatro cantos e
aos incautos que perdem o tempo de escut-los.
a sndrome dos pequenos poderes.
Prepotentes, se esquecem de quo transitrio o poder em qualquer
instncia da atividade humana. Apenas esto transitoriamente, enquanto
o artista simplesmente . Parece que no enxergam esta transitoriedade
e sonham em se eternizar por detrs das escrivaninhas e das cadeiras de
espaldar alto que lhes do a sensao divina de poder conduzir os rumos
da arte. Mera vaidade e pura iluso.
Vaidade ainda pior quando o ocupante do poder pensa que a
histria comea com ele e passa a jogar na lata de lixo tudo o que foi criado
antes, com total desprezo pelo que lhe antecede ou pelos que abriram o
caminho para que o burocrata pudesse hoje estar ali sentado em seu delrio
monrquico.
Claro que tambm somos vaidosos, mas no prepotentes. Ningum
pode se julgar o detentor da verdade ou o dono da histria em um terreno
to subjetivo como o da criao. Mesmo porque a histria s reconhecida
a posteriori. Mas nossa vaidade no passa pelo exerccio arbitrrio de
qualquer poder outorgado por atos ou desmandos ou por uma simples funo
administrativa. Somos vaidosos quando nos aplaudem, reconhecem nosso
talento, nos colocam sob as luzes dos refetores, nas pginas da mdia e nos
recebem como seres sensveis e criativos, como poetas da voz, movimento,
ideia, sonho, imagem e emoo. Nossa maior e melhor paga o pblico
que aplaude de p o nosso ofcio dirio porque de alguma maneira tocamos
suas sensaes, seu ntimo e os embalamos em nossos sonhos.
Por tudo isso, nossa relao com os poderes confitante. Sempre
que o poder se instalou em qualquer instncia das relaes humanas com
O ofcio do teatro e os poderes ______________________________________________________ Pedro Paulo Cava 175
176 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
arrogncia, com desprezo pelo outro, com virulncia, com ameaas
liberdade de criar, pensar, expressar e viver; sempre que o poder se furtou
ao dilogo franco com os artistas, se instalaram as crises. sempre nesta
hora que vemos o quanto os artistas se unem, mobilizam, tm prestgio,
espao, adeptos, e principalmente como sabem lutar por suas convices
e pelo direito de mostrar o que criam, com a dignidade que o ofcio que
exercem com muito sacrifcio e poucos ganhos materiais lhes d.
Os artistas da minha gerao, ainda nos estertores da ditadura,
aprenderam e ensinaram os fundamentos das artes cnicas. Apontaram as
vrias tendncias, as vertentes, as tcnicas mltiplas do artista cnico,
as estticas e a histria como ponto de partida para uma refexo mais
profunda sobre o duro ofcio que , de incio, desejo e pulso, e depois se
torna uma escolha preferencial de vida.
Nunca nos descuidamos de discutir a tica no exerccio da profsso.
Dizemos que preciso estar atento ao mundo, que uma arte s se torna forte
e importante e viva para a sua comunidade se ela antenada na realidade,
se no se aprisiona por normas ou conceitos pr-estabelecidos. E o que
mais importante: ensinamos que a arte que fazemos transformadora e que
o nosso ofcio impe, de tempos em tempos, embates frontais com as vrias
instncias de poder, porque a histria das artes cnicas, em mais de trs
milnios, sempre foi pontuada por confitos entre a liberdade de duvidar
de tudo e de todos, especialmente das verdades tidas como imutveis, das
pessoas aparentemente irremovveis e a nossa disposio permanente de
voar para alm dos limites do real, do cristalizado.
O teatro em si o antidogma.
O espetculo que aprendemos a criar e no qual acreditamos
plural em sua simplicidade. Um somatrio de tendncias, linguagens e
abordagens, mas principalmente o lugar para ser feliz no ato de transmitir
e de receber vivncias. Por isso a minha gerao se fez e se faz na prtica do
dia-a-dia, na mistura das angustias, ansiedades, descobertas e frustraes
prprias das almas sensveis e criativas.
Estamos cada vez mais convictos de que o que nos move a paixo
pelo ofcio e no a vaidade de aparecer como nicos donos de uma prtica,
uma verdade, uma esttica.
Por isso nos d imenso prazer a convivncia com artistas que pensam
de A a Z, to diferentes em sua maneira de ver o mundo e de reproduzi-lo
em forma de arte, quanto semelhantes na paixo pelo que fazem.
Por isso tambm que em todos estes anos de profsso, encontramos
sempre os animais teatrais, artistas que buscam, de algum modo, um
canal de expresso e comunicao com o mundo, uma forma de realizao
pessoal e de exercitar a sensibilidade e a poesia, aprendendo a conviver
com as diferenas, com o espanto, com o imprevisvel, com o complexo
mundo interior de cada um. Essa experincia nica, inesquecvel porque
vivencial.
Arte exerccio do prazer e no do poder.
O artista cnico sempre foi o porta-voz da indignao humana.
Como na pea de Guarnieri, quando subtraem ao teatro todo o entorno do
espetculo, resta ainda na voz e no corpo do ator um grito parado no ar.
Acreditamos que o caminho escolhido por esta gerao qual
perteno rendeu bons frutos, apesar da imensa luta que at hoje travamos
contra as incompreenses humanas e contra a intolerncia, essa marca
registrada dos poderosos desprovidos de qualquer sensibilidade.
Mas atuando, criando, se indignando, sendo aplaudidos pelos palcos
do mundo, isso nos d uma confortvel sensao de que escolhemos, dentre
os muitos, um dos caminhos possveis para viver uma era de tanta violncia
contra a livre manifestao do pensamento e da criao artstica.
Mas nosso ponto de partida, a cada etapa, ser sempre a dvida,
porque ela o fundamento do ofcio do ator, mola propulsora em direo
ao ato de criar. Porque, certeza mesmo, s se tem da efemeridade da arte
e da vida.
O ofcio do teatro e os poderes ______________________________________________________ Pedro Paulo Cava 177
Msica _________________________________________
A FILARMNICA
E A LITERATURA
Paulo Srgio Malheiros dos Santos*
A temporada de concertos da Orquestra Filarmnica de Minas
Gerais apresentou, em 2008, uma srie de composies inspiradas em
obras literrias. Este artigo, atendendo sugesto de alguns leitores,
focaliza cinco compositores da srie: Carlos Gomes, Antonin Dvok,
Manuel de Falla, Darius Milhaud e Hector Berlioz.
O brasileiro Carlos Gomes, o mais conhecido msico brasileiro do
sculo XIX, , certamente, uma das expresses mais amplas do nosso
romantismo. Sua famosa protofonia de O Guarani foi escrita em 1871,
por ocasio da Exposio Industrial de Milo, para substituir o pequeno
preldio original da famosa pera. Consagrada pelo pblico brasileiro
como smbolo patritico, um Segundo Hino Nacional, esta partitura ainda
hoje desperta admirao e entusiasmo por sua fora, grandiosidade,
inspirao e originalidade meldica irresistveis. Carlos Gomes, admirado
e elogiado por Verdi, tornou-se a primeira personalidade musical brasileira
reconhecida internacionalmente. O romantismo musical brasileiro elegeu
a pera como centro de ateno e o teatro como o objetivo supremo dos
* Pianista, professor de Histria da Msica da UEMG e doutor em Literatura pela PUC-MG.
180 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
esforos criativos de muitos compositores. Em 1860, fundava-se a
Imperial Academia de Msica e pera Lrica Nacional, onde se
representaram as primeiras peras de autores brasileiros. Nesse ambiente,
Carlos Gomes, graas ao gosto predominante do momento e a par de seu
talento natural para o gnero operstico, obteve seus primeiros sucessos.
Aos 25 anos, estudando no Rio de Janeiro, comps sua primeira pera, A
noite do castelo. Pouco depois, o triunfo de Joana de Flandres lhe
garantia o aperfeioamento na Europa, com uma bolsa do governo
imperial. Suas outras sete peras confrmaram o acerto do apoio dado ao
msico por dom Pedro II.
Carlos Gomes nasceu em Campinas (SP), a 11 de julho de 1836,
em famlia pobre, mas com um rico ambiente musical. Entre outros
irmos msicos, destacou-se, comeando a compor bem cedo hinos e
modinhas. Aos dezoito anos, j estreava sua primeira Missa, apresentada
em uma igreja local. A irreprimvel genialidade levou-o, apesar de
muitos obstculos, primeiro a So Paulo, depois ao Rio e, fnalmente,
Itlia. Uma trajetria brilhante, mas tambm um roteiro de dvidas e
angstias. Frequentemente, o compositor enfrentou problemas com
libretistas e editores; pagou caro pela m escolha dos temas de suas
peras e pelos muitos desacertos na vida pessoal, sofrimentos agravados
por um temperamento arrebatado e superemotivo. Na vida e na arte no
foi um conformista. Depois do sucesso de O Guarani, sua obra apresenta
um esforo de superao tcnica, no tratamento vocal e na
orquestrao.
Carlos Gomes s voltou defnitivamente ao Brasil em 1896, quando
foi convidado a dirigir o Conservatrio do Par, ainda em plena riqueza
da borracha. Foi recebido como um dolo, mas j estava doente e morreu
cinco meses aps sua chegada, aos sessenta anos.
A consagrao lendria do Guarani, no Scala de Milo, na noite de
19 de maro de 1870, repercutiu por toda a Europa. Peri cantou (em
italiano) at para o tsar, em So Petersburgo. O indianismo de Carlos
Gomes, maneira de Jos de Alencar, cujo clebre romance serve de
base ao libreto, mostra-se, evidentemente, apenas lrico, conformado
esmagadora avalanche musical italiana da poca, sem preocupaes
histricas ou etnogrfcas. Entretanto, deve-se lembrar, aqui, o pioneirismo
do romance de Jos de Alencar na busca de um particularismo literrio
caracterizador da nacionalidade brasileira. A fco do escritor cearense,
com seus romances criadores de mitos e smbolos explicativos da nossa
terra, ocupa um lugar de destaque na ento importante dialtica,
estabelecida no fnal do sculo dezenove, entre o nacional e o cosmopolita.
H, em sua obra, certamente, uma idealizao excessiva e romntica da
natureza, do ndio, do sertanejo, do gacho: a terra sempre prdiga e
exuberante; o homem sempre forte e corajoso. Mas o escritor criava uma
lngua defnitivamente diferenciada do modelo portugus, inclusive pela
utilizao de vocbulos indgenas. No prefcio ao livro Sonhos douro
(1872), o romancista pergunta: O povo que chupa o caju, a manga, o
cambuc e a jabuticaba, pode falar uma lngua com igual pronncia e o
mesmo esprito do povo que sorve o fgo, a pera, o damasco, a nspera?
Uma nova percepo da realidade brasileira surgia, com o ambicioso
projeto nacionalista articulado por Jos de Alencar, que testemunhava a
emergncia de uma indita maturidade cultural. Se Peri (como observa
Manuel Bandeira) era bem pouco ndio, tornou-se, de fato, muito
brasileiro... O Modernismo Nacionalista do comeo do sculo XX
reconheceria o pioneirismo de Alencar; um dos lderes do movimento,
Mrio de Andrade admirava muito o autor de O Guarani e, pelo tanto
que Macunama herdara de Iracema, pensou em dedicar sua rapsdia
memria do escritor romntico.
Trinta anos depois da estria de O Guarani fca, na Amrica do
Norte e no nascer do sculo XX uma lenda indgena domina, tambm, a
Sinfonia n 9 op. 95, de Antonin Dvok (1841-1904). Esta sinfonia foi
apresentada recentemente, em Belo Horizonte, pela Orquestra Sinfnica
de Minas Gerais. Composta em Nova Iorque para celebrar o quarto
centenrio da chegada de Cristvo Colombo s Amricas, esta a ltima
das sinfonias do compositor e, tambm, a mais popular. Foi publicada
como Sinfonia n 5, segundo a edio de Fritz Simrock, e assim fcou
conhecida at a dcada de 1970. A atual numerao segue a ordenao
cronolgica estabelecida por Jamil Burghauser. O ttulo Do novo mundo
sugere o aproveitamento do folclore americano, quando, na verdade,
A flarmnica e a literatura _____________________________________________Paulo Srgio Malheiros dos Santos 181
182 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
embora inspirada em melodias indgenas e nas canes de Stephen Foster,
a sinfonia retrata muito mais a saudade de um exilado eslavo lembrando-
se da ptria longnqua. Dvok diria sobre ela: Simplesmente escrevi
temas meus, inspirados nas peculiaridades das msicas dos negros e dos
peles-vermelhas, servindo-me dos recursos harmnicos, rtmicos,
contrapon tsticos e das cores da orquestra moderna.
O primeiro movimento, Adagio. Allegro molto, apresenta uma frase
de arpejo na trompa, respondida pelos obos e pelas clarinetas. De carter
nostlgico, tipicamente dvokiano, retomada mais ou menos ostensiva-
mente em todos os outros movimentos da sinfonia, essa frase constituir
o tema cclico de toda a obra. Um segundo tema nas fautas e obos, em
alegre ritmo de polca, traz o modo menor natural, tipicamente
americano.
Como milhares de leitores do fnal do sculo dezenove, Dvok
encantou-se com a poesia narrativa de Henry Longfellow (1807-1882),
escritor americano, muito amigo do imperador brasileiro D. Pedro II. O
segundo movimento da sinfonia Novo Mundo, Largo, inspira-se na lenda
das cataratas de Minnehaha, extrada de um poema de Longfellow. Para
satisfazer os espritos da cascata, todos os anos o chefe Hiawatha deveria
sacrifcar-lhes uma jovem. Com o intuito de impedir o sacrifcio da
prpria flha, a ndia Minnehaha, gua Sorridente, atira-se, ento,
voluntariamente torrente. Cabe ao corne-ingls apresentar a clebre e
bela melodia que se popularizou como o negro spiritual intitulado Home,
sweet home.
O terceiro movimento, Scherzo: molto vivace, tambm fruto das
leituras dos poemas de Longfellow, descreve uma dana dos indgenas
nas forestas. O esprito de dana frentica fca bem presente, mas os
saltos em staccato tm muito de um scherzo beethoveniano e nenhuma
referncia msica americana.
O vigoroso ltimo movimento, Allegro com fuoco, apresenta um
novo tema introduzido pelos metais no modo menor natural e a citao
transfgurada de alguns motivos dos movimentos anteriores. Essa sntese
de elementos temticos torna a textura mais cerrada, principalmente com
o retorno fnal do tema cclico.
Desde o sucesso de sua estria, a 16 de dezembro de 1893, no
Carnegie Hall de Nova Iorque, a Sinfonia do Novo Mundo incorporou-se
defnitivamente ao repertrio das principais orquestras, mantendo
inalterada sua merecida popularidade.
Natural da Bomia, flho de um humilde arteso da aldeia de
Nelahozeves, Dvok tornou-se doutor honoris causa pela Universidade
de Cambridge, tendo sido diretor dos conservatrios de Praga e de
Nova Iorque. Muito cedo, comeou a estudar composio, enquanto
tocava violino em um pequeno conjunto de dana para garantir sua
subsistncia. Como jovem violista de orquestra, conheceu o compositor
metana, o grande nacionalista eslavo, de quem herdou o amor s
referncias e tradies musicais de seu pas. O sucesso de uma cantata
patritica rendeu-lhe uma bolsa de estudos do governo austraco e, em
Viena, Dvok tornou-se amigo de Brahms, cultivando grande apego
s formas germnicas tradicionais. Sua vasta produo inclui nove
sinfonias, peras, peas para piano, para diversas formaes
camersticas, grandes peas corais, como o Stabat Mater, o Rquiem e
o Te Deum, alm de trs concertos para violino, violoncelo e piano.
Dvok raramente usou melodias folclricas existentes; preferia criar
seus prprios temas, como um grande improvisador que segue a
inspirao do momento, de maneira rapsdica, realizando uma sntese
entre os elementos da msica nacional tcheca e a cultura musical
clssica alem.
Totalmente diversa (e j comprometida com as renovaes musicais
do sculo XX), apresenta-se a abordagem folclrica do espanhol Manuel
de Falla (1876-1946), nascido em Cdiz, de pai andaluz e me catal.
Desde cedo, o compositor familiarizou-se com a msica folclrica
andaluza na sua forma mais genuinamente popular e cotidiana. E, ao
mesmo tempo, revelou tambm uma grande atrao pelas letras. Ainda
muito criana, Manuel de Falla criou uma cidade imaginria onde havia
uma casa de pera e uma redao de jornal. Com os irmos, brincava de
teatro de bonecos e uma das obras encenadas inspirava-se na histria de
D. Quixote. At a adolescncia, seus interesses artsticos oscilaram entre
a literatura e a msica.
A flarmnica e a literatura _____________________________________________Paulo Srgio Malheiros dos Santos 183
184 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
A histria da criao do ballet El sombrero de trs picos ilustra esse
duplo interesse artstico do compositor. Em 1917, Falla apresentou em
Madrid um mimodrama intitulado O corregedor e a moleira, baseado no
romance de inspirao popular O tricrnio, de Pedro de Alarcn (1833-
1891) escritor andaluz que o compositor admirava desde seus tempos de
estudante. A adaptao fora feita por Gregrio Martnez Sierra, que
simplifcou e reduziu a ao original. Aps a primeira grande guerra, o
diretor dos bals russos, Srgio Dighilev, props ao compositor uma obra
tipicamente espanhola altura de sua produes anteriores mais famosas,
entre elas A Sagrao da Primavera, de Stravnski que Falla conhecia
de seus anos de estudos parisienses. Surge assim a verso defnitiva de El
sombrero, com a ao e a orquestra ampliadas. Em julho de 1919, a
companhia de Dighilev apresentou-a em Londres, com cenrios e
fgurinos do andaluz Pablo Picasso e coreografa do russo Leond Mssin.
A parceria deixou marcas na partitura de Falla a introduo em forma de
fanfarra foi escrita s vsperas da estria, pois o compositor queria que o
pblico pudesse melhor admirar o cenrio andaluz de Picasso. Diaghilev
sugeriu a incluso de vrios nmeros de danas tpicas e forneceu a de
Falla uma antiga zarzuela, A boda de Lus Alonso, que ouvira de violinista
cego. A direo musical da estria londrina coube a Ernest Ansermet,
nome ligado a outros tantos sucessos decisivos daquele comeo de sculo.
A ao dessa farsa popular narra as desventuras de um velho
Corregedor, o homem do sombrero. Enamorado de Frasquita, uma bela e
inocente moleira, esse juiz frequenta assiduamente o moinho, lugar de
encontro dos notveis da cidade, o coronel, o advogado e o superior do
convento, entre outros. Diante da corte do Corregedor, o moleiro Lucas
Fernandez mostra-se a princpio ciumento. Torna-se depois cmplice da
mulher e o casal se diverte em ridicularizar o velho. No fnal, aps muitas
peripcias burlescas, os vizinhos agarram o velho galanteador e o jogam,
como um boneco, para o alto. Na dana conclusiva, todo o vilarejo
comemora a derrota do pretensioso Corregedor.
A msica de El sombrero celebra a Espanha, no apenas com os
tradicionais ritmos andaluzes que Falla usara at ento, mas como um
triunfo da Jota, que se apresenta no incio e no fm da obra, emoldurando
uma profuso de motivos e de ritmos fulgurantes: o Fandango andaluz
(Dana da Moleira), a Seguidilla (Festa dos vizinhos celebrando o So
Joo), Sevillanas, Boleros, a Farruca tpica do estilo famenco (Dana do
Moleiro), Toadas murcianas. Em uma escrita ao mesmo tempo suntuosa
e refnada, a orquestra exibe todas as famlias instrumentais e, em dois
momentos estratgicos, a voz utilizada com singular maestria e
propriedade. Toda a obra respira bom humor, juventude e vitalidade, com
citaes irnicas de melodias populares e de obras consagradas: ao fnal
da Dana do Moleiro, algum bate porta e a orquestra reproduz, ento,
o clebre motivo do destino, da Quinta Sinfonia de Beethoven. Quando a
Moleira ameaa o Corregedor com um fuzil, o trompete faz ouvir o tema
de uma cano popular, No me mate, deixa-me viver em paz. Ao fnal,
enquanto a multido persegue o Corregedor, escuta-se um fragmento da
cano infantil Voc no me pega, e a orquestra sublinha esse jogo de
esconde-esconde com efcientes acentos politonais. Falla se diverte; e nos
diverte com uma partitura espanhola que mantm intacto seu irresistvel
apelo universal.
Ao lado da Espanha, a msica de jazz americana seduziu os
franceses do incio do sculo XX, como uma opo de renovao musical
e, sobretudo, uma resposta luminosa e rtmica ao exacerbado e sombrio
pathos da msica alem.
Filho de uma antiga famlia judia do sul da Frana, Darius Milhaud
(1892 - 1974) participou do clebre Grupo dos Seis de Paris, formado por
jovens e combativos artistas que, reunidos sob a liderana do poeta Jean
Cocteau, condenaram, em manifestos irnicos e sarcsticos, o subjetivismo
romntico da arte germnica, particularmente o wagnerismo. Mesmo
depois da precoce disperso do grupo, o compositor manteve-se fel
essncia dessa proposta, ao temperar sua escrita clssica, frme e clara,
com doses calculadas de violncia e ferocidade, usando os recursos da
politonalidade e de uma orquestrao delirante. Buscava a luminosidade
mediterrnea e redescobrira a objetividade vanguardista da msica do
circo, dos parques, dos cafs, do music-hall. Os antecedentes eram
propcios: Darius Milhaud esteve no Brasil, em 1917, na equipe
diplomtica do poeta Paul Claudel, tornando-se um entusiasta da msica
A flarmnica e a literatura _____________________________________________Paulo Srgio Malheiros dos Santos 185
186 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
urbana carioca, tendo aproveitado muitos temas de maxixes e choros em
obras como Le boeuf sur le toit e Saudades do Brasil. Em 1920, na
Inglaterra, impressionou-se com o jazz, entusiasmado por uma apresentao
do conjunto de Billy Arnold. Dois anos depois, durante uma visita aos
EUA, entrou em contato com o jazz de New Orleans em sua manifestao
mais legtima.
Ao compor A criao do Mundo, cujo argumento literrio fora
extrado de uma Antologia negra recm publicada por Blaise Cendars,
Milhaud acreditou encontrar no jazz os elementos estilsticos apropriados
para um bal africano, decidindo nele usar esse idioma, ainda novo para
a msica erudita. A obra descreve a criao do mundo, vista pelo olhar
de um aborgine. Composta em 1923, inscreve-se na moda europia da
poca, fascinada pelas origens remotas da humanidade, em um ambiente
dominado pelas foras incontrolveis da natureza (na mesma linha da
Sagrao da Primavera de Stravnski e de Rud, deus do amor de Villa-
Lobos). Para a primeira representao, em Paris, a 25 de outubro de 1923,
os cenrios e fgurinos foram desenhados pelo pintor Fernand Lger.
A ao desenvolve-se toda na penumbra e divide-se em cinco
sees, apresentadas aps um preldio lento, com uma bela melodia
executada pelo saxofone: o primeiro episdio descreve o caos antes da
criao. Uma fuga, cujo tema inspira-se na blue note jazzstica, acompanha
a separao da terra e do cu.
Na segunda parte, surgem as primeiras rvores e os vrios animais,
enquanto a msica apresenta solos de fauta e obo, em andamento
moderado. Os animais juntam-se em uma dana muito ritmada, na qual
dois violinos sofrem intervenes sincopadas do trompete, do piano e da
percusso. O nascimento do primeiro casal humano corresponde volta
do andamento mais moderado e de elementos meldicos j apresentados
anteriormente. O par executa a dana orgaca do desejo e a ele juntam-se
criaturas informes que bailam vertiginosamente, em andamento arrebatado.
No solo de clarinete introduz-se o tema da fuga e o saxofone rememora a
melodia do preldio. A multido desaparece, saindo em pequenos grupos.
O casal isola-se em um eterno beijo, sob a luz do luar e das estrelas,
enquanto a msica retoma a tranquilidade e paira em suspenso...
A criao do mundo apresenta uma assimilao do jazz
eminentemente pessoal e potica. Tornou-se uma das mais bem sucedidas
obras do imenso catlogo de Darius Milhaud, a primeira que o consagrou
defnitiva e internacionalmente. Declarando-se francs-israelita, Milhaud
comps uma sinfonia coral, Pacem in Terris, sobre palavras de uma
encclica papal, assim como transcreveu melodias folclricas judaicas
para um Servio de Sinagoga. Admirador de Berlioz, Chabrier e Bizet,
aluno de Paul Dukas e Charles Koechlin, alinhou-se mais pura tradio
francesa, enriquecendo-a com novas tendncias. Sua obra prolfca inclui
mais de quatrocentos nmeros de opus doze sinfonias, numerosos
concertos para diversos instrumentos, dezoito quartetos de cordas, alm
de trios, quintetos, um sexteto, um septeto, um octeto e sonatas para
variadas formaes instrumentais. Mas na produo cnica, para pera
ou bal, que seu lirismo luminoso, cheio de vivacidade e vigor, encontra
expresso mais completa.
Quanto ao poeta Blaise Cendars, autor da Criao negra, nos anos
da dcada de 1920, ligou-se ao movimento Modernista brasileiro, quando
participou de uma caravana de intelectuais em visita s cidades histricas
de Minas Gerais. Sua admirao pelas obras expressionistas do
Aleijadinho muito contribuiu para a revalorizao do escultor mineiro.
Quase cem anos antes da estria de A Criao do Mundo, Hector
Berlioz, grande msico do romantismo francs, ao contrrio de seus
compatriotas do sculo XX encantava-se com a msica alem, nas
primeiras apresentaes que se fzeram, na Frana, da integral das
Sinfonias de Beethoven. Berlioz, que escreveu muito, herdou tambm
dos alemes o amor e a admirao pelas peas de Shakespeare. Com
esses antecedentes, o msico francs tornou-se o elo especular entre
Beethoven e Wagner o compositor sinfnico e o compositor de teatro
por excelncia. A afrmativa de seu conterrneo Pierre Boulez, para
quem Berlioz prende-se forma mais emocional do romantismo alemo.
Hector Berlioz (1803-1869) dedicou-se quase exclusivamente msica
orquestral. Por outro lado, comps sempre estimulado por impresses
literrias, organizando sua msica como ilustrao de um texto ou enredo
potico. O canto, frequentemente, aparece em sua obra como componente
A flarmnica e a literatura _____________________________________________Paulo Srgio Malheiros dos Santos 187
188 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
instrumental (a exemplo da nona sinfonia de Beethoven) e quase nada
nos legou para instrumentos solos ou msica de cmara.
O ttulo sinfonia, com que designou quatro de suas obras, deve ser
visto com reservas refere-se mais importncia da orquestra nessas
peas e a uma evidente, embora muito particular, assimilao da forma
da sonata clssica. A Sinfonia Fantstica foi escrita aos 27 anos, como
fruto das recentes descobertas artsticas do autor. Em 1827, Berlioz,
assistindo a uma representao de Hamlet, rendeu-se revelao do gnio
de Shakespeare e apaixonou-se perdidamente por Harriet Smithson, atriz
irlandesa que interpretava o papel de Oflia. Em 1928, o compositor
descobre Goethe (cujo Fausto fora recentemente traduzido por Grard de
Nerval) e Beethoven, cujas sinfonias foram ento executadas no
Conservatrio de Paris. Sob esse estmulo, literrio e musical, Berlioz
redigiu um programa em que se baseou para compor os cinco movimentos
de sua primeira sinfonia: um jovem msico, de sensibilidade doentia e
imaginao ardente, envenenara-se com pio num acesso de desespero
amoroso. A dose do narctico, insufciente para provocar a morte,
mergulha-o num profundo sono, povoado das mais estranhas vises,
durante o qual sensaes, sentimentos e reminiscncias se traduzem, no
seu crebro enfermio, em pensamentos e imagens musicais. At a mulher
amada converte-se em uma melodia que, tal uma ideia fxa, ele ouve e
encontra por toda parte.
Entretanto, por mais programtica e deliberadamente ilustrativa que
seja sua gnese, a Sinfonia Fantstica impe-se por suas qualidades
especifcamente musicais o uso da ide fxe permite uma ampliao da
forma sonata, h prodigiosa riqueza de idias e a orquestrao , ao
mesmo tempo, brilhante e sutil.
O primeiro andamento (Fantasias e paixes) inicia-se com um largo
em d menor, criando o clima melanclico exigido pelo argumento.
Quatro sees bem contrastadas refetem os sentimentos contraditrios
do jovem amante. Na quarta seo, apresenta-se o tema da amada, a ide
fxe, que reaparecer em todos os outros movimentos. No segundo
movimento (Um baile), o jovem artista reencontra sua amada em uma
brilhante festa. Uma valsa, alternadamente leve ou brilhante, faz-se de
elegante scherzo, tendo seu motivo principal interrompido pelo enunciado
da ideia fxa. Como novidade orquestral, Berlioz destaca, de maneira at
ento inusitada, os arpejos da harpa.
O terceiro quadro (Cena nos campos), provavelmente inspirado na
Sinfonia Pastoral de Beethoven, cumpre a dupla funo de movimento
lento e interldio buclico, apresentando o dilogo inicial de dois pastores,
no corne-ingls e no obo. Perturbando o idlio, o tema da amada surge
ameaador nos graves da orquestra. No fnal, o tema pastoril reaparece
obscurecido pelo rufo dos timbales, em clima de mistrio, anunciadores
de uma tempestade.
O Allegretto non troppo (Marcha para o suplcio) justifca o ttulo
fantstico atribudo sinfonia. O artista sonha que matara a amada e um
cortejo o leva ao cadafalso. A marcha constri-se com dois temas
contrastantes: o primeiro, sombrio e ameaador, confado s cordas; o
outro explode brilhante nos metais e madeiras. O reaparecimento da ideia
fxa sugere um ltimo pensamento de amor interrompido pelo golpe fatal
da guilhotina. No visionrio ltimo movimento (Sonho de uma noite de
Sab), o jovem artista encontra-se rodeado de bruxos e monstros reunidos
para seu funeral. A melodia da amada adquire um carter burlesco,
participando de uma pardia sarcstica, caricatural, apocalptica com o
motivo da Ronda do Sab a desenvolver-se em fugato. A ele sobrepe-se
o Dies irae irnica demonstrao de habilidade contrapontstica,
preocupao rara em Berlioz.
Estabelecendo uma voluntria confuso entre o real e o imaginrio,
Berlioz transformou sua obra em um gesto autobiogrfco. E fazendo de
sua vida um romance tempestuoso, soube ainda reinvent-la em suas
admirveis, mas pouco confveis, Memrias.
A flarmnica e a literatura _____________________________________________Paulo Srgio Malheiros dos Santos 189
Artes Plsticas ____________________________________
MENSAGEIRO DA POSTERIDADE
Carlos Perktold*
H produo de alguns pintores, escultores, desenhistas, escritores
e outras formas de manifestaes artsticas que, pela baixa qualidade, vo
se diluindo, perdendo-se no tempo e no espao e somem no horizonte
intelectual de todos. Isso ocorre tambm pela falta de exposio, pelo
desinteresse dos leitores, dos colecionadores e do prprio mercado de
arte. Seus autores veem suas bagagens serem enterradas antes de eles
prprios. Por ironia artstica, quando morrem de fato, algumas pessoas se
admiram de sab-los ainda vivos at aquela data, to antecipadas foram
suas mortes artsticas.
No este o caso de Inim de Paula (1918-1999), cujo dcimo
aniversrio de morte registro saudoso. Sua bagagem pictrica
constituda de acervo reluzente construdo durante mais de sessenta anos
de carreira. Sua pintura cheia de vida, marcada pelo fauvismo de
mesmerizante beleza, pela presena constante das cores complementares,
pelo ritmo e equilbrio das composies e pela preocupao com a razo
de ouro. Esta importante desde os antigos gregos, que a praticavam sem
conhecer matematicamente o que Lucca Paciola descobriu no sculo 16 e
* Psicanalista, da Associao Brasileira de Crticos de Arte (ABCA), da Associao Internacional
de Crticos de Arte (AICA) e do Instituto Histrico e Geogrfco de Minas Gerais.
192 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
que, agora, a arte contempornea julga desnecessria, algo que Inim
lamentava. Sorte nossa que sobrevivemos para continuar a aplaudi-lo
durante esses dez anos e tambm das geraes que viro, pois nosso
artista de Itanhomim era imortal muito antes de morrer.
O autorretrato que ilustra esta matria foi pintado aos 80 anos de
idade, sete meses antes de sua morte. Ele contm a condensao do
reconhecimento pessoal das inexorabilidades da vida: a velhice, a doena
e a perspectiva da morte. O reconhecimento sempre um mrito pessoal
porque, apesar de limitado, o ser humano em geral vive como se fosse
onipotente e eterno. Pensando como se fssemos o jovem de sempre,
custa-nos aos prprios olhos ver o nosso envelhecimento. S o acmulo
das experincias pessoais, impossveis de serem transmitidas em nossa
cultura, nos ensina o caminho da sabedoria e a ver como tolice a
onipotncia dos jovens. A sete meses do seu falecimento, Inim se via no
estado que seus amigos lamentavam: a doena o estava destruindo por
dentro e era visvel a sua transformao fsica a cada novo encontro. A
morte, ltimo ato implacvel da vida, pegou-o quando o artista j a
esperava.
Aquela transformao, que ele no comentava e os amigos viam
com tristeza, est descrita neste autorretrato sobre madeira: ele mostra
seus ralos cabelos e barbas brancas, a falta de rugas acentuadas que o
tempo, complacente, no lhe reservou, o plido rosto que se desvitalizava,
exposto sem vaidade pessoal e com estonteantes cores. Tal como o poeta
que se expunha cruamente nas livrarias, aqui ele se expe cruamente
ao espectador. Apenas o seu olhar, visvel na transparncia das lentes dos
culos, continuava o mesmo do jovem de 19 anos que, em 1937, vestido
de terno e gravata e debruado sobre um quadro no cavalete, visto em
sua fotografa contida na pgina 20 do livro Inim, de autoria de Frederico
de Morais e publicado em 1987 por Leo Cristiano Editorial. o mesmo
olhar de perplexidade sobre sua vida e de seu futuro pessoal como artista
em um Brasil que, naquele momento, valorizava to pouco as coisas do
esprito. Dvidas sentidas, mas desnecessrias e inteis, porque sua
consagrao como pintor e artista ocorreu desde a primeira exposio
individual avalizada por Portinari e pelo embaixador Josias Leo, em
1948. Apesar de seu permanente sucesso, o olhar contido neste autorretrato
aos 80 anos mantm a dvida quanto ao seu futuro, agora estreito, incerto,
e o presente devastado por doena incurvel. tambm o olhar de algum
que conhecia seus demnios internos e por cujo exorcismo se debatia
sem cessar.
Inim viveu sua vida com o talento que Deus lhe deu e com dois
mecanismos de defesa do ego descritos na psicanlise e que lhe garantiram
a imortalidade: a sublimao e a formao reativa. Aquela frequente em
atividades artsticas e, em Inim, ela est representada e contida na beleza
do conjunto de sua pintura. A formao reativa, demonstrao externa do
oposto que se sente, est na alegria das cores exuberantes que contrastam
com a sua quase permanente melancolia, dois mecanismos que, alm de
nos terem garantido acervo que honra o Brasil e Minas Gerais em
particular, transformaram-no em emrito fauvista, atributo que ele aceitava
com alegria. Por tudo isso, o seu autorretrato traz, sem que ele percebesse,
o toque de Midas, aquele plus de que ele sabia ser portador e que fcava
registrado concreta e sutilmente no suporte pictrico a envolver qualquer
das suas composies: o presente dos deuses de brilhante pintor, e um
outro plus do qual ele, modesto, achava que apenas o tempo confrmaria:
sua permanncia como pintor e artista.
Artistas, com frequncia, so como escritores que deixam seus
originais nas gavetas, no computador ou fcam perlustrando o texto de
memria, alterando-o em pormenores construtores do texto ideal ou
espera de sua decantao para public-los com as palavras e as frases
exaustivamente elaboradas. Assim, alguns romances e contos so escritos
durante anos e o leitor jamais percebe o tempo internalizado do autor.
Com pintores ocorre o mesmo. Como hbil desenhista, alguns dos quadros
de Inim foram pintados em poucas horas e equivalem a um conto bem
escrito. Outros, como se fossem longos romances cheios de personagens
com muitas histrias para contar, demoraram anos. H, em conhecida
coleo belorizontina, um painel de sua autoria, que representa vrias
operrias do amor espera de trabalho, uma beleza de ritmo e equilbrio.
Esse texto demorou anos para ser escrito e somente fcou pronto quando
lhe foi esclarecido que era bom e que faltava apenas a reviso para
Mensageiro da posteridade ____________________________________________________________ Carlos Perktold 193
194 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
public-lo. A reviso, no caso, era preencher o esboo com as cores
contidas hoje no painel.
Mas o seu legado no somente de autorretratos e de fguras
humanas. Inim foi, sobretudo, o paisagista capaz de transformar cenas
rurais, citadinas ou um canto de favela em poemas pictricos ou um
arranjo de fores em ode pintura, asseres comprovadas no acervo em
comodato do museu que leva seu nome e em centenas de colees pelo
nosso pas. tambm de exmio retratista de jovens amigos como Jano,
flho do tambm saudoso marchand Slvio de Oliveira, cuja beleza aos
vinte anos de idade, em 1972, fcou registrada com os longos cabelos
fashion e a roupagem do modelo com o eterno macaco jeans, rosto
construdo e marcado pelas cores que faziam o pintor e todos os seus
retratados serem identifcados de longe. Neles, Inim se colocou como o
anti-Oscar Wilde, invertendo o jogo do personagem Dorian Gray daquele
autor irlands: todos os modelos envelheceram, mas continuam jovens
nos seus retratos sobre tela. Naqueles sob encomenda, ele no era diferente
e, hoje, formam um conjunto de rostos to bem executados que, no futuro,
talvez seja possvel descrever com certa preciso psicolgica o carter
dos modelos. Todos os retratados do dupla mensagem ao espectador:
fcaram registrados como mensageiros da posteridade do pintor e
imortalizados pelo pincel do artista.
ODE A UM BRASILEIRO
(dois, em trs captulos, parte II)
Henrique Leal*
Ser flho de um ex-presidente da Repblica, morto durante o mandato
no Palcio do Catete, poderia ser o trampolim para uma vida fcil, do tipo
o flho do homem, e quetais. Mas no para Afonso Penna Junior, que
nasceu em 1879, em pleno Natal, e viria a falecer na Semana Santa de 1968.
O primeiro varo de Afonso Augusto Moreira Penna foi meu biografado
em Uma Casa em La Mancha, Una Editoria, 1997 (duas edies, outra
em 1999), infelizmente a nica biografa existente no Brasil de to nobre
fgura. E devo dizer que tudo comeou por conta da acima citada casa em
La Mancha, o n. 1451 da Rua Aimors, Belo Horizonte, construda por
Penna Junior, atualmente tombada pelo Patrimnio Histrico Nacional. A
casa era a sede da Faculdade de Cincias Gerenciais da UNA, onde eu era
Assessor de Imprensa. Um belo dia, interessei-me por sua histria. E eis-
me aqui, na honrosa posio de bigrafo da famlia Afonso Penna.
Mas voltemos ao menino nascido em Brumal, Distrito de Santa
Brbara, Minas Gerais, cuja infncia transcorre justamente no perodo de
ascenso poltica paterna, no qual Penna Junior era um meninote esperto
e bulioso, que brincava solto pelas ruas de uma velha e tradicional
* Jornalista e escritor, autor de Uma Casa em La Mancha, A Arte de Furtar e o seu Autor,
Edio Comentada, Vila Real de N. S. da Conceio de Sabarabussu e O Cabreiro de
Cerveira.
198 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
cidade mineira, nas palavras de Alceu Amoroso Lima, em seu Discurso
de Saudao a Penna Junior, em sua posse na cadeira n. 7 da Academia
Brasileira de Letras, muitos anos depois. Como todo flho de boa famlia
era enviado ao Seminrio do Caraa, Penna Junior no fugiu regra,
adentrando a casa em 1892, onde tambm estudara o pai. Da seu total
domnio do latim e da lngua francesa, segundo o flho Gilberto, que me
concedeu sua ltima entrevista em 1997. No Caraa, como estudante
premiado e orador ofcial do grmio literrio, apresentou as primeiras
mostras do que lhe reservaria o futuro.
Passam-se os anos e, em 1895, Penna Junior, aos 16 anos, um dos
primeiros a se instalar na capital mineira, Ouro Preto, inicialmente cursando
Engenharia na Escola de Minas e, posteriormente, Direito, na faculdade
criada pelo pai. Minas, por esta poca, era um reduto do Simbolismo, e
Penna Junior foi um dos pioneiros a levantar a bandeira da nova potica
de ento, jurando por Verlaine, Rimbaud, Cruz e Sousa e Alphonsus de
Guimaraens. Ao lado dos colegas da Faculdade de Direito, fundaria duas
sociedades literrias, que encheriam de poesia o belo horizonte de ento:
Jardineiros do Ideal e Cavaleiros do Luar
1
.
Bacharel pela Faculdade de Direito de Belo Horizonte, em 1902,
Penna Junior tornar-se-ia catedrtico de Direito Internacional Pblico
e, mais tarde, de Direito Civil. Em pouco tempo, revelou-se um dos
mais profcuos juristas do pas, seguindo o itinerrio do governo de
magistrados, iniciado pelo pai. Como jurista, Penna Junior tambm
militava na liberdade de expresso, indo, por vezes, em direo contrria
ao conservadorismo da Igreja catlica que tanto admirava. Em artigo
publicado no Jornal de Fortaleza, em 1953, aplaude a deciso do Santo
Ofcio de permitir a publicao de Os Miserveis, de Victor Hugo, at
ento no Index dos livros proibidos pela Igreja. H na Igreja a parte
religiosa, que indeformvel, e a poltica, que perfeitamente mutvel de
acordo com a poca e a evoluo dos tempos, escreveu, ao justifcar sua
posio.
Tal fgura, de certo, chamaria a ateno da inteligncia nacional.
E tambm dos polticos: durante o governo Arthur Bernardes (1922/26),
Penna Junior teve seu mais alto posto na hierarquia nacional, o de Ministro
da Justia (antes disso, em 1918, havia sido Secretrio do Interior do
mesmo Bernardes, ento Presidente/Governador de Minas Gerais). Sua
gesto frente do Ministrio da Justia foi das mais conturbadas, diga-se
de passagem: seu ex-colega do Seminrio do Caraa, Arthur Bernardes,
lutava para manter o voto bico-de-pena, altamente manipulvel, contra
os clamores da oposio, que queria o voto direto; e, no Amap, mais
precisamente na colnia agrcola da Clevelndia, havia um verdadeiro
campo de concentrao, para onde foram mandados os desafetos do
governo Bernardes, nas palavras do jornalista Domingos Meireles
2
,
grande parte, vale lembrar, oriundos da chamada Coluna Prestes, que
incendiou o Brasil, a partir de 1924.
Deputado Federal, membro da Comisso de Finanas e Relator da
Receita; Juiz do Superior Tribunal de Justia Eleitoral; Consultor Jurdico
do Banco do Brasil; Reitor da Universidade do Distrito Federal; professor
de Direito Civil da Universidade Catlica do Rio de Janeiro; Ministro da
Justia; Membro Efetivo do Instituto Brasileiro de Educao, Cincia e
Cultura e quetais, sem falar em ser o flho do homem, o nico presidente
morto no Palcio do Catete, at ento. Indubitavelmente, o dono de tal
currculo s poderia dignar-se a mais um cargo na hierarquia nacional:
a presidncia da Repblica. Corria o ano de 1950 e o pas discutia as
alternativas para a sucesso de Eurico Gaspar Dutra. O governador de
Minas Gerais, Milton Campos, sentindo resistncias ao seu nome, lana,
ento, Afonso Penna Junior como representante de Minas, pelo PSD, na
sucesso presidencial. E vale lembrar que, tanto a UDN quanto o Partido
Republicano (sob a presidncia do colega do Colgio Caraa, Arthur
Bernardes), viram com bons olhos a indicao. Essa no era, entretanto,
a primeira indicao de Penna Junior ao Palcio do Catete: pouco antes
do golpe de Getlio Vargas, em 1934, Penna Junior esteve cogitado para
suced-lo. Mas seria mesmo em 1950 que sua candidatura ganharia as
manchetes dos jornais. Teria grande satisfao em morrer onde meu pai
morreu. Sim, estou com 70 anos feitos e no crvel que eu viva muitos
anos ainda. Meu pai morreu com 62 anos incompletos, disse o jurista
mineiro na poca, em entrevista do jornal A Vanguarda, Rio de Janeiro.
Mas seria no O Dirio, de Belo Horizonte, em 17 de maro de 1950, que
Ode a um brasileiro (dois, em trs captulos, parte II) ________________________________________Henrique Leal 199
200 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Penna Junior assume de vez sua candidatura, ao lado da mulher Marieta,
com quem teve cinco flhos e duas flhas (era av de 11 netos, quando
morreu, em 1968).
Se, porventura, os partidos entenderem que sou capaz
da alta misso, o problema do transporte seria o ponto
bsico de meu governo. Primeiro abrir estradas e depois
aproximar todo o Brasil e facilitar o transporte de sua
vasta produo. Tudo o que tenho dito aos jornais apenas
a minha gratido, o meu legtimo orgulho ao ver sugerido
por Minas Gerais o meu nome, antigo mas obscuro servidor
da causa pblica.
A candidatura, infelizmente, no vingou, por um motivo muito
peculiar: a famlia no o quis presidente. E para entender os motivos da
desistncia, basta regressar ao ano de 1943 quando, em agosto, o Instituto
dos Advogados do Brasil (mais tarde, Ordem dos Advogados do Brasil)
toma a iniciativa de convocar um Congresso Jurdico Nacional contra os
ditames do poderoso DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), da
ditadura Vargas. O resultado do encontro seria o famoso Manifesto dos
Mineiros, assinado no s por Penna Junior, como tambm por Afonso
Arinos de Melo Franco, Arthur Bernardes Filho, Olavo Bilac Pinto, Jos
Maria Lopes Canado, Jos de Magalhes Pinto (mais tarde, Governador
de Minas Gerais e um dos artfces do golpe de 1964), Milton Campos,
Pedro Aleixo, Virglio de Melo Franco, Pedro Nava e outros. Todos os
citados acima, por terem assinado o Manifesto contrrio aos desmandos de
Vargas, foram perseguidos pelo caudilho gacho e perderam seus cargos
pblicos. Com Penna Junior no foi diferente: em 1943, por determinao
de Vargas, seria destitudo da direo do Banco Hipotecrio e Agrcola
do Estado de Minas Gerais. A famlia Afonso Penna, temendo mais uma
retaliao poltica, em futuro prximo, no permitiu que sua mais nova
estrela levasse adiante o sonho da presidncia da Repblica. Perdeu o Brasil,
certamente. Mas os moradores da Rua Pereira da Silva, 320, Laranjeiras,
Rio de Janeiro, conservaram seu tesouro por mais tempo.
Sobre o caso acima, nunca demais lembrar as palavras de Carlos
Drummond de Andrade no Correio de Manh:
Penna Junior foi um homem to perfeito que no serviu para
presidente da Repblica em 1950; escapou de ser presidente
por ser bom demais para o cargo, e por ter sido lembrado
para tal por outro homem de sua estirpe: Milton Campos. Os
poderosos de 1950 acharam que assim era demais, e vetaram-
lhe a candidatura, que seria de conciliao nacional. No que
foram aprovados pelas flhas do indicado, temerosas de que a
escolha se consumasse: queremos papai para ns.
No ano em que se comemora o centenrio da Academia Mineira de
Letras, fundada na minha Juiz de Fora, em 1909, um nome como Afonso
Penna Junior no poderia jamais ser esquecido: desde 27 de maro de 1924
o discreto garimpeiro, nas palavras do amigo Drummond de Andrade,
ocupava a cadeira n. 40, que tem por patrono o Visconde de Caet (Jos
Teixeira da Fonseca Vasconcelos). E desde 14 de agosto de 1948, j era
imortal da Academia Brasileira de Letras, cadeira n. 7, que pertenceu
a Castro Alves, Srgio Corra da Costa e, atualmente, tem por titular o
cineasta Nlson Pereira dos Santos. Os motivos que levaram Penna Junior
ABL foram vrios, mas um se destaca: seus 20 anos de trabalho, iniciados
em 1926, na crtica de atribuio de autoria para o manuscrito apcrifo mais
famoso em lngua portuguesa, qual seja A Arte de Furtar. Em 1946, Afonso
Penna Junior publica sua obra mxima, em dois volumes, 726 pginas,
Editora Jos Olympio, Rio, A Arte de Furtar e o seu Autor, na qual destri
toda e qualquer dvida a respeito de quem seria o autor anonimo muy
zeloso da Patria: o embaixador portugus Antnio de Sousa de Macedo,
Senhor da Ilha de Maraj, e no o padre Antnio Vieira, como se pensava
at ento. Sobre a obra mxima de Penna Junior, lancei em 1999 uma
Edio Comentada, que est sendo relanada, em 2009, com o aval do
Deputado Estadual por Minas Gerais, Durval ngelo, outro estudioso do
assunto. Sobre A Arte de Furtar e A Arte de Furtar e o seu Autor falaremos
na terceira parte desta srie.
Ode a um brasileiro (dois, em trs captulos, parte II) ________________________________________Henrique Leal 201
202 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
S mais um detalhe: o cavalheirismo de Penna Junior pode ser sentido
no resumo de uma sesso da Academia Brasileira de Letras, de agosto de
1951, quando o discreto garimpeiro sugere uma modifcao no artigo
17 do Regimento da casa, para torn-lo mais humano e liberal:
Os membros efetivos da Academia sero eleitos dentre os
brasileiros que tenham publicado, em qualquer gnero da
literatura, obras de reconhecido mrito, ou de sabido valor
literrio.
A modifcao proposta por Penna Junior eliminava a expresso do
sexo masculino, que vinha imediatamente aps a palavra brasileiros.
Em outras palavras: no fosse Afonso Penna Junior, escritoras como
Nlida Pinn ou Zlia Gattai no poderiam adentrar na vetusta casa de
Machado de Assis.
1
A chamada cultura dos Penna tem justifcativa: Penna Junior herdou
todos os livros do pai e, ao longo da vida, enriqueceu sua biblioteca com
as mais seletas obras, perfazendo, ao todo, 25.000 volumes; todo este
acervo faz hoje parte da Biblioteca Penna Junior, Ministrio da Justia,
Braslia.
2
As Noites das Grandes Fogueiras: Uma histria da Coluna Prestes, p.
470.
O PODER JUDICIRIO
E A OPINIO PBLICA
Antonio Pedro de Lima Pellegrino e
Gabriel Arruda Chueke*
Rui Barbosa, patrono dos advogados brasileiros, por ocasio de
consulta realizada, em 1911, pelo advogado Evaristo de Morais,
imortalizou as seguintes palavras: A defesa no quer o panegrico da
culpa, ou do culpado. Sua funo consiste em ser, ao lado do acusado,
inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais. Se a enormidade da
infrao reveste caracteres tais, que o sentimento geral recue horrorizado,
ou se levante contra ela em violenta revolta, nem por isto essa voz deve
emudecer. Voz do Direito no meio da paixo pblica, to susceptvel de
se demasiar, s vezes pela prpria exaltao da sua nobreza, tem a
misso sagrada, nesses casos, de no consentir que a indignao degenere
em ferocidade e a expiao jurdica em extermnio cruel.
Com efeito, tais palavras nos parecem oportunas para introduzir o
assunto que, nas linhas prximas, pretendemos abordar, qual seja, a
tormentosa relao entre o Judicirio e a opinio pblica.
No atual estgio de desenvolvimento tecnolgico, no qual nos
encontramos cercados de meios de comunicao, foroso reconhecer
que cada vez mais difcil se abster da infuncia da mdia. Por isso, ela
exerce signifcativo papel na formao da opinio pblica.
* Estudantes do 6 perodo de Direito da FGV/RJ.
204 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi alvo da
impiedosa fria da opinio pblica. Isto porque a Corte Suprema
entendeu, por maioria, que a priso decorrente de sentena penal
condenatria sem trnsito em julgado fere o princpio da presuno de
inocncia (ou, tal qual preferem alguns autores, o princpio da no-
culpabilidade). Com tal deciso, o Supremo Tribunal assinalou que, em
havendo a possibilidade de recursos, no pode, via de regra, haver
priso. Ressalte-se que, mesmo com o novo entendimento do STF,
permanecem, inclumes, os requisitos a ensejar as demais modalidades
de priso cautelar do ru .Noutros termos, o STF, ao assim proceder,
to-somente sublinhou que, no Brasil, a liberdade regra, constituindo
a priso uma sano de carter excepcional. A excepcionalidade da
priso, a nosso sentir, o preo que pagamos por viver em um Estado
Democrtico de Direito, Estado este no qual prevalece o artigo 5, inciso
LVII, da Constituio da Repblica de 1988, a saber: Ningum ser
considerado culpado at o trnsito em julgado de sentena penal
condenatria.
A propsito, assinale-se que prevalece, em se tratando da imprensa,
o princpio da presuno de culpabilidade. Nas palavras de Zuenir
Ventura:
O poder da imprensa arbitrrio e seus danos, irreparveis. O
desmentido nunca tem a fora do mentido. Na Justia, h pelo menos um
cdigo para dizer o que crime; na imprensa no h norma nem para
estabelecer o que notcia, quanto mais tica. Mas a diferena que no
julgamento da imprensa as pessoas so culpadas at a prova em
contrrio.
O mestre Rui Barbosa, com o brilhantismo que lhe peculiar, bem
sintetizou o que se est a defender: Ainda quando o crime seja de todos
o mais nefando, resta verifcar a prova; e ainda quando a prova inicial
seja decisiva, falta, no s apur-la no cadinho dos debates judiciais,
seno tambm vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas
mnimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou
menor, da liquidao da verdade, cujo interesse em todas se deve acatar
rigorosamente.
Portanto, por mais brbaro que seja o suposto crime, no pode o
Poder Judicirio ser servial da opinio pblica. A deciso judicial deve
ser dissociada de qualquer pr-julgamento, na expresso americana
pretrial ou trial by media.
Em se tratando do presente texto, premente se faz aclarar o que se
entende por opinio pblica. Segundo Lenio Luiz Streck e Jos Luis
Bolzan de Morais, a opinio pblica fgura a ttulo de (...) um instrumento
de controle pblico do poder a partir da expresso do sentimento popular
acerca das prticas poltico-jurdicas adotadas ou a adotar.. Assevere-
se que a opinio pblica, na medida em que consiste em um instrumento
de controle popular, de nuclear importncia para uma sociedade que
ostente a qualidade de democrtica. Uma opinio, contudo, no obstante
ser divulgada como pblica, pode no ser popular, pois, apesar de
publicizada mediante rgos de comunicao, pode no advir,
genuinamente, da conscincia do povo, tendo sido imposta por poucos.
O ponto cardeal, todavia, reside no fato de que, no raro, a opinio
pblica gerada por rgos de comunicao de massa, isto , por rgos
nos quais trabalham pessoas que, por exemplo, da Constituio da
Repblica conhecem apenas a sua data de nascimento, qual seja, 1988.
Assim sendo, tem-se uma opinio pblica viciada, opinio esta alicerada
em pensamentos rasos, que, no mais das vezes, se satisfazem com a
superfcie. A propsito, assinale-se que a comunidade jurdica, fora de
dvida, tem parcela da culpa. Isto porque os juristas, aos olhos da
populao, se assemelham a seres sisudos, repletos de pompa, dissociados
da realidade que os circunda. Nas palavras de Luiz Guilherme Mendes de
Paiva: O resultado desse processo que a responsabilidade pela
formao da opinio pblica sobre criminalidade e segurana foi
assumida por leigos que, com ou sem interesses escusos, ocuparam um
espao vazio..
Convm assinalar o fato de que, a informar a opinio pblica, est o
que Nelson Hungria convencionou chamar de publicidade opressiva. Em
se tratando de tal publicidade, tem-se que a imprensa, salvo raras excees,
se apodera de um discurso vingativo, punitivo, discurso este que est
consubstanciado na intransigente defesa da priso, custe o que custar.
O Poder Judicirio e a opinio pblica ______________ Antonio Pedro de Lima Pellegrino e Gabriel Arruda Chueke 205
206 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Aos que se opem a tamanha febre punitiva, atribuda a pecha de
baluartes da impunidade. No caso do STF mencionado no incio do
presente texto, objetam os sedentos por punio que, vista da morosidade
do Poder Judicirio brasileiro, a aplicabilidade do princpio da presuno
de inocncia equivaleria, em verdade, a uma absolvio por via oblqua,
pois, com as delongas do processo penal, operar-se-ia a prescrio da
ao penal, prescrio esta que, em sntese, impediria um sujeito de ser
trancafado em uma cela. Todavia, a nosso julgar, tal objeo falaciosa,
pois no se combatem os estratagemas protelatrios da defesa mediante a
violao do princpio da presuno de inocncia. Noutras palavras, no
se deve tampar um buraco se, ao tamp-lo, abre-se outro. Ademais, os
direitos e garantias individuais no precisam ser suprimidos para se obter
um sistema judicial efciente ou, em outras palavras, um sistema cujo
processo no se desenrole a passos de cgado.
Ao se abordar o fenmeno da publicidade opressiva, oportuno
rememorar o episdio, ocorrido em So Paulo, da Escola Base. Verifcou-
se, em tal caso, a condenao apriorstica, por parte da mdia, dos donos
de uma creche sobre os quais recaa a suspeita de abuso sexual de seus
alunos. Com o passar do tempo, comprovou-se que a suspeita derivava de
mentira contada por um aluno. Tal caso dispensa maiores comentrios,
sendo eloquente e falando por si s.
O fenmeno da publicidade opressiva foi, com propriedade, descrito
por Antnio Evaristo de Moraes Filho como sendo o (...) julgamento
antecipado da causa, realizado pela imprensa, em regra com veredicto
condenatrio, seguido da tentativa de impingi-lo ao Judicirio. Tal
publicidade, com efeito, torna-se por demais problemtica quando passa
a afetar, de maneira decisiva, os magistrados. Isto porque o Estado
Democrtico de Direito exige, inequivocamente, um Poder Judicirio
imune s ingerncias da opinio pblica. Os juzes de direito foram, pela
Constituio da Repblica de 1988, municiados de garantias de
independncia justamente para, despidos de qualquer presso, decidirem
de acordo com as suas prprias conscincias, sempre luz da Constituio
e da legislao vigentes. Sendo assim, tal qual ressalta Marcio Gestteira
Palma, (...) no podemos compactuar com prticas que violem as
garantias do justo processo para o cidado, sendo vedado admitirmos
que um indivduo seja levado a julgamento perante um tribunal acuado
e pressionado, sob pena de transformarmos nossos processos em espetculos
cnicos de roteiros defnidos e fns trgicos ou em um jogo de cartas
marcadas, cujo derrotado j se sabe, desde h muito, quem ..
Na medida em que no discrimina pobres de ricos, a publicidade
opressiva democrtica. Nos dias atuais, verifca-se, contudo, que, em
decorrncia de tal publicidade ter atingido sujeitos poderosos, as crticas
a ela endereadas aumentaram sobremaneira. Segundo as manchetes que
lemos diariamente, os sujeitos que gozam de uma posio socioeconmica
privilegiada merecem uma condenao com requintes de crueldade, sem
d nem piedade. No obstante terem sido escritas no sculo XVIII, as
palavras do flsofo brasileiro Matias Aires so de surpreendente e
aterrorizante atualidade: No v que se no tem amor a outrem, tem-
no a si: que se no tem dio ao litigante humilde, tem-no ao poderoso,
s porque na opresso deste quer fundar a sua fama; no v que se no
tem interesse de alguns bens, tem interesse de algum nome; e se no tem
ambio das honras, tem ambio da glria de as desprezar; e fnalmente
no v que se falta o desejo da fortuna, sobra-lhe o desejo da reputao.
Que mais necessrio para perverter um julgador? E com efeito que
importa que a corrupo proceda de um princpio conhecido, ou de um
princpio oculto, isto , de uma vaidade, que o mesmo julgador no
conhece nem percebe? O efeito da corrupo sempre o mesmo. Que
importa que o julgador se faa injusto s por passar por justiceiro? A
conseqncia da injustia tambm vem a ser a mesma: o mal que se faz
por vaidade no menor do que aquele que se faz por interesse; o dano
que resulta da injustia igual; o juiz amante, ou vaidoso, sempre um
juiz injusto.
Repetimos, a ttulo de arremate, o procedente questionamento
formulado por Matias Aires: que importa que o julgador se faa injusto
s por passar por justiceiro?
O Poder Judicirio e a opinio pblica ______________ Antonio Pedro de Lima Pellegrino e Gabriel Arruda Chueke 207
208 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Bibliografa
BARBOSA, Rui. O Dever do Advogado. Carta a Evaristo de Morais /
Rui Barbosa; prefcio de Evaristo de Morais Filho. Rio de Janeiro:
Editora Casa de Rui Barbosa, 2002. 56 p.
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e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
195 p.
PAIVA, Luiz Guilherme Mendes de. A Voz do Povo. In Boletim do
Instituto Brasileiro de Cincias Criminais. So Paulo: 2004. Ano 12 n
139.
MORAES FILHO, Antonio Evaristo de. In BARANDIER, Antnio
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Janeiro: Editora Lmen Juris, 1997. 144p.
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Instituto Brasileiro de Cincias Criminais. So Paulo: 2006. Ano 13 n
158.
AIRES, Matias. Refexes sobre a Vaidade dos Homens. So Paulo:
Editora Agir, 1962. 92p.
VENTURA, Zuenir. Perdas e Danos. In Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro: 1996.
A LUZ QUE NO SE VIA
Petrnio Souza Gonalves*
Dizia sentir o cheiro das estaes. Afrmava que as fores, quando
desabrocham, explodem em um barulho ensurdecedor. Por isso, sempre o
via andando pelas ruas com os dedos tampando os ouvidos. Das exploses
das fores, me disse ser a dos ips a mais suave. Adorava fcar ouvindo os
ips se vestindo em explosiva beleza. Ria, ria, horas repetidas, sozinho,
sentado nas esquinas tristes da vida. Agora, bem no alto da serra, foriu,
agarrada em alguma rvore, uma bela orqudea; me contou. Um dia, se
declarou enfeitiado pela pintura de um lago que o consultrio mdico
trazia. Sempre era retirado de l, da forma mais agressiva. Ficava por
horas namorando a oleosa paisagem. J era o fm da tarde quando ningum
na recepo fcou. Ele entrou de mansinho e na pintura se banhou,
mergulhou com os peixes, nadou com as aves e foi feliz. Quando voltou,
estava molhado em primavera. Para os que o olhavam espantados, ele
deu apenas um sorriso, desses que no conseguem esconder a felicidade,
e se foi, caminhando, lentamente, at que a noite chegou, a luz esfriou e
o sonho apagou...
*Jornalista e escritor.
BANDEIRANTES NAS TERRAS
ALTAS DA MANTIQUEIRA
Paulo Paranhos*
Os bandeirantes
1
O eminente historiador ptrio Washington Lus, autor de uma das
mais consagradas pginas da literatura bandeirante, mostra-nos como se
organizava uma expedio sertanista, normalmente chefada por um dos
principais homens da capitania e contando com a presena de flhos
maiores, parentes, milhares de ndios aliados ou escravizados, existindo
ali uma hierarquia quase que militar. Quando entravam no serto, iam
armados de arcabuzes, escopetas, mosquetes, espadas, como armas
ofensivas, e como armas defensivas, iam com acolchoados de algodo,
com que se revestiam, teis contra as setas indgenas que neles se
amorteciam.
2
Anota, ainda, o Dr. Washington Luis, que a maior parte dos
bandeirantes tinha sangue mestio e eram chamados de mamelucos,
exemplos tpicos os de Belchior Carneiro, Andr Fernandes e os dois
Anhangueras. Outros eram portugueses da metrpole, como Antnio
Raposo Tavares, Jernimo Leito e Jorge Correia. Havia, ainda, os
brasileiros, paulistas de nascimento e sem mescla com indgenas, como
Ferno Dias Paes, homens de So Vicente, de Piratininga e depois de
Taubat. Aventuravam-se por rios e trilhas que constituam o sistema
rudimentar de viagem fuvial e terrestre, atravs de campos e da brenha
entrelaada, sombria, mida e mortfera.
3
* Xoxiox xo xoxioxi xoxio xiox ixo ixoxi ox ixo ixo ixox.
212 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Essas caractersticas no escaparam aos olhos do famoso naturalista
francs e um dos maiores observadores dos costumes brasileiros, Auguste
de Saint-Hilaire, em sua passagem pela provncia de So Paulo, com
relao aos feitos dos bandeirantes paulistas, anotou que quando sabemos,
por experincia prpria, quantos percalos, privaes e perigos esperam,
ainda hoje, o viajante que se aventura nessas regies longnquas, e em
seguida lemos a descrio pormenorizada dessas interminveis andanas
dos antigos paulistas, sentimo-nos tomados de estupefao e quase somos
tentados a acreditar que pertenciam a uma raa de super-homens.
4
Os bandeirantes levavam meses para chegar regio das minas de
ouro e nessa caminhada, segundo apontou um dos principais estudiosos
da histria colonial brasileira, o historiador ingls Charles Ralph Boxer,
Os ndios funcionavam como bssola, abrindo picadas,
orientando caminhos, e ainda coletando alimentos e carregando
as tralhas de viagem. A presena feminina das ndias fazia-se
sentir na cozinha e no leito dos paulistas. A bagagem que
acompanhava os bandeirantes era leve e reduzida, adequada
para enfrentar passagens estreitas, serras quase intransponveis,
despenhadeiros, animais e indgenas selvagens, enfm,
imprevistos que, algumas vezes, faziam como que estes
aventureiros aban donassem todo o seu carregamento no
caminho. Andavam quase sempre descalos e no de botas
como iconografcamente so representados.
5
A viagem era, na maior parte das vezes, alguma coisa sem a certeza
de retorno, da por que muitos bandeirantes organizavam seus testamentos
deixando, normalmente, a mulher como administradora dos bens. Ao
morrerem, procedia-se ao inventrio. Esses inventrios so hoje fonte
inesgotvel do conhecimento dos feitos inegveis desses homens que se
embrenharam serto adentro na busca de ouro e pedras preciosas e que
foram responsveis, sem dvida, pelo alargamento natural da fronteira
brasileira, levando cada vez mais para oeste os limites que foram traados
por Tordesilhas.
Interessante observar que desses inventrios constavam os nomes
dos integrantes da bandeira, os padres e indgenas que a acompanhavam
e tudo aquilo que descobriam ou no, inclusive apontando as dvidas do
capito-bandeirante.
No restam dvidas, leitura de alguns deles, de que a pobreza
campeava entre os bandeirantes na sua grande maioria. Vejamos o que
diz esta bela pgina extrada da obra de Alcntara Machado:
Nos inventrios do serto, no arrolamento do que deixam os
bandeirantes mortos em campanha, a frmula sofre as
modifcaes impostas pelas circunstncias. O que o capito-
mor Antonio Raposo Tavares exige de um camarada de
Pascoal Neto, falecido da vida presente em Jesus-Maria-de-
Ibiticaraba, serto dos Arachs, a declarao de toda e
qualquer fazenda e armas que fcou do dito defunto, fato
e
ferramenta e plvora e chumbo e toda a mais fazenda e peas
que lhe fcassem.
6
E, prosseguindo no interessante relato:
Ningum se atreve a romper o juramento. Mas quando no
bastasse, para impedir as sonegaes, o temor das penas
espirituais e temporais de perjrio, a estaria, para intimar o
inventariante ao cumprimento exato do dever, a cobia
vigilante dos herdeiros. Que o diga Pedro Nunes, convidado
a carregar ou dar partilha a cama em que dorme e o nico
fato de seu vestir.
7
Ou, ainda, este outro relato que, dicotomicamente, mostra unidas
riqueza e pobreza do bandeirante Valentim de Barros, considerado um
nobre de Piratininga, seno vejamos:
Um leito de jacarand, com sua grade, onde se v estendida
a colcha de sobrecama de chamalote e ramagens de fores de
Bandeirantes nas terras altas da Mantiqueira ______________________________________________ Paulo Paranhos 213
214 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
ouro, forrada de tafet amarelo tostado, a que serve de
remate a franja de ouro fno. Protegem-no umas cortinas de
tafet azul, com seu sobrecu guarnecido de franjas de retroz
vermelho e amarelo. Adiante, o espelho grande de duas
portas, o cofrezinho chapeado de ferro, duas arcas que
servem de guarda-roupa. Isso, na alcova conjugal. Na sala
de visitas, um tamborete e seis cadeiras de espaldares com
suas pregaduras de lato. Na sala de jantar, para o servio
de mesa, duas tamboladeiras, um pcaro, seis colheres de
prata. E nada mais.
8
Nada escapava ao arrolamento, por mnimo que fosse o valor. De
Loureno Fernandes Sanches vemos avaliado em oitenta ris um castial
velho de arame, quebrado; de Francisco Ribeiro, por dois vintns, um
espelho velho. J os animais eram identifcados com maior cuidado: um
cavalo morzelo, caminhador; um cavalo sendeiro; uma vaca preta, com
a barriga branca por baixo, com um flho macho preto; um boi vermelho
de barriga e a ponta do rabo branca; uma vaca de papo inchado pintada
com uma flha pintada.
9
Esses homens e suas caravanas avanaram rumo ao desconhecido,
s terras inspitas e, em diversas oportunidades, fxaram roas que, mais
tarde, tornar-se-iam pousos habituais, sempre indicados nos roteiros
escritos ou orais; tais pousos se tornaram arraiais e estes se
transformariam em povoaes e depois em vilas.
10
No incio, os paulistas eram apenas entradistas em busca de ndios
para a escravizao e venda para as lavouras canavieiras, pouco, ou quase
nunca, se estabelecendo fora de sua provncia. No entanto, nos fns do
sculo XVII uma notcia importante espalhou-se no meio bandeirante: a
descoberta de ouro para alm da Mantiqueira. Segundo anotou Saint-
Hilaire, homens de todas as condies, pobres e ricos, velhos e moos,
brancos e mestios,
Todos abandonaram em massa seus lares, suas mulheres e
seus flhos e tomaram de assalto as vastas solides do Brasil.
Seguiram, na medida do possvel, os misteriosos e lacnicos
itinerrios deixados pelos mais antigos sertanistas, e em toda
parte esgravatavam a areia dos crregos e a terra das
montanhas. Quando encontravam um terreno aurfero,
armavam barracas nas proximidades e iniciavam a
explorao. Esses arraiais transformavam-se em povoaes,
depois em cidades, e foi assim que os paulistas comearam a
povoar o interior do pas, acrescentando monarquia
portuguesa algumas provncias mais vastas, algumas delas,
do que muitos imprios.
11
Outro importante historiador ptrio, Vianna Moog, com muita
propriedade diria que o bandeirante adentrava-se na mata, escalava
montanhas, vadeava rios encachoeirados, transpunha cumeeiras, lutava
contra ndios, escravizava-os ou os dizimava quando no podia escraviz-
los, escrevia, enfm, no solo virgem da Amrica o ltimo captulo de Os
Lusadas.
12
2. As primeiras bandeiras
Deixando de lado a entrada de Pero Lobo, em 1 de setembro de
1531, considerada por uns tantos historiadores como a primeira ocorrida
no Brasil, comecemos com Braz Cubas e Lus Martins que, partindo de
Santos ou de Piratininga, por volta de 1560, e passando pelas terras do
primeiro (na atual Mogi das Cruzes), desceram pelo rio Paraba, guiados
por alguns indgenas, at a paragem da Cachoeira (atual Cachoeira
Paulista), onde, segundo Mario Leite, encontraram o caminho que
atravessa o litoral para serra acima e tornando por esse caminho subiram
a serra, foram barra do rio das Velhas e correram a margem do So
Francisco at o Paramirim, ou at algum tanto adiante, donde voltaram
pelo mesmo caminho.
13
Um outro portugus, Martim Corra de S, que fora capito-mor da
Capitania de So Vicente, tambm, por recomendao do ento 7
o
governador-geral do Brasil, D. Francisco de Souza, entrou em Minas
Bandeirantes nas terras altas da Mantiqueira ______________________________________________ Paulo Paranhos 215
216 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Gerais no ano de 1597. Em sua companhia levou o ingls Anthony
Knivet
14
, que j o havia acompanhado em incurses pelo serto a dentro,
com a fnalidade de aprisionarem indgenas. Martim de S teria vindo de
Paraty e, transposta a serra do Mar, depois de atravessado o vale do
Paraba, teria alcanado o vale do rio Verde.
Ainda sobre a expedio de Martim de S, o Dr. Mario Leite anota
que tendo descido o Sapuca at a confuncia com o Verde, o bandeirante
teria se afastado do rumo geral que procurava o Sabarabuu, pois este
atingia as cabeceiras do rio Verde que contravertem com as guas do
Paraba na garganta do Emba e continua pelas guas do primeiro rio at
ser avistado o morro do Caxambu, passando da para o Inga e deste para
o Grande e, fnalmente, para o rio das Mortes na altura de Ibituruna.
3. Bandeira de Andr de Leo e a caracterizao da passagem pelo
Emba
No ano de 1601, mais precisamente em julho, o mesmo D. Francisco
de Souza patrocinaria a bandeira de Andr de Leo que se internaria no
serto de Minas Gerais em busca da lendria serra de Sabarabuu, que se
acreditava poca ser rica em prata. Essa expedio seguiu o curso do
rio Paraba do Sul at a entrada da Mantiqueira, pela garganta do Emba,
e da, conforme admitem consagrados historiadores, deve ter atingido as
nascentes do rio So Francisco, sem, no entanto, alcanar as to sonhadas
minas de prata.
Retornou Andr de Leo a So Paulo em abril de 1602, e sua
viagem foi relatada pelo mineralogista holands Wilhelm Jost ten
Glimmer, participante da expedio, constando tal relato da obra Histria
Natural do Brasil, publicada em Amsterd em 1648, por George Marcgraff
(a edio utilizada neste artigo aponta Jorge Marcgrave).
Sobre essa expedio retiramos alguns excertos do que foi relatado
por Glimmer e que determinam o caminho seguido pela bandeira de
Andr de Leo. Vejamos, ento:
Tendo partido primeiro da cidade de So Paulo, na Capitania
de So Vicente, chegando ao municpio de S. Miguel,
margem do rio Anhembi, e l mesmo encontramos provises
preparadas que os brbaros deviam carregar aos ombros.
Em seguida, atravessamos aquele rio e nos adiantamos a p
em direo ao Norte, quatro ou cinco dias, num caminho
atravs de densos bosques, para o riacho que nasce nos montes
Guarimumis, ou Marumiminis, onde h metais de ouro. Ali,
tendo reunido canoas de cascas de rvores, em cinco ou seis
dias, descemos seguindo este riacho e cortamos num rio
maior procedente da regio ocidental. Aquele primeiro riacho
desce por campos baixos e midos, e notveis pela beleza.
Como descssemos dois dias, seguindo este maior, cortamos
num rio ainda muito maior, que nasce nos montes
Paranapiacaba do lado do Norte, e correndo, a princpio,
para o Ocidente, na mesma direo dos montes, depois,
formando um cotovelo, se encaminha por algum tempo para
o Norte, e, afnal, como vulgarmente se acredita, desemboca
no Oceano entre o Cabo Frio e a Capitania de Esprito Santo;
notavelmente abundante em peixes, tanto grandes quanto
pequenos; chamam o rio de Sorobis. Tendo descido este
quinze ou dezesseis dias, chegamos catarata onde o rio,
apertado pelos elevados montes, corre rpido em direo ao
Oriente: por isso aqui nossas canoas abandonamos e de novo
a p comeamos o caminho, pela margem de outro rio que
vem do ocaso e no prprio para os navios. Chegamos em
cinco ou seis dias a altssimo monte, o qual, tendo sido
transposto, descemos nas plancies descobertas, tambm
sombreadas aqui e ali pelos bosques, nos quais viam-se
lindssimos pinheiros, que do frutos do tamanho de uma
cabea humana; cujas nozes grossas de meio dedo so
cobertas de uma casca semelhana de castanhas, e so
excelentes de sabor e de nutrio. Depois, pelo espao de
trs dias, chegamos a um rio que desce do Nascente, o qual
Bandeirantes nas terras altas da Mantiqueira ______________________________________________ Paulo Paranhos 217
218 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
atravessando em quatorze dias, ganhamos direo do vento
Noroeste, por plancies descobertas e outeiros despidos de
rvores, at outro rio, prprio de navios, proveniente do
Aquilo e atravessamo-lo em barcos, os quais chamam
jangada... Depois por todo este caminho que at aqui
descrevemos nada vimos de cultivado, nem um mortal, aqui
ali somente runas e aldeias, nada para alimento, alm de
til erva e alguns frutos silvestres... decorrido um ms no
tendo sido encontrado nenhum rio, chegamos a uma estrada
larga e trilhada, e dois rios de tamanho diverso, que, correm
para o Ocaso, entre as montanhas de Sabaraasu, e saem com
difculdade em direo ao Norte; e penso serem estes, fontes
ou nascentes do rio So Francisco.....
15
O ilustre gelogo norte-americano, Orville Adalbert Derby, um dos
fundadores, em 1895, do Instituto Histrico e Geogrfco de So Paulo,
por sugesto do no menos notvel historiador ptrio Capistrano de
Abreu, em conferncia naquele Instituto, oferece-nos uma pgina notvel
sobre aquela expedio, praticamente explicando as anotaes de
Glimmer:
Tendo partido de So Paulo, acompanhou o curso do Tiet,
passou a bandeira para um afuente do Paraba, navegou
este rio at sua seo encachoeirada, galgou a Mantiqueira,
atravessou diversos rios pertencentes ao sistema platino (vale
do Alto Rio Grande) e foi ter s cabeceiras do So Francisco,
identifcando com o Sabarabuu uma serra que provavelmente
a de Pitangui. Esta identifcao de certo resultou da ordem
expressa que a leva recebeu do governador-geral, pois este,
tendo-lhe manifestado um brasileiro um certo metal de que se
extrara abundante prata pura, tirado dos montes Sabaroason,
fascinado pela amostra, deliberou, logo que chegara a So
Paulo, mandar descobrir os tais montes, e explorar as tais
minas.
16
Sem dvida, o propsito primeiro da expedio fora nulo, porm
imperioso anotar que o caminho trilhado por Andr de Leo seria aquele
seguido, quase que 70 anos depois, por Ferno Dias Paes, conforme
apontado pelo mesmo Orville Derby.
De igual sorte, no podemos supor que na passagem algumas famlias
no fossem ali constitudas, com a sada de um ou de outro integrante da
bandeira, o que teria proporcionado, talvez, a fxao de arremedos de
povoados naquela regio, at mesmo em miscigenao com os indgenas
locais, muito provavelmente com os puris, considerando-se as informaes
constantes do mapa etnogrfco traado por Curt Nimuendaju que do conta
de que, subindo a serra da Mantiqueira, pela margem esquerda do Paraba,
a partir de Guaratinguet at a altura de Itatiaia, havia ali uma concentrao
daqueles indgenas, entre 1597 e 1645, os mesmos puris que seriam
encontrados em 1800 quase que na nascente do rio Grande.
Knivet tambm informa que na regio por onde andou, mais
precisamente, na subida da Mantiqueira, vindo pelo Paraba do Sul, havia
grande quantidade de selvagens chamados puris.
17
O Dr. Heitor Antunes de Souza, atravs dos estudos feitos sobre a
cidade de Itanhandu, aponta que na regio habitavam os indgenas
catagus, porm, em todas as pesquisas que realizamos dentre os etnlogos
mais afamados do Brasil, como Manuel Diegues Junior, Darcy Ribeiro e
o prprio Nimuendaju, no conseguimos atinar de que forma aquele
ilustre magistrado chegou a essa concluso, uma vez que os catagus
estavam em regio muito mais distante dali, encontrados, inclusive, em
Bambu, originrios dos antigos catu-au. Alis, sobre o tema Waldemar
Barbosa informa que o termo catagus serviu para designar o serto
habitado por aqueles indgenas, nada tendo a ver com a atual cidade de
Cataguases.
Acrescente-se, tambm, que Diogo de Vasconcelos anota em sua
obra que em Lagoa Dourada existia um arraial antigo com o nome de
Cata-Au, memria nica e fnal que relembra o poder outrora terrvel e
o nome belicoso dos senhores do serto.
18
Assim, na realidade os catagus
existiram a partir da regio das minas para o norte e no para o sul das
Minas Gerais.
Bandeirantes nas terras altas da Mantiqueira ______________________________________________ Paulo Paranhos 219
220 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
4. A passagem para o interior das Gerais pela garganta do Emba
Diante de muitas e vrias controvrsias, no restam dvidas de que
a garganta do Emba foi o caminho mais batido por esses primeiros
sertanistas, que se internaram sob recomendao do governador-geral do
Brasil, D. Francisco de Souza. Sustentam historiadores de renome, e aqui
citamos o Dr. Mario Leite, que poderia um ou outro, que de So Paulo
procurou o vale do Paraba, ao chegar altura de Pindamonhangaba,
para transpor a Mantiqueira, ter subido pelo vale do Piracuama, mais
ou menos no traado da atual Estrada de Ferro de Campos do Jordo,
descendo depois pelo Sapuca, para passar ao rio Verde.
19
Alis, essa
tambm a idia comungada pelo j mencionado Dr. Orville Derby,
quando, de igual sorte, descreveu a rota da bandeira de Martim Correia
de S, que se internou em territrio mineiro por volta de 1596, muito
possivelmente na esteira de Joo Pereira de Souza Botafogo e
anteriormente, inclusive, passagem de Andr de Leo.
Percorrendo a regio, pudemos aquilatar a fora de todas essas
informaes e chegamos concluso de que o roteiro descrito por todos,
inclusive pelo padre Antonil, em 1711, no pode ter sido feito por outro
caminho seno pela garganta do Emba, na serra da Mantiqueira, pelo
menos at 1700, quando j estaria aberta uma parte do caminho novo de
Garcia Rodrigues Paes, partindo do Rio de Janeiro em direo a Vila
Rica, caminho este que estaria completamente aberto e transitvel entre
1722 e 1725.
Francisco Tavares Brito, na edio do Cdigo Costa Matoso,
determinou dois roteiros aos quais chamou de itinerrio geogrfco com
a verdadeira descrio dos caminhos, estradas, roas, stios, povoaes,
lugares, vilas, rios, montes e serras que h da cidade de So Sebastio
do Rio de Janeiro at as Minas de Ouro. Ao que tudo indica, tal itinerrio
foi escrito para atender a demanda do ento secretrio real Alexandre de
Gusmo em tratativas por Portugal junto Espanha e que antecederam ao
famoso Tratado de Madri.
Importa para o que aqui est em discusso o roteiro do caminho
velho, que viriam corroborar todos os observadores e viajantes anteriores
que por ali passaram. Seno, vejamos o que diz o Cdice Matoso,
resumidamente, aps a sada do Rio de Janeiro, passando por Santos e
subindo para So Paulo:
Desta cidade se parte para as Minas e se passa pelas
passagens seguintes: Nossa Senhora da Penha, vila de Mogi;
vila de Jacare (passa-se, antes de entrar na vila, o rio
Paraba, em canoa); princpio do Capo Grande; Capela;
vila de Taubat; vila de Pindamonhangaba; vila de
Guaratinguet. A esta vila tambm vem dar o caminho de
Parati, que chamam o Caminho Velho, e quem sai de Parati,
vem ao Bananal, sobre a inacessvel serra e descansa na
Apario; passa-se o rio Paraitinga (que toma aqui o nome
das serranias por onde passa e logo depois se chama Paraba
do Sul); e se pernoita no stio que tambm toma o nome do
rio; Afonso Martins; passa-se aqui o rio Faco; vai-se
Encruzilhada e se entra depois na vila de Guaratinguet, j
dita, e dela se parte para as Minas, passando em canoa, e
da a breve distncia o rio Paraba, no stio de Aipacar; e
se prossegue a caminho das Minas. Emba; passa-se um rio
vinte vezes, e por isso se chama o Passa Vinte; sobe-se a
notvel cordilheira ou serra da Mantiqueira; passa-se outro
rio trinta vezes e lhe chamam o Passa Trinta; e se vai ao
Pinheirinho; da a Rio Verde; Pouso Alto; Boa Vista.
20
Da em diante, aps terem passado por Baependi, seguem os
mesmos caminhos j conhecidos, atravs dos rios Inga e Grande,
alcanando as lavras do rio das Mortes e do rio das Velhas.
certo que historiadores de renome como Capistrano de Abreu e
Affonso de E. Taunay entendem que este caminho no seria o mais
signifcativo e sim o de Atibaia e que o mesmo no teria sido utilizado
por Ferno Dias Paes, pelo simples fato de que ele no registrara tal rota
na Cmara de Taubat. realmente difcil de se crer que o famoso
esmeraldista no haja passado pela garganta do Emba, mesmo porque
Bandeirantes nas terras altas da Mantiqueira ______________________________________________ Paulo Paranhos 221
222 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
antes dele ali j haviam estado homens como Joo Pereira de Souza
Botafogo, o prprio Martim Corra de S e Andr de Leo, e que foram
decisivos informantes quanto s condies de travessia e difculdades as
mais diversas na procura da regio das minas de ouro.
Conforme se pode constatar de estudos minuciosos das rotas
bandeirantes, em conferncias havidas no Instituto Histrico e Geogrfco
de So Paulo, a passagem por Atibaia, como querem os ilustres
historiadores apontados, levava a outras regies, principalmente ao sul de
Mato Grosso e Gois; isto efetivamente no aconteceria se dessem uma
grande guinada em direo ao Sapuca para alcanar o Verde e da em
diante para o rio das Mortes, o que era improvvel, haja vista a rota
traada pelos dois Anhangueras e, posteriormente, por Raposo
Tavares.
Com todo o respeito que merecem os insignes historiadores, parece-
nos coberto de razo o Dr. Orville Derby quando sustenta com muita
propriedade - haja vista a produo cientfca que deixou consignada nos
Anais do Instituto Histrico e Geogrfco de So Paulo, com cartas
geogrfcas extremamente explicativas sobre este tema a passagem de
Ferno Dias Paes pelo Emba, podendo, inclusive, ter o bandeirante
lanado ali os fundamentos dos povoados de Passa Quatro, Itanhandu e
Pouso Alto.
21
Na serra da Mantiqueira, comprovadamente, havia trs passagens,
o que confundiu, por muito tempo, os historiadores: a primeira delas, por
Jacare, pelo passo do rio Buquira; a segunda, por Trememb, pelos vales
dos rios Piracuama e Sapuca e a terceira, descendo por Guaipacar
(Lorena), atingindo a garganta do Emba pelo rio Passa Vinte. Apesar da
suposio daqueles historiadores, conforme nos informa Mario Leite, o
caminho da Mantiqueira era, sem dvida, o trecho mais batido desses
primeiros sertanistas que se internaram a mando de D. Francisco de
Souza.
Segundo ainda o consagrado autor de Paulistas e Mineiros,
plantadores de cidades, teria um ou outro bandeirante procurado o vale
do Piracuama, subindo a atual cidade de Campos do Jordo, descendo o
rio Sapuca para chegar ao rio Verde, mas no a maioria deles.
Lembra-nos, como forte exemplo, que o bandeirante paulista Gaspar
Vaz da Cunha (um dos primeiros descobridores de ouro em Cuiab, em
1723), no ano de 1703 teria aberto um caminho, o primeiro existente, de
Pindamonhangaba na direo do rio Sapuca, caminho este seguido,
inclusive, por Miguel Garcia, na expedio de 1677, comandada por
Loureno Taques, para descobrir as minas de Itagyb, que estavam
localizadas no atual territrio de Delfm Moreira.
Notas
1. Mesmo que no incio no se intitulassem bandeiras nem bandeirantes
apenas sertanistas o Registro Geral da Cmara de So Paulo, de
1621, aponta que Martim de S, servindo de capito-mor de So
Vicente, nomeou Ascenso Ribeiro capito da infantaria e ordenana
da vila de So Paulo o qual tinha debaixo de sua bandeira quarenta
soldados (citado por Washington Luis, in Na Capitania de So
Vicente, p. 174).
2. Na Capitania de So Vicente, p. 173.
3. Idem.
4. Viagem provncia de So Paulo, p. 27.
5. A idade do ouro do Brasil, p. 47.
6. Vida e morte do bandeirante, p. 32.
7. Idem, ib.
8. Idem, p. 74.
9. Idem, p. 33.
10. Washington Lus, op. cit., p. 177.
11. Op. cit., p. 28.
12. Bandeirantes e pioneiros, paralelo entre duas culturas, p. 138.
13. Paulistas e mineiros, plantadores de cidades, p. 57.
14. Corsrio ingls que tomou parte na desastrosa viagem do navio
Leicester, de Thomas Cavendish e que acabou dando nas costas do
Rio de Janeiro, sendo aprisionado pelos portugueses. Participou de
vrias incurses aos sertes do Brasil e deixou uma obra interessante
denominada Vria fortuna e estranhos fados.
Bandeirantes nas terras altas da Mantiqueira ______________________________________________ Paulo Paranhos 223
224 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
15. Histria natural do Brasil, pp. 263-264.
16. Revista do IHGSP, v. IV, pp. 329-350.
17. Vria fortuna e estranhos fados, p. 66.
18. Histria antiga das Minas Gerais, p. 118.
19. Op. cit., p. 62.
20. Cdice Costa Matoso, p. 902.
21. A bandeira de Ferno Dias, independentemente de seu fracasso com
relao ao plano original, teve o condo de ostentar em seu grupo
trs importantes sertanistas que, posteriormente, trariam signifcativas
contribuies para a regio das Minas Gerais: o primeiro deles foi
Mathias Cardoso, pelo estabelecimento da estrada que ligou as minas
de ouro aos currais de gado no rio So Francisco; o segundo foi
Borba Gato, responsvel pelo devassamento do rio das Velhas, na
altura de Sabar e o terceiro foi Garcia Rodrigues Paes, que abriu
uma via nova de comunicao, mais rpida, partindo do Rio de
Janeiro, para as minas de ouro, o chamado caminho novo. Atente-
se, inclusive, que Ferno Dias partiu de Piratininga em 21 de julho de
1674, indo na frente da bandeira Mathias Cardoso na primeira leva
que partiu em 1673. Da o cuidado que se deve ter quando se fala na
passagem de Ferno Dias pelas terras da Mantiqueira em 1673.
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Bandeirantes nas terras altas da Mantiqueira ______________________________________________ Paulo Paranhos 225
O BICHO DE PEDRA AZUL
Tadeu Franco*
Conta a lenda que um rapaz
vaidoso e fanfarro
preparou-se para ir
ao forr da Cachoeira,
nos confns do Paje,
l na boca da caatinga
onde o rasga-mortalha
faz a noite tenebrosa.
Sua me, mulher zelosa,
dona de pelo na venta
disse no ao seu intento
e soltou no pasto ermo
o cavalo sem arreio
deixando assim o sujeito
ainda mais violento.
O cujo, quando se viu
impedido de sair,
montou na me indefesa
como se fosse um animal
dos cabelos fez a rdea
com a roseta da espora
feriu at desatar
* Cantor e compositor, reside em Belo Horizonte
230 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
uma sangria fatal.
Depois do ato horroroso
ele jamais sossegou
enlouqueceu de remorso
morreu sem extrema-uno.
Ao encontrar o tinhoso
recebeu esta misso:
vagar pelo vo trevoso
do fundo da sepultura
em forma de co raivoso
ou algum bicho pago
que vive na encruzilhada
a perseguir o cristo.
De sua carneira suja
rachada de dentro a fora
sai cabelada hirsuta
do corpo da besta fera
de assustar o devoto
que ali vai visitar.
O que a moada gosta
quando dia de fnado
futucar o rachado
com um talo de capim
que o ru toma da gente
com um puxo repentino
sem se dar conta que aquilo
brinquedo de menino.
s vezes ele aparece
como rapaz alinhado
e ataca virgem moa
em pacato povoado;
invade boas fazendas
de algum parente seu
comendo as alimrias
sem a menor compaixo.
Esse defunto vivente
fez sua fama medonha
no h quem no o conhea
no vasto Jequitinhonha
quem no conte uma histria
ou mesmo quem nunca viu
nas noites de lua cheia
uma galinha chocando
meia dzia de leites
como se fossem pintinhos
ou uma porca brilhante
puxando fla gigante
de pintinhos rechonchudos
que nem gordos leitezinhos.
Acredite se quiser
no malassombro do caso
se um dia for acol
em terras de Pedra Azul
vai ouvir algum falar
do tal que belzebu
que ainda hoje cumpre
sua pena dolorosa
como o mais assustador
dos lobisomens daqui.
Esta minha verso
da histria que aprendi
contada pelo meu pai
que ouviu por sua vez
da boca de meu av;
que se algum malfazejo
desguarnecido de f
faz pacto com o satans
o exu do candombl
O bicho de Pedra Azul _________________________________________________________________Tadeu Franco 231
232 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
o judas do cafund
s merece ter um fm:
de ser escravo do mal
o prprio famalial
o Bicho de Fortaleza
das ruas de Itaobim.
A DANARINA INDIANA
Lucas Viriato*
Os movimentos de Minu
no centro do salo
no cabiam nas palavras.
As palavras so paradas
no batem os ps no cho
no movem a cabea para c e para l
no tm sinos nos tornozelos
nem uma bola vermelha nas mos
nem brincos que balanam
nem uma gota no centro da testa
e nem a verdade de um s mudr seu.
Onde vai a mo
vai o olhar
vai a alma
devolvendo a calma
que a palavra nos roubou.
*Poeta e editor do jornal literrio Plstico Bolha.
FORA EM TRANSE
Jairo Polizzi Gusman*
Heri sem borla e capelo
Sem elmo nem lana,
Tua existncia dispensa
As pompas do mundo.
De inconstil pacincia
E desmedido esforo
Se tece teu ofcio
E segues annimo o curso fabril
A usinar coroas, sonhos e pinhes.
Sem memria a esperana se forja
A vida se une a um novo tempo.
* Advogado e poeta.
SOU DO MUNDO,
SOU MINAS GERAIS
Ozrio Couto*
Eu sou do Mediterrneo
em romntica inspirao,
e calo a bota da ptria.
Ar contemporneo
nas ondas do Atlntico.
O cu e as estrelas
perduram no corao
do Cruzeiro do Sul,
da Amrica portuguesa.
Vera Cruz e sintonia
do ferro em Minas Gerais.
Sou barroca, Piemonte
e sinfonia.
Verdi e Carlos Gomes.
Napolitana memria
no mar de Capri.
* Escritor, jornalista, editor.
240 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
Sou Trieste e naveguei
no Adritico.
Deparei-me com a beleza
da Guanabara
e um sonho: Recife-Veneza,
e o alaranjado nico
do pr-do-sol do Curral del-Rey.
Clssica em Michelangelo,
Da Vinci e Santos-Dumont.
Via Appia e Via Kubitschek,
Calabroni e Leonello Berti
Portinari e Yara Tupynamb.
Renascimento sempre!
Lngua latina,
juventude eterna.
Dante e Rosa,
e os poetas conspiradores
de vontades ntimas
e probalidades.
Imprio dos Csares.
Imprio dos Pedros.
Deuses romanos
de Roma papal.
De Coliseu e Niemeyer,
e Liberdade!
Sou do tamanho dos Alpes
e, das montanhas alterosas,
a imensido do horizonte!
Bandeira e Capara,
contornos sem limites.
Sou pedao de mundo
belo e sensvel
nas guas turquesa-claras
do Arno, e nas celestes
infnitas do So Francisco.
A orao, a arte, o amor,
a amizade do Brasil.
E das Amigas da Cultura,
sou Anita Uxa!
"Sou do mundo, sou Minas Gerais" _______________________________________________________ Ozrio Couto 241
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3 Os artigos devero vir digitados na fonte Times New Roman,
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4 Notas de rodap devero constar no fnal do artigo, numeradas
de acordo com a referncia no texto.
5 As referncias bibliogrfcas traro todas as informaes, obser-
vando-se os critrios abaixo; ttulos e nomes no so abreviados.
VIEIRA, Jos Crux Rodrigues. Obra Potica I. Belo Horizonte:
Editora B, 2006. 444 p.
BOSCHI, Caio; MORENO, Carmen; FIGUEIREDO, Luciano.
Invent rio da Coleo Casa dos Contos. Belo Horizonte: Editora PUC,
2006. 560 p.
IGLESIAS, Francisco. Poltica Econmica do Estado de Minas
Gerais (1890-1930). In V Seminrio de Estudos Mineiros. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1982.
(Observar esta ordem: sobrenome do autor em letras maisculas; ttulo
em itlico; tratando-se de captulo ou parte de obra, entre aspas, fcando
em itlico o ttulo geral; cidade (dois pontos), editora, data, nmero de
pginas (se indicado).
244 REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS
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data.
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em que for publicado.
Outras informaes podero ser solicitadas pelo telefone (31)
3222-5764.