Eric Hobsbawm - A História Como Síntese Interpretativa - Afonso Carlos Marques Dos Santos

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Eric Hobsbawm: a Histria como sntese interpretativa

Afonso Carlos Marques dos Santos


Prof. Titular de Teoria e Metodologia da Histria da UFRJ
Eric Hobsbawm provavelmente o historiador de lngua inglesa mais traduzido e publicado no Brasil. Seus livros,
notveis pela abrangncia temtica e pela qualidade da sntese, foram se tornando, desde a dcada de 70, leituras
obrigatrias nos cursos brasileiros de Histria. Historiador de formao marxista, tendo estudado em grandes
universidades europias, sua obra procurou compreender a Histria Contempornea atravs de momentos chaves,
assinalados por tenses e conflitos sociais e que resultaram em revolues e guerras. Sua escrita da Histria foi dirigida,
na maioria das vezes, no para um fechado circuito de especialistas, mas para um pblico de leitores cultos, para aqueles
que desejam saber como e porque o mundo chegou a ser o que hoje e para onde caminha. As suas Eras foram dirigidas
para esses leitores e, apesar de se constiturem em obras autnomas, representam no conjunto um magnfico painel da
Histria Contempornea.
A Era das Revolues, cuja primeira edio inglesa de 1962, estudava as transformaes do mundo entre 1789 e 1848,
buscando compreender o alcance do que Hobsbawm chamou de dupla revoluo (a francesa de 1789 e a revoluo
industrial britnica). Desde o incio, porm, as Eras foram marcadas pela tentativa de abranger os efeitos mundiais das
grandes transformaes ocorridas na Europa. O autor no se propunha a realizar uma narrao detalhada dos fatos, mas
uma interpretao - identificada com o que os franceses chamam de alta vulgarizao e construda necessariamente a
partir da sntese bibliogrfica. Nos quatro livros das Eras, alm do perodo das revolues, Hobsbawm tratou da Era do
Capital: 1848-1875, da Era dos Imprios: 1875-1914 e da Era dos Extremos.O breve sculo XX: 1914-1991, sempre
preocupado em fornecer o sentido histrico de cada uma dessas temporalidades e identificar as razes de nosso mundo
contemporneo. Seu objetivo permanente, reiterado no terceiro livro da srie, foi ver o passado como um todo coerente
e no (como a especializao histrica tantas vezes nos fora a v-lo) como uma montagem de tpicos isolados: a histria
de diferentes Estados, da poltica, da economia, da cultura ou outros). Hobsbawm revelava que sempre quis saber como
se articulam todos esses aspectos da vida passada (ou presente) e por qu, porm nunca pretendeu ficar num plano
meramente descritivo, antes privilegiando a argumentao sobre uma questo bsica que atravessaria os seus captulos.
evidente que Hobsbawm orientou a sua construo historiogrfica a partir de uma ambio totalizante, muito cara ao
marxismo, mas soube faz-lo com sensibilidade, ampla cultura geral e abertura para novas formulaes oriundas de outras
tendncias historiogrficas. Abertura que deve ter desagradado queles que, do lado de c do Atlntico Sul, vivem
incomodados com o que chamam modismos ps-modernos ou desvios irracionalistas das temticas clssicas da
ortodoxia marxista. Na introduo de A Era dos Imprios Hobsbawm usou como epgrafe uma passagem de Pierre Nora
em Les Lieux de Mmoire, onde a histria aparece como a sempre incompleta e problemtica construo do que j no
existe. Nesta citao, Nora, ao demarcar as distines entre memria e histria tambm afirma: A memria sempre
pertence a nossa poca e est intimamente ligada ao presente eterno; a histria uma representao do passado.
Hobsbawm , ao problematizar o perodo 1875-1914, comea pela prpria histria da sua famlia valendo-se da memria
para motivar a penetrao num tempo que se fecha na altura do seu prprio nascimento. Recorre, portanto, a uma
dimenso biogrfica e individualizada da existncia humana para falar de um tempo socialmente repartido. E curioso
que tenha lanado mo de Pierre Nora, uma personalidade central no campo da editorao de obras histricas na Frana.
A heterodoxia de Hobsbawm certamente no deve ter agradado queles que, mesmo sem muita familiaridade com a
produo historiogrfica internacional, apontam de forma condenatria para o que seria a nossa francofilia no campo
dos estudos histricos.
O exame cuidadoso das quatro Eras, publicadas entre 1962 e 1994, mostra um autor em permanente evoluo apesar de
fiel s suas inquietaes originais. No trato da questo nacional na histria contempornea, por exemplo, Eric Hobsbawm
apresentou sensveis mudanas, reveladas na forma como o fenmeno nacional foi sendo revisto em cada uma das Eras. E
exatamente num tema muitas vezes escamoteado no debate marxista. Numa de suas obras mais instigantes, Naes e
Nacionalismo desde 1780, publicado no Brasil em 1990, as mudanas no seu pensamento ficam mais evidentes quando
refaz a periodizao do fenmeno, identificando trs momentos: o primeiro, no sculo XVIII, em especial a partir da
conjuntura da Revoluo Francesa, produzindo a idia poltica de nao; o segundo, o tempo da construo do estado-
nao com a sua funo de pedra angular do desenvolvimento econmico-capitalista e o terceiro tempo, o do
nacionalismo - que emerge com a democratizao da poltica. Hobsbawm, desde a primeira metade dos anos 80, vinha
chamando a ateno para este terceiro tempo, que tornava possveis os movimentos nacionais de baixo, mais do que os
de cima. Assim considerava que era neste momento que a nao comea a tornar-se um problema. As posies que
Hobsbawm foi reformulando no tempo indicam um intelectual livre de ortodoxias e que sempre procurou investir contra
as mistificaes no conhecimento do passado e do presente humanos.
Outro excelente exemplo das inovaes de Hobsbawm foi a coletnea que coordenou com Terence Ranger, A Inveno
das Tradies, onde tomava o estudo das tradies como um caminho para esclarecer as relaes humanas com o passado
e, consequentemente, a histria da histria e do ofcio de historiador. Para Hobsbawm todos os historiadores contribuem,
conscientemente ou no, para a criao, demolio e reestruturao de imagens do passado que pertencem no s ao
mundo da investigao especializada, mas tambm esfera pblica onde o homem atua como ser poltico. Hobsbawm
considerava neste livro que os historiadores deveriam estar atentos a esta dimenso de suas atividades. O que tem nos
levado a defender a Historiografia como um campo especfico da pesquisa histrica, sob a exigncia da necessria
construo de uma epistemologia crtica da histria - algo que ainda encontra muitas resistncias em ambientes
acadmicos aprisionados num empirismo rudimentar e em velhas supersties positivistas.
Em 1997 Hobsbawm publicou um novo livro, imediatamente traduzido para o portugus e lanado recentemente pela
dinmica Companhia das Letras. Trata-se de um livro de ensaios intitulado On History (Sobre Histria, na edio
brasileira) onde o historiador ingls reuniu textos que tiveram sua origem em conferncias, resenhas, artigos de revistas e
uma introduo ao Manifesto Comunista. O livro apresenta a marca de originalidade e a erudio que sempre
caracterizaram o autor. Hobsbawm discute a Histria Contempornea com os olhos postos, mais do que nunca, no
presente vivido, sem omitir a sua prpria experincia intelectual e poltica, no ocultando ter dedicado grande parte de sua
vida a uma esperana que foi claramente desapontada, e para uma causa que evidentemente fracassou: o comunismo
iniciado pela Revoluo de Outubro. Por outro lado considera que nada como uma derrota para aguar a mente do
historiador. Cita Reinhard Koselleck, a quem considera como um velho amigo de convices muito diferentes, quando
este comenta que no curto prazo a histria pode ser feita pelos vencedores, mas que no longo prazo os ganhos em
compreenso histrica tm advindo dos derrotados. Mesmo relativizando as avaliaes de Koselleck, Hobsbawm
tambm faz uma avaliao positiva das possibilidades historiogrficas contemporneas. Para ele o fim do milnio deve
inspirar muita histria boa e inovadora. Isso porque, medida que o sculo termina, o mundo est mais cheio de
pensadores derrotados preocupados com uma variedade muito ampla de insgnias ideolgicas que de pensadores
triunfantes - principalmente entre aqueles com idade suficiente para terem longas memrias.
Hobsbawm discute, nos vinte e dois ensaios, temas como: o problema das identidades nacionais na Europa Central, o
significado do Manifesto Comunista, a contribuio de Marx para a Histria, a Revoluo Russa, as relaes entre
historiadores e economistas, a assimilao ps-moderna da narrativa historiogrfica a outras formas de narrativa, as
relaes entre a escola dos Annales e a historiografia britnica e a noo de progresso no conhecimento histrico, entre
outros. So reflexes de quem se dedica h cinqenta anos ao ofcio de historiador e de um intelectual que, naturalmente,
aproveitou as conferncias para explicitar as suas concepes tericas e metodolgicas. Contudo, o leitor atento deve
examinar cuidadosamente a forma como o historiador ingls retoma, no Prefcio, dois temas centrais nas discusses
propostas no livro: a questo da verdade na histria e o problema da abordagem marxista da histria.
Para a primeira questo, as opinies de Hobsbawm so categricas, em especial quando afirma defender vigorosamente
a opinio de que aquilo que os historiadores investigam real. Para ele os historiadores devem partir de uma distino
fundamental entre fato comprovvel e fico, entre declaraes histricas baseadas em evidncias e sujeitas a
evidenciao e aquelas que no o so. Hobsbawm investe contra os pensadores que mesmo se julgando de esquerda
negam que a realidade objetiva seja acessvel, uma vez que o que chamamos de 'fatos' apenas existem como uma funo
de conceitos e problemas prvios formulados em termos dos mesmos. Irrita-se desmesuradamente com aqueles que
considerariam o passado como um construto de nossas mentes. O que impressiona nas afirmaes do Prefcio a
retomada de um dogmatismo materialista difcil de reconhecer em muitos dos seus trabalhos. O historiador de A Inveno
das Tradies aparece aqui como um sacerdote a reafirmar seu credo. O sectarismo passa a ocupar o lugar da
argumentao e o historiador irreverente d lugar, no seu discurso, para a defesa de atitudes daqueles que no querem a
discusso epistemolgica da histria e que tomam o conhecimento do passado como o encontro com o j dado, como se
os fatos no fossem sempre o resultado de uma escolha e de uma leitura do acontecido. Confunde-se a o grande
historiador de obras como A Era dos Imprios com os nostlgicos de um tempo onde a confiana numa cincia da
Histria sublimava as carncias tericas do campo de conhecimento. Hobsbawm parece esquecer que a histria uma
disciplina que tem histria e historicidade e que, na sua constituio, os historiadores muitas vezes fabularam para
inventar um passado que legitimasse a nao (como no caso do sculo XIX) ou o estado (como no caso das trgicas
experincias do nazi-fascismo e do comunismo no sculo XX).
No segundo tema destacado no Prefcio, Hobsbawm reitera no apenas a sua filiao ao marxismo, considerando a
concepo materialista da histria como o melhor guia para a histria, mas reafirma a sua ambio permanente de
desenvolv-la como um projeto intelectual coerente. Acredita, ainda, que a histria fez progressos no entendimento de
como o mundo passou a ser como hoje. Esta a dimenso central de sua obra, o estudo da Histria Contempornea
para permitir a intelegibilidade do mundo atual. Na verdade as realizaes historiogrficas de Hobsbawm so a melhor
recomendao para a perspectiva da histria a que esteve filiado. Sua ambio totalizante resultou em belas snteses
interpretativas e que foram o resultado do aproveitamento inteligente da produo historiogrfica acerca do
contemporneo. As suas snteses so mais o resultado das obras escritas pelos seus colegas historiadores do que a
conseqncia de grandes programas de pesquisa, onde ele mesmo tivesse que administrar o rduo trabalho de
identificao e coleta de dados em incontveis acervos de fontes primrias em todo o mundo. Trabalho interpretativo
louvvel, mas que deve ser colocado na sua exata dimenso. Afinal, foi ele mesmo que na Era das Revolues identificou
o que fazia como parte da alta vulgarizao.
O discurso introdutrio de On History, muitas vezes incoerente com o Hobsbawm leitor aberto de vrias correntes e
contribuies historiogrficas e que soube aproveit-las na sua obra, pode levar a divulgadores desta parte do mundo a
supor que esto legitimados pelo destempero ortodoxo do velho historiador ingls. Mas preciso alert-los para o fato de
que a rea de conhecimento vai ficando cada vez mais exigente e profissional, o que deve resultar num refinamento
crtico. Sob a ambio totalizante de alguns intelectuais (que muitas vezes se autodenominam como jurssicos) ainda
podem estar ocultos velhos desejos totalitrios, os mesmos que conduziram ao fracasso as burocracias do Leste europeu.
O marxismo, sem dvida, deixa um legado importante para a Histria como disciplina, supostamente ameaada pela
fragmentao ps-moderna. A ameaa maior para o pensamento, todavia, aquela que interdita a crtica e que se abriga
num requentado discurso conservador que teme o novo desqualificando-o como modismo. o ltimo recurso de um
autoritarismo intelectual, usual entre aqueles que confundem a ambio totalizante do conhecimento com o monolitismo
das idias e que, como carpideiras de um tempo morto, temem uma reviso epistemolgica radical nos objetos e
procedimentos da Histria.
Estas consideraes sobre o autor e as possveis recepes locais do seu ltimo livro no devem significar uma atitude
depreciativa em relao ao autor de textos admirveis como The Jazz Scene (traduzido no Brasil como Histria Social do
Jazz). Fiquemos com o melhor Hobsbawm, aquele que soube aliar, nas suas snteses interpretativas, a preciso do
conhecimento econmico e poltico s manifestaes do pensamento e da arte, sabendo manter vivo um outro importante
legado das idias socialistas, a preocupao com o humano num sentido plural.
Esta uma iniciativa de alunos do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), e este um espao pblico onde todas as colaboraes polticas, acadmicas e artsticas so bem vindas.

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