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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA EM ESTUDOS COMPARATISTAS

A FORMA DO MEIO Livro e Narrao na obra de Joo Guimares Rosa

Clara Maria Abreu Rowland

DOUTORAMENTO EM ESTUDOS LITERRIOS LITERATURA COMPARADA

2009

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Programa em Estudos Comparatistas

A FORMA DO MEIO Livro e Narrao na obra de Joo Guimares Rosa

Clara Maria Abreu Rowland

Tese orientada por

Professor Doutor Manuel Gusmo e Professor Doutor Abel Barros Baptista

Doutoramento em Estudos Literrios Literatura Comparada

2009

O senhor v aonde o serto? Beira dele, meio dele?...

Grande Serto: Veredas

Paul Klee, Ad Marginem. 1930. Kunstmuseum Basel.

ndice

Resumo Abstract Agradecimentos

1 2 3 5

Introduo

PARTE I

Indesfechos O resto que falta Terrvel simetria 20 73

Captulo 1 Captulo 2

PARTE II

O livro pode valer pelo muito que nele no deveu caber Circuito Livro Indicaes de Leitura 130 154 191

Captulo 3 Captulo 4 Captulo 5

PARTE III

S se pode entrar no mato at ao meio dele Aqui eu podia pr ponto Mais longe do que o fim; mais perto 230 274

Captulo 6 Captulo 7

Referncias bibliogrficas

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Resumo

Este trabalho prope uma leitura da obra de Guimares Rosa de Corpo de Baile (1956) at Estas Estrias (1969), construda sobre a articulao entre duas dimenses, o livro e a narrao. Interroga-se o modo como estes textos colocam em relao, na tenso entre escrita e oralidade que est na sua base, a representao do acto narrativo e a reflexo sobre a construo do livro em funo de um questionamento da forma e da legibilidade. Descreve-se a resposta que a organizao dos livros de Rosa oferece a problemas de representao e referncia, atravs de uma ateno ao paratexto e edio, e discute-se a releitura e a parbase como figuras da problematizao da leitura.

Palavras-chave Livro Narrao Releitura Parbase Joo Guimares Rosa

Abstract

This work offers a reading of Guimares Rosa's work, from Corpo de Baile (1956) to Estas Estrias (1969), built upon the articulation of two dimensions: book and narration. It questions how these texts link, through the tension between writing and oral speech that is central to them, the representation of the narrative act and the reflection on the construction of the book based on a questioning of form and legibility. It describes the answer provided by the organization of Rosas books to problems of representation and reference, by analysing their paratext and how they were edited, and discusses rereading and parabasis as elements of the questioning of reading.

Key words Book Narration Rereading Parabasis Joo Guimares Rosa

Agradecimentos

O senhor j sabe: viver etctera...

Esta tese confunde-se tanto com o tempo que passou desde que comeou a ser pensada, e com os anos da sua elaborao, que difcil escolher, em muitos casos, entre diferentes razes para agradecer. Esta tese no teria comeado a ser pensada sem as extraordinrias aulas e o exemplo do professor Manuel Gusmo, a quem agradeo a disponibilidade e a ateno durante todo este tempo. Esta tese no existiria sem a confiana e a generosidade do professor Abel Barros Baptista. A frase anterior quis dizer vrias coisas ao longo destes anos, mas nunca foi to literal como nesta fase final. Por isso, mas tambm pela partilha e por tudo o que tenho aprendido, s posso agradecer. Ao professor Herb Marks quero agradecer as lies de leitura, o encorajamento e tudo o que me tem ensinado sobre a conjugao do adjectivo literrio com um modo de vida. Esta tese tambm se confunde com a experincia de ensino no Departamento de Literaturas Romnicas da Faculdade de Letras. Aos professores e colegas que me tm feito sentir em casa queria agradecer a conversa e o apoio. Agradeo em particular a Teresa Amado, Joo Dionsio, ngela Fernandes (por muitas destas razes) e Vania Chaves. Muitas das obsesses que por aqui passam passaram tambm pelas aulas de Literatura Brasileira e Literatura Comparada (e talvez algumas mais): s posso agradecer aos alunos que as foram partilhando o entusiasmo com que, para minha surpresa, foram respondendo. O lugar desta tese o Centro de Estudos Comparatistas (e o Programa, claro). Sem os colegas, no faria sentido. professora Helena Buescu quero agradecer ainda o apoio constante ao longo destes anos. No Brasil esta tese contou com o apoio, directo e indirecto, de Llia Parreira Duarte, de Milton Ohata, de Jos Miguel Wisnik e Laura Vinci. Sem a Luz e o Caio no haveria Brasil. Ao Instituto de Estudos Brasileiros e ao Arquivo Guimares Rosa devo agradecer a hospitalidade e a disponibilizao de materiais. Companhia de Navegao do Rio So Francisco, a viagem no Santa Dorotia.

Nos Estados Unidos passei duas temporadas como visiting scholar: agradeo Orlanda Azevedo a experincia na Universidade de Berkeley e a Richard Gordon e Lcia Costigan, da Ohio State University, a generosidade com que nos receberam em Columbus. Esta tese contou com uma Bolsa de Doutoramento da Fundao para a Cincia e Tecnologia, essencial para o seu desenvolvimento. Agradeo profundamente aos servios interbibliotecrios da Ohio State University. minha me, alm de tudo, tenho de agradecer o facto de me ter ensinado a querer ler o Grande Serto. Ao meu pai por me ter dado rgua e compasso para l ir. E ao Pit, que por aqui tambm passou. Sem a companhia na travessia, nada disto faria sentido: Brbara Vallera, Clara Riso, Filipa Ribeiro do Rosrio, Francisco Frazo, Francisco Rosa, Joo Ribeirete, Jussara, Orlanda, Z Maria. Mas tambm Nuno Matos, Arianna Pieri e, apoio nos ltimos tempos, Ariane e Riccardo. Mas esta tese para o Marco, que veio ter comigo.

Introduo

Introduo

Experience has shown that it is by no means difficult for philosophy to begin. Far from it. It begins with nothing, and consequently can always begin. But the difficulty, both with philosophy and for philosophers, is to stop. This difficulty is obviated in my philosophy; for if any one believes that when I stop now, I really stop, he proves himself lacking in the speculative insight. For I do not stop now, I stopped at the time when I began. Sren Kierkegaard, Either/Or

Divulgo: que as coisas comeam deveras por detrs, do que h, recurso; quando no remate acontecem, esto j desaparecidas. Antiperiplia

I Num ensaio em que interroga as relaes entre literatura e filosofia a partir de Grande Serto: Veredas, Benedito Nunes anunciava deste modo o seu programa de abordagem interdisciplinar: Tudo o que vai ser exposto acerca dessa obra tem o carcter de reflexo sobre uma forma (Nunes 1983b: 205). Comeo por arriscar que tambm esse o ponto de partida deste trabalho, tendo em conta que o que aqui se procurar identificar o modo como na obra de Guimares Rosa se reflecte sobre a
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fico a partir da sua relao com uma forma. Essa identificao, porm, no ser feita no sentido de uma forma que represente uma instncia de questionamento de ideias que so problemas do e para o pensamento, como prope Benedito Nunes (idem: ibidem): o que aqui se procurar uma ideia de forma que responda ao questionamento da legibilidade que os livros de Guimares Rosa insistentemente pem em cena. A forma no ser, assim, entendida como veculo de problemas o problema a forma, porque nela que se questiona a inteligibilidade da representao. Como princpio de organizao da aco, a forma a questo da fico rosiana, no sentido em que perante a imposio de uma estruturao entre incio, meio e fim, para retomar a configurao aristotlica da questo, que narrativa e mundo se colocam em relao; e o que os textos que aqui analisaremos parecem demonstrar que o problema no tanto o de uma oposio entre as duas dimenses a fico que d forma ao mundo, como comum dizer-se, por exemplo, a propsito da noo de closure mas o modo como ambas se colocam em tenso com uma ideia de forma (orientao e estruturao) e lhe parecem resistir. O mundo movente, como sugere o ttulo do ensaio de Jos Carlos Garbuglio, tambm imagem do texto rosiano: ler a forma no concluda desse mundo (ou seja o modo como o mundo se furta forma) a legibilidade paradoxal que a fico de Guimares Rosa parece perseguir, atravs da forma e contra ela. A interrogao dessa legibilidade do informe ser construda sobre a articulao de duas dimenses, o livro e a narrao, considerando o modo como os textos de Rosa colocam em relao, na tenso entre escrita e oralidade que est na sua base, a representao do acto narrativo, vinculada figura do contador de histrias, e a acentuao da materialidade do livro, dando particular ateno aos pontos de contaminao entre as duas ordens (o dilogo que se faz inscrio, o livro que encena uma situao de presena). uma passagem que importante esclarecer desde j: se a oposio em causa no , como

tentarei demonstrar, uma oposio entre mundo e fico, e sim uma oposio entre mundo ou fico e a forma como condio de legibilidade, essencial concentrar a ateno nas figuras dessa oposio, que ganharo corpo na encenao de gestos de performao, no sentido com que Rosa usar o termo e que veremos em detalhe na primeira parte deste trabalho os momentos em que o mundo e as histrias so postos em tenso com a materialidade de um suporte que lhes d forma. Por esta razo que se prope, no ttulo, uma relao entre livro e narrao, e no entre livro e histria, por exemplo: como veremos nas encenaes do acto narrativo que a obra de Rosa insistentemente oferecer, a tenso com a forma constri-se numa tenso entre os ouvintes e o narrador, corpo da histria, que pe em causa a sua delimitao e bloqueia, no sentido em que retm, a sua plena transmisso. A narrao o momento em que a histria sem formato, para usar uma expresso que reencontraremos, pode ser percebida como forma atravs do corpo do contador; mas ser percebida como lacunar, incompleta, movente, pelos seus destinatrios, que procuraro impor-lhe, em nome da forma, um final. ento na tenso entre a performao da histria e a imposio de uma forma que a delimite que a legibilidade do informe como resistncia forma se constri. Assim se percebe que o livro venha a ser o ponto central deste percurso: na representao de situaes de narrativa oral, a fico de Rosa acentua precisamente a resistncia do suporte transmisso, e nesse sentido aproxima a caracterizao da narrao de problemas associados escrita e ao livro. A narrao imagem de uma tenso relacional (reteno e desejo de completude) a que o livro, enquanto ideia de totalidade numa forma material, d corpo; e o que aqui se entrev que, contrariamente ao que muitas vezes se sugere, a recriao em Rosa de um mundo de contadores de histrias no se oferece apenas como compensao de uma cultura da presena que a modernizao destruiu, nem como regresso a uma oralidade arcaica. Nos exemplos que

veremos a narrao encena atravs da acentuao do corpo uma resistncia que prpria da escrita: a representao da oralidade dirige-se para uma legibilidade diferida que o livro de Guimares Rosa encenar e o valor performativo dessa legibilidade assenta por inteiro na tenso com os limites da forma. A hiptese de que parto, assim, a de que possvel articular o tratamento reflexivo da narrao, em Guimares Rosa, com o questionamento do livro como figura de uma totalidade concluda e apreensvel, e que nessa articulao o que se d a ver uma resistncia forma que, ao pr em causa a imposio de limites (fim, comeo, margem), ir revelar-se tambm resistncia leitura. A conjugao entre narrao e livro, acentuando a dimenso do transporte a escrita como transporte de uma oralidade encenada, o livro como suporte da estria apresenta-se deste modo como o lugar privilegiado de uma interrogao que ter na materialidade do suporte (corpo do narrador, visibilidade da letra, livro material) o seu campo de tenso. A partir deste quadro, ento possvel colocar a hiptese de um trabalho sobre a forma do livro que procure superar os seus limites a partir do seu interior, impondo uma dupla temporalidade sua construo material: linear, de um lado, e recursiva, do outro, devolvendo insistentemente o leitor ao que no livro no se fez legvel, orientando o acto de leitura para a paradoxal legibilidade do que no tem formato. esse o projecto que aqui se desenvolve e sero essas as dimenses que determinam os dois primeiros movimentos deste trabalho; na interrogao do modo como o livro resiste forma imps-se, porm, um terceiro movimento, consequncia desta primeira articulao. Antes de justificar a sua posio, torna-se necessrio um pequeno desvio que articule, a partir do ttulo deste trabalho, livro e narrao com a ideia de uma forma do meio.

II

Na sequncia central do conto Cara-de-Bronze, de Corpo de Baile, a narrativa interrompe-se com a seguinte indicao de leitura: Estria custosa, que no tem nome; dessarte, destarte. Ser que nem o bicho larvim, que j est comendo da fruta, e perfura a fruta indo para o seu centro. Mas, como na adivinha s se pode entrar no mato at ao meio dele. Assim, esta estria. (I 688).1 Importante por diferentes motivos no percurso deste trabalho, o excerto exemplar de uma dificuldade intrnseca desta obra: antes mesmo de entrarmos em interpretaes mais substanciais das implicaes de uma suposio como esta para a relao entre incio, meio e fim (o todo edificado da obra), a adivinha coloca um problema determinante para qualquer tentativa de leitura da fico de Guimares Rosa, ao encenar a passagem de uma suposta descrio do mundo (o mato, o bicho larvim), para um comentrio sobre a linguagem. A adivinha assenta num desvio: de uma pergunta sobre o mato at onde se pode entrar? desloca-se, sem transio, para um jogo entre expresses at ao ponto em que se comea a sair. O problema reside na brusca transio entre os dois verbos, contguos numa relao que pe em causa precisamente o terceiro termo que os define. E o problema desse terceiro termo ser aquele a que se tentar dar resposta ao longo destas pginas, e para o qual se orientar o questionamento da legibilidade do informe que aqui se prope. Se a adivinha interroga at que ponto se pode entrar no mato, o texto de Rosa parece perguntar incessantemente em que ponto se sabe que se comeou a sair ou, por outras palavras, em que ponto a forma se fez forma. A resposta a esta pergunta, desdobrada por todos os livros de Rosa,

Todas as citaes da obra de Guimares Rosa, excepto quando indicado, sero feitas a partir dos dois volumes da Fico Completa (Rosa 1994), indicando-se apenas o volume e a pgina.

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passar necessariamente pela ideia de um diferimento, que ganhar corpo na figura, decisiva para este trabalho, da releitura. Na relao entre entrar e sair, o meio revela-se o ponto elusivo e diferido em torno do qual o texto se articula. Como se diz em Grande Serto: Veredas: Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem no muito perigoso? (II 28). Comear (e terminar) por um enigma, que necessariamente obscurece, por agora, qualquer ideia de estrutura, uma estratgia bem rosiana: no entanto, o enigma serveme para destacar um problema de leitura para o qual muitos dos esquemas recorrentes na recepo de Rosa no parecem oferecer resposta. Trata-se de um problema de reflexividade, ou do modo como, na obra de Guimares Rosa, comentrio do mundo e comentrio das estratgias de representao so continuamente sobrepostos, constituindo um n reflexivo de difcil orientao. O anacoluto que o enigma sugere disso exemplo: atravs de um vazio conceptual o centro que passamos de uma ordem supostamente mimtica para a forma da enunciao, a aco de sair ganhando ento o sentido de uma passagem (sem regresso) do mundo linguagem. O meio o espao da sobreposio entre estas duas ordens: referncia e auto-referencialidade coincidem, por momentos, nessa suspenso que se faz fronteira. Parece-me ser esse o ponto de chegada possvel de um trabalho que procure interrogar a ideia de legibilidade em Guimares Rosa: o que ope uma forma concluda e delimitada a uma construo orientada para um centro que, furtando-se a uma fixao, desestabiliza os pontos de entrada e de sada, introduzindo na forma a sua transformao. No limite, poderamos dizer que este trabalho pode ser entendido, em todos os seus momentos, como um esforo de leitura de uma das sequncias mais conhecidas da obra rosiana: Um est sempre no escuro, s no ltimo derradeiro que
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clareiam a sala. Digo: o real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a gente no meio da travessia. (II 46). O que tentarei demonstrar que numa passagem como esta se concentram e tornam visveis os principais problemas da potica rosiana: na construo de uma dimenso intervalar e diferida a travessia que no se soube ver a tempo a prpria ideia de forma estruturada que posta em questo a partir de uma ideia de centro que, vindo depois, faz da forma uma forma movente. Nesta imagem encontramos no s a resistncia que o carcter elusivo de um meio em trnsito oferece a uma legibilidade do mundo, mas tambm o ponto de tenso de uma construo da forma do livro em Guimares Rosa. O lugar de articulao destas questes questionamento da forma, reflexividade, centro ser a parbase de Corpo de Baile e o modo como permite ler, de forma mais abrangente, o trabalho sobre a suspenso intervalar que os dois exemplos de Grande Serto: Veredas j acentuavam. A parbase tambm o eixo explcito da relao entre livro e narrao (a forma do meio). Momento de suspenso da aco da Comdia Antiga, em que o coro avana para o proscnio e fala directamente aos espectadores em nome do autor, a parbase ocupava o centro da estrutura da pea. Extradramtica e perturbadora da iluso ficcional, auto-referencial e intertextual, um intervalo que interrompe e ameaa a fico contra a qual se define. Rosa incorpora a parbase, como veremos em detalhe, atravs da duplicao dos ndices de Corpo de Baile, identificando trs das sete novelas, no segundo, como parbases. O leitor verifica, nesse momento, que esses trs contos ocupavam efectivamente o lugar da parbase na estrutura do livro, situando-se, como suspenses peridicas na sua materialidade, no intervalo entre os restantes. Tal como comemos por ver no exemplo anterior, o meio do livro revela-se depois, na sada, na figura de um ndice de releitura que relana o livro em direco a si prprio a partir do seu limite. Ao tradutor italiano Rosa escrever que a classificao

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deriva de se ocuparem, os trs textos, de expresses de arte: a parbase de Corpo de Baile, deste modo, apresenta-se como momento reflexivo de explicitao potica nele a fico reflecte sobre a fico e a sua transmisso e como elemento da construo do livro, abrindo um intervalo, um centro, indissoluvelmente ligado margem do livro que o indica e identifica o ndice. atravs da parbase que encontraremos a imagem do livro rosiano: a de uma solicitao crtica que ameaa a ideia de um livro como unidade estruturada em princpio e fim para no mesmo gesto reafirmar na releitura a construo de um livro que se alimenta do seu centro. Nesta conjugao de questionamento metaliterrio e investimento numa forma desviante de livro a parbase prope-se como figura determinante para a fico de Rosa, e o que aqui se far tom-la como figura da interrogao da forma.

III O percurso que esta tese prope determina-se assim na articulao dos dois pontos anteriores. O seu movimento ir, podemos arriscar, do fim ao meio: da negao do fim como questionamento da forma construo de um intervalo para o qual a legibilidade do informe se orienta. A forma do livro, instituindo a releitura, ser o ponto de passagem. A primeira parte da tese, intitulada Indesfechos, prope, nos dois captulos que a compem, uma leitura das representaes da narrao na fico de Guimares Rosa. A veremos como a relao entre narrador, histria e interlocutor ser configurada como uma relao de resistncia, no sentido, como dizamos, de uma reteno, de uma configurao, por negao, de um sentido incompleto ou associado a uma falta, lacuna ou abertura constitutiva; mas tambm de uma tenso entre os elementos em dilogo que
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ter a sua manifestao mais forte nos textos em que Rosa recorre frmula do dilogo oculto. A reflexo en abme sobre a narrao em Guimares Rosa parece contrapor a ordem resistente do narrador que no permite o aniquilamento da histria num esgotamento do sentido que a plena transmisso, e a concluso, realizariam; e o movimento da leitura, em que ouvintes e leitores procuram impor atravs da determinao de um fechamento uma forma que delimite a histria. no encontro destas duas foras que se d aquilo a que chamei questionamento da forma e que parece funcionar, na obra de Rosa, no sentido de uma inscrio do segredo numa materialidade persistente. Essa resistncia construda, como j sugeri, atravs de uma acentuao do corpo como lugar da histria; e o que se decide nesse gesto uma coincidncia, na tenso agonstica que destaquei, entre tentativa de imposio de uma concluso e uma ideia de morte. A morte a interrupo, nestes textos, que termina aquilo que no pode razoavelmente terminar. Este movimento ser caracterizado de duas formas: no primeiro captulo, a partir de trs exemplos significativos (episdios de Uma Estria de Amor e Grande Serto: Veredas e o conto Pirlimpsiquice, de Primeiras Estrias); no segundo, numa proposta de leitura de Meu Tio o Iauaret como encenao extrema, na obra de Guimares Rosa, da narrao como acto de resistncia que resulta, perante a tentativa de eliminao do suporte, numa queda na ilegibilidade. O passo seguinte desta interrogao estabelece no trabalho sobre o livro, como figura de uma totalidade organizada e estruturada que a fico desestrutura, a forma dessa tenso. Na construo do livro rosiano procurarei identificar a resistncia que a histria ope ao livro, ou ideia de livro, ou seja a resistncia que a ideia de fico definida na primeira parte introduz no seio do prprio livro: a articulao entre livro e narrao o lugar da forma como problema. Neste movimento define-se tambm de forma mais clara o lugar deste trabalho. Nos livros de Rosa reconhece-se a insistente
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encenao de uma forma plenamente delimitada que contra os seus limites se abre como lugar de uma comunicao resistente em que se problematiza a referncia. E, no entanto, o problema do livro um problema ausente da fortuna crtica rosiana. Se exceptuarmos leituras individuais de livros em que a questo se impe, como por exemplo Tutamia, so surpreendentemente poucas as leituras que interrogam de forma transversal o papel do investimento sobre a forma do livro em Guimares Rosa, e sobretudo que o procuram relacionar com outros aspectos da sua recepo2. A questo do livro permite, porm, um questionamento integrado das tenses estruturadoras da obra de Guimares Rosa que articule diferentes leituras sem que se esgote em nenhuma delas: nesse sentido, o que me proponho nesta tese ler os livros de Rosa, acreditando que a partir deles possvel pensar uma ideia de literatura. Assim, a leitura que desenvolvo na segunda parte, intitulada O livro pode valer pelo muito que nele no deveu caber e dividida por trs captulos, interroga a dupla temporalidade em que a tenso da forma ganha corpo no livro rosiano: a linearidade do livro como forma estruturada e unificada e o prolongamento do livro, alm do seu limite, num movimento regressivo em direco ao seu centro. Essa interrogao faz-se em dois momentos. No primeiro, identifica-se uma constante dos livros de Rosa depois de Sagarana3: a construo de uma forma estrutural de desdobramento que pe em

Se, por um lado, evidente que a recepo crtica rosiana constitui hoje um corpus excessivamente vasto e disperso para que no se coloque sob suspeita qualquer tentativa de generalizao, tambm verdade que certas tendncias se tm delineado de forma muito precisa. Num ensaio publicado em 2004, Willi Bolle dividia os estudos sobre Grande Serto: Veredas em cinco grandes grupos 1) lingusticos e estilsticos; 2) anlises de estrutura, composio e gnero; 3) crtica gentica; 4) interpretaes esotricas, mitolgicas e metafsicas e 5) interpretaes sociolgicas, histricas ou polticas para sublinhar que as ltimas duas tendncias acabaram polarizando o debate em torno da obra (20), movimento visvel sobretudo, a partir do final dos anos noventa. Trata-se de uma classificao meramente indicativa que pode fazer sentido, no entanto, para uma viso de conjunto da fortuna crtica. 3 Sagarana, livro que antecede de dez anos a publicao de Corpo de Baile em 1956, ficar fora do mbito deste trabalho, apesar de muitas das questes que aqui se levantam poderem numa releitura a partir dos livros posteriores iluminar a sua leitura. Este trabalho toma como possveis limites para a escolha e coeso do corpus a construo de Corpo de Baile (1956) e Tutamia (1967), a partir do comum tratamento do livro que a, e nos livros que medeiam, se identificar. As questes principais que aqui se trataro passam pela identificao de movimentos reflexivos; como afirma Suzi Sperber, s a partir de

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causa a noo de margem, atravs da acentuao e multiplicao da dimenso paratextual e do trabalho sobre a ilustrao. Num segundo momento desenvolve-se uma leitura, a partir dos elementos de composio do livro, dos dois casos extremos de problematizao da forma que apresentam a figura de um ndice de releitura: Corpo de Baile e Tutamia. A comparao entre os dois, ideia inicial deste projecto, permitenos introduzir um elemento decisivo para o questionamento da legibilidade que aqui est em causa: nos exemplos da primeira parte, a imposio de um limite fazia coincidir morte e interrupo; no ndice de releitura, ao contrrio, o livro prolonga-se, negando a sua delimitao, em nome de uma legibilidade diferida, como tentarei demonstrar, figura ltima da leitura da forma. nesse trao que se far mais explcita a relao da forma com o tempo: inscrita na materialidade do suporte, a desestabilizao que a histria produz no livro uma desestabilizao que no anula o limite contra o qual se constri, e nesse sentido o movimento que o livro origina um movimento regressivo, que devolve, atravs da figura da parbase, o leitor de volta ao centro do livro, intervalo crtico onde a forma se suspende e revela. Neste gesto decide-se a configurao do livro como errata, forma em transformao, e a identificao dos dois plos desse movimento, que se desenvolver na parte final desta tese: a releitura e a parbase. Assim, na terceira parte, intitulada S se pode entrar no mato at ao meio dele, o primeiro captulo identifica trs movimentos desta desestabilizao regressiva do livro a partir de Grande Serto: Veredas: a revelao pstuma como figura da negao da closure; a interrupo central que questiona a forma sem a destruir, parbase do romance; e, por ltimo, o movimento retroactivo da releitura na representao da carta atrasada de Nhorinh como figura en abme deste questionamento da legibilidade. A construo do livro analisada a partir de Tutamia a articulada com a construo do
Corpo de Baile que ida e volta, travessia, [se] convertem em problemas metalingusticos (Sperber 1982: 113).

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romance, interrogando em particular a dimenso temporal da repetio e a funo do reconhecimento como figura estrutural do questionamento da forma. O segundo e ltimo captulo identifica em Cara-de-Bronze o ponto de fuga dos movimentos que aqui se descreveram. Parbase da parbase, como argumentarei, toda a sua construo encena uma resistncia da forma em torno de um centro que se furta representao. O texto cruza a definio de uma aprendizagem potica, e do fazer do prprio texto, com um questionamento da experincia literria e dos seus efeitos a partir de uma multiplicao de formas que delimitam, enquanto ponto de atraco, a ideia de poesia como ncleo ao mesmo tempo vital e irrepresentvel. Texto central na obra de Rosa, nele se encontraro as linhas que definem reflexivamente a ideia de representao que est em causa nesta fico, fazendo da tenso com os limites da forma o ponto de superao de uma ideia de morte. Cara-de-Bronze, assim, encerra o movimento de uma leitura contra a forma em torno da suspenso da parbase: s se pode entrar no mato at ao meio dele. Uma ltima nota a esta apresentao do caminho a percorrer. Se a estrutura do trabalho a que aqui se apresentou, falta dizer algo sobre o procedimento de leitura: o trabalho de subverso da forma que est aqui em causa identificado, essencialmente, atravs de episdios e passagens mnimas que reflectem (ou invertem) movimentos maiores dos textos em anlise. Apenas dois dos textos aqui considerados sero lidos como totalidade: Meu Tio o Iauaret e Cara-de-Bronze, os dois extremos desta interrogao da forma, o primeiro encenando o colapso do texto perante o seu limite violento e o segundo construindo regressivamente alm do fim o espao irrepresentvel da forma do centro. Todas as outras passagens iro fazer-se atravs da considerao de elementos marginais, tanto no sentido, literal, que faz do paratexto do livro o lugar da sua subverso e relanamento, quanto em sentido figurado: pequenos episdios ou
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personagens aparentemente secundrias, na economia dos textos ou na recepo crtica, que introduzem neste trabalho uma segunda narrativa, que s na leitura se poder acompanhar, e que faz de personagens como Joana Xaviel, o Guegue, Nhorinh ou Aristeu mendigos, prostitutas e bobos a quem o texto reserva escassos pargrafos as fissuras decisivas de uma resistncia forma. Tentarei aqui mostrar que so essas as veredas que permitem a leitura da forma do serto.

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I.

Indesfechos

Nada em rigor tem comeo e coisa alguma tem fim, j que tudo se passa em ponto numa bola; e o espao o avesso de um silncio onde o mundo d suas voltas. A Estria do Homem do Pinguelo

El otro tigre, el que no est en el verso J. L. Borges

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1
O resto que falta

1. faltava a segunda parte?

Escrevi metade. Isto : como que podia saber que era metade, se eu no tinha ainda ela toda pronta, para medir? Ah, viu?! Grande Serto: Veredas

Durante os preparativos para a festa que d o subttulo novela Uma Estria de Amor, segunda de Corpo de Baile, o protagonista Manuelzo descansa num catre atrs de parede, quase encostado na cozinha (I 562), onde as mulheres, reunidas, contam histrias na noite da vspera. Organizada por Manuelzo, a festa destinada consagrao de uma igreja vai representar, ao mesmo tempo, a fundao de um lugar a Samarra e o ponto crtico do percurso, e da constituio do nome, do seu fundador; a noite antes da festa um dos momentos em que a personagem se debate entre a posio de poder que neste momento ocupa e o questionamento da realidade desse mesmo poder, sendo a preparao vivida em movimentos contrastantes que ora atestam controlo
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ora colocam Manuelzo na posio daquele que foi sendo levado, e levado, pelo movimento da festa (ou da vida). Nessa oscilao, a ritualidade funde-se com uma problematizao da morte, incio e fim reunidos na ciclicidade da festa de fundao. Como rito colectivo, esta atrai a povoao e em particular um rol de cantadores e contadores, inscrevendo no texto a multiplicidade de vozes ligadas tradio popular que iro tecer a complexidade polifnica da novela. A cena da vspera, quando as histrias encaixadas ganham abertamente o primeiro plano, o momento em que a dimenso reflexiva do conto se torna mais explcita: se, de acordo com a correspondncia de Guimares Rosa com o tradutor italiano, o tema de Uma Estria de Amor so as estrias, suas origens, seu poder (Rosa 2003a: 91) ou as estrias (fico) (idem: 93)1, neste episdio que se deve procurar uma definio de fico, por um lado, e da dinmica daquilo a que nos textos de Rosa se chamar narrao, num movimento de mise en abme que me interessa aqui explorar. Figura determinante desta representao ser a personagem Joana Xaviel, contadora que, tendo vindo para a festa, estava agora na cozinha ensinando as estrias (I 562). A sucesso de narrativas, pautada pelas reflexes em discurso indirecto livre de Manuelzo e por intervenes da narradora no vo entre duas estrias (I 562), parece constituir-se como fluxo contnuo, articulado pela frmula o seguinte este (I 563), que levar, pginas adiante, o protagonista a perguntar se Joana Xaviel no terminava nunca de acabar aquelas estrias? (I 570). Entrecortadas pelo fluxo das reflexes de Manuelzo, as histrias contadas parecem comentar o modo como se articulam numa sequncia apenas aparentemente interrompida, em que as delimitaes se esbatem e
Rosa justifica a incluso deste texto, no segundo ndice de Corpo de Baile, na parbase do livro, do seguinte modo: Uma Estria de Amor : trata das estrias, sua origem, seu poder. Os contos folclricos como encerrando verdades sob forma de parbolas ou smbolos, e realmente contendo uma revelao. O papel, quase sacerdotal, dos contadores de estrias. (...) A formidvel carga de estmulo normativo capaz de desencadear-se de uma contada estria, marca o final da novela e confere-lhe o verdadeiro sentido. (Rosa 2003a: 91-92). Sobre a classificao parbase e as suas implicaes, ver a segunda parte deste trabalho.
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confundem, numa progresso potencialmente infinita: era uma vez uma vaca Vitria: caiu no buraco e comea outra estria... e era uma vez uma vaca Tereza: saiu do buraco e a estria era a mesma... (I 573-574). Nessa sequncia entrar, porm, uma histria desigual das outras, que coloca explicitamente o problema da sua interrupo e ter amplo destaque ao longo da sequncia nocturna de Manuelzo sem no entanto quebrar a srie que integra: trata-se da histria da Destemida, variao rosiana da histria do Vaqueiro que no mentia2, sobre a ascenso sem queda de uma mulher terrvel que parece comprazer-se em provocar o mal3. A histria conclui-se deste modo: A estria se acabava a, de-repentemente, com o mal no tendo castigo, a Destemida graduada de rica, subida por si, na vantagem, s triunfncias. Todos que ouviam, estranhavam muito: estria desigual das outras, danada de diversa. Mas essa estria estava errada, no era toda! Ah, ela tinha de ter outra parte faltava a segunda parte? A Joana Xaviel dizia que no, que assim era que sabia, no havia doutra maneira. Mentira dela? A ver que sabia o resto, mas se esquecendo, escondendo. Mas uma segunda parte, o final tinha de ter! Um dia, se apertasse com a Joana Xaviel, brava, agatanhal, e ela teria que discorrer o faltante. Ou, ento, se vero ela no soubesse, competia se mandar enviados com paga, por a fundo, todo longe, pelos ocos e veredas do mundo Gerais,
Sandra Vasconcelos (1997) e Cleusa Passos (2000) traam um mapa dessa genealogia, verificando a forma desviante da histria de Joana Xaviel, que pode ser agrupada ao (...) ncleo de narrativas, de origem muito antiga, cujo paradigma a Estria do Vaqueiro Que No Mentia, tambm conhecida como Estria do Boi Leio, ou Quirino, Vaqueiro do Rei. Seja em sua verso como conto popular, seja como tema do Entremeio de Reisado e Bumba-meu-boi, o Vaqueiro que no mentia circulou em diferentes regies do pas e seu motivo central pode ser rastreado at suas origens europias, especialmente peninsulares. (Vasconcelos 1997: 111-112). 3 Na progresso malfica da Destemida pode reconhecer-se a caracterizao de um mal solto por si que em Grande Serto: Veredas se fixar sobretudo na figura de Hermgenes, mas que tem uma representao encaixada e exemplar na narrao do caso de Maria Mutema por Je Bexiguento (II 145148). A relao entre os dois episdios pode interessar-nos por duas ordens de motivos. Em primeiro lugar, temos no episdio do romance a representao de um narrador, definido como contador de casos, que no parece compreender a histria que conta (cf. a afirmao anterior de Bexiguento sobre a separao do Bem e do Mal, contrariada pelo caso que contar), permitindo interrogar, tal como aqui, a relao entre as histrias e os seus intrpretes; em segundo lugar, no episdio de Joana Xaviel, interrogao referida de Manuelzo sobre a continuidade da narrao ir seguir-se a pergunta: O padre no esbarrava de rezar no quarto, no se adormecia? (I 570). A relao entre a infinitude da histria e a infinitude da reza pode ser colocada tambm a propsito do episdio de Maria Mutema, na cena, comentada por Rosemary Arrojo, da entrada de Maria Mutema na igreja durante o Salve-Rainha, sendo que a recusa em interromper a reza por parte do padre (Maria Mutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo levou um susto: porque a salve-rainha orao que no se pode partir em meio em desde que de joelhos comeada, tem de ter suas palavras seguidas at ao tresfim. Mas o missionrio retomou a fraseao, s que com a voz demudada, isso se viu., II 146) provocar a associao da pecadora Maria Mutema reza em curso, sendo deste modo saudada, prefigurando a inverso final da assassina em santa (Arrojo 1993: 181).
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caando para se indagar cada uma das velhas pessoas que conservavam as estrias. Quem inventou o formado, quem por to primeiro descobriu o vulto de idia das estrias? Mas, ainda que nem no se achasse mais a outra parte, a gente podia, carecia de nela acreditar, mesmo assim sem ouvir, sem ver, sem saber. S essa parte que era importante. (I 565).

A recepo da histria caracterizada, indiferenciadamente, como colectiva e individual. Tecida nas reflexes de Manuelzo, a ausncia de uma delimitao entre a sua reaco e a reaco de todos que ouviam aqui determinante: se, por um lado, se trata de uma representao do conflito da personagem, claro que estamos perante uma problematizao geral da narrativa e dos seus efeitos, centrada precisamente sobre o problema da concluso. Ao contrrio das outras histrias referidas, que parecem oscilar entre uma completude prpria e a articulao num contnuo que permanentemente as relana sem pr em causa a sua forma, esta histria provoca uma reaco porque sentida como incompleta, interrompida e nesse sentido o problema que levanta ser sempre o do seu prolongamento. O que com esta histria se abre , pois, a questo que determina a tenso central de Uma Estria de Amor: a que ope o seu ncleo temtico (o episdio do riacho que secou como erro no processo de fundao e figurao da morte) s histrias como paradigma de superao da descontinuidade4. A histria de Joana Xaviel , nesse sentido, o ponto de maior tenso entre interrupo e continuidade. Nas palavras do conto: Chegava na hora, a estria alumiava e se acabava. Saa por fim fundo, deixava um buraco. Ah, ento, a estria ficava pronta, rastro como o de se ouvir uma missa cantada. (I 573).

As principais leituras de Uma Estria de Amor assinalam a importncia do episdio do riacho para a construo da novela: esse erro de fundao (a construo da casa sobre um rio que subitamente seca) o que a festa poder corrigir no modo como articula, nas histrias, imagens de uma superao do limite temporal: o reconhecimento da permanncia do riachinho para alm da sua extino ir fazer-se, na histria final de Camilo, com a referncia ao riacho que nunca seca (I 609). Para uma leitura detalhada do episdio e do seu desenvolvimento cf. Vasconcelos 1997: 57-75 e Miyazaki 1996: 191-198.

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1.1 Conforme destacou Sandra Vasconcelos na primeira leitura dedicada exclusivamente a Uma Estria de Amor (Vasconcelos 1997), a estrutura do conto gravita em torno da relao entre duas personagens aparentemente laterais que se articularo com o percurso do protagonista: as duas figuras de contadores, Joana Xaviel e o Velho Camilo, que, atravs de duas histrias, a histria da Destemida e a Dcima do Boi e do Cavalo, pautariam os dois pontos, mnimo e mximo, da evoluo de Manuelzo5. Podemos adiantar a hiptese de a novela se construir inteiramente sobre a conjugao de verses de narrativa representadas pelo par o amor do ttulo sendo o espao de uma teorizao das possibilidades narrativas que eles representam ou, como se diz em Grande Serto: Veredas a propsito de todo amor, uma espcie de comparao (II 104)6. Este seria, por definio, o momento negativo desse percurso, traduzindo para Manuelzo a inquietao de um mundo desordenado7, ou de uma libertao da Lei que a figura feminina ousadamente representaria8, nos dois casos provocando uma violenta rejeio por parte do protagonista, estendida ao estranhar de todos os que ouviam, em nome de uma manuteno da ordem procurada ao longo de todo o texto. possvel pensar esse estranhamento em termos da descrio aristotlica (Retrica, II 8 e 9; 2006: 184-189) da indignao [to nemesan] como sentimento de dor perante uma fortuna (alheia) imerecida: a indignao e a piedade, seu directo oposto,
Cf. tambm T. Myiazaki: a estria de Joana Xaviel prepara criticamente a de Camilo, de que o espelho em negativo. (Myiazaki 1996: 19). 6 O ponto culminante da narrativa de Camilo seria, neste sentido, o seu reconhecimento por Joana Xaviel enquanto contador: Joana Xaviel de certo chorava. Essa estria ela no sabia, e nunca tinha escutado. Essa estria ela no contava. O velho Camilo que amava. Estria! (I 611). 7 Cf. Sandra Vasconcelos: Nesse universo, no h remisso e nada se recompe, o que faz dessa histria uma epifania negativa, pois o que se revela para os ouvintes um mundo de cabea para baixo, um mundo desconjuntado em que tudo est fora do lugar. (Vasconcelos 1997: 114). 8 Cf. Cleusa Passos: Inconformado com a falta de castigo para o mal que oculta o impossvel fascnio pela nora, reprimido em nome de regras simblicas que impedem o incesto, Manuelzo rejeita essa narrativa danada de diversa, cujo termo excede os limites da Lei... (Passos 2000: 179).
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partilham o pressuposto de uma ordem em que os homens so recompensados de forma proporcional ao seu valor9, questo directamente colocada ao longo de Uma Estria de Amor no modo como se pesa riqueza e merecimento10. Uma falha nessa distribuio suscitaria nos homens de bom carcter o desejo de ver a queda do indivduo indevidamente beneficiado. A histria da Destemida, fechando-se numa interrupo que suscita e deixa em aberto a justa indignao dos ouvintes, recusar-se-ia, neste sentido, como exemplo de conto de aco moral, ao afirmar o triunfo da personagem vil, o mal no tendo castigo, invertendo deste modo a moral implcita do conto popular (Vasconcelos 1997: 115). E a percepo desse desvio, repare-se, depende exclusivamente da inconformidade com o universo das histrias a que supostamente esta pertence a histria da Destemida , antes de mais, desigual das outras, danada de diversa. No entanto, importante sublinhar que o sentimento de indignao justa, mais do que resposta a uma lio sobre a ordem do mundo, aqui sentido como efeito indissoluvelmente ligado a uma estrutura, identificada pelos ouvintes como incompleta: a falta de um sentido de fechamento que destaca esta histria, isolando-a do quadro da sequncia narrativa em que se encontra e que interrompe. Como diz Barbara Herrnstein Smith no incio do seu estudo sobre Poetic Closure, the sense of closure is a function of the perception of structure (Smith 1968: 4). Assim, no apenas o exemplo da histria a ser sentido como errado, nem os identificveis desvios, no curso da narrao, em relao a outras variantes da histria tradicional que parece estar por trs desta.
Indignation, like pity, is moralistic; it translates good fortune into reward, just as pity translates bad fortune into punishment, and the distress in each case arises from the consequent discrepancy between this perceived external reward or punishment, and an assumption about the internal character of the one who undergoes it. Pity and righteous indignation share the pressuposition that nature itself should be governed by an order in accordance with the standards of human justice (Burger 1971: 129); cf. tambm Leon Golden, Aristotle on the Pleasure of Comedy (Golden 1992). 10 E tambm no modo como a oposio Joana Xaviel/Camilo articula o par indignao/piedade no progressivo reconhecimento, por parte de Manuelzo, do Velho Camilo como seu igual. Para o questionamento do valor social em Uma Estria de Amor cf. Miyazaki 1996: 164-171.
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Aquilo que aqui desperta o escndalo o facto de nada se seguir concluso desigual apresentada pela contadora, que passa ento a representar um limite insustentvel, como alis parece sugerir o facto de a estranheza da histria se apresentar inicialmente como reparvel atravs de um movimento de adio (uma segunda parte). A ausncia dessa continuao passa para primeiro plano: o vazio institudo pelo final de Joana Xaviel ocupa o lugar de uma resoluo, de um movimento de inverso de fortuna, de um completamento, afectando constitutivamente a aco. E esse vazio constitui-se como trao singularizante da histria no quadro das outras contadas na mesma cena. Recordese, como tem sido sublinhado desde o ensaio pioneiro de Cavalcanti Proena (1958: 25), que Joana Xaviel ir introduzir tambm o contraponto tradicional ao desenvolvimento do motivo da donzela guerreira em Grande Serto: Veredas, lanando um jogo citacional que ter implicaes determinantes na construo do segredo no romance rosiano. Na narrao, momentos antes, da histria de Dom Varo, em aberto contraste com a recriao complexa de Grande Serto, temos um exemplo de closure comentada: A Rainha ensinava ao filho seguidos trs estratagemas, astcia por fazer Dom Varo esclarecer o sexo pertencido. Quando sucedia esse final, o Prncipe e a Moa se casavam, nessas glrias, tudo dava acerto. (I 561). Quando sucedia esse final: o remate que, em Dom Varo, rene peripcia e reconhecimento numa conciliao final, que parece faltar histria de Joana Xaviel. O desenvolvimento que ser dado percepo do erro, transformado aqui em escndalo, interessa-nos por colocar em causa, imediatamente, o formado das estrias. Na reaco daqueles que ouvem a histria essa estria estava errada, no era toda! a passagem lgica do erro para a incompletude que constitui o ncleo do episdio, pois o erro antes de mais um erro de forma, em consequncia gerando um escndalo tico. Completar a histria apresenta-se, para aqueles que a ouvem, como o nico modo de completar a aco, que s parece existir no interior da histria. Fora da histria est o
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vazio: se a aco narrada incompleta, a sua continuao s se poder encontrar numa segunda parte que emende a interrupo. O erro ser, ento, um erro da histria que se traduz numa aco incompleta, faltante por aco daquele que a estrutura, do construtor de enredos, neste caso a contadora, que aparecer queles que a ouvem como figura do escndalo e do conflito. Se uma concluso, na sua mais simples e persistente definio, aquilo a que nada se segue, a recepo da histria de Joana Xaviel recusa o fim que Joana Xaviel oferece, pressupondo um movimento estrutural que faria desse fim o momento que antecede a inverso necessria: o meio, que separa primeira e segunda parte. Este fim que no fecha sentido como interrupo de algo que s na histria poderia continuar. Acabar impropriamente equivale a acabar derepentemente, bruscamente, sem verdadeiramente acabar.

1.2 Percebe-se ento que todo o excerto esteja construdo sobre a oposio entre uma reaco histria que a sente como errada ou seja incompleta, interrompida e a nica defesa possvel por parte da contadora, uma defesa, alis, que reafirma a forma da histria: A Joana Xaviel dizia que no, que assim era que sabia, no havia doutra maneira. essa tenso que importa interrogar. A histria da Destemida um dos pontos, na obra de Rosa, em que a relao entre histria e narrador problematizada abertamente e caracterizada, de acordo com o que veremos, como relao de resistncia, colocando problemas a uma leitura excessivamente transparente da presena da narrativa tradicional nestes textos. Essa resistncia construda, no excerto, segundo dois eixos: por um lado, verifica-se uma descontinuidade entre a figura da contadora e o

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universo que supostamente representaria11, quebrando-se a relao metonmica entre o contador de histrias e o mapa de uma memria que lhe daria sentido; por outro, nessa manifestao particular de narrao o que posto em questo um problema de forma que reencontramos ao longo de toda a obra de Rosa: o problema de uma incompletude constitutiva em tenso com uma ideia de totalidade que se d por negao, sendo aqui os seus limites jogados contra uma ideia de histria que d o tema a Uma Estria de Amor. Pensando agora no primeiro desses eixos, repare-se que so postas em relao uma dimenso individual (o contador) e uma forma (a histria) que o atravessa mas no parece residir exclusivamente nele: os ocos e veredas do mundo Gerais e cada uma das velhas pessoas que conservavam as estrias, ltimo recurso da inquietao dos ouvintes, so as duas dimenses de que Joana Xaviel seria o prolongamento, enquanto meio de transmisso dotado de mobilidade, mas aos quais se ope a partir do momento em que a sua histria se caracteriza por uma forma escandalosa de desvio. Assim, este pequeno episdio comea por colocar a relao entre a manifestao especfica da histria contada por Joana Xaviel e a necessria mas no disponvel existncia da estria completa alm deste momento particular, que parece coincidir, aqui, com uma ideia de tradio (a histria desigual das outras), ou de memria colectiva. Percebese ento que o problema terico associado existncia das histrias, colocado no quadro das interrogaes da personagem de Manuelzo, seja a pergunta sobre quem inventou o formado, sendo o vulto de idia feito equivaler, desde j, em primeiro lugar a um plano ideal, e mais tarde a uma temporalidade anterior e inacessvel. O que importante, por agora, que o problema comea j a delinear-se como conflito e isso interessa-nos inicialmente mais do que a raiz do escndalo. O conflito entre
Veja-se, por exemplo, Sandra Vasconcelos: Joana Xaviel e Camilo so porta-vozes de um patrimnio coletivo, que preservam do esquecimento mediante a restaurao da fora mobilizadora e transformadora da palavra. (Vasconcelos 1997: 171).
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performance e recepo que aqui se materializa assinala claramente que a contadora que d forma histria determina a sua nica possvel manifestao a manifestao incompleta, errada, da histria quando o erro suscita a exigncia de uma forma completa inacessvel (tinha de ter outra parte). importante sublinhar que a invalidao do final de Joana Xaviel pelos seus ouvintes em nome de uma segunda parte parece orientar-se exclusivamente para a obteno de um novo fim, de uma concluso que permita fechar o escndalo da interrupo, e nesse sentido permite colocar os problemas associados noo de closure12 e ao que determina uma concluso adequada e apropriada13. Diz-se, a dada altura, no texto, a propsito da ascenso social de Manuelzo, que a Samarra era uma espcie de comeo de metade de terminar (I 546) estrutura em que, de acordo com Tieko Miyazaki, o aspecto inceptivo no de um novo tempo, mas de um fim (Miyazaki 1996: 159). O movimento que determina a novela , nos seus vrios planos, o da necessidade de um fim que retrospectivamente configure a coerncia do todo14, como a frase referida exemplarmente descreve, ao reler a articulao de tempos em nome dessa coerncia conclusiva. O mesmo movimento de desejo de fim projectado, no exemplo de Joana Xaviel, assentar na recusa de um outro fim, transformado pela exigncia de continuao apenas no ponto intermdio de uma aco que se deseja completa. O que aqui se destaca que essa invalidao os devolve ao meio, quele

Ver, por exemplo, a caracterizao das dificuldades de uma sistematizao do sentido de closure na introduo ao estudo de Marianna Torgovnick, Closure in the novel (Torgovnick 1981: 3-19). 13 As I use the term, closure designates the process by which a novel reaches an adequate and appropriate conclusion or, at least, what the author hopes or believes is an adequate, appropriate conclusion. (Torgovnick 1981: 6). 14 Talvez o momento, na obra de Rosa, em que a necessidade de um fim mais claramente ligada ideia de uma legibilidade retrospectiva seja a seguinte passagem de Grande Serto: Veredas: O inferno um sem-fim que no se pode ver. Mas a gente quer Cu porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. (I 44).

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middest 15 em que Frank Kermode, com uma frase de Sir Philip Sidney, situa o desejo humano da fico como forma de configurao da totalidade. A totalidade projectada a partir da negao da histria contada como totalidade, porm, ter necessariamente que se propor como imaterial: percebe-se ento que se diga, sobre as quadras cantadas na festa, que as quadras viviam em redor da gente, suas pessoas, sem se poder pegar, mas que nunca morriam, como as das estrias (I 561). Sem se poder pegar: a totalidade que a segunda parte reconfiguraria tem de se situar em tenso com a histria material de Joana Xaviel, por recusar o limite por ela oferecido e representado. Toda a tenso da problematizao da figura do contador passa por aqui: o escndalo parece materializar-se numa forma faltante, intrinsecamente fragmentria, por completar, mas que ter de ser completada contra a contadora como representao fsica da materializao da histria. em nome de uma totalidade imaterial que a forma da histria invalidada e a forma escandalosa e lacunar que gera a totalidade da histria. O lugar dessa passagem o final de Joana Xaviel transformado em espcie de comeo de metade de terminar, em meio orientado para um outro fim. O movimento, porm, age ainda e apenas sobre a histria que preciso corrigir, completando-a, e sobre a narradora que a constitui. nessa tenso que surge, neste excerto, a questo da violncia do desejo.

1.3 histria contada, por necessidade estrutural, tem de corresponder uma segunda parte, e esta necessidade o motor, nos ouvintes, de um movimento violento: apertar com o contador, exercer violncia sobre ele a sua primeira projeco, que se fixa,

Men in the middest make considerable imaginative investment in coherent patterns which, by the provision of an end, make possible a satisfying consonance with the origins and with the middle. That is why the image of the end can never be permanently falsified. (Kermode 2000: 17).

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imediatamente, sobre o corpo: se apertasse com a Joana Xaviel, brava, agatanhal (I 565). O leitor est preparado para isso, neste ponto do texto, pelo modo como a descrio da personagem prepara o tema da transformao do narrador pela histria em Uma Estria de Amor. Joana Xaviel, que aparece no texto, ao contrrio do Velho Camilo, como figura j formada e definida na sua profisso, tem essa definio precisamente na disponibilidade para a metamorfose. A contaminao entre histria e narrador ser clara atravs da recorrncia, para Joana e Camilo, de um lxico que directamente evoque essa disponibilidade. O Velho Camilo, na sua vez, parece sado em outro Velho Camilo, sobremente (I 602); Joana Xaviel, ao contar, sofria uma transformao semelhante: virava outra e uma valia, que ningum governava, tomava conta dela, s tantas (I 561). outra das marcas da relao complexa da histria com o contador: se a forma da histria depende do seu narrador, o narrador fisicamente transformado pela histria. Esta transformao, mais uma vez, parece dependente de uma situao de presena, que a cena em anlise, no entanto, complexifica. O ponto de partida para a caracterizao da figura do contador ser ento o da aco da palavra sobre o corpo. Do ponto de vista dos efeitos, repare-se no entanto que Uma Estria de Amor encena essa aco de forma indirecta: Sandra Vasconcelos sublinhou a importncia do som, no texto, no quadro da contraposio entre arcaico e moderno que est na base do seu argumento. Diz-se em Puras Misturas: No seu resgate de um universo mais arcaico, que se perdeu na paisagem moderna, o narrador recupera tambm a experincia dos sentidos, fazendo da escuta um outro modo de olhar. (Vasconcelos 1997: 56). A pergunta que se coloca ser, ento, a de uma possvel equivalncia entre escuta e olhar para a construo de uma situao de presena. A cena em anlise, a esse respeito, abertamente questiona essa suposta presena: como referi

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inicialmente, a longa sequncia da narrao de Joana Xaviel construda, em discurso indirecto livre, a partir de uma focalizao sobre a figura de Manuelzo, deitado no catre num quarto adjacente cozinha. O protagonista figurado no em voyeur, mas numa situao paralela: ouve, sem ser visto, as histrias e as vozes da cozinha. Antes de sabermos que a mulher est efectivamente do outro lado da parede, a contar, e que Manuelzo se encontra na posio descrita, temos uma apresentao geral das histrias e da narradora Como as compridas estrias, de verdade, de reis e donos de suas fazendas (...) as estrias contadas, na cozinha, antes de se ir dormir, por uma mulher (I 561) subitamente particularizada num evento especfico Se somava que a Joana Xaviel tinha vindo para a festa (I 562). Essa primeira projeco da figura, que no a reconhece ainda como prxima, comea j por descrev-la transformada no momento da narrao: tinha hora em que ela estava vestida de ricos trajes, a cara demudava, desatava os traos, antecipava as belezas, ficava semblante (I 562). A partir da, o longo relato vai cruzar o fluxo do pensamento de Manuelzo com as palavras que chegam da cozinha, a voz cruzando-se por duas vezes com o relato dessa transformao. H um ponto em que a questo se torna determinante: Joana Xaviel demonstrava uma dureza por dentro, uma inclinao brava. Quando garrava a falar as estrias, desde o alumeio da lamparina, a gente recebia um desavisado de iluso, ela se remoando beleza, aos repentes, um endemnio de jeito por formosura. Aquela mulher, mulher, morando de ningum no querer, por essas chapadas, por a, sem dono, em cafuas. Pegava a contar estrias gerava torto encanto. A gente chega se arreitava, concebia calor de se ir com ela, de se abraar. As coisas que um figura, por fastio, quando se est deitado em catre, e que, seno, no meio dos outros, em p, sobejavam at vergonha! De dia, com sol, sem ela contando estria nenhuma, quem v que algum possua perseveranas de olhar para Joana Xaviel como mulher assaz? (I 565-6).

Sem ela contando estria nenhuma: o torto encanto de Joana Xaviel, objecto de desejo do devaneio do protagonista, mais uma vez, no reside nela, e sim na
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interaco entre ela e a histria. Vimos que sem narrador no haveria histria num certo sentido, sabemos agora que sem histria, sem a aco da histria sobre o corpo, no h desejo, ou no h mesmo o corpo que gera o desejo, como a recorrncia de imagens de alteridade parece sugerir. A palavra age sobre o corpo, tornando-o disponvel para um desejo que se esvai na ausncia da palavra; uma dimenso indirecta parece sobrepor-se metamorfose visual que as palavras implicam e a audio secreta, o voyeurismo auditivo, o trao mais marcante dessa posio. Repare-se que a aco da metamorfose apenas projectada, e que o desejo pela forma transformada afirmado como possvel apenas em situao de negao: As coisas que um figura, por fastio, quando se est deitado em catre, e que, seno, no meio dos outros, em p, sobejavam at vergonha! Manuelzo descrito como desejando o objecto de uma transformao visual pela narrao apenas no momento em que no pode ver. E o que a descrio constri uma transformao visual assente numa interaco entre corpo e palavra vedada descrio, obliquamente representada na situao de devaneio cego. Deste modo, o texto constri uma transformao intrinsecamente vinculada a um verbal ausente. Se a palavra age tornando-se visvel no corpo, qual o estatuto desta percepo indirecta da transformao, precisamente no texto de Rosa em que parece ser mais explcita uma tematizao da presena? Podemos arriscar que os problemas mais difceis da leitura de Corpo de Baile se situam nesta esfera; deste paradoxo que se ocuparo, num sentido geral, as narrativas que compem o livro, desde as cantigas de Aristeu em Campo Geral at aos dilogos nocturnos de Buriti: o da representao textual e diferida de um valor performativo aparentemente vinculado a situaes de presena ou dilogo. O episdio de Joana Xaviel d corpo tenso entre oralidade e escrita que est na base do projecto rosiano. Como sublinha Susana Lages a propsito de Grande Serto: Veredas:

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H portanto um plano tico uma moral da forma que determina como certos contedos ou temas mticos se articulam no texto. (...) A fala de Riobaldo, porm, enquanto fala, oralidade, diz tambm da sua impossibilidade de abranger a vida em seu contnuo fluir e mesmo de capturar o instante primordial das origens. Mas a fala de Riobaldo no uma fala: um texto escrito que encena uma situao de fala. O que h um efeito de oralidade e uma aura mtico-sacral obtidos atravs de um manejo extremamente apurado da linguagem em seus diferentes planos (...). (Lages 2002: 74).

A escolha da representao cega e indirecta da metamorfose atravs do devaneio dominado pelo som parece-me indicar de forma explcita a complexidade da situao de narrao aqui encenada, servindo de modelo para a problematizao geral da narrativa em presena nestes textos. Tal como acontece nas narrativas que repetem a estrutura do dilogo oculto de Grande Serto: Veredas, tambm aqui nos encontramos perante o tipo de dissoluo de dicotomias que Davi Arricucci Jr. descreveu como o ressurgimento do romance de dentro da tradio pica ou de uma nebulosa potica primeira, indistinta matriz original da poesia, rumo individuao da forma do romance de aprendizagem ou formao (Arrigucci 1994: 20). Estamos perante uma tenso entre formas aparentemente opostas: formas ligadas ao universo da narrativa tradicional, tal como o caracterizou Benjamin no ensaio sobre Leskov, e as formas identificveis com o universo isolado do romance que, ainda segundo Benjamin, se lhes contrape: What differentiates the novel from all other forms of prose literature the fairy tale, the legend, even the novella is that it neither comes from oral tradition nor goes into it. This distinguishes it from storytelling in particular. The storyteller stakes what he tells from experience his own or that reported by others. And he in turn makes it the experience of those who are listening to his tale. The novelist has isolated himself. (Benjamin 1992: 87). Isolamento e tradio oral, aqui, parecem convergir, paradoxalmente, numa forma de escrita que joga com representaes da oralidade. A reconstruo de efeitos de presena no incompatvel, antes se alimenta, de uma construo explicitamente
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assente sobre efeitos de distanciamento. A solido que caracteriza a cultura do romance ser ento o dado de partida para esta construo, distanciada e filtrada, de uma presena inacessvel e no entanto operativa. E no como compensao que esta tenso funcionar: o universo dos contadores aparece aqui como forma, podemos dizer, de uma construo verbal declaradamente indirecta revitalizada pela explorao de todas as potencialidades desse distanciamento. A encenao dramtica da situao de oralidade, quer, como veremos, atravs do dilogo oculto, quer, como neste caso, atravs de uma representao intrinsecamente distanciada de efeitos dependentes de situaes de presena, ser um dos pontos em que a obra de Rosa testa abertamente a sua potica. Recuperando uma expresso dos cadernos de Guimares Rosa no seu arquivo, trata-se da construo, atravs da escrita, de um texto em que nenhuma palavra morre (E15).

1.4 O corpo de Joana Xaviel, desejado na sua transformao, parece ento ser o primeiro lugar de fixao do desejo da segunda parte da histria. A violncia desse desejo tem uma direco especfica, que a imagem da caa materializa. Se a narradora no sabe interpretar ou validar a histria que conta; se a narradora s a sabe assim, decididamente vinculando forma e substncia, ser preciso vencer a resistncia do narrador, acedendo ao lugar da interaco entre narrador e histria, ou seja, ao corpo. Joana Xaviel, que tem fama, nos pargrafos anteriores, de furtar o que podia (I 565), d-nos uma das grandes figuraes na obra de Rosa da relao entre o contador e aquilo que conta. O corpo do contador, disponvel para a transformao pela histria, tambm o lugar da manifestao de algo que ultrapassa a situao de comunicao: o seu corpo, que d forma, tambm furta, tambm cala, tambm no diz. a primeira, seno a mais forte, representao do poder que encontramos nesta histria sobre a
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construo do domnio: o narrador pode esconder o que sabe, acendendo o desejo, e o nico lugar para procurar aquilo que o narrador no quer dizer ser o seu corpo, submetido a uma tortura que implicaria a entrega, a sujeio, a cessao da vontade que furta: a liquidao da resistncia do narrador. E a violncia sobre o corpo como primeira reaco figura do contador ser reflectida no outro movimento que em torno da entrada em cena de Joana Xaviel se cria: o que representa a contadora como objecto do desejo masculino desejo proibido ou no confessvel porque desejo abertamente desvalido. Desejo e violncia so ento os dois movimentos que tm origem na atraco pela histria, por uma dimenso imaterial da histria a que a novela, curiosamente, d o nome no ttulo, em que a estria de amor entre dois contadores tambm a histria do amor pela estria. Assim se compreende que a caracterizao de Joana Xaviel responda to directamente a uma descrio platnica do estrangeiro, modelo alis da contaminao do intrprete pela fico. Veja-se a famosa descrio da Repblica (398a), que, como diz Giorgio Agamben, viene spesso ripetut[a] quando si parla di arte senza che latteggiamento paradossale che trova in esso espressione sia, per questo, divenuto meno scandaloso per un orecchio moderno (Agamben 1994: 12):16 Se chegasse nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com os seus poemas, prosternvamo-nos diante dele, como de um ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-amos que na nossa cidade no h homens dessa espcie, nem sequer lcito que existam, e mand-lo-amos embora para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra sobre a cabea e de o termos coroado de grinaldas. (Plato 2001: 123-4).
No mesmo texto, Agamben liga a atitude paradoxal perante o imitador conscincia de um vnculo entre violncia e linguagem: Non si comprende, in particolare, il fondamento del tanto discusso ostracismo comminato da Platone ai poeti, se non lo si ricollega a una teoria dei rapporti fra linguaggio e violenza. Il suo presupposto la scoperta che il principio, che in Grecia era stato tenuto per vero fino al sorgere della Sofistica, secondo il quale il linguaggio escludeva da s ogni possibilit di violenza, non era pi valido, e che, anzi, luso della violenza era parte integrante del linguaggio poetico. Una volta fatta questa scoperta, era perfettamente congruente da parte di Platone stabilire che i generi (e perfino i ritmi e i metri) della poesia dovevano essere sorvegliati dai custodi dello stato. (Agamben 1994: 18).
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A Joana Xaviel est reservada a mesma atitude paradoxal: seduz e atrai, chamada para contar, mas no era querida nas casas (I 565). O seu mel, como o texto diz claramente, mel, mas mel de marimbondo! (I 564). Essa oscilao entre atraco e averso directamente vinculada a uma atribuio de poder, que reside no domnio verbal: dito que causava ruindades, que tem o poder de matar por feitio, distncia, s por mo de praga de dio (I 566). O seu poder de feiticeira da palavra obriga a Samarra a uma relao de compromisso com a figura marginal: a presena da mulher tolerada (momentaneamente) em nome das histrias que conta, sem que, no entanto, a figura seja colocada fora de suspeita. Joana Xaviel guarda aquilo que por todos desejado, de forma mais ou menos confessada: mas guarda essa riqueza no corpo, guarda sem plenamente oferecer, o que equivale a dizer que a furta, pois essa se fingia em todo passo, muito mentia, tramava, adulava (I 564). O desejo da histria o desejo do que esconde o corpo do narrador pulso hermenutica e ertica reunidas numa mesma repulsa. Para perceber as implicaes desta caracterizao, essencial a formulao oferecida por Rosa num dos textos de Estas Estrias que teve publicao mais recuada, antecedendo a exploso de 1956. Refiro-me ao conto-reportagem Com o Vaqueiro Mariano, forma estranha ao corpo ficcional da obra do autor onde porm se encontram, na tenso entre relato e construo ficcional que a se expe mais do que noutros lugares, alguns dos temas essenciais da narrao rosiana. Numa passagem em que a entrevista interrompida por uma suspenso crtica, oferece-se uma das problematizaes mais directas do enredamento de narrador, ouvinte e caso narrado num campo de foras inextricvel:

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Te aprendo ao fcil, Z Mariano, maior vaqueiro, sob vez de contador. A verdadeira parte, por quanto tenhas, das tuas passagens, por nenhum modo poders transmitir-me. O que a laranjeira no ensina ao limoeiro e que um boi no consegue dizer a outro boi. Ipso o que acende melhor teus olhos, que d trunfo tua voz e tento s tuas mos. Tambm as estrias no se desprendem apenas do narrador, sim o performam; narrar resistir. (II 779).

A ideia de furto, que encontrmos associada a Joana Xaviel, mantm-se aqui, significativamente desprovida de conotaes morais: por ou contra a vontade do contador, h uma parte, a verdadeira parte, que no poder ser transmitida. Mais uma vez estamos alm, no foco do excerto, de uma situao de comunicao, dado que esta invalidada partida, o que no implica, porm, a inexistncia de uma tenso entre o que se transmite e o que no se transmite no impede, ou seja, que a narrao acontea, e cumpra a sua funo performativa, de um modo que ultrapassa a comunicao. O que mais curioso na relao entre este excerto e aquilo que nos ocupa que nos encontramos, outra vez, perante uma vinculao entre um elemento ausente e a sua necessria materializao. A verdadeira parte, que da ordem do no materializvel, ou do indizvel, no transmissvel, mas manifesta-se no corpo: Ipso o que acende melhor teus olhos, d trunfo tua voz e tento s tuas mos17. A relao entre histria e contador uma relao de contaminao, como alis previa a admonio platnica ao pretender defender em primeiro lugar o guardio dos efeitos da imitao18. S que o que o excerto identifica um efeito, digamos, residual. Aquilo que acende melhor um resto a que falta a transmissibilidade essa parte intransmissvel que age sobre o
A relao desta caracterizao com a descrio da metamorfose em actor da personagem do Velho Camilo no final de Uma Estria de Amor evidente. Depois de, ao longo do conto, ser caracterizado como uma figura a quem a interpretao estava vedada, Camilo tem o seu momento, a sua vez, na narrao final da Dcima do Boi e do Cavalo, momento da revelao referida por Rosa a Bizzarri17: O Velho Camilo estava em p, no meio da roda. Ele tinha uma voz. Singular, que no se esperava, por isso muitos j acudiam, por ouvir (I 602). A voz alterada o contraponto que o velho desvalido oferece transformao em princesa que Joana Xaviel representava concretizando assim, nessa resposta, o amor do ttulo. 18 Cf. Repblica, III, 395c (Plato 2001: 120). Para uma anlise da contaminao como modo de aco da fico em Plato, cf. Schaeffer 1999: 35-42.
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corpo, constituindo nele a parte que no se transmite pela narrao. Que esse resto, esse resduo, seja a parte verdadeira, coloca-nos perante a mesma hierarquia que o episdio de Joana Xaviel lanava a partir da importncia da segunda parte. A, s a parte em falta era a importante; aqui, o que se transmite precisamente a parte que no verdadeira. A analogia final, na concluso do excerto, regressa ao universo, prprio, da narrao de estrias, de que Mariano foi aproximado ao narrar as suas memrias sob vez de contador: tambm as estrias no se desprendem apenas do narrador, porm o performam. As estrias, ao serem contadas, desprendem-se do narrador o narrador o meio atravs do qual as histrias passam, ou do qual as histrias emanam; elas desprendem-se, mas no s: sim o performam. Ao performar o narrador (criar o narrador enquanto outro por aco do acto de contar), as histrias constituem nele no narrador, corpo material, olhos, voz e mos a verdadeira parte que no pode ser transmitida. Narrando, ento, o narrador resiste afirma-se e no se deixa aniquilar, no se deixa absorver pela histria, singularizando a sua narrao, no sentido em que no se dilui numa transmisso, motu proprio, da histria. Por outras palavras, a histria transmite-se sublinhando a sua natureza estruturalmente fragmentria e marcando o intransmissvel, e este intransmissvel o narrador, que assim resiste. O que aqui se torna descontnuo, como comemos por ver com o episdio de Uma Estria de Amor, a relao entre as histrias e a histria particular que pelo narrador contada, no sendo possvel uma coincidncia plena entre essa origem, ou tradio, e a histria que do contador se desprendeu. A marca dessa diferena, residual, o corpo do contador, parte irredutvel da histria que constitui narrando e parte integrante daquilo que se declara fragmento.

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Verdadeira parte ou segunda parte, a situao de narrao caracterizada, nos dois casos, em funo de algo que no est presente e que no entanto localizvel, em tenso, na materialidade de um suporte vivo, o contador que no se deixa aniquilar. O impulso inicial dos ouvintes da histria de Joana Xaviel ganha agora um sentido mais preciso: a seduo da transformao, que atrai fisicamente, a seduo do que na histria no se transmite. O lugar da histria completa, ento, parece comear a perceber-se pela relao entre os dois excertos, ainda o narrador, mas o narrador no modo como corpo e histria se colocam em tenso a histria que o atravessa, o narrador que lhe resiste, no sentido em que atravs dela resiste, constituindo-se suporte de uma aco no transmissvel. Torturar o narrador, como se infere do episdio em anlise, o primeiro movimento de uma caa que pretende extrair parte da histria do lugar onde ela est precisamente por no estar: tentar fazer com que o narrador entregue ou confesse aquilo que por nenhum modo poder transmitir. Torturar o narrador o movimento da falta.

1.5 O excerto inicial, como vimos, faz acompanhar a deteco dessa falta de dois movimentos, de que este apenas o primeiro. Se insisto nele porque a passagem para o segundo movimento de procura, aquele que mais facilmente nos levaria a uma identificao plena das histrias de Uma Estria de Amor com a anterioridade de um repertrio tradicional, determinante para que se possa avaliar esta reaco incompletude. Repare-se que, se o primeiro passo apertar, brava, um corpo, o segundo ser marcado por um preo: a longa viagem dos enviados, para alm de implicar distncias incalculveis (por a fundo, todo longe), envolve sobretudo um

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custo: competia se mandar enviados com paga. Este elemento ganha relevncia se pensarmos que, no pargrafo seguinte, Manuelzo descreve a sua situao de ouvinte furtivo como uma posio passiva: Manuelzo aceitava de escutar as estrias e se ouvindo assim, de graa, estimava (I 565). Nesse sentido, os dois movimentos previstos pela necessidade de um final so movimentos (de recepo, ou de leitura) activos. A violncia de que falvamos talvez o seu trao mais marcante, por ser necessariamente uma violncia dirigida contra aquilo que se faz obstculo a uma completude do sentido o corpo presente, no seu primeiro momento. Antes, ento, de ir interrogar o tipo de presena que ganham as velhas pessoas, podemos pensar numa outra cena em que a procura obsessiva de um sentido ausente (e totalizante) localizada num corpo, eventualmente destrudo atravs de um apertar que, numa leitura famosa, Shoshana Felman liga operao interpretativa. Refiro-me ao final da novela The Turn of the Screw, de Henry James, onde a preceptora, narradora do manuscrito encaixado que constitui o corpo do texto, progressivamente se convence de uma relao entre a presena dos fantasmas que assombrariam a casa e a sua ocultao por parte das crianas (James 1999). Saber o que as crianas sabem e no dizem, desde o comeo da novela, equivale a provar a existncias dos fantasmas e nesse sentido que a ocultao, a negao da informao por parte das crianas, apenas refora a imaterialidade das suas suspeitas. Compreende-se, neste quadro, o caminho que leva a preceptora ao interrogatrio final da criana mais velha, o pequeno Miles, fazendo-o coincidir com uma cena de tortura em que a irredutibilidade do corpo silencioso da criana representa a ausncia de uma totalizao de sentido. Aos olhos da preceptora de James, obter a confisso e exorcizar o fantasma so aces absolutamente coincidentes, como o desfecho da novela ironicamente sublinhar. Para que se chegue a esse ponto, importante ter em conta que as crianas so, para a preceptora, detentoras de um (duplo)

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segredo que resolveria a ambiguidade instituda no texto. Nesse sentido, elas transformam-se, ao longo da narrativa, no lugar do conhecimento. Shoshana Felman associa essa construo, que levar, entre outras coisas, a uma ntida inverso da relao professor/aluno, descrio lacaniana do sujet suppos savoir19, como figura central da transferncia que, por efeito da suposio de conhecimento, se transforma necessariamente no objecto de amor. A essa fuso de desejo e amor, resultando na mais inevitvel das violncias, Felman d o nome de interpretao, especificamente entendida como completamento do sentido, preenchimento da falta ou da falha. E assim se chega famosa cena do interrogatrio, em que presso das perguntas da preceptora, que tenta compor o quadro da sua investigao, a criana apenas responde com o corpo, com um mal-estar fsico que identifica claramente o lugar daquilo que se procura obter e da sua resistncia. Inevitavelmente, perguntar equivale a apertar, agarrar (to grasp) a criana; inevitavelmente, o resultado desse apertar ser enfim um corpo esvaziado, dispossessed, inerte. Nas palavras de Felman: a child can be killed by the very act of understanding (Felman 2003: 205). Sobre essa equivalncia entre procura de um sentido e manifestao da violncia dir a autora: The comprehension (grasp, reach his mind) of the meaning the Other is presumed to know, which constitutes the ultimate aim of any act of reading, is thus conceived as a violent gesture of appropriation, a gesture of domination of the other. Reading, in other words, establishes itself as a relation not only to knowledge but equally to power: it consists not only of a search for meaning but also as a struggle to control it. Meaning itself thus unavoidably becomes the outcome of an act of violence. (idem: 207).
The children become, then, in the governesss eyes, endowed with the prestige of the subjects presumed to know. The reader will recall, however, that the subject presumed to know is what sustains, according to Lacan precisely the relationship of transference in psychoanalytical experience. (Felman 2003: 202). Podemos arriscar que essa estrutura determinante em vrios textos de Guimares Rosa: para alm da suposio de conhecimento que est na base da construo de A Terceira Margem do Rio, pode ser til pensar no modo como Cara-de-Bronze encena essa suposio na figura do Grivo, que comentarei no captulo final deste trabalho. Nesse sentido, importa ter em conta a descrio de Zizek, essencial para a operacionalidade de que se fala aqui: This knowledge is of course an illusion, but it is a necessary one: in the end only through this supposition of knowledge, can some real knowledge be produced. (Zizek 1989: 185).
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O efeito desse acto de violncia, na novela de James, , como se sabe, uma das mais explcitas representaes literrias daquilo a que se pode chamar um final aberto, ou um evento no interpretado20 cuja marca , precisamente, um corpo definitivamente esvaziado do sentido que supostamente deteria21. Interessa-me, ento, manter a partir daqui a ligao entre desejo de sentido, violncia e amor. No caso em anlise, esse n confusamente identificado pelo prprio Manuelzo na j referida oscilao entre repulsa e seduo em relao a Joana Xaviel. O ponto mais evidente ser o momento em que as figuras masculinas em relao s quais Manuelzo se est a projectar, o filho e o velho Camilo, so as duas relacionadas, no devaneio que a histria originou, com o desejo sexual por Joana Xaviel: E o velho Camilo? Com margens de oitenta anos, podia ainda como homem? Mas, mesmo sem ser por resposta do corpo, sem os fogos, diversas pessoas procediam a inocncia de gostar dela a me, mesma de Manuelzo, outros, at as crianas... Ensalmo nenhum; suo de malcia. Suas lbias... Mas o que algum ali tinha dado a entender: que o Adelo, prprio, alguma vez usava o selvagem do corpo dela! isso havia de poder ser? Manuelzo duvidava spero daquilo, depois se compunha para o descrer. (I 566). Desejo fsico e violncia, desejo da presena e desconfiana parecem ser ento os traos da caracterizao deste corpo como lugar moralmente proibido, socialmente inacessvel, mas irremediavelmente identificvel como o lugar daquilo que se deseja, contra a prpria vontade dissimuladora da contadora contra o outro e no seu corpo, tal como em The Turn of The Screw , no seu corpo como lugar material da presena da histria, ou como lugar que a histria constituiu como seu, intransmissvel. A reificao do corpo, implcita na suspeita em relao ao filho (usava o selvagem do corpo dela) apenas um dos passos necessrios para o desdobramento que est aqui a ser praticado
Para a funo do evento no interpretado em The Turn of the Screw ver o ensaio de Emma Kalafenos Not (yet) Knowning: Epistemological Effects of Deferred and Suppressed Information in Narrative, em particular as pginas 41-48 (Kalafenos 1999). 21 Felman, no ensaio referido, avana para atribuir essa mesma procura violenta de sentido s leituras de The Turn of the Screw que procuram resolver a sua ambiguidade. (Felman 2003: 226-42).
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o que distingue uma Joana Xaviel com histria de uma Joana Xaviel sem histria, Joana Xaviel da outra ou outras em que se parece tornar por aco das histrias, o corpo do contador do prprio contador fora da aco da histria. nessa distino que se torna claro que, dissimulao presumida parte, Joana Xaviel pode efectivamente no saber a parte da histria que o seu corpo esconderia primeira de muitas figuras de narradores a quem escapa o significado de um contar que s neles materialmente pode residir.

1.6 Por outro lado, o texto exemplar na medida em que associa o escndalo da nemesis, ou seja o escndalo da abertura da forma, a um esforo arqueolgico: depois da hiptese da tortura, da subjugao do corpo que oferece resistncia para dele extrair o que falta, a reaco que o excerto encena abandona agora o corpo em nome do mapa. A suposta relao metonmica entre gerais e contador aqui explicitada, sob o signo da descontinuidade que apontei anteriormente. Onde o corpo resiste ou no se anula, o mapa, como isomorficamente tendo produzido o corpo do contador, oferece-se como possibilidade de regresso, de movimento em direco a um lugar anterior da histria, onde ela s poderia estar completa: Competia se mandar enviados com paga, por a fundo, todo longe, pelos ocos e veredas do mundo Gerais, caando para se indagar cada uma das velhas pessoas que conservavam as estrias. A caracterizao do desejo de completude como motor de um movimento activo aqui, como dizamos, representada pela caa, que materializa a violncia da busca do sentido. A no legibilidade do corpo como lugar da histria gera ento um segundo movimento, com passagem para um nvel macrocsmico: o da tentativa da legibilidade das estrias no mundo, que coincide aqui com um movimento em direco origem. Sublinhe-se s, por enquanto, que a vontade de chegar depressa a um final (I 687), para citar a
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novela Cara-de-Bronze, que ir conduzir os ouvintes a procurar aquele que afinal seria o tema de Uma Estria de Amor: a origem das estrias. No deixa, ento, de ser curioso que esta representao da memria passe do nvel do corpo para o nvel do arquivo. O contador desloca-se at os seus ouvintes oferecendo-se como suporte vivo de transmisso e transformao pela histria; as velhas pessoas que conservam as estrias, pelo contrrio, na imobilidade de um passado, tero de ser caadas para que possam, como os livros (e os vermes dos livros) de Dom Casmurro, ser interrogadas. Do arquivo de uma memria do mundo, as histrias transitariam para um contador que por elas atravessado, transmitindo-as. Havendo uma falha nessa transmisso, a superao da resistncia do corpo concretiza-se neste movimento de regresso quilo que o constitua como lugar do saber efectivamente passmos da performao conservao. Encontrar esse repertrio, onde a histria inteira completaria enfim a aco, implica porm uma busca, implica uma troca (enviados com paga), pois o tempo antigo feito coincidir com uma paisagem miticamente anterior. Que de uma anterioridade inacessvel se trata evidente pela prpria derivao do excerto para um terceiro movimento: procurar as histrias numa origem imemorial dos tempos equivale a saber que a histria completa, toda poder nunca ser encontrada. Esta biblioteca do mundo configura-se ento como origem, mas uma origem, partida, inacessvel. Repare-se que ainda estamos dentro do problema destacado anteriormente: a tenso entre uma forma presente e impossvel a histria incompleta de Joana Xaviel, que no havia doutra maneira e a existncia anterior e inacessvel de uma forma sem ela contando estria nenhuma, poderamos aqui dizer, ou seja de uma forma sem Joana Xaviel. Poderamos dar um primeiro passo e ligar esta inacessibilidade do mundo de paisagens e velhas pessoas e uma outra origem exterior,

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misteriosa e inacessvel exemplarmente modelada em Corpo de Baile: a do recado de O Recado do Morro, que s pode evoluir num sentido que progressivamente se afasta do seu ponto de emanao. Essa memria do mundo que se procura rastrear, porm, j dada como falvel, naquela que a concluso mais importante para aquilo que me interessa aqui desenvolver. Mas, ainda que nem no se achasse mais a outra parte, a gente podia, carecia de nela acreditar, mesmo assim sem ouvir, sem ver, sem saber: o excerto remete agora para o ponto culminante do escndalo da falta. Identificada a ausncia de um efeito (a closure), o final da histria de Joana Xaviel transformado, pelos seus ouvintes, num meio a que falta o fim e a segunda parte, s essa parte, a que ficou por dizer, a que no se conseguiu extrair da contadora nem do mundo antigo que a originara, converte-se na nica parte importante. Repare-se que um novo movimento: do mundo para a imaterialidade de uma crena sustentada por esse limite, por essa concluso negada e fora da percepo (sem ouvir, sem ver, sem saber). Na sua desmaterializao, a segunda parte afecta constitutivamente a primeira. A relao da forma com aquilo que nela faltante passa, precisamente, pela percepo do limite: o que a histria de Joana Xaviel postula a criao de uma forma incompleta e ao mesmo tempo necessariamente completada por uma ausncia. O efeito da histria de Joana Xaviel, poderamos dizer, a materializao dessa segunda parte como histria sem lugar. Nesse sentido, o episdio pratica, ele mesmo, uma inverso: da histria de Joana Xaviel histria sem Joana Xaviel, que no entanto s atravs da falta que Joana Xaviel representa pode existir. Por isso importante que no se procure, perante a inaceitabilidade do fim proposto, uma outra histria, ou toda a histria, e sim uma segunda parte: inacessvel e imaterial, deve a sua existncia precisamente materialidade da primeira na sua interaco com os ouvintes/Manuelzo. Assim, a

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importncia determinante da segunda parte marcada como inacessvel, no presente, no passado, no tempo e no espao no est aqui apenas vinculada a uma nemesis por resolver e a uma falta por emendar; a introduo de um princpio que o primeiro prefcio de Tutamia explicitar claramente atravs da tematizao da inverso do vazio: o livro pode valer pelo muito que nele no deveu caber (II 526). A histria de Joana Xaviel exerce os seus efeitos precisamente atravs da incompletude da forma que torna possvel, em tenso, o seu completar-se por uma falta.

2. A vida disfara? Por exemplo. Antes de avanarmos na interrogao de algumas destas questes, importa regressar a um dos problemas que aqui surgiram: o do sentido de fechamento, ou closure, que esta histria pe em questo. Como vimos ao longo da leitura anterior, a histria de Joana Xaviel articula uma interrupo brusca com a necessidade da sua concluso. O movimento em direco a um completamento de sentido tem a sua origem no modo como o final da histria parece no poder fech-la, de acordo com as expectativas de quem a ouve. Este ser o primeiro de vrios exemplos em que a interrupo a figura que termina aquilo que no pode acabar, deixando-o em suspenso e prolongando-o alm do seu curso inicial. Algumas leituras deste conto reagem a esta interrogao dos limites, por caminhos que aqui podem interessar, ao tornar mais clara a implicao da interrupo como figura estrutural. Na leitura que apresenta de Uma Estria de Amor no seu livro sobre Guimares Rosa, Marli Fantini (2003) repete um movimento que Sandra Vasconcelos j ensaiava no seu texto com resultados opostos. Esta, como vimos, considerava o modo
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como a histria de Joana Xaviel se afastava do conto moral, e recorria a Walter Benjamin, mais uma vez no ensaio sobre o narrador, para estabelecer aquele que lhe parece ser o princpio determinante do episdio. Se Benjamin afirmava o carcter exemplar da histria exemplaridade que o conselho em cena em Grande Serto: Veredas parece explicitamente pr em causa, como bem viu Davi Arrigucci Jr.22 , Sandra Vasconcelos localiza o desvio da histria de Joana Xaviel no divrcio entre moralidade e exemplaridade: a histria seria, sim, exemplar, mas o exemplo proposto pelo texto no seria moralmente aceitvel para os ouvintes. Esta leitura acentua o seu papel na validao de uma moral, chamando a ateno para aquilo que sublinhei ser determinante para o episdio: erro na construo ou erro na lio, o que os ouvintes de Joana Xaviel exercem a negao da closure da histria, ou seja da retrospective revelation of the law of the whole (Miller 1992a: 18) que o final projectaria. Por outras palavras, a ideia de uma estrutura no suficiente para fechar definitivamente a histria, que v o seu momento terminal invalidado; mas isso no impede que o movimento de reabertura da histria por parte dos ouvintes seja ainda de natureza estrutural. Marli Fantini, atenta dimenso formal dessa negao do fim que tentei sublinhar, sugere no entanto que a exemplaridade da histria reside noutro dos traos que Benjamin legou discusso do storytelling: a capacidade de garantir transmissibilidade narrativa. Fantini interpreta ento a histria de Joana Xaviel como uma histria exemplar e no desviante no contexto da narrativa tradicional, pois a projeco para a memria colectiva que comentei anteriormente geraria a possibilidade de completamento da histria inacabada, por outro contador que viria, mais tarde, a prolongar a fico de Joana Xaviel:
O heri do romance justamente aquele que j no pode falar exemplarmente de suas preocupaes; j no o homem de bom conselho, a quem pudesse bastar o saber tradicional. Por isso, para ele a travessia individual tambm o enredamento num labirinto de dvidas para cuja sada de nada valem a sabedoria e as normas tradicionais: Porque aprender a viver que o viver, mesmo, como dir Riobaldo, quase ao fim de seu percurso. (Arrigucci 1994: 20).
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A indignada recepo dos ouvintes e seu empenho em resgatar a origem das estrias mostra que a narrativa inconclusa de Joana Xaviel desembocar na voz de um novo narrador que, ao atribuir uma outra seqncia estria, no apenas dar continuidade tradio oral, mas tambm ir instituir uma nova rede de sentidos. (Fantini 2004: 255). Uma leitura deste gnero tem, no entanto, de ignorar a sequncia que serve de fecho ao episdio, em que o acento cai sobre a imaterialidade da segunda metade, bem como o movimento regressivo em direco ao mundo das velhas pessoas que conservavam as estrias. Ajuda, assim, a melhor compreender um dos aspectos que tentmos sublinhar: postular a possibilidade efectiva de uma continuao equivale a ignorar a tenso formal que destacmos; ou seja, a tenso entre a manifestao particular, incompleta mas nica da histria com Joana Xaviel e uma forma anterior suposta, que nasce da falta, desse sentido de interrupo e incompletude. Na defesa de Joana Xaviel est toda a dificuldade de uma distino entre interior e exterior, anterior e posterior: a histria que s existe assim s pode ser completada pela sua incompletude ou seja pela hiptese de uma anterioridade no comprovvel. O que no impede que seja considerada vlida, mais vlida at do que a histria que se nega. este o movimento que perseguimos nas pginas anteriores e que importante agora afirmar: a incompletude da histria de Joana Xaviel constitutiva, porque s sobre a falta se pode construir, aqui, a noo de histria em que os ouvintes escolhem acreditar. Que se encontre ou no se encontre, como o texto sugere, indiferente a partir do momento em que o excerto se fecha: a segunda parte tornou-se a nica parte importante precisamente pela relao que mantm com a falta que a constitui, parte ausente e imaterial de uma materialidade que a define. Percebe-se ento a relevncia do tema do fechamento que comecei por destacar: de um problema de negao da concluso que se est aqui a falar, pelo modo como o processo descrito invalida um fim para projectar um verdadeiro fim numa
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imaterialidade no performada ou no realizada. O final inapropriado da histria de Joana Xaviel parece equivaler aqui a uma interrupo, que s pode indicar, bruscamente, a sua natureza de intervalo numa estrutura que se tornou suspensa. Repare-se, alis, que esse impossvel fechamento no equivale quele que Paul Zumthor relaciona com a no-repetibilidade das condies da performance oral23: sempre da mesma histria que se fala, e que se falar no exemplo que comentaremos de seguida e ser sempre a mesma histria que estes narradores iro contar. talvez nessa diferena em relao a um modelo de variao que se revela abertamente a ateno ideia de forma que o episdio encena. Reencontraremos a figura da interrupo como marca da impossibilidade de terminar noutros textos em anlise, em que a prpria morte se ir propor como o limite insustentvel da forma ser esse o tema do prximo captulo. Por ora, interessa-me introduzir o problema, de forma mais contextualizada, a partir de um dos episdios mais comentados de Grande Serto: Veredas, que levanta exactamente o problema de uma relao entre forma e acabamento ao mesmo tempo que encena uma performance oral que se repete insistentemente. Trata-se de um dos casos que pontuam a primeira metade do romance, introduzidos pelo narrador Riobaldo no seio da parte menos linear da sua narrativa, e que mereceu particular ateno pelo modo como reflecte os temas principais do romance e a relao entre pacto e sacrifcio: Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de Antnio D, tinha um grado jaguno, bem remediado de posses Davido era o nome dele. Vai, um dia, coisas dessas que s vezes acontecem, esse Davido pegou a ter medo de morrer. Safado, pensou, props este trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado Faustino: o Davido dava a ele dez contos de ris, mas, em lei de caborje invisvel no sobrenatural chegasse primeiro o destino do Davido morrer em combate, ento era o Faustino quem morria, em vez dele. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, no poder de feitio do contrato ele muito no acreditava. Ento, pelo seguinte, deram um grande fogo, contra os
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Veja-se sobretudo Zumthor 1984 (p. 26), onde se reformulam algumas passagens tratadas detalhadamente em Zumthor 1983 luz do problema da closure, tema do nmero da Yale French Studies.

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soldados do Major Alcides do Amaral, sitiado forte em So Francisco. Combate quando findou, todos os dois estavam vivos, o Davido e o Faustino. A de ver? Para nenhum deles no tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses, escapos, alterao nenhuma no havendo; nem feridos eles no saam... Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminho, para pescarem no Rio. Sabe o que o moo me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estria em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele da imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava tambm a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davido no aceitava, no queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no cho, embolados. Mas, no confuso, por sua prpria mo dele, a faca cravava no corao do Faustino, que falecia... Apreciei demais essa continuao inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instruo no concebe! A podem encher este mundo de outros movimentos, sem os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaar. A vida disfara? Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E ele me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davido e Faustino. O fim? Quem sei. Soube somente que o Davido resolveu deixar a jagunagem deu baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa tambm, e viesse morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim, Pelejar por exato, d erro contra a gente. No se queira. Viver muito perigoso... (II 58-59).

Trata-se de um dos pontos do texto em que a ideia de uma relao entre pacto e morte mais evidente, desde j pela recuperao irnica da referncia faustiana. Da sua importncia na estrutura de Grande Serto: Veredas d conta e exploraremos mais tarde este aspecto a referncia que lhe ser feita na sequncia central do romance, que o divide explicitamente em duas partes a partir de um momento de suspenso em que os diferentes temas surgem entrelaados. Pergunta nesse ponto Riobaldo referindo-se, como se percebe, questo do seu pacto: O pacto de um morrer em vez do outro e o de um viver em vez do outro, ento?! Arrenego. (II 201). Davido e Faustino, alm de servirem como primeiro modelo de interrogao da validade do pacto, fornecem
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tambm a Riobaldo um dos movimentos mais explcitos de reflexo potica. Convm sublinhar, porm, que mais uma vez nos encontramos perante um questionamento da noo de closure. Se pensarmos ainda nos termos da leitura que acabmos de fazer de Uma Estria de Amor, vemos que, num primeiro nvel, a situao descrita semelhante: um narrador narra uma histria com um final insatisfatrio, ou que sentido como incompleto, um interlocutor prope-se preencher essa falta atravs de um movimento, aqui marcadamente literrio, de adio de uma segunda parte. De facto, a continuao inventada do moo da cidade introduz no caso sem final de Riobaldo precisamente o tipo de concluso que parece faltar histria de Joana Xaviel que comentvamos: um final marcado por um movimento de peripcia que fecha a aco e a que nada se poder seguir. Alm do mais o desfecho, se inquieta o leitor por fornecer uma descrio muito prxima da luta final entre Diadorim e Hermgenes, sobretudo prope uma construo em que no possvel distinguir se a causa da morte do Faustino a tentativa de quebrar o pacto ou o prprio pacto. Libertao do dever de morte e condenao morte coincidem, ao mesmo tempo que os elementos em duelo se confundem atravs do pacto que inverteu as posies. Como comentar Riobaldo a propsito do duelo final: quando o que j defunto era quem mais matava. (II 376). O final proposto , ento, um final que se aproxima da reversibilidade constitutiva do modo trgico, nos termos em que Peter Szondi l o conceito: There is only one tragic downfall: the one that results from the unity of opposites, from the sudden change into ones opposite, from self-division. (Szondi 2002: 55). No h dvidas, assim, sobre o valor de closure dessa proposta de continuao, que se dobra sobre si sem que porm responda pergunta de Riobaldo ao longo do todo o livro Pacto? (II 201) pelo modo como nela acidente e inteno se tornam

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indistinguveis24. A continuao do moo de fora responde ao caso de Riobaldo precisamente na medida em que ope a uma forma sem termo razovel uma narrativa completa, iluminada pelo limite insupervel que institui. Ivan Teixeira sublinhou que o episdio glosa a noo aristotlica de que a vida possui menos acabamento do que a arte (Teixeira 2003: 59) e, em geral, o episdio lido como ilustrando uma afirmao da superioridade da fico em relao vida. De facto, perante o final proposto, Riobaldo exclama: A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instruo no concebe! No entusiasmo do narrador a fico, limpa, detentora de uma verdade que a vida parece disfarar, e que se apresenta como consequncia da sua maior legibilidade. O final apresentado pelo moo da cidade parece ter a vantagem essencial de ser uma aco completa e inteligvel o sentido de fechamento derivaria, assim, da apreensibilidade de uma forma, na sua extenso, por oposio falta de formato do caso narrado, que acaba sem verdadeiramente acabar25. Que estamos perante uma representao da literatura vinculada a uma ideia de forma demonstra-o, alm do mais, o comentrio do rapaz pescador ao ouvir o caso de Riobaldo: Sabe o que o moo me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estria em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. A necessidade de um final caprichado,

Correspondendo assim categoria superior de enredos que Aristteles (Potica 1452a) exemplifica com o episdio da morte de Mtias pela queda da esttua que o representava: Tais factos parecem no acontecer por acaso; portanto, enredos deste gnero so necessariamente mais belos (Aristteles 2004: 56). 25 Outras passagens de Grande Serto: Veredas regressam a esta mesma oposio, recorrendo imagem do teatro. O teatro, o papel, tal como aqui o livro, parecem oferecer-se como imagens de um formato que se ope ao informe; e, repare-se, de um formato que se confunde, em vrios momentos, com a ideia de destino. Nesse sentido, importante manter a associao entre a legibilidade que a forma oferece e a ideia de um destino vivvel mas no achvel: Em desde aquele tempo, eu j achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem ps nem cabea, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto o seu papel, desempenho. Era o que eu acho, o que eu achava. (II 158-159); Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se no, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que . E que: para cada dia, e cada hora, s uma aco possvel da gente que consegue ser a certa. Aquilo est no encoberto; mas, fora dessa conseqencia, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e o errado. Ah, porque aquela outra a lei, escondida e vivvel mas no achvel, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuao, j foi projectada, como o que se pe, em teatro, para cada representador sua parte, que antes j foi inventada, num papel... (II 308).

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que definitivamente feche a histria (sustante), depende, na sequncia, da referncia histria como estria em livro. o livro, como figura de uma forma concluda e apreensvel, que determina a invalidao do final proposto por Riobaldo. No estamos longe de algumas das caracterizaes mais comuns da ideia de closure. David Richter (1983) sugere que esta se tem pautado, tanto na sua problematizao crtica quanto nas opes literrias que a parecem suscitar, por uma oscilao entre dois plos, em que o primeiro pode ser identificado com a frmula pourrait tre continu, que fecha Les Faux-Monnayeurs de Andr Gide e que demonstra uma tendncia, afirma Richter, to subvert normal narrative closure in the interest of showing ones commitment to the endless flux of being (idem: 287). No plo oposto, encontramos o exemplo de Henry James, que no prefcio a Roderick Hudson afirma: Really, universally, relations stop nowhere, and the exquisite problem of the artist is eternally but to draw, by a geometry of his own, the circle within which they shall happily appear to do so (James 1934: 5). Uma mesma caracterizao do fluxo do devir, informe e no delimitado, est na origem destes dois movimentos de sinal contrrio, assentes sobre a figura do fim: se no primeiro caso se fala de um compromisso com a natureza da vida, que implica a negao de uma concluso, no segundo predomina a acentuao de um poder de criao daquilo que na vida no existe. Parece ser essa a oposio dominante no excerto e nos comentrios de Riobaldo, que no fundo aparentam valorizar a apreensibilidade de um enredo que impe um formato ao que no tem fim, como factor de legibilidade sobre a farsa da vida26.

Atente-se, porm, num facto: so poucas as referncias a uma efabulao explcita e consciente ao longo de Grande Serto: Veredas. Num certo sentido, os casos de narrao que predominam nunca so explicitamente inventados: parecem pressupor uma origem, to obscura quanto a que vimos corresponder s histrias do conto anterior, que as distingue desta pura inveno: a narrao oscila entre os casos e a narrativa autobiogrfica. O caso do Davido e Faustino mantm essa demarcao: h o caso, o que se diz e nesse caso introduz-se uma narrativa autobiogrfica individual (o encontro com o moo, a narrao anterior) de que Riobaldo parece querer retirar uma lio. A continuao inventada do moo a nica coisa que aqui parece responder ao nome fico. O exemplo que a este se pode acrescentar, e que recorre mesma estratgia de alterizao (neste exemplo, outros

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No entanto, o modo de apresentao desta estrutura mais complexo, por estarmos dentro de um episdio que encaixa a narrativa numa dupla moldura. Este episdio destaca-se, no quadro de Grande Serto: Veredas, por oferecer uma estranha duplicao da figura do interlocutor; em nenhum outro momento do romance a sobreposio de planos to evidente. Riobaldo narra a um moo de fora, de alta instruo um caso que j contou a outro moo de fora, incluindo no texto a resposta deste, quando a resposta do interlocutor em cena permanece ausente ( a prpria definio do dilogo oculto rosiano). Complexa duplicao, se pensarmos tambm no modo como Grande Serto: Veredas prepara uma identificao entre a figura do interlocutor e o leitor, que deste modo se v, ao mesmo tempo, reflectido e distanciado. No uma situao nova no romance: poderamos apresent-la como variante do efeito de repetio gerado pela presena da figura de Quelemm ao longo da narrativa de Riobaldo. A, porm, pela diferena que se parece estabelecer a validade da nova narrao autobiogrfica: Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemm; mas ele quer saber tudo diverso: quer no o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo me escutando com devoo assim que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido. (II 130). No excerto, a proposta de uma sobre-coisa posta em tenso com uma aprendizagem da narrativa, que diferenciaria a resposta do interlocutor da resposta de Quelemm, que a narrao relata no eplogo. A matria vertente que Riobaldo declara mais tarde ser o objecto da sua narrativa aparece-nos, ento, por efeito desta duplicao comentada, em articulao no com a sobre-coisa e sim com esse caso inteirado em si, que exige tambm um sentido de completude. Quelemm, deste modo, constitui para a figura do interlocutor, e do leitor que nele se reflecte, uma figura de repetio e
movimentos), o da nica referncia de Grande Serto: Serto a um romance, o Senclr das Ilhas, que Riobaldo descobre em casa de um dono do stio que no sabia ler nem escrever. A Riobaldo diz ter encontrado outras verdades, muito extraordinrias (II 243).

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diferenciao. Ser o mesmo o que se passa com a referncia a este outro antecedente, mais prximo, da figura do interlocutor? Repare-se que a narrao deste caso, que deve ser lido, como aponta Kathrin Rosenfield, na srie de casos exemplares que pontuam a primeira parte do romance (Rosenfield 1992: 20-24), distingue-se dos outros por ver o seu exemplo no na narrativa em si, e sim na relao que a estruturao dialgica do episdio estabelece entre as diferentes situaes narrativas e as respostas que delas se originam. Desta distino depreende-se, tambm, que o episdio encena mais do que um confronto entre vida e arte, pois Riobaldo no termina o episdio numa contraposio entre o caso e a continuao proposta pelo rapaz pescador, que declara admirar e seria alis de suspeitar esta declarao aberta de entusiasmo numa personagem que afirma: A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio essa que a regra do rei! (II 20). O movimento que identifiquei no caso de Joana Xaviel regressa aqui plenamente: o caso de Riobaldo, exemplo a comentar, termina sem terminar; o rapaz pescador reconhece-lhe uma falta a falta de um final propondo uma continuao inventada que verdadeiramente termine, deste modo destacando a insustentabilidade da concluso do caso que Riobaldo contou (e volta agora a contar). A esse apndice ficcional, Riobaldo ir contrapor o final na verdade de realidade. A estruturao dialgica do episdio pe em relao essas trs dimenses o caso, o final da fico e o final do real da vida. O eixo que permite essa comparao , assim, a ideia de closure. Repare-se, antes de mais, que o jogo das repeties envolvido neste excerto tambm importante para a definio de Riobaldo como narrador: tal como contou o caso, da primeira vez, ao moo da cidade, Riobaldo volta agora a cont-lo a este outro interlocutor, interrompendo-o no momento exacto em que o terminou da primeira vez. Num certo sentido, esta repetio chama j a ateno para o facto de Riobaldo no saber

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a histria doutra maneira, para recuperar a formulao de Joana Xaviel (I 565). Enquanto narrador, Riobaldo repete o caso e repete a resposta repete ao interlocutor exactamente o que contou ao rapaz pescador. Aqui, porm, h uma diferena: a narrao do episdio inclui o final caprichado como parte da sequncia, e assim reafirma essa nica forma possvel do caso atravs da acentuao do contraste entre realidade e fico. Quando, no final do episdio, Riobaldo repete a resposta sobre a vida, em que as coisas, tal como no caso contado, no acabam, a continuao inventada, o final outro, revela-se como o elemento discrepante no conjunto. Tal como em Uma Estria de Amor, o problema continua a ser o de um caso que no acaba verdadeiramente contra uma possibilidade de prolongamento pela via ficcional: que a segunda metade que este moo inventa no respondeu pergunta que Riobaldo parece querer colocar a partir da histria torna-se evidente pelo facto de Riobaldo contar duas vezes a histria, em primeiro lugar, e contar duas vezes o fim da histria, na sobreposio entre caso e vida. Por outras palavras, Riobaldo parece querer prolongar o contraste entre o fechamento da continuao e o no-fechamento da vida atravs de uma negao explcita do fim que apenas repete o caso: tal como, na guerra jaguna, o resultado do pacto parece ter sido uma dupla sobrevivncia, tambm agora a vida confirma esse mesmo resultado, com a repetio do pacto a terra em troca da permanncia, o pacto como elemento que unifica os dois na negao da morte. A lio, ento, parece ser aqui dupla: a lio sobre o pacto, que se abre para todo o romance; e a lio sobre a relao entre formato e morte, que o moo de fora vem introduzir. No fundo, o caso do Davido e do Faustino termina por um final que mostra o pacto de morte traduzido em pacto de vida e esse final que lido por quem o ouve como incompleto; o final caprichado que o moo de fora oferece inverte esta relao em direco morte como closure. Assim, os outros movimentos que a continuao

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introduz na vida implicam, segundo Riobaldo, precisamente o fim que a vida (do caso) no tem. No estamos longe daquele desejo de morte que Peter Brooks identifica com o desejo do texto: The desire of the text is ultimately the desire for the end, for that recognition which is the moment of the death of the reader in the text. (Brooks 1992: 108). Como comemos por ver com a leitura que Shoshana Felman fazia de James, o desejo de apreenso da histria como forma completa e concluda, ao exigir o movimento de retrospeco totalizadora que o fim origina, orienta o desejo do leitor para um ponto que inevitavelmente coincidir com a morte: At its final, climatic point, the attempt at grasping meaning and at closing the reading process with a definitive interpretation in effect discovers and comprehends only death. (Felman 2003: 217).27 O episdio, ento, parece recuperar algumas linhas que j encontrmos no exemplo inicial: Riobaldo apresenta-se como narrador de um caso que no termina verdadeiramente; no o sabe de outro modo, nem sabe o fim, na verdade de realidade, para alm de uma estrutura aberta e sem formato, que reafirma a forma do caso (e a sobrevivncia). Temos, mais uma vez, um contador que no sabe mais do que um final que no termina e um interlocutor que exige, para a histria, uma closure que coincide com o sacrifcio de um corpo. O desejo de fim que aqui se postula, motivado por uma ideia de forma que tambm uma ideia de livro, implica a morte. O que se decide nesta passagem ser, assim, a opo entre os dois modelos de closure invocados acima: caso e vida, neste episdio, opem-se claramente a uma ideia de literatura que se descreve como perigosa, precisamente com base na sua capacidade de se apresentar como

As duas leituras tm por trs, de forma muito evidente, a caracterizao da relao entre narrativa e morte que Benjamin prope no ensaio sobre o narrador, onde morte e legibilidade de uma forma completa j eram postas em relao: The novel is significant, therefore, not because it presents someone elses fate to us, perhaps didactically, but because this strangers fate by virtue of the flame which consumes it yields us the warmth which we never draw from our own fate. What draws the reader to the novel is the hope of warming his shivering life with a death he reads about. (Benjamin 1992: 100).

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forma concluda e inteligvel. A arte, aqui, inventa a morte. O que a repetio encenada no episdio parece acentuar , ento, o modo como a narrativa de Riobaldo se afasta, aqui, dessa geometria que a arte detm sobre as formas misturadas da vida. Prxima da histria truncada de Joana Xaviel, a narrao de Riobaldo resiste a uma imposio de forma que parece ter a morte como preo. No entanto, o fecho do episdio perturba mais uma vez o equilbrio da sequncia: a advertncia final, em forma de mxima, ameaa a prpria distino que acabou de ser feita. O sentido daquele Melhor assim lana dvidas sobre a oposio entre vida e arte que estava a ser traada. Se, por um lado, se percebe no episdio a condensao de uma potica da narrao que procura apresentar-se, tal como a vida, com menos formato, atravs da qual Riobaldo se afasta da ideia de literatura que o excerto enuncia na figura do moo, por outro no podemos no ter em conta o modo como o final caprichado, ou exato, parece antecipar, como j sublinhei, o prprio duelo final de Grande Serto: Veredas. O regresso ao Leitmotiv do romance est l para o assinalar. A relao que descrevamos torna-se assim mais complexa: classificaes como a de Richter, que remetem para a tradicional distino entre final aberto e final fechado,28 assentam, como vimos, sobre a considerao da vida como fluxo, e parece ser essa, inicialmente, a base da posio de Riobaldo. Aqui, porm, o narrador transfere essa mesma oposio para o real da vida, em que tambm seria possvel pelejar por exato. O desejo de imposio de uma forma delimitada a esse fluxo que, noutros momentos da narrativa, Riobaldo afirma como seu, aqui declarado como erro. J no apenas de uma potica da narrao que se est aqui a falar: a demonstrao de o perigo que viver serve-se agora da definio de fico para incorporar na noo de vida a mesma oposio entre abertura e fechamento. Assim, a relao isomrfica entre

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Ver, por exemplo, Seymour Chatman sobre Closed and Open Plots (Chatman 1993: 20-22).

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vida e narrao que comemos por apontar ganha agora uma maior complexidade: comentrio do mundo e comentrio das estratgias de representao desse mesmo mundo so aqui, como noutros momentos-chave da obra rosiana, sobrepostos, constituindo um n reflexivo de difcil orientao. Na vida e na fico, a procura de uma legibilidade teologicamente orientada para um fechamento resulta,

inevitavelmente, no encontro com a morte. A afirmao de uma narrativa aberta, com menos formato, faz-se assim contra essa morte, fundindo potica e tica: a superao do limite da morte de Diadorim pelo movimento de releitura que o romance impe, como veremos, ser disso exemplo. Talvez o mais apropriado, ento, seja falar de resistncia ao fim.

3. O que: aquilo nunca parava, no tinha comeo nem fim?

Alice thought to herself: I dont see how he can ever finish if he doesnt begin. But she waited patiently. Alice in Wonderland Talvez a mais directa problematizao do fim, em Guimares Rosa, esteja no texto em que mais evidente a encenao da destruio de uma forma: Pirlimpsiquice, de Primeiras Estrias. Trata-se de um breve conto sobre a impossibilidade de terminar, muito levemente mascarado de histria anedtica, includo na obra de Rosa em que a oposio entre interrupo e continuidade se manifesta de forma mais elaborada, quer a nvel temtico, quer a nvel, como veremos na prxima seco, da organizao do livro. Alguns dos problemas que encontrmos at agora a relao entre uma parte material e uma outra parte no localizvel, a impossibilidade
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da closure e a articulao aparentemente necessria entre a ideia de fim e a ideia de morte regressam aqui em jogo com o universo do teatro, relacionando o texto e o espao delimitado do drama com a ideia de abertura que at agora encontrmos conjugando porm a dificuldade de terminar com o problema do comeo. Nessa tenso entre os limites da pea e o seu transbordamento a prpria ideia de forma, ou formato, que ser encenada. O enredo do conto conhecido, e no vou agora focar outros pontos que mereceriam comentrio, mas que fogem ao objectivo deste captulo. O que me interessa reter da estrutura de Pirlimpsiquice , sobretudo, o modo como se multiplica a ideia de pea. A partir da pea inicial, para a qual so escolhidos alguns dos alunos do colgio, e que mantida por estes em segredo durante os ensaios, vo surgir outras duas verses: a primeira delas, inventada e deliberadamente divulgada pelo grupo como a verdadeira, destina-se a proteger Os Filhos do Doutor Famoso, texto a ser representado; a segunda criada pelos alunos excludos, como contraverso que apresentam como oficial. O que importante aqui que o ponto de partida, a pea inicial, se apresenta efectivamente como um texto, que tem a sua representao mais directa na escolha de um mestre ponto: o narrador. Todo o relato da preparao da pea, com a competio entre diferentes enredos que o segredo vai provocar, encena um progressivo afastamento em trs nveis desse primeiro texto enquanto texto. essa fixidez imutvel do guio por manter que as crianas, desde o incio, sentem e essa a caracterstica a que as outras verses, at ao momento da representao, respondero. Num primeiro momento, ao enredo fixo vai contrapor-se a alguma outra estria, mais inventada (II 416). Essa primeira contra-histria, repare-se, tem como nica caracterstica a inveno, sem qualquer relao com um texto escrito, nem com um formato que a delimite: a outra estria, por ns tramada, prosseguia, aumentava, nunca
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terminava, com singulares-em-extraordinrios episdios, que um ou outro vinha e propunha (II 416). Efabulao pura, a histria das crianas materializa-se numa sequncia sem termo, susceptvel de continuao, e indiferente a qualquer delimitao. A tenso entre estas primeiras duas formas, no entanto, tem como eixo a figura do ponto, que pertence ao grupo dos que inventam e prolongam a nova histria, mas que pela sua funo retm e representa a escrita da primeira, fixando a sua prioridade: J, entre ns, era a nossa estria, que, s vezes, chegvamos a preferir outra, a estria de verdade, do drama. O qual, porm, por meu orgulho de ponto, pusera eu afinco em logo reter, tintim de cor por tintim e salteado. (II 416). Repare-se, antes de mais, que comeamos aqui a reencontrar elementos que j nos so familiares: temos uma figura de narrador que se apresenta como ponto de resistncia, guardio de uma determinada forma, fazendo-se eixo de uma tenso entre uma forma definida e uma forma inventada contra essa forma definida. A histria inventada parece caracterizar-se pelo mesmo mecanismo de acumulao, de adio de partes, que os ouvintes de Joana Xaviel pareciam propor contra o seu texto. Na histria das crianas nunca se acabava porque no havia um limite no havia um fim aps o qual nada se podia seguir, por verosimilhana e necessidade, e por isso era sempre possvel acrescentar novos episdios. O nico impedimento para esta inveno sem fronteiras ser, ento, o ponto: aquele que garante a diferena entre o texto e a inveno, e aquele que garante a natureza suplementar desta segunda histria. A primeira histria preserva-se, ento, de dois modos: pela memria (tintim de cor), na figura do ponto, e pelo desvio, na produo de um falso que venha encobrir o verdadeiro. S que no segundo desses modos, a pea comea j a ver-se ameaada, pois as crianas parecem deixar-se seduzir precisamente pelo que, na histria deles, se ope primeira.
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No quadro desta contraposio, porm, intromete-se um terceiro elemento. A esta segunda verso vai acrescentar-se, proposta pelo grupo excludo, outra verso falsa inteiramente falsa, porm, porque inventada sem relao com a primeira, desconhecida. A distingui-las, mais uma vez, um problema de forma: De fato, circulava outra verso, completa, e por sinal bem aprontada, mas de todo mentirosa (II 417). H aqui duas diferenas a sublinhar: de todo mentirosa ope-se a mais inventada; e, mais importante ainda, se a primeira nunca terminava, esta apresenta-se completa e por sinal bem aprontada caprichada, poderamos dizer, de acordo com Riobaldo e o seu rapaz pescador. Nesta contraposio situa-se o eixo da questo em causa na noite da representao: efabulao pura e sem limites que se constri contra uma forma fixa, ope-se agora a artificialidade de uma inveno inteiramente falsa. Circulando pelas trs verses, esto elementos que comprometem qualquer distino: parte do grupo, e o prprio ponto, participa de duas das histrias; uma personagem furta pedaos do enredo primeiro e pe-nos a circular. Estabelecida esta diviso, o teatro subitamente, no prprio dia da apresentao, ameaado pela vida ou seja pela morte. O protagonista afastado de cena pela ameaa de morte do pai e a pea, momentaneamente posta em causa o teatro era para impossvel de no haver (II 419) torna-se possvel apenas pela existncia do ponto, ou seja, como dizamos, do guardio do texto. A funo do actor apresenta-se como substituvel a partir da existncia de um texto anterior, cuja posse garante a representao. O conto sublinha a substituio: o ponto sabe as palavras, o fraque no lhe fica excessivamente largo, a pea pode ento avanar com a compensao da ausncia do seu protagonista em nome da preservao do texto original. S que nessa substituio que ir residir a verdadeira ameaa da pea: o que dela deriva, efectivamente, a subverso das relaes que permitiriam o drama planeado,
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precisamente porque o ponto quem entra em cena. Este e o encenador trocam de lugar, o segundo remetido, como veremos, a uma posio impotente; e o ponto, aquele que desde o incio do conto se apresenta como detentor da palavra, subitamente tornado visvel. O que comea por implodir com esta mudana aquilo a que Derrida chama, na leitura que faz do teatro de Artaud, machinerie du souffleur, no fundo garantia da prioridade natural da primeira pea sobre as suas verses, e sobre a cena do palco e do corpo: Souffle: entendons du mme coup inspire depuis une autre voix, lisant ellemme un texte plus vieux que le pome de mon corps, que le thatre de mon geste. Linspiration, cest, plusieurs personnages, le drame du vol, la structure du thatre classique o linvisibilit du souffleur assure la diffrence et les relais indispensables entre un texte dj crit dune autre main et un intrprete dj dpossed de cela mme quil reoit (Derrida 1967a: 262).29 Com a sbita visibilidade do ponto a prpria delimitao do texto que posta em causa, perturbada com a penetrao, em cena, da figura que a cena esconde. Esta tornada visvel na primeira linha do palco: substituindo o protagonista, primeiro, e sendo empurrado para a frente, o ponto invade o espao do proscnio, para a enunciao do prlogo. E a que a pea fica bloqueada: Eu estava ali, parado, em p, de fraque, a beira mundo do pblico, defronte. E, que queriam de mim, que esperavam? (I 419). O desastre que se anuncia agora mais poderoso do que a ameaa inicial pea, porque parece no admitir substituies. O ponto no sabe os versos de abertura que esto fora do texto da pea que a sua memria representa: Mas, esses versos, eu no sabia! S o Ataualpa sabia-os, e Ataualpa estava longe, agora, viajando com o tio, de trem, o pai dele morte... Eu, no. Eu: teso e bambo, no embondo, mal em suor frio e quente, no tendo d-me-d, gago de , no sem-jeito, s espanto. (II 419).

Num artigo recente Marlia Rocha associa o tratamento do ponto em Pirlimsiquice aos ensaios de Derrida sobre Artaud, destacando sobretudo o carcter subversivo da representao (Rocha 2007).

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aqui que importa concentrar a ateno, considerando um aspecto pouco sublinhado nas leituras deste conto: o hipottico desastre da representao um desastre dependente do prlogo, de um problema de comeo, que se reflecte directamente na arquitectura do espao fechado do drama. Se em Pirlimpsiquice encontramos uma violenta encenao do problema do fim, no podemos esquecer que a origem desse problema est no episdio do prlogo falha da abertura, da moldura, do quadro.30 Alis, o que Pirlimpsiquice traz de novo, em relao aos exemplos anteriores, precisamente esse movimento explcito de articulao entre comeo e fim como pontos de solicitao e de perturbao da noo de forma31, contrapondo continuidade e interrupo32. A descrio insiste sobre as marcaes espaciais da pea, porque a que reside o elemento de crise da representao. O incio da pea prev um prlogo na boca de cena porque aquele arranjo de todos ns no palco, vindos ao proscnio, eu adiante, era conforme o escrito no programa (II 419) mas essa posio, na disposio do palco, posio que, literalmente, espacialmente, ultrapassa o ponto, e desse modo
O facto de a crise da pea depender da negao do prlogo sugere no s a negao da pea tradicional, como tambm a negao da pea como forma. Veja-se o que diz M. Fusillo a propsito da abertura ficcional: Nier lincipit signifie non seulement nier le caractre conventionnel de lcriture, mais aussi, de faon plus gnrale, le prsuppos mme de la forme romanesque. (Fusillo 2001: 143). 31 Podemos pensar na caracterizao de Hillis Miller da relao entre comeo e fim: By a strange but entirely necessary paradox, the problem of the ending here becomes displaced to the problem of the beginning. The whole drama is ending and beginning at once, a beginning/ending which must always presuppose something outside of itself, something anterior or ulterior, in order either to begin or to end, in order to begin ending. The moment of reversal, when tying becomes untying, can never be shown as such or identified as such because the two motions are inextricably the same, as in the double antithetical word articulate, which means simultaneously putting together and taking apart. The tying/untying, the turning point, is diffused throughout the whole action. Any point the spectator focuses on is a turning point which both ties and unties. This is another way of saying that no narrative can show either its beginning or its ending. It always begins and ends still in medias res, presupposing as a future anterior some part of itself outside itself. (Miller 1978: 4). 32 Os problemas j levantados a propsito da concluso regressam, alis, num texto indito de Italo Calvino em que se discute a figura do incipit, intitulado Cominciare e finire. , na verdade, o texto da conferncia inicial das Norton Lectures, que se destinava, em grande parte, sexta e ltima das Lezioni Americane che da nasceram, supostamente intitulada Consistency: Ogni volta linizio questo momento di distacco dalla molteplicit dei possibili (...). Linizio il luogo letterario per eccellenza perch il mondo di fuori per definizione continuo, non ha limiti visibili. Studiare le zone di confine dellopera letteraria osservare il modo in cui loperazione letteraria comporta riflessioni che vanno al di l della letteratura ma che solo la letteratura pu esprimere. (Calvino 1995: 735).
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ultrapassa tambm o texto, enquanto limiar, transio, abertura: fora do texto e necessariamente abrindo para ele. Se o ponto chamado representao do prlogo, transbordando para alm do limite da pea, o risco precisamente que o texto, enquanto texto, se exponha na sua limitao: a limitao de no poder comear sem um elemento constitutivo que se situa fora dele. A conveno que os versos Virgem e Ptria representam questiona abertamente os protocolos de abertura, ou seja os protocolos de instituio da fico, de passagem representao, para os actores e para o pblico, ao mesmo tempo que revela a lacuna do texto que o prlogo, como elemento exterior e adicional, e no entanto necessrio, revela no texto. No fundo, o ponto transformado em actor mostra-se na beira do palco como incapaz de representar incapaz de passar do prlogo pea. E bloqueia a pea no seu limiar: de bolsos vazios, de frente para o pblico, impede o comeo do texto. Percebe-se ento que o pano no possa descer, que o pano, enguiado, depois da primeira improvisao do ponto-texto, se revele bloqueado: Mas o pano no desceu, estava decerto enguiado; no desceu, nunca. (II 420). Este teria de descer para separar prlogo e pea, marcando, assim, a passagem para a primeira cena: da o pano tornava a subir, para abrir a primeira cena do drama (II 420). O que a interferncia entre ponto e pea vem trazer a impossibilidade de distino entre o interior e exterior, que faz com que a pea no possa comear, por comear fora de si, nem possa recomear sem uma distino clara daquilo que a separa do mundo. Assim os que tinham de sair de cena, no saam (II 420) a pea, exposta como texto insuficiente (insuficiente porque ultrapassado pelo que se situa fora dela), no comea. Dentro deste curto-circuito que o palco ocupado, de pano levantado, parece agora representar, s uma personagem parece apta para se movimentar no limiar e assim dar incio representao. Figura privilegiada por todas as leituras deste conto,

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precisamente pelo modo como funde a caracterizao da infncia e da loucura que atravessam Primeiras Estrias33, Z Bon , no texto, a figura marginal, por oposio ao narrador, a quem falta a distino entre fico e realidade. Contraponto do ponto34 porque incapaz de decorar o texto, papalvo que varava os recreios reproduzindo fitas de cinema (II 415), mais uma figura de intrprete que se deixa entusiasmar por aquilo que imita, representando e virando outro como os contadores que j aqui encontrmos. Ao ver censurado o seu texto, recebendo ordens para representar mudo, proibido de abrir a boca em palco, confirma o seu no botar sentido (II 416), que faz com que apenas tons e gestos lhe interessem, negando o texto com a sua presena em cena. Z Bon , aqui, actor destitudo de papel (J o dr. Perdigo, desistido de introduzir no Z Bon sua parte, II 418), mas sobretudo actor impermevel ao texto. Assim, parte da pea sem que a pea aja sobre ele, Z Bon o elemento de fronteira que pode comear o que o texto no sabe desbloquear, que pode comear a pea, digamos, sem que se opere o necessrio protocolo de abertura que delimitaria a pea comeando uma pea que, j comeada, no parece ter exterior. natural ento que, de todas as verses da pea que o texto nos apresentou, Z Bon escolha precisamente a mais distanciada para comear. O seu comeo uma negao do texto, uma negao do ponto, uma negao da pea: um comeo inventado, arbitrrio e absolutamente centrado no jogo da representao. A resposta imediata, por parte dos outros, ser a de retomarem a outra inveno a nossa inventada estria (I 420). Inveno contra inveno, portanto, a pea vai fazer-se, sobretudo, contra o texto que falhou confrontado contra os seus limites, mas que no entanto foi transitando, por pequenos furtos, atravs das diferentes verses. No plano da

Veja-se por exemplo o ensaio de Llia Parreira Duarte sobre o conto, A ironia na obra de Guimares Rosa, ou a capacidade encantatria de um divino embusteiro (Duarte 2006a). 34 Mesmo assim, acharam que para o teatro ele me passava. (II 416).

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inveno, Z Bon pode circular entre os dois enredos no jogo da improvisao que o seu gesto de libertao abriu, de tudo pode participar porque a nada a pea se deixa vincular. O que interessa que, confrontadas com o puro representar, as crianas afirmam a verdade de uma inveno contra outra; e nessa afirmao recuperam o trao essencial da sua composio inicial: a sua no previsibilidade, a sua forma livre e, sobretudo, a sua abertura. Se a efabulao que os fascinava era permanentemente completvel, e por todos, parece ser este o trao da improvisao que surge no palco, com a pea j comeada. A parte imaterial deste drama faz desmaiar o novo ponto, novo representante da memria do texto fixo da pea, e os actores esto livres para se entregarem transformao ilimitada no espao delimitado da pea. E se Z Bon, figura que resiste pea inicial, aquele que marcar a possibilidade de representao contra a pea comeada, percebe-se que s uma figura no texto est apta, desmaiado o encenador, remetido para o seu buraco invisvel o representante do texto, para colocar novamente o problema dos limites. Aquele que no pde comear por ser o texto que no v para fora de si mesmo acorda da transformao a que foi submetido colocando agora o problema do fim, ainda em torno de uma questo de forma. Como pode razoavelmente terminar aquilo que, em rigor, no comeou? Como se pode impor um limite a uma forma que comeou tendo j comeado, depois de outra e contra outra, negada a sua abertura, e que tem por definio o seu no ter comeo nem fim, que no fundo permitiu que de algum modo comeasse? Reencontramos aqui uma ideia j lanada na seco anterior: a da resistncia do fluxo imposio de uma forma. O mais interessante neste breve conto de Rosa, parece-me, precisamente o modo como se representa uma forma potencialmente infinita a partir da problematizao dos seus limites: o teatro, nesse sentido, uma escolha exemplar, na medida em que obriga a uma delimitao espacial,
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fechada, de um espao, no interior do qual se pratica uma dilatao ilimitada. Uma pea que comea sem verdadeiramente comear no pode verdadeiramente acabar, poderamos dizer; nas palavras do texto: No havia tempo decorrido (II 421). uma passagem determinante para a caracterizao da tenso entre tempo e suspenso em Primeiras Estrias, precisamente pelo modo como conjuga o problema da forma com o problema do tempo. Esta pea sem comeo nem fim, sem formato, situa-se necessariamente fora do tempo no tempo suspenso do intervalo. Nesta suspenso da temporalidade, nesta forma sem marcao, as imagens do fluxo vo-se impondo conscincia desperta do guardio do texto: para fora do corrido, contnuo, do incessar e, mais abaixo, do fio, do rio, da roda, do representar sem fim (II 421). O que o ponto percebe, devolvido uma vez desperto ao seu vnculo ao texto, que o informe no pode ser, por definio, delimitado, ou, como o Serto de Riobaldo, no tem janelas nem portas (II 315). Mais uma vez, temos uma histria que no acaba; e mais uma vez, temos uma necessidade imposta de que a histria acabe, desta vez pelo prprio narrador (se no acabasse no haveria narrao) que percebe, agora abertamente, que s h, neste fluxo, uma maneira de sair: a brusca interrupo, o corte, ou, se quisermos acompanhar de perto o texto, a morte. Mas de repente eu temi? A meio, a medo, acordava, e daquele estro estrambtico. O que: aquilo nunca parava, no tinha comeo nem fim? No havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, ento? Precisava. E fiz uma fora, comigo, para me soltar o encantamento. No podia, no me conseguia para fora do corrido, contnuo, do incessar. Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi: cada um de ns se esquecera de seu mesmo, e estvamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito o milmaravilhoso a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso prprio falar. E como terminar? Ento, querendo e no querendo, e no podendo, senti: que s de um jeito. S uma maneira de interromper, s a maneira de sair do fio, do rio, da roda, do representar sem fim. Cheguei para a frente, falando sempre, para a beira da

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beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propsito, me despenquei. E ca. E, me parece, o mundo se acabou. Ao menos, o daquela noite. Depois, no outro dia, eu so, e glorioso, no recreio, ento o Gamboa veio, falou assim: - Eh, eh, hem? Viu como era que a minha estria tambm era a de verdade? Pulou-se, ferramos fera briga. (II 421) A perturbao da estrutura excessivamente planeada da pea ocorre, como vimos, por aco da morte: necessrio substituir um elemento da pea, com o pai morte, e opta-se por faz-lo com o guardio da fronteira, o guardio do texto, deste modo incorporando um elemento que, no pertencendo inteiramente ao palco (escondido no limite entre cena e proscnio), a representao do texto em cena35. O resultado, como se viu, que o prlogo faz implodir a relao entre texto e pea, revelando um comeo que s poderia ocorrer com a pea j comeada (o pano que desceria para voltar a subir), um espao liminar que o texto (o ponto), sem texto, no pode dominar. O pano no desce (nunca mais) e a pea no pode comear: apenas a figura que indiferentemente transita do interior para o exterior da pea, e entre as trs verses da pea, lhe pode dar um comeo comeo esse que far da pea uma pea sem comeo, comeando j comeada; e logo sem fim. Neste ponto, j no pode ser Z Bon a resolver a questo dos limites da pea Z Bon que inicia um movimento perptuo com base na sua no necessidade de texto, com base na sua no necessidade de comeo. A faz-lo ter de ser a figura que, bloqueando a pea na aporia do seu limite, est agora em condies de sentir esta outra aporia. Sem limite, no h como sair da pea. A nica forma de acabar uma pea que no pode razoavelmente terminar interromp-la, destru-la enquanto forma fluente, enquanto fluxo, o que implica paradoxalmente a transgresso do espao de cena. Se a morte esteve na origem da possibilidade de uma
O ponto tem conscincia disso. Nos ensaios, quando os actores demonstram saber o texto todos na ponta da lngua, o narrador pergunta: No iam precisar de ponto? (II 418).
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pea sem texto, a morte voltar a estabelecer a ordem de um regresso forma do texto. essa a funo do ponto acabar. Acabar, ento, equivale a morrer, como o exemplo anterior j nos tinha mostrado. Sem poder parar de falar levando o fluxo do ar das palavras at ao seu limite, at quela frente que antes tinha sido o espao da sua mudez o ponto salta, trapaceando a linguagem, pois parece saber que s prolongando o seu movimento infinito o poder interromper. Calar-se denunciaria a falha mas no aniquilaria o drama. S o salto, e o salto a partir do contnuo, agora possvel. O ponto salta do palco, fronteira do drama, sublinhando o paradoxo de um contnuo delimitado e dependente da materialidade de uma arquitectura de cena: E, me parece, o mundo se acabou. (II 421). Como na frase que fecha Primeiras Estrias: E vinha a vida. (II 515). Que, depois, o mundo continue, s nos deve fazer perguntar, efectivamente, que mundo que continuou para alm daquela noite36. Como no poema famoso de Drummond, um mundo pesado contra o mundo, a valente vida estrepuxada (II 421) da pea contra a vida. O mundo do outro dia, a sua mera possibilidade, a marca da interrupo desse outro mundo que s pela destruio de uma morte simblica pde voltar. Assim, o mundo de antes e de depois da pea parece propor-se como o quadro, o enquadramento, de um outro mundo que se definia pela ausncia de limites, pela sua incontrolvel continuidade ininterrupta. Estranha configurao de uma moldura para o que no pode ser contido, acentua no entanto que o trnsito da moldura para o mundo

Ana Paula Pacheco, que sublinha com preciso a ameaa que o verdadeiro viver da pea representa para o seu exterior, l a concluso como regresso ao mundo a partir do idealismo rosiano, abrindo em Primeiras Estrias o espao para uma potica no idealizante que encontre a experincia histrica: A cambalhota final do teatrinho j indica entretanto que preciso desviar-se desse avesso e voltar ao mundo o idealismo rosiano, num primeiro clculo fustico, parece prever seus prprios limites. (Pacheco 2004: 48). Veremos adiante como no tratamento da parbase o regresso ao mundo que a sada de cena sugeriria perturbado pela suspenso irnica.

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da pea; da pea para o mundo um trnsito no mediado. Brusco violento, no limite, exigindo a morte para poder concluir. Parece ser esse o indesfecho de que se fala na abertura da estria a identificao de um limite insustentvel e parece ser essa, tambm, a caracterizao do ponto, da figura do texto, da guarda dos limites, enquanto narrador. O homem do texto quem pode contar, de volta ao mundo, o que no entende nem pode testemunhar: Sei, de, mais tarde, me dizerem (II 420). E j fora do drama, so e glorioso, aparentemente inalterado pela experincia, s pode regressar ao seu papel de defensor da fronteira brigando, ainda, por uma competio pela verdade que s pode aparecer como epilogal depois da pea inventada no cruzamento das suas trs verses. A narrao vem tarde: depois do fim do mundo, enquadrando no passado esse drama do agora (II 420) que j no pode representar.

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Terrvel simetria

What immortal hand or eye Could frame thy fearful symmetry? William Blake, The Tiger

Em Pirlimpsiquice encontrmos a descrio de uma forma sem formato, de uma fico em que no havia tempo decorrido. Possvel porque comea depois de ter comeado, o drama do agora que toma conta do palco e das crianas recuperava, tambm, a associao entre performance e metamorfose do primeiro exemplo: as crianas que representam so outras, transformadas, personagens personificantes (II 421), durante a representao. Dessa transformao decorre a disponibilidade para as palavras de outro ar, em que at o ponto no sabia o que ia dizer, dizendo e dito tudo to bem sem sair do tom (II 420). A entrega das crianas ao jogo da improvisao s poder ter fim, instituindo o regresso a uma ordem, num salto mortal

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que pe ponto no que no pode ajuizado terminar nas palavras do narrador: E como terminar? Ento, querendo e no querendo, e no podendo, senti: que s de um jeito. S uma maneira de interromper, s a maneira de sair (II 421) proporcionando assim o regresso ao quadro narrativo que delimita a pea sem a representar, reinserindo o drama irrepetvel e no escrito na ordem do tempo. Interromper, sair, saltar, opem-se assim a terminar: o ponto a marca dessa suspenso que no remata, de que a morte a figura. Nos primeiros exemplos que analismos, por caminhos diferentes, a histria parece assim resistir a uma concluso que, imposta, apenas mergulhar o texto na sua incompletude constitutiva. Como afirma Hillis Miller: Death is the most enigmatic, the most open-ended ending of all. It is the best drammatization of the way an ending, in the sense of a clarifying telos, law or ground of the whole story, always recedes, escapes, vanishes. (Miller 1978: 6). O objectivo deste captulo ser interrogar a constituio de uma ausncia de formato a partir do exemplo mais radical, em Guimares Rosa, da morte como interrupo: o conto Meu Tio o Iauaret, publicado postumamente em Estas Estrias (1969). Veremos que o comeo determinar a negao do fim, e que essa destruio da forma encenada, de modo claustrofbico e exemplar, atravs figura da metamorfose. A reflexividade absoluta de que se falar aqui ter, como primeiro efeito, a dissoluo do quadro narrativo que caracterizava, nos exemplos anteriores, a introduo da fico no interior de uma fico maior que a encenava (a histria de Joana Xaviel dentro de Uma Estria de Amor, o caso de Davido e Faustino em Grande Serto: Veredas, o teatro dentro da narrativa em Pirlimpsiquice). Se, como vimos, era precisamente a construo desse quadro, com a recepo encenada que permitia, que tornava possvel interrogar as fronteiras desta fico encaixada, o que encontramos neste texto singular de Rosa a absoluta destruio da noo de moldura. Assim, despindo de exterior o texto, Rosa encontra a frmula que estar na base das suas obras mais representativas, a
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de uma fala ininterrupta e aparentemente informe que denuncia e delimita, a partir do interior, as margens do seu texto. Ser o caso de contos como O Espelho, Antiperiplia, mas tambm de Grande Serto: Veredas textos marcados por uma encenao explcita dos protocolos de abertura e concluso e por uma problematizao interna da sua forma. O lugar onde essa exposio dos limites se confunde com a negao da sua possibilidade , como veremos, Meu Tio o Iauaret.

O jogo do lobo Num conto infantil de Marcel Aym, intitulado Le Loup (Aym 1939), um lobo ou, mais propriamente, o lobo, tomado por uma sbita bondade, torna-se o fiel companheiro de jogos de duas crianas que o convidam para a sua casa. Depois de ultrapassarem o medo inicial do ser que desmentia, pela sua regenerao, tudo o que dele tinham ouvido, e de terem posto prova a sua converso, de que nem lobo nem narrador parecem conseguir duvidar, as crianas entregam-se a reunies ldicas a trs, at que decidem incluir no leque de jogos que praticam o jogo do lobo. O lobo no conhece o jogo. Aceita, porm, e assina assim a sentena das suas jovens amigas: entrega-se a uma aprendizagem do seu papel que se transforma num entusiasmo reflexivo, contido alis em pleno na frmula do convite: Loup, si on jouait au loup? (idem: 185). Inebriado pela brincadeira, o lobo deixa de rir e, descontrolado, devora as crianas que jogam ao jogo do lobo que devora crianas. O jogo no era um jogo, diznos o narrador, mas o conto aparentemente sim: os pais conseguiro abrir a barriga do lobo, mortificado pelo que aconteceu, e as filhas exigiro que o lobo recosido seja

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devolvido floresta e perdoado. A moral vem da boca do lobo: Et dabord, quand je verrai des enfants je commencerai pour me sauver (idem: 187). Jean-Marie Schaeffer, em Pourquoi la Fiction? (1999), escolhe o conto como ponto de partida para uma anlise da tradio platnica de uma crtica da imitao, considerando que a pequena fbula de Aym illustre de manire loquente lattitude ambivalente mlange de fascination et de mfiance qui est la notre face aux activits mimtiques (Schaeffer 1999: 22). Assim, o lobo que se deixa levar pela sua imitao seria uma representao clara dos perigos geralmente associados s actividades imitativas, e sobretudo do efeito que, segundo a crtica da Repblica (395d), estas teriam sobre os intrpretes neste caso, os guardies justificando a condenao de uma m escolha do objecto da imitao (idem: 35): - Ou no te apercebeste de que as imitaes, se se perseverar nelas desde a infncia, se transformam em hbito e natureza para o corpo, a voz e a inteligncia? Transformam, e muito. (Plato 2001: 120 395d). Trata-se, mais uma vez, de um exemplo em que a interpretao transforma o intrprete, em que a disponibilidade do lobo para o jogo pressupe uma disponibilidade para a metamorfose. O problema, porm, aqui mais complexo, porque a metamorfose que este jogo provoca uma metamorfose do lobo no lobo. O texto joga com essa dimenso de forma explcita, desde logo na disjuno do lobo reabilitado em relao ao lobo mau dos avisos dos pais e das brincadeiras das crianas; mas no o faz de forma banal. Inexplicvel, a bondade do lobo antes e depois da metamorfose no posta em causa, ou no posta em causa de modo suficientemente explcito para que possa ser o dado que permite resolver a fico encenada. O lobo transforma-se em lobo por efeito do jogo e contra a sua vontade. Num ensaio anterior, que ter servido de lanamento a algumas das questes colocadas no livro de 1999, Schaeffer abordava este texto do ponto de vista de uma
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distino entre feintise e imitation, largamente inspirada em The Transfiguration of the Commonplace de Arthur C. Danto. A, Schaeffer questionava precisamente o estranho estatuto dessa imitao de bondade que o lobo apresenta antes e depois de se transformar em lobo. Se, num primeiro plano, a transfigurao parece resolver-se num acting out em que o lobo, ao ser desafiado para interpretar o que realmente , ou seja para uma auto-simulao ldica, volta a ser que o era ou que nunca deixou de ser (Schaeffer 1989: 112), uma interrogao dos mecanismos da fico no conto revela essa fronteira como mais complexa. Diz Schaeffer: Le fait que le loup soit incapable de feindre dtre un loup est un indice de ce quauparavant il na pas feint dtre un homme (...) et quil sest born imiter des comportements humains. En effet, sil avait feint dtre un homme il aurait pu aussi feindre dtre un loup, en ce sens quil aurait pu feindre dtre un homme feignant dtre un loup, voire dtre ce loup-l. (idem: 115).1 A resoluo por uma situao inicial de feintise introduziria assim o jogo no quadro de uma fico mediada, em que o lobo no finge ser aquilo que , e sim um lobo humanizado que por sua vez finge ser um lobo. Porque o problema do exemplo esse: pour que le loup pt faire le loup encore ut-il fallu quil ne fut pas loup; La feinte de loup choue parce-que la mmet ne saurait tre son simulacre. (idem: 112113). Mas a verdade que o conto, como Schaeffer reconhece, no descreve uma fico consciente por parte do lobo, que, muito simplesmente, se surpreende bom. Independentemente de quanto se queira levar a srio aqui o inconsciente do lobo2, o problema que o exemplo nos prope, e que a mais recente leitura de Schaeffer acentua de forma explcita, um problema de escolha de objecto no por se tratar de um

Nesta hiptese, o lobo seria como a intrprete de Le Chevalier de la Rose, que ao interpretar Octaviano no finge ser uma mulher e sim um homem que finge ser uma mulher (Schaeffer 1989: 115); cf. Danto 1981: 66; But in such scenes the contralto is not herself imitating a woman; she is rather imitating-a-man-imitating-a-woman. And hence the description of her performance is twice-over more complex than the description of Octavians. 2 On le voit, notre loup est un animal compliqu, dot dun inconscient: de ce fait les relations entre simulacre et vrit son complexes. (Schaeffer 1989: 113)

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objecto moralmente reprovvel, mas por ser um objecto que coincide, de um modo mais forte do que qualquer distino, com o sujeito da imitao3. Nessa coincidncia reside a dificuldade de estabelecimento de fronteiras, a dificuldade de saber onde comea e acaba o lobo transformado. por isso interessante manter activas as duas leituras do conto que Schaeffer apresenta de forma disjuntiva nos dois ensaios referidos: Le Loup uma histria sobre os perigos da imitao e sobre uma imitao particularmente problemtica devido a uma escolha que o coloca numa aporia sem soluo isso mesmo nos parece dizer o prprio lobo no seu comentrio final, que faz dele vtima de um jogo insensato em que desejo, contaminao e imerso se fundiram irremediavelmente. Percebe-se ento que, nesse ponto, para o lobo arrependido, a nica soluo seja a fuga do mundo do jogo. A fronteira entre fico e realidade no poder ser restabelecida depois de ter falhado desta forma, com a transformao da fico em aco pelo curto-circuito institudo entre os dois planos. Trata-se assim de uma imitao perigosa, que tem a morte como consequncia inevitvel. E esta s pode ser invertida pela temporalidade do conto infantil que Aym est a recriar, permitindo s crianas a sada da barriga do lobo e ao lobo um regresso avisado sua existncia de lobo moderno. No entanto, mesmo esse final feliz abre para um tipo de problema que aqui nos interessa: o perdo final ao lobo, a quem a barriga cosida (sem pedras), fecha a histria alm do seu modelo e delimita claramente o espao da transformao como espao invalidado pelo prprio conto. No espao do jogo o lobo fez, realmente, de lobo, e as crianas foram realmente devoradas o regresso dos pais apenas instaura uma outra ordem em que esse espao declarado jogo. Assim, se por um lado o jogo se torna srio, tal como o lobo no comeo da sua

Or, le court-circuit catastrophique qui met fin au jeu rvle quil a essay effectivement de feindre dtre un loup, feinte impossibile puisquil est un loup. Il a cru quil tait un homme et que donc il pouvait feindre dtre un loup, alors quun ralit il est un loup et naurait donc pu que feindre dtre un homme feignant dtre un loup. (Schaeffer 1989:116).

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transformao, o regresso ordem garantido apenas pela sada do quadro do jogo, ou pelo regresso moldura inicial que os pais proporcionam, invalidando tambm como jogo esse jogo que se fez srio. Percebe-se ento que a impossibilidade, para o lobo, de deixar o espao do jogo depois de ter devorado as crianas (Heureusement, le loup ne savait pas ouvrir les portes, il demeura prisionier dans la cuisine, Aym 1939: 186187) seja essencial para a reverso do conto. Assim delimitado e contido pelo quadro que os pais, regressando, representam, o espao do jogo ainda, apesar de tudo, um ambiente seguro, o espao em que o lobo lobo, com um exterior que lhe garante a invalidao no fundo, s o que est fora do jogo pode operar uma disjuno entre os termos sobrepostos da transformao. O lobo que se faz lobo ao brincar ao lobo uma das figuraes mais elementares de um curto-circuito na identificao que provoca efeitos, para dizer o mnimo, no reparveis; o enquadramento da brincadeira perigosa numa fbula moderna, por outro lado, atravs da figura dos pais, uma reafirmao da fico como fico. O que resta, como o narrador acentua, a perturbao que a contaminao dos planos encaixados faz pairar sobre o plano maior: Mais, au fond, ce ntait pas de jeu. (idem: 187). a partir destes dois movimentos a perigosa coincidncia entre lobo e lobo, e a necessidade de uma delimitao do espao do jogo para a reverso das suas consequncias que me interessa comear a leitura de Meu Tio o Iauaret. Trata-se de um dos contos mais complexos de Guimares Rosa, em que as tenses que delinemos anteriormente so encenadas levando ao extremo a relao entre narrativa e morte. Est em causa, como veremos, uma metamorfose que se aproxima perigosamente da suspenso de fronteiras que o jogo do lobo mostrava, precisamente por implicar um grau de reflexividade determinante para a prpria forma do conto, mas que tem a linguagem como campo de aco. Na descrio rosiana do onceiro que vira ona,

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encontramos um dos questionamentos mais explcitos da metamorfose e da impossibilidade de manuteno da fronteira entre palavra e aco perturbando definitivamente algumas das distines ainda possveis no quadro dos exemplos anteriores. No conto, a palavra pertence a um "tigreiro", ou caador de onas, um homem, meio-ndio, desterrado para uma cabana no meio do mato, nos gerais de Minas, com a funo exclusiva e infinita (tarefa de Ssifo) de matar onas, de "desonar este mundo todo" (II 827). A paisagem vai ser descrita como jaguaretama terra de onas, o pas das onas. Fala a algum um homem rico que lhe pede abrigo por uma noite, perdido na floresta. Fala-lhe da vida das onas e das razes que o levaram a tornar-se primeiro caador de onas e, mais tarde, seu cmplice: assassino, que alimenta as onas (com carne humana) e por elas alimentado, ele mesmo tornado ona, amante de ona, caado, no final, como uma ona. Ao longo dessa confisso, o discurso vai-se desintegrando, evidenciando a animalizao da fala (e do humano): perante a ameaa da metamorfose, o interlocutor dispara contra o monstro (ou assim se supe), instituindo a interrupo da fala que faz precipitar o texto, atravs das reticncias finais, no vazio da pgina. A reflexividade referida depende, em primeiro lugar, da situao narrativa: o caador que se transforma na sua presa a marca, aqui, de uma srie de perigosas transgresses, que tero como eixo a linguagem. Como afirma Roberto Mulinacci: No fundo, a estria do caador de onas que vira ona parece uma extraordinria construo metalingustica, como a linguagem que fala de si (e sobre si) dobrando-se nos meandros de uma palavra intransitiva, espelhando-se na autoreflexividade da comunicao, fechando-se no interno da sua semntica particular. No existe uma verdade fora das palavras que a dizem. Elas no pressupem uma histria, mas sim pem a histria que contam,

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materializando-a na inveno de uma lngua-objeto, a qual se faz metfora do espao literrio. (Mulinacci 2003: 678)

Esta talvez a questo inicial de que importa partir: a construo de Meu Tio o Iauaret encena uma reflexividade que, manifestando-se ao nvel do enredo, e nas suas inverses temticas entre humano e animal, ter evidentes repercusses a nvel da linguagem, da construo do espao e do conto como forma. Veremos na prxima seco o modo como no texto se constri a metamorfose. Por agora, interessa-me reforar a ideia de um jogo de inverses que se dar a vrios nveis, instituindo o padro de uma sobreposio entre opostos. Se no exemplo de Aym era de uma situao de curto-circuito que se falava, fazendo do jogo o espao em que a fronteira entre lobo e lobo abolida, aqui, atravs de uma srie transgresses sugeridas, a cena levada a um fechamento extremo que faz com que o texto, dobrando-se sobre si, no permita nenhuma delimitao externa: a histria do onceiro que vira ona dificilmente poder enquadrar-se numa moldura exterior que a devolva s distines abolidas pelo jogo, simplesmente porque parece atrair a si, para o devorar, qualquer quadro ou qualquer exterior. a partir desse movimento que o texto ir perturbar fronteiras ou delimitaes espaciais no mapa que constri, e tambm a partir dessa clausura extrema que, paradoxalmente, o texto impedir a sua concluso. A mesma indefinio parece aplicar-se possibilidade de distino entre a narrao e a aco que decorre: a inevitabilidade da metamorfose deriva directamente da narrao dos casos. por contar que matou que ser morto, caador caado em nome da fuso com o seu objecto de caa. E se, aparentemente, o narrador apresenta um passado, ao qual se reportam os casos, ao longo da narrao cada vez mais se atenua a possibilidade de poder manter-se uma clara separao entre narrar e acontecer. A suspeita, gerada pelo delineamento da serialidade dos assassnios do narrador e pela
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progressiva aproximao ao rancho, ao centro do crculo, confirma-se com a interferncia final, no disparo que impossibilitar a continuao da fala ao introduzir no texto, directamente, algo que lhe exterior, mas que tambm o prolongamento da aco que descrita - espcie de frequncia de corte narrativa, ponto mnimo da existncia deste sujeito, transgresso de uma fronteira alm da qual apenas o silncio subsiste. A condio delineada, com relutncia, na passagem de caador de onas a caador de homens a de um assassino que, um a um, vai eliminando todos os humanos daquela terra de onas (aqui, roda a roda, s tem eu e ona. O resto comida para ns. II 831). A prpria natureza aberta desse despovoamento, que no pressupe um fim e responde tarefa de desonar o mundo, coloca o interlocutor no lugar provvel da vtima e faz da voz o espao violento de uma luta que ultrapassa a prpria fala e a vai impossibilitar: o conflito entre o humano e o no-humano, conflito insolvel, pela posse do texto. Mas o perigo dessa fala estava j inscrito, no fundo, nessa atribuio, nica na obra de Rosa, da voz ao lado de l4, parte de alm, para usar uma expresso de A Terceira Margem do Rio (II 412): a um territrio em que a forma (como o tempo) se suspende. Assim, o problema que me parece central para este texto o da violenta representao da morte como interrupo indissocivel da constituio desta fala claustrofbica, como um espao em que a prpria noo de limite questionada. O papel de quem ouve, a figurao do interlocutor, ser determinante, resultando na construo de uma forma que, comeando fora de si, tambm impossvel de concluir. Num certo sentido, transpondo para este contexto um problema da fico de Beckett, o

Pense-se em personagens como Drijimiro, Dito, Diadorim ou Cara-de-Bronze, alm do Pai de A Terceira Margem do Rio: enigmticas, indefinidas, focos de interrogao, no detm nunca a primeira pessoa, sendo contornadas pela narrativa atravs da focalizao sobre uma personagem que as tenta apreender, de fora para dentro.

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problema de no poder terminar aqui, o problema de ter comeado5 movimento em que alis reconhecemos a aporia por trs da pea de Pirlimpsiquice. E a prpria figurao de um contnuo que a identificmos regressar, neste conto, na forma do dilogo oculto rosiano como fala sem delimitaes aparentes. Antes, porm, de avanar, pode ser interessante pensar a histria editorial do conto, pois Meu Tio o Iauaret, na obra de Rosa, ocupa um lugar problemtico e instvel. Publicado pela primeira vez em 1961 na revista Senhor, continuou a ser revisto e alterado pelo autor at sua morte sbita em 1967, sendo mais tarde editado por Paulo Rnai para a publicao pstuma de Estas Estrias (1969), com marcas de reescrita e de indeciso, sobretudo a nvel lexical. Da sua incluso no plano original do ltimo livro de Rosa do conta os projectos de ndices e as sugestes para o ilustrador. No entanto, uma nota autoral remete-o para uma fase anterior publicao dos dois livros de 1956, Corpo de Baile e Grande Serto: Veredas. Durante mais de doze anos6, portanto, Rosa regressou a este texto, sem chegar a dar-lhe uma publicao definitiva. Alm do mais, em nenhum outro lugar o autor se aproximou tanto da frmula utilizada em Grande Serto: Veredas, a do dilogo a que se suprime uma das vozes, aqui condensada e intensificada nas 33 pginas que compem o conto na sua primeira edio. Para Walnice Nogueira Galvo, a publicao ter sido evitada para contornar uma repetio de recursos, para afastar este texto do grande romance rosiano com que mantm algumas semelhanas a nvel formal e temtico (Galvo 1978: 34). No entanto, dos vrios textos em que Rosa recorre ao dilogo oculto (Bakhtin 1968: 256), em Meu Tio o Iauaret que a experincia levada mais longe: no s a nvel lingustico, como apontou Haroldo de Campos (Campos 1992a), mas tambm porque as implicaes da
The dilemma of ending is therefore not a problem of ending itself, but of beginning, a problem (more precisely yet) of having begun. (Biala 2006: 21). 6 Paulo Rnai, em Rosa no parou (Rnai 1990:32), refere uma informao de D. Aracy e de Franklin de Oliveira, segundo a qual o conto j estaria escrito havia uns dez anos quando [foi] entregue revista Senhor.
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interlocuo so, aqui, extremas. Colocando, de forma extrema e violenta, o problema da morte, este assim, de dois modos, um texto pstumo. Pstumo porque s na morte v definida a posio, ambgua, que ocupa na obra do autor, e s na morte v interromper-se o trabalho de contnua reformulao a que esteve sujeito; e pstumo porque, enquanto conto, prope uma construo que tem na morte o seu limite absurdo. O problema de uma ausncia de termo, que temos vindo a acompanhar, ganha assim outra forma: a de um texto que no pde ser fechado, a que se continuou a regressar at interrupo definitiva que o deixou incompleto. O mesmo se aplica ao lugar do conto no livro a que pertence: vrios projectos de ndices e esboos de ilustraes indicam a importncia de Meu Tio o Iauaret para a organizao de Estas Estrias, mas tambm a oscilao no resolvida do seu lugar no livro. A organizao que Paulo Rnai deu publicao pstuma, mantendo uma separao entre textos inditos e textos previamente publicados, apenas refora esse deslocamento do conto em relao sua forma definitiva, no quadro da tenso entre texto e livro que mais tarde analisaremos. Do ponto de vista da sua enunciao, e pelo modo como se situa, ao mesmo tempo, dentro e fora da obra de Rosa, este conto parece constituir-se encenao de uma ideia de literatura testada na sua relao com o oral e com a escrita, a partir da forma do dilogo e das suas implicaes. Implicaes que se revelaro extremas e estabelecero um conflito destruidor, a ponto de colocar o leitor perante a impossibilidade de decidir, a ponto de a morte, que conclui Meu Tio o Iauaret, nada poder concluir, marcando de forma definitiva a aporia constitutiva deste texto, caso-limite na obra de Rosa, na tenso da sua leitura.

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acto interrompido Oh Bottom, thou art changed! Thou art translated! A Midsummer Nights Dream

O principal argumento do ensaio de Haroldo de Campos sobre Meu Tio o Iauaret encontra-se na afirmao da coincidncia entre metamorfose e transformao da linguagem. Sublinhando a radicalidade do conto no contexto da obra de Rosa, Haroldo associa a experincia que o texto representa estgio mais avanado do experimento rosiano ao mbito ovidiano onde se cumpre a metamorfose em ato (Campos 1992a: 59). Podemos dizer que a sua leitura assenta exclusivamente sobre este binmio, vrias vezes retomado nas leituras posteriores do conto, procurando o modo como o trabalho sobre a linguagem traduz uma experincia radical de alterizao e animalizao da forma. E a partir desse binmio, tambm, que Haroldo lana o difcil problema da relao, neste texto, entre palavra e aco. Se o procedimento da tupinizao, a intervalos, da linguagem tem funo no apenas estilstica, mas fabulativa, percebe-se que o momento da metamorfose seja aquilo que d prpria fbula sua fabulao, histria o seu ser mesmo (idem: 60). O hibridismo lingustico, que impregna todo o conto e determina a sua forma, prefiguraria assim o hibridismo do corpo que a metamorfose consagraria, criando as formas mudadas em corpos novos da epgrafe ovidiana. A sugesto explcita: a desagregao da linguagem que corri, na parte final, o texto, aproximando-o definitivamente do tupi que marcava o tema da ona, faz com que este encontre tambm sua resoluo natural, ao nvel da fabulao, na metamorfose (vista por dentro, de um ponto de vista lingustico, intrnseco) do onceiro em ona. (idem: 62). uma sugesto poderosa, que permite em si uma leitura mais abrangente da relao entre narrao e linguagem no projecto rosiano, e que se

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torna particularmente rica, aqui, pelo modo como evoca a transformao do estilo em fabula exposta pela contaminao dos dois planos. Podemos comear por pensar esta relao nos termos de um tratamento moderno do tema da metamorfose e das suas implicaes para o problema da escrita, de acordo com Bruce Clarke: This interfusion of the meaningless and the meaningful is also the condition of language, especially when it is set forth in the graphic body of writing. The transfiguration of spoken language or visual images into writing prefigures all the other transformations carried out by and in writing. (...) The metamorphic changes represented within texts are allegories of the metamorphic changes of texts. (Clarke 1995: 2). O texto seria, ento, o espao da metamorfose, no duplo sentido apontado por Campos; e a linguagem, na sua essencial transfigurao, a representao grfica e visual desse movimento. Repare-se que a fala que constitui o texto recupera quase todos os sentidos possveis da traduo como figura da experimentao lingustica em Rosa: a paradoxal transcrio de uma oralidade que, ao longo do texto, implicar tambm o predomnio da onomatopeia, traduo isomrfica por excelncia; a incorporao silenciada da voz do outro no dilogo oculto, presena traduzida em ausncia; o hibridismo lingustico e a absoro de um cdigo tambm outro, tupi (absoro marcada pela mesma traduo intertextual e interlingual que Haroldo de Campos destacou a propsito da ideia da prosa de Alencar7); e a prpria encenao da leitura como traduo desse discurso obscuro. O problema da metamorfose parece ento ser indissocivel da sua dimenso de escritura, para manter os termos do ensaio, aspecto a que A Linguagem do Iauaret d destaque sobretudo no plano lingustico: com base nessa ligao que a representao da linguagem no conto permite, para Haroldo, um contacto com a metamorfose vista por dentro (Campos 1992a: 63), mas

Ver, no mesmo volume, Iracema: Uma Arqueografia da Vanguarda (Campos 1992b). A referncia a Alencar como tradutor intertextual (interlingual) est na p. 137; a relao entre Iracema e Meu Tio o Iauaret com base no mesmo projeto heteroglssico na p. 138.

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tambm presentificada diante dos olhos de seu interlocutor (e dos leitores) (idem: 61). Diz Haroldo de Campos: O onceiro (...) acaba, arrastado por sua prpria narrativa protica, transformando-se em ona diante dos olhos do seu interlocutor (e dos leitores), como num filme de Val Lewton a protagonista se converte em pantera diante dos espectadores mediante um expediente de superposio de imagens. (idem: ibidem). O filme claramente Cat People, de Jacques Tourneur (1942), produzido por Val Lewton, e a cena a que Haroldo se refere o seu clmax metamrfico, em que a protagonista, ao ser beijada, se transforma em pantera8. Curiosamente, no h, nessa cena, nenhuma sobreposio de planos, e muito menos uma imagem do animal: h um s plano do rosto da personagem Irena, escurecido, a sugerir a transformao que se pressupe j consumada no plano seguinte (que nos d o contracampo, na reaco aterrorizada do psiclogo). Tourneur constri todas as imagens de metamorfose com base em meros efeitos sugestivos e jogos de iluminao (pense-se na famosa cena da piscina, claustrofbica e assustadora, mas feita apenas com o punho de Tourneur a criar sombra nas paredes), e essa alis a marca que o singulariza em relao ao gnero em que Cat People se inscreveria. As poucas cenas da pantera transformada que pontuam o filme foram alis acrescentadas posteriormente, imposio de um estdio que temia o efeito excessivamente espectral de um filme feito de ausncias (cf. Telotte 1985: 21).
Irena advances, face shadowing, eyes glinting. This optical darkening is as near Cat People comes to a traditional werewolf transformation effect, and it was an afterthought. (Newman 2003: 567). tambm interessante pensar o exemplo luz do conto de Rosa (e da leitura de Haroldo) porque parte de uma inverso do final tpico do filme de transformao, fazendo do final uma reafirmao da pertena da personagem s cat people e da morte trnsito definitivo para o universo animal. Diz uma nota de Lewton: most of the cat/werewolf stories I have read and all the werewolf stories I have seen on the screen end with the beast gunshot and turning back into a human being after death. In this story, Id like to reverse the process. Id like to show a violent quarrel between the man and woman in which she is provoked into an assault on him. To protect himself, he pushes her away, she stumbles, falls awkwardly, and breaks her neck in the fall. The young man, horrified, kneels to see if he can feel her heart beat. Under his hand black hair and hide come up and he draws to look in horror at a dead, black panther. (idem: 551-552).
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Talvez esta sobrevalorizao de um efeito seja o ponto em que mais explcita a leitura que Haroldo de Campos faz da metamorfose em ato, sugerindo que ao lermos o conto vemos, atravs da linguagem, uma metamorfose completa a corporalizao plena da ona. Se, como afirma Clarke, a metamorfose representada no interior de um texto uma alegoria das transformaes prprias da escrita, aqui Haroldo est a fazer equivaler a escrita, tornada visvel na sua desagregao e transformao, construo do animal no texto. A imagem do onar materializa-se assim, fisicamente, no corpo grfico da escrita, que se desdobra entre escrito e oral, humano e animal, entre o sentido e a sua negao, a ponto de poder gerar uma ilusria superposio de planos. O grande mrito do texto de Haroldo de Campos , assim, sublinhar que alguma coisa acontece, graficamente, nesta linguagem estranha e estranhada que se faz, deste modo, tambm visvel. No entanto, precisamente na identificao desse problema, no perigoso isomorfismo entre fabula e linguagem, a leitura de Campos encontra a sua maior dificuldade dificuldade que o prprio texto coloca e nos obrigar necessariamente a regressar a problemas encontrados no captulo anterior. A estrutura descrita por Haroldo essencialmente orientada para esse ponto final da transformao (tudo vai convergindo para o clmax metamrfico Campos 1992a: 61), que daria sentido ao hibridismo constitutivo do texto, a ponto de o final, como vimos, se poder apresentar como resoluo natural: a transformao lingustica em ato seria, ento, previso e prenncio (gradual) de uma metamorfose que s se d no momento final, ponto mximo da desagregao da linguagem e, paradoxalmente, estabilizao do sentido do texto. Tal como em Cat People, a metamorfose , para Haroldo, o momento clarificador: She never lied to us , no filme, o comentrio final, proferido sobre o cadver da pantera. O mesmo pode dizer-se da leitura aqui proposta da progresso do conto: o tema da ona,
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que parecia bravata do tigreiro para assustar seu hspede (idem: ibidem), resolve-se na confirmao final que o tornaria legvel (porque agora ilegvel, num quase tupi que j lngua de jaguar, idem: 62). A resoluo , assim, um momento de clarificao da leitura. Quando se fala na convergncia para o clmax metafrico, ou na resoluo do tema da ona, o que se parece estar a sublinhar que o texto oferece, na queda final num texto definitivamente corrodo pela linguagem, a sua prpria leitura na negao da sua possibilidade de leitura. Sugesto, mais uma vez, rica porque afirma que a compreenso da linguagem de ona como tal depende do seu grau mximo ou seja do grau zero da compreenso.9 No entanto, no podemos esquecer que essa mesma resoluo natural interrompida pelo elemento a que o texto de Campos faz menos justia. Relegado para um parntesis na descrio que faz da metamorfose, o gesto do interlocutor aparece apenas a justificar que o rugido e o estertor da ona possam coincidir: A transfigurao se d isomorficamente, no momento em que a linguagem se desarticula, se quebra em resduos fnicos, que soam como um rugido e um estertor (pois nesse exato instante se percebe que o interlocutor virtual tambm toma conscincia da metamorfose e, para escapar de virar pasto de ona, est disparando contra o homem-iauaret o revlver que sua suspiccia mantivera engatilhado durante toda a conversa) (...). (idem: 50). Haroldo de Campos parece estar a sugerir que o momento da morte e o momento da metamorfose, descritos como simultneos mas essencialmente desligados, so independentes um do outro; e aquilo a que parece no dar importncia , ento, o modo como a morte irrompe sobre essa mesma metamorfose, interrompendo a suposta resoluo natural e colocando leitura justamente os problemas que foram obviados no decurso do ensaio. Pense-se no modo como esta sucinta descrio da
E, contudo, apenas na morte que, paradoxalmente, o protagonista adquire uma Voz autntica, ao sair da contraditria totalidade da sua inexistncia pelo estertor abafado onde a linguagem articulada desaparece e volta a se configurar como som animal. (Mulinacci 2003: 681).
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contemporaneidade das duas aces (disparar e transformar-se) vem reforar a fraca ateno dada construo dialgica do texto: se esta metamorfose pode ser vista de dentro, o texto de Haroldo est a ignorar que toda a construo do dilogo feita em tenso com a figura da interlocuo, que necessariamente introduz um distanciamento de ordem dramtica. Se isto importante para todos os textos em que Rosa recorre frmula do dilogo oculto e que em seguida se analisaro com mais detalhe , mais importante se torna aqui, por estarmos diante do caso em que a relao entre narrador e interlocutor problematizada como tenso violenta resultando na impossibilidade de prossecuo da situao do dilogo. A dificuldade que estamos perante um texto que efectivamente encena a coincidncia entre metamorfose e morte, no sendo certo, no entanto, que esse duplo momento seja apresentado ou, at, representado o momento em que o texto mergulha no silncio, no vazio da pgina, tambm aquele que deixa inconclusa e ainda ilegvel a metamorfose em acto10. Aqui, o dilogo oculto denuncia abertamente a problematizao do limite (e dos limites: incio e fim da mancha grfica), de forma a no poder ser de todo ignorado e a estabelecer uma das figuraes mais explcitas na obra de Rosa de uma situao de indecidibilidade: algo acontece, no final do conto, na fala e por aco da fala, e esse acontecimento incompatvel com a continuao do discurso a sua interrupo. S que essa mesma interrupo no permite inferir com certeza o que acontece, deixando a concluso previsvel (e no visvel, repare-se) alm de uma fronteira ou limite que no transposto. Assim, se a linguagem d a ver os indcios de uma transformao transformando-se ela mesma no claro at que ponto esses indcios se resolvem efectivamente na figurao extrema

Podemos pensar numa caracterizao da interrupo (por oposio a uma ideia de closure) como a que prope Philippe Hamon em Clausules, a que o final de Meu Tio o Iauaret parece responder literalmente: Interrompre un message nest pas forcment le finir; un message est interrompu quand lmetteur disparat, quand le rcepteur disparat, quand le code linguistique utilis change, quand le rfrent devient opaque, quand le contact est supprim, et cette interruption est toujours plus au moins alatoire, imprvisible. (Hamon 1975: 499).

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de uma metamorfose lingustica; o que equivale, aqui, a colocar mais uma vez o problema da distino entre concluso e interrupo, perguntando se h resoluo na construo tensa de Meu Tio o Iauaret. A questo, no fundo, ainda de limites: a metamorfose plena de que fala Haroldo tem lugar no texto? Perguntar isto, neste ponto, s pode ainda equivaler a outra pergunta, a que alis o ensaio em questo mais uma vez sensvel: para que a metamorfose possa ser definida como clmax e as manifestaes do experimentalismo lingustico que justifica o estatuto exemplar do texto na obra de Rosa definidas como indcios, onde comea e termina a metamorfose? uma questo que, de modo diferente, regressa num artigo recente de Ettore Finazzi-Agr em que se associa a representao da morte em Memrias Pstumas de Brs Cubas e Meu Tio o Iauaret, enquanto textos, para o autor, paradigmticos de uma interrogao da possibilidade de descrio da experincia da morte na primeira pessoa e, no caso deste conto, de tentativa de dar voz quilo que se esconde no Trnsito (Finazzi-Agr 2006: 28)11. O texto do crtico italiano atento s dificuldades da proposta, que chocam, precisamente e mais uma vez, com a imposio de um limite que a extino do texto determina, passando de um questionamento da relao entre morte e linguagem para o limiar secreto em que a voz se confunde com o silncio, a linguagem a morte e vice-versa (idem: 30). perante a inviabilidade do trnsito que o fim do texto determina que surge, neste ensaio, a figura da testemunho o testemunho paradoxal (dentro da voz e atravs da morte, idem: 31) que Finazzi-Agr ligar figura da testemunha integral, apresentada por Agamben, a partir de Primo Levi, em Quel che resta di Auschwitz (1998), e aqui definida como algum se coloca

Curiosamente, a literatura brasileira no s pode exibir um famoso romance escrito por um defunto autor um texto comeando pelo fim e descrevendo esse atravessamento delirante do Nada , mas nela podemos tambm encontrar uma novela contada por um personagem que, no fim do seu relato, morre. (Finazzi-Agr 2006: 27-28).

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no limite insituvel entre a vontade de dizer e a sua impossibilidade (idem: 30). Diz o ensaio: em Meu Tio o Iauaret temos a ver com a fala de um personagem, dirigida, sim, a um terceiro que escuta, a uma presumvel testemunha, mas a questo que esse testis no fim da estria mata o contador dela, tornando impossvel a sua independncia e a sua fiabilidade. Noutras palavras, a estrutura discursiva certamente a mesma que encontramos em Grande Serto: Veredas, mas poucos atentaram no fato que, no caso do depoimento de Baquiriquirepa, seu fim coincide com o assassinato, com a morte, o fim, exatamente, daquele que fala, tornando paradoxal a sobrevivncia de qualquer testemunha, de um Ismael contando a histria. Seria como se o senhor que vem de fora e ouve, com sempre maior espanto, a narrao da metamorfose em ona do seu estranho hspede, tivesse nas mos um gravador para registrar e depois transcrever, na linguagem dele, do homem-ona, o caso terrvel que lhe foi contado. Hiptese absurda que nos leva a reafirmar como, na verdade, Meu Tio o Iauaret tenta sobretudo questionar o limite, habitar a margem entre o humano e o no-humano, colocando em cena algum que experimentou as duas condies e que acabou escolhendo o seu lado animalesco, selvagem, mas sem abandonar de todo a sua capacidade de comunicar essa experincia medonha. (...) Porque, apesar de tudo, embora o protagonista morra s no fim da histria, ele j tem atravessado, de fato, uma experincia mortal, passando para o alm de uma condio pshumana e, ao mesmo tempo, pr-humana (Finazzi-Agr 2006: 29-30). Num ensaio anterior sobre o conto (Finazzi-Agr 2001: 140), o crtico recorria a um efeito metalptico para caracterizar a figura do interlocutor, identificado com o autor que destri a criatura monstruosa que engendrou ( hiptese que discutiremos adiante). Aqui, a definio do senhor mais tnue testemunha impossvel porque implicada, a sua suposta autoria choca com a afirmao da primeira pessoa como regra do texto, e com a ideia de um testemunho do trnsito; enquanto, do outro lado, a voz do onceiro se configura como voz impossvel pelo seu desaparecimento, pela sua queda no silncio. Ser essa, no entanto, a figura paradoxal do testemunho, o que sublinha de forma muito interessante o carcter inenarrvel da experincia que Meu Tio o Iauaret representa; mas nessa opo tambm o ensaio de Finazzi-Agr tem de sacrificar a tenso dialgica com a figura do interlocutor, cujo acto deixa de ser significativo, e de
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desviar o conto do seu trmino problemtico. O impasse, assim, resolve-se num movimento inverso ao que encontrmos no texto de Haroldo: se ali era no momento final que se resolviam os indcios num acto de transformao pleno e monstruoso, aqui a impossibilidade de coincidncia entre silenciamento e testemunho reafirma-se atravs de um movimento regressivo. A fronteira da morte, verdadeiro tema do conto, teria na verdade j sido transposta ao longo do texto, pela prpria existncia do hbrido como figura atpica, sem resistncia, como o Muselmann, e disponvel para a morte violenta porque j se encontra num estado de sobre-vida, como o homo sacer da referncia agambiana. Nesta dupla associao decide-se a eliminao da dimenso agonstica do conto de Rosa, porque o problema da testemunha, se inicialmente colocado em relao ao interlocutor, agora vinculado exclusivamente ao narrador aquele que no pode dizer o que ningum dir por ele, paradoxo que o texto representaria na coincidncia entre linguagem e morte mais uma vez passando para segundo plano a morte violenta do tigreiro e o papel, nela, do interlocutor. Assim, o testemunho de uma fronteira que o texto no deixa transpor possvel pelos mesmos indcios que, segundo Haroldo, o preparavam. O problema, num certo sentido, persiste e, volto a diz-lo, um dos problemas explcitos que o texto coloca. Quer lendo Meu Tio o Iauaret como a progresso para uma metamorfose que dar sentido ao enredo (e que no entanto interrompida), quer lendo o conto como um desejo no cumprido de comunicar (idem: 31) uma morte (silenciada) que na verdade j ocorreu, reencontramos uma estrutura de indefinio que lanada, em primeiro lugar, pela interrupo como limite textual provocado pelo outro, mas tambm, repare-se, pelo facto de que aquilo que nos dado ler da aproximao da fronteira (da metamorfose, da morte) se apresentar j, at no vnculo entre espao e desagregao da identidade, como repetio.

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Efectivamente, a topografia deste mapa obscuro que o narrador constri acentua essa dificuldade de delimitao identitria, traduzindo-a em termos espaciais. No seu centro, o texto identificado com o rancho, espao vital do sujeito que se abre, todavia, paisagem que o circunda. Jaguaretama, no movimento isomrfico de posse, ser projeco desse poder que tem ao centro uma figura demonaca que mor[a] em rancho sem paredes (II 841). Para quem est fora desse espao, a fronteira mantm-se: a fronteira para o lado de l, para essa zona de indistino. Para quem penetrou nesse espao, no entanto, o rancho abre-se infinita deglutio (imaginria) do sujeito de todo esse mapa que s ele dominaria. a isso que se expe este interlocutor/leitor, dispondose a transpor este limiar textual. O tigreiro, nica referncia e guia, ponto obrigatrio de passagem entre uma entrada e uma (possvel) sada do texto. Repare-se, por exemplo, numa das primeiras perguntas que o sujeito faz ao visitante: C vai indo ou vem vindo? (II 825): de onde, para onde, so elementos que no interessam a este ambiente claustrofbico. Este espao , desde logo, o centro de uma passagem, e por isso que se insiste tanto, no texto, na ideia de ida e volta. Alis, h um ponto em que a prpria morte do sujeito colocada nesses termos: no momento em que o tigreiro descreve o perigo a que se expe perseguindo as onas durante o acasalamento, a morte definida como um afastamento de si que pe em perigo a possibilidade de um regresso: Eu eu vou no rastro. cada pezo grande, rastro sem unhas... Eu vou. Um dia eu no volto. (II 839). Exposio ao perigo que vemos repetida na caada narrador-interlocutor, da qual o tigreiro, entregando-se a uma confisso letal, a uma representao da morte que engendra a morte, no voltar. O percurso de Meu Tio o Iauaret seria, ento, o de uma gradual corrupo do texto pela linguagem que encena, dando corpo a essa morte liminar, ou preparando-a, j na prpria narrao. Pontuado, desde o incio, pela tupinizao, o discurso iria
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progressivamente encaminhar-se para o ponto mximo dessa contaminao. O problema que, num texto como este, qualquer tentativa de delimitar esse processo parece destinado a falhar. O texto de Haroldo de Campos tem em conta a complexidade do processo e situa a dificuldade da situao, e a tenso que o final resolveria, numa sobreposio reflexiva que recorda as primeiras consideraes que fizemos sobre o lobo de Aym: Para ver como funciona o processo, basta atentar para o fato de que o tigreiro, em seu rancho encravado em plana jaguaretama (terra de onas), enquanto conta, para seu hspede desconfiado que reluta em dormir, histrias de ona, est tambm falando uma linguagem de ona. (Campos 1992a: 49). A descrio apenas parece omitir uma das dimenses que pem em risco esta construo metalingustica: o facto de que as histrias de ona se transformam, a partir da metade do conto, em histrias de metamorfose do onceiro em ona. aqui, a meu ver, que se situa o ponto determinante da construo deste texto: o onceiro que, no final, cumpre a passagem de forma que o seu discurso protico lhe parece exigir descrevese, ao longo do conto, como algum que j onou (e que j acordou desse estado transformado). O que irremediavelmente se delineia nessa passagem a indistino do plano da narrao do plano narrado, na medida em que a situao dialgica, que leremos mais frente em termos de caada, se comea a apresentar ao leitor como repetio do que nela se conta. O que o texto encena , no fundo, uma situao de caa: e o ponto culminante nada mais parece ser do que o encontro definitivo entre essa narrao narrada e a situao da narrao, que provoca, e esse o nosso ponto, a insustentabilidade de qualquer concluso. Que a caada em que o dilogo oculto se transforma tenha diferente desfecho das que o onceiro conta uma possibilidade, no fundo, contida no jogo das inverses que o texto encena, e que ultrapassam a inverso de base onceiro que vira ona que j assinalei: no fundo, podemos tambm falar de
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um caador caado, e o que tentaremos argumentar atravs da nossa leitura do texto que esta inverso, na situao narrativa, funcionar nas duas direces que possibilita (quem ocupa, no dilogo, o lugar do caador?), estabelecendo a, na sua terrvel simetria, o curto-circuito que impossibilita o fechamento do texto.

Entrada The first of these touches conveyed that the written statement took up the tale at a point after it had, in a manner, begun. Henry James, The Turn of the Screw

Talvez o efeito mais forte desta claustrofbica identificao entre texto e voz seja o modo como a queda no silncio e no vazio da pgina, que conclui o conto, provocada por um tiro que nele no pode ter presena. Essa provavelmente a marca de uma ausncia constitutiva da morte no texto e a marca, tambm, de algo que irremediavelmente se situa fora dele e que no pode ser por ele abrangido. Se quisermos considerar ainda a relao com Grande Serto: Veredas, difcil no pensar no facto de ambos os textos, em posies diametralmente opostas, se construrem sobre a mesma excluso de um tiro de arma de fogo. Neste conto, o tiro no ouvido a negao de um remate; em Grande Serto: Veredas, o tiro ir situar-se (tiros que o senhor ouviu, II 11) tambm fora do texto, mas desta vez antes dele. , em rigor, o ponto de partida da narrativa e o ponto de partida do protocolo da situao de interlocuo, com origem

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numa referncia a um elemento ausente e no representado. E , como evidente, a marca extrema da negao no texto: nonada. O tiro parece ento ser figura, tanto no romance como neste conto, de um evento excludo, rasurado pelo texto, mas por ele convocado e imprescindvel para a sua delimitao. Fora da linguagem, um elemento ao mesmo tempo ausente e operativo, no sentido em que tem efeitos sobre o texto, interrompendo-o ou permitindo-lhe comear. A referncia vazia do texto ao que nele no pode ter lugar assume assim um estranho valor performativo, assente numa designao truncada. Do mesmo modo, a fala que constitui o texto abre-se j, nos dois casos, como resposta a uma interpelao, ou, mais propriamente, a uma apstrofe12. A voz, no momento em que inaugura o seu movimento contnuo, coloca-se na posio de responder: o domnio da voz sobre o corpo do texto invalidado, partida, pela sua submisso pergunta rasurada. E nesse movimento comea por decidir-se a tenso inerente estrutura do dilogo oculto, que pratica a supresso da voz do outro a partir de uma sujeio inicial. A abertura de Meu Tio o Iauaret ser o melhor exemplo dessa submisso; assim como o desenvolvimento no texto dessa assimetria de base, progressivamente convertida, ao longo do conto, no jogo tenso e insustentvel de uma simetria impossvel. Os textos de Rosa que mais marcadamente recorrem a uma representao do dilogo parecem assim ser textos que enunciam abertamente o comeo como gesto ao mesmo tempo fundador e impossvel. Fundador, no sentido da instituio de um contnuo que assume propores indefinidas e que pe em causa a prpria noo de

Nestes termos, os interlocutores nunca estaro sob o mesmo plano, e a reciprocidade dos respectivos lugares ser impossvel. Desde logo, condio da sua emergncia - a figura da apstrofe antecede o dilogo, que pressupe um apelo ou uma invocao anterior, em que um dos locutores, em seu nome ou em nome de uma instncia superior, chama ou convoca o outro, apela a que entre no dilogo, ou seja, chama-o a responder -, mas condio ainda da sua eficcia e permanncia, na medida em que a assimetria que possibilita o dilogo o deve exceder e lhe deve sobreviver. (Abel Barros Baptista 1998: 202).

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forma; e impossvel porque toda a difcil construo de uma cena de leitura, que est na base da reencenao da narrativa em Guimares Rosa, lanada por um comeo que se coloca fora de si13. O problema da voz, em Rosa, o problema do texto, e o problema do texto o problema da forma: estas equivalncias incipientes justificam que o modo como o texto se constitui texto possa ser aqui a primeira dimenso a interrogar, e j a partir de um exemplo que permite ver que esse movimento obriga constituio de fala atravs da instituio da palavra escrita; obriga construo de uma figura de leitor atravs do seu silenciamento; obriga criao de um contnuo sem delimitaes para que as delimitaes fundadoras se tornem visveis. Em Beginnings, Edward Said perguntava Where, or when, or what is a beginning? (Said 1985: 29); na sequncia que a estrutura, a pergunta ajuda a perceber que antes de poder ser alguma coisa, um comeo institui uma fronteira que espacial e temporal. Nessa dupla dimenso que define o texto em relao a uma temporalidade deslocada a fronteira invalidada por uma anterioridade suposta e a um espao contendido, Meu Tio o Iauaret torna-se caso paradigmtico da impossibilidade de um comeo. A noo de limite, no entanto, questionada, como comemos por apontar, j a partir do interior do texto. Nesse movimento decide-se a construo claustrofbica do dilogo oculto, que institui os seus protocolos de abertura e concluso a partir de dentro, constituindo-se, desde a sua abertura, como o seu prprio objecto. Tanto em Grande Serto: Veredas como em Meu Tio o Iauaret o dilogo comea por comentar-se enquanto dilogo, por definir e elucidar os termos da sua tenso dramtica, comeando j numa sobreposio entre aco e comentrio. Enquanto se comenta, delimita e
Vimos j como Calvino articulava os problemas do comeo e do fim em relao a um contnuo. Veja-se esta passagem de Se una notte dinverno um viaggiatore a propsito do comeo como gesto impossvel de fundao: Cominciare. Sei tu che lhai detto, Lettrice. Ma come stabilire il momento esatto in cui comincia una storia? Tutto sempre cominciato gi da prima, la prima riga della prima pagina dogni romanzo rimanda a qualcosa che gi successo fuori dal libro. Oppure la vera storia quella che comincia dieci o cento pagine pi avanti e tutto ci che precede solo un prologo. (Calvino 1994a: 178).
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determina, enquanto estabelece os seus protocolos, suspendendo-se num movimento reflexivo, o dilogo j est a avanar. Desta supresso do quadro, desta eliminao de qualquer exterior protocolar, decorrer o complexo estatuto da metanarrativa no dilogo oculto rosiano, e a difcil delimitao de planos que comemos por acentuar em relao a este conto. A construo reflexiva de Meu Tio o Iauaret encontra neste dilogo dobrado interrogativamente sobre si mesmo a sua figura formal. No estamos longe da famosa afirmao de Bento Prado Jr. sobre a linguagem rosiana: Se a prpria linguagem, em sua dimenso prpria, e no na transparncia do signo, que trazida luz nessa estranha prosa, compreensvel que a linguagem se contora para auscultar sua prprias entranhas (Prado Jr. 1985: 224). Mas aquilo para que Meu Tio o Iauaret chama a ateno, nesta ausncia de quadro que desdobra o dilogo entre a interrogao de si prprio e a sua constituio em aco, a tenso no resolvel desse desdobramento. A linguagem, aqui, nunca plenamente intransitiva e na supresso de todo interlocutor (idem: 200) que Meu Tio o Iauaret procura, sem sucesso, pr em prtica, deve talvez ver-se a natureza profundamente agonstica desta relao entre linguagem e aco. Assim, com base nesta situao dialgica emblemtica que Meu Tio o Iauaret vai conseguir reunir vrias linhas de significao. A relao de interlocuo o palco de encenao das tenses inerentes ao texto literrio no seu ciclo, testando as consequncias daquilo que em outros textos de Rosa mantido numa margem de segurana. Em primeiro lugar, o lugar do interlocutor , ao mesmo tempo, encenao de uma contemporaneidade que s na comunicao oral tem lugar e sujeio ao meio da escrita: nesse sentido, precisamente pela sua presena (pois o foco de orientao do discurso) e ausncia (no pode ter lugar no discurso), o interlocutor apresenta-se, antes de mais, na posio do leitor. Como um actor que fale na direco da plateia (da parede
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ausente do espao fechado do palco), ou se dirija cmara, o narrador ao falar para uma posio vazia orienta a fala para o olhar que a observa, que a escuta, que a segue que a l. E repare-se que nessa estrutura que reside um dos problemas centrais a problematizarem o dilogo rosiano na alternativa entre transcrio (transporte) ou transfigurao (metamorfose) de uma situao de dilogo ou conversa: o que coloca o leitor, necessariamente, numa posio filtrada pela representao silenciada do interlocutor. Figurao que se estende a todo o dilogo oculto rosiano e coloca obviamente problemas quanto definio do interlocutor, ou sua consistncia enquanto personagem consistncia que pode no alcanar, sendo apenas outro, aquele que se ope ao narrador, posio no preenchida que marca a alteridade no texto (e na leitura). Para alm do ttulo, a que ser importante regressar, todo o corpo do texto se situa entre duas marcas de pontuao: um travesso, que abre uma fala, e as reticncias que a concluem. Uma voz, inicialmente desconhecida para quem se abeira do texto, fala a algum. Desprovido de referncias quanto a quem diz eu, o leitor encontra algo que pode ser identificado com uma resposta ao leitor, tanto mais que a primeira frase plenamente compreensvel que este encontra parece descrever o que est, nesse momento, a fazer entrar no texto: Quer entrar, pode entrar (II 825). Convite que cedo se mostra destinado a outra entidade que, a partir de agora, se poder situar apenas entre quem l e essa voz a que no tem acesso, pois veio ocupar o lugar que, por momentos, na busca de referncias que caracteriza o incio da leitura, lhe pertenceu. Assim, no tendo acesso fala de quem o representa, de quem, dentro do texto, repete a aco que o caracteriza enquanto leitor, este , por induo, levado a fazer suas as perguntas que essa personagem far fora do espao dessa fala.

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A mediao duplamente ambgua: por um lado, o facto de, no protocolo inicial, esta figura ocupar o lugar do leitor, impe, a quem l, uma perspectiva, como se olhasse de fora para a fala que ouve a partir de dentro. O visitante, aproximando-se de uma figurao do leitor, impossibilita a focalizao sobre o tigreiro e activa, por um lado, um processo de distanciamento e, por outro, uma cena no identificvel inicialmente com o discurso, antes paralela a ele: a cena da visita. Por outro lado, aquele que ouve tambm pergunta, e todo o discurso do caador tem origem nesse acto, nessa interrogao, sendo que o leitor se confronta desde logo com uma figurao de destinatrio, pela qual dever necessariamente passar para poder ler. Tudo o que ali fala est orientado para essa solicitao, e as perguntas, os movimentos de interrogao e desconfiana, pela promiscuidade que caracteriza esse lugar da vtima, da visita, tambm pertencem ao leitor que primeiro o ocupou. importante manter o carcter ambguo dessa presena do interlocutor que nunca chega a ganhar corpo, descrio, voz na escrita: preso na leitura, de um modo acentuado, objectivado, por essa iluso de oralidade, por essa tentativa de fuso entre texto e voz que constitui o texto. Este destinatrio, que na encenao da visita est frente ao narrador, no pode marcar presena no texto atravs da enunciao, sujeitando-se, como vimos, posio indirecta de um leitor que s atravs da leitura pode intervir sobre o texto14. Esta situao oral sujeita ao condicionalismo da escrita insere-se na clivagem rosiana maior entre oralidade e escrita, entre uma cultura de contadores de histrias e a dependncia moderna da palavra impressa de uma obra que trabalha intensamente a forma do livro e que convoca de forma ostensiva as potencialidades formais da pgina (de que se alimenta tambm a desagregao da
Le problme cest que, en ce qui nous concerne maintenant, dans linterlocution orale, le destinataire est physiquement prsent et chronologiquement contemporain et il peut oprer comme le destinateur le peut, tandis que dans lnonciation crite et littraire le destinataire na pas cette prsence, il ne peut pas snoncer dans le texte. Sa relation elle est possible, mais elle surviendra dans laccomplissement de la relation littraire dans son cycle : texte-lecture. (Gusmo 1982: 96).
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linguagem do Iauaret). O dilogo oculto uma forma de colocar essa questo precisamente na medida em que encena uma oralidade tanto mais forte quanto direccionada para um modo de destinao que o da escrita. Nessa orientao profundamente dialgica do texto rosiano, a palavra escrita vive dessa sua tenso de reaco a algo que lhe exterior transformando-se, numa identificao com o processo de leitura, em letra viva que responde.15 No se trata apenas da conservao de traos de oralidade na escrita, um fazer depender dessa subjugao escrita o trao mais determinante da oralidade, a manuteno de uma solicitao prpria dessa mesma copresena que negada. Trata-se de um dos problemas que Meu Tio o Iauaret mais parece sublinhar. A questo reside, tambm, no facto de Meu Tio o Iauaret ser um texto escrito, marcado pelo ttulo e pela pontuao como tal, e cuja oralidade encenada e identificvel, tambm, apenas a partir da escrita. Mas quem escreve, aqui? A hiptese absurda do gravador, sugerida por Finazzi-Agr no excerto referido (Finazzi-Agr 2006: 29), identifica o problema sem no entanto assinalar o seu paradoxo essencial: o de um choque entre a temporalidade presente, dramtica, do dilogo e a prpria ideia da sua fixao escrita. E esta ausncia autoral paira sobre a trade delineada pelo protocolo narrativo, narrador-interlocutor-leitor, e paira sobre esse momento ltimo de morte que, precipitando-nos no silncio, no nos deixa entrever nenhuma possibilidade de continuao, sendo a escrita, marca de morte, de certa forma possvel apenas quando a sua invalidao se cumpriu nessa interrupo, nesse silenciamento. Pstuma, tambm. Esta interlocuo, que caracteriza e estrutura Meu Tio o Iauaret, ao mesmo tempo que encena uma situao oral, veda ao outro o acesso ao texto precisamente

Pense-se, por exemplo, no facto de Grande Serto: Veredas encenar uma oralidade que contempornea sua fixao na escrita, e de as duas aces, narrar e escrever, estarem sujeitas a vrios pontos de contaminao, a ponto de se estabelecer uma oscilao entre a aco de narrar e a aco de escrever, presente sempre porque o interlocutor o homem da caderneta, por um lado, mas tambm representado, assumidamente, como suporte e instrumento de escrita de Riobaldo.

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atravs da enunciao textual. A escrita,

perante

relao

de

aparente

contemporaneidade que se deixa entrever, ser, desde logo, o que filtra a situao de copresena, uma limitao de campo, em que aquele que seria o destinatrio, e como tal deveria funcionar, no se pode enunciar no interior do texto, tal como o leitor. O conto revela na tenso entre poder (a aco sobre o narrador, ser o foco de orientao) e sujeio, no jogo de caa institudo pela situao narrativa, uma tenso constitutiva de toda a leitura atravs da figurao do dilogo, nesta fala hermtica que coloca em perigo e subjuga o seu destinatrio, precisamente por acolher no seu tecido hbrido, ambguo, o espao da destinao16. A violncia implcita neste tipo de dilogo aqui exacerbada pela sugesto de que algo est a ser jogado, de que aqueles dois homens que discutem na noite decidem alguma coisa. A tenso dada, sobretudo, por se pressentir que tudo naquele que detm a fala corre para o outro: aquele que fala pode, mas , de vrias maneiras, objecto de coero, at ao revs final. Silncio e voz opem-se mas vivem uma relao invertida de foras: o silencioso domina a fala do falador, conduz os seus passos ao longo de todo o texto. Destituda a partir do silncio que cria, a fala tensa na medida em que, sem poder sair de si, est toda virada para um fora que no nos dado conhecer, mas que ns repetimos inconscientemente, no papel do leitor. A esse propsito, importante considerar a caracterizao bakhtiniana do dilogo oculto no estudo sobre a potica de Dostoivski:
Nesse sentido, Meu Tio o Iauaret decisivo para a configurao da relao com o leitor como uma dinmica de luta de morte que est na base do interessante artigo de Pasta Jnior sobre Grande Serto: Veredas: Ora, no outro movimento, seno este mesmo da formao supressiva, que encontramos em ao j no comeo destas linhas, em relao ao leitor. O Grande Serto, tambm ao leitor ele o forma suprimindo-o, isto , simultaneamente ele o concebe como alteridade e o suprime enquanto tal. Esse movimento que ao mesmo tempo supe o lugar do outro e o anula, organiza o livro de ponta a ponta, vai do detalhe s grandes linhas da composio, e desemboca onde no podia deixar de ser: no leitor, cuja alteridade a obra a um tempo ansiosamente solicita e denega. A essa alteridade ltima e inescapvel, Grande Serto estende a lei que a sua, a nica que finalmente conhece: o outro o mesmo o que faz desse leitor uma espcie de duplo do narrador, um seu outro e o mesmo, algo entre o contratante e o pactrio. (1999: 64).
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Immaginiamoci un dialogo a due, nel quale le repliche del secondo interlocutore sono tralasciate, ma in modo tale che il senso generale non viene affatto turbato. Il secondo interlocutore assiste invisibilmente, le sue parole non vi sono, ma la traccia profonda di queste parole determina tutte le parole presenti del primo interlocutore. Noi sentiamo che questo un colloquio, anche se parla uno solo, che colloquio intensissimo, giacch ogni parola presente fa eco e reagisce con tutte le sue fibre allinterlocutore invisibile, accenna al di fuori di s, al di l dei suoi confini, a una non detta parola altrui. (Bakhtin 1968: 256). Esta tenso deriva da imposio do silncio a uma figura que tudo o indica conduz o discurso do outro. Diz, a certa altura, o tigreiro: Por que que no deita? fica s acordado me preguntando coisas, despois eu respondo, despois c pregunta outra vez coisas? Pra que? (II 836-7). Excludas do texto, essas perguntas ganham maior peso na sua economia. Mais do que nunca, conta-se aqui para algum: a supresso desse destino apenas pode reforar esse movimento de resposta. Tudo na fala est orientado, portanto, para quem veio. A narrao desencadeada pela presena do outro, de algum que vem e se instala no texto, estabelecimento imediato de um protocolo que abre o texto situao da narrao. O texto abre-se com um convite (Quer entrar, pode entrar) e tem, no seu final, uma violenta tentativa de expulso (Sai pra fora, rancho meu, x! Atimbora!, II 852). O espao do texto coincide, aparentemente, com o que comea por parecer uma casa, mas cedo se revela um espao aberto, tambm circular, em torno do fogo. O "visitante" convidado a entrar, para ouvir. O espao em que penetra situado entre duas marcas de pontuao uma cabana. "H-h. Isto no casa... . Havra. Acho. Sou fazendeiro no, sou morador... Eh, tambm sou morador no. Eu tda a parte" (II 825). a que o outro ser introduzido, transpondo uma fronteira, mas o sujeito, relacionando-se com um espao ilimitado, questiona desde logo a sua identidade a partir do no-morar, dissolvendo a solidez desse limiar de abertura.

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Numa leitura dos outros textos de Rosa que seguem o mesmo modelo narrativo, reconhecemos um padro com variaes significativas. O primeiro caso est em Primeiras Estrias: trata-se de O Espelho, conto que tem outros pontos de contacto com Meu Tio o Iauaret, sobretudo no que diz respeito ao questionamento, por subtraco, de uma identidade17. A abrir o texto, temos tambm uma evidente marcao protocolar: Se quer seguir-me, narro-lhe (II 437), que estabelece uma diferena na relao de foras entre os agentes envolvidos na interaco. Em O Espelho, o narrador convida o outro a segui-lo, dominando a fala, praticamente sem interrupes, ao longo de todo o conto. Ao chegar ao fim do relato da sua experincia, o narrador exige do outro uma resposta, e estamos aqui prximos de Grande Serto: Veredas: o acto de contar estabelece-se num plano de intercmbio narra-se uma experincia ao outro alheia para que se tenha, em troca, uma opinio ou uma confirmao, como se evidencia na concluso do texto: Se me permite, espero, agora, sua opinio, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. (...) Sim? (II 442). Outra situao a de Antiperiplia, de Tutamia, em parte mais prximo de Meu Tio o Iauaret, tratando-se de uma duvidosa confisso de um crime cometido hipoteticamente como uma das mortes confessadas pelo caador de onas: empurrando algum para o fundo de um barranco. A ambiguidade desta narrao depende, como em Meu Tio o Iauaret, de uma indefinio na relao entre remorso e narrao, sendo no entanto totalmente distinta a figurao do outro, com o interlocutor que nada diz e o guia de cego que vai construindo a sua defesa espontaneamente: O senhor no me perguntou nada. S dou resposta ao que ningum me perguntou. (II 527). Em Meu Tio o Iauaret a espontaneidade que parece caracterizar os dois narradores referidos no tem lugar. Naquele Quer entrar, pode entrar, alm do convite, protocolar, para a
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Repare-se que a ona, em O Espelho, corresponde primeira etapa desse exerccio de

subtraco.

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entrada na narrativa, temos a primeira marca de um lento processo de coero, marcado pela insistncia solicitadora do outro, de que o tigreiro comea a desconfiar: Eh, mec quer saber? No, isso eu no conto. Conto no, de jeito nenhum... Mec quer saber muita coisa! (II 831). No estabelecimento da narrao como caada, o interlocutor vai ser investido de um poder de interveno que no encontramos noutros dilogos ocultos. Essa vontade, excluda do texto, que lentamente se vai impondo traz a Meu Tio o Iauaret a violncia de uma relao de competio: a tenso dos dois termos em dilogo constitui apenas, ao longo do texto, um equilbrio instvel e provisrio, destinando-se um dos termos a suplantar o outro. Por outro lado h, entre Meu Tio e Iauaret e a situao narrativa de Grande Serto: Veredas, uma proximidade que deriva de um dos pontos que mais se destacam na forma como o texto se apresenta: a natureza desta situao protocolar e a caracterizao do espao em funo da interlocuo. Em Grande Serto: Veredas, o texto desencadeado pela chegada de algum que vem de fora. A caracterizao feita nestes termos: Mas o senhor homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, ento me ajuda. (II 69). A funo do interlocutor aqui problematizada em termos de interveno sobre o processo de elaborao do discurso. Interessa-me, porm, considerar aqui a primeira das qualidades que o caracterizam: homem sobrevindo. Aliada fidelidade e sensatez, uma das caractersticas positivas deste sujeito , estranhamente, o facto de ter chegado. O que se justifica: a funo do outro, para Riobaldo, primeiramente a de confirmar. Na dupla acepo do termo, a funo do interlocutor ser ento aproximar-se do sujeito e solicitar uma narrao retrospectiva num tempo posterior ao das experincias narradas, como algum que, vindo depois, obrigue o sujeito a recriar verbalmente um arco temporal anterior, a dar forma a um trabalho de memria que , como veremos, a definio dos
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dias retorcidos do sujeito. Tanto para Riobaldo como para o narrador de Meu Tio o Iauaret, a aco da visita marcada pela introduo de um estranho num espao que lhes pertence, de modos diferentes, e onde eles se encontram numa condio esttica, anterior fala pela qual ganham existncia enquanto voz. Esta posio imvel, catalisadora de uma aproximao por parte do outro que solicita a histria, parece ser recorrente em textos de Guimares Rosa, como se a histria a transmitir fosse um mbil para uma deslocao do outro na direco do seu contrrio, em direco ao centro de um crculo onde residiria o caso e o seu conselho. Imobilidade que, no entanto, parece estabelecer a diferena entre a experincia e a sua narrao: aquele que, imvel, pode agora pensar e contar a experincia tambm aquele que cumpriu um movimento de ida e de volta, aquele que, depois de ter vivido uma experincia de movimento, de viagem, requer o regresso, para que possa dar incio narrao.18 Nesse sentido, esse centro imvel o ponto de encontro de dois percursos: o daquele que foi e voltou, de quem viveu a experincia de viagem e que a pode processar apenas num regresso ao centro estvel, e o do outro, sobrevindo, que vem de fora para se colocar na disponibilidade da impossvel? transmisso da experincia19. Em Grande Serto: Veredas, o outro , portanto, sobrevindo, e aproxima-se de Riobaldo para que este lhe fale do Serto (II 69) e das suas viagens, sendo que a morte paira sobre esta espera, sobre esta situao de reelaborao imvel em que o jaguno reformado se encontra, tal como assombrava o Cara-de-Bronze enfermo e
Cf. O Recado do Morro: Agora, tinha estado l, at nas veredas do Apolinrio, onde papagaio bravo revoando passa, a qualquer parte do dia. Ao que fora, imaginando de ficar, e no tinha ficado. Mesmo no momento, se queria pr a rumo o pensamento, de lembrana de l, no consegua, sem sensatez, sem paz. Faltava a saudade, de sop. Toda aquela viajada, uma coisa logo depois de outra, entupia, entrincheirava; s no fim, quando se chega em casa, de volta, que um pode livrar a idia de um emendado de passagens acontecidas. (II 646). 19 Esta tenso entre imobilidade e viagem tematizada em Cara-de-Bronze, na paralisia do Velho que, no centro do crculo, envia o seu vaqueiro para um Serto indefinido com a condio de regressar com a poesia, ouvinte inacessvel, que vive atravs desse relato de ida e volta um processo de identificao e de inverso com o seu discpulo, numa permutabilidade da experincia que s a narrao permite. Voltaremos em detalhe a esta relao no captulo 7.
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assombra, de um modo mais extremo e violento, este caador que vira ona numa selva inspita. Tambm aqui, de uma forma muito clara, a funo do homem rico, logo na primeira pgina, a chegada: Mec cipriuara, homem que veio para mim, visita minha (II 825). S que nesta situao narrativa tensa, este reconhecimento marca desde o seu incio, no texto, a sua ambiguidade, numa indistino entre o sentido antropofgico daquela recepo, inscrio da vtima humana na srie de crimes do tigreiro transformado, e a intuio de um destino de morte, dessa destinao assassina, ou legisladora, do interlocutor. Do mesmo modo, como j apontmos, a delimitao entre passado e presente que a narrao do tigreiro constri, numa progressiva aproximao cena do dilogo, to instvel quanto as fronteiras espaciais que o seu discurso delimita. Entre o convite e a expulso que antecede o final decorre uma noite, representada pelo desenrolar da narrao. Mas nessa passagem situa-se o centro da luta de poder que acaba por caracterizar este texto, justificada pela coincidncia reiterada entre texto e espao, entre fala e casa, porque de um conflito entre duas vozes no interior de uma s que se trata. Posse e voz so as caractersticas da dominao, desestruturadas pela dinmica do texto, que nos faz assistir dominao da fala por parte do silncio. A tenso, o choque, parece traduzir-se na luta pela fala, na luta pelo espao, na ocupao do texto, num esforo desesperado por resistir sua subjugao, sua deglutio: e aqui Rosa leva mais longe do que nunca as consequncias do dilogo porque essa tenso, aqui, leva extino da fala. Extino total, radical, na medida em que impe o silncio, a morte do texto, o seu radical e irreversvel auto-aniquilamento.

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gon And on this note, farther, first, that had the walls been real, instead of ghostly, there would have been no difficulty whatever in getting either out or in, for you could go no other way. But if the walls were spectral, and yet the transgression of them made your final entrance or return impossible, Ariadnes clue was needful indeed. John Ruskin, Fors Clavigera

O modo como o texto se direcciona para um ponto de no retorno faz-se tambm atravs da exposio do interlocutor a essa deglutio do informe. Nesse sentido, se a relao entre humano e animal que a desagregao identitria do tigreiro encena uma relao de alteridade, no o ser menos a relao com este sujeito sobrevindo. Importantssima na economia do texto, esta construo do outro como duplo20, que se multiplica aqui por vrios planos, vive, para o leitor, de uma constitutiva ambiguidade, derivada precisamente do modo como o texto se fecha a qualquer relao com o exterior. mais uma vez um problema de ausncia de quadro: o protocolo narrativo estabelecido no limiar do texto, e atravs de marcas de pontuao, acentuando a escrita, que a construo da fala legvel como tal e a situao de oralidade se encena. Ser a marcao cenogrfica da entrada a cumprir esse papel, submetendo o leitor a uma ausncia de referncias que, como vimos, o expe, de imediato, a efeitos de distanciamento e de identificao determinantes para que o texto assuma, nos seus desdobramentos sucessivos, a sua progresso inquietadora. A ambiguidade fantasmtica da relao entre o sujeito e o seu duplo instituda, essencialmente, em dois movimentos, sendo que o primeiro se prende j com o ttulo. A convocao da presena da ona, recorrente nos casos narrados pelo sujeito, uma

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Sobre a figurao do duplo em Meu Tio o Iauaret cf. Calobrezi 2001: 69-75 e Sperber

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ameaa ao longo de todo o texto, vinculada complexa marcao do espao por parte do tigreiro. O facto de o ttulo colocar, por um lado, o sujeito numa posio sintctica oblqua, e por outro a ona ausente em posio central determina, desde logo, o delineamento dessa ameaa. A figura do camarada, entretanto, ope-se

simetricamente da ona, contraponto humano, reforo exterior fala que constitui, neste caso, uma intimao no concretizada. O camarada que vir com a conduo (II 825) talvez a nica promessa, no cumprida, de libertao do interlocutor do espao sitiado em que se enredou, bem como de convocao (negada) de uma testemunha ou rbitro exterior situao de tenso do dilogo. Figura, como veremos, do fio que eventualmente orientaria o interlocutor para o exterior do labirinto, o camarada no vir, ou no vir a tempo, como o prprio narrador faz questo de sublinhar. Inversamente, a ausncia da ona da situao da visita que vai sendo construda pelo discurso posta em causa precisamente medida que o sujeito se vai tornando mais e mais disponvel para ocupar esse lugar: onando, o narrador traria para dentro do texto, integralmente, o animal que o assombrava, o duplo que se ia construindo com traos, de signo invertido, que de si subtraa. S que a metamorfose incompatvel com o prosseguimento da narrao: a ameaa da aproximao da ona ser, por um lado, ameaa de aniquilamento (do sujeito enquanto sujeito humano, ou do interlocutor enquanto vtima) e, por outro, a exibio do risco de destruio deste texto que coincide com uma voz. O ttulo, neste sentido, efectuando a transferncia do sujeito do humano para o animal, e presentificando a ona ausente, designa o texto j na sua negao e impossibilidade, assinalando a sua extino. Pela sua supresso do texto, pela sua dependncia da fala do tigreiro, o interlocutor, duplo humano, tambm questionado no processo de construo do sujeito. O vazio que antecede a abertura do texto, no modo como se relaciona com a
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caracterizao do espao de jaguaretama, acentua desde logo a solido absoluta e dolorosa do tigreiro. A sua fala, confusa e alterada, no digna de confiana, como parece sublinhar, com as suas dvidas, o interlocutor, ainda que o leitor no tenha como contornar a sua entrega a essa voz. O prprio tigreiro joga com o domnio da palavra, com a dependncia que institui, desautorizando as desconfianas do interlocutor atravs da exposio da ausncia de qualquer referente exterior, com o mesmo tipo de referncia esvaziada que estava na base da problematizao do comeo: Nhem? No tava certo? Como que mec sabe? C no tava l. (II 847).21 A figura do interlocutor, de cuja presena depende a narrativa e a instituio do dilogo, tem a sua possibilidade de existncia apenas no discurso do outro. Para o leitor, a presena do interlocutor s pode ser assegurada pela voz no confivel do narrador, e to questionvel quanto os casos narrados pelo tigreiro, que continuamente se tenta desmentir, obviamente numa condio alterada, desagregada, cindida22. Repare-se em duas das afirmaes que o caracterizariam: Aquele Nh Nhuo Guede, pai da moa gorda, pior homem que tem: me botou aqui. Falou: -- Mata as onas todas! Me deixou aqui sozinho, eu nhum, sozinho de no poder falar sem escutar. (II 844, subl. meu); Quando tou de barriga cheia no gosto de ver gente, no, gosto de lembrar de ningum: fico com raiva. Parece que eu tenho de falar com a lembrana deles. Quero no. Tou bom, tou calado. (II 832, subl. meu). A condio de exlio extremo caracterizada j por uma reflexividade que se aproxima perigosamente da situao do dilogo, remetendo o interlocutor para uma posio instvel, possvel no quadro de uma alucinao solitria; e dessa sugesto a

Repare-se, mais uma vez, no contraste com Grande Serto: Veredas: Os ruins dias, o castigo do tempo todo ficado, em que falhamos na Coruja, conto malmente. A qualquer narrao dessas depe em falso, porque o extenso de todo sofrido se escapole da memria. E o senhor no esteve l. (II 257); a presena do interlocutor, que vem confirmar, seria garantia (aqui negada) contra a dificuldade de narrar que domina a parte final do romance; em Meu Tio o Iauaret a afirmao vem acentuar o domnio exclusivo dos casos por parte do tigreiro, num movimento de defesa e excluso. 22 Sobre o modo como o narrador tenta desmentir a confisso na parte final da narrao, cf. Irene Gilberto Simes, Meu Tio o Iauaret Um enfoque polifnico (Simes 1976: 148-150).

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visita apenas se pode libertar apenas agindo sobre o discurso, explodindo, marcando de forma indelvel sobre o corpo da narrao as consequncias da sua presena. Na tenso entre narrador e interlocutor, falei em coero. E destaquei uma das principais diferenas entre este narrador e os narradores de outros dilogos ocultos de Rosa: a sua aparente resistncia a narrar, vencida pela insistncia (e pela cachaa) do interlocutor. Em primeiro lugar, preciso ter em conta que o facto de sabermos to pouco acerca do interlocutor apenas vem acentuar a sensao que se tem, ao ler Meu Tio o Iauaret, de que no podemos aperceber-nos inteiramente do que est em jogo. Quem este homem rico, armado, com cavalos, que fica para trs no meio do mato? As desconfianas do tigreiro parecem plenamente justificadas, sobretudo pela insistente curiosidade que parece determinar as perguntas do outro. Nomes, lugares, mtodos: que origem tem esta insistncia do outro?23 Por um lado, evidente a relutncia em dormir deste visitante ameaado. Edna Calobrezi fala de uma inverso do modelo das Mil e Umas Noites, em que da continuidade da narrao depende a sobrevivncia, atravs de um retardamento da morte por meio do ato de narrar (Calobrezi 2001: 77). No entanto, mais do que na situao da visita, verdade que o perigo, para os dois, reside na narrao: o tigreiro que cada vez mais se inebria na sua capacidade de se identificar com um ser forte, a ona, por oposio sua inadequao como humano, e cada vez mais se aproxima daquele frio que o leva a onar; o interlocutor que se arma contra o potencial ataque com as informaes fornecidas e ganha da elementos para interpretar a evoluo do discurso do tigreiro como aproximao da caa. No parece haver nenhum valor salvfico nesta narrao que se revela coincidir com a aco e com a

A ambiguidade da situao dilogica muito evidente nas leituras de sinal oposto que foi originando: No fim da longa confisso, o visitante acabar matando o seu hospedeiro o que era, talvez, desde o incio o seu objetivo e a sua tarefa oculta (Finazzi-Agr 2001: 128); pois, sutilmente, o tigreiro narra com o intuito de eliminar o visitante (Calobrezi 2001: 41); a estas leituras devem acrescentar-se as que vem no conto uma inverso da violncia do colonizador sobre o colonizado. Cf., por exemplo, Lcia de S (1992: 567).

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morte, nesta narrao que tem origem num desvio, numa contaminao perigosa e inaceitvel entre homem e animal constituindo no texto um impasse que s no seu aniquilamento encontra resposta. A relao incontornvel entre palavra e morte reside tambm na possibilidade de esta fala ser tambm uma confisso: efectivamente, todo o texto se estrutura em torno do remorso e da dificuldade de resolver o paradoxo constitutivo da existncia do caador-ona. Confisso que pode ser interpretada como um pedido, pouco consciente, de libertao desse peso de ter morto (da tambm a insistncia em ver o interlocutor a afirmar que no matou: em vo, porque no pode ter espao no texto essa confirmao da inocncia). Confisso perante algum que de vrias formas se apresenta, aos olhos deste sujeito, como uma figura da lei. Polcia, soldado, algum que j matou gente: muitas hipteses se colocam, todas situando este outro, para o tigreiro, na esfera da justia, como algum que vai executar o castigo pelo crime cometido, retirando a liberdade de movimentao no espao a quem depende de uma no-delimitao de fronteiras: Eu no posso ser preso: minha me contou que eu no posso ser preso no, se ficar preso eu morro por causa que eu nasci em tempo de frio, em hora que o seju tava certinho no meio do alto do cu. (II 844). Este visitante que quer entrar, quer tambm saber muita coisa, e compra as informaes e a continuidade da narrao com objectos e com promessas de cachaa: Ento converso mais no. Fico calado, calado. O rancho meu. Hum. Humhum. Pra qu mec pregunta, pregunta, e no dorme? (...) Hum, agora eu vou conversar mais no, prosio no, no atio o fogo. Deist! Mec dorme, ser? (...) Nhem? Camarada traz outro garrafo? Mec me d? Ha-h... ... Ap! Mec quer saber? Eu falo. (II 838).

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Interrogando-o, embriagando-o, leva-o a falar e a embrenhar-se cada vez mais na confisso dos seus crimes, figura forte, que tem olho forte, no tem medo, e vai subjugando este sujeito. Por um lado, observa-se neste excerto mais uma forma de se fazer coincidir o rancho com o poder, nomeadamente com o poder de decidir a fala; por outro, a fala, a narrao, directamente identificada com o fogo, fogo que esteve sempre no centro do rancho e que se funde, enquanto metfora, com o narrar: tentar apagar o fogo tambm tentar dissolver essa tenso que s numa exploso se pode resolver.24 O interlocutor que subjuga , no entanto, subjugado pela fala. Ironicamente, o narrador marca diversas vezes a natureza da presena do outro como algum que s pode escutar, que no pode falar. "Mec escuta e no fala. No pode." (II 829) ou Eh, bicho burro! Mas mec pode falar que ela burra no, eh. Eu posso. (II 839). Convidando o outro a entrar, o tigreiro incentiva a entrega da voz. Para este grande devorador25 , o convite tambm um preldio da deglutio do outro (atravs da ona) para a qual se parece preparar: o seu texto dispe-se a acolher a voz do outro, que porm no cede, oferece resistncia; prepara-se, num certo sentido, para devorar a individualidade do interlocutor incluindo-o numa srie ainda aberta, precisamente quando a ltima vtima foi o contendente do espao do rancho. No por acaso que a visita desconfia sempre de que est a ser roubada por essa fala que, sem permitir que se saia de si, tudo a si chama. Este caador encontra-se, assim, numa condio dolorosa, panema, caipora, atormentado pela culpa. Ao mesmo tempo, vai disseminando, no seu texto, sinais de um
O papel do fogo, na sua relao com a passagem efectuada do cozido ao cru pelo sujeito, tratado por Walnice Galvo (Galvo 1978: 31-32); Repare-se tambm que, a atrair o interlocutor ao rancho, a fogueira do narrador (Mec enxergou este foguinho meu, de longe?, II 825). 25 Em Iracema: uma arqueografia da vanguarda afirma Haroldo de Campos: Um olho lexicogrfico poder descobrir o nome Jaguaret, verbetado como o grande devorador, numa nota alencariana (Campos 1992b: 138).
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poder de observao (a aprendizagem da ona) que chocam com essa exposio de uma fragilidade constitutiva. Diz a certa altura: Todo movimento de caa a gente tem que aprender. Eu sei como que mec mexe mo, que c olha pra baixo ou pra riba, j sei quanto tempo mec leva pra pular, se carecer. Sei em que perna primeiro que c levanta... (II 833). Este observador, que sabe interpretar os sinais, parece, de certa forma, deixar-se levar irremediavelmente pela sua fala, mas ao mesmo tempo no fazer nada para o impedir, com plena conscincia do que est em jogo: Ei, mas mec tambm corajoso capaz de encarar homem. Mec tem olho forte. Podia at caar ona... Fica quieto. Mec meu amigo. (II 837). De certo modo, as micro-narrativas que constituem os seus casos narrados podem tambm funcionar, no texto, segundo uma estrutura fractal: se as histrias de morte so o centro do texto, a manuteno da chama desta tenso destruidora, no haver uma relao entre o comportamento da ona e o comportamento do seu caador? Vejamos como morre a ona: Com minha zagaia? Mato mais ona no. No falei? Ah, mas eu sei. Se quiser, mato mesmo! Como que ? Eu espero. Ona vem. Hee! Vem anda andando, ligeiro, c no v o vulto com esses olhos de mec. Eh, rosna, pula no. Vem s bracejando, gatinhando rente. Pula nunca, no. Eh ela chega nos meus ps, eu encosto a zagaia. Er! Encosto a folha da zagaia, ponta no peito, no lugar que . A gente encostando qualquer coisa, ela vai deita, no cho. Fica querendo estapear ou pegar as coisas, quer se abraar com tudo. Fica empezinha, s vez. Ona mesma puxa a zagaia pra ponta vir nela. Eh, eu enfio... Ela boqueia logo. Sangue sai vermelho, outro sai quage preto... Curuz, pobre da ona, coitada, sacapira da zagaia entrando l nela... Teit... Morrer picado de faca? Hum-hum... Deus me livre... Palpar o ferro chegar entrando no vivo da gente... Atica! C tem medo? Eu tenho no. Eu sinto dor no... (II 832-833)

Nha-hem? H-h. porque ona no contava uma pra outra, no sabem que eu vim pra mor de acabar com todas. Tinham dvida em mim no, farejam que sou parente delas... Eh, ona meu tio, jaguaret, todas. Fugiam de mim no, ento eu matava... Despois, s na hora que ficavam sabendo, com muita raiva. (II 834)

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A morte da ona pelo caador j contaminada pela sua condio hbrida. A ona expe-se ao seu parente e, com base nessa sensao de pertena, puxa para si o instrumento da morte, num gesto suicida que cedo se faz revolta quando a ona percebe que foi trada. A imagem da ona que puxa a si a arma do crime, assim que sente a sua proximidade, encontra correspondncia num aspecto estrutural de Meu Tio o Iauaret: o revlver do visitante, determinante, como vimos, para a construo de um exterior excludo, vrias vezes referido ao longo do texto, preparando a exploso suprimida. Referido inicialmente entre os pertences do visitante, torna-se foco de ateno, pela primeira vez, depois da pausa que o meio do conto: A bom, agora chega. Proseio no. (II 838). O caador mostra, desde logo, atraco pela arma, e pede para lhe tocar. Pouco depois, o caador apercebe-se de que o visitante tem a sua arma apontada: Eh, c t segurando revlver? (II 841), pergunta. A partir da comea a enunciar os seus crimes, primeiro contra onas, depois contra humanos. Como num longo suicdio, a partir do momento em que v o revlver do interlocutor, o narrador expe-se cada vez mais, confessa os crimes j cometidos, at que se anuncia a ltima das suas supostas transformaes. Nessa lenta exposio morte, o narrador, por momentos, resiste: tenta no falar. Falar aqui, ao mesmo tempo, dominar e ser dominado, na medida em que a situao de alteridade em que se encontra este narrador j um preldio de morte. Contar casos de morte, confessar, tambm pedir que algum o liberte dessa obrigatoriedade da palavra, a que o tigreiro parece estar condenado no seu exlio selvagem.

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Limite Note, secondly, that the question seems not at all to have been about getting in; but getting out again. The clue, at all events, could be helpful only after you had carried it in; and if the spider, or other monster in the midweb, ate you, the help in your clue, for return, would be insignificant. So that this thread of Ariadnes implied that even victory over the monster would be vain, unless you could disentangle yourself from this web also. John Ruskin, Fors Clavigera

O interlocutor tambm aquele que, precisamente por no estar l, ocupa o lugar do leitor, descrevendo (e prescrevendo) os seus movimentos, ponto obrigatrio de passagem para se aceder fala. Essa, a voz do texto, pertence apenas ao no-humano, ao hbrido, que leva a lngua para alm de uma fronteira. Da que a extino da voz seja a confirmao da sua impossibilidade, mas tambm a negao de uma concluso para o texto que constitua, espao irremediavelmente fechado no paradoxo que o delimitava. A fala, para o interlocutor, constitui uma ameaa, coloca-o em perigo de vida, na fuso entre narrao e aco, na interferncia entre narrar e acontecer, e a reside a experincia deste conto: na encenao da leitura como sujeio claustrofbica, como dependncia extrema e perigosa do texto, contra a qual o leitor tenta reagir. A fala, como vimos, perigosa tambm para o narrador: o seu suicdio, exposio do perigo e atraco da bala. Quem mata, no entanto, o outro, deixando o texto entregue ao silncio. No podemos saber exactamente o que acontece nesse curtocircuito narrativo, porque o que acontece incompatvel com a fala. Nenhuma moldura exterior, nenhuma delimitao espacial pode fazer reverter o jogo do lobo. A interrupo que a morte institui parece ento, mais uma vez, apresentar-se como
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tentativa impossvel de concluir aquilo que transgrediu um limite, fazendo regressar o texto ao seu silncio anterior. Na luta pela posse do texto que se foi desenvolvendo, o interlocutor, numa exploso, irrompe sobre essa fala com um efeito incontornvel e inquestionvel, mas ao mesmo tempo irrepresentvel. Saindo desse estado de silenciamento a que fora remetido, libertando-se do peso ambguo da sua no-existncia no texto, o interlocutor age sobre a aco de narrar, desse modo impossibilitando-a. Mas matando o monstro, o centro da encruzilhada, consegue encontrar uma sada desse texto labirntico em que entrou? Algumas leituras de Meu Tio o Iauaret, a que j comemos a fazer referncia, sugerem que o interlocutor representa o prprio autor a matar a sua criatura, dessa forma encontrando uma sada, uma salvao, que liberta o texto do monstro que engendrou. Afirma Ettore Finazzi-Agr, no ensaio de 2001: De fato, como depois em Grande Serto, na figura do interlocutor silencioso fcil entrever a figura do autor, isto , de quem fala atravs da voz silenciosa do outro o senhor, assisado e instrudo do romance, assim como o homem civilizado, bonito, to rico, do conto , no fundo, o prprio Guimares Rosa, l testemunha impassvel do drama, incapaz de salvar Riobaldo das suas dvidas, incapaz de dar uma resposta definitiva s suas perguntas, ao seu terrvel enigma; aqui, no conto, personagem que interfere na aco, heri civilizador cancelando aos tiros esse ser duvidoso que uma imaginao doentia pariu das suas entranhas. O criador mata, ento, a sua criatura, a razo nega o monstro gerado do seu sono: gesto apotropaico, exorcismo violento contra o horror evocado pelo prprio autor e em que ele mesmo se acha convocado. O escritor, em suma, coloca-se mais uma vez numa posio dbia ou ubqua, ele se localiza ainda no libi ou na heterotopia, sendo ao mesmo tempo quem conta e quem se conta, quem fala e quem escuta, e tornando-se, por isso, o carnfice e a vtima o carrasco imaginrio de si mesmo. (Finazzi-Agr 2001: 140) Uma leitura como esta tem o mrito de sublinhar, de forma precisa, a ambgua sobreposio de funes a que se pode sujeitar esta construo reflexiva: na imagem de uma posio dbia do interlocutor temos, no fundo, o reverso da duplicao fantasmagrica do narrador que sublinhmos, deste modo acentuando os sucessivos e
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sobreponveis desdobramentos desta construo. E pressupe uma afirmao inequvoca do interlocutor como figurao autoral, apoiando-se na representao do outro como homem da caderneta em Grande Serto: Veredas. A prpria comparao, no entanto, deveria colocar algumas reservas a essa identificao, pelo modo como a figurao do outro, fiel como papel, desliza vrias vezes ao longo do texto para uma posio ambgua. Na verdade, autoria e leitura confundem-se, explicitamente, em vrias passagens do romance, a instabilidade das respectivas posies contribuindo para uma complexificao das noes de experincia e representao, e das fronteiras entre escrita e leitura, que analisaremos mais tarde em detalhe. Assim, se a sugesto de uma autoria do outro reforada tambm por uma oposio entre voz e escrita, acredito que no se pode no ter em conta que essa sugesto construda, em primeiro lugar, pela determinao de uma posio do leitor, pela qual qualquer representao da autoria (e da leitura) deve aqui passar, dificultando a oposio criador/criatura e sobretudo o trnsito de uma autoria ficcional para uma representao do escritor. Por outro lado, se retomarmos a figurao do tigreiro como hbrido, monstro enigmtico no centro de um labirinto, vemos o movimento de deslocao do outro para o centro do rancho completado por um intercmbio entre palavra e morte. Esse movimento, essencial para o protocolo narrativo, era j, como vimos, exposio ao perigo da deglutio, do aniquilamento da sua voz no espao desse caador. No entanto, ao longo do texto, torna-se evidente que apenas o tigreiro se sabe orientar na selva, no labirinto. Recordese que as nicas personagens que escaparam com vida ao massacre do jaguar foram conduzidas pelo sujeito para fora do espao de jaguaretama. Matando, consegue o outro abandonar o rancho, o espao do texto, que dependia do tigreiro? Pode esta morte ser uma sada?

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Para o interlocutor, matar , de certa forma, cumprir uma das duas ameaas que pairavam sobre o texto implicando a destruio da fala: a chegada da ona e o tiro da arma sempre referida. Ao mesmo tempo, tambm uma tentativa de libertao dessa sujeio em que se encontrava, formalmente, desde a sua entrada no texto: irrompendo nele, tenta provar a sua existncia. Mas aniquilar o narrador aniquilar a narrao, o espao sobre o qual agiria. No momento em que a aco se precipita sobre a narrao, em que o narrador tenta reagir e desmentir os seus crimes, a voz tenta afastar do rancho, do seu espao de vida, a presena do outro (Sai pra fora, rancho meu, x! Atimbora!, II 852), num esforo desesperado para defender a sobrevivncia impossvel do seu texto. Mas a destruio do narrador, a morte da palavra, por esta claustrofbica coincidncia entre sujeito, espao, voz e texto, , tambm, a destruio da situao narrativa que era condio de existncia para os dois interlocutores. So vrias as indicaes, por parte do narrador, de que a sua partida implicaria a destruio daquele rancho: Ixe, quando eu mudar embora daqui, toco fogo em rancho: pra ningum mais poder no morar. Ningum mora em riba do meu cheiro..." (II 827). Ou: Eh, aqui ningum no pode morar, gente que no eu (II 829). Retomando a analogia entre o comportamento do tigreiro e o da ona, repare-se, mais uma vez, no efeito especular da descrio da morte da ona. A ona chama a si o instrumento de morte: reconhecendo o tigreiro como parente, cede perante a sua arma, que abraa quase com volpia. Mas se o gesto inicial suicida, a ona, ao ganhar conscincia da traio, reage com muita raiva: H, h, c no pensa que assim vagaroso, manso, no. Eh, he... Ona sufoca de raiva. Debaixo da zagaia, ela escorrega, ciririca, forceja. Ona ona feito cobra... Revira pra todo o lado, mec pensa que ela muitas, t virando outras. Eh, at o rabo d pancada. Ela enrosca, enrola, cambalhota, eh, dobra toda, destorce, encolhe... Mec no t costumado, nem no v, no capaz, resvala... A fora dela, mec no sabe! Escancara boca, escarra medonho, t rouca, t rouca. Ligeireza dela doida. Puxa mec pra baixo. Ai, ai, ai... s vez inda foge,
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escapa, some no bamburral, danada. J t na derradeira, e inda mata, vai matando... Mata mais ligeiro que tudo. (II 833). A morte da ona uma morte violenta, mas , antes de mais, uma morte que arrasta outros consigo, uma morte que tenta tambm matar e que implica, tambm, uma transformao. Violncia que se manifesta apenas na presena da morte, violncia desesperada que quer contaminar, com a sua morte, o caador, que no pode ser s passiva. Alm desta descrio, num dos primeiros episdios narrados o narrador confessa ter sido apanhado e ferido por uma ona j ferida de morte, que tentou arrastlo na sua queda no silncio: morreu agarrada comigo (II 835). A morte, em jaguaretama, no submisso: ao mesmo tempo que morre, o animal tenta matar. No se aplicar o mesmo a esta luta pelo texto? Matando o tigreiro, o interlocutor mata tambm o nico espao textual em que tinha existncia, desaparecendo, tambm, com ele. A morte do narrador, a morte da palavra, implica tambm a destruio do espao da histria. nessa letal performao (regressando a Com o Vaqueiro Mariano) que a histria pratica sobre o narrador que a linguagem da morte se desenvolve; mas se a narrao um acto de resistncia por parte do narrador, tambm porque o texto, enquanto histria, no se pode desprender dele; nessa marcao animal do territrio, o tigreiro marca a indissolubilidade do seu vnculo ao texto, e a impossibilidade de ceder, pela aco, a palavra. A tenso que tinha marcado at aqui o conto, que identifiquei como tenso constitutiva da leitura, no pode ser resolvida por uma dissoluo da letra, implicando uma queda na ilegibilidade e a construo de uma aporia que, se no deixa decidir, tambm no permite ao leitor abandonar esse labirinto monstruoso em que penetrou. Mais uma vez, o corpo que pe termo quilo que no pode, razoavelmente, terminar. Nesta luta pela ocupao de um espao, o narrador defende o seu texto, a
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ponto de tornar impossvel qualquer sobrevivncia do texto para alm do seu corpo: disso nos fala, no fundo, a tenso da frmula do dilogo oculto rosiano. No seu difcil jogo de foras, este texto que se entrega ausncia de forma de uma voz encena, plenamente, aquilo a que at agora chammos a impossibilidade de uma histria sem narrador. O lugar da histria, o lugar do conto, ainda o corpo do narrador, que resiste e se impe, ao mesmo tempo que instaura a verdadeira parte do texto naquilo que lhe tenta resistir, ou que a ele se ope. O interlocutor , mais uma vez, aquele que tenta impor um fim. Tentar matar o narrador, tentar ganhar ao narrador o seu texto, precipitar-se num vazio no qual nada nem ningum pode ter lugar: precipitao que , na obra de Rosa, a representao mais violenta dessa interrupo de uma forma sem concluso ou fechamento. Da morte, portanto. Podemos assim pensar noutra cena, exemplar, de uma competio em que est em jogo a sobrevivncia do texto. Refiro-me concluso de The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, texto modelo, no s como paradigma da encenao narrativa da dissociao, mas sobretudo, e o que aqui nos interessa, da articulao entre o questionamento da identidade e o questionamento da possibilidade do texto. Recorde-se apenas o modo como o texto joga com encenaes da escrita para a construo da sua tenso: cartas, testamentos, depoimentos, assinaturas falsificadas. No fundo, a sua construo abertamente representada atravs da imagem, no final de dois captulos (Remarkable Incident of Dr Lanyon e The Last Night), de envelopes selados contendo outros envelopes com instrues para a sua abertura diferida, prevendo, inclusivamente, a complementaridade entre eles para a totalidade do caso. Por duas vezes, o texto chama a ateno do leitor para manuscritos que apenas podero ser abertos aps a morte (de Lanyon e de Jekyll); no caso da carta deixada por Jekyll, o seu depoimento acompanhado de um testamento, sublinhando abertamente a natureza
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pstuma da ideia de texto que assim se multiplica. Todos estes elementos regressam, no final, com o manuscrito de Henry Jekyll que, de forma epilogal, vem preencher a complexa estrutura do texto, com um full statement of the case. A, a confisso pstuma assume-se como depoimento jurdico, no fundo a validar, com a justificao do desaparecimento do corpo, o testamento que nomeia como herdeiro Utterson, figura por excelncia da sobrevivncia do texto porque destinatrio ltimo, e guardio, de todos os manuscritos em causa. A apresentao final, na primeira pessoa, de uma linearidade explicativa concluiria assim o texto; e o suposto final do livro encenado e assinalado pelo prprio Jekyll como uma assinatura que coincide com a morte nas ltimas palavras da novela: Will Hyde die upon the scaffold? or will he find the courage to release himself at the last moment? God knows; I am careless; this is my true hour of death, and what is to follow concerns another than myself. Here, then, as I lay down the pen, and proceed to seal up my confession, I bring the life of that unhappy Henry Jekyll to an end. (Stevenson 1994: 88) No entanto, a prpria estrutura da narrativa invalida qualquer sentido de closure, bloqueado pelo facto de o leitor estar j na posse de factos posteriores morte de Jekyll e, sobretudo, de Hyde, sem no entanto chegar nunca a saber o que se passou entre o final do depoimento e o suicdio final. A essa invalidao da concluso acrescenta-se, no episdio que aqui nos interessa, a sugesto de que a prpria sobrevivncia do texto implica uma diferena temporal entre o seu fim e a verdadeira concluso dos acontecimentos: Nor must I delay too long to bring my writing to an end; for if my narrative has hitherto escaped destruction, it has been by a combination of great prudence and great good luck. Should the throes of change take me in the act of writing it, Hyde, will tear it in pieces; but if some time shall have elapsed after I have laid it by, his wonderful selfishness and circumscription to the moment will probably save it once again from the action of his ape-like spite. (idem: 87-88)

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A novela, nesta passagem, encena exemplarmente o lugar suspenso da escrita, e da narrativa, perante a iminncia de uma metamorfose que implicar a morte. Tal como no conto de Rosa, a transformao determinar ao mesmo tempo a morte do sujeito (dos sujeitos em competio, num duplo suicdio26) e a morte do texto. A sobrevivncia deste reside num gesto extremo de defesa por parte do seu narrador salvar a escrita do outro, e de uma interferncia entre aco e narrao, o seu movimento desesperado. Mas um movimento com uma direco especfica: a escrita encaminha-se para uma concluso, para o momento em que, selada, ser inatingvel para Hyde. O que Jekyll tenta assim fazer, com o seu texto, inscrever o manuscrito na srie de legados que constituem a narrativa: textos que sobrevivem morte e que tm na morte a condio da sua transmisso. Para que isso possa acontecer, imprescindvel que Jekyll mantenha o controle do corpo durante o tempo necessrio para ser ele, atravs da escrita, a pr fim sua prpria vida para ser ele a concluir a sua narrativa, selando-a e fechando-a a qualquer interferncia exterior. A partir do momento em que a assinatura concluda, e em que o texto decreta a morte do sujeito, a narrativa de Jekyll est protegida contra a morte, no corpo de Hyde, que em rigor j no o poder afectar. Nessa morte encenada, Jekyll procura definitivamente afirmar a autoria de uma concluso que separa de si, definitivamente, Hyde, libertando o seu nome do terrvel nome do duplo. S que essa fico de morte, como a narrativa bem sublinha, deixar a morte de Jekyll desprovida de um corpo, do mesmo corpo que Utterson e Poole procuraro em vo no gabinete fechado. A separao entre escrita e aco que Jekyll est, desesperadamente, a tentar traar tem como preo a negao do corpo vivo do narrador; decretada a morte na linguagem, sobra um corpo cuja morte que ter de ficar de fora, no intervalo obscuro e sem testemunha entre a morte de Jekyll e a de Hyde. O testamento transformado em
The final suicide is thus fittingly a dual effort: though the hand that administers the poison is Edward Hydes, it is Henry Jekyll who forces the action. Never before have they been so much one as when Hyde insures the realization of Jekylls deathwish. (Saposnik 1971: 724).
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carta a figura desse diferimento que ilude a morte, ao ser por ela legitimado, que sela definitivamente a entrega do corpo de Jekyll e a submisso, ou mesmo subsuno, a Hyde. na transformao da sua narrativa em testamento que Jekyll se rende definitivamente ao outro, e morte e o que parecia inicialmente um gesto de resistncia transforma-se, nessa coincidncia entre assinatura e closure, numa entrega radical do corpo. Assim, a temporalidade desta cena final ajuda-nos a perceber melhor o que se passa nessa concluso que no conclui de Meu Tio o Iauaret. Acentumos j o facto de a narrativa se constituir por casos de caa que so contados ao mesmo tempo em que a prpria cena do conto se transforma, ela prpria, numa caada. O curto-circuito narrativo que o final institui ao mesmo tempo prolonga os casos narrados e faz com que irrompam na narrao sendo que essa irrupo incompatvel com a prpria ideia de narrao. Veja-se uma sugesto de Mark Currie a propsito de Jekyll and Hyde: This is what I am calling the narratological shipwreck: the collision of the past and the present after which narration is no longer possible. And if the narrative depends for its very existence on the separation of the narrated past and the narrating present, it also depends for its very existence on the separation of Jekyll and Hyde. Part of Jekylls urgency in the closing paragraphs is to bring the narrative to an end because his transformation into Hyde will entail its destruction. (Currie 1998: 123).

Do mesmo modo, em Meu Tio o Iauaret, a materializao da ona no texto implica a negao da possibilidade de continuao do texto. A morte, o tiro, a metamorfose aparecem como figuras desse curto-circuito, antes do qual o tigreiro tenta, como Jekyll, garantir a sobrevivncia do seu texto. Mas para o sobrinho do jaguar nenhuma closure, ainda que ilusria, est reservada: a aco precipita-se, de facto, sobre a narrao, e o texto s pode cair nas reticncias finais, na instituio do vazio que torna

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paradoxal a existncia de um texto aps o desaparecimento daquilo que o fazia27. A coincidncia entre texto e voz no permite o regime testamentrio do conto de Stevenson; nem o narrador de Rosa est disposto a sacrificar, prospectivamente, o corpo e o domnio do territrio em nome da sobrevivncia do seu nome, que alis no tem. Num certo sentido, este narrador representa a recusa extrema do limite e a identificao total entre narrador e narrao: a mesma indefinio de fronteiras que caracterizava a sua posse de jaguaretama aplica-se progresso inevitvel da sua narrao, que recusa libertar o interlocutor da posio ambgua em que se encontra. Como nos casos que j comentmos, o outro, aqui, aquele que deseja e impe um fim: e em nenhum outro texto de Rosa to evidente que provocar a concluso de uma forma sem formato equivale a um acto de violncia sobre o corpo, que pode, como no episdio do rapaz pescador de Riobaldo, dar erro contra a gente (II 59). Desse sacrifcio depende a possibilidade de concluir, parece dizer-nos o exemplo de Henry Jekyll. Mas num caso em que voz e texto se fundem no corpo vivo e resistente do narrador, no h mediao possvel, nem a morte pode ser dita na escrita que a impe: levada at ao limite, a voz s pode ser silenciada pela morte que a interrompe, bloqueando a sobrevivncia de qualquer legado ou testemunho.
Pode ser interessante pensar, a propsito deste curto-circuito, num exemplo a que Zizek recorre para ilustrar o carcter paradoxal do real em Lacan: There is a well known science-fiction story (Experiment by Fredric Brown) that illustrates this point perfectly: Professor Johnson has developed a small-scale experimental model of a time machine. Small articles placed in it can be sent into the past or the future. He first demonstrates to his colleagues a five-minute travel into the future, by setting the future dial and placing a small brass cube on the machines platform. It instantly vanishes and reappears five minutes later. The next experiment, five minutes into the past, is a little trickier. Johnson explains that having set the past dial at five minutes, he will place the cube on the platform at exactly three oclock. But since time is now running backwards, it should vanish from his hand and appear on the platform at five minutes to three that is, five minutes before he places it there. One of his colleagues asks the obvious question: How can you place it there, then? Johnson explains that at three oclock the cube will vanish from the platform and appear in his hand, to be placed on the machine. This is exactly what happens. The second colleague wants to know what would happen if, after the cube has reappeared on the platform (five minutes before being placed there), Johnson were to change his mind and not put it there at three oclock. Would this create a paradox? An interesting idea, Professor Johnson said. I had not thought of it and it will be interesting to try. Very well, I shall not... There was no paradox at all. The cube remained. But the entire rest of the Universe, professors and all, vanished. (Zizek 1989: 161-162).
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E se esse prolongamento ltimo da fala at ao salto para o vazio, at s reticncias que a prolongam para o branco da pgina, nos devolve figurao do fim da pea em Pirlimpsiquice, na diferena entre os dois textos que se situa uma das questes essenciais para o estatuto deste Meu Tio o Iauaret. O conto de Primeiras Estrias atribua ao drama do agora, aco impossvel e ilimitada, a moldura de uma narrao retrospectiva. Esse gesto do ponto dependia, como vimos, de um suicdio simblico que sacrificava o drama irrepetvel e irrepresentvel em nome da narrao. O que Meu Tio o Iauaret parece encenar, na sua construo labirntica que bloqueia a transgresso das fronteiras do texto, talvez o movimento inverso: a negao, violenta e extrema, da narrao, na interferncia entre linguagem e aco. Porque o conto, no podendo narrar a morte, presentifica-a,28 como queria Haroldo de Campos; mas no como acto completo, no como metamorfose cumprida, e sim como aquilo que a morte : sbita interrupo, irremediavelmente sempre presente. Assim, talvez o lugar exemplar, pstumo e problemtico de Meu Tio o Iauaret tenha a ver precisamente com esta construo impossvel que o texto prope: a coliso entre passado e presente, entre narrao e aco, que o final encena, torna impossvel a sobrevivncia do texto, do espao da competio entre narrador e interlocutor. E talvez a ausncia de testemunho seja mais radical do que comemos por ver, no podendo localizar-se apenas no narrador como figura em nome de quem ningum pode falar. O desaparecimento brusco do texto, inenarrvel precipitao no indefinido, ao eliminar o narrador, que era tambm o guia, afecta necessariamente tambm o outro, preso no vazio que criou. E talvez a resida a figurao mais forte do efeito perturbador, para o leitor que nele se reflecte, de uma ausncia de closure. Porque perante este naufrgio sem espectador da voz que dava corpo a narrador e interlocutor, alguma coisa sobra,
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All narration is memorial, it remembers a death that has always already happened (Miller 1992a: 249).

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materialmente, de que o leitor no se pode libertar. Como afirma Bruce Clarke: "When modern literary metamorphs like Lamia, Dr. Jekyll, and Gregor Samsa disappear or die, they leave no redemptive traces, only a moral enigma and the corpse of the daemonic form. (Clarke 1995: 45). Encontramos assim uma resposta para a indicao de Haroldo de Campos de que algo ganha corpo, fisicamente, nesta linguagem em desagregao. Talvez a marca mais extrema de uma concluso que no conclui, imposta em nome de um fim que se apresenta, tambm aqui, como manifestao da lei, seja a converso do texto em testemunho, impossivelmente presente, da sua prpria extino.

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II.

O livro pode valer pelo muito que nele no deveu caber

I have several such dried bits, which I use for marks in my whale-books. It is transparent, as I said before; and being laid upon the printed page, I have sometimes pleased myself with fancying it exerted a magnifying influence. At any rate, it is pleasant to read about whales through their own spectacles, as you may say. Herman Melville, Moby Dick

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Circuito

and having heard that when a man in a forest thinks he is going in a straight line, in reality he is going in a circle, I did my best to go in a circle, hoping in this way to go in a straight line. For I stopped being half-witted and became sly, whenever I took the trouble. And my head was a storehouse of useful knowledge. And if I did not go in a rigorously straight line, with my system of going in a circle, at least I did not go in a circle, and that was something. Samuel Beckett, Molloy

Eu conto; o senhor me ponha ponto1. Na pausa autoral que, a meio da novela Cara-de-Bronze, interrompe a narrao, encontramos aquela que talvez a mais directa negao de uma estrutura teleolgica na narrativa rosiana. Na advertncia que a constitui e que a transforma em indicao de leitura, a morte e a ideia de um final so postas directamente em relao. Sabemos j, pelo exemplo do moo de fora de Riobaldo, que real da vida e narrao no so elementos incompatveis numa oposio entre vida e arte, mas partilham ambos uma mesma tenso com a necessidade de um fim; da decorria, como temos vindo a ver, a sobreposio entre comentrio do mundo e o comentrio das

Grande Serto: Veredas (II 337)

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estratgias de representao. Esta pausa constri-se na mesma oscilao entre metanarrativa e referencialidade: No. H aqui uma pausa. Eu sei que esta narrao muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difcil: como burro no arenoso. Alguns dela vo no gostar, quereriam chegar depressa a um final. Mas tambm a gente vive sempre espreitando e querendo que chegue o termo da morte? Os que saem logo por um fim, nunca chegam no Riacho do Vento. Eles, no animo ningum nesse engano; esses podem, e melhor, dar volta para trs. Esta estria se segue olhando mais longe. Mais longe do que o fim; mais perto. (I 687).

Voltaremos mais tarde a Cara-de-Bronze, e ao seu lugar central na obra de Rosa; no entanto, neste ponto do percurso, importante comear a interrogar as implicaes da associao que estabelece. Querer chegar depressa a um final, no excerto, equivale a viver querendo que chegue o termo da morte. J encontrmos, nas cenas de resistncia em que nos concentrmos na primeira parte, vrias instncias desta vinculao, algumas das quais na figurao de um suicdio; vinculao, como tentmos sublinhar com Meu Tio o Iauaret, que no se pode separar da natureza dialgica desta concepo de narrativa. Da a importncia da dimenso reflexiva de muitos destes exemplos, que se alimentam todos, mais ou menos directamente, de construes en abme de cenas de leitura ou de interlocuo. Mas este excerto acentua, no momento em que recorre figura da seleco (alguns, os que, eles, esses, por oposio a esta estria) a articulao dessa relao com uma tica da leitura. A posio do leitor excludo , aqui, a posio daquele que impe, ou procura impor, um fim a posio, se quisermos recuperar as linhas traadas, dos ouvintes de Joana Xaviel, do rapaz pescador de Riobaldo, do ponto de Pirlimpsiquice e, sobretudo, do interlocutor do conto de Estas Estrias. Erro contra a gente, em Grande Serto: Veredas, ou engano, neste excerto, de que Meu Tio o Iauaret ilustra exemplarmente as consequncias.

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Nesse gesto o excerto abre tambm a possibilidade de uma indicao de leitura: Mais longe do que o fim; mais perto a prescrio da histria contra uma ideia de leitor e uma ideia de leitura; e o movimento que melhor descreve o que tentmos caracterizar atravs dos diferentes exemplos escolhidos: o modo como se encena uma insuficincia da forma uma falta, a ausncia de uma verdadeira parte, a sua insustentvel incompletude vinculada materialidade que a constitui, ou ao corpo da histria. O que esta cala, furta, no diz ou esconde, e que encaminha leitores e ouvintes para o gesto violento da imposio de um final, apenas pode residir aqum, para usar outra expresso-chave de Cara-de-Bronze a que voltaremos. essa a tenso de base que os exemplos ilustram, luz do presente excerto: a reaco dos leitores a uma falta traduz-se na imposio, histria, de uma concluso, suplemento violento que s pode coincidir com uma morte, um suicdio, um naufrgio narratolgico em que a closure, afinal, negada. Na indicao desta pausa, percebemos que num movimento ao mesmo tempo prospectivo e regressivo mais longe do que o fim, mais perto que se situa a problematizao dos limites na histria rosiana como ponto de partida para outra ideia de forma. Porque, como continuarei a tentar demonstrar, atravs da materializao do termo como lugar de tenso, esta ir instituir a sua necessria, imaterial (O Riacho do Vento), continuao. Talvez o que se passa nesta fala sem forma no esteja longe do que afirma o narrador de The Unnamable: One starts things moving without a thought of how to stop them. In order to speak. One starts speaking as if it were possible to stop at will. It is better so. The search for the means to put an end to things, and to speech, is what enables the discourse to continue. (Beckett 1991: 299).

S que essa possibilidade, constituda pela tentativa da sua negao, , em Rosa, sempre relacional. O desvio que estas histrias praticam, e que Cara-de-Bronze pe

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em evidncia, passa ento pela recusa daquilo que vimos referido como transmisso, ou seja pela construo, no jogo que estes textos instituem, do dilogo como figura no de uma unio nel suo bisogno di conoscenza reciproca, di reciproche relazioni, como na metafrica da legibilidade do mundo (Blumenberg 1984: 123), e sim de uma violenta tenso entre um querer saber e um no (poder) dizer de que a prpria leitura figura, ou entre um querer continuar, sem delimitao ou forma, e o gesto desesperado de imposio de um limite. Nesse movimento a estria rosiana pode-se descrever como sem formato ainda que sob a forma da narrativa; e nesse quadro, podemos adiantar, prepara-se na estria rosiana uma performatividade, ou uma operatividade, para usar um termo mais prximo daquele a que Rosa recorre, que ultrapassa a inteno de comunicar. Nestas primeiras cenas de resistncia, o narrador, como vimos, a impedir a closure e a defender a histria daqueles que nela procuram chegar depressa a um final. Figura da abertura da histria, que se nega e que a nega a uma imposio definitiva, e aniquiladora, do sentido faltante, o narrador defende-a com o corpo, verdadeiro lugar da tenso que faz a narrao. O narrador de Pirlimpsiquice, no entanto, chama a ateno para outra configurao que aqui se revela. A, ainda o corpo que pe termo representao, quando o fim parecia impossvel ou parecia poder ser diferido eternamente: mas o corpo do ponto como figura da imposio do fim. Negativo das outras figuras de resistncia que aqui encontramos, o ponto de Pirlimpsiquice resiste a um contnuo que declara impossvel, terminando-o pelo salto que bruscamente interrompe. Por outras palavras, o narrador percebe claramente que a nica forma de se libertar do torto encanto da pea sem tempo decorrido a entrega, o sacrifcio, do seu corpo, desse mesmo corpo que se mostrou disponvel para a transformao da pea contra a sua vontade, ou contra o seu controlo. esse, como

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vimos com o episdio de Joana Xaviel, o lugar da histria, contra o leitor e, neste caso, contra o prprio narrador cindido no seu papel: o que o ponto, feito outro, procura com o seu suicdio encenado assim uma libertao da pea. No fundo, o ponto sabe aquilo que o interlocutor de Meu Tio o Iauaret no parece poder saber: destruir o corpo equivale a destruir o lugar da histria, ou seja o espao da sobrevivncia. No era de outra coisa que falava Riobaldo no momento em que advertia para os perigos de uma geometria imposta ao que nem acaba. Querer o fim , ento, querer uma libertao; e procurar libertar o ouvinte, interlocutor, ou leitor do espao em que se enredou o gesto da closure, e a funo da forma, que a histria desafia. Mas no gesto suicida do ponto, a que voltamos agora para uma ltima passagem, torna-se clara a sua funo de representante do texto, ou de uma ideia de texto e de forma; o que o aproxima de outra figura destacada na primeira parte deste trabalho: o moo de alta instruo a quem Riobaldo contou o caso de Davido e Faustino. Recorde-se aquilo que j assinalei: a necessidade de um final diagnosticada pelo moo de acordo com um modelo (como alis era em relao a um modelo que a histria de Joana Xaviel se apresentava desigual das outras). o livro, como figura de uma forma concluda, delimitada e apreensvel, produtor de totalidade2, que determina a desadequao do final proposto por Riobaldo (e pelo real da vida) para o seu caso. O livro, tal como a pea, com os seus outros movimentos, aqui o horizonte ltimo de um desejo de final, completude e sentido. Se quisermos voltar a uma muito visitada dicotomia rosiana, figura de uma histria/Histria contra a qual a estria, campo do possvel, se faz. Pense-se apenas na caracterizao que, no prefcio em causa, se faz da estria como irm, s vezes, da anedota:

Daltro canto, il fascino della potenza che il libro riassume in s in quanto produttore di totalit. La forza di comprendere come unit cose disparate, lontane, contradittorie, estranee o familiari, o perlomeno la forza di darlo a intendere, un elemento essenziale del libro, quale che sia la materia sulla quale esso proietta questa unit. (Blumenberg 1984: 12).

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A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota como um fsforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro emprego a j usada, qual mo de induo ou por exemplo instrumento de anlise, nos tratos da poesia e da transcendncia. (II 519). A estria, mais uma vez, faz-se contra a finalidade, relanando aquilo que se esgotou, ou fechou, no uso comum: contra o livro lido e descartado, poderamos dizer. O episdio de Grande Serto: Veredas leva-nos assim a perguntar se no nessa oposio entre caso e livro (aquilo que exige um final caprichado) que podemos procurar o lugar de explicitao da tica da leitura que o excerto de Cara-de-Bronze anunciava. Como afirma Abel Barros Baptista a propsito da relao entre livro e romance: a exigncia de um princpio e de um fim claramente delimitados e a exigncia de uma linha recta que os una, sem desvios nem rupturas, na unidade de uma aco completa, decorrem de uma exigncia lanada ao romance em nome do livro. (Baptista 1998: 53). No fundo, a figura ltima destas sequncias encaixadas que expem os limites das histrias dentro da estria, e do texto, a forma do livro. Assim, teremos de ir a outros lugares da obra de Rosa se quisermos seguir esta passagem, sobretudo porque anuncia um novo campo de tenso em que as oposies que at agora nos ocuparam se reconhecem numa ideia de forma: a resistncia que a histria ope ao livro, ou ideia de livro, ou, mais precisamente ainda, o da resistncia que a ideia de literatura como estria que aqui se vai delineando introduz no seio do prprio livro. Podemos arriscar que no modo como os livros de Rosa do outro emprego forma do livro que encontramos acima descrita, e que encontrmos nas encenaes da recepo que at agora nos ocuparam que se situa o eixo de uma relao entre livro e narrao em Guimares Rosa e, consequentemente tambm, entre escrita e oralidade.

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A hiptese, a desenvolver nas articulaes desta segunda parte, passa necessariamente por um problema que j identificmos: o facto de histria e texto no coincidirem, a histria sendo faltante e por isso mesmo transbordando, digamos, para fora do texto sem no entanto sair inteiramente dele, quer invalidando o limite como delimitao entre interior e exterior (pense-se ainda no caso da histria de Joana Xaviel, que rapidamente v o seu fim transformado em meio pelos seus ouvintes), quer, literalmente, invadindo a margem e perturbando essas mesmas distines que o que veremos acontecer nos exemplos desta segunda parte. Nesse encontro da histria com a margem nasce, podemos diz-lo j, o livro de Rosa como dispositivo que reconfigura no livro uma temporalidade alheia sua prpria noo: recursiva, generativa. Antes de entrarmos, porm, nos problemas da configurao do livro, um pequeno exemplo ir permitir-nos focar a articulao entre o texto (aqui, pela primeira vez, explicitamente encenado como tal) e o circuito do seu relanamento.

Recados Nas duas viagens entrelaadas (Wisnik 1998: 160) que constituem o conto O Recado do Morro a viagem literal da comitiva guiada por Pedro Orsio e a viagem do enigmtico recado, gritado pelo morro aos ouvidos surdos do Gorgulho e transmitido por outros seis mensageiros at ganhar a forma de cano , o texto encena a criao de uma cadeia de recadeiros que vo alterando e compondo o aviso de morte traio at que descreva e determine a situao que vaticinava. Essa sequncia de estaes de transmisso, para usar a expresso de Maurice Capovilla (1964: 137), ilustra de forma clara a resistncia da narrao que at aqui perseguimos: o recado do morro da Gara para Pedro Orsio passa por sete intermedirios que imprimem aos elementos dispersos

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do aviso marcas pessoais ou relativas situao em que o receberam, deste modo invalidando qualquer neutralidade do transporte que a funo de mensageiros poderia fazer supor. Tal como no exemplo de Com o Vaqueiro Mariano, a mensagem no se desprende apenas do narrador, nem poder ser por ele plenamente transmitida: o mensageiro resiste, no se dilui na transmisso, imprimindo-se nela e constituindo aquilo que transmite. Na imagem de Benjamin, traces of the storyteller cling to the clay vessel (Benjamin 1992a: 91). O movimento determinante do conto, no entanto, coloca essa manipulao aparentemente desviante ao servio de uma operatividade do aviso alm da transmisso3, que pode irromper plenamente na aco final como sua previso e descrio reconhecvel pelo protagonista. O desvio determina o reconhecimento e a temporalidade perturbada de uma profecia que evolui paralelamente aco, ao mesmo tempo que dela se alimenta. Do reconhecimento da profecia como profecia e do protagonista como seu objecto depender a sobrevivncia de Pedro Orsio; da caracterizao do modo como o aviso se constitui depende a ideia de transmisso que aqui nos interessa. Na posio central da cadeia de sete mensageiros, no ponto mdio do texto, encontra-se a figura do Guegue, um especialmente, bobo da fazenda. Na srie de marginais da razo4 que constituem os anis da corrente por que passa e se transforma o recado, o Guegue tem lugar determinante, situando-se entre Joozezim e Nomindomine, que far a transposio da mensagem para o espao do arraial. No entanto, o Guegue distingue-se das outras personagens desta srie por se enquadrar num

como se o rudo que ameaa a propagao da mensagem tivesse o efeito exatamente inverso ao esperado: a mensagem, progressivamente deformada, aproxima-se cada vez mais de sua verdade. (Prado Jr. 1985: 219); Rosa a Bizzarri: E a cano, o recado, opera, afinal, funciona. (Rosa 2003a: 92). 4 A expresso de Rosa, na mesma carta a Bizzarri (idem, ibidem).

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contexto menor, ou mais modesto bobo5, no partilha a loucura visionria ou acentuadamente excntrica dos outros mensageiros e , de facto, a personagem que mais prxima est da criana, de quem recebe o ensinamento do recado. O aspecto infantil do Guegue consonante com o seu papel de ajudante: Esse um o Guegue que outro nome no tinha; e nem precisava. O Guegue era o bobo da Fazenda. Retaco, grosso, mais para idoso, e papudo um papo em trs bolas meando emendas, um tanto de lado. No tirava da cabea um velho chapu-de-couro de vaqueiro, preso por barboqueixo. Babava sempre um pouco, nos cantos da enorme boca com um ou dois tocos amarelos de dentes. Uma faquinha, ele no estando trabalhando, figurava com a dita na mo. E tinha intensas maneiras diversas de resmungar. Mas falava. Ah, era um especialmente, o Guegue! dona Vininha e seu Nhoto contavam, para se rir. Tratava dos porcos de ceva, levava a comida dos camaradas na roa, e cuidava a contento de todo servio de terreiro, prestava muito zelo. (I 638)

O Guegue o recadeiro, tarefeiro, que faz pequenas coisas e, sobretudo, faz de intermedirio entre Dona Vininha e a filha, Lirina. No tem outro papel, estava sempre querendo fazer alguma coisa de utilidade (I 638), e ser essa a funo que reproduzir na economia do conto. Rico de seus movimentos sem-centro (I 638), o Guegue encontrar o mensageiro seguinte na figura visionria de Nomindomine, que l no recado relatado a confirmao do fim do mundo. Desafiado para vir pregar a palavra pela salvao dessa humanidade sacana, o Guegue, o ajudante, s poder responder que no: U, eu no posso. Tenho de levar recado e boio de doce, nh Dona Vininha mandou... Posso no. (I 643) E no discurso de Nomindomine, j na igreja, o Guegue encontra enfim a sua descrio: um anjo papudo e idiota (I 659). Figura marginal por definio, tentador inscrev-la naquele grupo de personagens de Kafka, os ajudantes, a quem, segundo Benjamin, se destina a
De guegue, noutro contexto, Rosa dar uma definio a Bizzarri, quando interrogado sobre o sentido da palavra, aplicada ao cachorrinho de Rosalina, na chegada de Llio ao Pinhm: Aqui: finrio, manhoso. Melhor: que parece bobo, mas na realidade muito esperto, velhaco. (Rosa 2003a: 63)
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salvao: Kafkas assistants are of that kind: neither members of, nor strangers to, any of the other groups of figures, but, rather, messengers from one to the other. Kafka tells us that they resemble Barnabas, who is a messenger (Benjamin 1992b: 113). A marca destas personagens parece ser o modo como se furtam a qualquer ordem ou hierarquia, pela sua instabilidade constitutiva, pelo seu movimento incessante e no orientado: none has a firm place in the world, firm, inalienable outlines (idem: 113-114). Nessa mobilidade, os ajudantes aproximam-se dos mensageiros, mas so, essencialmente, mensageiros sem relao com a mensagem, representando apenas o trnsito, a actividade assdua de intermediao e de transposio. Deles dir Agamben: Qualcuno, non si sa bene chi, ce li ha assegnati e non facile toglierseli di dosso. Insomma, noi non sappiamo chi siano, magari sono degli inviati del nemico (il che spiegherebbe perch non fanno altro che appostarsi e spiare). Eppure somigliano ad angeli, a messaggeri che ignorano il contenuto delle lettere che devono recapitare, ma il cui sorriso, il cui sguardo, la cui stessa andatura sembrano un messaggio. (Agamben 2005: 31).

Numa novela sobre a transmisso de um recado, encontramos uma personagem que tem na funo de recadeiro a sua definio: o Guegue transporta bilhetes. Como o Mittler das Afinidades Electivas, o Guegue est destinado a ser a personagem do meio (e no entanto, como vimos, sem-centro), que se esfora por mediar e que tem nessa mediao a sua definio, quando na verdade provocar apenas o desencontro e o desvio6. , mais uma vez, uma figurao reflexiva (e central) do tema do conto. Reparese, no entanto, que o episdio do Guegue apresenta uma das poucas figuraes da escrita em Corpo de Baile: ao longo do livro, a escrita aparece sob a forma de carta (a

Sobre a personagem no romance de Goethe cf. Elizabeth Petuchowski, Mittler as Comment: An Observation on Goethes Die Wahlverwandshaften (Petuchowski 1982) e J. Hillis Miller, Ariadnes Thread (Miller 1992a: 176-177). rico Coelho, numa comunicao sobre Corpo de Baile, aponta brevemente o paralelo: Goethe, em As Afinidades Eletivas, confere ao personagem Mittler (cujo nome alude em alemo a seu papel central na trama), outro provvel avatar literrio do fugidio Mercrio, a funo de mediar os conflitos e oficiar as reconciliaes entre os protagonistas. (Melo 2006: 240 n. 2).

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carta em Uma Estria de Amor, as cartas em Buriti), mas raramente exibida, ou tematizada. Sem informao especfica em relao ao seu contedo, recados e cartas so sempre descritos com base no modo como chegam, circulam e so transmitidos sendo por esse trnsito redefinidos e determinados. No prprio O Recado do Morro, como mostrou Bento Prado Jr., o analfabetismo, a par da loucura, cultivado como competncia de leitura ler em profundidade (o verivrbio) s possvel para quem no sabe ler a superfcie da letra (Prado Jr. 1985: 199) ; e reconhecemos essa afirmao no contraste entre o recado que oralmente ir viajar at forma da cano e as cadernetas de Olquiste/Alquiste, tantas vezes aproximadas pela crtica das do prprio Rosa. Os recados do Guegue, como veremos, esto fora dessa contraposio, ainda que se alimentem dela. O que faz deles recados especiais , assim, a sua posio central no texto de Rosa que mais destaca a importncia do trajecto para a configurao do sentido e do efeito da mensagem, bem como para a sobredeterminao da sua temporalidade. No plano maior, ser o trnsito do recado a torn-lo disponvel para uma reconstruo formal que absorva o desvio, para uma formao, atingindo finalmente (e no momento certo: no embate mtico que concretiza o texto da cano) a forma que o tornar inteligvel ao seu destinatrio. O atraso, a errncia, medeiam entre o envio e a recepo, determinando essa transformao significativa. Disso o exemplo

microscpico do Guegue ser figura; mas tambm, repare-se, de um outro movimento que identifica aqui claramente as implicaes do lugar do meio. Veja-se a descrio do transporte: Principalmente, ele era portador de bilhetes, da me ou da filha, rabiscados a lpis em quartos de folha de papel. Mais pois, ele apreciava tanto aquela viajinha, que, de algum tempo, os bilhetes depois de lidos tinham de ser destrudos logo; porque, se no lhe confiavam outros, o Guegue apanhava mesmo um daqueles, j bem velhos, e ia levando, o que produzia confuso. A outros lugares, o Guegue nem sempre sabia ir. Errava o caminho sem erro, e se desnorteava devagar. Levavamno a qualquer parte, e recomendavam-lhe que marcasse ateno, ento ele ia
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olhando os entressinados, forcejando por guardar de cr: onde tinha aquele burro pastando, mais adiante trs montes de bosta de vaca, um an-branco chorrchorr-cantando num ramo de cambarba, uma galinha ciscando com a sua roda de pintinhos. Mas, quando retornava, dias depois, se perdia, xingava a me de todo o mundo porque no achava mais burrinho pastador, nem trampa, nem pssaro, nem galinha e pintos. O Guegue era um homem srio, racional. (I 638). No centro do trajecto, a prpria ideia de percurso ameaada pelo curto-circuito que a figura do Guegue, por duas ordens de razes, representa. O trajecto no certo, no primeiro caso porque tem o seu fim em si prprio, no prazer da viajinha entre dois pontos fixos, sujeitando-a repetio permanente que desloca os elementos no quadro do conhecido, abrindo, por efeito do trajecto perturbado, o mesmo texto a uma variao incontrolvel de sentido; no segundo caso, precisamente porque a repetio impossvel a noo de referncia do mensageiro incompatvel com a mobilidade do mundo que explora: o resultado , evidentemente, o da perturbao da funo comunicativa cartas que chegam fora de tempo, gerando confuso, ou cartas que no so entregues porque o mensageiro introduz o erro e a errncia no trajecto, chamando a ateno para a sua essencial mobilidade (e instabilidade). Acentuei j a orientao unvoca do recado, no seu processo de formao que o afasta progressivamente da origem (o morro), aproximando-o, de passagem em passagem, da interferncia final entre narrativa e aco que tem lugar na cena do reconhecimento. Esse percurso tem apenas um sentido. No entanto, o elo central da corrente que o compe um recadeiro que perturba qualquer noo de direco por ser, por definio, a figura de um movimento de ida e volta, incessante e sem termo razovel (ia levando). Talvez a natureza do desvio e da mensagem, em O Recado do Morro, se revele plenamente na construo deste centro que invalida, por si, qualquer teleologia em que a construo do recado assente: um centro em que a direco do recado, por momentos, se suspende, nas mos de um

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recadeiro cuja funo a perturbao, pelo movimento, de qualquer completamento do sentido. Regressando segunda causa de desvio: o que parece atribuir ao bobo a sua seriedade uma marca de inverso que constitui talvez toda a base da valorizao da personagem marginal em Rosa: a percepo de uma outra lgica, renovada, que o olhar gasto no permitiria ver. Todo o jogo de inverses que domina as Primeiras Estrias assenta nesse princpio, tal como a ideia de uma lngua em transformao, em que cada palavra usada como se (...) tivesse acabado de nascer (Lorenz 1991: 81), vinculada a uma negao do lugar comum. Como afirma Joo Adolfo Hansen: No mito de Rosa, a intensa e amorosa valorizao dos loucos, dos dbeis, das crianas, dos seres constitudos de exceo faz personagens os que, como um impensado, a cultura dominante desclassifica como irrepresentveis, pois irresponsveis sem competncia para falar. (...) [P]ersonagens despossudos de qualquer competncia erigem-se sujeitos de discursos e aces que, no seu nonsense que psicografa as vozes da ausncia, estabelecem pelo avesso os limites do discurso tido como de bom-senso, o universal, adaequatio orationis ad rem. Produzindo personagens, pois, em cujas falas a relao nome/coisa arbitrria (do ponto de vista do arbitrrio em uso que esqueceu sua prpria conveno), Rosa evidencia o convencional de qualquer fala: jogo de linguagem, o discurso das personagens de exceo desloca as designaes correntes, propondo como nome para a designao outros nomes, outras significaes que o uso estabelecido no admite, por impossveis ou inverossmeis. (Hansen 2000: 65).

Do mesmo modo, o que faz do Guegue uma figura relevante para a construo do mapa de O Recado do Morro a sua subverso da noo de referncia: os pontos que o Guegue fixa so pontos mveis, so os pontos que determinam a vida (a natureza) na sua mobilidade. E por aco dessa mesma mobilidade, so os pontos que no permanecem nem permitem a repetio. No regresso ao caminho j visto, o olhar do Guegue incapaz de ver o que permanece igual, o lugar-comum apenas v a ausncia do que viu. O Guegue fixa apenas e exclusivamente o que no , nem pode ser, fixo.

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Trata-se de uma representao explcita daquilo a que em Grande Serto: Veredas se chamar mundo movente, atravs da permanente variao dos topnimos e alterao do mapa, confinando o lugar sua existncia subjectiva, de acordo com o modo como, no Serto, o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar (II 22). Como a mais importante dessas alteraes claramente demonstra, a consequncia imediata dessa variao o impedimento, o bloqueio, do regresso, da errata, de uma aco correctiva sobre o vnculo entre espao e tempo: as Veredas Mortas transformadas em Veredas Altas. Talvez uma figura prxima desta perturbao da referncia seja Z Bebelo, na sua apresentao irnica, sujeito muito lgico que cega qualquer n (II 64), homem que no da terra (II 169), personagem, recorde-se, ligada a Hermes e a uma recursividade sem termo7: O passado, para ele, era mesmo passado, no vogava. E, de si, parte de fraco no dava, nenho, nunca. Certo dia, se achando trotando por um caminho completo novo, se exclamou: - Ei, que as serras estas s vezes at mudam muito de lugar!... srio. E era. E era mas que ele estava perdido, deerrado de rota, h, h. (II 54). A inventividade de Z Bebelo move montanhas, transformando em mvel o que fixo e imutvel. O ponto de orientao, para ele, ser sempre o sujeito, em relao ao qual o mundo se organiza. Assim, na cena do tribunal, o facto de se encontrar preso s pode significar o mundo revelia. O Guegue, ao contrrio, figura sem-centro, confrontado com um mundo que no permite a repetio das suas marcas, indigna-se, xinga a me de todo o mundo: o mundo falha a referncia, porque aquilo que o faz mundo, para o Guegue, no parece poder permanecer8. Assim, tal como Z Bebelo, mas

Cf. Roncari 2004: 276-277. O texto d-nos outro exemplo da ateno desviante do Guegue: Primeiro, o Guegue se permanecia, temperado, de certo repassava, descascava suas idias, isso para ele sempre ainda mais difcil. Aquela vaca junqueira se deitou, para remoer seus dentes. A mais, uma pequena maloca de gado deu de aparecer um touro e umas novilhas, que de distncia espiavam queriam da agua da lagoinha. Se feriu, das brechas da encosta, um rente grito: um casal de maitacas saiu pelo ar. A gente olhava para o cu, e esses urubus. Vez em quando, batia o vento girava a poeira branca, feito modo de gesso ou mais
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pela razo oposta, o Guegue perde-se no meio de um mvel mundo que apenas pode sentir como errado, porque permanentemente afectado pela mudana. O conto, alis, oferece um contraponto em Seu Jujuca, que poucas pginas depois, no momento em que a comitiva se julga perdida, pergunta: Como que um pode conhecer esses espiges? tudo igual, tudo igual... (I 640). Nesse momento, porm, a comitiva, guiada temporariamente pelo Guegue, que tem recado e boio para entregar, no est perdida: esse o caminho que o Guegue domina, o caminho entre as duas fazendas. Quando Pedro Orsio enfim pergunta, a resposta volta a sublinhar a funo do desvio para a transmisso do recado, pois s nessa viagem fora de rota que o encontro entre o Guegue e Nomindomine ser possvel9: E Pedro Orsio se incomodou: tinham errado o caminho? Por certo, alguma errata dera, havia mais de hora-e-meia caminhando, por uma estrada de carros-de-bois e por fim de trilha em trilha, e no chegavam fazendola do genro de dona Vininha. Perguntou ao Guegue, o Guegue demorou explicao. Que tinha favorecido essas voltas, de extravio, pelo agrado de se passear, em to prezadas condies. O que fosse um ter confiana em mandadeiro idiota! (I 641). Deste modo, o bobo reafirma, enquanto guia, o que a descrio do seu cumprimento da funo de recadeiro j tinha tornado claro. O Guegue desvia a viagem da sua funo em nome do agrado de se passear. No outra coisa o que se passa com as suas entregas, em que o mensageiro, repare-se, alheio mensagem: excludo da palavra, transporta-a na forma fixa do bilhete escrito, rabiscado (...) a lpis em quarto

cinzenta, dela se formam vultos de seres, que a pedra copia: o goro, o onho e o saponho, o osgo e o pitosgo, o nh-, o zambezo, o quimbungo-branco, o morcegaz, o regonguz, o sobrelobo, o monstro homem. / O Guegue, por fim, perguntava (...). (I 642-643). 9 Marli Fantini associa o papel do Guegue crtica da racionalidade cientfica que Alquiste representaria: Quando as referncias mveis do bobo da fazenda passam a vigorar sobre os clculos do naturalista europeu, a trajetria previamente traada em mo nica acaba sendo, em grande medida, regida pela inexactido e pelo desnorteio. O bobo, assim, transformaria o percurso do conto numa livre arena carnavalesca (Fantini 2003: 201).

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de papel. O Guegue reconhece-se plenamente na sua funo de transporte: aprecia demais a viajinha, sobrepondo a sua funo a qualquer eficcia comunicacional. Assim, o Guegue confirma o seu zelo de ajudante, na mesma figurao intransitiva de que se parecem revestir as personagens de Kafka: se a sua funo transportar, o Guegue transporta; se nada de novo tem para transportar, o Guegue volta a transportar, sem necessidade de nova ordem, o que j transportou. No fundo, o episdio do Guegue problematiza, no centro de O Recado do Morro, o sentido do recado. Diz Jos Miguel Wisnik: o recado ao mesmo tempo emissivo e receptivo: destinando-se a ser mandado, define-se antes de mais nada e ao mesmo tempo por ter sido recebido. Sua vocao fazer parte de uma cadeia cujo princpio e fim no esto determinados. (1998: 162). O Guegue constri assim o seu espao prolongando indefinidamente o intervalo que a natureza indirecta da palavra recado parece implicar; se na sua raiz est a ideia de recepo, e no de envio (como em mensagem), o recadeiro a figura intermdia do trnsito que a palavra sublinha ao elidir, definindo-se pelo seu termo, e que parece prolongar infinitamente. E se o prolongamento a figura da carta desviada (pense-se em The Purloined Letter10), o desvio materializa-se, aqui, na perturbao definitiva da mensagem e da comunicao. O mensageiro ameaa a mensagem pelo excesso de zelo no cumprimento da sua funo. Ao prazer da viagem s se pode opor, como se v no excerto, uma medida radical: a destruio do texto. Indiferente a um suposto contedo do texto, o Guegue transporta. Ao transformar, reactiva o texto, mas reactiva-o num quadro incompatvel com a funo de comunicao. Percebemos assim que o que se delineia neste pequeno episdio um tratamento muito especfico do destino da escrita, e significativo que se

"Cest ainsi que nous nous trouvons confirm dans notre dtour par lobjet mme qui nos y entrane : car cest belle et bien la lettre dtourne qui nous occupe, celle dont le trajet a t prolong (cest littralement le mot anglais), ou, pour recourir au vocabulaire postal, la lettre en souffrance" (Lacan 1966: 29).

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encene o contraste entre o texto escrito e a entrega por parte da figura que no sabe ler. O Guegue apresenta-se aqui, ao mesmo tempo, como materializao da possibilidade de desvio inerente prpria noo de carta aquilo que garante a comunicao na ausncia tambm aquilo que prev a possibilidade de imploso dessa mesma comunicao pelo risco de extravio que suporte e mensageiro representam e como figura de uma reactivao do texto que impossibilita o seu termo, prolongando-o, num gesto recursivo, alm do fim. Podemos assim aproximar este episdio de episdios anteriores em que uma histria era posta em tenso com a necessidade da sua concluso: aqui, o Guegue impede a chegada da carta ao seu destino a partir do momento em que faz desse destino uma nova sede de envio, que perturba a relao entre mensagem e resposta por se tratar ainda da mesma carta que, recebida, devolvida como tendo sido novamente enviada. A essa imposio ilgica de uma continuao do texto alm da sua funo, Dona Vininha e a filha apenas podem responder com a eliminao fsica do recado, do suporte da mensagem terminada. Como nos exemplos da primeira parte, a violncia a nica garantia de interrupo num contnuo sem termo razovel. importante no esquecer, porm, que estamos perante um texto representado, que tem no papel que faz de suporte a sua materializao e a sua ameaa. Para percebermos as implicaes desta diferena em relao ao que vimos at agora, podemos voltar por momentos primeira das parbases de Corpo de Baile que comemos por analisar: Uma Estria de Amor. A temos a nica cena de leitura em voz alta que marcar a presena das cartas em Corpo de Baile. Na novela que, como vimos no captulo inicial, mais directamente se confronta com a ideia de uma tradio oral, a carta aparece como elemento vindo de fora, destinado a chocar com a potica da narrao que lentamente se constri ao longo da novela, nas figuras de Joana e Camilo, acompanhando a construo da festa. No meio dos preparativos, Manuelzo recebe uma
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carta de Frederyco Freyre, patro e proprietrio, reconhecendo a festa da Samarra e o papel de Manuelzo como fundador um episdio decisivo na afirmao do nome do protagonista. Diz o texto: O Queixo-de-Boi buliu na algibeira, tirou um envelope carta de Frederico Freyre, sobrescritada. Mas uma carta de setenta vezes se ler! Nessas mal traadas linhas, Frederico Freyre participava condies que no podia vir para a festa da missa; mas tudo com singulares, correto afeto, at desculpa ele pedia. Dava gosto. Uma carta missiva, para alto se soletrar, todos ouvissem Leonsia, o Adelo, os vaqueiros, os convidados, os vizinhos de todas as veredas, o mundo. (I 585). A carta pede uma releitura incessante e inclui, na expresso carta missiva, a possibilidade de continuao do seu circuito, reemisso que gradativamente alarga o crculo dos seus destinatrios. mesa, mais tarde, Manuelzo pede que a carta seja lida por outra pessoa por no considerar correcto que fosse ele a pessoa a ler. O primeiro a quem pede recusa, com receio de ser analfabeto (I 587); outro d uma resposta semelhante ( s jornais e garrafais), at que Joaquim Leal se oferece para ler a carta: Leu. Esse Joaquim Leal era um bom amigo, de pessoa. Leu correto, os pontos das palavras, mas menos leu. Porque faltou dar na voz o rompante fraseado o ser do sido, a fiza de Frederico Freyre, alta amizade, esclarecendo o acato a ele, Manuelzo, fazedor da Samarra, lugar de gado com todo funcionar, e que tudo se agradecia era a ele mesmo, s a ele, Manuelzo... faltou o entom encarecido. Mas, mesmo assim, os outros entendiam e mais escutavam, aprovando com as cabeas. At o senhor do Vilamo, no lustroso palet preto de alpaca o significado da carta devia de varar o sebo de sua caduquice e ir remexer no centro de sua mocidade, j to encoberta pelos tempos. Aquilo eram proezas para com respeito se dizer: o valer dele, Manuelzo; a Samarra, lugar de bases; Frederico Freyre o poder do dinheiro moderno! Todos, exaltados, falassem: - Este o Manuel Manuelzo J. Jesus Roiz Rodrigues!... Mais falassem. Um pouco, esse respeito, se falou. (I 587).

O nico momento de Corpo de Baile em que se representa uma leitura em voz alta , assim, a representao de uma inteno falhada. A escrita colapsa contra um mundo que no a abriga e que no a reconhece; podemos guardar esta considerao da
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falta de rompante da leitura como o ponto de partida para uma oposio binria que comemos j a identificar neste conto: a que contrapunha, em diferentes planos, presena e ausncia. Porque evidente que estamos perante um tipo de representao da escrita que marcadamente se situa na substituio do dilogo. O rompante, que aqui falta, dominava a descrio de Joana Xaviel contadora; a performao parece ausente desta cena de leitura, em que Manuelzo no se reconhece na carta lida por outros. Ausente da carta, o protagonista tambm identifica claramente uma segunda ausncia: o ser do sido, a fiza de Frederico Freyre. Aquilo que Manuelzo pressente na carta que saiu do circuito remetente/destinatrio a desmaterializao inerente ao epistolar, a que Kafka chamava commerce avec des fantmes (Kafka 1988b: 267). Mesmo assim, um pouco, menos leu: a leitura da carta de Frederico Freyre cumpre apenas o seu papel de compensao. No podendo substituir a presena, a carta marca um efeito falhado, prximo das quadras que o Velho Camilo recitava antes da transfigurao final em contador: Aquilo era como se beber caf frio, longe da chapa da fornalha. (I 561). Estamos perto da caracterizao platnica da escrita como simulacro que fala das coisas como se estas estivessem vivas (Plato 1994: 122 275d). No fundo, a leitura da carta encena a escrita como une imitation, un double de la voix vivante et du logos prsent (Derrida 1972b: 228), e a diminuio do seu efeito em relao leitura silenciosa marca disso mesmo; mas tambm trao distintivo, e o que nos interessar especificamente aqui, de um movimento que faz circular a carta fora do seu circuito. A deciso de Manuelzo de a extrair do percurso entre o remetente e o destinatrio determinante. A carta, como a escrita, chega a toda a parte (Plato 1994: 123 275e), mas algo se decide no modo como o efeito da carta enfraquecido pelo alargamento do crculo. Atravs dessa leitura, dessa disperso em circuito aberto, o prprio Manuelzo desapropriado do seu papel na comunicao que a carta simularia.
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Talvez outro exemplo ajude a tornar mais claro este movimento; vindo, alis, do conto que com Uma Estria de Amor faz par em Manuelzo e Miguilim. A primeira carta de Corpo de Baile ser, em rigor, a que em Campo Geral faz de Miguilim a figura inicial de uma recusa da transmisso. Escolhido pelo tio como mensageiro, Miguilim recusa-se a entregar o bilhete me, sem no entanto negar o zelo de mensageiro e a responsabilidade sobre a mensagem: Rasgava o bilhete, jogava os pedacinhos dentro do rego, rasgava mido. E Tio Terez? Ele tinha prometido ao Tio Terez, ento no podia rasgar. Podia estar escrito coisa importante exata, no bilhete, o bilhete no era dele. (I 500). Miguilim refaz o percurso, cumpre o encontro combinado, e devolve ao Tio o recado no entregue: Tio Terez duvidava um espao, depois recolhia o bilhete do bolso de Miguilim, Miguilim sempre com os bracinhos levantados, segurando na cabea o tabuleirinho com a comida, outra vez quase no soluava. Tio Terez espiava o bilhete, que relia, s tristes vezes, feito no fosse aquele que ele mesmo tinha fornecido. (I 507). Na recusa de Miguilim temos um gesto de resistncia que, reenviando o texto atravs de um circuito de ida e volta, sem sair (ao contrrio do que se passava com a carta de Frederico Freyre) do seu circuito, devolvendo o recado ao seu remetente, parece imprimir no prprio texto a marca imaterial dessa recusa. Esta, que depende apenas do circuito, faz do bilhete devolvido um bilhete que no pode j coincidir plenamente com o bilhete enviado e a releitura, s tristes vezes, ser a aco que valida a diferena. Talvez a resida a principal diferena em relao ao episdio de Uma Estria de Amor: na deciso de ver a sua carta lida por um outro, e para outros, Manuelzo desloca as posies originais, reenviando a carta missiva. Desse modo, porm, Manuelzo retira-a do circuito em que o movimento da releitura era possvel, impossibilitando a repetio e o reconhecimento. Miguilim, e o Guegue, ao contrrio,

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no abandonam nunca o seu circuito fechado, em que as mensagens, inalteradas, so relanadas na releitura. O Guegue, que no l, apenas identifica o recado como suporte a ser transmitido. A viagem define-se pela misso de transportar, mas o mensageiro oblitera os dois plos desse transporte, ou da situao de comunicao que por trs dele se constri, para se concentrar exclusivamente naquilo que medeia: a transposio da distncia, papel na mo. Nestas condies, o recado deixa de ser recado para se transformar em pretexto para a viagem, que se sobrepe sua finalidade original. O Guegue, como mensageiro, institui o transporte como fim em si mesmo, sem uma polarizao, sem uma orientao podemos dizer sem lei. Num certo sentido, este mensageiro que oblitera a funo do recado em nome do trnsito incessante recorda ainda outra figurao kafkiana, na parbola dos mensageiros: Furono invitati a scegliere tra lessere re o corrieri dei re. Da veri bambini, tutti vollero essere corrieri. Perci esistono soltanto corrieri, i quali galoppano attraverso il mondo e, non essendoci re di sorta, si gridano lun laltro i loro messaggi divenuti privi di senso. Ben volentieri la farebbero finita con la loro misera esistenza, ma non osano farlo per via del giuramento da loro prestato. (Kafka 1988a: 86).

O caos hermenutico que a subverso do bobo representa um processo que assenta integralmente, repare-se, na articulao entre a fixidez do texto e a sua movimentao atravs do mensageiro, e tem na releitura de um mesmo texto a instituio da diferena. Podemos pensar numa formulao de Chartier a propsito da histria do livro: un livre change par le fait quil ne change pas alors que le monde change (Chartier & Bordieu 1985: 236). Trata-se tambm aqui, no fundo, de uma alterao que se d por resistncia: permanecendo igual a si prprio o recado transformado pela variao na sua posio ao longo do circuito. Temos assim a
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repetio da relao do Guegue com a orientao na paisagem: o mensageiro a figura da negao da fixidez e da instituio de uma mobilidade errante. Exemplo das consequncias desta mobilizao pode ser ainda o recado de Terez, que tem no seu envio falhado, na no-reciprocidade do gesto que o separou do seu autor, regressando inalterado e inviolado, a razo da sua diferena. O Guegue, porm, institui ainda outra ordem nesta lgica. No seu permanente ir levando, o mensageiro faz mais do que instituir a diferena de contexto: validando uma intransitividade do transporte, que o prazer da viagem acentua, o Guegue destri a hierarquizao dos pontos de envio e destino, no interior dos quais se continua a mover, no permitindo assim pr termo ao processo que produz a diferena. Tal como na parbola de Kafka, a manuteno de uma ordem para alm de qualquer sobrevivncia da lei a gerar um movimento perptuo e insensato. Percebe-se assim melhor que a nica aco possvel para estancar o Guegue mensageiro seja a reposio da lei atravs da censura. Uma vez lido, o texto destrudo reconhece-se, na leitura como consumo, a ltima funo da comunicao a constituirse como elemento que se sobrepe ao suporte. A leitura da me, ou da filha, esgota o recado; nesse quadro o Guegue surge como figura subversiva, que relana o texto prolongando-o alm do seu fim e instituindo a obrigatoriedade da releitura. Se o texto deixa de ser igual a si prprio porque transportado para alm da sua funo, o modelo que se oferece o de uma reactivao pela repetio, mas uma repetio orientada, como vimos com a releitura de Terez, para a novidade que o circuito (at ao fim e para trs) necessariamente introduz, e incompatvel com a manuteno da hierarquia (o mandadeiro que se pe a caminho sem novas ordens, o sobrinho que no obedece).

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Transporte No circuito regressivo do Guegue, que introduz no centro da teleologia do recado o espao de uma aporia, alguns traos tornaram-se evidentes. Por um lado, ao lidarmos com figuraes da escrita (cartas, recados), estamos perante uma problematizao da prpria ideia de representao que funda o texto, e o livro. Por outro, os traos de uma resistncia do narrador que at aqui perseguimos parecem agora transitar para a figura marginal do ajudante, intermedirio, ou mensageiro que pe em movimento um texto que, de outro modo, se esgotaria na sua funo neutra de transporte. A funo comunicativa parece decretar, duplamente, a extino do texto ou pelo seu, natural, desaparecimento uma vez cumprida a funo que lhe foi destinada; ou na violenta eliminao de um rastro, de um corpo morto (o suporte) que, na sua sobrevivncia, esteja ainda disponvel para minar, ou reabrir sem ordem nem lei, a comunicao concluda. O recadeiro a figura que subverte, definitivamente, esta ordem: obrigando o texto a uma continuao que supere o limite e contra ele se defina; e submetendo o texto ao movimento da diferena, ou seja releitura. Resistindo a deixarse apagar e subsumir no cumprimento da sua funo de transporte, o mensageiro chama tambm a ateno, num segundo nvel, para o modo como a mesma materialidade preservada do texto afecta tambm, permanecendo, aquilo que deveria transportar. Como figura do transporte, o mensageiro pe em causa a metaforicidade do trnsito tambm em relao ao recado, ao texto e, em ltima instncia, ao livro11. O Guegue parece mostrar, no fundo, que essa subverso pode ser praticada a partir da margem, a partir do circuito, sobre o mesmo texto que permanecendo o mesmo se faz outro; e activa para esta noo de texto a tenso entre uma materialidade incontornvel (o corpo,

Ce nest pas seulement le corps de la page qui peut tre entour dune enceinte, cest le corps de loeuvre, et toutes les fonctions que nous avons rencontres son niveau peuvent se retrouver celui du volume. (Butor 1992a: 157).

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o suporte), e a superao dessa materialidade numa vida do texto alm do texto, mas cujo lugar ainda o corpo do texto (a sua sobrevivncia). J vimos que essa temporalidade recursiva se materializa atravs da releitura. O facto de a releitura ser um movimento que os livros de Rosa parecem explicitamente prescrever pode levar-nos a interrogar, num outro plano, como se cumpre, neles, a mesma funo de relanamento do texto que est na base da definio do Guegue. Assim, a hiptese que iremos perseguir e para a qual nos estamos a encaminhar h algum tempo a de que o circuito incessante do mensageiro que preserva e transporta o texto, subvertendo a sua completude e a sua temporalidade, pode ser figura de uma aco sobre o livro que, em Guimares Rosa, far dele uma forma movente que contra o horizonte do livro como totalidade unificada se ir definir. A racionalidade do Guegue residiria ento na lio da sua errncia, que se sabe limitada, vinculada, presa a um percurso, mas que abre o livro ainda e apenas a partir do seu interior. Se assim for, o prximo passo ser fazer da marginalidade que subverte os limites do texto a imagem do livro rosiano.

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Livro

Books you were going to write with letters for titles. Have you read his F? O yes, but I prefer Q. Yes, but W is wonderful. O yes, W. James Joyce, Ulysses

Uma espcie descomedida de cetceo

Numa entrevista sobre a gnese do livro Galxias, publicada em Metalinguagem & outras metas, Haroldo de Campos conta o seguinte episdio: Lembro-me de uma opinio de Guimares Rosa, por ocasio de uma longa conversa que tivemos, no acaso de um Congresso de Escritores, em Nova Iorque, em 1966 (...). Eu havia dado ao Rosa o n 4 de Inveno, com dois dedos de prosa e os fragmentos iniciais das Galxias. A uma certa altura, ele me disse: Voc no sabe o que tem nas mos. Isto o demo. Esta sua prosa o demo! E depois de uma pausa, referindo-se ao projeto do livro: Mas veja: no publique em folhas soltas, faa um livro comum, costurado... No dificulte o difcil... No momento, lembrando-me das capas convencionais, do grafismo acadmico, regionalista, dos livros do Rosa (to extraordinariamente revolucionrios no seu texto, na sua escritura), no dei maior ateno
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observao, e respondi brincando, provocativo: Isto no importa. Ao demo o que do demo. Sou um kamikase da literatura... Hoje, penso diferentemente. O livro de folhas soltas no convida o leitor leitura, ao manuseio. belo como projecto grfico, mas inibitrio como prtica de leitura. (...) Assim, as Galxias saem hoje numa edio cursiva, muito cuidada graficamente por seu editor, (...), mas fcil de manipular, costurada, como aconselhava o Rosa da prosa... (Campos 1992c: 273-274). A conversa ter tido lugar um ano antes da morte de Guimares Rosa e sintomtica de uma tendncia da leitura da sua obra. verdade que Tutamia, texto em que a questo da forma do livro, atravs do desdobramento dos seus ndices, se tornar mais evidente, ainda no tinha sido publicado. No entanto, j em 1956, com a primeira edio de Corpo de Baile, Rosa tinha colocado o problema em moldes semelhantes, ainda que menos objectivados. Uma leitura do percurso de Rosa desde esse ano-chave at s publicaes pstumas no pode deixar de lado a questo do livro, e todavia esse tem sido um dos aspectos menos estudados da obra do autor. Em parte, as razes desse esquecimento esto presentes no comentrio de Haroldo de Campos: a recepo inicial parece ter levado a que a dimenso regionalista, por um lado, e lingustica, por outro, se sobrepusessem aos aspectos estruturais da construo da obra. J em A linguagem do Iauaret, Haroldo punha em prtica uma leitura semelhante. A, o crtico aponta em Rosa uma revoluo da palavra menos comprometida com o passado, com o assim dito romance burgus do sculo 19 e assente na lio de Joyce, ou seja na perturbao do instrumento lingustico (Campos 1992a: 58-59)1. A valorizao do experimentalismo lingustico por parte de Haroldo de Campos fundamental na recepo rosiana, como j apontei a propsito de Meu Tio o Iauaret; no entanto, a acentuao do trabalho sobre a escritura parece fazer-se, mais

Neste sentido, ao nvel da manipulao lingstica, a fico rosiana mais atual, menos comprometida com o passado (...) do que o nouveau roman francs (Campos 1992a: 58-59).

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uma vez, contra aquilo a que se chamar, numa nota do ensaio a uma comparao com o nouveau roman, a sintaxe do romance: No se pode negar, porm, que do ponto de vista estrutural isto , do ponto de vista do que se poderia chamar de uma sintaxe romanesca Butor, a partir de Mobile (Gallimard 1962) vem avanando com uma deciso cada vez mais acentuada por caminhos aos quais Rosa pouco se aventurou (apenas em Carade-Bronze se encontram experincias de estruturao do texto no sentido em que ora nos referimos) (idem: 59). O contraponto com Michel Butor e a excepo concedida a Cara-de-Bronze no deixam dvidas sobre o horizonte da comparao; noutro ponto do ensaio Haroldo referia j a novela de Corpo de Baile como prosa da prosa ou metaprosa, problema mallarmeano de Mestre e Discpulo (idem: ibidem). contra a tradio do Livro de Mallarm que Haroldo est a jogar a escritura de Guimares Rosa, nesse gesto deixando cair tudo aquilo que em Rosa deriva do trabalho sobre a materialidade do livro e sobre a relao entre texto e imagem. Ao isolar Cara-de-Bronze como caso nico de experimentao formal, Haroldo nega o modo como a novela reflecte, de forma exemplar (e no excepcional), a ideia de literatura que ganha corpo nestes textos. A nova srie de edies que a Nova Fronteira promoveu entre 2001 e 2006, ano das comemoraes, com o objectivo de estabelecer um dilogo com antigas edies da obra de Guimares Rosa que corrija os muitos erros involuntrios (Rosa 2001: 9) dos editores, mostra bem que esse apagamento vai alm de gestos individuais de leitores da obra de Rosa. Seria impossvel afirmar, sobretudo em face da crtica de Grande Serto: Veredas, que os aspectos estruturais, ou a sintaxe romanesca, permaneceram fora do mbito da recepo rosiana; o problema do livro, contudo, continua a no ter nela expresso relevante. Sintoma e, ao mesmo tempo, causa desse silenciamento , sem dvida, a progressiva mutilao dos elementos paratextuais dos livros de Rosa nas

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publicaes posteriores sua morte. ndices, ilustraes, classificaes de gnero foram desaparecendo das sucessivas reedies da obra, muitas vezes gerando equvocos na sua leitura crtica2. A prpria reedio da correspondncia com o tradutor italiano e a publicao da correspondncia com Curt Meyer-Clason, na mesma srie de uma nova e bem-cuidada edio das obras de Joo Guimares Rosa (idem: ibidem), vieram pr em evidncia a lacuna, pelo modo como testemunham a reflexo sobre os elementos paratextuais e o cuidado obsessivo de Rosa na preparao e acompanhamento das edies dos seus livros. A importncia das sucessivas reedies das obras e das alteraes propostas no reside s no nvel textual, mas constitui uma histria paralela de investimento na forma do livro. A insistncia sobre a apresentao e reapresentao grfica dos textos testemunha um progressivo repensar a obra. tambm por isso que cada livro de Rosa tem uma histria prpria; como se o autor tentasse reforar e recriar uma certa de ideia de organicidade (Rosa 2006b: 5) nas sucessivas edies, brasileiras e estrangeiras. Individuadas, enquanto livros, enquanto unidades costuradas que so mais do que a soma das partes que as compem, sobre a sua construo que parece incidir o trabalho do autor. E tambm a, como tentarei demonstrar, que se inscreve uma potica da leitura. No entanto, nos comentrios de Haroldo de Campos que comemos por ver possvel identificar algumas tenses essenciais para a questo. A recusa de Rosa de um livro em folhas soltas e a defesa de um livro costurado colocam outro problema, mais directamente relacionado com a ideia de livro que se vai desenvolvendo nestas obras e com a resistncia material que focmos nos exemplos anteriores. Ao distanciar Rosa do horizonte de um autor como Michel Butor, Haroldo identifica talvez o ponto de tenso
Veja-se o texto-protesto de Ana Luiza Martins Costa publicado em 1998 (Martins Costa 1998); nas novas edies, os elementos paratextuais foram em grande parte recuperados. Apenas a edio de bolso de Grande Serto: Veredas (Rosa 2006a) se apresenta sem os mapas. Assinalarei, sempre que pertinente, as omisses ou problemas que persistem.
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que parece diferenciar Rosa no s da potica do nouveau roman, mas em geral da prpria experimentao contempornea sobre a forma do livro, da qual praticamente nunca aproximado. Sentindo a recusa do livro de folhetos como consonante com uma dimenso conservadora dos livros de Rosa, o crtico acentua, no fundo, a dificuldade de incluso da obra rosiana num projecto moderno de livro centrado sobre a ideia de inacabamento e de fragmentao: Rosa seria ainda o autor de uma revoluo na escrita (e no texto) que no se reflecte na construo da narrativa e do livro. A questo parece ento residir menos no grafismo regionalista, do que num problema de concepo do livro. Podemos pensar os termos da conversa relatada luz da contraposio que um autor como Daniel Moutote far entre volumen e codex num ensaio sobre a postrit du Livre de Malarm, que tem alis como ltimo exemplo o nouveau roman (com Butor). Os dois termos sero usados para representar dois modelos de escrita: Nous proposons de prsenter la conception mallarmenne comme opposant au Livre traditionel, que de la Bible Zola droule une histoire, le Livre moderne, constitu par les fiches dune production potique, la fois instantane, renouvele et discrte: cest--dire dopposer au Volumen le Codex dans la production littraire post-mallarmenne. (Moutote 1988: 6). A valorizao do livro em cadernos contra o livro em rolo (Chartier 1992) ir fazer-se com base na indexao e nas possibilidades combinatrias de uma forma mvel3; o volumen, contrariamente, aparece como imagem de uma continuidade

Il est deux modles du Livre: le volumen et le codex. Le premier, global e duratif, est par excellence le modle du Livre Saint: La Bible. Il droule lhistoire totale de lAlliance et le prtre le droule devant le peuple de Dieu. Le second est le modle de linfolio: il analyse tout ce qui se dtaille dans lexistence humaine et autorise un classement par la numrotation de ses lments. Mallarm a vu en lui le modle du livre moderne, propre la manifestation et, par la combinatoire quil permet de ses feuillets, la transmission vive et particulire des instants de lacte potique. (Moutote 1988: 9).

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totalizadora. contra essa ideia de livro que se desenvolveria, segundo Moutote, o Livro de Mallarm, figura da modernidade literria: Cest dans ce codex aux virtualits infinies que notre poque a reconnu ses Matres Livres, ceux qui sont reus comme dispensateurs de leons parce quils retiennent dans sa varit la leon des actes potiques de cration intellectuelle de toute une existence dhomme, mais encore parce quils permettent den varier linfini la performance au gr et au got du seul matre en morale que chacun soit prt admettre : soi-mme. Chacun en accueille la leon pourvu quil puisse laccommoder sa propre exigence. Cest ce que permettent les prcieux index dont le Livre squipe afin de souvrir toutes les curiosits des innombrables lecteurs. (Moutote 1988: 10). Ora, o que Haroldo de Campos parece nitidamente pressentir com a sua resposta advertncia do Rosa da prosa a dificuldade de inscrio dos seus livros nesta concepo fragmentada de Livro, que alis defende para o livro Galxias (No mais, o livro pode ser lido a partir de qualquer pgina, Campos 1992c: 174). Em parte, a obra de Rosa d-lhe razo. Acentuei no captulo anterior que a ideia de livro em Rosa, associada naquele ponto aos desvios do Guegue, parece fazer-se contra uma ideia de livro como totalidade orientada para um gesto de closure, mas preservando-se ainda num circuito fechado; tambm verdade que essa ideia desviante de livro se constri preservando ainda uma noo forte de unidade e de uma construo, nas palavras de Rosa, orgnica. Grande Serto: Veredas, na sua continuidade ininterrupta e absolutamente no indexvel, talvez a representao mais fsica dessa resistncia a um modelo de organizao ad libitum (Moutote 1988: 6), assemelhando-se a um longo volumen em que o smbolo do infinito substituiu o explicit. O romance monoltico de Riobaldo, que, nas palavras do prprio Rosa, uma espcie descomedida de cetceo (apud Martins Costa 2006b: 203)4, d corpo a uma diferena em relao a uma certa
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Tambm a Corpo de Baile estar destinado o epteto: J entreguei ao Jos Olympio o Corpo de Baile que um verdadeiro cetceo, nas dimenses. (apud Martins Costa 2006b: 201).

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figurao moderna do livro, que permitiria voltar a colocar noutros termos a clebre oposio entre revolucionrio e reaccionrio do dilogo com Gunther Lorenz. outra a herana do Livro em Rosa, como o prprio deixou claro numa carta de 1947: Tenho esperana de poder criar coisa nova e diferente, de superar o nosso Sagarana, com histrias e romances mais humanos, mas ao mesmo tempo, mais meta-humanos, mais super-humanos; que sei!?!... O bom seria fazer-se um livro s, de 5.000 pginas, que seria escrito e reescrito, durante a vida inteira. Ou que beleza! trs geraes de romancista (pai, filho, neto), trabalhando num roman-fleuve, catedralesco, ptreo, tri-generacional... (Carta a Azeredo da Silveira, 8/1/1947, apud Rosa 2008: 426) A antecipao de Grande Serto: Veredas (ou mais precisamente, de Corpo de Baile enquanto projecto de livro que se desdobra em Corpo de Baile e Grande Serto) como livro meta-humano e super-humano que vence o tempo na sua resistncia fluida e ptrea d a medida de quanto de projecto enciclopdico h na obra de Rosa. Mais do que abrir-se curiosidade dos seus inumerveis leitores, segundo a descrio do codex por Moutote, uma forma como esta parece quer chamar a si tempo, vida, autor e leitor numa continuidade no delimitada. Ettore Finazzi-Agr sublinhou j o modo como Grande Serto: Veredas se parece prestar categoria de pica moderna que Franco Moretti prope no seu Opere Mondo tal como os exemplos a que Moretti recorre, tambm o romance de Rosa tem uma forma que osa rivaleggiare in ampiezza con il mondo intero (Moretti 1994: 91). No entanto, Grande Serto: Veredas tambm a excepo na obra do seu autor, texto desproporcionado que se destaca em relao ao contexto em que (...) se insere e do qual adquire, todavia, a sua legitimao potica (Finazzi-Agr 2001: 29). O modo como a obra de Rosa se encaminha, com os livros de 1962 e 1967, para uma progressiva conciso (que Estas Estrias desmentir) coloca necessariamente a questo da relao entre a forma (aparentemente) informe do romance e a forma breve da estria. Porque nos dois livros de estrias que Rosa publica

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na dcada de 60 precisamente a articulao entre a diversidade dos elementos que nele confluem e o livro como unidade a ganhar o primeiro plano. Haveria, ento, na obra rosiana, uma contra-imagem para o romance sem margens, que o aproximaria do modelo combinatrio que Haroldo parecia valorizar contra esta prosa? E seria a construo minimal de Tutamia essa imagem? Talvez a primeira resposta a esta pergunta esteja ainda na estranha afirmao de um livro costurado, figurao evidente do codex, mas em que se acentua a linha que rene entre si os cadernos, ou que se afirma no gesto de re-ligar (rilegare, relier) aquilo que estava separado; ou seja, em que se acentua no a possibilidade aleatria de combinao e sim o modo como os folhetos so reunidos numa unidade material5. S que o prprio livro, como veremos, atravs do ndice, ou da margem paratextual como espao de indicao de leitura, vai pr em causa a ordem que representa, instituindo no seu seio um movimento de reviso que lhe nega a concluso. Esse era o gesto do mensageiro: transportar o texto alm de um limite, inscrevendo na sua materialidade preservada a diferena de si a si mesmo que lhe garantia a sobrevivncia. Os livros costurados, comuns, de Rosa da forma contnua de Grande Serto, intimamente lacunar e fragmentada, aos livros de estrias, to elaborados no seu paratexto projectam a partir do seu interior o seu desdobramento, na medida em que postulam um movimento sobre si prprios que afecta o livro sem, no entanto, afectar a sua materialidade e sem fazer coincidir incompletude e inacabamento. O trabalho sobre a forma do livro parece fazer-se atravs da exposio, no interior do livro, dos seus pontos de juno e de articulao. Assim, atravs da sua dimenso reflexiva, o livro que

Veja-se a afirmao de Rnai: Em conversa comigo (...), deixando de lado o recato da despretenso, ele me segredou que dava a maior importncia a este livro, surgido em seu esprito como um todo perfeito no obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentrio. Entre estes havia inter-relaes as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu lugar exato, no se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou trs em todo o livro sem desequilibrar o conjunto. (Rnai 1994: 159).

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veremos ainda um livro encadernado. Mas na exposio dos limites dessa construo, o livro perturba-se como forma, questionando temporalidade e orientao da forma livro. Pea fundamental desse processo, como veremos, ser sempre o leitor; da que o problema do livro e da sua forma em Rosa seja, antes de mais, um problema de leitura. Mas de uma leitura que se faz, como nas histrias que vimos at agora, de uma tenso constitutiva. A linha que une entre si as partes de um livro, na sua evidncia intermitente, ganha assim corpo, nos livros que analisaremos, na representao do ndice, margem que postula uma totalidade ao mesmo tempo que a pe em causa, como momento de indicao que inscreve no texto a prescrio da releitura.

Dicionrio Um exemplo desta relao com a forma do livro costurado pode ser encontrado numa figura recorrente na obra de Rosa: o dicionrio. Desde a anedota de Lorenz de um tradutor que afirma dominar certa quantidade de lnguas vivas e mortas, inclusive a de Guimares Rosa (Lorenz 1991: 80) at publicao, em 2001, dos cerca de 8000 verbetes do aguardado Lxico de Guimares Rosa por Nilce SantAnna Martins (Martins 2001), a hiptese de um dicionrio rosiano foi fazendo o seu percurso pelas leituras da obra. Mas como com muitos dos lugares-comuns da sua recepo, tambm aqui foi o prprio Rosa a lanar, de forma enigmtica, a sugesto. Recorde-se a entrevista com Lorenz:

GUIMARES ROSA: Hoje, um dicionrio ao mesmo tempo a melhor antologia lrica. Cada palavra , segundo sua essncia, um poema. Pense s em sua gnese. No dia em que completar cem anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionrio. Talvez um pouco antes. E este far as vezes de minha autobiografia.
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LORENZ: Estou pensando em como classificar esta declarao sobre o dicionrio. Pertence ao captulo de seu gosto pelos paradoxos, ou deve ser interpretada literalmente? Poderia ser entendida de forma absolutamente literal, pois o dicionrio o mais impessoal de todos os livros, e voc, como j me havia dito, inimigo das intimidades literrias. GUIMARES ROSA: Um dicionrio no to completamente impessoal como voc pensa; por isso falei dele relacionado minha autobiografia. Pode entender literalmente o que acabo de lhe dizer e acrescent-lo minha potica. (Lorenz 1991: 89).

A afirmao surpreende no s pelo n que identifica entre dicionrio e autobiografia, como pareceu sentir Lorenz, mas sobretudo pelo gesto que faz equivaler o dicionrio ao meu romance mais importante. Se, por um lado, a associao reafirma posies de Guimares Rosa na entrevista linguagem e vida so uma coisa s (idem: 83) ou a definio de Grande Serto: Veredas como uma autobiografia irracional (idem: 94) , tambm parece apontar para uma concepo de romance que, derivada de uma imagem do dicionrio como antologia lrica, se cruza com a pulso totalizadora a que o romantismo alemo chamou enciclopdia. Veja-se o n 78 dos Fragmentos Crticos de Schlegel: Alcuni dei migliori romanzi sono un compendio, unenciclopedia dellintera vita spirituale di un individuo geniale; opere tali, persino quando sono in unaltra forma, come il Nathan, prendono laspetto di un romanzo. Anche ogni uomo colto, o che si coltiva, ha nel suo intimo un romanzo. Che lo esterni e lo scriva non necessario. (Schlegel 1998: 16 I 78). Assim, o que est em causa na declarao de Rosa no apenas a afirmao do romance como dicionrio, a que a valorizao exclusiva dos aspectos lingusticos poderia, no limite, levar: tambm a contaminao entre dicionrio e forma romanesca, com base na sua relao com a vida espiritual do indivduo. O dicionrio ganha ar de romance precisamente porque no to completamente impessoal como se supe

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do mesmo passo, a forma do romance que se deixa interrogar a partir do dicionrio como figura ltima do livro. Neste movimento, decide-se por um lado a associao do livro, em Rosa, a um projecto totalizador, e do outro a relao do livro com a autonomia fragmentria que faz de cada palavra um poema, como unidade isolada a partir da sua gnese, como rastro de um processo de formao: o trabalho de reconstruo de palavras e expresses que tanto surpreende quando se consultam as cadernetas do autor. O eixo que permite a sobreposio de livro, dicionrio, antologia e romance assim o modo como o sujeito define a lngua. uma questo de potica, explica Rosa, que j dizia a Pedro Bloch: eu no escrevo difcil EU SEI O NOME DAS COISAS (apud Rnai 1983: 92). Repare-se que no estamos perante a afirmao daquilo a que se poderia chamar um dicionrio subjectivo: Rosa deixa bem claro, ao longo da entrevista, que o seu idioma fundido com elementos que no so de minha propriedade particular, que so acessveis igualmente para todos os outros (Lorenz 1991: 82). O processo qumico6 que d origem a um idioma prprio, e que far do dicionrio imagem da vida, um processo combinatrio, que assim se alimenta da prpria forma do dicionrio enquanto sistema. No mtodo reside a frmula da combinao e a sua assinatura. O dicionrio apresenta-se, ento, como terreno de pesquisa, modelo de livro e laboratrio, para usar a expresso das cartas a Meyer-Clason, no podendo ter apenas o papel de objecto de consulta. Maria Augusta de Camargos Rocha (Madu), secretria de Guimares Rosa no Itamaraty, descreve deste modo a actividade de manuseamento do livro:
Rosa recorre imagem do processo qumico nas cartas com o tio: preciso distend-la, destorc-la, obrig-la a fazer ginstica, desenvolver-lhe msculos. Dar-lhe preciso, exatido, agudeza, plasticidade, calado, motores. E preciso refundi-la no tacho, mexendo muitas horas. Derret-la e trabalh-la, em estado lquido e gasoso (Carta a Vicente Guimares, 11/05/1947 apud Guimares 1972) e com o tradutor alemo: Nenhuma preguia! Tudo retrabalhado, repensado, calculado, rezado, refervido, recongelado, descongelado, purgado e reengrossado, outra vez filtrado. Agora, por exemplo, estou refazendo, pela vigsima terceira vez, uma noveleta. E cada uma dessas vezes, foi uma tremenda aventura e uma exaustiva ao de laboratrio. (Rosa 2003b: 234).
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E como ele criava as palavras! (...) porque ele criava coisas, palavras que no existiam, no ? E ele usava muito dos arcasmos tambm, e gostava muito do dicionrio, ficava horas, s vezes, olhando o dicionrio, procurando palavras, no uma exatamente, mas olhando, lendo o dicionrio. (apud Martins Costa 2006b: 195).

Na imagem do dicionrio olhado e lido temos a mesma ideia de uma observao selectiva da anotao em cadernetas. tentador aproximar esta caracterizao dos materiais do Arquivo Guimares Rosa, das listas de palavras vrias vezes transcritas e alfabeticamente ordenadas, indiferenciadamente recolhidas de anotaes de viagem, de leituras ou de sesses de consulta de dicionrios, em que se intromete o signo pessoal m%, que indica apropriao pessoal da palavra, da expresso, ou da combinao sugerida pelo trabalho selectivo de compilao.7 Os arquivos de Rosa sugerem, do mesmo modo, a compulso da classificao, da recolha sistemtica e da constituio do arquivo a partir de elementos dspares e heteregneos, e o tratamento do material recolhido como repositrio virtual de elementos para a obra. Ttulos, expresses, frases inteiras so apuradas e conservadas at ao momento em que venham a ser aproveitadas num texto em que o autor trabalhe; se descartadas, tm tambm o seu lugar em novas listas que as relanam como disponveis para o jogo da composio. Ao mesmo tempo, porm, a ideia de um ltimo romance na forma de um dicionrio levanta outros problemas para o questionamento do livro em Joo Guimares Rosa. Nesta ideia de livro, que cumpriria o papel de uma autobiografia, encontramos a materializao do livro costurado que comecei por avanar: feito de partes articuladas, ligadas entre si, forma tendencialmente fechada, que no pressupe qualquer inacabamento, mas que perturba, pela afirmao da sua estrutura, a ideia de

Veja-se a propsito a seco As galas da linguagem do ensaio de Walnice Nogueira Galvo Rapsodo do Serto: da lexicognese mitopoese, (Galvo 2006: 146-157).

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uma relao entre princpio, meio e fim. O dicionrio, como figura do livro que contamina o romance, coloca precisamente em causa a orientao teleolgica que vimos estar por trs, por exemplo, da ideia de livro que propunha o rapaz pescador de Riobaldo: a classificao e a codificao fazem-se acordo com uma ordem a ordem alfabtica que arbitrria. Figura totalizadora e normativa por excelncia (pense-se por exemplo na contraposio entre dicionrio e enciclopdia8), o dicionrio tambm denncia da natureza aleatria de toda a ordem. Como afirma Ginette Michaud a propsito de Roland Barthes par Roland Barthes (1975), texto que fez as vezes de uma autobiografia e construdo sobre a ordenao alfabtica: la fois texte de loi et texte sans loi, le dictionnaire est un systme dordre arbitraire, o aucune logique pourtant ne prside lordre des lettres. Aux normes, canons, usages, outils, rgles qui y trouvent sanction et le structurent, rpondent quivoques, jeux, vides, fissures et glissements qui lilimitent. (Michaud 1983: 68) Forma internamente remissiva, o dicionrio (como os dicionrios, se quisermos, que se revelam em potncia nas listas alfabticas de Rosa), figura de um espao delimitado que no pode conter o seu crescimento e a sua movimentao interna. A inclusividade do dicionrio faz-se a partir no de uma livre ordenao dos folhetos, das palavras-unidade que o compem, e sim de uma explorao infinita dos intervalos e das fissuras; talvez o melhor exemplo que Rosa d deste funcionamento seja uma das mnimas anedotas de abstrao que fecham o prefcio Aletria e Hermenutica, de Tutamia: Entre Abel e Caim, pulou-se um irmo comeado por B (II 526).

Digamos que a enciclopdia nunca um dicionrio. Embora algumas enciclopdias possam ter sido designadas por dicionrio e muitas tenham, em comum com o dicionrio, a ordem alfabtica da apresentao dos seus elementos constituintes, nunca nenhum dicionrio pode alguma vez ser confundido com uma enciclopdia. verdade que nenhum dicionrio realiza cabalmente a vertigem de codificao integral da lngua que percorre a sua ideia. verdade que o dicionrio supe sempre uma qualquer abertura (enciclopdica) ao mundo das coisas e dos acontecimentos de que a lngua fala. Mas, a enciclopdia no um dicionrio. (Pombo 2006: 182-183).

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Nesta imagem de livro, comea a perceber-se tambm a relao entre autobiografia e dicionrio que o comentrio de Rosa permite pressupor. A autobiografia, repare-se, poderia apenas ser escrita no dia em que completar cem anos, talvez um pouco antes (ou seja agora). Um dicionrio que faz as vezes da (...) autobiografia partilha, evidentemente, o problema de base da narrativa autobiogrfica, que no pode incluir o momento que a fecha e lhe d forma, que focmos indirectamente ao falar de Meu Tio o Iauaret. Nas palavras de Louis Marin, toute auto-bio-graphie est une auto-bio-thanato-graphie. Le rcit de sa vie par celui qui la vcue tente, par lcriture, de conjoindre le rcit de sa naissance et celui de sa mort (Marin 1991: 118). Ora, a imagem do dicionrio como autobiografia impe ao testemunho autobiogrfico uma ordem que no orientada uma ordem que, na sua aleatoriedade sistemtica, pode ir de A a Z sem implicar em Z uma concluso necessria que retrospectivamente d forma ao todo sem implicar, ou seja, uma sequncia significativa. No fundo, a ideia de um dicionrio que se publica, em vez de uma autobiografia, no limite de uma vida permite, de forma paradoxal, dar forma quela imagem fluida e contnua de livro que Rosa referia na carta que transcrevi na seco anterior: a de um livro que possa ser escrito e reescrito ao longo de toda a vida, bem como continuado para alm da prpria morte do sujeito (no dia em que completar cem anos). Isso implica, porm, a curiosa juno de uma funo pessoal e de uma estrutura que parece transcender qualquer marca subjectiva, a que Lorenz alis parecia reagir no momento em que desviava a entrevista da questo da lngua para a questo, menos importante em relao imagem que Rosa vinha de utilizar, da intimidade; por outro implica a existncia da ordem alfabtica como uma estrutura disponvel para ser preenchida, ou seja como uma estrutura que arma o livro e que lhe d uma forma

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ordenada mas no saturada. Podemos pensar numa afirmao de Roland Barthes em Le Grain de la Voix: Un dictionnaire est un objet parfaitement paradoxal, vertigineux, la fois structur et indfini, ce qui en fait un trs grand exemple, car il est une structure infinie dcentre puisque lordre alphabtique dans lequel il est prsent nimplique aucun centre. (Barthes 1981: 108). Talvez seja interessante voltar aos materiais de arquivo referidos e dar um exemplo concreto, deixado por Rosa entre os seus papis, da forma que poderia assumir esta estrutura vazia. Refiro-me a uma folha (fig. 1) com cabealho da Secretaria de Estado das Relaes Exteriores em que Rosa anota, numa srie alfabtica em grande parte por preencher, uma lista de ttulos, entre os quais reconhecemos quase todos os ttulos publicados por Rosa e ttulos provisrios que circulam pelas anotaes como hipteses mais tarde descartadas ( o caso de Dia a Dentro, ttulo presumivelmente pensado para Primeiras Estrias). Ao lado dos ttulos das obras j publicadas (Corpo de Baile, Grande Serto: Veredas e Sagarana) encontra-se uma marca; ttulos que efectivamente chegaram, mais tarde, a ser utilizados por Rosa (como Estas Estrias e Tutamia9) no se distinguem de hipteses no concretizadas. Independentemente da datao precisa da folha, o que se destaca nesta lista a evidenciao da ordem alfabtica, que identifica as posies por preencher, naquele que se apresenta claramente como um plano da obra. Srie alfabtica e projecto pessoal fundem-se, aqui, nesta plena disponibilidade para um completamento de uma estrutura sobre o vazio que se projecta para o futuro. Como afirma Compagnon, os ttulos so le lieu privilgi dun investissement fantasmatique: rver dcrire des livres (ou de livres crire), cest dabord rver de titres (Compagnon 1979: 332).
Ttulo que, segundo Sperber (1982: 100), aparece j nos originais de Sezo, de 1937. Sperber transcreve a referncia manuscrita por Rosa: melhor rende deixar quieto o mato velho, e ir plantar roa noutra grota. / Tambm, ara!, isto j falar de outro livro, o qual, se Deus der gente vida e sade, vai prestar mais, chamar-se- TUTAMIA e vir logo depois deste, queira Deus!....
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Fig. 1 Arquivo Guimares Rosa (E7 27)

Estranha projeco de biografia literria, que entretanto pe em prtica um fascnio com a lista alfabtica que se encontra reflectido em vrios pontos da obra10, desde a insistncia sobre os catlogos alfabeticamente ordenados11 at e esse o nosso ponto de chegada materializao concreta do jogo alfabtico como construo da

Ver, a propsito, um artigo interessante de Mnica Gama que tambm refere esta lista no quadro de uma relao entre ordem alfabtica e autobiografia (Gama 2007). 11 Um exemplo pertinente, que remata a lista com uma assinatura: a lista dos vaqueiros ( abec desse alardo) no romance do Boi Bonito de Uma Estria de Amor, que termina com Xisto, velho topador. (Ypsilone no tinha.) Zor, Z Sozinho, Zusa. Til que d para atilar: setenta joos e joes! (II 604).

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unidade da obra sobre a forma autonomizada do ttulo: o ndice de Tutamia12. Concretizao ltima das potencialidades da ordem alfabtica, o duplo ndice do livro, que nos ocupar no prximo captulo, encena plenamente a sobreposio entre livro e dicionrio, bem como a figura da linha que costura os livros de Rosa em que se expe a tenso entre forma curta e unidade do volume. No ndice, alguns dos elementos que comemos por ver regressam: a disponibilidade dos ttulos para ocupar as posies vazias das sries alfabticas, a estruturao do livro tornada evidente pelo jogo das letras. Ao mesmo tempo, podemos comear a sugerir, com base numa afirmao de G. Michaud sobre Barthes, que a visibilidade da srie alfabtica um dos movimentos de unificao do livro de contos: Barthes utilise lalphabet comme structure ordonn de lcriture fragmentaire et rintroduit par cette ligne une linearit graphique, un itineraire de point point, cursif et continu, par lequel la lecture doit passer. (Michaud 1983: 60). Mas neste ndice em particular encontramos tambm uma representao da fuso entre autobiografia e dicionarizao da obra. Na constituio dos ttulos como unidades combinadas, o ndice de Rosa perturba a ordem alfabtica para inscrever a sequncia JGR (mais ou menos) a meio do ndice13. A ruptura da ordem alfabtica desequilibra a natureza descentrada da sequncia, oferecendo ao dicionrio um centro, desse modo dando corpo tenso da prescrio autoral descrita por Compagnon: [La prigraphie] situe le texte, le met en place dans lintertexte, elle temoigne du contrle que lauteur exerce sur lui. Cest une scnographie qui met le texte en perspective, et lauteur en est le centre. (Compagnon 1979: 328).

Tema do prximo captulo, pode ser consultado nas pginas 210 e 212. Suzi Sperber (1982) eVera Nvis (1989) sublinham a alterao da ordem alfabtica. O prprio Rosa chamava a ateno para ela, como se pode ver no artigo de Rnai sobre Tutamia: Mostrou-me depois o ndice no comeo do volume, curioso de ver se eu lhe descobria o macete. Ser a ordem alfabtica em que os ttulos esto arrumados? Olhe melhor: h dois que esto fora da ordem. Por qu? Seno eles achavam tudo fcil. (Rnai 1994: 160).
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No momento em que o nome de autor faz a sua intruso no ndice alfabtico temos um efeito de assinatura que confirma a natureza pessoal do dicionrio; mas o nome dispe-se na srie das estrias, nesse espao ambguo e liminar que o ndice de Tutamia, desse modo submetendo-se a um efeito de desestabilizao que alis a marca da voz autoral no livro (pense-se tambm no modo como a assinatura regressa sob forma anagramtica em algumas das epgrafes), desagregada e fundida com a matria ficcional14. Ginette Michaud identificar no ndice alfabtico de Roland Barthes par Roland Barthes (1975) um efeito semelhante: Lorsque Barthes dit adopter la suite des lettres por enchaner des fragments (...) et quil supprime ainsi lauteur en tant que subjectivit ordonnante et composante, il semble abandonner la rection et la rgie du texte fragmentaire au dictionnaire ( la langue). Mais cette mise distance, cette disparition locutoire que permet lordre alphabtique, ne visent-elles pas, en retour, reconduire le pouvoir dune signature, dun nom propre? La neutralit de lordre alphabtique est le signe dune subjectivit sous rature qui continue de faire valoir certain choix et de guider la lecture. Le jeu de lalphabet ne laisse dailleurs pas intact le nom propre lui-mme: ramenant son nom a ses initiales, R.B., comme un clbre J.J. touche au propre de son nom, et signale, par cet autre retour la lettre, une intgrit dsintgre. (Michaud 1983: 70). Neste jogo se define a relao entre a ordem desordenada do dicionrio e uma autobiografia literria: a subsuno do nome prprio ordem sem ordem da ordenao alfabtica cumpre aquilo que nas outras referncias ao dicionrio se prometia. Mas se verdade que o nome de autor passa a integrar, desintegrado, a srie das letras que fazem essa armao vazia do livro, vai faz-lo custa de uma perturbao dessa mesma ordem. O que resulta como imagem final desse ndice a negao, no fundo, de dois dos traos da forma-dicionrio que temos vindo a acompanhar: uma reafirmao do nome de autor no interior da srie que entregaria a organizao regra do dicionrio,
Cf. Finazzi-Agr 2001: 45: o nome do autor [...] aparece assim, ao mesmo tempo, como sujeito que classifica e como objeto classificado, dentro e fora do seu discurso (segundo, mais uma vez, a leia ubquas da heterotopia), ficando para sempre enredado, por assim dizer, nas malhas da letra.
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desse modo assinando, aqui plenamente, essa mesma srie (o dicionrio pessoal); e a subverso da arbitrariedade da srie com a inscrio, violenta, do nome de autor no centro dessa estrutura supostamente decentrada. A prescrio de leitura que este ndice constitui faz do autor o ponto necessrio de passagem e de resistncia de uma estrutura sem estrutura. Contra o arbitrrio que o dicionrio institui, a assinatura afirma a unidade do nome, que se preserva e no se deixa inteiramente decompor, imprimindo-se como um desvio na materialidade do livro. Destri, dicionarizada, a ideia de um livro com princpio e fim, para no mesmo gesto reafirmar a estrutura de um livro que se alimenta do seu centro. Nesta estranha afirmao do livro atravs do dicionrio temos uma imagem talvez mais prxima daquilo que tentei at agora descrever como livro em Rosa: o livro costurado, que reafirma a sua unidade desordenada no interior do seu circuito.

motivos para a obra

and what is the use of a book, thought Alice, without pictures or conversation? Alice in Wonderland

A distino entre uma forma de livro convencional e regionalista e uma escritura revolucionria traduz tambm outra dimenso da invisibilidade do livro em Guimares Rosa: a dimenso de artefacto que estes livros mantm e reafirmam ao longo das suas edies. interessante, na afirmao de Haroldo de Campos, que se sublinhe explicitamente o peso que o grafismo dos livros de Rosa teve sobre a sua

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leitura. A apresentao regionalista ajuda a remeter o experimentalismo rosiano apenas para o nvel lingustico, num movimento de reforo da referencialidade que apaga do trabalho grfico sobre o livro o questionamento do meio de representao. Decisivos para essa imagem foram a linha grfica da editora Jos Olympio, que publicou todos os livros de Rosa, e os desenhos dos dois ilustradores quase oficiais, Poty e Lus Jardim, inspirados na paisagem sertaneja. Assim, a acentuao visual de um vnculo realidade regional e sertaneja parece reforar a recriao da oralidade aparentemente arcaica da fico de Rosa. No entanto, essa recriao feita, como vimos no primeiro captulo, no interior de uma escrita que a permite, que lhe d existncia e que a questiona. A dicotomia oral/escrito uma dicotomia estruturadora do universo rosiano, que tende a dissolver a sua fronteira; o problema da ilustrao em Rosa ajuda assim a perceber, noutro plano, o que est em causa na supresso da escrita como materialidade e na invisibilidade do livro. Voltando aos termos de Benjamin (1992a: 87), poderamos ver na obra de Rosa a construo de um mundo que voluntariamente oscila entre os traos orais dos narradores e a dependncia do livro prpria do romance moderno. na tenso entre essas duas dimenses que se acentua uma oralidade impossvel, ou paradoxal, absorvida, talvez devorada pela escrita. A associao do livro, em Rosa, a uma dimenso convencional e regionalista um gesto de recusa da modernidade do projecto rosiano. Nas associaes que reflecte reside talvez a razo para que um caso to radical, na literatura brasileira, de investimento na construo do livro tenha passado, a esse nvel, praticamente despercebido. Uma leitura atenta das edies preparadas por Rosa, e agora, em parte, restauradas, mostra claramente na obra do autor uma acentuao da dimenso material do livro. Nas palavras do estudo de Johanna Drucker sobre a tipografia experimental, o que est em causa an investigation upon the book as an artists medium, rather than
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an editor or publishers domain (Drucker 1994: 227). O controle autoral sobre a forma do livro testemunhado, de diferentes modos, tanto pela prpria editora, quanto pela correspondncia com os tradutores e com editoras estrangeiras. A interveno que a editora mais sublinha sobre a dimenso grfica do livro:

Guimares Rosa logo comeou a participar da preparao editorial do opsculo, como acontecia sempre que reparvamos edio ou reedio de qualquer livro seu intervenes grficas que acatvamos: ele sugeria o feitio das capas (em 1956 ficou sete horas ao telefone, trocando ideias com Poty sobre o desenho de capa de Corpo de Baile), rabiscava vinhetas ou ornatos (foram de sua escolha os cul-de-lamps de Tutamia feitos por Luis Jardim: um deles, desenho de um caranguejo, o smbolo do signo zodiacal do escritor), apresentava curiosos originais por ele mesmo rascunhados, desenvolvidos definitivamente, e com satisfao, pelos artistas que tambm ele escolhia e que fizeram capas e ilustraes para os seus livros. Trouxe sempre as orelhas para seus livros (Vrios 1968: 8). A editora tinha j uma longa tradio no domnio da ilustrao, mas Rosa parece ter sido dos casos de maior investimento na relao entre autor e ilustrador. O material editado por Paulo Rnai na publicao pstuma do volume Estas Estrias pode ser disso exemplo; podemos observar os ndices provisrios, desenhados pelo autor como indicaes para a ilustrao (cf. Rosa 1969: xii; xx). De modo mais evidente, uma pgina de material de arquivo (reproduzida em Covizzi 2003) prescreve as ilustraes de capa de Tutamia. Os livros eram escrupulosamente executados sob as instrues de Rosa, que tinha acesso a todas as etapas da produo do livro. Os prprios textos promocionais eram escritos ou sugeridos pelo autor; e ficaram famosos episdios em que Rosa, na reviso atenta das provas dos livros, apropriava gralhas e erros que considerava sugestivos para alteraes s novas edies (Rosa 2006b: 5).

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Fig. 2 Indicaes para a ilustrao da capa (apud Covizzi 2003: 408) e capa da 1 ed. de Tutamia (Rosa 1967)

No entanto, as implicaes deste acompanhamento da produo do livro vo alm de uma reafirmao da autoria. Permitem, por um lado, perceber a complexidade daquilo a que podemos chamar os projectos de livro rosianos, e por outro tornam evidente o modo como os materiais paratextuais so postos ao servio de uma

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indicao geral de leitura. Veja-se, por exemplo, a nota da editora da badana do segundo volume de Corpo de Baile:

Como escolher? Guimares Rosa no o sabia e o cu indiferente no se apiedava de suas dvidas, de seus olhos deslumbrados por todos aqueles motivos to prximos do corao que despertava ao vento dos gerais soprando entre aquelas figuras realizadas de cores e linhas. Afinal, porque entre o livro e a capa que agora o cinge havia uma identidade que o escritor descobria com lucidez e ternura, eis que um e outra animavam-se do profuso e do variado, os leitores contemplam neste momento a vencedora de um prlio difcil e talvez marcado pela insnia. Por isso mesmo que Guimares Rosa, sem nada tirar da sua enorme admirao pelos outros (...), entusiasmou-se tambm com Poty, e sonha lev-lo um dia ao serto, s boiadas, aos campos-gerais, s veredas, na busca de croquis e desenhos de um artista que carrega poesia, que transcende sempre, que sabe beirar o mistrio... (Rosa 1956b).

Por um lado, sublinha-se a ideia de uma adequao entre a capa e o texto que o livro edita, precisamente aquilo a que Haroldo de Campos parecia reagir, ao denunciar as capas convencionais contra a escritura revolucionria que albergariam; por outro, insiste-se no referente geogrfico do universo rosiano e no seu modelo mimtico: levar o ilustrador aos Gerais como forma de aprofundar, ou de legitimar pela experincia, a relao de identidade entre os desenhos e a realidade geogrfica representada nos livros. Mais uma vez em Rosa (ou a partir de Rosa nessa oscilao que se situam muitos dos materiais editoriais apresentados pela Jos Olympio no livro Em Memria de Guimares Rosa) que se encontra a origem de alguns dos mitos que mais directamente perpassam a sua leitura: a vinculao mimtica, ou a grfica da presena que a apresentao do livro destaca (o vento dos gerais soprando entre aquelas figuras realizadas de cores e linhas, eixo da identidade entre capa e livro) suprime todo o problema da articulao entre imagem e texto como marca de uma construo do livro

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atravs do paratexto. nessa linha, em grande parte motivada pelo prprio Rosa, que foram lidas as edies dos seus livros a leitura de Haroldo de Campo sendo, assim, sintomtica sobretudo de uma discrepncia entre imaginrios distintos. importante situar estas ilustraes na articulao entre a composio daquilo que Michel Butor refere como o volume a trs dimenses (Butor 1992a: 134)15 e uma forma de escrita visual. Na autoria delegada da ilustrao dos livros temos, no fundo, um dos gestos essenciais da construo do livro rosiano. A sua recuperao leva-nos a uma interrogao do papel do livro na potica de Rosa a partir das formas de interaco entre os modos de referncia e de apresentao16. No fundo, na tenso entre texto e imagem que a ideia de um livro que no se deixa terminar construda, como veremos; com a omisso do paratexto, a prpria ideia de livro dissolve-se. O exemplo mais extremo a incluso de Tutamia no volume da Fico Completa sem qualquer referncia aos dois ndices, e nem sequer inverso do ttulo que o segundo pratica: no Tutamia o livro que o volume da Aguilar pretende englobar, porque a edio retira a Tutamia aquilo que o torna (paradoxalmente, como veremos) um livro (no sentido rosiano do termo). O mesmo se passa, em medida diferente, com os outros ttulos de Rosa. Como afirma Johanna Drucker em The Visible Word: It is in material that the activity of signification is produced, and the works here investigated simply make the extreme case for what is the norm. Lettre-Ocan would cease to exist as such were it rendered in different form, its being depends on its material existence in specific terms. (Drucker 1994: 246).

Les peintres menseigne voir; lire, composer, donc crire, disposer des signes dans une page. En Extrme-Orient, la calligraphie a toujours t considre comme la communication necssaire entre peinture et posie. Nous avons aujourdhui larrangement du livre. (Butor 1992b: 177). 16 Material specificity enters into the final sum of semantic and symbolic value which collapses the planes of imago and logos in an uncomfortable and disturbing blend of presentational and referential modes. (Drucker 1994: 245).

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Se observarmos os livros publicados por Rosa depois de Sagarana, uma constante impe-se: do gigantismo de Grande Serto: Veredas ao minimalismo de Tutamia, das novelas de Corpo de Baile forma da estria, as obras tm em comum o trabalho sobre uma construo que, sendo ainda texto, extrapola os limites da fico para afectar directamente o objecto livro e marcar nele esse desejo de configurao. Do mesmo modo, todos os livros posteriores a Sagarana parecem construir-se sobre uma forma estrutural de desdobramento que pe em causa a noo de margem e que nos faz regressar ao problema da closure, desta vez em articulao com a forma do livro. Os casos extremos desta dupla configurao so os livros que apresentam um duplo ndice Corpo de Baile, de 1956, e Tutamia, de 1967 que analisarei em detalhe no prximo captulo. Antes, porm, uma breve considerao dos outros livros publicados depois de Sagarana, Grande Serto: Veredas e Primeiras Estrias, pode permitir a identificao de algumas das linhas centrais do problema do livro em Rosa tal como se concretizaro nos casos estudados. Num artigo intitulado As epgrafes de Sagarana, Franklin de Oliveira descrevia deste modo o primeiro livro de Guimares Rosa: Em Sagarana tudo est magistralmente ordenado, disposto para bem funcionar, desde o simples grafismo s partes que representam, no contexto, o tecido conjuntivo, as dobras de passagem, as pontes entre uma situao e outra, um episdio e outro. Seu grafismo recorda, em certo sentido, o de Frey Luis de Leon, do qual Roman Menendez Pidal disse: su arte era en todo reflexivo y meditado; arte de seleccion cuidadosa de palavras y hasta de letras; arte de clculo e medida en la disposicin de frases [sic]. Em livro de tal forma elaborado, as epgrafes teriam tambm de ser dinmicas. Elas so uma espcie de formulao algbrica das histrias: siglas em arquitrave, clave e cimalha das novelas. (Oliveira 1962: 5).

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A abordagem a Sagarana com base na integrao dos seus diferentes elementos no era, nem , comum; e importante que Franklin de Oliveira insista explicitamente sobre o grafismo, traduzindo assim uma ideia de composio integrada que deixa pressupor a ideia (que com base no mesmo grafismo Haroldo de Campos rejeitava) de uma arquitectura do livro, explcita na escolha das metforas. Ao mesmo tempo, o comentrio sublinha tambm a estreita ligao entre ilustrao e elementos paratextuais: toda a composio de Sagarana depende da articulao dessas duas dimenses para a configurao de unidade do livro. Franklin de Oliveira parece pressentir, em Sagarana, aspectos que os restantes livros de Rosa iro desenvolver plenamente. No entanto, aquilo que nesse livro ainda no visvel ir ser o trao mais especfico (e menos acentuado) da configurao do livro nesta obra. Para alm de Sagarana, todos os livros publicados em vida por Guimares Rosa tm algum tipo de encenao desdobrada do ndice, elemento que indica a configurao do livro, que decorre da sua materialidade linear mas que abre a possibilidade de uma leitura no linear, mapa do territrio do livro que d dele a primeira imagem, decomposto e reunificado nos factores que o constituem. Grande Serto: Veredas, porm, no tem ndice. Numa ausncia de quadro com vrios pontos de contacto com Meu Tio o Iauaret, o romance composto apenas por uma longa fala sem interrupes, do travesso que o abre ao ponto final, e concludo pelo smbolo do infinito (sacrificado por muitas edies), que postula graficamente o seu recomear. Mas h, no romance, uma marca de desdobramento que cria um efeito de moldura semelhante ao que iremos encontrar nos ndices desdobrados, e que talvez a representao mais forte, na obra de Rosa, das dificuldades que o Serto coloca enquanto cifra de uma mimese complexa em que descrio e comentrio continuamente se sobrepem. As duas badanas do livro, a partir da segunda edio (1958), so

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ilustradas por Poty que, seguindo as indicaes de Rosa, desenhou dois mapas que cobrem a regio da bacia hidrogrfica do Rio S. Francisco. Vrios smbolos acompanham desenhos de momentos identificveis do enredo. No volume pstumo de homenagem, um depoimento do editor considera os dois projectos de mapas executados por Poty: Acaso ser fcil adivinhar o que so esses desenhos cabalsticos? Por certo que no: pois so desenhos que Poty executou a pedido de Rosa e tudo por ele sugerido ou esboado para as orelhas da segunda edio de Grande Serto: Veredas (...). Procurmos com Poty identificar os smbolos que ele desenhara h anos. Em vo: nada sabia. Rosa sugeria-lhe os motivos mas nada explicava. (Vrios 1968: 119).

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Fig. 3 Capa e contracapa da 6 edio de Grande Serto: Veredas (Rosa 1968).

O prprio Poty, na entrevista que deu para o documentrio Os Nomes do Rosa, de Pedro Bial, afirma: Foram quatro as verses do mapa. O mapa era sempre o mesmo, mas as figuras, ele mudava: Essa pra c. Tira mais um pouco. Acrescente esse diabo. No, pe ali. No, pe aqui. At que chegou no ponto que ele queria. O que ele pretendia, no sei, no. Ele me disse os elementos e eu compus: o diabo, a personagem feminina, a coruja... O smbolo do infinito era s o que ele queria como ilustrao, no final, alm do mapa. Eu presumo que o mapa como se fosse um resumo do livro. (apud Martins Costa 2006a: 34).

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Numa relao no linear (em forma de esquadro) estes dois mapas abrem e fecham o livro no corpo das capas identificadas por Haroldo de Campos como convencionais17. Podemos colocar a hiptese de esse desdobramento corresponder, de certa forma, ao desdobramento dos ndices no livro imediatamente anterior. O que equivale a interrogar, desde j, o sentido do ndice e o sentido do mapa, e a hiptese de o mapa ser, tambm, uma indicao de leitura, disposio de elementos da fabula numa ordem espacial e proposta de organizao que no una e que ser tambm objecto de leitura, como alis prprio da natureza hbrida do mapa, dividida entre apresentao e interpretao. Como uma espcie de ndice grfico, o mapa indica e institui, na margem do livro, uma totalidade visual desenho, ilustrao que sugere e perturba a referncia ao Serto, sntese que obliquamente abraa o livro que representa, contribuindo ao mesmo tempo para a sua forma. Num certo sentido, podemos encontrar essa tenso num dos trs elementos que, segundo Walter Moser, constituem a enciclopdia18: O Sistema, o Dicionrio, e o Mapa. Claire de Obaldia aproximar o terceiro destes termos da figura do ndice:

Para uma leitura do sentido oculto destes mapas e dos aspectos liminares do romance como prtico do edifcio cf. Utza 1994: 55-78; para uma leitura recente do papel da cartografia em Grande Serto: Veredas cf. Bolle 2004:47-89. 18 Dans leur complmentarit, Systme et Dictionnaire suffiraient pour constituer lencyclopdie. On est en droit de se demander ce que peut encore y apporter le troisime lment, la Carte, appel aussi mappemonde, systme figur, tableau. A premire vue, il semble avoir le statut dun supplment, dun lment qui nest pas ncessaire, parce-quil sajoute un ouvrage qui est dej complet. Il semble constituer une information redondante, issue dune traduction transsmiotique, qui dirait encore une fois la mme chose dans un autre registre smiotique. Cest que, tableau synoptique, il relve dune autre textualit. Faisant la transition au pictural, il se situe en marge du domaine discursif verbal qui est commun au Systme et au Dictionnaire. Le fait est dailleurs confirm par the problme technique que pose son insertion dans le livre. Cependant, la marginalit de la carte (...) se trouve tre contredite par le fait que lidal dune rpresentation synoptique se maintien avec linsistence dun fantasme travers toute lhistoire du projet encyclopdique dont il semble mme vouloir occuper le centre. De nombreuses citations pourraient confirmer cette ide de Novalis: Plus il est difficile de mettre un livre dand un tableau, moins il est bon (...). Ici la relation est renverse: la Carta apparat maintenant comme louvrage complet par excellence et le livre comme sa version supplmentaire, sa prparation ou son commentaire. Lobjectif ultime du projet encyclopdique rside dsormais dans ltablissement dune Carte parfaite prsentant le dcoupage de tous les savoirs, disciplines, pratiques ainsi que leurs relations rciproques, la fois gnalogiques et systmatiques, sous un seul et mme coup doeil du lecteur. Et le livre ne serait plus quune phase prparatoire et auxiliaire sur la voie royale de cette reprsentation suprme. (Moser 1979: 503-504).

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In terms of the modern encyclopedia, the table can be identified with the third mode of representation beside the Dictionary and the System: the Map. The table is a reduced model, a tabular synopsis of the System the continuous, cohesive philosophical or scientific discourse which forms the underlying network of relations between the scattered, heterogeneous elements of the dictionary. (Obaldia 1995: 173). Assim, os mapas de Grande Serto, heterogneos e desestabilizadores (em termos de simbologia e de referncia) teriam uma funo sinttica e estrutural, figura que constri o livro e que tambm o ameaa, prxima de alguns aspectos que destacarei a propsito dos ndices na prxima seco. Antonio Candido, no artigo de 1957 sobre Grande Serto, j associava a representao do Rio So Francisco estruturao dicotmica do romance atravs da imagem do mapa de Minas (quando os mapas s seriam includos na edio do ano seguinte): Dobrados sobre o mapa, somos capazes de identificar a maioria dos topnimos e o risco aproximado das cavalgadas. O mundo de Guimares Rosa parece esgotar-se na observao. Cautela, todavia. Premido pela curiosidade o mapa se desarticula e foge. (...) Desdobremos bem o mapa. Como um largo couro de boi, o Norte de Minas se alastra, cortado no fio do lombo pelo So Francisco, acidente fsico e realidade mgica, curso dgua e deus fluvial, eixo do Serto. (Candido 1964: 124).

Como Candido assinala, os mapas postulam, tambm, uma das dicotomias centrais da constituio deste universo potico: um espao que geogrfico e que potico, ao mesmo tempo igual mas diferente daquilo que representa. A distribuio espacial e geogrfica constitui outra distribuio dos momentos e tempos da narrao, que extravasa a construo narrativa da voz de Riobaldo e que se mostra ao leitor, sobrepondo comentrio do mundo e comentrio do livro. Assim, na relao do romance com o mapa revela-se a tenso entre a descrio referencial e o comentrio da construo do romance; e na sequncia central, exactamente a meio do livro, o texto

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identifica plenamente o lugar dessa tenso: O So Francisco partiu minha vida em duas partes. (II 199). Rosa regressar publicao em livro sete anos depois, com o novo formato da estria que ir marcar toda a sua produo subsequente. Primeiras Estrias apresentar, tambm, um jogo liminar, alis sublinhado pela prpria edio. O ndice ilustrado: para cada ttulo, para cada estria, o livro apresenta um desenho do ilustrador Lus Jardim. Diz-nos a nota da editora: Primeiras Estrias apresentam a novidade de um ndice ilustrado: a pedido do autor, Jardim fez desenhos-miniaturas, com pacincia chinesa, para cada uma das estrias, compondo o conjunto de bonito ndice geral (Rosa 1962). Mais uma vez, sublinha-se que o arranjo grfico e os jogos formais da edio derivam expressamente da interveno grfica de Rosa. Nesses desenhos, vamos encontrar vrios dos smbolos que pontuam os mapas do Serto e, ao mesmo tempo, uma leitura visual das estrias, numa abstraco de sentido que as aproxima da caracterizao enftica que Franklin de Oliveira, no artigo citado, fazia das epgrafes de Sagarana: Acusam o que vai vir; condensam a dimenso metafsica. So inscries que encerram o tema, compendiando-o in nuce. s vezes so uma s pea ssea que permite a reconstituio do esqueleto da fbula. Outras vezes funcionam como um bordo de arrimo: tm algo de refro, ritornelo. Situam previamente o tema em seus paralelos e meridianos. So temas simblicos, diagramas metafsicos. Constituem a fronteira superior, o tecto transcendente das histrias. So as prprias novelas cristalizadas em teoremas poticos postos em alto relevo dos quais as novelas, as histrias a desempenhar, em seu curso, a demonstrao viva. (Oliveira 1962: 5).

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Fig. 4 - Primeiras Estrias capa e contracapa da 1 edio (Rosa 1962).

Trata-se de um desdobramento, tambm, e de uma construo grfica que, tal como os mapas de Grande Serto: Veredas, faz da moldura, das badanas dobradas para
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o interior do livro, o espao de uma leitura grfica que identifica e sublinha o livro como forma. Mas o ndice ilustrado, na primeira edio, reproduzido ainda no final do livro: deste modo fazendo-se contraponto ao ndice verbal e apresentando uma duplicao semelhante que veremos com Corpo de Baile e Tutamia. Nestes exemplos torna-se evidente que a repetio (e a remisso, como o dicionrio) o recurso sobre o qual o livro se faz: ou questionando o processo de leitura (ordem, conscincia das classificaes de gnero, legibilidade) ou na sobreposio ou justaposio metonmica de elementos de ordem diferente (visual, verbal). As imagens, neste sentido, apresentam outra leitura do texto, ou outra traduo, desestabilizando a sua natureza referencial em direco, talvez, ao que Benjamin definia no final do ensaio sobre o narrador como ideogram of a story: A proverb, one might say, is a ruin which stands on the site of an old story and in which a moral twines about a happening like ivy around a wall (Benjamin 1992: 107). Ideogramas visuais que se apresentam no limiar das estrias, as ilustraes de Jardim sugerem tambm a profunda coerncia do universo do livro.

fora das molduras O que no ndice ilustrado de Primeiras Estrias tambm se deixa entrever, porm, uma questo mais complexa que articula a construo narrativa com o efeito de moldura que a ilustrao cria, interrogando mais uma vez o problema, agora no livro, da concluso. Porque o jogo de espelhos que se institui nestes constantes desdobramentos a que a capa destes livros d corpo tambm cifra de uma duplicao interna. Tal como em Corpo de Baile, a primeira e a ltima das narrativas que compem Primeiras Estrias esto em relao. No livro de 1956, a viagem de Miguilim para fora do espao do Mutm, que fechava Campo Geral, invertida no momento terminal do romance, com a chegada esperada de Miguel, j adulto, ao Buriti Bom, regresso omitido

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sobre o qual o livro se suspende, diante do dia (I 988). No livro de 1962, a viagem do Menino no primeiro conto, As Margens da Alegria, repetida e invertida em Os Cimos (e o inverso afastamento o ttulo da seco que o abre), estria que ir, tambm, fechar o livro sobre a imagem de um regresso o voo de avio de volta para casa, para longe do lugar onde se construa a grande cidade (II 389) tambm ele enigmaticamente suspenso e diferido: E era o inesquecvel de-repente, de que podia traspassar-se, e a calma, inclusa. Durou um nem-nada, como a palha se desfaz, e, no comum, na gente no cabe: paisagem, e tudo, fora das molduras. Como se ele estivesse com a Me, s, salva, sorridente, e todos, e o Macaquinho com uma bonita gravata verde no alpendre do terreirinho das altas rvores... e no jeep aos bons solavancos... e em toda-a-parte... no mesmo instante s... o primeiro ponto do dia... donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao voo, ainda muito mais vivo, entoante e existente parado que no se acabava do tucano, que vem comer frutinhas na dourada copa, nos altos vales da aurora, ali junto de casa. S aquilo. S tudo. - Chegamos, afinal! o Tio falou. - Ah, no. Ainda no... respondeu o Menino. Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida. (II 515)

Trata-se de uma das passagens mais impressionantes de Rosa, tambm porque nela se mostra de forma muito clara a tenso do limite de que temos vindo a falar. Na oposio entre o comentrio do tio e a resposta reticente da criana temos a concretizao liminar das duas temporalidades do livro que at agora encontrmos. A figura do tio, que ao longo do conto inseparvel do relgio, marca o regresso como orientao e trmino; a criana, que acaba de descobrir a paisagem e tudo, fora das molduras na temporalidade suspensa (tempo-sobre-tempo) da epifania, reage protestando contra aquilo que s se lhe pode apresentar como uma interrupo. E a extraordinria linha que fecha o livro, na sua ciso, talvez seja uma encenao directa do que est em causa na prpria ideia de concluso do livro: o sorriso fechado e

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enigmtico da criana faz-se aqui contra a vida que vem no virar da pgina e contra o tempo que o fim do livro quer enfim impor. Fechada, a criana ainda no cumpriu o seu movimento, que se prolonga assim no espao intersticial que o corpo da criana delimita contra a margem vazia da pgina. O movimento do livro , deste modo, de resistncia ao limite, na afirmao da temporalidade suspensa da descoberta da criana como o espao de um limiar que resiste ao mundo fora do livro. Ora, o modo como ndices e capa conjugam a ilustrao dos smbolos dessa suspenso (peru, tucano, macaquinho, o sol no renascer) numa simultaneidade atemporal que abraa o livro pode apresentar-se, ento, como prolongamento dessa zona de fronteira que a recusa do fim institui, dessa zona onde o tempo se suspende. Assim, a margem do livro ainda o espao da suspenso, onde tudo se pode apresentar simultaneamente19. Nestas articulaes estruturais, que tanto em Corpo de Baile como em Primeiras Estrias problematizam narrativamente o limite fsico do livro e pem em relao na moldura fora das molduras o seu incio e o seu fim, o que se define uma unidade do livro de estrias construda sobre o movimento da leitura na sua temporalidade (representada na evoluo, de vez a vez, do Menino/Miguel), num movimento de repetio e diferena que institui uma remisso interna e fecha o livro ao exterior. Nos dois casos, a margem transformada em quadro (em Corpo de Baile, como veremos, pela duplicao dos ndices; em Primeiras Estrias pela badana ilustrada que repete o ndice envolvendo o livro) repete este dobrar-se do livro sobre si atravs das suas extremidades.

Na leitura de Ana Paula Pacheco, ao contrrio, os dois contos sobre o Menino seriam a moldura temporal do romance, no sentido em que instituiriam a referncia ao tempo histrico atravs de Braslia como a cidade em construo: No deixa de ter interesse, entretanto, o fato de que, a esta altura da obra rosiana, a recriao cosmognica se veja de frente com uma recriao do pas, em cimento armado, o que a faz recuar a um lugar contraditrio, de cosmogonia privada ou de idealismo individual, ainda que com Menino Alegrico. Neste quadro, a leitura da frase final ganha um sentido diametralmente oposto: Absorto, ele reclama quando o Tio avisa que chegaram, mas agora a vida podia continuar (Pacheco 2006: 27).

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Em Primeiras Estrias, porm, esse efeito reforado por um dos movimentos decisivos do trabalho de Rosa sobre o livro, que aqui poderei apenas sugerir: o ndice de Primeiras Estrias um ndice plenamente centrado. A meio das vinte e uma estrias que o compem, o livro emoldurado pelas duas narrativas do Menino vai incluir um dos contos mais conhecidos e complexos de Rosa, O Espelho, que tem como ponto de fuga a descoberta, no espelho esvaziado, de um rostinho de menino, de menos-quemenino s. S. (II 442). Meio do livro, que o divide em duas partes e que marca, plenamente, a imagem do livro rosiano que aqui perseguimos: uma moldura orientada para um interior que tem no seu centro o ponto de fuga da prpria proliferao do livro, do seu transbordamento. E no por acaso que a experincia insana que leva o protagonista ao desenvolvimento de uma tcnica para progressivamente se libertar das camadas falsas da sua imagem, at descobrir a vertigem de um vazio nascente no qual a ideia de infncia, em Rosa, encontra o seu lugar, tem origem no resultado perturbador do encontro de dois espelhos. Diz o narrador: Explico-lhe: dois espelhos um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ngulo propcio faziam jogo. (...) O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelao? (II 439). O centro do livro, como ponto em que a orientao se suspende num movimento de ida-e-volta a confuso do mensageiro , volta aqui a repropor-se. O jogo entre as margens as estrias da infncia e a descoberta de um centro que as reflecte numa imagem que suspende o tempo a base da estrutura de Primeiras Estrias. E talvez o sentido desta estranha construo esteja fixado numa imagem de Benjamin em Passagenwerk: Let two mirrors reflect each other; then Satan plays his favorite trick and opens here in his way (as his partner does in lovers' gazes) the perspective on infinity. (Benjamin 2002: 877). Assim, a circularidade que estes livros constroem em torno de um centro e recorde-se uma das sete epgrafes de Corpo de Baile: num crculo, o centro

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naturalmente imvel; mas se a circunferncia tambm o fosse, no seria ela seno um centro imenso (Rosa 1956)20 constri-se em tenso com a temporalidade do livro. Se a linha de fundo das Primeiras Estrias, como As Margens da Alegria parece indicar, a descoberta do tempo e da sua superao, a imagem do centro em que dois movimentos de sentido contrrio se encontram e anulam uma figura da sua suspenso. tambm dessa tenso que se alimenta a construo material do livro, se pensarmos numa afirmao como esta de Hillis Miller, que nos serve agora de passagem para a prxima seco: The power of a picture is to detach a moment from its temporal sequence and make it hang there in a perpetual non-present representational present, without past or future. The power of presentation in an illustration is so strong that it suspends all memory and anticipation inscribed in words, for example in the necessary allusion to temporality of verb tenses in captions. (...) A picture, labelled or not, is a permanent parabasis, an eternal moment suspending, for the moment at least, any attempt to tell a story through time. (Miller 1992b: 66).

A edio da Nova Aguilar suprime as sete epgrafes gerais do livro, de Plotino e de Ruysbroeck. Reunidas depois do ndice na primeira e na segunda edio, sero distribudas, como veremos no prximo captulo, pelos trs volumes em que Corpo de Baile foi desdobrado em 1964.

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Indicaes de leitura

And what are you, reader, but a Loose-Fish and a Fast-Fish, too? Herman Melville, Moby Dick

O contrrio da idia-fixa no a idia solta. Tutamia

ndices Corpo de Baile e Tutamia podem ser considerados os dois extremos deste problema da relao do livro com o livro. Se o desdobramento do paratexto atravessa todos os livros de Guimares Rosa depois de Sagarana, s nestes dois o recurso se materializa numa duplicao dos ndices, em abertura e concluso, que pe em causa a configurao da ordem do livro. Com mais de dez anos de distncia entre eles, Corpo de Baile e Tutamia fazem do ndice rosiano um espao de explcita indicao de leitura, mais sofisticado e elaborado, no segundo caso, como se Rosa regressasse a esse desdobramento inicial para o expandir enquanto imagem de livro. Nessa clarificao

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que Tutamia representa, luz da qual me proponho ler o livro de 1956, o ndice no final ganhar o nome de ndice de Releitura, materializando a tenso entre histria e fim que atravessa os exemplos que vimos num literal relanamento do livro alm do seu limite. Um livro que termina com um ndice de Releitura que no coincide com a ordem material do livro, nem com a imagem que dela dava o primeiro ndice, projectase em duas direces no exactamente equivalentes: de um lado, encaminha os passos do leitor para um movimento recursivo, de ida e volta, que a partir do momento em que institudo no tem (ou j no precisa de ter) termo, pois fez da repetio, ainda que diferenciada, o gesto da leitura; do outro, atendendo aos primeiros traos que j aqui se definiram da figura do ndice, o livro cartografa-se, nos seus dois momentos liminares, de forma no coincidente. Se a imagem do todo do livro que o ndice projecta imagem da organizao do livro como unidade, da diviso em partes e da natureza dessas partes, da diferenciao entre o que lhe pertence, o que faz fronteira e o que lhe exterior corrigida pelo prprio livro no final da leitura, a releitura, enquanto errata, uma reconfigurao do livro, do todo do livro, com base apenas na diferena entre livro e livro. Neste ponto, j temos uma materializao dessa imagem: a carta relida, s tristes vezes, feito no fosse aquel[a] que ele mesmo tinha fornecido (I 507) de Campo Geral, em que a diferena se insinua irremediavelmente no seio da carta como consequncia de um circuito de ida e volta. Veremos que os ndices de releitura destes livros faro destas duas direces os caminhos de interrogao da possibilidade do livro; e que nessa interrogao a prpria delimitao entre autor e leitor, prescrio e liberdade, livro e partes que o compem ser posta em causa pelos elementos de fronteira que se faro eixo desta operao de desdobramento: parbases e prefcios. Um ndice que questiona a ordem do livro, que institui um percurso que no linear para o leitor e que produz dois livros: no estamos longe, na descrio anterior,
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do territrio de Rayuela. Poucos ndices tornam to visvel a sobreposio entre prlogo e ndice (ou, nos termos de Genette, a atribuio ao ndice de uma instance prfacielle1) como o Tablero de Direccin que abre o romance do autor argentino. A funo ao mesmo tempo descritiva e prescritiva do ndice liminar ganha forma atravs da figura do jogo e da exposio das suas regras. Com a abertura A su manera este libro es muchos libros, pero sobre todo es dos libros (Cortzar 1966: 7) , Cortzar traz para as regras uma ideia de livro (um livro muitos livros) e uma prescrio (mas , antes de mais, dois livros), que imediatamente traduz em convite para um leitor aparentemente livre de escolher (quando o livro se faz na diferena entre as duas, ou mais, combinaes que permite)2. Na acentuao da combinao sobre a repetio reside talvez a principal diferena entre a construo do livro a partir do ndice em Rayuela (mas tambm em Perec, por exemplo) e a que encontramos nos livros costurados de Guimares Rosa, fazendo predominar a dimenso temporal sobre a espacial. Mas em Corpo de Baile e Tutamia tambm no modo como o ndice abarca as funes prefaciais, estabelecendo um itinerrio de leitura sem recorrer a uma primeira pessoa autoral a ponto de, como veremos com Tutamia, prefcios e nome de autor estarem sujeitos regra do ndice, e a enunciao das regras do jogo se fazer no espao da epgrafe que se refora a ideia de um livro que se projecta a partir do seu interior.
Cf. Genette 1987: 164-198. No deixa de ser curiosa, na economia de Seuils, a fraca ateno dedicada posio do ndice, que alis, como sublinha Bernard Magn a propsito de Perec (Magn 2004: 74), se repete tambm em relao ao uso literrio dos ndices remissivos. O ndice reduzido a rien dautre quun instrument de rappel (...) ou dannonce, mais ou menos fiel ao appareil intertitulaire (Genette 1987: 320). Talvez a marca mais flagrante dessa falta de ateno esteja numa questo que interessa directamente este texto, ou seja na caracterizao das diferenas entre a posio inaugural ou final do ndice: Ces deux types de redoublement ne squivalent certes pas, et le second parat incontestablement plus logique, mme sil choque les habitudes du lecteur franais, avec un vague sentiment esthtique dinlgance. Mais ne surestimons pas ces effets de place: rien nest plus facile ni plus courant, au moins dans un rgime de lecture de type intellectuel, quun coup doeil pralable une table place en fin de volume. (idem, ibidem). 2 Veja-se a declarao de Morelli no captulo 154: Mi libro se puede leer como a uno le d la gana. Liber Fulguralis, hojas mnticas, y as va. Lo ms que hago es ponerlo como a m me gustara releerlo. Y en el peor de los casos, si se equivocan, a lo mejor queda perfecto. (Cortzar 1966: 627).
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Intervalo

As duas pginas anteriores, e tambm esta, no foram escritas depois da cento e catorze, como seria lgico, mas em dez de Dezembro. E quando amanh (onze de Dezembro) comear este dirio cheio de preocupaes pelo destino que me aguarda na pgina cento e quinze, ento ainda branca como hei-de escrever , mentirei escandalosamente. Essa pgina j no ser pertena do futuro, no aguardar um destino imprevisvel (coisas de cortar o meu corao e o corao do mundo), estar escrita h vinte e quatro horas, ser o passado foi a primeira deste dirio a ser escrita, e esta a terceira. Augusto Abelaira, Bolor

Corpo de Baile sai em Janeiro de 1956. Composto por sete novelas, o livro dividido em dois volumes, ambos com capa de Poty. Depois das sete epgrafes e do Coco do Chico3, encontra-se um ndice em que as sete novelas so reunidas sob a classificao os poemas. Estas dividem-se pelos dois volumes; no final do segundo, apresentado outro ndice em que os mesmos textos so reunidos em dois grupos: Gerais (os romances) e Parbase (os contos). As classificaes comeam a desdobrar-se j a partir do ttulo. Novelas, num primeiro nvel4, depois poemas, depois romances e contos, cada grupo correspondendo a uma categoria.

importante que o ndice esteja nesta posio, correspondendo exactamente aos elementos do livro a que diz respeito, ou seja aos que se situam entre o ndice inicial e o ndice final (as novelas). Tudo o que antecede o ndice est fora da sua construo. Assim se percebe como as reedies da Nova Fronteira do Corpo de Baile tripartido, que recuperam os ndices, perturbam a definio do mbito do ndice ao incluir nele a nota editorial, o poema de Drummond e o prefcio de Rnai. Perante o problema colocado pela duplicao dos ndices, a editora optou por repetir estes elementos no ndice final tentando jogar as regras do jogo mas perturbando o dilogo entre textos e ndices que fazia o livro. Cf., como exemplo, Rosa 2001. 4 A edio comemorativa da primeira edio de Corpo de Baile omite esta primeira classificao, tornando assim ainda indispensvel a consulta da primeira. Fico Completa, da Nova Aguilar (Rosa

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CORPO DE BAILE

CORPO DE BAILE I. GERAIS (Os romances):

Os poemas: Campo Geral Uma Estria de Amor A Estria de Llio e Lina O Recado do Morro Lo-Dalalo (Do-Lalalo) Cara-de-Bronze Buriti

Campo Geral A Estria de Llio e Lina Do-Lalalo Buriti II. PARBASE (Os contos): Uma Estria de Amor O Recado do Morro Cara-de-Bronze

A primeira repete a sobreposio entre uma referncia geogrfica e um aspecto de organizao do livro: todos os romances so ambientados nos Campos Gerais, mas na oposio entre as duas categorias decide-se tambm uma distino entre romance e conto, em que talvez se possa perceber melhor o que entendia Rosa quando se definia como um contista de contos crticos (Lorenz 1991: 70). A propsito dessa classificao, pode ser til retomarmos, da correspondncia de Rosa com Bizzarri, algumas consideraes sobre o ttulo da primeira novela: A primeira estria, tenho a impresso, contm, em germes, os motivos e temas de todas as outras, de algum modo. Por isso que lhe dei o ttulo de Campo Geral explorando uma ambiguidade fecunda. Como lugar, ou cenrio, jamais se diz um campo geral ou o campo geral, este campo geral; no singular, a expresso no existe. S no plural: os gerais, os campos gerais. Usando ento, o singular, eu desviei o sentido para o simblico: o de plano geral (do livro). (Rosa 2003a: 91).

1994), omite todos os ndices de Corpo de Baile, Primeiras Estrias e Tutamia, tornando ilegvel o problema do livro em Guimares Rosa.

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Oscilando, tambm neste caso, entre um referente geogrfico e a sua funo no livro, a denominao Gerais parece definir-se por oposio a parbase: nesse sentido, importante sublinhar que no h, nesses textos, nenhuma quebra directa de ficcionalidade. Os trs contos, por outro lado, tratariam, segundo o prprio Rosa, cada um de uma expresso de arte5 uma cano, as estrias e a poesia , e todos, de formas diferentes, abordam a questo da narrao (idem: ibidem). J vimos aqui como dois desses contos encenam uma problematizao da noo de estria e da sua transmisso. Ora, a classificao parbase reflecte, num primeiro nvel, a orientao auto-reflexiva que lhes dada. Momento da comdia em que a aco suspensa, em que o coro avana e fala ao pblico em nome do autor, supostamente retirando a mscara, sobre a prpria pea, a parbase caracteriza-se como suspenso no interior da fico, ambgua por estar dentro e fora dela ao mesmo tempo. Sifakis define-a como a digression of the chorus from its main business, a parekbasis, which concerns the poet and is marked by a movement of the chorus toward the audience (Sifakis 1971: 66); para Hubbard, the term parabasis is derived from the verb parabainein (to step forward), used by Aristophanes himself in connection with this interlude specifically to describe the action of the chorus in turning around to face the audience instead of the stage, which the chorus watches during the episodes (Hubbard 1991: 17); e Adriane Duarte sublinha que a expresso est ligada etimologicamente [a um] acto de andar para o lado ou alm de (par), o que implica em transgresso ou, numa outra acepo, em digresso a partir da idia de sair fora de uma rea delimitada (Duarte 2000: 31). Nestas trs definies destaca-se j a relao da parbase com um movimento ao mesmo tempo de digresso e transgresso que tem origem num desvio do palco para a plateia intervalo crtico, a parbase se apraz em testar os limites do gnero (idem:
No ndice do fim do livro, ajuntei sob o ttulo de Parbase, 3 das estrias. Cada uma delas, com efeito, se ocupa, em si, com uma expresso de arte (Rosa 2003a: 91).
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46) e pe em causa a ficcionalidade falando em nome do poeta e sobre a pea. Extradramtica e perturbadora da iluso ficcional, auto-referencial e intertextual6, a parbase, situando-se no centro do drama, interrompe e ameaa a fico contra a qual se define: Nowhere is the tension between the conceptual dramatic world and the external real world more apparent than in the parabasis, which at the same time breaks dramatic illusion and prolongs the dramas illusions thereby putting the dramas spectators into a state of joyful disequilibrium and uncertainty. (Hubbard 1991: 12). Da parbase clssica, Corpo de Baile parece reter, sobretudo, a dimenso reflexiva: a parbase do livro seria uma arte potica ou explicitao acerca da arte e da prpria obra. nesse sentido que aponta a indicao de Rosa ao tradutor (contos sobre expresses de arte), bem como o artigo de Rnai que Rosa est a citar e parafrasear, uma vez mais apoiando-se na crtica para menos dizer, nessa carta de indicaes para a traduo: ao subordinar os [contos] ao ttulo de parbase, o autor, com esse termo da comdia grega, adverte-nos de que neles que se dever procurar a sua mensagem pessoal. (Rnai 2001: 19-20). Se pensarmos ainda na construo da parbase na comdia antiga, encontramos, na sua prpria estrutura, bem como no seu posicionamento no interior da pea, a primeira resistncia a esta convico. Veja-se o que diz Reckford, que caracteriza a parbase dos Acarnenses como an experiment in self-exposure (Reckford 1987: 199): The parabasis, as a chorus coming forward to speak for the poet in the city, cannot be read apart from the ironic multiplication and fragmentation of voices with which the comic poet endows it. The search to discover the place from which the figures of the comedy speak will not uncover an authors voice speaking out from beyond the boundaries of comic interplay. (idem: 200).
Cf. Hubbard 1991: 28-29; Olimpia Imperio destaca as seguintes prerrogativas formais da parbase: temporanea sospensione dellazione drammatica; presenza esclusiva del coro sulla scena; apostrofe diretta ed esplicita agli spettatori; continua oscillazione del punto di vista espresso dal coro, che pu trovarsi a parlare a nome e per conto del poeta, ovvero di e per se stesso (Imperio 2004: 23).
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Veremos em detalhe na parte trs desta tese o modo como a parbase de Corpo de Baile, ao invs de prometer a revelao de uma mensagem pessoal a decifrar, incorpora e tematiza a dificuldade na identificao da voz a que a parbase clssica parecia j dar corpo. E veremos tambm, neste captulo, que a mesma dificuldade caracterizar a construo dos ndices rosianos. Em Corpo de Baile, o lugar em que o intervalo crtico se faz ao mesmo tempo questionamento reflexivo e questionamento da possibilidade de uma metalinguagem reveladora ser a j referida pausa autoral no centro do conto Cara-de-Bronze, ponto em que o texto se dirige, como em nenhum outro lugar da obra de Rosa, para a encenao de uma parbase interna. Percebe-se, assim, que dos trs contos Cara-de-Bronze assuma uma dimenso metatextual mais explcita. Na primeira edio de Corpo de Baile, o conto que ocupava a posio central O Recado do Morro7, em que as projeces do nmero sete (sete recadeiros, sete fazendas, sete planetas) cifravam a unidade das sete novelas do livro. Sublinhei j o modo como a figura do Guegue, no centro dessa cadeia, se oferecia como suspenso da direco do texto (e do livro). Mas na traduo alem (Rosa 1966), como se pode ver tambm nas cartas a Curt-Meyer Clason agora editadas (Rosa 2003b: 208), o ttulo de Cara-de-Bronze, por indicao de Rosa, foi antecedido (no cabealho do conto, e no no ndice, como acontecer com os prefcios de Tutamia) pelo termo Zwischenspiel, intermezzo: como se o conto catalisasse, na revisitao da obra a que o problema da traduo obrigou o autor, o carcter intervalar da parbase de Corpo de Baile e talvez at os seus traos essenciais. Essa passagem do conto da parbase para o intermezzo acompanhada, no mesmo ano de 1964, pela deciso de dividir o livro em trs volumes a partir da terceira edio. Cara-de-Bronze passou a ser includo no segundo volume, No Urubuquaqu, no Pinhm, deslocado, em relao ao ndice inicial de Corpo de
Em A Raiz da Alma de Helosa Vilhena de Arajo a leitura de Corpo de Baile assenta sobre a posio mediana de O Recado do Morro (cf. Arajo 1992: 17-26); num ensaio recente, Ronaldes de Melo e Souza reafirma a importncia do mesmo conto como parbase central (Souza 2007: 189).
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Baile, para o meio do livro e para o centro da obra.8 Alis, a identificao de um intermezzo nico um procedimento que Rosa parece ter pensado utilizar mais tarde na composio do volume pstumo Estas Estrias. O conto Com o Vaqueiro Mariano, inicialmente publicado em 1952, nos dois ndices provisrios desenhados por Rosa e apresentados por Paulo Rnai na edio (Rosa 1969), ocupa precisamente o centro, em destaque, sendo a posio intermdia sublinhada pela alterao do ttulo para Entremeio: Com o Vaqueiro Mariano. Nestes exemplos, se pensarmos tambm no que vimos sobre este ltimo conto no captulo um, comea a mostrar-se o papel do intervalo na obra de Rosa, que ser da ltima parte desta tese: espao reflexivo e movimento do texto em direco a si mesmo. Mas a parbase de Corpo de Baile ir explorar mais do que a autoreferencialidade da parbase antiga. Recorde-se que esta classificao surge apenas no segundo dos ndices que o texto oferece. Na duplicao da cartografia marginal do livro, Corpo de Baile parece repetir aquilo que, segundo Poty, estava na base do projecto das ilustraes da capa. interessante ter em conta as declaraes feitas pelo ilustrador no documentrio Os Nomes do Rosa: Ele descrevia, dizia o que queria e eu me virava para resolver o assunto (...). A capa do Corpo de Baile essa idia foi dele tambm: fazer as figuras da capa, de frente, e da contracapa, de costas, como se fosse um palco, como se fossem vistas pela platia e pelos bastidores. Num dos volumes havia duas mulheres conversando, uma em traje de montaria. No dia seguinte recebi um telegrama dizendo que a mulher em traje de montaria tinha que parecer desquitada. Ento, escolhi uma senhora l, que por acaso era desquitada, e desenhei a cara dela. (apud Martins Costa 2007: 34). Esta configurao da capa evidente, sobretudo, no segundo volume: a, algumas figuras olham de frente a partir da capa, para fora do livro; na contracapa,
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Rosa acentua a alterao na correspondncia com Bizzarri: NO URUBQUAQU, NO PINHM (com O Recado do Morro, Cara-de-Bronze e A Estria de Llio e Lina), a sair em junho. (Como Voc v, a ordem primitiva das novelas foi alterada). (Rosa 2003a: 120).

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vemos apenas alguns vultos de costas. O mesmo procedimento ser repetido no padro da segunda edio, num s volume, e nas trs partes da edio de 1964 (cf. fig. 5). A sugesto a de uma coincidncia entre o corpo das figuras e o corpo do livro, fazendo corresponder a espessura deste e a sua matria ficcional, que refora uma ideia que tenho vindo a acentuar: a construo do livro em Rosa parece estabelecer uma dobra que devolve o leitor, alm do fim, ao interior do livro. A negao da closure que at aqui comentmos faz-se de um movimento de releitura ou de regresso ao livro. tambm essa delimitao que parecem encenar as figuras de Poty, fechadas ao exterior como a criana de Os Cimos. Por outro lado, o comentrio do desenhador associa a ilustrao a uma imagem directamente vinculada parbase: a de uma representao teatral do espao, que tem como ponto de fuga o leitor fora do livro, e que retoma a referncia teatral do ttulo e das epgrafes de Plotino.

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Fig. 5 - Capa e contracapa do 2 vol. da 1 ed. de Corpo de Baile; capa e contracapa do 2 vol. da 3 ed., No Urubuquaqu, no Pinhm.

No equilbrio, porm, da primeira edio, os trs contos identificados como parbase no segundo ndice j se encontravam nessa posio no primeiro, e a que se comea a perceber a complexidade da reflexo de Guimares Rosa sobre o interstcio. A ordem que os poemas seguem a da alternncia entre um Geral e uma Parbase, estando os contos no intervalo dos romances. No segundo ndice, ento, o livro parece mostrar a sua construo: aos poemas indiferenciados da primeira leitura (que podem ser entendidos tambm no seu sentido etimolgico de coisa feita) corresponde, no momento em que o leitor termina de ler, a sua explicitao, abrindo para a releitura. Voltaremos mais tarde a esta distino; antes, porm, importante sublinhar que neste jogo se decidem dois problemas de estrutura que o livro coloca: o duplo ndice, antes de mais, e a construo do livro como uma sequncia intermitente. Os contos crticos, na

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sua dimenso reflexiva, interrompem os romances, intercalando a narrao e o seu questionamento, a narrativa e a sua teoria, o livro resultando, inicialmente, da interaco entre as duas ordens de textos; mas essa distino s se torna visvel num segundo momento, na indicao de releitura que devolve o leitor diferenciao interna do que se apresentava como unitrio. Adaptando o que dir Schlegel a propsito do segundo Quijote, o protagonista da segunda leitura a primeira leitura, continua riflessione dellopera su se stessa (Schlegel 1998: 351 IX 185). Assim, o que parece estar em causa mais a manuteno dessa posio intersticial da potica, suspensa, ou parada no meio, no ponto em que narrao e comentrio no se podem ainda distinguir, do que a sua dissoluo clarificadora. Que a parbase se explicite e denuncie apenas nesse jogo de indicaes duplicadas margem devia fazer-nos pensar no que h de comum entre as suas posies, ou seja a considerar as implicaes do prefixo que parbase e paratexto partilham9. No ensaio The Critic as Host, Hillis Miller faz a conhecida caracterizao daquilo a que chama words in para. Entre elas est, obviamente, a parbase: If words in para are one branch of the labyrinth of words in per, the branch is itself a miniature labyrinth. Para is a double antithetical prefix signifying at once proximity and distance, similarity and difference, interiority and exteriority, something inside a domestic economy and at the same time outside it, something simultaneously this side of a boundary line, threshold, or margin,
O carcter aparentemente paratextual da parbase um problema prprio da crtica da parbase clssica. Veja-se uma breve descrio da questo em Adriana Duarte: A associao da parbase com o ritual em estado bruto era indcio do incmodo que ela representava para os estudiosos que, sob a influncia do teatro realista ento contemporneo, eram incapazes de admitir como natural a suspenso da ao dramtica na metade da pea com digresses que, como agravante, rompiam com a iluso dramtica. Tanto isso assim que floresceram hipteses que situavam a sua posio original no incio ou no final da comdia, quando era admissvel que o poeta ou os atores se dirigissem ao pblico sem prejudicar o andamento da pea. Assim, na Alemanha, predominou a tese de que a parbase equivaleria ao prodo, inclusive do ponto de vista etimolgico, e que ocuparia posio inicial. (...) Outra corrente deslocava a parbase para o final da comdia, atribuindo-lhe a funo de eplogo, onde seria justificvel que os atores tirassem as suas mscaras e se dessem a conhecer aos espectadores. (Duarte 2000: 41).
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and also beyond it, equivalent in status and also secondary or subsidiary, submissive, as of guest to host, slave to master. A thing in para, moreover, is not only simultaneously on both sides of the boundary line between inside and out. It is also the boundary itself, the screen which is a permeable membrane connecting inside and outside. It confuses them with one another, allowing the outside in, making the inside out, dividing them and joining them. It also forms an ambiguous transition between one and the other. Though a given word in para may seem to choose univocally one of these possibilities, the other meanings are always there as a shimmering in the word which makes it refuse to stay still in a sentence. The word is like a slightly alien guest within the syntactical closure where all the words are family friends together. Words in para include: parachute, paradigm, parasol, the french paravent (windscreen), and parapluie (umbrella), paragon, paradox, parapet, parataxis, parapraxis, parabasis, paraphrase, paragraph, paraph, paralysis, paranoia, paraphernalia, parallel, parallax, parameter, parable, paraesthesia, paramnesia, paramorph, paramecium, paraclete, paramedical, paralegal - and parasite. (Miller 2004: 179). A parbase denunciada num duplo ndice que, como uma moldura, institui e perturba os limites do livro uma imagem particularmente complexa das sobreposies entre interior, exterior e margem que parecem estar na base da descrio de Miller. Se historicamente a origem da posio intermdia da parbase de difcil definio, tambm com base na sua estranha construo de uma zona de fronteira no interior da fico. Se tivermos em conta uma considerao como esta de Hubbard The parabasis both reveals and problematizes the identity of poet and chorus, both reflects and deconstructs the drama that surrounds it and the society that surrounds the drama. (1991: ix) , vemos que o problema que a parbase, no limite, coloca o de um centro que ameaa transformar a inteira pea (a inteira fico) numa moldura sua volta, invertendo a noo de intervalo, perturbando definitivamente distino entre interior e exterior. E nesse movimento de perturbao da margem, e da obra, que a parbase encontra o duplo ndice parergon10. Assim, parbase e paratexto parecem partilhar a

Ce que les constitue en parerga, ce nest pas simplement leur extriorit de surplus, cest le lien structurel interne qui les rive au manque lintrior de lergon. Et ce manque serait constitutif de lunit mme du ergon. Sans ce manque, lergon naurait pas besoin de parergon. (Derrida 1978: 69).

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mesma funo reflexiva reflectem a obra, nesse gesto tornando instvel aquilo que descrevem, e so o espao da indicao de releitura.

Indicaes de Releitura H, porm, que sou um mau contador, precipitando-me s ilaes anres dos fatos, e pois: pondo os bois atrs do carro e os chifres depois dos bois. Releve-me. E deixe que o final de meu captulo traga luzes ao at agora aventado, canhestra e antecipadamente. O Espelho

A duplicao no coincidente do ndice coloca a possibilidade de um texto o mesmo texto se fazer outro sem que a sua materialidade seja afectada, o que nos ir devolver anulao, em movimentos de sinal oposto, do sentido da comunicao que uma figura do meio como o Guegue representava. Comeamos a perceber que as diferenas entre os dois ndices de Corpo de Baile dependem mais da instituio de uma dobra reflexiva no seio do prprio livro do que de uma diferente combinao das peas que o compem. Podemos ento considerar o caso que apontei como ponto de fuga desta comparao, Tutamia, em que voltamos a ter dois ndices, desta vez com a explicitao de uma diferena entre ndice e ndice e entre livro e livro. Temos um ndice inicial e um ndice de Releitura, ambos organizados alfabeticamente, correspondendo o segundo a uma inverso do ttulo: de Tutamia (Terceiras Estrias) passamos a Terceiras Estrias (Tutamia).

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Fig. 6 ndice inicial da 1 edio (Rosa 1967).

No primeiro ndice, as quarenta e quatro estrias que compem o livro esto dispostas por ordem alfabtica em duas colunas, que quatro desses ttulos, em itlico, subdividem em quatro partes. No curso da leitura, essas estrias sero identificadas como prefcios (num literal ttulo interior11, como o Zwischenspiel da traduo alem). S no segundo ndice, no ndice de releitura, os prefcios sero apresentados como tal, reunidos na parte superior da pgina sob a designao que lhes corresponde. Por um lado, como em Corpo de Baile, s no segundo ndice que as classificaes se vo revelar (contos e prefcios); por outro, acontece o oposto do livro de 1956: a, no primeiro ndice, os textos mantinham a dimenso intervalar que os define como parbase, mas na construo grfica do segundo ndice, em que a sua funo era

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Les intertitres, ou titres intrieurs (Genette 1987: 297).

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objectivada, formavam um grupo compacto de textos. Em Tutamia, s no segundo ndice que os quatro prefcios, identificados tambm como um s grupo, ocupam a posio estrutural que nominalmente lhes corresponde.

Fig. 7 ndice de releitura da 1 ed. (Rosa 1967)

Sublinhei j o modo como estes ndices parecem absorver a instncia prefacial do livro, mesmo num livro com quatro prefcios. Com o desaparecimento da parbase da Comdia Antiga, os seus traos essenciais parecem ter-se concentrado exclusivamente no espao do prlogo: movimento que provoca uma alterao sobretudo a nvel de relao com a estrutura dramtica12. Exterior, anterior fico, o prlogo

A propsito da apropriao de traos da parbase pelos prlogos de Terncio, cf. Maria de Ftima Silva, A voz do Autor na comdia grego-latina (Silva 2001). Sobre a presena da crtica

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situa-se no limiar, que um espao de fronteira, de passagem, mas no necessariamente de suspenso.13 Os prefcios de Tutamia, no entanto, so colocados, pelas oscilaes constitutivas dos ndices, em situao de intervalo; apenas Aletria e Hermenutica pode eventualmente reclamar a posio de prefcio nos dois ndices gesto curioso, se tivermos em conta que se trata de um texto publicado, na sua primeira verso e com o ttulo Risada e Meia, j em 1954 (Martins Costa 2006b: 209). O primeiro ndice integra os quatro prefcios na sequncia alfabtica, destacando-os pelo itlico do ttulo, comprometendo a sua exterioridade pela indistino em relao s estrias e pelo seu posicionamento intercalar. No segundo, os prefcios, estruturalmente e nominalmente, so identificados como tal e ocupam a posio liminar da projeco de leitura do ndice: mas sendo o ndice de releitura, a anteposio eliminada pela repetio, suspendendo os textos entre um tempo anterior e um novo tempo que apenas pode ler depois. Tal como em Corpo de Baile, a explicitao implica a reunio dos textos num grupo, como se fossem um todo especial dividido em quatro (ou, no primeiro caso, em trs)14; e, tambm como em Corpo de Baile, parece absorver um problema de leitura que o livro coloca: no primeiro, confirmando a eventual impresso de uma diferena entre contos e

literria nas parbases em geral ver, da mesma autora, Crtica do Teatro na Comdia Antiga (Silva 1987). 13 The phenomenon of the self-referential parabasis is unique to Attic Old Comedy, although it has various analogues in the traditions of European comic drama; one need only examine the prologues of Plautus and Terence, Jonson or Gryden to find many of the same apologetic topoi and attitudes that appear in Aristophaness parabases. But a prologue is by its nature a different entity, in a sense standing outside of the dramatic enactment. What is distinctive about the parabasis is its simultaneous digressiveness and integration with the dramatic events. (Hubbard 1991: 1-2). 14 Numa das poucas referncias aprofundadas da recepo de Tutamia epgrafe do segundo ndice, Helosa Vilhena de Arajo, num ensaio em que procura ecos de Schopenhauer no livro de Rosa, sugere que a releitura assentaria na identificao da distino entre os dois grupos: Guimares Rosa, portanto, sugere que o livro seja lido uma primeira vez, de maneira corrida, com os prefcios intercalados entre os contos, e uma segunda vez, lendo-se os prefcios juntos e passando-se depois aos contos. Essa segunda leitura releitura indicaria a construo orgnica do conjunto de contos, agrupados sem interrupo de prefcios e, por outro lado, a construo orgnica do conjunto de prefcios, no separados pelos contos. (Arajo 2001a: 14). Num certo sentido, parece-me ser essa a funo da anteposio como se o leitor relesse antes para perceber porque no esto antes, deste modo reafirmando a unidade do livro atravs da constatao da diferena entre livro e livro. Com a leitura, porm, do prefcio de Schopenhauer, veremos que no to linear a associao entre organicidade e coerncia interna e que a prpria expresso construo orgnica tem como foco, antes de mais, a invalidao de uma estruturao orientada e hierarquizada, sobre a qual assentaria a prioridade natural dos prefcios.

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romances que o leitor poderia trazer da leitura; no segundo, fazendo do ndice de releitura o espao em que o movimento do leitor, que foi encontrando ao longo da leitura a perturbadora multiplicao dos prefcios que o primeiro ndice no deixava prever, se detm e define na noo de Tutamia como livro com quatro prefcios. A dimenso reflexiva desses textos, e, mais uma vez, a sua contribuio para a marcao de uma presena declaradamente autoral no seio da fico, fez com que se tornassem o terreno privilegiado de anlise: como se a se devesse encontrar a chave da obra15. So, de facto, os nicos textos na produo em livro de Rosa em que uma primeira pessoa autoral surge representada, comentando a prpria obra. A subjugao dos prefcios lei do ndice (a ordem alfabtica), porm, colocando-os no intervalo das estrias e das leituras, atribui-lhes uma indefinio parabtica", poderamos dizer, como textos portadores dessa dupla carga de auto-referencialidade e suspenso que est na base da definio da parbase e que determina, nas palavras de Adriane Duarte, que quando a iluso quebrada o que se encontra no a realidade, mas uma segunda fico (2000: 46). Fico do sujeito, ou contaminao do sujeito pela fico, que j encontrmos representada pela assinatura do ndice (e do livro). A alterao da ordem alfabtica na srie dos contos de Tutamia, que inscreve as iniciais de Joo Guimares Rosa (Joo Porm, o criador de perus, Grande Gedeo e Reminiso16) nos ndices, afecta necessariamente a materialidade do livro e a ordem de leitura, inscrevendo o nome de autor nas pginas do livro. Antecipando uma leitura moderna da parbase a que farei referncia na ltima parte da tese, podemos pensar nesta irrupo

Veja-se o artigo de Assis Brasil no Jornal de Letras logo depois da publicao de Tutamia, intitulado A Chave da Obra de Guimares Rosa (Brasil 1969) e centrado nos prefcios. 16 Ana Maria Machado, no seu estudo sobre o nome em Rosa, sugere que assinalando o ponto de ruptura da ordem alfabtica, fica um aviso no ndice: Hiato: intruge-se JGR l nas campinas. (Machado 2003: 95).

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do nome de Guimares Rosa na indexao alfabtica nos termos da apropriao de Schlegel por De Man em The Rhetoric of Temporality: Schlegel makes clear, however, that the effect of [the authors intrusion that disrupts the fictional illusion] is not a heightened realism, an affirmation of the priority of a historical over a fictional act, but that it has the very opposite aim and effect: it serves to prevent the all too readily mystified reader from confusing fact and fiction and from forgetting the essential negativity of the fiction. The problem is familiar to students of point of view in a fictional narrative, in the distinction they have learned to make between the persona of the author and the persona of the fictional narrator. The moment when this difference is asserted is precisely the moment when the author does not return to the world. (De Man 1983: 219). Mas , em primeiro lugar, sobre a releitura que incide este desdobramento dos ndices, materializando a ideia, j encontrada, de um limite que, prolongado, invalida a concluso. Isso evidente na sua disposio, abrindo e fechando o livro, sugerindo a impossibilidade de o leitor abandonar o livro depois da ltima palavra, da palavra FIM, presente em Corpo de Baile mas substituda pelo sinal do infinito em Grande Serto: Veredas (e eliminada nos dois livros seguintes). A construo de um movimento que ultrapassa a direco do livro , em Tutamia, explcita e permite-nos interrogar o modelo de livro de Rosa a partir deste exemplo concreto. Para isso, no irei explorar as relaes internas entre as estrias, ou entre estrias e prefcios, nem os modos de autorepresentao irnica que a se pem em prtica. Para esses aspectos, remeto aos dois estudos principais sobre as estrias de Tutamia: As Paragens Mgicas, de Irene Gilberto Simes (1988), e Tutamia: Engenho e Arte, de Vera Novis (1989)17. O aspecto que me interessa destacar, luz do que j vimos at agora, tambm um dos
Uma referncia especial deve ser feita, porm, a um estudo sobre os prefcios em que se l a construo de Tutamia luz de Blanchot: refiro-me ao ensaio O Livro e a Ausncia de Livro em Tutamia, de Guimares Rosa, de Daisy Turrer (2002). Embora no aprofunde a questo das indicaes de leitura nos ndices, a autora considera de forma interessante o papel do no-fechamento no livro, descrevendo Tutamia como um meio de margens decentradas e disseminadas (idem: 88). O percurso que aqui faremos dirige-se, porm, para a acentuao da temporalidade da construo de Tutamia, que no quadro desta leitura corre o risco de se diluir.
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menos interrogados em relao ao ltimo livro em vida de Rosa: o modo como os dois ndices constrem o livro. Tutamia prope uma ideia de releitura a partir do jogo que estes instituem que vai alm da mera indicao da necessidade de reler, e mesmo da necessidade de reler por outra ordem: e no que nessa proposta h de novo em relao aos exemplos considerados ser possvel a passagem para uma terceira parte deste trabalho. O ndice no final postula, desde logo, o recomear da leitura, ou a releitura como momento seguinte, necessrio, de acordo com a prescrio do livro. No caso de Tutamia, este questionamento da releitura, fundao instvel do livro, levado mais longe atravs de outra simetria entre os dois ndices, estabelecida pelas epgrafes de Schopenhauer, determinantes para a definio do livro como forma recursiva. Diferentemente de Corpo de Baile, que tem sete epgrafes, tantas quantas as novelas do livro, alis tambm estruturadas numa sequncia 4 + 3 (sendo a sua distribuio outra indicao de leitura18), a que se deve acrescentar o Coco do Chico, Tutamia, enquanto livro, no ter epgrafe: a unific-lo temos somente os dois ndices. No entanto, no s os contos e os prefcios, mas tambm os ndices, tm epgrafes. O problema que as epgrafes dos ndices colocam, em relao especular, precisamente o problema da relao entre leitura e releitura. Ambas so retiradas do prefcio da primeira edio de O Mundo como Vontade e Representao de Schopenhauer. A escolha fundamental. O prefcio de Schopenhauer um caso extremo entre os prefcios filosficos, devido sua radical exposio da dificuldade de conformao
importante ter em conta que a redistribuio das epgrafes com a diviso em trs volumes foi amplamente ponderada por Rosa e foi considerada um dos traos que mantm a unidade da obra. Veja-se a correspondncia com Bizzarri: Se bem que os livros se ofeream como independentes mantm-se, de certo modo, a unidade entre eles, mediante as seguintes manhas: 1) o ttulo ab-original, Corpo de Baile, dado, entre parntese, em letra discreta, no frontispcio interno [...] 2) a capa (a mesma da 2 edio) ser igual para os 3 volumes, variando apenas as cores [...]; na relao das obras (DO AUTOR), explica-se que: A partir da 3 edio, desdobra-se em 3 livros autnomos: e segue-se a indicao dos mesmos. / Em consequncia, distribuir-se-o tambm, pelos trs, as epgrafes de Plotino e Ruysbroeck: cada um fica com uma, de cada; isto , o Noites do Serto pegar 2 de Plotino. (Porque eram 4.) Esta outra maneira de preservar a unidade. O livro ficar sendo trs livros distintos e um s verdadeiro... Que tal? Que acha Voc, de tudo? (Rosa 2003a: 120-121).
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entre aquilo a que chama pensamento nico e a forma do livro. Essa dificuldade traduz-se numa espcie de hipertrofia da margem, numa ampliao desregulada da dimenso preambular e paratextual, sobre a qual o prprio prefcio levado a ironizar e que se prolongar pelas duas reedies da obra em vida; a representao ltima desse crescimento marginal ser, como evidente, Parerga e Paralipomena. Jean-Marie Schaeffer sublinha que essa uma tendncia que se pode atribuir a uma tradio filosfica marcada por aquilo a que chama soupon philosophique, em que le philosophe ressent la singularit de son discours essentiellement par rapport la socit et au mouvement global des ides. Dans la mesure o la prface est le lieu o il rencontre lopinion publique, donc le lieu o cette singularit risquerait de seffacer, elle devient un endroit surinvesti par toutes sortes de manoeuvres rhtoriques visant marquer son caractre non doxique (Schaeffer 1987: 38).

No caso especfico do Prefcio Primeira Edio, estaramos alm do mais perante um exemplo em que a funo pragmtica do prefcio filosfico se faz visvel, no sentido em que o prefcio se torna o lugar de uma seleco dirige vers le publique comme un ensemble de lecteurs-disciples potenciels (idem: 40), com tendncia para exacerbar a distino entre os dois conjuntos (idem: 41). Nesse sentido, o prefcio o espao para que o filsofo marque a sua diferenciao em relao ao mundo, um espao de fronteira onde os leitores podem ser eleitos atravs de uma srie de exigncias, para usar a expresso de Schopenhauer. Nesse gesto, o prefcio filosfico expe uma das funes problemticas do paratexto: determinar condies para o leitor um modo de determinar, na fronteira do texto, no momento em que o leitor j est a ler, uma prescrio de leitura. A margem faz-se assim fronteira: obstculo ou iniciao. Podemos pensar no apelo de Nietzsche no final do prefcio a Aurora: - E finalmente: porque razo devemos afirmar com tanta fora o que somos, o que queremos e o que no queremos? Consideramo-lo com mais frieza, maior
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distanciamento, maior inteligncia, maior elevao, digamo-lo, como isso pode ser dito entre ns, to discretamente que o mundo no oua, que o mundo no nos oua. Sobretudo digamo-lo lentamente... Este prefcio chega tarde, mas no demasiado tarde; no fundo, que importam cinco ou seis anos? Um tal livro, um tal problema, no so apressados; e alm disso, somos amigos do lento, eu e o meu livro. No fui fillogo em vo, sou-o ainda hoje, o que quer dizer, professor de leitura lenta: - por fim escrevo tambm lentamente. Agora, isso no s faz parte dos meus hbitos, como do meu gosto um gosto maldoso, talvez? No escrever nada que no deixe encurralados os homens apressados. A filologia efectivamente essa arte venervel que exige do seu admirador antes de tudo uma coisa: manter-se afastado, ocupar o seu tempo, tornar-se silencioso, tornar-se lento, como uma arte, um conhecimento de ourives aplicado palavra, uma arte que tem para executar apenas trabalho subtil e cauteloso e que no chega a lado algum se no for lentamente. precisamente nisso que ela mais precisa do que nunca, por isso que nos atrai e nos encanta muito mais numa poca de trabalho, por outras palavras: num tempo de pressa, de indecente precipitao, de suor, que quer acabar tudo num repente, sem fazer excepo de todos os livros, antigos ou modernos: quanto nossa arte, ela no ps fim facilmente ao que quer que fosse, ela ensina a ler convenientemente, quer dizer: lentamente, profundamente, olhando com prudncia para trs e para diante de si, com pensamentos ocultos, com as portas abertas, com os dedos e os olhos subtis... pacientes amigos, este livro deseja apenas leitores e fillogos perfeitos: aprendei a ler-me convenientemente! (Nietzsche 1977: 10-11). No outro o objectivo de um prefcio como o de Schopenhauer, que comea por declarar a razo da sua existncia: I propose here to state how this book is to be read (Schopenhauer 1958: xx). A ateno sobre a leitura e sobre uma didctica da leitura o trao que define estes prefcios, dominante sobre a sua funo introdutria ou descritiva, introduzindo neles uma fora prescritiva que a prpria ideia de seleco bifurca: o prefcio atrai para o limiar da obra a possibilidade da fuga prescrio, materializando-a numa oposio entre ler e no ler. Nesse gesto, o livro engloba no seu interior na margem problemtica a possibilidade da sua no-legibilidade; atravs da diferenciao liminar, o livro tenta afirmar-se como legvel e ir faz-lo contra a sua natureza fsica de suporte, contra o livro e em nome do pensamento que procura preservar. Basta pensar que uma das imagens que encontraremos da inconformidade

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irremedivel entre leitor e livro ser o tratamento do livro como objecto decorativo. Na bifurcao entre a prescrio e o seu incumprimento revela-se, neste prefcio, a dupla natureza do livro: meio de transporte, num caso, que autor e leitor tentaro compensar atravs de uma srie de movimentos complementares; e objecto concreto que impe uma forma, e assim, deforma, ao que se tenta atravs dele transmitir, tornando inacessvel o que transporta. Assim, ainda sobre a materialidade do livro, nos dois casos, que o prefcio procura agir, a partir da margem que delimita a forma: e ir faz-lo traando um mapa que, por sua vez, deforme a forma do livro, perturbando a sua linearidade e englobando nela aquilo que no lhe pode, materialmente, pertencer. Paradoxalmente, a prescrio impe o desvio como condio do livro; e a leitura desobediente, ou desviante, reduz o livro sua linearidade ineficaz. Estas primeiras consideraes permitem pensar a questo da prescrio de releitura no livro de Rosa, e o papel do ndice como margem de indicao, de inscrio de um desejo do livro que se prope, no interior da margem, como alternativa entre possibilidade e negao do livro. Percebe-se assim que o importante na escolha deste prefcio em particular seja mais uma vez a questo do livro, e a relao entre uma materialidade resistente e o desejo da sua superao que encontrmos na figura de Joana Xaviel. em nome de uma ideia de livro que todo o prefcio da primeira edio est dedicado determinao de uma srie de exigncias sobre o leitor como condies necessrias para a leitura da obra, a book which it would be useless for them to read unless they complied with the demands I made (idem: xxiv). Estas vo da primeira e mais importante (to read the book twice) a uma srie de condies prvias: o conhecimento de outros dois textos de Schopenhauer, familiaridade com a filosofia de Kant, a leitura preliminar do apndice (que tambm dever ser lido duas vezes) e, se possvel, conhecimento da filosofia de Kant e os Upanishads. O peso destas exigncias

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bem sentido por Schopenhauer, acreditando que elas iro pr em prtica a referida seleco entre os que iro ler o livro e aqueles que, para compensar a aquisio, o usaro para fins que dispensam a leitura: I am afraid, however, that even so I shall not be let off. The reader who has got as far as the preface and is put off by that, has paid money for the book, and wants to know how he is to be compensated. My last refuge now is to remind him that he knows of various ways of using a book without precisely reading it. It can, like many another, fill a gap in his library, where, neatly bound, it is sure to look well. Or he can lay it on the dressing table or tea-table of his learned lady friend. Or finally he can review it; this is assuredly the best course of all, and the one I specially advise. (idem: xxv).

Na verdade, estas exigncias so mais do que um esforo de singularizao, que prepararia os seus leitores para a particularidade do pensamento que aqui se apresenta. So, em Schopenhauer, uma reflexo amarga sobre o livro como medium como meio de transporte, visto exclusivamente como receptculo inadequado. esse o tema do prefcio - Yet in spite of all my efforts, I have not been able to find a shorter way of imparting that thought than the whole of this book. (idem: xx) que estabelece desde logo a inadquation entre la forme et le contenu du discours ou (...) une incommensurabilit du signifiant au signifi que a lgica hegeliana identificaria e recusaria no espao do limiar (Derrida 1972a: 27). Essa insuficincia do livro atravessa todas as exigncias do prefcio, que continuamente oscila entre a apologtica pela forma longa e a afirmao de que essa forma no suficiente e deve ser complementada, entre a reiterao de uma necessidade de ter lido antes e uma necessidade de reler depois. A didctica da leitura do prefcio aqui, como era j no exemplo de Nietzsche, essencialmente dirigida para o tempo da leitura. Ao estabelecer, porm o curso19 das leituras prvias e os movimentos de releitura, o prefcio chama

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On nest pas loin du cursus universitaire (Schaeffer 1987: 40)

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para o interior da obra uma srie de outros textos que teriam nela o seu lugar se no tivessem j sido escritas, deste modo acentuando a essencial incompletude do livro, de um lado, e o desfasamento implcito20 do seu completamento. Veja-se por exemplo o que justifica a segunda exigncia: The second demand is that the introduction be read before the book itself, although it is not a part of the book, but appeared five years previously under the title On the fourfold Root of the Principle of Sufficient Reason: a Philosophical Essay. Without an acquaintance with this introduction and propaedeutic, it is quite impossible to understand the present work properly, and the subject-matter of that essay is always presupposed here as if it were included in the book. Moreover, had it not preceded this work by several years, it would not be placed at the front of it as an introduction, but would be incorporated in the first book, since this book lacks what was said in the essay, and exhibits a certain incompleteness because of these omissions, which must always be made good by reference to that essay. (Schopenhauer 1958: xxii).

Mas no apenas a leitura da obra presente que ser afectada pela leitura prvia do ensaio de 1813; algumas concepes nele contidas, apresentadas de forma desequilibrada devido a uma excessiva preocupao com a filosofia kantiana, tero a sua errata em O Mundo como Vontade e Representao, cuja leitura se apresenta como releitura correctiva do texto mais antigo: For this reason, the correction of such passages in that essay will come about quite automatically in the readers thoughts through this acquaintance with the present work. (idem, ibidem). E o mesmo se passar com o apndice da obra, que dever tambm ser lido antes, reforando o necessrio conhecimento prvio da obra de Kant: On the other hand, it could not from the nature of the case be avoided that even the appendix should refer now and again to the main text. The result is simply that the appendix, as well as the main part of the work, must
De que o exemplo mais forte ser talvez esta passagem: But the same dislike to quote myself word for word, or to say exactly the same thing a second time (...) has been the cause of yet a second omission in book one of this work. For I have left out all that is to be found in the first chapter of my essay On Vision and Colours, which otherwise would have found its place here, word for word. (Schopenhauer 1958: xxii).
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be read twice (idem: xiii). A lgica do parergon parece estar aqui a funcionar plenamente. O que resulta destas advertncias mais uma sobreposio entre as funes do ndice e do prlogo, agora no sentido oposto. O prefcio revela a estrutura do livro e constri uma ordem de leitura mas, tal como nos ndices de Rosa, uma ordem distinta da ordem do livro, da sequncia de pginas que forma a sua materialidade linear. Estes desdobramentos recursivos, que o prefcio prolonga at ao ponto em que j s os pode interromper pela ironia How are we to reach the end, asks the reader, if we must set to work on a book with so much trouble and detail? (idem: xxiv) traduzem o esforo para compensar a partir de fora, a partir da margem e de uma anterioridade propedutica, um problema de forma. E, como dizamos, em nome do livro que elas se tornam necessrias: A system of thought must always have an architectonic connexion or coherence, that is to say, a connexion in which one part always supports the other, though the latter not the former; in which the foundation-stone carries all the parts without being carried by them; and in which the pinnacle is upheld without upholding. On the other hand, a single thought, however comprehensive, must preserve the most perfect unity. If, all the same, it can be split up into parts for the purpose of being communicated, then the connexion of these parts must once more be organic, i. e., of such a kind that every part supports the whole just as much as it is supported by the whole; a connexion in which no part is first and no part last, in which the whole gains in clearness from every part, and even the smallest part cannot be fully understood until the whole has been first understood. But a book must have a first and a last line, and to this extent will always remain very unlike an organism, however like one its contents may be. Consequently, form and matter will be here in contradiction. (idem: xx-xxi).

aqui que a exigncia de releitura se explica plenamente e se liga aos aspectos da fico de Guimares Rosa que at agora nos ocuparam. Um livro, na definio de Schopenhauer, um meio de transmisso inadequado. Perturba, de todas as formas que

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a introduo d a ver, a revelao desse pensamento nico cuja descoberta equivale descoberta da pedra filosofal (idem: xx). E perturba-a, essencialmente, porque exige uma primeira e uma ltima linha. O livro orientado e hierarquizado; o pensamento orgnico, nele no part is first and no part last21. O livro falha pela discrepncia entre uma forma que exige divises e margens e a organicidade de um pensamento que as recusa. Se o pensamento que o livro pretende revelar orgnico e nico, no poder aceitar a estrutura que o livro lhe impe. A exigncia de um comeo e de uma concluso entra em conflito com a reciprocidade permanente das partes e do todo que no se pode submeter a uma vectorialidade. A forma escolhida para ultrapassar essa imposio do livro aproxima-se do tipo de relanamento que encontrmos representado na figura do Guegue: um livro s pode superar o seu telos se for obrigado a entrar num circuito que o inverta e subverta. A releitura prolonga o livro alm do seu limite, dobrando-o sobre si no circuito que institui nele uma diferena. esta a contradio que faz do prefcio e das suas exigncias que projectam um nmero indeterminado de possveis prefcios ao prefcio algo necessrio para a compreenso do livro. Dizer ao leitor o que ler e quando indicar uma forma de tentar compensar as dificuldades desta contradio inerente entre o pensamento e o suporte. O papel dos elementos marginais assim determinante: s o prefcio permite que o livro seja lido, pois o prefcio que prescreve a sua releitura. Esta, porm, tem tambm as suas exigncias; e talvez nesse ponto que esta imagem de um todo orgnico constitudo por partes que o suportam e so por ele

Repare-se que a comparao entre o pensamento nico e o organismo recorda a caracterizao platnica do discurso como ser vivo todo o discurso deve ser formado como um ser vivo, ter o seu organismo prprio, de modo a que no lhe faltem, nem a cabea, nem os ps, e de modo a que todos os rgos internos como os externos se encontrem ordenados uns aos outros, em harmonia com o todo (Plato 1994: 98 264c). No entanto, a analogia cede perante a negao da prioridade a qualquer das partes do discurso, sobre a qual assenta a distino face ao carcter inorgnico do sistema. Este seria, nos termos do Fedro, um discurso que pode nadar de costas, como o epitfio de Midas.

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suportadas se afasta da circularidade hermenutica que parece sugerir. A palavra pacincia atravessa o prefcio (tal como todo o campo semntico da lentido construa o prefcio de Nietzsche a Aurora) e determina, de um lado, o tipo de leitura que se espera do leitor, e do outro o confronto desta prescrio abstracta de leitura com a sua condio viva. A pacincia que a releitura exige is to be derived only from the belief, voluntarily accorded, that the beginning presupposes the end almost as much as the end the beginning, and that every earlier part presupposes the later almost as the later the earlier. I say almost, for it is by no means absolutely so; and whatever it was possible to do to give priority to that which is in any case explained by what follows, and generally whatever might contribute to the greatest possible comprehensibility and clearness, has been honestly and conscientiously done. Indeed, I might to a certain extent have succeeded, were it not that the reader, as is very natural, thinks when reading not merely of what is at the moment being said, but also of its possible consequences. Thus besides the many contradictions of the opinions of the day, and presumably of the reader also, that actually exist, as many others may be added that are anticipated and imaginary. (idem: xxi). O pressuposto de uma organicidade do todo funciona aqui como tentativa de impedir qualquer tipo de movimento alm do que est a ser dito naquele momento; a pacincia, ento, uma forma de negao da antecipao do todo. No h a circularidade: h uma leitura que progride o mais linearmente possvel at ao fim das pginas, a que se deve necessariamente seguir uma repetio em que as relaes se possam enfim revelar, libertas da vectorialidade linear e com base no conhecimento prvio do todo. O risco precisamente a tentao da antecipao se o leitor projectar uma imagem do todo antes de concluir a primeira leitura, a legibilidade colapsa. um movimento que talvez se perceba melhor se o associarmos a uma das mais comuns caracterizaes da diferena entre leitura e releitura: a que ope a dimenso temporal da

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primeira representao espacial da segunda22. A formulao mais conhecida desta distino provavelmente a de Nabokov, nas suas Lectures on Literature, a propsito de Joyce: Curiously enough, one cannot read a book: one can only reread it. A good reader, a major reader, an active and creative reader is a rereader. And I shall tell you why. When we read a book for the first time the very process of laboriously moving our eyes from left to right, line after line, page after page, this complicated physical work upon the book, the very process of learning in terms of space and time what the book is about, this stands between us and artistic appreciation. When we look at a painting we do not have to move our eyes in a special way (...). The element of time does not really enter in a first contact with a painting. In reading a book, we must have time to acquaint ourselves with it. We have no physical organ (as we have the eye in regard to painting) that takes in the whole picture and then can enjoy its details. But at a second, or third, or fourth reading we do, in a sense, behave towards a book as we do towards a painting. (Nabokov 1983: 3).

Este esforo fsico concentrado, limitado, impeditivo, para Nabokov, de uma apreenso da obra atravs da simples leitura, parece corresponder, inversamente, ao desejo de Schopenhauer: um leitor que, pacientemente, porque avisado da precariedade, suspenda o julgamento at chegar ao fim do livro. Schopenhauer afirma-o como desejo, mas um desejo, como toda a prescrio, minado pela impureza do acto de leitura, pelo leitor que no se submete inteiramente letra, que inevitavelmente vai alm da sua funo e pe em risco o livro imaginando-o antes que ele possa efectivamente existir23.

Cf. M. Calinescu, Rereading, sobretudo as pginas 17-30: At the root of such oppositions is our sense that, while the first reading of a literary work is an unavoidably linear-temporal process, a second reading, even though it takes place in time as well, enables the rereader to apprehend each part of the work within a simultaneous, spatial awareness of the whole. This is in fact never the case, as we shall see. (Calinescu 1993: 17). 23 A ideia de leitura em Schopenhauer, contra a qual o prefcio se faz, parece assim prxima da que leva Matei Calinescu a negar a possibilidade de distino entre leitura e releitura: What should be clear is that reading and rereading often go together. Thus, under certain circumstances the first reading of a work can in fact be a double reading; that is to say, it can adopt, alongside the prospective logic of reading, a retrospective logic of rereading. Such a double movement consists, naturally, of the sequential temporal movement of the readers mind (attention, memory, hypothetical anticipation, curiosity, involvement) along the horizontal or syntagmatic axis of the work; but it also consists of the readers attempt to construct (note the building, spatial metaphor) the text under perusal, or to perceive it as a construction with certain clearly distinguishable structural properties.This double (first) reading is one

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A pacincia que lhe pedida ento quase uma definio do leitor (por oposio ao releitor): aquele que espera, aquele que no antecipa, porque s nessa suspenso orientada a leitura parece subsistir. Deste modo, a ideia de releitura que se repete neste prefcio de Schopenhauer configura ao mesmo tempo um horizonte positivo e negativo: positivo, porque procura produzir o pensamento a partir do meio insuficiente e incompleto que o livro; e negativo, porque implica uma paradoxal temporalidade que postula como simultneas, numa releitura ideal, uma srie de operaes, prvias e subsequentes, temporalmente disjuntivas. Se a leitura da obra o ponto para o qual se orientam todas as leituras anteriores e posteriores de suplementos essenciais sua completude, e se a leitura da obra s pode efectivamente ter lugar durante a releitura, no desfasamento constitutivo destes movimentos ganha forma a legibilidade impossvel de O Mundo como Vontade e Representao, preso ainda temporalidade do suporte e da leitura. Desta complexa estrutura Rosa ir reter mais do que inicialmente pode parecer, a comear pela acentuao, presente aqui e em Nietzsche, de uma leitura lenta como critrio de seleco dos leitores, que era alis um dos pressupostos da advertncia de Cara-de-Bronze que reproduzi no incio desta segunda parte. Toda a construo dos ndices de Tutamia ecoa o movimento que aqui se descreveu, sobretudo no modo como se pe em crise uma vectorialidade do livro a partir da introduo de uma prescrio de releitura. Falei da estrutura desdobrada do paratexto como uma dupla cartografia, ou uma cartografia no coincidente que desestabilizava a forma do livro. Os dois ndices de Tutamia indiciam, aparentemente, dois livros, como alis o jogo da inverso entre
in which two radically different kinds of attention and interest are involved (one diachronic, the other synchronic), and in which the normal linear reading is already shadowed by a sort of tentative rereading. (Calinescu 1993: 18-19). no esforo de separao destes dois eixos que reside a prescrio schopenhaueriana.

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ttulo e subttulo (Tutamia / Terceiras Estrias) parece querer confirmar, sugerindo tambm uma inverso no sentido da leitura. E mais do que apresentar o livro, mais do que descrever a estrutura do livro (embora tambm o faam), estes ndices indicam como ler, e predispem uma ordem de leitura que ser mudada no final do livro, perturbando a sua sequncia linear. Os ndices reproduziro duas passagens quase contguas do prefcio de Schopenhauer. A primeira aparece no primeiro ndice e evoca a prescrio bsica do texto, recuperando-a numa segunda formulao que sublinha a repetio. Como nos dilogos ocultos de que falmos no captulo dois, o incio de Tutamia parece assim projectar-se para fora do texto, respondendo, na citao, a um gesto fundador que dele excludo: Da, pois, como j se disse, exigir a primeira leitura pacincia, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entender sob luz inteiramente outra. (Rosa 1967)24. Em termos de expectativas e protocolos de leitura o primeiro ndice, primeira apresentao de uma totalidade do livro, tem um papel desestabilizador. Antes mesmo de iniciar a leitura, o leitor j projectado para uma reviso posterior, que faz de uma segunda leitura que alterar muita coisa, ou tudo o ponto de fuga. Assim, a primeira leitura, marcada pela prescrio liminar, orienta-se, desde logo, para o fim do livro, alertada para a necessidade de ter presente, no seu decurso, a provisoriedade de uma compreenso relativa, que num segundo momento ser revolucionada. O leitor assim j encaminhado para uma reviso posterior, para uma promessa diferida de sentido que invalida a closure e que, deste modo, bloqueia na leitura a antecipao da totalidade:
Cito a partir da primeira edio, dado que, como j referi, a edio da Nova Aguilar suprime os ndices. No prefcio de Schopenhauer a frase : Darum also erfordert die erste Lektre, wie gesagt, Geduld, aus der Zuversicht geschpft, bei der zweiten vieles oder alles in ganz anderm Lichte erblicken zu werden (Schopenhauer 1998: 8).
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na releitura, e no na leitura, que o segredo reside. O efeito, como comemos por ver com o prlogo de Schopenhauer, a suspenso do sentido da leitura, o impedimento de qualquer totalizao, na provisoriedade paciente de uma leitura que espera. Quando chegamos ao fim do livro encontramos ento o ndice de Releitura, com a segunda citao de Schopenhauer:

J a construo, orgnica e no emendada, do conjunto, ter feito necessrio por vezes ler-se duas vezes a mesma passagem. (idem). aqui que o texto de Rosa revela o trabalho sobre o prefcio de O Mundo como Vontade e Representao. A frase, como dizamos, nele quase contgua primeira; o gesto fundamental de Tutamia desloc-la do incio para o fim do livro. Aquilo que no prefcio correspondia a um aviso ao leitor sobre a necessidade de uma exposio repetitiva, introduzindo uma distncia em relao ao livro que permitiria melhor entrever o pensamento que nele se tentava transmitir, aqui transferido para o espao entre as duas leituras. Qual a diferena? O livro de Rosa incorpora plenamente a tenso do prefcio de Schopenhauer, que tenta, a partir do limiar, projectar um movimento recursivo sobre o livro alm do seu final (desdobrado ainda noutras exigncias de releitura); mas incorpora-a num desvio da materialidade, ou seja introduzindo, no livro, um paratexto desdobrado que regressa e se mostra, efectivamente, no ponto-chave da passagem da leitura releitura. Deste modo, em Tutamia, o aviso relativo leitura surge depois e nesse movimento que se decide a complexa definio da releitura no texto rosiano. O efeito, na orientao do livro, perturbador: se a primeira epgrafe levava o leitor necessidade de uma suspenso em nome do que no fim do livro se revelaria, no final deste processo o leitor projectado de volta leitura que acabou de cumprir. Terminada a primeira leitura, o leitor fica a saber que j leu duas vezes. No
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estamos longe do movimento que, em Corpo de Baile, identificava as parbases ao final de uma leitura em que j tinham funcionado como tal. A ateno dirigida, agora, no de volta para a margem, mas para o centro, para o prprio acto de leitura, onde a releitura era, sem que disso se tivesse conscincia, j posta em prtica. No fundo, o aviso atrasado repete a mesma instituio de uma anterioridade que a epgrafe do primeiro ndice, ao abrir o livro com uma repetio impossvel, j lanava: o livro no coincide com os seus prprios limites, e nesse sentido a sua forma , para o leitor, incontrolvel. Deste modo, abertura e concluso do livro convergem para o meio, mas num permanente desencontro: uma primeira leitura orientada para uma segunda leitura que tudo alteraria; uma segunda leitura proposta com a conscincia de que, afinal, a releitura j foi feita, condicionada pela construo do texto. No ndice de releitura, ento, o livro reformula-se para ser novamente relido, marcado j pela conscincia da repetio. O carcter revelatrio da segunda leitura est assim sujeito a uma diferena temporal vem tarde, ou atrasado, tal como a conscincia (de Tutamia, por exemplo, como livro com quatro prefcios) chega s no fim do livro. Mas a diferena em relao a Schopenhauer no reside apenas na deslocao de um aviso prvio para a prescrio final de releitura. No prefcio a O Mundo como Vontade e Representao, ainda em nome da inconformidade entre pensamento e forma do livro que surge a questo da repetio. O leitor ter de ser paciente, mas ter tambm de perdoar ao seu autor o facto de este, dada a dificuldade do tema, por vezes, em nome da clareza, ter sido obrigado a repetir-se: Moreover, the earnest desire for fuller and even easier comprehension must, in the case of a very difficult subject, justify occasional repetition. The structure of

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the whole, which is organic and not like a chain, in itself makes it necessary to touch twice on the same point.25 (Schopenhauer 1958 : xxi). Na sua traduo para a epgrafe do segundo ndice (J a construo, orgnica e no emendada, do conjunto, ter feito necessrio por vezes ler-se duas vezes a mesma passagem), Rosa vai rasurar a presena do autor, transformando aquele berhren, tocar, sua aco sobre a estrutura do texto, num simples ler-se. Em rigor as duas aces equivalem-se: se o autor repetiu duas vezes a mesma passagem o leitor (e mais ainda um leitor decorrente da formulao schopenhaueriana) tambm a ir ler duas vezes. No entanto, o problema sai deslocado desta pequena alterao de traduo. O leitor l duas vezes se o autor se repetir, mas aqui o autor desapareceu: o leitor l duas vezes pela construo orgnica do conjunto, ou seja, a prpria natureza orgnica da obra que obriga a reler enquanto se l. Esta segunda leitura, inevitvel e quase inconsciente (dado que para ela que se chama a ateno uma vez terminada), uma releitura que a prpria obra exige. Por isso o ndice, espao ainda autoral (e assinado, recordo), nada mais pode fazer do que constatar que uma certa releitura j foi feita, no por indicao sua, e sim pela prpria natureza da obra, reforando o carcter descritivo e retroactivo do segundo ndice. Atravs das epgrafes, fica ento claro que leitura e releitura so indissociveis, contemporneas, pela construo do conjunto que impede que o livro se constitua livro fora dessa travessia, fora dessa transformao. Se o primeiro ndice de Tutamia projecta o leitor em direco ao fim, o segundo ndice est l para o fazer voltar ao centro, ao meio da travessia, ao livro como espao relanado (missivo) e transformado sem que o seu texto se altere. Os ndices oferecem, sim, uma margem ao

brigens mu das ernstliche Streben nach vlliger und selbst leichter Verstndlichkeit bei einem sehr schwierigen Gegenstande es rechtfertigen, wenn hier und dort sich eine Wiederholung findet. Schon der organisches, nicht kettenartige Bau des Ganzen machte es ntig, bisweilen dieselbe Stelle zwei Mal zu berhren (Schopenhauer 1998: 8).

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livro26, mas fazendo dele uma forma que s existe, tensa, presa entre a retrospeco e antecipao. Os elementos marginais, ento, caracterizam Tutamia como um livro imaterial, no o livro que pensvamos ler, no o livro que podemos reler, mas o espao da relao transitria entre uma inscrio e a sua reviso construda atravs da leitura em tenso com o tempo. Nesse sentido, a margem no acessria, mas , como no caso do prefcio filosfico, aquilo que confere ao livro a sua legibilidade impossvel, que faz da sua materialidade inalterada o ponto de partida para uma transformao orgnica. Atravs da margem Guimares Rosa constri o livro, na sua impossibilidade material que depende da materialidade, como um mapa que se desarticula e foge, para voltar expresso de Antonio Candido. Como no paradoxo de Nabokov, no h leitura, s h releitura. Mas no porque s na releitura seja possvel ultrapassar a temporalidade: o tempo a matria orgnica de que o livro feito e se faz na interaco com o leitor, na leitura e na releitura. O texto, como vimos, abre-se com a acentuao de uma repetio impossvel: mesmo a projeco da releitura, no primeiro ndice, apresentada como repetio de algo que se situa fora do livro. Deste modo, o que o livro faz estabelecer um percurso sem termo entre antecipao e retrospeco. Reencontramos aqui a imagem do mensageiro que leva o mesmo recado alm do seu destino, instituindo um circuito de ida e volta que introduz nele a diferena e que j no se pode fechar: o que Tutamia permite perceber, com a sua construo desfasada, a vinculao desse circuito ao tempo atravs da imagem do livro como errata de si prprio. A relao entre diferena e repetio, que tanto perturbava a orientao do Guegue no nosso exemplo inicial, tem como eixo a linearidade inevitvel do livro relanada numa inverso de rumo, que no se confunde

Como na caracterizao de Derrida do regresso ao livro de Jabs, [c]elui-ci est un chemin qui enferme en soi les sorties hors de soi, qui comprend ses propres issues, qui ouvre lui-mme ses portes, cest--dire, les ouvrant sur lui-mme, se clt de penser sa propre ouverture. (1967b: 434).

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com uma circularidade mtica, antes projecta um centro suspenso em que dois movimentos de sinal oposto se encontram (leitura e releitura): o meio do livro, literalmente mais longe do que o fim, mais perto. No fundo, este movimento reencena a tenso entre as duas ordens de tempo que se apresentavam na concluso de Primeiras Estrias e que focmos no captulo anterior: a constituio de um tempo fora das molduras, de um centro suspenso do livro, pode fazer-se apenas contra um limite que a materialidade do livro institui. O circuito de ida e volta que relana o livro alm do seu termo guarda, da coincidncia entre fim e morte que focmos na primeira parte, o tempo como instituio da diferena que s num movimento de regresso ser visvel aprs-coup. Assim, a segunda leitura ainda repetio de um percurso atravs de um mundo misturado, que pode ser a expresso de Rosa para o carcter orgnico da obra; mas repetio consciente das sobreposies a que esse mesmo mundo obrigou, sem que as possa j abolir. Tutamia, como livro movente, tem de se construir sobre a repetio. legibilidade disjuntiva de Schopenhauer, Tutamia responde com uma legibilidade diferida. A passagem de uma leitura orientada para a releitura para uma releitura orientada para a leitura uma sequncia essencialmente temporal, que perturba definitivamente projeces teleolgicas, como se o leitor percebesse sempre tarde que nesse processo que a revelao prometida de sentido poderia ter lugar. A descrio de um conhecimento que chega tarde, tpica da construo narrativa de Guimares Rosa, est prxima de uma insistncia sobre a releitura, sobre o rever o j lido como algo que no pde ser legvel, abrindo-o transformao e recusando-lhe a estabilidade de uma forma terminada. O problema talvez esteja, se quisermos retomar Nabokov, nessa aplicao necessria, fsica, absorvente do acto de leitura: descobrimos tarde de mais que era a que residia o que procurvamos. Parece ser essa, pelo menos, a representao
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que Grande Serto: Veredas oferece do necessrio diferimento na identificao do lugar do real, imposto por uma repetio constitutiva do real da vida: Ah, tem uma repetio, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas e no meio da travessia no vejo! s estava era entretido na idia dos lugares de sada e de chegada. (II 28) Por que era que eu estava procedendo -toa assim? Senhor, sei? O senhor v pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregvel, num mim minuto, j est empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para l de tantos assombros... Um est sempre no escuro, s no ltimo derradeiro que clareiam a sala. Digo: o real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a gente no meio da travessia. (II 46)

Percebemos ento que o desencontro entre livro e livro que Tutamia encena na sua totalidade, que est em transformao antes mesmo de se constituir totalidade (se leitura e releitura so contemporneas), permite identificar a figura que procuramos desde o incio deste percurso para dar forma ao modo como se nega a closure a um livro que, no entanto, se continua a afirmar como costurado. A figura, ou seja, que condensa, ao mesmo tempo, a manuteno do livro dentro dos seus limites e o seu movimento alm do fim: refiro-me ao reconhecimento como elemento estruturante do universo rosiano, desde a epifania ptica de Miguilim em Campo Geral at revelao pstuma de Grande Serto: Veredas. Na encenao de uma descoberta tardia, ou pstuma, daquilo que no se soube ler a tempo, a estrutura narrativa dos livros de Rosa constri uma representao do movimento regressivo que estabelece o limite ao mesmo tempo que o invalida. Porque o modo como Grande Serto: Veredas se encaminha inexoravelmente para o segredo em que assenta a sua construo s ganha sentido no movimento inverso que a descoberta pstuma desse mesmo segredo origina: o enredo curva-se sobre si prprio atravs do reconhecimento que, no momento em que ocorre, apenas pode denunciar uma provisoriedade inultrapassvel na leitura do mundo.
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Como sublinha Terence Cave, o carcter desestabilizador do reconhecimento parece estar ligado ao modo como institui uma dobra na estrutura do enredo. Uma dobra temporal, poderamos dizer, no sentido em que faz coincidir um movimento prospectivo e regressivo Ana-gnorisis, like re-cognition, in fact implies a recovery of something once known rather than merely a shift from ignorance to knowledge (Cave 1988: 33); mas tambm uma dobra lgica, que invalida definitivamente o fechamento do texto: Recognition, it would seem, works against mimesis in Auerbachs sense of the word. The scar is a mark of treacheroulsy concealed narrative waiting to break the surface and create a scandal; it is a sign that the story, like the wound, may always be reopened. (idem: 24).

O efeito da revelao como ponto de orientao da estrutura narrativa alimentase, em Rosa, dessa mesma tenso. A chave do romance tem como efeito a sua reabertura, na projeco retroactiva de uma desestabilizao de sentido. A revelao pstuma , em Rosa, a materializao dessa conscincia tardia da repetio que a estrutura de Tutamia reflecte. A revelao institui a releitura como regra do texto; no seu limiar, no seu limite ltimo, apenas pode relanar a leitura, alm do fim, para esse centro que no pde ver a tempo. Assim, a conjugao de repetio e releitura que a construo diferida de Tutamia pe em prtica acentua, no fundo, aquilo de que o reconhecimento figura: o trnsito do livro no seu movimento interminvel sobre si mesmo. Nas palavras de Peter Brooks:

Yet recognition cannot abolish textuality, does not annul that middle which is the place of repetitions, oscillating between blindness and recognition, between origin and ending. Repetition toward recognition constitues the truth of the narrative text. (Brooks 1992: 108).

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III. S se pode entrar no mato at ao meio dele

Join the extremes and you will find the true middle. Friedrich Schlegel, Ideen 74

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Aqui eu podia pr ponto

Recurso O grande movimento a volta. Primeiras Estrias

O movimento que a construo de Tutamia encena um movimento a que poderamos chamar, com uma expresso que Barthes usa para descrever o modo como o seu livro oferece resistncia, rcessif1. Mais uma vez estamos perante uma construo que resiste prpria concluso, que se dispe fisicamente como negao da coincidncia entre o fim do livro (no h mais pginas para ler) e o ponto final da leitura: aqui, porm, j no o narrador que defende o seu texto, e sim o livro na sua constituio desdobrada. Tambm as ilustraes, alis, concorrem para esse efeito, alternando os cul-de-lamps de modo a que o livro se feche com a imagem do caranguejo2 (Buda roxo, num poema de Magma, que s sabe recuar3). Tutamia

livre de mes rsistances mes propres ides; cest un livre rcessif (qui recule, mais aussi, peut-tre, qui prend du recul) (Barthes 1975: 123). 2 Maria Lcia Guimares de Faria, num ensaio recente, destaca o papel das ilustraes: O contnuo ir-e-vir ritmado, no livro, pela alternncia dos smbolos do caranguejo e da coruja, que assinalam, respectivamente, um voltar e um transcender, um vir aqum e um ver alm. (Faria 2007: 228). 3 Caranguejo (Rosa 1997: 42).

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leva ao extremo o que se ia indiciando atravs das obras anteriores de Rosa: a encenao de um limite que represente, para o livro, ao mesmo tempo, o seu ponto de orientao, a impossibilidade do seu fechamento e a reafirmao da sua materialidade como espao da histria. Vimos ao longo da primeira parte, e sobretudo com Meu Tio o Iauaret, diferentes encenaes de como esta parecia reagir imposio de um limite; aqui, a prpria margem fsica do livro que se faz ao mesmo tempo ponto de chegada e de relanamento. uma imagem que j conhecemos: era esse o efeito do Guegue (recadeiro de nome essencialmente repetitivo) sobre o ponto de chegada da comunicao o mensageiro impedia a chegada da carta porque fazia do seu destino uma nova sede de envio, sobrepondo a viagem ao suposto transporte do sentido. A carta, desse modo, nunca chega; no porque o mensageiro no cumpra a sua funo, mas porque ao cumprir a sua funo de forma excessiva o mensageiro faz precipitar, na volta do correio, os dois plos da comunicao epistolar. esse o movimento que nos interessa: transportar recados entre dois pontos o que o mensageiro deve fazer e efectivamente faz; fazer desses dois pontos no uma estrutura orientada (origem e destino) e sim um circuito em que os extremos podem sobrepor-se indiferenciadamente (a origem converte-se em destino, e vice-versa, sem nova ordem que redefina a orientao) instala o caos na comunicao a partir da repetio de um mesmo trajecto4. Percebe-se que essa estrutura sirva de centro ao circuito do recado do Morro, profecia que se cumpre apenas atravs das transformaes que o percurso lhe vai impondo, fazendo do momento em que finalmente funciona uma cena de reconhecimento5. Essa

tentador pensar o excesso de zelo do mensageiro luz de uma famosa explorao excessiva do sistema postal como forma de imploso da comunicao. Refiro-me correspondncia entre Kafka e Felice Bauer, tal como analisada por Siegert em Relays. Literature as an Epoch of the Postal System, no perverso cruzamento entre multiplicao, atraso e revogao que o jogo das cartas e do tempo da sua entrega institui: And so on, and so on. It is plain to see: the letters going back and forth between Prague and Berlin amounted to a single, self-registering, mad postal machine. (Siegert 1999: 239). Ver, a propsito, todo o cap. 21: Mail, or the Impossibility of Writing Letters (idem: 227-246). 5 Maurice Capovilla parece apontar nessa direco ao comparar o conto com A Condenao de Kafka: Se fssemos encontrar semelhanas para traar paralelos, imediatamente encontraramos na A

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falha na comunicao age, como vimos, exclusivamente atravs daquilo que o circuito do mensageiro inevitavelmente contamina: o mesmo texto que, sendo o mesmo, j no pode coincidir consigo prprio. O exemplo de Campo Geral, com Miguilim a no permitir que o bilhete abandone o lugar do transporte (o seu bolso), j nos tinha dado a consequncia possvel dessa confuso produzida: a releitura do texto, feito no fosse aquele que ele mesmo tinha fornecido. (I 507). Ora, o que Tutamia permitiu acentuar nesta estrutura o tempo como elemento constitutivo do circuito. Como pergunta Riobaldo em Grande Serto: Veredas: At os pssaros, consoante os lugares, vo sendo muito diferentes. Ou so os tempos, travessia da gente? (II 257). No movimento de ida e volta que os mensageiros impem ao mesmo recado, este expe-se ao tempo, no fundo o nico elemento que permite a sua diferenciao em cada ponto do seu trajecto (como o texto acentua atravs do Guegue, a paisagem tem se manter a mesma para que o circuito possa ser institudo). O recado posto em circulao ser assim, sempre, um recado que demora, que permanece no circuito. O que distingue o mesmo recado no mesmo percurso, entregue s mesmas pessoas pelo mesmo mensageiro apenas o tempo da entrega: a partir do momento em que o recado ultrapassa o seu destino original, estar sempre fora do seu tempo, no prolongamento da sua validade. Recorde-se a pergunta do tigreiro em Meu Tio o Iauaret, que bloqueava qualquer referncia externa ao espao do rancho: C vai indo ou vem vindo? (II 825). Mas sendo o efeito desse prolongamento a invalidao dos pontos de partida e chegada como pontos de orientao a inverso da direco torna-

Condenao (...), de Franz Kafka, uma novela da mesma espcie de Recado do Morro. Ambas dependem da soluo proveniente do desenlace, para que o sentido das aes das personagens seja isolado pela observao do leitor e totalmente compreendido. Ambas so novelas que dependem portanto da releitura, porque o unvoco s se encontra quando j se conhece a soluo. (1964: 141). Se bem que seja difcil falar de sentido unvoco a propsito dessa novela de Kafka, a comparao chama a ateno, indirectamente, para um dos aspectos fundamentais: a sbita descontinuidade que o desenlace introduz impe a releitura como tentativa de identificao, na fabula, de uma segunda linha, perturbando deste modo a orientao temporal do conto. Em O Recado do Morro, a descontinuidade de ordem temporal: a profecia, na origem, descreve um futuro que s se concretiza pela aco do presente sobre ela.

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os indistintos, e o recado na verdade nunca chegou a constituir o destino como destino -, o recado estar num regime de prolongamento a partir do momento em que posto em circulao. da mesma natureza a resistncia que Tutamia, como figura do livro em Guimares Rosa, oferece aos seus leitores. Meio de transporte, o livro faz-se mensageiro excntrico e visvel, na medida em que no permite a entrega nem a chegada ao destino. Tal como o Guegue, Tutamia converte o seu ponto de chegada num ponto de envio de reenvio de um mesmo texto em direco sua releitura ou seja diferena de si a si mesmo, que tem como eixo a repetio. Antes mesmo de a primeira leitura se poder cumprir, esta j entrou no circuito da releitura: tal como no episdio de Uma Estria de Amor, o fim convertido num meio que projecta, a partir da materialidade da histria, uma segunda parte imaterial. Os ndices, enquanto fronteiras do livro, instauram entre si um jogo remissivo que perturba a noo de orientao; e tal como com o Guegue, no h concluso razovel para esse percurso. Rasgar o bilhete, destruir o texto, impedindo-lhe o circuito perturbador, era o gesto que tentava impor uma concluso a uma forma que a recusa. Mas como os exemplos que vimos parecem mostrar, de Joana Xaviel ao sobrinho do jaguar, a aco violenta compromete e sacrifica o lugar da histria, que aqui o corpo do livro. Parafraseando a famosa caracterizao da releitura em S/Z6, os que falham a releitura parecem estar
La relecture, opration contraire aux habitudes commerciales et idologiques de notre socit qui recommande de jeter lhistoire une fois quelle a t consomme (dvore), pour que lon puisse alors passer une autre histoire, acheter un autre livre, et qui nest tolre que chez certaines catgories marginales de lecteurs (les enfants, les vieillards et les professeurs), la relecture est ici propose demble, car elle seule sauve le texte de la rptition (ceux qui ngligent de relire sobligent lire partout la mme histoire), le multiplie dans son divers et son pluriel : elle le tire hors de la chronologie interne (ceci se passe avant ou aprs cela) et retrouve un temps mythique (sans avant ni aprs) ; elle conteste la prtention qui voudrait nous faire croire que la premire lecture est une lecture premire, nave, phnomnale, quon aurait seulement, ensuite, expliquer, intellectualiser (comme sil y avait un commencement de la lecture, comme si tout ntait dj lu : il ny a pas de premire lecture, mme si le texte semploie nous en donner lillusion par quelques oprateurs de suspense, artifices spectaculaires plus que persuasifs); elle nest plus consommation, mais jeu (ce jeu qui est le retour du diffrent). (Barthes 1970 : 20). A concepo de releitura que em Tutamia se explicita, no entanto, tem na repetio a sua condio de possibilidade.
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condenados no a ler outra vez a mesma histria em todo o lado, e sim a no a ler sequer, ou mais precisamente a no a ter lido nunca: o livro furta-se ao leitor que dele se proponha sair. No era de outra coisa que falava o prefcio de Schopenhauer quando devolvia o leitor que no se dispunha a reler materialidade intil e decorativa do objecto-livro. Por isso importante que na duplicao dos ndices e isto vale tanto para Corpo de Baile como para Tutamia a determinao de uma nova ordem de leitura no seja a questo principal, ou a chave do jogo. Se, inicialmente, os ndices finais parecem sugerir outro percurso de leitura, com as peas do livro montadas por outra ordem, o que tentei demonstrar no captulo anterior que essa variao mais uma marca da diferena que a releitura impe (que o circuito determina) do que uma alterao das regras. E talvez a se perceba melhor a distino que apontei, de passagem, em relao s instrues de Rayuela, que desdobram o livro a partir da sua aco sobre partes no coincidentes do todo. Mais do que uma diferente combinao das peas, que aqui coincidem integralmente ( sempre o mesmo texto a ser transportado), os ndices no final parecem estabelecer, como sugeri a partir de Schlegel, o movimento da leitura como verdadeiro protagonista da releitura. Ou porque na releitura se revela como parbase o que j tinha funcionado como tal, na estrutura do conjunto; ou porque, inversamente, na releitura se lem antes os prefcios que j no podem ser prefcios para perceber por que razo j no eram prefcios na primeira leitura7. Nos dois casos, a

Em Hors-livre, Derrida interroga-se sobre a legibilidade dos prefcios hegelianos fora da sua posio original, relacionando-os com a imagem da carta roubada que sai do circuito a que se parecia destinar: Comment rendre compte de ceci que les prfaces hegeliennes le plus et le moins philosophique peuvent se rpter, restent lisibles jusqu un certain point en elles-mmes, sans la logique dont elles sont censes recevoir leur statut ? (...) Que toute lisibilit nen soit pas dtruite, tout effet de sens annul, cela veut dire, entre autres choses, quil appartient la structure restante de la lettre, qui na pas de trajet propre, de toujours pouvoir manquer sa destination." (Derrida 1972a: 65 nota 33).

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diferena no afecta verdadeiramente a materialidade do livro, mais uma vez, nem dela se desvia; regressa-se a essa mesma materialidade, pe-se em movimento o mesmo texto, selado e inalterado, a partir de um gesto de explicitao reflexiva. E aqui que se decide o efeito do atraso que os ndices encenam. Atravs do ndice de releitura o livro mostra-se; mas mostrar-se equivale a dobrar-se sobre si prprio e esse movimento que o ndice transforma em prescrio, materializando na opo entre o livro fechado (o sorriso de Os cimos, as figuras desenhadas de costas) e o movimento de regresso ao centro do livro a alternativa entre ler e no ler. Tal como comecei por apontar a propsito de Corpo de Baile, esse movimento de explicitao, de distino, s pode ter lugar num segundo momento: Tutamia dar a esse segundo momento o nome releitura. O livro mostra-se apenas no momento em que se dirige para um termo negado, instituindo a diferena no seio do que se apresentava como unitrio, e a identificao da diferente natureza das partes que o compem s pode ter lugar depois de essas partes terem sido lidas como indistintas poemas e contos, nos dois livros. Os textos que reflectem sobre o livro (parbases e prefcios) funcionam, assim, num primeiro nvel, num regime em que no se diferenciam da narrativa que comentariam. Teoria e fico no podem ser destrinadas na leitura, as parbases estando, ao mesmo tempo, dentro da fico e fora delas. Distingui-las depois, a posteriori, implica a deslocao necessria do livro em relao a si prprio; os prefcios que j no o podem ser, as parbases que formam um bloco na cartografia que as explicita8. Nesse gesto, a metanarrativa rosiana encontra o seu lugar plenamente intervalar: suspensa entre a primeira e a segunda leitura, suspensa na posio intermdia da parbase ou dos prefcios integrados no meio do livro, suspensa entre um antes em que no se sabe

Parece ir nesse sentido a leitura de Ronaldes Melo e Souza de O Recado do Morro: Na viso rosiana, h o texto das sagas e o metatexto ou teoria da saga. O conjunto metatextual inclui as sagas que reflectem sobre a natureza e a funo das sagas sertanejas. As parbases se caracterizam como sagas que narram eventos do serto e, ao mesmo tempo, realizam a teoria da saga que se narra. (Souza 2007: 188).

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ainda e um depois em que se distingue o que j foi objecto de contaminao suspensa, no fundo, entre o livro que se faz e o livro que reflecte sobre si prprio atravs da temporalidade da leitura. A parbase a figura dessa suspenso do livro: transgride o espao da fico sem dela poder sair e acentua um centro crtico que s visvel alm do limite da pea, na sua repetio diferida. A insistncia de Tutamia sobre a repetio como algo que se revela a posteriori nos dois extremos do livro e que parte, como os exemplos de Grande Serto: Veredas sugeriam, da construo orgnica do conjunto (conjunto do livro e conjunto da experincia), indica no fundo o carcter paradoxal deste circuito em que o mesmo se faz no-coincidente na repetio. Talvez o que se apresenta nesta construo, em que as margens, num permanente atraso, relanam o livro em direco a um centro que ameaa a fico, possa ser visto como uma verso rosiana do paradoxo dicotmico de Zeno9. S que em vez de um ponto mdio a impedir permanentemente a chegada a uma meta, o texto apresenta-nos um centro a parbase, a reflexo que s localizvel depois de se cumprir a distncia entre ponto de partida e ponto de chegada. Na lgica ilgica do mensageiro, o movimento da releitura equivaleria permanente inverso da direco, relanando movimentos sucessivos de sinal oposto, que apenas se encontrariam na suspenso relacional que o meio. J sabemos: eu atravesso as coisas, e no meio da travessia no vejo. O que Tutamia exemplarmente demonstra que o lugar suspenso do real, ou do meio do livro, ou da sua reflexo, s localizvel na tenso protelada entre a leitura e a sua repetio: mais longe do que o fim, mais perto. Perseguir esse centro o movimento do livro, que assim se faz, segundo uma expresso de Schlegel, "nettamente limitata in ogni parte, ma allinterno di tali limiti (...) sconfinata e inesauribile (Schlegel 1998: 64 III 199).

Para uma caracterizao dos problemas associados ao paradoxo dicotmico cf. Salmon 2001.

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No final do captulo anterior, luz do modo como as caracterizaes de uma revelao diferida em Grande Serto: Veredas pareciam responder legibilidade diferida de Tutamia, sugeri que o reconhecimento era a figura narrativa desta aco recursiva, que reabre o texto em direco ao seu interior a partir da instituio de um limite. O centro da obra de Rosa, o romance de 1956, na verdade uma construo monstruosa sobre o diferimento de uma revelao, que directamente questiona a relao entre livro e segredo na figura do reconhecimento pstumo. Mas Grande Serto: Veredas tambm juntamente com Cara-de-Bronze, de que falaremos no prximo captulo a obra de Rosa em que o meio mais se evidencia e destaca como momento de reflexo. Na verdade, os dois movimentos que perseguimos no captulo anterior ganham a plena forma; assim, proponho-me agora interrogar, em Grande Serto: Veredas, a relao entre parbase e releitura, atravs de duas cartas e de uma interrupo.

Reconhecimento

Soon Starbuck returned with a letter in his hand. It was sorely tumbled, damp, and covered with a dull, spotted, green mould, in consequence of being kept in a dark locker of the cabin. Of such a letter, Death himself might well have been the post-boy.
Herman Melville, Moby Dick

Na novela Carta de Uma Desconhecida, de Stefan Zweig, um escritor recebe uma carta composta no momento da morte por uma mulher que aparentemente no conhece, e que revela ter-lhe sido por toda a vida inteiramente dedicada. Com ele se cruzou vrias vezes, vivendo em funo da sua proximidade e chegando a ter dele um
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filho, agora morto. Sem nunca a reconhecer como a mesma, o escritor desconhece totalmente o seu percurso, associando-a a aventuras amorosas sem ligao nem importncia. A leitura, que ocupa quase na ntegra a construo da novela, coincide com um momento de reconhecimento e de reconfigurao do passado luz desse reconhecimento, em que as relaes entre as duas personagens (a autora da carta e o seu destinatrio) so relanadas com base na fidelidade da desconhecida como linha estruturadora de uma narrativa dominada pelo desconhecimento do outro. Ao mesmo tempo, enquanto l, o escritor esfora-se inutilmente por unificar, na continuidade de um destino que lhe apresentado, as imagens daquilo que pensava serem diferentes mulheres esquecidas e essa impossibilidade selada pela morte, que a prpria carta em si representa. Como na famosa sequncia do metro de Roma, de Fellini, o momento em que as imagens enfim se mostram coincide com a sua destruio. O rosto fugaz da desconhecida um rosto em desaparecimento, que a leitura revela e apaga definitivamente. A ligao entre a carta e a constituio de uma narrativa coerente e estruturada evidente, contrapondo-se caracterizao de um percurso incoerente e disperso na vida do artista. A carta organiza e estrutura a experincia; a impossibilidade, para o escritor tornado agora leitor, de viver esse enredo, de nele entrar atravs da aco, torna-se porm dominante. A carta chega tarde; no momento exacto em que deixa de ser possvel responder10. Aquela que escreve desprende de si esse destino legando-o ao outro, a braos com a impossibilidade de reinterpretar de forma estvel o seu passado. A morte marca ento a irredutibilidade desse reconhecimento, to pleno quanto inalcanvel, decisivamente ligado a uma temporalidade tardia e marcado pela contemporaneidade do desaparecimento do rosto. nesse sentido que a morte aparece

Mas s conhecers o meu segredo quando eu estiver morta, quando no me puderes responder, quando isto, que fez agora passar no meu corpo tanto gelo e tanto fogo ao mesmo tempo, me tiver definitivamente levado. Se eu sobreviver, rasgarei esta carta e continuarei a calar-me como me calei sempre (Zweig: 100).

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como marca, na novela, do efeito de destinao da carta: efeito contaminador, que envia a morte para aquele que l, na sensao de morte que o leitor situa o legado da carta. 11 A questo que o exemplo levanta prende-se com a carta e com a sua temporalidade especial, que se comeava j a delinear, na seco anterior, com a definio temporal do circuito da mensagem, e que ser determinante para a caracterizao da revelao pstuma em Grande Serto: Veredas. Na sua relao com a situao narrativa da novela de Zweig, possvel ler a carta luz daquela knowledge that is by definition always retrospective and too late, or perhaps knowledge of the too late de que fala Peter Brooks a propsito da ideia de narrativa (1984: 53). Elemento de comunicao, que permite transpor a distncia, a carta sujeita-se ao trajecto que a define e ameaa12: o Guegue era a representao desse risco, mensageiro que sacrifica a carta ao trajecto e que impede, multiplicando a entrega, o seu termo. Entre a afirmao lacaniana de uma carta que chega sempre ao seu destino e a resposta de Derrida13, em que a possibilidade de que a carta chegue antecedida sempre pela possibilidade de no chegar, situa-se toda a ambiguidade constitutiva da carta: a conversa na ausncia que est na base da sua definio clssica revela-se distncia, escrita e morte a partir do
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Na adaptao cinematogrfica da novela por Max Ophuls (1948) o argumento introduz um elemento que, apesar de extremamente coerente com o imaginrio da filmografia do realizador (pense-se em Liebelei ou em Madame de...), acrescenta um nvel de problematizao relao da narrativa com a carta. Desafiado, antes de receber a carta, para um duelo em nome dessa mulher (para ele, de uma das figuras desligadas dessa mulher), duelo a que pretende no comparecer, o protagonista decide enfrent-lo na sequncia da leitura, ou seja na sequncia dessa reconfigurao que a carta convoca. Respondendo, pela exposio morte, ao teor testamentrio da carta, o protagonista reconhece, com a figura do duelo, o enredo proposto, legitimando a destinao da desconhecida no reconhecimento de um destino de morte, agora responsvel. importante para o quadro a desenvolver considerar a diferena fundamental a envolvida: a da possibilidade de uma resposta por parte do protagonista; ainda que plenamente negativa, pela coincidncia com a morte. A possibilidade de resposta determina tambm, no filme, a possibilidade do reconhecimento e da reconstituio da imagem, jogando com a prpria relao entre literatura e cinema nessa traduo visual das marcas ausentes da carta nome e rosto. 12 "Non que la lettre narrive jamais destination, mais il appartient sa structure de pouvoir, toujours, ne pas y arriver. Et sans cette menace (rupture de contrat, division ou multiplication, partage sans retour du phallus un instant entam par la Reine, cest--dire par tout sujet), le circuit de la lettre naurait pas mme commenc. Mais avec cette menace, il peut toujours ne pas finir." (Derrida 1980 : 472). 13 Para uma anlise da discusso, cf. Muller & Richardson 1988.

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momento em que se dispe no tempo e no espao. Assim a carta, como comemos j por ver no episdio de Manuelzo, permanentemente ameada pela sua dimenso fantasmtica: como escrevia Kafka a Milena, com o desenvolvimento da linha de que a carta matriz, que incluiria o telgrafo, o telefone e o telgrafo sem fios, sero os fantasmas a no morrer de fome14. Escrita, atraso e morte: figuras, ao mesmo tempo, da possibilidade da literatura. Mas no ser tanto o sentido da possibilidade de perda ou desvio que tomarei para j em considerao: o que Carta de Uma Desconhecida prepara, na extrema exiguidade do seu quadro narrativo, uma cena de leitura temporalmente marcada. A relao entre tempo e conhecimento colocada interrogando os efeitos da materialidade encenada do suporte, problematizando a legibilidade da experincia a partir de um desencontro textual a que a carta, na plena posse dos seus efeitos, d corpo. Forma exclusiva de representao de um diferimento prprio da escrita, atravs de um retardamento que o trajecto ou percurso representam, a carta perde-se necessariamente a partir do momento em que se dispe no tempo, em que demora no seu trnsito: e so muitos os exemplos literrios das cartas que, por chegarem tarde, tm o poder de matar (pense-se na carta que Romeu no chegou a ler). A carta da desconhecida de Zweig, no seu teor testamentrio ( semelhana da ltima carta de Teresa a Simo em Amor de Perdio), prev de forma extremamente precisa o momento em que dever ser lida: numa coincidncia plena da leitura com a morte. Nesse sentido, a carta que se prope como meio privilegiado de reconhecimento e de reconfigurao tambm o meio que

crire des lettres, cest se mettre nu devant les fantmes; ils attendent ce moment avidement. Les baisers crits ne parviennent pas destination, les fantmes les boivent en route. Cest grace cette copieuse nourriture quils se multiplient si fabuleusement. Lhumanit le sent et lutte contre le pril; elle a cherch liminer le plus quelle pouvait le fantomatique entre les hommes, elle a cherc obtenir entre eux des relations naturelles, restaurer la paix des mes en inventant le chemin de fer, lauto, laroplane; mais cela ne sert plus de rien (ces inventions ont t faites une fois la chute dclenche); ladversaire est tellement plus calme, tellement plus fort; aprs la poste, il a invent le tlgraphe, le tlphone, la tlgraphie sans fil. Les esprits ne mourront pas de faim, nous prirons. (Kafka 1988b: 267).

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bloqueia o acesso aco e correco do erro que desvela, por representar, em si, essa inacessibilidade permanente: abre para um sentido retroactivo que se depara com a evidncia da morte, por ela representada, a anular os seus efeitos. A temporalidade tardia da carta ser tambm a temporalidade do reconhecimento trgico o conhecimento que no chegou a tempo para impedir. Figura prxima de um desvelamento, que se constri em oposio cegueira anterior (tema to presente na novela de Zweig15 e no filme de Ophuls), o conhecimento tardio que a carta proporciona apenas prolonga e refora a conscincia da cegueira. A partir destes elementos possvel pensar a estrutura do reconhecimento no romance rosiano, enquanto limite narrativo que invalida o fechamento e reabre o texto ao seu middest, para voltar caracterizao de Kermode. A construo temporal da anagnorise pode ser considerada o eixo central da construo de Grande Serto: Veredas; para explorar o seu papel na narrao importa, porm, destacar o espao suspenso que a fala de Riobaldo representa, espao da imobilidade e da inaco, marcado apenas pelo gosto, de especular idia (II 12) e pela repetio da sua narrativa. Ettore Finazzi-Agr chamou-lhe, num ensaio em que destaca a sobrevivncia do trgico em Grande Serto, o romance enorme da espera (Finazzi-Agr 2002: 122), e essa suspenso da aco, submersa na linguagem, que nos interessar aqui. A fronteira, o ponto sem regresso a abrir para essa temporalidade suspensa bem marcado no romance pelo movimento que relana o livro para alm da narrativa, reabrindo-a ao permanente presente precisamente a partir da instituio de um fim (Aqui a estria se acabou. / Aqui a estria acabada. / Aqui a estria acaba, II 380), bem como a posio exclusivamente temporal (sem lugar) deste sujeito preso ao passado (Eu estou depois

Levantaste para mim os olhos admirados. Eu olhava-te fixamente. Reconhece-me, reconhece-me, enfim gritava o meu olhar. Mas os teus olhos sorriam, amigavelmente, sem nada compreenderem. Beijaste-me, uma vez mais, mas no me reconheceste. (Zweig: 157).

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das tempestades, II 377). Esta assenta sobre uma clivagem, clivagem desencadeada pela estrutura da revelao que encerra o romance, estabelecendo, como momentos sucessivos, o no saber e o saber. A coincidncia da morte com o reconhecimento do verdadeiro sexo de Diadorim coloca ao leitor, na reencenao da surpresa que a organizao da narrativa suscita, o problema da temporalidade do conhecimento que comecei por destacar a propsito de Zweig. Conhecimento inexoravelmente tardio porque pstumo (Aquela era a hora do mais tarde, II 380), a revelao que conclui Grande Serto: Veredas opera no sentido da reconfigurao e da reviso, mas com a aco do conhecimento bloqueada, tambm aqui, pela presena da morte. perante o corpo morto em batalha da donzela guerreira que Riobaldo, numa releitura moderna do desvelamento de Clorinda (Ahi vista! ahi conoscenza16), v atravs da palavra o que no soube ver (E disse. Eu conheci!, II 379) e ser apenas no momento final da sua narrao retrospectiva e autobiogrfica que o far saber ao seu interlocutor, somente no timo em que eu tambm s soube (idem: ibidem), revelando a estrutura irnica de uma narrao que mantm voluntariamente a ambiguidade de um segredo, e fazendo coincidir a surpresa no tempo narrado e no tempo da leitura. As consequncias desta dupla anagnorise devem distinguir-se. Sobre o leitor, a surpresa bloqueia qualquer possibilidade de fechamento da narrativa, e do livro, reenviando-o, como indica o smbolo do infinito que fecha o romance, para trs, instaurando a releitura como parte constitutiva do romance; para o narrador, a repetio da cena do reconhecimento possvel apenas atravs da repetio voluntria de um velamento17, submetendo a narrao s condies do tempo narrado obscurecer o que lhe foi revelado

La vide, la conobbe, e rest senza / e voce e moto. Ahi vista! ahi conoscenza!, Gerusalemme Liberata (Tasso 1971: 377 XII, 66-67). 17 Veja-se a caracterizao que Susana Lages faz do movimento da leitura: A indeterminao que perpassa as descries de Diadorim remete determinao final que, por sua vez, obriga a uma reviso do que veio antes, pela qual se reconhecem os indcios do no-sabido no sabido. (Lages 2002: 106).

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reconhecendo um destino e obrigando a que se volte a percorr-lo. A repetio obsessiva da revelao pstuma continuamente divide Riobaldo entre a personagem que no soube a tempo e o narrador que soube demasiado tarde. Precisamente porque pstuma, a revelao ir fazer-se abrindo para uma releitura que destacar, mais do que a estabilizao dos sentidos, precisamente a presena do engano, determinante para o desenvolvimento do enredo, mas sobretudo denunciador de uma provisoriedade inultrapassvel na leitura do mundo: Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para l de tantos assombros... Um est sempre no escuro, s no ltimo derradeiro que clareiam a sala. (II 46). Tal como em Carta de Uma Desconhecida, a reviso pstuma , em si mesma, uma reviso bloqueada: destinada a no poder preencher o espao da dvida que a palavra abriu, a no poder reconstruir o que em si destri18, chamando mais a ateno para o erro do que para a clarificao no modo como evidencia a temporalidade errnea da revelao. Como afirma Peter Brooks: If there is a knowledge provided by narrative (...) it is of a particular sort: not only knowledge that comes too late, but recognition of the perpetual belatedness of cognition in relation to action. (Brooks 1992: 212). A revelao final, em Grande Serto: Veredas, antes de mais uma revelao que chega tarde. nesse sentido que, num artigo pouco comentado de 1987, Alcir Pcora destacava a ausncia de informao com que o romance nos deixa no momento da sua concluso, determinada pela anterioridade da morte, considerando que, no seu funcionamento, a descoberta da feminilidade de Diadorim se apresenta como uma antirevelao. Na ausncia de uma concluso clarificadora, apesar da convivncia com a

If at the end of a narrative we can suspend time in a moment when past and present hold together in a metaphor which may be that recognition or anagnorisis which, said Aristotle, every good plot should bring that moment does not abolish the movement, the slidings, the mistakes, the partial recognitions of the middle. The dilatatory space of narrative, as Barthes calls it the space of retard, postponement, error; and partial revelation is the place of transformation (...). (Brooks 1992: 92).

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linha do Bildungsroman no seio do prprio romance, a narrativa afasta-se da construo linear de uma aprendizagem no conhecimento: No que diz respeito propriamente concepo de conhecimento ensejada a partir desse tipo de revelao, fica fcil ver que ela se refere muito menos a uma afirmao dos passos e etapas pelos quais se vai sucessivamente aproximando de um conhecimento mais exacto, do que a uma impiedosa tomada de conscincia de um existir que no conduz a seu ponto de resgate, que no logra, a tempo, distinguir entre ser e aparncia (Pcora 1987: 72). Que a reconfigurao do sentido a partir do reconhecimento se centra problematicamente sobre a noo de erro e disfarce, confirma-o o desvelar que no revela plenamente, e antes abre para outro nvel de obscuridade19, marcado pelo efeito de anterioridade que a convocao da donzela guerreira, enquanto tema, enquanto efeito de citao, traz ao texto.20 Predestinao textual que nunca obter explicao, o desvelamento da mscara abre apenas para uma outra mscara subjacente, anterior e inalcanvel, produzindo, a nvel da identidade, um efeito de plena negao21 que podemos considerar ainda prximo da multiplicao de nveis que a parbase encena, ao abrir para uma segunda fico atravs da retirada simblica da mscara: E, Diadorim, s vezes conheci que a saudade dele no me desse repouso; nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado. Para que eu ia conseguir viver? (II 383).

Contar a matria vertente equivale, nesta perspectiva, ao esforo de captar nas imagens sonoras e visuais da narrao o maior nmero de figuras desta reverso, consubstanciadas na catstrofe e na queda, nas quais as vertentes do viver, a confuso e a perverso do Nome primordial tornaram-se palpveis. Em outras palavras, a narrao no a revelao e o desvendamento do sentido, mas o desdobramento de uma densa trama de imagens nas quais a verdade, a essncia, o Nome ora se ocultam ora se desvelam. (Rosenfield 2006: 203). 20 Na rede de referncias que se estabelecem entre os dois livros de 1956, Corpo de Baile e Grande Serto: Veredas, a mais significativa ser talvez a que j foi aqui referida, e que comentadade modo interesante por Cleusa Passos (2002: 182): a presena de uma verso do romance da Donzela Guerreira na novela Uma Estria de Amor, intensificando, no interior da obra de Rosa, o efeito remissivo e citacional. 21 O tema da ausncia de informao (e do desaparecimento das fontes dessa informao), que domina o eplogo do romance, receber um tratamento determinante em A Terceira Margem do Rio, na figura do suposto segredo que se perdeu pelo desaparecimento daqueles que o partilhavam.

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O que neste ponto do romance se revela , no fundo, a estrutura que temos vindo a acompanhar. O reconhecimento o ponto para o qual se dirige o texto; ao coincidir com a morte (do outro), ao estabelecer a supresso da informao como regra do texto alm da revelao final, a descoberta do sexo de Diadorim relana o livro de volta ao seu centro. Como uma carta que chega tarde, o sexo de Diadorim pode apenas fechar a personagem numa forma dolorosamente hbrida e impossvel. E vai faz-lo marcando o atraso do momento reflexivo que a duplicao dos ndices, em Tutamia e em Corpo de Baile, acentuava: o momento de relanamento retroactivo volta aqui a ser um momento de distino (diferida) daquilo que ao longo da leitura se apresentou de forma indistinta Diadorim homem e mulher. O efeito da revelao orientar o livro para uma releitura, mas uma releitura que se alimenta, como sugere Alcir Pcora, mais da conscincia do erro do que da possibilidade de o anular. Errata que se faz em tenso com a leitura, a sua impossibilidade sentida plenamente por Riobaldo, e materializada no desejo de separao tantas vezes afirmado no seu discurso22. A revelao pstuma a figura da negao da closure. E a morte, mais uma vez, interrupo; fazendo da narrao recursiva a interrogao do corpo morto de Diadorim, definitivamente fixado na sua duplicidade no resolvel. Como afirma Ettore Finazzi-Agr, referindo-se identificao, por Suzi Sperber, de uma recorrncia do tema da ida e volta na fico rosiana (que adiante comentaremos): A evidncia, que est desde sempre implcita no discurso, revelada, afinal, s pela regresso; a verdade, implcita na fala do narrador, alcanada graas a uma volta atrs que finalmente nos mostra a fundamental duplicidade (ou dobrez) daquilo que simples, estando envolvido numa dobra s. No vaivm entre a existncia e o seu sentido, e no vaivm, especular ao primeiro, entre o ler e o reler (que no , necessariamente, o saber-ler); graas, enfim, ao movimento
Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careo de que o bom seja bom e o rim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como que posso com este mundo? A vida ingrata no macio de si; mas transtraz a esperana mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo muito misturado... (II 144)
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de ida e volta, pelo qual a escrita de Rosa se dobra sobre si mesma, revela-se para ns a elementar e indestrinvel ambiguidade daquilo que verdadeiro: ou seja, que Diadorim Deodorina e vice-versa; que o Bem o Mal e vice-versa e que a vida, como a leitura, no fundo uma travessia cega, insciente, atravs da contraditria simplicidade dos signos. (Finazzi-Agr 2001: 44). Nesse sentido, o eixo central da narrativa vai reconstruir, na sua estrutura, uma reflexo sobre a natureza tardia do conhecimento que tambm uma reflexo sobre a narrativa, inevitavelmente remetendo o narrador para a posio suspensa de quem no soube a tempo e apenas atravs da linguagem pode dispor o conhecimento adquirido disp-lo, porm, sujeito sua limitao e a uma narratividade que necessariamente repete o erro23, necessariamente regressa queda que o desenlace representou: Viver no ? muito perigoso. Porque ainda no se sabe. (II 371). nesse sentido que podemos falar de uma clivagem irnica em Grande Serto: Veredas, inexoravelmente separando a experincia do conhecimento, e construindo o espao da narrao de Riobaldo como o espao de uma retroaco bloqueada e sem lugar, que habita unicamente a linguagem. O conhecimento adquirido ser, talvez, conscincia da impossvel legibilidade de um mundo sujeito ao tempo: a legibilidade permanentemente diferida de Tutamia. Conscincia da cegueira, ento, nos termos em que a clivagem irnica caracterizada, de um ponto de vista temporal e tendo como eixo a releitura da parbase em Schlegel, por De Man: Irony divides the flow of temporal experience into a past that is pure mystification and a future that remains harassed forever by a relapse in the inauthentic. It can know this inauthenticity but can never overcome it. It can only restate and repeat it on an increasingly conscious level, but it remains endlessly caught in the impossibility of making this knowledge applicable to the empirical world. (De Man 1983: 222).

Francis Utza fala, a propsito da reconstruo do engano para o leitor, de pedagogia do erro (Utza 1994: 121).

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Ponto It took that pause to make him realize The mountain he was climbing had the slant As of a book held up before his eyes (And was a text albeit done in plant.) Robert Frost, Time Out No meio de Grande Serto: Veredas, abrindo a sequncia central, o leitor encontra uma interrupo: a narrativa suspende-se para se comentar, solicitando a sua estrutura e ameaando dissolv-la, ao mesmo tempo que dela constitui a primeira imagem global. No estamos longe, nessa pausa, das funes que encontrmos at agora nos ndices e nas parbases: o meio faz-se mapa do livro, descreve-se e interpreta-se, faz-se ponto de suspenso e articulao entre partes. Fechada a estrutura circular da primeira metade, antes da glosa da cano de Siruiz que, como veremos, retoma e cruza as principais linhas temticas, Riobaldo detm a sua narrativa, interpelando o interlocutor, com a seguinte indicao de leitura: S sim? Ah, meu senhor, mas o que eu acho que o senhor j sabe mesmo tudo que tudo lhe fiei. Aqui eu podia pr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, pr ateno no que contei, remexer vivo o que vim dizendo. Porque no narrei nada -toa: s apontao principal, ao que crer posso. No esperdio palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo. Vai assim, vem outro caf, se pita um bom cigarro. Do jeito que retoro meus dias: repensando. (II 198-199). No estamos, como noutros exemplos da metanarrativa rosiana, perante uma quebra da ficcionalidade; porm, quando o narrador Riobaldo diz ao seu interlocutor que ali podia pr ponto, est a dar uma forma talvez definitiva quela pausa autoral que, em Cara-de-Bronze, respondia directamente parbase com que o conto era classificado, solicitando criticamente a sua potica. Num certo sentido, a proposta de

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Riobaldo a meio do romance retoma essa funo de modo mais radical porque atribui ao intervalo um carcter permanente de crise da obra, jogando-a contra a possibilidade de um limite definitivo pr ponto que no entanto deixa por cumprir. Vrias leituras do romance rosiano insistem sobre a identificao de um ponto central na construo narrativa. Assinalei j o modo como Antonio Candido, no ensaio de 1957, referia o So Francisco como eixo divisor do romance uma diviso, no entanto, exclusivamente temtica. Desde ento, os eventos que vo do julgamento de Z Bebelo at morte de Joca Ramiro foram vrias vezes apontados como pontos medianos24. A suspenso central do romance comea a preparar-se com a dupla revelao da Guararavac do Guaicu (o amor por Diadorim, amor mesmo amor, mal encoberto em amizade, II 187, e a morte de Joca Ramiro): o prprio texto que o sugere, no s no diferente tratamento do tempo, mas sobretudo na frase: Ser que tem um ponto certo, dele a gente no podendo mais voltar para trs? Travessia de minha vida. (II 186) Mas na passagem que citei, na interrupo central, que o livro assinala plenamente a transio de uma primeira para uma segunda parte, que abre a sequncia em que os principais temas do romance so recuperados e cruzados. Na matriz formal do romance traada em Os Descaminhos do Demo, Kathrin Rosenfield (2006: 357393) identifica a diviso mediana do romance com a sequncia central, que vai do pargrafo citado at pgina 201: E agora, no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir. Nessas pginas a narrativa suspende-se. No seu Roteiro de leitura, Rosenfield caracteriza mais detalhadamente a seco:

Alguns exemplos: Garbuglio (1972) refere o julgamento como ponto de viragem; Benedito Nunes v na Guararavac a divisria do romance, a partir da qual a ordem cronolgica se institui (Nunes 1983a: 21); Utza considera a morte de Joca Ramiro a divisria entre um tempo de agregao e decomposio na travessia inicitica do livro (Utza 1994: 390-403); Mrcia Morais concentra a sua leitura na viragem (marco, diviso, fenda) que a Guararavac institui a nvel da construo do sujeito (Morais 2001: 65-68).

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Esta curta sequncia constitui um ponto de suspenso do fluxo narrativo. Ela uma espcie de parntese metanarrativo, pois dissolve em grau mximo a sintaxe, chegando a uma mera justaposio de elementos, temas e imagens. Esta constelao hiperfragmentada salienta, de um lado, os principais temas que afloraram na primeira metade do romance, anunciando, de outro, elementos ainda incompreensveis para o leitor e que apenas a segunda metade do romance elucidar. Ela orienta, embora insconscientemente, a ateno do leitor. (Rosenfield 1992: 11).

a sequncia mais claramente delimitada e identificvel de todo o romance. O prprio Guimares Rosa destaca-a, na correspondncia com Mrio Calbria, identificando a estrutura subjacente da sua construo: mais do que uma enumerao catica de temas justapostos, a sequncia central organiza-se como glosa da Cano de Siruiz, destacando o papel de motivo fundador que os ps de verso como eu nunca tive poder de formar um igual (II 116), que anunciam o tema da moa virgem, tero para Riobaldo25: Pois bem e posso dizer, porque outro crtico, que no tenho mo aqui para transcrever, j o notou e revelou, tambm acontece, no livro, a certo momento esta coisa: que, na pgina 305, da primeira edio (p. 292 da 2 edio), comea um pargrafo enorme, que dura quatro pginas: Comea com Urubu?... naquela pgina. E vai terminar na pgina 309 (da 1 edio), (pgina 296 da 2 edio). POIS BEM, nesse longo pargrafo, mais ou menos no meio do livro, o que temos uma exposio, entrecruzada, de todos os motivos principais sobre glosa, alongada, da cano de Siruiz. Um tranadinho de motivos; que so, alis, muitssimos mais do que os que o A.C. aponta, no trecho reproduzido acima. Achei que seria interessante o Meyer-Clason ficar com a ateno chamada para (Carta a Mrio Calbria, 29/10/1963 apud Arajo 2001b: 200).

Mrcia Morais, no estudo referido (2001: 13-64), e Gabriela Reinaldo, num ensaio sobre a msica em Guimares Rosa (2005: 147-174), identificam parte das recorrncias da cano no romance. Em O Brasil de Rosa, Luiz Roncari efectua uma anlise muito completa da relao da cano com a vida de Riobaldo, destacando a importncia estrutural da seco mediana (Roncari 2004: 76-86). Em Urubu, Helosa Vilhena de Arajo desenvolve uma leitura dos desdobramentos ao longo do romance do tema do urubu, entendido como mancha ou falha do sujeito, a partir das referncias da sequncia central (cf. Arajo 2001b).

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A leitura que mais directamente articula a interrupo que destacmos com este pargrafo enorme tambm a mais importante para a linha que aqui se tenta desenvolver. Suzi Sperber, em Signo e Sentimento, comenta alguns dos ecos da cano na sequncia central, relacionando-a com aquilo a que chama o tema do centro na obra de Guimares Rosa. Acentuando o facto de que j no primeiro rascunho do romance (Veredas Mortas) esta sequncia se situava no meio das pginas que o formavam, a autora relacionar (e este o passo que nos interessa) essa insistncia obsessiva sobre representaes do centro com a representao, desde as epgrafes de Sagarana, de movimentos de ida e volta, considerando que, a partir de Corpo de Baile, ida e volta, travessia, convertem-se em problemas metalingusticos (Sperber 1982: 113). Assim, em Grande Serto: Veredas, o meio do romance o ponto de articulao dos contrrios (idem: 133), reflexo, refletido e refletor, e, ao mesmo tempo, ponto de fuso entre a micro e a macroestrutura de Grande Serto: Veredas. (idem: 142).26 Ora, a sequncia central recupera vrias das funes que j encontrmos no captulo anterior. A exposio, entrecruzada, de todos os motivos principais, para recuperar a descrio de Rosa, chama a ateno, mais uma vez, para a ntima relao entre os extremos do livro e o seu centro. Recorde-se o que destacmos na parte II sobre os mapas de Grande Serto: Veredas. Segundo Poty, funcionavam como resumo do livro, dispondo espacialmente os diferentes motivos da obra e desse modo ofereciam uma cartografia do livro, imagem do todo e indicao de leitura. A retomada, na sequncia central, dos diferentes motivos, sobrepostos e destacados da linearidade que os constitua aproxima-se dessa funo; a sequncia central, em primeiro lugar, rene os elementos do romance retirando-os da temporalidade da narrativa. Diz-se, a dada altura:

Suzi Sperber voltar questo num artigo ainda prximo das consideraes sobre o centro em Signo e Sentimento O Narrador, o espelho e o centro em Grande Serto: Veredas (Sperber 1996) e, mais recentemente, num artigo em que associa a figurao do centro mandala Mandala, mandorla: figurao da positividade e esperana (Sperber 2006).

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Deus est em tudo conforme a crena? Mas tudo vai vivendo demais, se remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse, por uma vez. (II 200) A sequncia central parece propor um devaneio que efectivamente suspende o tempo, ao suspender a narratividade: nesse sentido, apresenta os temas do romance fora das molduras: Me alembrei dela; todas as minhas lembranas eu queria comigo. Os dias que so passados vo indo em fila para o serto. Voltam, como os cavalos: os cavalos na madrugada, como os cavalos se arraoam. O senhor se alembra da cano de Siruiz? (II 200). Se sugerimos, indirectamente, que os mapas respondiam ausncia de ndice do romance, podemos agora acrescentar que esta sequncia, aberta pela interrupo que aqui nos interessa, cumpre a funo de ndice interno, identificando isoladamente (e sem uma organizao narrativa) temas e personagens e originando novas associaes que a suspenso determina27 recuperando, ou seja, a posio reflexiva da parbase. O regresso da questo da visibilidade de Deus, ou do real28, associado suspenso narrativa ajuda ento a definir melhor a legibilidade diferida que temos vindo a perseguir: na construo relacional de um percurso orientado por princpios e fins que o meio se perde; a sua apreensibilidade depende de uma suspenso do tempo, que a parbase, avanando para fora da linha, encena, mas apenas como ponto intermitente que se dissolve no regresso. O meio assim o lugar de uma imobilidade impossvel, dependente de um desdobramento o centro imvel da epgrafe de Plotino. Ora, tal como nos ndices encontrmos a funo de mapa imagem, localizao, delimitao tambm aqui essa funo regressa, constituindo no romance o momento em que funo mimtica e performativa se sobrepem abertamente, ao mesmo tempo
as constelaes do trecho mediano so, em si mesmas, incompreensveis, constituindo um convite para interminveis releituras do romance como um todo. (Rosenfield 1992: 53). 28 Na primeira verso de Grande Serto: Veredas, Veredas Mortas, a frase sobre o real que no est nem na sada nem na chegada tinha a seguinte configurao: Deus no est na sada nem na chegada: ele est com a gente no meio da travessia. (Sperber 1982: 138).
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que a prpria possibilidade de referncia posta em causa.29 Atravs de frases como estas Aqui Minas; l j Bahia?; Minha vida teve meio-do-caminho? ou O So Francisco partiu minha vida em duas partes (II 199) o meio do livro destaca-se, identifica-se, descreve-se e determina-se, ao mesmo tempo, articulando a sua materialidade com uma dimenso geogrfica e autobiogrfica: e talvez seja nessa dobra que enlaa mundo e texto, na interseco desses planos tal como se oferecem, sobrepostos, leitura, que se situa a matria vertente que procura Riobaldo30. O livro delimita-se, traando a sua imagem material: pginas, metades e mapa coincidem na mesma disposio de uma fronteira, visvel apenas na suspenso parabtica. Mas o que institui essa suspenso a interrupo, de que esta sequncia o prolongamento, ou mesmo a clusula. Se para saber o resto que falta o interlocutor tem de remexer vivo que vim dizendo, parece ser isso, em parte, o que se faz nesse intervalo que, como assinala Kathrin Rosenfield, retrospectivo e prospectivo, condensado elementos j referidos e lanando outros, ainda obscuros e incompreensveis, que sero desdobrados na segunda parte (Rosenfield 2006: 385). No entanto, o intervalo parece colocar um problema de autoria: inaugurando-se com uma das perguntas que parecem reflectir, no discurso de Riobaldo, uma pergunta do interlocutor (Urubu? Um lugar, um baiano lugar, II 199), a sequncia parece, inicialmente, pr em prtica a injuno de releitura, para imediatamente reafirmar o domnio de Riobaldo sobre o texto (Serve meus pensamentos. Serve, para o que digo: eu queria ter remorso; por isso, no tenho, II 199). Veremos que essa outra das
Poetic parekbasis constitutes an uncontrollable, dramatic-grammatical trope whose exorbitant movement displaces the framework for every epistemological paradigm of reflective representation. Only as a performative act does it step out of and overstep the strictly circumscribed scene of representational unity only, therefore, as an act to which no cognition and no proposition correspond and which is impossible to identify as an act and as a performative. (Hamacher 1999: 249). 30 Eu queria decifrar as coisas que so importantes. E estou contando no uma vida de sertanejo, seja se for jaguno, mas a matria vertente. (II 68) Repare-se que a afirmao surge imediatamente antes do ponto em que se articula o tema da cegueira, central para a legibilidade diferida do centro, com a figura de Nhorinh, que em seguida analisarei: O que induz a gente para ms aes estranhas que a gente est pertinho do que nosso, por direito, e no sabe, no sabe, no sabe! (II 69).
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articulaes de contrrios que o centro encena: o meio do romance tambm o ponto onde leitura e escrita, narrao e releitura, se vo sobrepor indiferenciadamente. Voltemos ento interrupo. A ameaa do ponto, que pe em causa a narrao sem no entanto impedir a sua unidade e continuao parece corresponder ainda a outra funo crtica, aquilo a que podemos chamar a solicitao da estrutura, e que nos leva para mais perto da leitura moderna da parbase, de herana romntica. A prpria caracterizao que Schlegel oferece da parbase na comdia antiga acentua j os traos que faro do intervalo cmico uma imagem para o questionamento da ideia de forma: The only difference [between Greek comedy and tragedy] consists in parabasis, a speech that in the midst of the play was held by the chorus in the name of the poet to the people. Yes, it was a complete interruption and dissolution of the play, during which (just as in the play itself) the greatest licentiousness reigned and the chorus, which had stepped out to the outer limits of the proscenium, said the grossest vulgarities to the people. The name is derived from this stepping out (ekbasis)31. (apud Chaouli 2002: 200).

Como sublinha Michel Chaouli, a interrupo e negao da pea que a parbase representa no implica, para Schlegel, uma perturbao da unidade da comdia, que atravs dela se aproximaria da sua forma mais pura, a no-forma ou anti-forma (idem, ibidem). Nesta possibilidade de uma negao potenciadora32 residir a extenso praticada por Schlegel sobre a forma da parbase, na afirmao contraditria de uma parbase permanente como definio da ironia ou do romance33. A fortuna da parbase na teoria contempornea depende largamente desse gesto, da sua associao a uma auto-conscincia da fico at sua aproximao ao anacoluto como figura de uma

Der einzige Unterschied besteht in der Parekbasis, einer Rede, die in der Mitte des Stcks vom Chor im Namen des Dichters an das Volk gehalten wurde. Ja, es war eine gnzliche Unterbrechung und Aufhebung des Stckes, in welcher, wie in diesem, die grte Zgellosigkeit herrschte und dem Volk von dem bis an die uerste Grenze des Proszeniums heraustretenden Chor die grten Grobheiten gesagt wurden. Von diesem Heraustreten () kommt auch der Name (Schlegel 1958 KA 11:88). 32 Parebasi e coro necessari a ogni romanzo (come potenza) (Schlegel 1998: 345; IX 133). 33 La parabasi deve essere nel romanzo fantastico permanente (Schlegel 1998: 162; V 463); Die Ironie ist eine permanente Parekbase (fr. 668, Schlegel 1958 KA 18:85).

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ruptura sem regresso34. Bending out absolutely and absolutely preceding every possibility of bending back (Hamacher 1999: 249), a parbase ameaa a forma muito para alm do intervalo que representaria: a suspenso entre leitura e releitura que os livros de Rosa encenam, como vimos, e mesmo a construo ironicamente cindida de Grande Serto: Veredas, esto prximas dessa tenso da forma consigo mesma. No entanto, o que parece necessariamente perder consistncia nesse gesto de prolongamento indefinido e paradoxal o anacoluto como sinnimo de parbase a acentuao do carcter intervalar, intersticial, da parbase, que o que me parece estar na base do uso que Rosa dela faz. Pense-se, ainda, no modo como Pirlimpsiquice encenava uma destruio da forma dependente de uma moldura contra a qual a destruio se podia fazer, sob pena de no poder ser representvel. A parbase ilimitada depender sempre, aqui, de uma reafirmao da sua moldura e nesse sentido a sua representao como intervalo parte constitutiva do choque de temporalidades que estas obras encenam. na conscincia do valor estrutural do intervalo, que marca a sua inextricabilidade da forma da obra, que a leitura da parbase se distingue aqui da noo de metafico e responde necessidade de uma teorizao interna que se determina temporalmente.

The buffo, what Schlegel refers to in commedia dellarte, is the disruption of narrative illusion, the apart, the aside to the audience, by means of which the illusion of the fiction is broken (what we call in German aus der Rolle fallen, to drop out of your role). This concern with the interruption has been here from the beginning you remember that, in the first thing we read, Schlegel said you have to be able to interrupt the friendly conversation at all moments, freely, arbitrarily. / The technical term for this in rhetoric, the term that Schlegel uses, is parabasis. Parabasis is the interruption of a discourse by a shift in the rhetorical register. Its what you would get in Sterne, precisely, the constant interruption of the narrative illusion by intrusion, or you get it in Jacques le Fataliste, which are indeed Schlegels models. Or you get it in Stendhal, still later on, or (which is specifically where Schlegel refers to) extensively in the plays of his friend Tieck, where the parabasis is constantly being used. Theres another word for this, too, which is equally valid in rhetoric the word anacoluthon. Anacoluthon or anacoluthe is more often used in terms of syntactical patterns of tropes, or periodic sentences, where the syntax of a sentence which raises certain expectations is suddenly interrupted and, instead of getting what you would expect to get in terms of the syntax that has been set up, you get something completely different, a break in the syntactical expectations of the pattern. (De Man 1997: 198-199).

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A interrupo que marca o meio de Grande Serto: Veredas mostra-se, chama a ateno para si prpria, ao contrrio do que defendia Schlegel (La parabasi nel romanzo deve essere celata, non palese come nellantica commedia, Schlegel 1998: 156 V 397); do mesmo modo, as parbases de Corpo de Baile eram evidenciadas pelo prprio livro. Mas essa revelao da interrupo, revelao do salto para um nvel metaliterrio, dava-se, como temos vindo a sublinhar, em atraso. essa a resposta que por agora nos interessa negao da pea que a parbase representa, porque desloca a questo da auto-conscincia para o plano da releitura. Ora, evidente que a interrupo que agora comentamos , neste quadro, mais radical do que a que Corpo de Baile apresenta. Num primeiro nvel, porque implica a passagem para uma outra ordem, em que o questionamento da obra se faz explcito. O gesto interessante da duplicao dos ndices, como vimos, residia na manuteno de uma forma comum entre a fico e sua teoria: no s a parbase se apresentava depois, como essa apresentao implicava uma ciso de dimenses intrinsecamente vinculadas na estrutura dos contos35 e s luz desse movimento se percebe o verdadeiro sentido da potica que esses textos representariam: a sua verdadeira fabula a sua construo, tecida nas linhas de uma estria a narrao do Velho Camilo que se constitui momento performativo atravs da festa de Manuelzo, a cano a fazer-se atravs do caso de vida ou morte de Pedro Orsio, a poesia a abrir o seu espao impossvel na narrao da viagem do Grivo. Aqui, a interrupo e a sequncia que dela se origina fazem precisamente o contrrio: suspendem a narratividade do relato. E fazem-no, como comemos a ver, incorporando elementos que at agora encontrmos apenas na margem do livro. Desde logo, porque a interrupo incorpora plenamente a temporalidade do ndice de releitura: no momento em que o interlocutor alcana a interrupo, informado por Riobaldo de
A parabatic interlude should not just interrupt the dramatic action, but connect to it and even advance it, just as the dramatic plot of a given text should consciously strive to extend the duplications of its reflective digressions (Handwerk 1989: 223).
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que tudo foi j fiado. O fim, ou a possibilidade de um fim, voltam a coincidir com um relanamento em direco leitura cumprida a uma abertura do j lido como lugar de um segredo que no se soube ver. Claro que aqui a questo do segredo determinante e mais explcita do que em Tutamia, onde estava ligada reformulao do todo: o disfarce como motor do romance em direco ao reconhecimento ganha aqui corpo na imagem escolhida por Riobaldo (macaco meu veste roupa). Mais uma vez, porm, de uma legibilidade diferida que se fala, impedindo a separao entre a mscara e o disfarce. Ao mesmo tempo, o excerto claramente encena uma ameaa contra a forma: sugere-se a instituio de um limite enquanto possibilidade negada. Entre o gesto de pr ponto e a sugesto de que se podia pr ponto h uma diferena essencial quanto ao valor performativo do discurso: recorde-se o que vimos, no segundo captulo, a propsito da concluso encenada de Henry Jekyll, em que o sujeito que se descrevia a concluir (as I lay down the pen) prolongava-se nesse mesmo gesto e tornava impossvel a concluso plena da sua existncia (condenada a uma morte presumida). Poder pr ponto (e continuar) a materializao da performatividade da parbase36: instituindo uma quebra, uma ruptura que, suspensa na temporalidade intervalar da possibilidade, invalidada por uma continuao que no a elide, deixando-se por ela tambm afectar. A interrupo, aqui, enquanto postula a possibilidade de converso do meio em final o que o meio poderia ser fim invalida-a pelo modo como reconhece um resto que falta, um suplemento necessrio que torna impossvel a concluso. E introduz deste modo no romance de Rosa um ponto a partir do qual avanar ou recuar,
Benjamin, na sua primeira dissertao, O Conceito de Crtica no Romantismo Alemo, faz uma caracterizao muito precisa dos efeitos da parbase (que ataca a forma sem a destruir) na teoria romntica do romance. Thus, the ironization of form, according to these statements, assails the form without destroying it, and the disturbance of the illusion in comedy should have this provocation in view. This relation bears a striking affinity to criticism, which irrevocably and earnestly dissolves the form in order to transform the single work into the absolute work of art, to romanticize it. (Benjamin 1996:163).
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reler ou continuar a contar, se apresentam, por momentos, como aces equivalentes: o ponto mdio do percurso desorientado do Guegue. Assim, o resto residir ou naquilo que j foi lido ou no que falta dizer: mas a coexistncia das duas possibilidades torna inevitvel a sua contaminao, fazendo com que a continuao da narrativa se apresente como repetio e perturbando definitivamente o telos da aco. Este meio desarticulador , como temos vindo a ver, uma figura recorrente em Rosa, em particular nos textos em que a possibilidade de uma concluso, de uma clusula, para as estrias, posta em questo; e uma figura que podemos claramente ligar suspenso das dicotomias que Suzi Sperber identificou no centro como momento em que se passa de um movimento de ida para um movimento de volta. Diz a autora: Efectivamente, a estas alturas do relato tudo j foi contado (...). Vale dizer que temos um romance completo, inteiro, terminado at pgina 292. Vale dizer que se o leitor no mais quisesse continuar a leitura, j teria obtido todos os dados da ao, alm de todos os seus smbolos e temas centrais. At pgina 292 o relato vai. Depois, voltar. Ida e volta, este um dos temas da obra. (Sperber 1982: 124-125).

S que a figurao do centro que encontramos aqui afirma, para o texto, uma falta que impede o completamento, e exerce deste modo os seus efeitos sobre o eixo da temporalidade para alm dessa zona de suspenso que seria o intervalo, para a frente e para trs, atravs da bifurcao paradoxal que o resto origina. No fundo, reencontramos aqui de forma invertida a estrutura que se apresentava no primeiro exemplo: na narrativa de Joana Xaviel, o fim era convertido em meio, perante o reconhecimento de uma falta na histria, a exigir uma segunda parte, situvel apenas em relao com o corpo material da contadora enquanto lugar da narrao; aqui, o meio que convertido, temporariamente, em fim, postulando um final que falta histria mas que nela reside. O regresso a uma materialidade que define um resto

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imaterial o movimento comum aos dois exemplos; a sobreposio entre meio e fim que est na base desta interrupo gera, no entanto, um movimento duplo para a frente, de um lado; mas tambm do meio para trs, como na cano dos jagunos de Gramde Serto: Veredas. Com esta indicao, Riobaldo parece dizer que o que falta no est necessariamente (s) no fim da linha; poder ser encontrado atravs de um movimento retroactivo, de um movimento hermenutico, atravs de um remexer vivo o que j foi dito; o que no impede, porm, que a linha se cumpra at ao fim. No fundo, reencontramos aqui a negao de uma estrutura teleologicamente orientada que a referida pausa de Cara-de-Bronze parecia propor; mas no estamos longe, tambm, da bifurcao instituda pelo segundo ndice de Tutamia, ao abrir a releitura com um regresso repetio que j na leitura se cumpriu, bifurcando o final do livro e prendendo o seu todo no intervalo entre as duas direces que pode assumir. O resultado dessa bifurcao, como comemos por ver, a instituio da repetio como princpio inescapvel da leitura. O livro dobra-se sobre si mesmo, aqui, a partir do meio: construindo duas metades em espelho, como assinala a retomada de eventos-chave da primeira para a segunda parte (o exemplo mais evidente o do Liso do Sussuaro, a que voltaremos na prxima seco). J conhecemos essa configurao do que dissemos de Primeiras Estrias: mais uma vez o centro do livro faz-se de um encontro de movimentos de sinal oposto, reflexo cruzado de espelhos, a segunda parte repetindo a primeira, ou tendo a primeira como seu protagonista. Como se diz em L, nas Campinas: O mundo se repete mal porque h um imperceptvel avano (II 607). Poderamos dizer, com Constantin Constantius, que repetition properly so called is recollected forward. (Kierkegaard 1941: 33). Por outro lado, o excerto constri tambm um segundo jogo de interferncias, aberto pela analogia final. O movimento de regresso ao texto anterior que Riobaldo

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prope ao interlocutor que queira saber o resto que falta reflecte a condio do prprio narrador em relao ao vivido. Diz Riobaldo: do jeito que retoro meus dias. A aco retrospectiva da rememorao de Riobaldo pode reflectir, como anloga, a releitura por parte de um interlocutor/leitor. Pouco depois, Riobaldo referir o senhor como sendo fiel como papel, perturbando a fronteira entre narrao e escrita. Aqui, porm, o narrador figura-se abertamente como releitor; e essa condio abre sobre a linha da aco a suspeita da impossibilidade de uma forma completa e concluda pois se a memria reconfigura sucessivamente um mesmo texto j lido, o retorcer dos dias pode tambm ser entendido como uma permanente desestabilizao da linha temporal. tambm por efeito dessa temporalidade movente que reler e continuar a contar (e a ler) aquilo que j , constitutivamente, repetio e releitura, podem apresentar-se como aces equivalentes, tornando assim indecidvel a distino entre interlocutor e narrador. certo que as implicaes da passagem so tambm outras: revela-se a revelao velada do segredo, deixa-se o pacto (e o erro) como elemento no dito, o que justificar a continuao da narrativa como confisso a partir da sequncia central. Mas o excerto chama a ateno para um movimento essencial, creio, para a compreenso da temporalidade na obra de Rosa. Neste curto-circuito entre a autoria e a recepo, em que a releitura pode ser proposta no lugar da continuao da narrao, e em que esta definitivamente contaminada com a conscincia da repetio, o que se parece destacar o modo como a interrupo, a aco performativa mas suspensa de pr ponto, se configura como gesto estrutural, dividindo o romance e caracterizando a primeira parte da narrao de Riobaldo como revisitvel. A partir do momento em que a releitura se torna o modo de aco de um narrador que se retira na memria (Candido 1964: 139), cindindo definitivamente linguagem e experincia, esta de certo modo textualizada.
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como texto aparentemente acessvel e interpretvel que o vivido se prope; no entanto, tambm como texto ilegvel e no terminado que se apresenta, como a prpria necessidade de releitura parece afirmar. Assim, a estrutura constri o paradoxo de uma fixao pode-se voltar ao j dito assombrada partida pelo tempo retorcido, malevel, de uma releitura constitutiva: o recado que permanece o mesmo num circuito que o modifica. Como a temporalidade do livro, das indicaes de releitura ao reconhecimento, parece acentuar, rel-se porque no se soube ler, ou porque no se pde ler (a tempo) o movimento da releitura constri-se em tenso com a possibilidade da errata, que marcada pelo seu atraso constitutivo no parece poder ter termo razovel, como indica a continuao da narrativa. No estamos muito longe da sugesto de Bento Prado Jr. a propsito da fico rosiana: rememorar a existncia recapitular um texto h muito conhecido, mas cujas peas fundamentais escapam conscincia (Prado Jr. 1985: 201). No entanto, por efeito deste movimento, a legibilidade tardia das peas fundamentais no anular nunca totalmente a sua falta no texto deslocadas, permanentemente, pela diferena temporal. Se em Guimares Rosa, como se afirma em Aletria e Hermenutica, a vida tambm para ser lida (II 519), tambm porque esta j da matria de que so feitos os textos, recursivamente construda sobre um acto repetido e nunca definitivo de leitura. Assim, mais uma vez, a figura do conhecimento em Rosa no a legibilidade e sim a releitura de um resto que a materialidade retorcida do livro retm, resistindo, reencenando diferentes formas de prolongamento e de negao de um final atravs de uma perturbao definitiva da direco do livro. O meio o lugar dessa resistncia.

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Carta missiva

e quando finalmente escapasse pelo ltimo porto mas isto nunca, nunca poderia acontecer teria apenas chegado capital, o centro do mundo, atulhada at cima com toda a sua ganga. Ningum consegue passar por a, muito menos com a mensagem de um morto. Mas, sentado janela, tu imagina-la, enquanto a noite cai. Franz Kafka, Uma Mensagem Imperial

possvel que o episdio de Grande Serto: Veredas que melhor ajuda a compreender esta incorporao de uma diferena temporal na prpria ideia de narrao seja aquele que mais directamente se figura como mise en abme da relao entre escrita e leitura: refiro-me ao episdio da carta de Nhorinh que, com o seu atraso de oito anos, fornece um modelo para a performance retroactiva na narrao de Riobaldo. Personagem e carta, estrategicamente vinculadas num dos pontos de articulao metanarrativa do romance, funcionaro como elemento de desestabilizao temporal, dando corpo ao retorcer dos dias referido no excerto anterior, e constituio da narrao em errata, com a sua dupla e contraditria temporalidade. Se a repetio uma condio da construo orgnica e no emendada, a carta funciona como figura dessa desestabilizao da linearidade que faz coincidir leitura e releitura. Terceiro elemento da trade amorosa de Grande Serto: Veredas37, Nhorinh , na verdade, a primeira figura explicitamente feminina que encontramos no romance, e a protagonista de um dos primeiros episdios a integrarem o enredo. tambm a nica
Ver Benedito Nunes (1969c) e Luiz Roncari (2004) para a figurao dessa trade. Apesar de no ter em conta o efeito retroactivo que determina esse percurso, Benedito Nunes (idem: 145) associa Nhorinh a uma progresso de um amor sensvel a uma forte paixo que confunde os seus traos com a idealizao de Otaclia.
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figura de Grande Serto: Veredasque ir povoar o mosaico de personagens de Corpo de Baile, do mesmo ano. Aparecer em trnsito pelo Serto na narrao da viagem do Grivo, em Cara-de-Bronze, associada, tambm a, a uma forma de cegueira e arrependimento: A moa Nhorinh era linda feito noiva nua, toda pratas-e-ouros e para ele sorriu, com os olhos da vida. Mas ele espiava em redor, e no recebeu aviso das coisas no teve os pontos do buzo, de perder ou ganhar. Ele seguiu seu caminho av, que era de roteiro; deixou para trs o que assim asinha podia bem-colher ( Essa eu olhei com meu sangue...) Deixou, para depois formoso se arrepender. (II 705). Nhorinh, no romance, a prostituta com quem Riobaldo permanece por momentos antes da primeira travessia do Liso. Se o encontro dos dois foi muito, alegria que foi, feito casamento, esponsal (II 27), ser apenas a partir da introduo da figura da carta que ganhar nova importncia e ocupar o lugar no romance que procurarei identificar. A relao entre carta e legibilidade, que comecei por comentar em relao ao reconhecimento e que ser essencial para o que irei aqui desenvolver, torna-se explcita na caracterizao inicial da personagem, no limiar da narrativa de Riobaldo. Filha de Ana Duzuza, dona adivinhadora, um dos aspectos destacados da figurao de Nhorinh (Cf. Utza 2000 e Roncari 2004) a sua permanente associao me, nas referncias que lhe so feitas ao longo da narrao (S que, de que gostava de Nhorinh, eu ainda no sabia, filha de Ana Duzuza, II 241). Feiticeira, Ana Duzuza aparece no romance como aquela que tem o poder de ler e de saber: sabe interpretar correctamente as perguntas de Medeiro Vaz, sabe adivinhar a sina. O arrependimento, que marcava a apario de Nhorinh em Cara-de-Bronze, aparece aqui vinculado aos poderes da me: No momento, foi que eu ca em mim, que podia ter perguntado Ana Duzuza alguma passagem de minha sina por vir. Tambm uma coisa, de minha, fechada, eu devia de perguntar. Coisa que nem eu comigo no estudava, no tinha a
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coragem. E se a Duzuza adivinhasse mesmo, conhecesse por detrs o pano do destino? No perguntei, no tinha perguntado. Quem sabe, podia ser, eu estava enfeitiado? Me arrependi de no ter pedido o resumo Ana Duzuza. (II 28).

Deste modo, o episdio inicial apresenta o primeiro sinal de um reconhecimento tardio, na possibilidade rejeitada de tentar conhecer por detrs o pano do destino a possibilidade de uma leitura que tornasse legvel o ilegvel est tambm sujeita a um efeito de atraso e de reconhecimento intil da possibilidade. Podemos ento encontrar, j na sequncia inicial, a estrutura essencial da referncia a Nhorinh: a sua articulao com a fatalidade estruturadora dos eventos (e j aqui relacionada com a sexualidade ambgua de Diadorim) e a sua representao de uma conscincia que se evidencia fora do tempo, precisamente porque sujeita ao tempo. Nhorinh regressar, ainda na primeira parte do romance, como figura convocada em chave retrospectiva a propsito de uma carta enviada: Mire veja: aquela moa, meretriz, por lindo nome Nhorinh, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo notcias e dando lembranas, escrita, acho que, por outra alheia mo. Essa Nhorinh tinha leno curto na cabea, feito crista de anu-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu j estava casado. Carta que se zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertes, nesses gerais, por tantos bons prstimos, em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado por fora s: Riobaldo que est com Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou tudo. Quase no podia mais se ler, de to suja dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em canudo, com linha preta de carretel. Uns no sabiam mais de quem tinham recebido aquilo. ltimo, que me veio com ela, quase por engano de acaso, era um homem que, por medo da doena do toque, ia levando seu gado de volta dos gerais para a caatinga, logo que chuva chovida. Eu j estava casado. Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e mos essa Nhorinh, gostei dela s o trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo; e a j estivesse morando mais longe, magoal, no So Josezinho da Serra no indo para o Riacho das Almas e vindo do Morro dos Ofcios. Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo tempo, at daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e
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conheci, concernente amor. Nhorinh, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca. De l para c, os oito anos se baldavam. Nem estavam. Senhor subentende o que isso ? A verdade que, em minha memria, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda. De certo, agora no gostasse mais de mim, quem sabe at tivesse morrido... (II 68).

O exemplo recorre a um dos aspectos constitutivos da representao literria da carta, que comecei por destacar a propsito de Carta de Uma Desconhecida: o modo como o tempo pode ser materializado, na narrativa, por uma carta que chega tarde; ou inversamente o modo como a prpria carta, chegando tarde, se faz representao da natureza tardia da narrativa. Trata-se, alm do mais, de um dos poucos pontos em que o romance foca um elemento escrito. O trao essencial da carta de Nhorinh a demora: oito anos o tempo de errncia da carta, o tempo do prolongamento do seu trajecto. Oito anos que determinam que o momento da recepo, o momento em que a destinao se cumpre, se situe j fora da aco narrada. Quando eu recebi, eu j estava casado / Eu j estava casado: a repetio na determinao do lugar do sujeito ganhar tambm sentido luz da concluso, delimitando o lugar de Nhorinh na trade amorosa como um lugar temporalmente marcado (e sujeito a uma posio j ocupada, ao contrrio do que acontece com Diadorim e Otaclia). Repare-se, alis, que a carta identificada no pelo que nela vai escrito38, e sim pelo o atraso e pelas caractersticas do trajecto. Desviada quer da inscrio daquela que supostamente escreve (a mo que escreve no sua, Nhorinh pode j ter morrido), quer da sua materialidade (o suporte, de mo em mo, deteriora-se, substitudo, perde relao com a forma de origem), a carta sofre dois
A carta referida como carta simples, pedindo notcias e dando lembranas; mais tarde no romance, Riobaldo pensa escrever uma carta a Otaclia, que descreve deste modo: O que eu cogitei de escrever era muito singelo: as notcias de minha sade, pergunta de como que ela e os parentes iam passando, saudaes de lembranas. (II 311) Dessa carta, Riobaldo escrever apenas metade: Isto : como que podia saber que era metade, se eu no tinha ela toda pronta, para medir? Ah, viu?! Pois isto eu digo por riso, por graa; mas tambm para lhe indicar importante fato: que a carta, aquela, eu somente terminei de escrever, e remeti, quase em data dum ano muito depois... (II 311). Se a carta de Nhorinh prolonga o intervalo do seu trajecto, a carta para Otaclia parece oferecer, na segunda metade do romance, o seu reverso: um acto de escrita prolongado, um envio diferido, a marcar uma experincia no concluda.
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tipos de transformao: desmaterializada, por um lado, e por outro desvinculada em relao sua autoria: Uns no sabiam mais de quem tinham recebido aquilo. Poderamos dizer, assim, que esta uma carta que no chega ao destino. o risco do circuito a que se sujeita a carta de Nhorinh, entregue ao zanzar do serto: no s o percurso multiplica e transforma o suporte, apagando nele aquilo que da ordem da escrita (papel, invlucro, letra), no s o trnsito elide a origem, marcando-a com uma distncia inalcanvel (o regresso, o retorno ao remetente , alm do mais, impossvel), como tambm os dois sujeitos da relao de destinao so objecto dessa movimentao: a prostituta que, da Aroeirinha, est agora no So Josezinho da Serra, mais prxima da idealizao de que ser objecto a partir deste episdio (no indo para o Riacho das Almas e vindo do Morro dos Ofcios); e o destinatrio, identificado pela carta como Riobaldo que est com Medeiro Vaz, sem possibilidade de coincidncia com a sua identidade presente, como assinala a diferena temporal que a morte irremediavelmente introduz. Anterior prpria individualizao de Riobaldo que dominar toda a segunda metade do romance, a carta ecoar aqui precisamente um dos argumentos do narrador para a no linearidade da sua narrativa39: a segmentarizao da identidade, representada j atravs do nome dos grupos de jagunos (os medeirovazes, os hermgenes). O que se insinua na inscrio do nome do remetente a possibilidade da diferena: a destinao uma destinao tambm ela sujeita ao tempo, necessariamente desactualizada reveladora de uma desconformidade entre o destinatrio e aquele que efectivamente recebe a carta. Esta, no trajecto que a constitui

De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa (II 68).

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outra, chega a outro lugar e a outro tempo fora da aco, como se dizia, ou carta fantasma, se tivermos em conta ainda o modo como Kafka pensava o epistolar40. No entanto, esta tambm uma carta que chega ao seu destino: fruto do acaso, fruto da possibilidade de no chegar, a carta chega s mos do Riobaldo barranquenho apesar dessa sujeio ao trajecto. Fora do tempo e fora do lugar, a carta produz um efeito que, paradoxalmente, parece resistir ao tempo: quando o narrador l a carta, v que que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas relendo os oito anos, e mesmo o encontro trivial com a prostituta, luz desse amor. A carta tem um efeito plenamente retroactivo, aparentando o cumprimento dessa comunicao que o trajecto j tornou impossvel: Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo; (...) Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela. O momento da escrita e da leitura unem-se, assim, na recepo da carta que, apesar daquilo a que chamei a sua desmaterializao, parece ter ainda um poder de contaminao. No episdio do Guegue, o mensageiro fazia precipitar a relao entre remetente e destinatrio atravs do seu movimento sem termo; aqui, o tempo como mensageiro que prolonga o circuito da carta para alm dos seus limites provoca tambm uma precipitao dos extremos: o encontro impossvel entre o momento do envio e o momento da recepo. Ao tornar, porm, fixos os pontos que, mveis, se contrapem identidade da carta em relao a si prpria, o mensageiro (o tempo) ter necessariamente de tornar fixo o seu trajecto: para que remetente e destinatrio se possam efectivamente encontrar na comunicao epistolar, o tempo tem de se suspender. Era da mesma natureza, no fundo, o esforo do Guegue para fixar, como pontos de referncia, os sinais da mudana.
La grande facilit dcrire des lettres doit avoir introduit dans le monde du point de vue purement thorique un terrible dsordre des mes: cest un commerce avec des fantmes, non seulement avec celui du destinataire, mais encore avec le sien propre; le fantme grandit sous la main qui crit, dans la lettre quelle rdige, plus forte raison dans une suite de lettres o lune corrobore lautre et peut lappeler tmoin. Comment a pu natre lide que des lettres donneraient aux hommes le moyen de communiquer? (Kafka 1988b: 266-267).
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Relendo com ateno o episdio, percebe-se assim que a capacidade de ressonncia que a carta adquire est indissoluvelmente ligada transformao a que o tempo a sujeitou: o material desfeito, as palavras quase no se lem, Nhorinh, no Riacho das Almas, estar talvez morta. O despertar tardio do amor de Riobaldo por Nhorinh inclui e prev esse anulamento e essa morte, porque atravs da carta atrasada que Nhorinh conquista o seu estatuto, deixando-se reinventar por Riobaldo no seio de uma trade que no lhe contempornea. O aumento da beleza atravs da memria e da distncia proporcional impossibilidade de resposta, sua inacessibilidade, dando corpo pleno ao paradoxo da comunicao epistolar. Como se diz em Antiperiplia, fixando na abertura de Tutamia a repetio como princpio do universo rosiano, as coisas comeam deveras por detrs, do que h, recurso; quando no remate acontecem, esto j desaparecidas (II 527). E a resposta temporalmente desajustada de Riobaldo, precisamente por parecer resistir ao tempo, ter de o reordenar: a descoberta do amor em lavaredas rel todo o intervalo entre o encontro com Nhorinh e a chegada da carta, fazendo desaparecer, suspendendo, o desvio temporal. por efeito do tempo, que preserva a identidade da carta contra a alterao do circuito, que esse mesmo tempo pode desaparecer: precisamente porque transporta Nhorinh para um plano j no vinculado ao tempo para o plano da linguagem, errante e disponvel para a reconfigurao, ponto de suspenso em que dois movimentos de sinal oposto, aco e retroaco, se podem paradoxalmente encontrar. E tambm nesse gesto, que elimina o intervalo num encontro paradoxal dos dois extremos, que a parbase se pode fazer permanente. Na conjugao destes efeitos decide-se o papel desempenhado por Nhorinh ao longo do romance enquanto figura de uma reviso constitutiva. Ao contrrio da revelao final sobre Diadorim, pautada pelo diferimento retardador que ganha corpo na
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leitura, a carta de Nhorinh aparece cedo no livro: mais ainda se tivermos em conta que se trata de um dos poucos elementos posteriores ao arco narrativo de que temos conhecimento em Grande Serto: Veredas. O amor provocado (ou pro/e/vocado, num trocadilho de Cleusa Passos41) pela recepo da carta, durante todo o tempo da histria narrada, no se tinha ainda manifestado: nesse sentido, a presena contnua de Nhorinh ao longo do texto, e a sua figurao na trade amorosa, depende exclusivamente desse efeito de leitura que a carta originou, reconfigurando a aco atravs da sobreposio de duas temporalidades distintas. Repare-se numa formulao como esta: Digo: afora esses dois e aquela mocinha Nhorinh, da Aroeirinha, filha de Ana Duzuza eu nunca supri outro amor, nenhum. E Nhorinh eu deamei no passado, com um retardo custoso. (II 94). Deamar no passado, marca extrema do efeito retroactivo da carta comentada, a concretizao dessa catalisao tardia. Deste modo, a sua introduo no arco da aco de Grande Serto: Veredasdenuncia o tempo movente da rememorao de Riobaldo: ao contrrio do que se passa com o segredo no romance, o episdio encena abertamente a releitura e a sua temporalidade inevitavelmente diferida fazendo da carta, explicitamente, figura en abme no s de outras mensagens que chegam tarde (o sexo pertencido de Diadorim), como do prprio funcionamento, pstumo e recursivo, mas ainda assim operativo, da narrao de Riobaldo: Dela eu ainda no tinha podido receber a carta enviada. (II 330). O atraso da carta coloca-a, ento, numa posio insustentvel. A diferena temporal que separa o momento do envio do momento da recepo faz dela uma ponte entre duas dimenses irremediavelmente cindidas. Exterior a aco, que no entanto

Trata-se, portanto, de dois tempos plenos de sentidos para as personagens, tempos suspensos, presos aos significantes da carta. Ao pro/e/vocar a paixo de Riobaldo, ela estabelece a fuso de elementos dspares (no tempo e no espao), reiterando de modo exemplar o acaso, o no sabido e um irnico engano. (Passos 2002: 69); ver, sobre o episdio, a seco Nhorinh: namor (idem: 6771).

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integra, afectando-a agora apenas atravs do seu atraso, a carta pe em crise a ideia de uma forma concluda e impede, permanentemente, o cumprimento do telos. Assim, a releitura tardia ganha corpo, explicitamente, na figurao de um texto, retomando a contaminao da situao narrativa pelo campo semntico da escrita e da leitura que comemos por apontar. a encenao mais directa que aqui podemos encontrar de uma indistino entre leitura e releitura: ao ler em atraso, Riobaldo est j a reler o que no leu a tempo, afectando constitutivamente o curso da memria e reescrevendo os oito anos de intervalo, sem no entanto os poder verdadeiramente eliminar. Figura por excelncia da errata texto que vem, tarde, corrigir o texto, que no entanto permanece a carta atrasada a figura da irrupo do passado no presente, e do presente no passado, mantendo a estrutura de uma bifurcao temporal irresolvel, constitutiva da aco e, ao mesmo tempo, da narrao reflexiva que Grande Serto: Veredas. O modo como Nhorinh, figura da suspenso do tempo na linguagem, se articula com o reconhecimento de Diadorim torna-se mais claro se tivermos em conta que a prostituta tambm um elemento que estrutura as duas partes que se reflectem da construo do romance a partir da interrupo central, regressando em pontos estratgicos e especulares da narrativa. No fundo, como figura da repetio e de uma temporalidade desviada da sua orientao, Nhorinh oferece um contraponto temporalidade irrevogvel que marca a caracterizao da donzela-guerreira. O ponto do texto em que essa situao se explicita a ltima referncia a Nhorinh, simtrica primeira, depois da segunda travessia do liso do Sussuaro42. Antes das duas batalhas que encerraro a histria com a morte de Diadorim e Hermgenes, Riobaldo passa perto

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Dispostas simetricamente no incio e na concluso do romance, as duas travessias marcam a estrutura da repetio que domina construo do livro, anunciada por outros elementos: para alm de referncias a Nhorinh, temos as duas cenas de baptismo a enquadrarem as duas travessias.

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da nova morada de Nhorinh e para l encaminhado por um velho que a lhe promete um tesouro por desenterrar. A passagem a seguinte: Do que hoje sei, tiro passadas valias? Eh fome de bacurau noitezinha... Porque: o tesouro do velho era minha razo. Tivesse querido ir l ver, nesse Riacho-dasAlmas, em trinta e cinco lguas e o caminho passava pelo So Josezinho da Serra, onde assistia Nhorinh, lugarejo ditoso. Segunda vez com Nhorinh, sabvel sei, ento minha vida virava por entre outros morros, seguindo para diverso desemboque. Sinto que sei. Eu havia de me casar feliz com Nhorinh, como o belo do azul; vir aqum-de. Maiores vezes, ainda fico pensando. Em certo momento, se o caminho demudasse se o que aconteceu no tivesse acontecido? Como havia de ter sido a ser? Memrias que no me do fundamento. O passado ossos em redor de ninho de coruja... E, do que digo, o senhor no me mal creia: que eu estou bem casado de matrimnio amizade de afeto por minha bondosa mulher, em mim ouro toqueado. Mas se eu tivesse permanecido no So Josezinho, e deixado por feliz a chefia em que eu era o Urutu-Branco, quantas coisas terrveis o vento-das-nuvens havia de desmanchar, para no sucederem? Possvel o que possvel o que foi. O serto no chama ningum s claras; mais, porm, se esconde e acena. Mas o serto de repente se estremece, debaixo da gente... E mesmo possvel o que no foi. O senhor talvez no acha? Mas, e o que eu estava dizendo, mas mesmo pensando em Nhorinh, por causa. Di sempre na gente, alguma vez, todo amor achvel, que algum dia se desprezou... Mas, como jagunos que se era, a gente rompeu adiante, com bons cavalos novos para retroco. Sobre os gerais planos de areia, cheios de nada. Sobre o pardo, nas areias que morreram, sem serras de quebra-vento. (II 331-332).

O sentido da figura de Nhorinh, anunciado noutros momentos do texto, torna-se aqui mais claro: quando, na sequncia central do romance, Riobaldo se refere a Nhorinh, ser com a seguinte afirmao: A Nhorinh nas Aroeirinhas filha de Ana Duzuza. Ah, no era rejeit... Ela quis me salvar? (II 200). A leitura de Nhorinh como possibilidade de salvao ganha corpo na pausa narrativa que se introduz antes da investida final, antes da concluso43. neste episdio, o ltimo em que a personagem

No sirgo fio dessas recordaes, acho que eu bateava outra espcie de bondade. Devo que devia tambm de ter querido outra vez os carinhos daquela moa Nhorinh, nessas ocasies. Por que ser que, a, eu no formei a clareza disso, de a-propsito? Por l, adiante, na vastana, era rumo de onde ela agora morava. Isso, sim, andadamente. Mas no conheci; e demos volta. Tempos escurecidos. O que meus olhos no esto vendo hoje, pode ser o que vou ter de sofrer no dia depois-damanh. (II 329).

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referida, que o tratamento da carta e da personagem se fundem de forma explcita, precisamente na considerao da personagem como desvio que aqui se prope. Tal como a carta desviada de Nhorinh, como possibilidade perdida de salvao que ela aqui se apresenta, como alternativa fuso do enredo com o destino, no roteiro de Deus que conduzir Riobaldo, em permanente tenso entre as figuras de Otaclia e Diadorim. Nhorinh como desvio, como terceira possibilidade, apresenta-se no texto como ltima ocasio proposta para evitar o desfecho, para evitar a concluso. E mais do que a resposta a um amor tardiamente revelado, o casamento com a prostituta apresentado como soluo para a linha fatal da aco que conduzir morte de Diadorim: Mas se eu tivesse permanecido no So Josezinho, e deixado por feliz a chefia em que eu era o Urutu-Branco, quantas coisas terrveis o vento-das-nuvens havia de desmanchar, para no sucederem?. Nhorinh, figura daquilo que o conhecimento podia ter evitado, aparece ento como a grande representao do esforo de correco e reviso representado pela narrao de Riobaldo: vir aqum-de. O seu tempo o futuro do pretrito. A filha de Ana Duzuza surge ento no texto como possibilidade virtual, comentando, criticamente, a reflexo do romance sobre a precariedade do roteiro humano na figura de Diadorim. A conscincia irnica que determina a reviso da figura de Nhorinh no se submete a um enredo; introduz-se nele, precisamente como desvio para o campo do comentrio e da possibilidade, para o campo de uma palavra j desvinculada da aco. Meditao, ao longo da narrao, sobre o erro, ao mesmo tempo que se continua a armar o erro para o leitor, mantm a sobreposio inextricvel entre fico e crtica. Figurao extrema dessa salvao perdida, a referncia final a Nhorinh coloca-a em articulao directa com as coisas terrveis que o vento-das-nuvens no desfez, com o pano do destino que Ana Duzuza saberia ler, mas numa posio
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plenamente ineficaz, plenamente especulativa (Memrias que no me do fundamento). Conscincia irnica que nasce porm, se atentarmos na construo da figura, precisamente nesse episdio da carta que tommos como ponto de partida: precisamente por efeito do retardo custoso que elide na carta aquela que a enviou, tornando-a disponvel, na errncia dos gerais, para uma reconfigurao enquanto personagem, na temporalidade suspensa de um intervalo permanente. Nesse sentido, o percurso da carta e os seus efeitos no exemplificam apenas, em abme, a dramatizao da precariedade da travessia humana como marcada por um conhecimento sempre tardio. Encenao directa, textual, dessa precariedade que a revelao pstuma denuncia, a carta representa, tambm, o lugar suspenso da fala de Riobaldo. A conscincia irnica, plenamente disposta na linguagem, que se debate entre a reconstruo de um enredo orientado para a morte e o esforo desesperado para a retroaco ganha corpo na figura de Nhorinh, possvel desvio no percurso, tarde demais transfigurada em possibilidade (Em certo momento, se o caminho demudasse se o que aconteceu no tivesse acontecido? Como havia de ter sido a ser?). A virtualidade da figura introduz ento, na tenso entre conhecimento e ignorncia que pauta o texto, um elemento que s ela poder representar. Se a estrutura da revelao pstuma, como vimos, tem essencialmente um efeito desestabilizador, introduzindo uma retroaco bloqueada, efectivamente sob o signo do possvel, como o excerto apresentado indica, que presente e passado se iro dispor (Possvel o que possvel o que foi). O que Nhorinh traz, como figura da virtualidade absoluta, como memria sem fundamento que supera a morte num movimento regressivo, , porm, uma terceira possibilidade, plenamente negativa, plenamente ficcional construda, repetidamente, no seio da sua prpria negao. Aquela que no foi, insistentemente disposta no texto enquanto possibilidade livre, enquanto texto perdido, enquanto carta

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que chegou tarde e que por isso suspende o tempo, fora das molduras, contm em si a tenso plena, entre aco e releitura, que determina, como esforo de fico, a narrao de Riobaldo: E mesmo possvel o que no foi. O senhor talvez no acha? Mas, e o que eu estava dizendo, mas mesmo pensando em Nhorinh, por causa.

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Mais longe do que o fim; mais perto.

mal ver que o centro do assunto seja ainda de indiscusso, conformemente? A Estria do Homem do Pinguelo

Na sequncia de Le Citt Invisibili, de Italo Calvino, o meio est reservado a uma das cidades ligadas vista: Bauci, cidade suspensa sobre andas alm das nuvens que a protegem, a cidade invisvel por excelncia, a nica que o literalmente1. O viajante que para ela se dirige chega ao seu destino sem que o possa perceber: Dopo aver marciato sette giorni attraverso boscaglie, chi va a Bauci non riesce a vederla ed arrivato. I sottili trampoli che salzano dal suolo a gran distanza luno dallaltro e si perdono sopra le nubi sostengono la citt. Ci si sale con scalette. A terra gli abitanti si mostrano di rado: hanno gi tutto loccorrente lass e preferiscono non scendere. Nulla della citt tocca il suolo tranne quelle
Tommaso Moro dipinse solo la capitale di Utopia, poich diceva chi conosce una sola citt le conosce tutte, tanto sono simili. Calvino, al contrario, descrisse nei paragrafi della sua opera proprio 54 citt, quasi tacendo della capitale. Lasci infatti al centro del reticolo da lui tracciato (nel punto di simmetria del diagramma) una casella semivuota, uno spazio dove appena si proietta unombra: chi va Bauci non riesce a vederla. (Milanini 1990: 144); emblematico (...) che al centro esatto dello schema sia una casella semivuota, la citt di Bauci, lunica invisibile anche in senso letterale (Barenghi 1994: 1363).
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lunghe gambe da fenicottero a cui si appoggia e, nelle giornate luminose, unombra traforata e angolosa che si disegna sul fogliame. Tre ipotesi si danno sugli abitanti di Bauci: che odino la Terra; che la rispettino al punto devitare ogni contatto; che la amino comera prima di loro e con cannocchiali e telescopi puntati in gi non si stanchino di passarla in rassegna, foglia a foglia, sasso a sasso, formica per formica, contemplando affascinati la propria assenza. (Calvino 1972: 83). importante distinguir entre dois movimentos na descrio. Em primeiro lugar, o lugar do meio , para quem viaja atravs do bosque, invisvel: tendo j chegado, o viajante no o pode ver; o mesmo acontece ao leitor que chega a Bauci na complexa combinatria de As Cidades Invisveis; encontrar, nas palavras de Calvino, uma imagem de ausncia2. O texto, no entanto, debrua-se sobre essa ausncia, transportando-a, com a referncia s escadas que servem de via de acesso cidade suspensa, para o plano vertical: a partir desse momento, a terra que vista em funo de Bauci, acentuando o modo como esta se furta viso atravs das poucas marcas da sua presena. O meio do livro, deste modo, um quadrado vazio no tabuleiro que o define, centro esvaziado que sustenta a estrutura. E o vazio desse centro constri-se, quando o captulo se completa, fazendo precipitar a descrio. O viajante, que j est em Bauci sem a ver, agora integrado num jogo de inverses: o observador no pode observar mas observado, na cidade que dispe os seus dispositivos pticos numa contemplao obsessiva da terra; e a cidade pode apenas ser descrita atravs de um negativo de descrio. A invisibilidade do meio no deriva, assim, apenas da acentuao da leveza, propriedade das cidades que ocupam a sequncia central do livro3, no momento em que Kublai decide que o imprio, que cresceu excessivamente para fora, deve comear a

"Ma c' anche un'altra via, quella che sostiene che il senso di un libro simmetrico va cercato ne1 mezzo: (...) studiosi di semiologia strutturale hanno detto che ne1 punto esattamente centrale del libro che bisogna cercare: e hanno trovato un'imrnagine di assenza, la citt chiamata Bauci." (Calvino 1994b: X). 3 E primeira das propostas para o prximo milnio (Calvino 1993).

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crescer a partir do seu interior (idem: 79). No vazio da cidade central encontram-se os movimentos opostos do viajante que procura a cidade no espao da sua sombra, e que a sabe protegida pelas nuvens, e dos habitantes de Bauci que, invertendo a direco (os telescpios apontados para baixo), contemplam fascinados a prpria ausncia. Essa contemplao tem a natureza de um inventrio: folha a folha, pedra a pedra, o que os habitantes enumeram detalhadamente no fundo aquilo a que Rosa chama, no primeiro prefcio de Tutamia, o nada residual (II 521). A cidade que se retrai para se contemplar na sua negao, inventariando-a atravs da observao, atribui ao meio um valor ao mesmo tempo elusivo e reflexivo. A descrio inverte-se, o vazio da cidade materializa-se apenas numa obsessiva descrio do territrio que no a contm, enumerao infinita de um vazio que descreve Bauci como a cidade indescritvel. A construo de um centro vazio como ponto de sustentao da estrutura da obra algo que j encontrmos nos livros de Rosa, mais uma vez fora de uma lgica plenamente combinatria como a que aqui se define. No captulo anterior comentei o modo como o centro de Grande Serto: Veredas ameaava a estrutura atravs do anncio suspenso de um ponto que j em Pirlimpsiquice decretava a morte da forma sem formato; e na segunda parte deste texto acentuei a relao entre as margens e um centro que introduzia no livro movimentos de sinal oposto: o encontro de espelhos que constri o ndice de Primeiras Estrias era o caso mais evidente. O objectivo deste ltimo captulo propor, tambm aqui, uma imagem de ausncia que d sentido a esta interrogao do centro: sabemos j que em Rosa o meio o que ainda no se v (ou, nas palavras de Riobaldo, o que ainda no se sabe), centro elusivo que o livro persegue na sua temporalidade diferida. Tambm aqui o viajante chega sem saber que chegou; mais uma vez, porm, a construo de Rosa acentua o movimento horizontal (e temporal) da linha por cumprir. S alm do fim o meio conquista o seu lugar, instituindo a regresso

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reiterada da releitura. Na figura da parbase, que s ento se faz visvel, o centro constitui-se ainda como reflexividade tecida na fico que comentaria intervalo em que o texto, sem sair de si, se mostra e contempla a partir do seu interior. O ponto em que as diferentes linhas que at agora seguimos se encontram , assim, o texto em que mais clara a figurao do centro na obra de Guimares Rosa. Cara-de-Bronze oferecer, aqui, a imagem de um meio, como Bauci, elusivo e reflexivo, em que a possibilidade de descrio, ou de representao, testada contra um inventrio tambm obsessivo e amoroso, cartografia verbal de um centro vazio. Como se diz em Tutamia: O O um buraco no esburacado (II 526).

Centro Acentuei j, no captulo cinco, o lugar de Cara-de-Bronze na estrutura de Corpo de Baile. Inicialmente representado, na duplicao dos ndices, como uma das parbases do livro, o conto parece substituir-se a O Recado do Morro como parbase central a partir da terceira edio. Deslocado para o centro do segundo volume na tripartio da obra em 1964, o conto ganhar, na edio alem de Corps de Ballet Romanzyklus, um tratamento diferente, mais ousado, em relao aos outros, na expresso de Rosa, figurando essa estria sob a indicao de Zwischenspiel (Rosa 2003b: 208). Mesmo sem ter em conta a deslocao, muito evidente que em Cara-deBronze a reflexo sobre o intervalo, e at sobre a estrutura da comdia, levada mais longe. Vimos j que Haroldo de Campos reconhecia no conto uma excepo, na obra de Rosa, ao nvel da sintaxe romanesca e da estruturao do texto (Campos 1992a: 59); Benedito Nunes, por outro lado, considera que o conto ocupa um lugar parte na obra de Joo Guimares Rosa, na medida, porm, em que se trata de uma concepo exemplar, verdadeira sntese da concepo-do-mundo de Guimares Rosa, onde certas
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possibilidades extremas de sua tcnica de ficcionista se concretizam. (Nunes 1969b: 181-182). nesta oscilao entre a excepo e a exemplaridade que me interessa analisar o conto, que parece catalisar, como j sugeri, o carcter intervalar da parbase de Corpo de Baile e os seus traos essenciais, e nesse gesto encena, de forma cruzada, os principais problemas da fico rosiana que at agora acompanhmos. Alm de uma figurao autoral a conduzir a narrao, Moimeichego4, temos uma estruturao coral do grupo de vaqueiros, com os quais se joga tambm a circularidade da representao espacial. Heitor Martins aproximava j as falas dos vaqueiros da aco do coro grego que enquanto esta histria se desenrola, (...) inquire, perquire, informa-se (Martins 1983: 84); e o conto apresenta a representao mais forte, em toda a obra de Rosa, de uma parbase interna, ameaando a manuteno da ficcionalidade e condensando de modo exemplar os diferentes elementos que associmos estrutura do intervalo crtico. Acresce a esta posio centralizada o facto de Cara-de-Bronze ser o texto em que mais claramente se associa a ideia de viagem a um ponto de fuga que se configura como centro. O motivo da passagem ou da travessia, para usar o termo rosiano estrutura as sete novelas de Corpo de Baile5, articulando, de modos diferentes, o movimento com um dado territrio: se alguns dos textos se constroem em torno da noo de trnsito, jogando explicitamente com o tema da viagem ou do circuito (O Recado do Morro, Do-Lalalo), outros fixam-se num espao que enquadrado como momento de um movimento mais amplo, questionando processos de fundao e fixao; todos, porm, parecem fazer depender a construo de um espao da acentuao de movimentos de partida e de chegada. Ao contrrio do que se passar em

Bem, meu caro Bizzarri, por hoje, j exagerei. Encerro. Apenas dizendo ainda a Voc que o nome MOIMEICHEGO outra brincadeira: : moi, me, ich, ego (representa eu, o autor...) Bobaginhas... (Rosa 2003a: 95). 5 Veja-se, a propsito, o artigo de Cleusa Passos Os roteiros de Corpo de Baile: travessias do serto e do devaneio (Passos 2002).

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Grande Serto: Veredas, em que o espao da errncia se faz talvez centro imenso (e elusivo), no permitindo distines entre interior e exterior6, aqui a viagem parece constituir-se como abertura para fora de um espao marcado, chegando a assumir-se como a prpria exterioridade em relao a um microcosmos cuidadosamente delimitado num movimento de tenso que se traduz na presena constante de movimentos de idae-volta, coincidindo as partidas definitivas com o encerramento do texto, gesto de limitao e excluso em relao a uma sada, ou fuga, em alguns casos j em transio para um plano alm do real7. Por outro lado, como j vimos, o prprio livro estruturado em torno dos dois plos da viagem, o da partida e da chegada: da partida final de Miguilim do Mutm, na novela de abertura, at ao seu regresso esperado ao Buriti Bom, no longo texto que encerra a obra, a prpria estrutura do livro que se submete noo de movimento (o que se repetir, de forma ainda mais evidente, com a simetria dissonante das viagens de avio que abrem e fecham as Primeiras Estrias). Desse modo, movimento de leitura e percurso das personagens so feitos coincidir, problematizando a entrada e a sada do texto e articulando o regresso com a operao de releitura. A espacializao da construo do livro , j o sabemos, um movimento recorrente no paratexto rosiano: em Corpo de Baile, categorias textuais coincidem com denominaes da paisagem (os gerais que caracterizam os romances do livro no segundo ndice) gesto que tem o seu equivalente mais directo nos mapas de Grande Serto: Veredas, organizando ao mesmo tempo o espao do livro e o espao geogrfico. Assim, construo do espao e construo narrativa parecem reflectir-se, em Corpo de Baile, na insistncia sobre as vias e condies de acesso aos espaos construdos
O serto no tem janelas nem portas. (II 315); Serto, se diz , o senhor querendo procurar, nunca no encontra. De repente, por si, quando a gente no espera, o serto vem. (II 244). 7 Pense-se no final de O Recado do Morro (Mediu o mundo. Por tantas serras, pulando de estrela em estrela, at aos seus Gerais., I 666) ou de A Estria de Llio e Lina (Chapada e chapada, depois voc ganha o chapado e v o largo... Llio governava os horizontes. Me Lina... Lina?! ela respondeu, toda ela sorria. Iam os Gerais os campos altos. E se olharam, era como se estivessem se abraando., I 802).
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(Mutm, Pinhm, Urubuquaqu), que espelham, por sua vez, as fronteiras do texto, permitindo que a noo de trnsito seja lida em termos de oposies dentro/fora, interior/exterior, partida/regresso, cuja tenso estrutura as novelas em complexos jogos de inverso e contaminao. Em Grande Serto: Veredas, como vimos, o valor performativo e descritivo da delimitao de fronteiras era plenamente encenado na coincidncia entre meio do livro, meio da vida, e meio do mapa que a prpria formulao repetitiva acentuava: o Rio So Francisco partiu minha vida em duas partes (II 199). Dentro deste quadro, porm, Cara-de-Bronze mais do que um dos possveis exemplos: o conto , na obra de Rosa, o que melhor permite articular a problematizao do movimento com uma reflexo sobre as condies e fronteiras do livro e do acto narrativo. Trata-se do texto em que mais complexa a presena de uma dimenso metatextual, reforada por uma exposio grfica da materialidade da escrita, ao mesmo tempo que a novela mais explicitamente centrada sobre o tema da viagem8. Aquilo que me interessar inicialmente desenvolver o modo como a viagem ponto de partida para uma interrogao sobre as possibilidades da forma e sobre a funo estrutural do centro na obra de Rosa, que ganha em Cara-de-Bronze uma relevncia particular no modo como o texto joga com figuraes circulares que isolam um ncleo de uma exterioridade que o define. O centro estrutural que Cara-de-Bronze progressivamente ocupar em Corpo de Baile e que se articula com a dimenso intervalar, consciente e crtica da

Benedito Nunes sublinha esse aspecto nos dois artigos fundamentais sobre o conto: A Viagem do Grivo e A Viagem. A dir: Mas foi somente em Cara-de-Bronze que Guimares Rosa ps a nu o motivo da travessia, focalizando-a direta e expressamente como tema. A viagem passa a constituir, neste conto, a demanda da Palavra e da Criao Potica. Eis o sentido da estria deste Ariel do serto, o Grivo, que sai mundo afora, a procurar, para o seu patro Cara-de-Bronze, o quem das coisas, e que lhes traz, na volta, como nico bem, a viagem da viagem: o relato potico do que viu, ouviu e imaginou. (Nunes 1969a: 179).

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parbase tem relao directa com a construo do conto e a articulao dos seus temas. Formalmente a mais heterognea das novelas de Rosa, pelo modo como transgride as delimitaes entre gneros, Cara-de-Bronze define-se por um tecido textual hbrido que marca, de forma obsessiva, a construo do seu centro. Num constante movimento de fuga narratividade, faz convergir o dilogo e a forma dramtica, um roteiro cinematogrfico, efeitos visuais e tipogrficos, a interferncia textual de quadras musicais e uma complexa relao entre texto e um texto paralelo no espao das notas de rodap em torno de um ponto de fuga comum: o regresso do Grivo, vaqueiro enviado pelo fazendeiro Cara-de-Bronze para uma longa viagem atravs dos gerais, e a sua narrao. Antes de se revelar, como o prprio Rosa dir, um texto sobre a busca da poesia, construda em tenso contra uma ideia da prosa, e antes de se configurar, conforme a primeira parte e o ttulo do conto parecem sugerir, como narrativa construda em torno da figura enigmtica do fazendeiro imobilizado, o conto sobre o percurso, o tempo e os motivos de uma viagem: mas uma viagem que existe, textualmente, apenas a partir do momento do regresso momento em que, terminada, se torna objecto de enunciao e interrogao por parte dos outros vaqueiros, no interior do territrio contra o qual, em tenso, se delineava. A abertura do texto situa logo em oposio o campo aberto da viagem atravs dos Gerais e o espao da fazenda do Urubuquaqu. Podemos pensar no modo como Guimares Rosa apontava a Meyer-Clason, a propsito de O Recado do Morro, a construo minuciosa das frases de abertura: como uma composio musical, tm de apresentar, de golpe, temas e motivos, e o tom dominante, com seus subtons. (...) No do (essas frases iniciais) margens para transbordamentos ou manobras laterais. Nelas, nada foi deixado ao acaso. (Rosa 2003b: 243). A construo espacial de

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Cara-de-Bronze est j plenamente enunciada nas tenses que abrem o texto. Vejase o comeo do conto: No Urubuquaqu. Os campos do Urubuquaqu urucuias montes, fundes e brejos. No Urubuquaqu, fazenda-de-gado: a maior no meio um estado de terra. A que fora lugar, lugares, de mato grosso, a mata escura, que do valor do cho. Tal agora se fizera pastagens, a vacaria. O gadame. Este mundo, que desmede os recantos. Mar a redor, fim afora, iam-se os Gerais, os Gerais do e do o: mesas quebradas e mesas planas, das chapadas, onde h areia; para onde o verde sujo de ms rvores, o grameal e o agreste um capim rude, que boca de burro ou de boi no quer; e gua e alegre relva arroz, s nos transvales das veredas, cada qual, que refletem, orlantes, o cheiroso sassafrs, a buritirana espinhosa, e os buritis, os ramilhetes dos buritizais, os buritizais, os b u r i t i z a i s , os buritis bebentes. Pelo andado do Chapado, em ver o viajante um cavaleiro pequenininho, pequenino, curvado sempre sobre o aro e o curto da crina do cavalo o cavalinho alazo, sem nome, s chamado Quebra-Coco. Cavaleiro vai, manuseando misria, escondidos seus olhos do -frente, que s o mesmo duma distanciao e o cu uma poeira azul e papagaios no vo. Os Gerais do trovo, os Gerais do vento. No Urubuquaqu, no. Ali havia riqueza, dada e feita. (I 669)

O texto abre-se com a determinao de um crculo: o Urubuquaqu (a maior no meio um estado de terra) o centro que os Gerais rodeiam (mar a redor). Como se diz em Com o Vaqueiro Mariano, ali servia qualquer direo, porque o Pantanal um mundo e cada fazenda um centro. (II 790). Centro isolado em relao ao mar no delimitado dos gerais, o Urubuquaqu ope-se-lhe, nos dois pargrafos de abertura, no movimento que ditar tambm a construo do conto: da fazenda para os gerais e de volta fazenda. No seu interior est situada a Casa, isolada de forma a que no se veja, sua volta, a terra seca dos Gerais. O texto refora a oposio entre interior e exterior atravs da organizao do espao da fazenda. Toda a construo se alimenta de figuraes do crculo, de vrias formas sublinhadas, em torno de um espao intransponvel: o quarto onde a narrao da viagem, do discpulo para o mestre, do vaqueiro escolhido para o fazendeiro, feita. na estruturao do
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espao que as personagens se definem, em relao a esse ponto que os atrai como afirma Rui Mouro, verdadeira urna plantada no centro do terreiro (Mouro 1991: 285). A permeabilidade das fronteiras ou o momento em que estas passam de limes (limite) a limen (limiar)9 acentuada, porm, no modo como o crculo, imperfeito, deixa entrever na riqueza verdejante do horizonte o vermelho de um morro (Somente em longe ponto o cravanco dum buraco se rasgava, de rech, vermelho de grs, I 669): est estabelecida a fissura, o ponto de passagem, que permitir o estabelecimento de uma relao entre viajante e patro imvel. Podemos pensar no que dissemos no captulo dois sobre a construo da situao narrativa de Meu Tio o Iauaret e de Grande Serto: Veredas: a, as figuras que estabeleciam o raccord possvel entre interior e exterior eram, de um lado, o fogo, e do outro o tiro, ambas instituindo para a fala uma anterioridade pressuposta mas inacessvel (e excluda). Ncleo da Casa, por sua vez, o quarto do Velho, onde poucos puderam entrar. Quando, no Roteiro, se descreve um movimento de cmara, a sequncia : em lento avano, enquadram-se: os currais, o terreiro, a Casa, a escada, a varanda. (I 685). Este invertido e refeito pela narrao imediatamente depois: A Casa (...). As grades ou paliadas dos currais. Os arredores, chovidos. O tempo do mundo. (I 688). O texto parece atravessado por sucessivos movimentos de aproximao e afastamento em relao ao quarto10, que estruturam o conto, segundo expresso de Llia Parreira Duarte, como uma elaborao de esperas (Duarte 2006: 330)11. O

Giovanni Gasparini recorre a esta distino em Interstizi. Una Sociologia della Vita Quotidiana (Gasparini 2002) para classificar os fenmenos intersticiais e para identificar os pontos de passagem de uma ordem para outra. Cf. Introduzione. Tra Limen e Limes (Gasparini 2002: 7-14). O carcter intervalar da rede temtica que at aqui se tentou estabelecer (meio, circuito, envio, travessia) a partir da suspenso parabtica mostra uma insistncia permanente, na obra de Rosa, sobre a zona do interstcio. 10 O Grivo e os outros vaqueiros so admitidos no quarto, para a seleco; o Grivo enviado do quarto para o mundo; o Grivo regressa da viagem ao quarto; o Grivo entra e sai do quarto, para se aproximar ora do Cara-de-Bronze, ora dos vaqueiros. 11 a do velho fazendeiro que aguarda o Grivo que foi buscar a poesia e tem um interminvel relato a fazer; a dos vaqueiros/trabalhadores e a dos que vieram de fora e tambm aguardam o relato do viajante, em sua busca de compreender o enigma do Cara-de-Bronze e ainda daquela suposta noiva, que

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serto-mundo que rodeia a fazenda do Urubuquaqu, os currais e o terreiro que circundam a casa determinam como centro o quarto do Velho, onde a entrega das palavras muito trazidas (I 710) pelo Grivo se cumpre, mas ao qual ningum, e nem mesmo a figurao autoral, como veremos adiante, tem acesso. As personagens parecem organizar-se, alis, em termos de proximidade em relao a esse espao, determinada a partir de uma possvel capacidade de entendimento. Assim, os vaqueiros recm-chegados fazenda sero os que menos sabem, enquanto o violeiro Joo Fulano que canta e acompanha a histria com as suas canes a partir da varanda, ao lado do quarto, parece estar mais prximo do que se passa no seu interior: Tambm ele no sabe, s escuta, vez, pancadas na parede. Se no, assim no descantava. (I 689). Como no poema de Robert Frost, We dance round in a ring and suppose / But the Secret sits in the middle and knows (Frost 1969: 362). Os crculos progressivos que reproduzem a fronteira entre a fazenda e os gerais vo marcando diferentes nveis de proximidade, com base no saber, de um centro intransponvel e inacessvel no corpo do texto. A relao que se estabelece entre o centro silenciado e aquilo que em torno do texto prolifera a dana interrogativa dos vaqueiros uma relao tensa, animada pelo no entender. A narrao do viajante ao Velho no tem lugar no texto, e o momento em que o Grivo narrar a sua viagem aos vaqueiros aparece como repetio, indirecta e desviada, da narrao central que parece concretizar o acto potico encomendado ao viajante. Eu quero viagem dessa viagem, diz perto do final o Grivo (I 712) nesse desdobramento, entre a dupla viagem e a dupla narrao, uma presente, lacunar e textual, e a outra ausente (a que se acompanharo outros efeitos de duplicao, que adiante veremos, como o que afecta a suposta noiva trazida pelo Grivo, que parece ser tambm a
parece imaginria. (Duarte 2006: 330); Retomando o tema da espera, esta tambm constitui o compasso da nossa leitura, sempre em busca de um final prometido que nunca chega e que nos intriga at norevelao que fecha a estrutura teatral da novela. (idem: 331).

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outra, a Poesia), situa-se eixo da experincia do Urubuquaqu, marcando o carcter inevitavelmente indirecto da representao. O centro vazio o seu lugar.

Ideia da Poesia Para percebermos como esta insistncia obsessiva sobre a construo de um centro que se furta representao se articula com os problemas que j associmos parbase rosiana, necessrio recordar as implicaes da organizao de Corpo de Baile para uma ideia de reflexividade. Na correspondncia com Edoardo Bizzarri, em que Rosa se apoiava na leitura que Paulo Rnai fez do livro, a justificao para o uso do termo parbase no passa por nenhuma determinao estrutural, destacando apenas o carcter metaliterrio dos contos. Repito a descrio de Rosa: No ndice do fim do livro, ajuntei sob o ttulo de Parbase, 3 das estrias. Cada uma delas, com efeito, se ocupa, em si, com uma expresso de arte (Rosa 2003a: 91). Uma Estria de Amor trataria das estrias, O Recado do Morro a estria de uma cano a formar-se e Cara-de-Bronze, diz ainda Rosa ao seu tradutor, se refere POESIA (idem: ibidem). Sabemos j, pela estrutura observada nos livros rosianos, que esta exposio da funo dos contos corresponder a algo que se d apenas a posteriori. Como vimos, s no final da leitura que as parbases, que j funcionavam como tal, eram nomeadas. Ser do mesmo modo enigmtico e diferido, podemos arriscar, que a poesia se revelar tema de um conto que se parece fazer de multiplicao e fragmentao de vozes sobrepostas na reconstruo de uma estria elusiva. O reconhecimento diferido da poesia como centro negado do conto , em Cara-de-Bronze, a materializao mais explcita daquela resistncia que vimos, at agora, marcar o modo como as estrias, de um lado, e os livros de Rosa, do outro, pareciam oferecer a uma closure totalizadora (e
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aniquiladora). Atravs da figura do enigma, tantas vezes convocada nas leituras de Cara-de-Bronze e trazida para primeiro plano pelas falas dos vaqueiros, o conto dirige-se para um ponto que se nega representao, que se mantm invisvel e nesse gesto o dispositivo de representao d-se a ver, como viagem e busca. A presena insistente, na fico de Guimares Rosa, de situaes de narrao encaixada, como vimos, no aponta ento apenas para a recriao de um mundo marcado pelo storytelling, ou por uma representao oral da narrativa em que o vnculo com o contador ainda pressuposto. A encenao recorrente de situaes de narrao e interlocuo, que encontrar a sua forma mais extrema e depurada na tenso do dilogo oculto, provavelmente o gesto mais reflexivo que podemos encontrar nesta literatura: nelas, o que se mostra o corpo da histria, jogado contra os limites da forma, como lugar de resistncia a um aniquilamento que o cumprimento da funo de comunicao representaria. Nessas representaes en abme a fico rosiana expe a materialidade do suporte (corpo do narrador, do mensageiro, corpo do livro) como corpo que resiste, que retm e no transmite, lugar daquilo que no se pode inteiramente desprender, ou que no se pode representar; e na tenso entre o corpo e a histria encena-se o prprio fazer do texto, mensageiro tornado visvel: o prprio dispositivo de representao que questionado, activado e mostrado nessa tenso. neste sentido que Cara-de-Bronze se vai oferecer como parbase exemplar porque a prpria possibilidade de representao que posta em cena nesta dramatizao resistente da relao entre palavra e mundo. Atravs da sua representao negada, o texto incorpora o segredo como dobra: a extino do segredo implica a extino do texto; a sua interrogao faz o texto ao mesmo tempo que o comenta. E a estruturao diferida da revelao nos livros de Rosa parece impedir permanentemente a resoluo de um dos termos no outro, fazendo da releitura a figura de uma legibilidade paradoxal. O lugar da histria e da

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poesia, na parbase rosiana, est assim intimamente ligado dupla viagem que o texto encena e furta. E como j sugeri a partir de outros elementos encontrados, nessa recusa de uma transmisso sem resistncia a histria encontra a sua operatividade, ou a sua performatividade, vinculada a uma forma. A ideia de um centro esvaziado que projecta e atrai (o encontro de espelhos) pode ser entendida no mbito desta visibilidade da forma. Neste ponto, pode ser interessante pensar noutra estrutura regida por um espao vazio a partir de um breve ensaio de Louis Marin sobre os Essais de Montaigne (Marin 1989), que parte dos sucessivos esvaziamentos12 (a retirada de La Servitude Volontaire, primeiro, e mais tarde dos sonetos erticos) do suposto retrato de La Botie no ensaio central do livro I, para o descrever como um retrato vazio. O exemplo permite-nos avanar para o estabelecimento de uma relao entre (no) representao (o retrato em

desaparecimento do amigo) e a auto-representao. Para L. Marin, toda a estrutura dos Essais pode ser lida a partir do enquadramento desse lugar vazio, que tem a sua marcao decisiva no ensaio anterior, 28, De lAmiti, no momento em que Montaigne assume a sua prtica de escrita como anloga aco do pintor que povoa o vazio em torno do centro com a variedade e a estranheza de figuras grotescas e deformadas. A esse propsito, dir: Tout se passe donc comme si par del les raisons conjonctorelles du retrait de La Servitude volontaire puis des 29 sonnets rotiques de La Botie, lcriture des Essais consistait en une prolifration monstrueuse dun cadre, dun dispositif de prsentation, dune puissance de figurabilit qui sans cesse produisant de changeantes figures grotesques et corps monstrueux envahirait le lieu rserv la reprsentation de lalter ego mort (Marin 1989: 149).
Au centre gometrique du premier livre des Essais, lessai 29 (le 1er Livre comporte 57 essais), un lieu ni plein ni vide, un essai en instance, en imminence deffacement, de retour au blanc neutre de la page, un essai qui nest que la trace laiss par un livre puis par des pomes retirs, en cours de retraite et de retrait et dont ne subsiste plus dans lultime dition des Essais quune ddicace (un texte de prsentation) Mlle de Grammont dont la premire phrase est: Madame, je ne vous offre rien du mien... (Marin 1989: 148).
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Louis Marin relacionar essa invaso, essa substituio, com o movimento que transforma a margem do retrato num auto-retrato que (...) nest jamais et indfiniment que son propre cadrage, le cadrage de son lieu, la mise en figure de sa figurabilit (Marin 1989: 150). A auto-representao materializa-se, assim, na proliferao do monstruoso margem, quando a margem se torna a nica dimenso possvel da obra, em articulao com a possibilidade esvaziada da representao do outro. Diz a esse propsito Manuel Gusmo: o dispositivo de representao pode supor e mostrar algo de irrepresentvel, pode mesmo pr-se em movimento para tentar designar o lugar desse irrepresentvel a partir ou procura do qual se torna representao. (Gusmo 1994: 238). O condicionamento conjuntural tematizado atravs da referncia inter-artes: a escrita como pintura assim o motor de um povoamento monstruoso do espao marginal, num excesso que constitui a representao orientada para o irrepresentvel (o retrato em desaparecimento). o interdito, o irrepresentvel, que contamina a margem, determinando-lhe a forma, opondo a heterogeneidade excessiva ao centro vazio13. Num certo sentido, a construo do texto em torno de um centro no representado ganha em Cara-de-Bronze a mesma dimenso excessiva, ou monstruosa. Se a margem , no livro rosiano, o espao ocupado, povoado pela fico, no qual se remete para o interior do livro o limes que se recusa limen, paratexto multiplicado e ilustrado, como o de Primeiras Estrias ou Grande Serto: Veredas , em Cara-de-Bronze a imagem de uma multiplicao da margem, de um transbordamento do texto para fora de si em torno de uma representao negada corresponde directamente construo formal do texto a sua rotao centrfuga e

Talvez a representao mais forte desta relao entre margens e centro seja o quadro Ad Marginem, de Paul Klee (1930), que aqui se reproduziu. A margem do quadro o espao da proliferao em torno de um centro que pe em causa e esse talvez o movimento mais interessante do quadro a orientao da moldura. Louis Marin faz uma leitura deste quadro de Klee em Aux marges de la peinture: voir la voix (1994).

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descrio do espao como sobreposio de crculos concntricos. O eixo, aqui, o quarto vedado. E que seja a poesia o ponto de interrogao dessa resistncia da forma que at aqui perseguimos no depende exclusivamente, parece-me, da distribuio temtica da parbase de Corpo de Baile. O texto cruza a definio de uma aprendizagem potica, e do fazer do prprio texto, com um questionamento da experincia literria e dos seus efeitos a partir de uma multiplicao de formas que delimitam, enquanto ponto de atraco, a ideia de poesia como ncleo ao mesmo tempo vital e irrepresentvel. Aquilo que ali se apresenta como prosa o corpo visvel de uma tenso entre o que pode e no pode ser representado, entre auto-referencialidade e recriao, entre linguagem, crtica e poesia. A prosa ento o espao da busca, da tenso em direco poesia que no tem lugar no texto. evidente que o que est aqui em causa passa necessariamente pelo trabalho de Rosa sobre a lngua, e por algumas questes que j focmos no captulo quatro. Da importncia da questo podem dar conta, num primeiro momento, diferentes elementos: para alm da descrio rosiana do prprio fazer potico como tendo partido de um abandono da poesia para a procura de uma prosa que representasse uma receita para fazer verdadeira poesia (Lorenz 1991:78)14, interessa ter em conta a prpria negao da poesia que Magma, enquanto publicao desautorizada, representa. importante tambm lembrar aquilo que Walnice Nogueira Galvo, seguindo a pista de

Principalmente, descobri que a poesia profissional, tal como se deve manej-la na elaborao de poemas, pode ser a morte da poesia verdadeira. Por isso, retornei saga, lenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos a vida e no a lei das regras chamadas poticas. Ento comecei a escrever Sagarana. Nesse meio tempo haviam transcorrido dez anos, como j lhe disse; e desde ento no me interesso pelas minhas poesias, e raramente pelas dos outros. Naturalmente digo isso, porque um dado biogrfico, pois no aconteceu que, um belo dia, eu simplesmente decidisse me tornar escritor; isto s o fazem certos polticos. No, veio por si mesmo; cresceu em mim o sentimento, a necessidade de escrever e, tempos depois, convenci-me de que era possuidor de uma receita para fazer verdadeira poesia. (Lorenz 1991: 78).

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Plnio Doyle, que por sua vez perseguira a de Manuela Bandeira na Antologia dos Poetas Brasileiros Bissextos Contemporneos, apontava em Heteronmia em Guimares Rosa (Galvo 1998): a presena explcita da poesia na obra de Rosa, depois da recusa do prmio atribudo a Magma, ser sempre filtrada pelo recurso aos seus (pelo menos) quatro poetas anagramticos, um dos quais, Soares Guiamar, aparece numa das notas de Cara-de-Bronze. No difcil, neste momento, associar o tratamento anagramtico do nome de autor s questes que levantmos a propsito dos ndices de Tutamia a poesia, no Rosa da prosa, parece assim surgir nesse interldio parabtico que a multiplicao de poetas vai insistentemente pr em prtica, bloqueando qualquer via de acesso directo a uma vinculao referencial. Por outro lado, vimos j como no primeiro ndice de Corpo de Baile as novelas eram classificadas apenas como poemas. Nesse bloco inicial, Cara-de-Bronze no se distingue. Mas a interrogao da palavra potica que a posta em prtica aproxima-se, em muitos momentos, do dicionrio pessoal que vimos estar por trs da ideia de uma lngua prpria: a insistncia sobre uma escolha de elementos a combinar e transformar a partir de um patrimnio a que todos tm acesso, sobre a actividade de observao que se confunde com a nomeao e que tem como base a fixao, na linguagem, de uma diferena similhante (I 679) passos da aprendizagem do potico em Cara-deBronze repetem os traos essenciais do mtodo de revitalizao da lngua que Rosa descreve a Lorenz e que comentmos anteriormente. com base nisso que podemos sugerir que aquilo a que se chama poesia no conto est prximo da ideia de uma lngua nascente (no-entender, no-entender, at se virar menino, I 691), sendo que vrios dos exemplos de concretizao potica (Rosa 2003a: 94) poderiam encontrar-se tambm nas cadernetas. tambm neste sentido que o conto desempenha a funo de arte potica, permitindo levantar uma hiptese que refora a sua centralidade na obra

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de Rosa: o que a tenso entre poesia e prosa que aqui se encena parece sugerir o fundamento verdadeiramento potico, no sentido com que aqui trabalhado e explicitado, do projecto rosiano de prosa; oferecendo-se esta como campo de resistncia a uma poesia que nela reside e dela nunca se desprender inteiramente. Pode ser lida neste quadro a preferncia dada a Cara-de-Bronze nos esclarecimentos aos tradutores, como comemos j a ver com Meyer Clason. Na correspondncia com Bizzarri, na carta sobre as parbases, o comentrio mais detalhado estar destinado ao conto, destacado ainda numa advertncia, acrescentada mo, em que a sombra da intraduzibilidade plenamente assumida face sua particularidade formal: Mas, no que ia me esquecendo do principal? Pois, o mais importante dizer a Voc que, no Cara-de-Bronze, por tantos motivos, que Voc pode ter mais liberdade. Para acentuar mais, o que achar necessrio. Para omitir o que, numa traduo, venha a se mostrar intil excrescncia. Para deixar de lado o que for intraduzvel, ou resumir, depurar, concentrar. Obrigado! (Rosa 2003a: 95). Mas h ainda outro aspecto que nos pode interessar neste ponto do percurso, para alm da relao entre aquilo a que no conto se chama poesia e o trabalho sobre a lngua na prosa de Rosa. Mantendo ainda a hiptese de que o texto pode ser lido como campo de tenso entre uma ideia de prosa e uma noo de poesia que implica uma recusa da narratividade, podemos comear a voltar a algumas das oposies estruturadoras da ideia de fico em Rosa para perceber o que est em causa neste jogo. Na settima giornata de Il Linguaggio e la Morte, Agamben faz a seguinte caracterizao da poesia: Lelemento metrico-musicale mostra innanzitutto il verso come luogo di una memoria e di una ripetizione. Il verso (versus, da verto, atto di volgere, di far ritorno, opposto al prorsus, al procedere dirittamente della prosa) mi avverte, cio, che queste parole sono sempre gi avvenute e ritorneranno ancora, che
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listanza di parola che, in esso, ha luogo, , pertanto, inafferrabile. (Agamben 2008: 97).

Voltaremos mais tarde relao entre a ideia de poesia que aqui se prope e o binmio memria-repetio; por agora, interessa-me apenas chamar a ateno para o modo como poesia e prosa do corpo aos dois movimentos que at agora perseguimos, e s duas temporalidades, recursiva e linear, que vimos encenadas nos textos rosianos. Nhorinh e Diadorim, o Menino e o Tio (desdobrados ainda na relao entre Miguilim e Terez) so alguns dos exemplos possveis. Se a poesia pode tambm ser figura dessa temporalidade que quebra15 e ultrapassa a linha, gesto do mensageiro zeloso, ou do ndice que remete para a parbase, reencontramos ento aqui a mesma tenso entre limite e prolongamento que afirmamos estar na base da potica rosiana. importante observar nestes termos o modo como Cara-de-Bronze se orienta para um questionamento da ideia de poesia, na economia do texto e na explicitao de uma potica que, do seu centro reflexivo, se estende para todo o universo narrativo de Corpo de Baile fundando a construo de um mundo ficcional. Destinado a um discurso sobre a poesia, o conto parece estruturar-se num movimento de fuga dimenso narrativa, que o recurso forma dramtica e ao roteiro acentua, para, no entanto, propor a concretizao do potico na narrao, estabelecendo, para a prosa, uma dimenso potica construda contra os limites da forma e do uso prosaico. Prosa, ento, que concretiza uma ideia da poesia na medida em que se afasta quer da poesia como prtica,
Refiro-me aqui a outra caracterizao relacional dos dois termos: a que Agamben prope em Idea della Prosa. O facto sul quale non si rifletter mai abbastanza (Agamben 1985:21), ponto de partida do pequeno tratado, a impossibilidade de uma definio estvel do verso, de uma definio estvel da poesia, que no seja uma caracterizao em relao prosa. O lugar do encontro dos dois termos contrapostos, a nica possvel marca dessa dicotomia, to intuitiva quanto indemonstrvel, o enjambement, trao distintivo do verso, que esibisce una non-coincidenza e una sconnessione fra elemento metrico e elemento sintattico, fra ritmo sonoro e senso (idem: 22). Curiosamente, o verso apenas pode afirmar a sua identidade num movimento de aproximao prosa (ou de tentao pela prosa, poderamos dizer): nellatto stesso in cui, spezzando um nesso sintattico, afferma la propria identit, , per, irresistibilmente attratto a inarcarsi sul verso successivo, per afferrare ci che ha rigettato fuori di s: esso accenna un passo di prosa col gesto medesimo che attesta la propria versatilit. (idem: 23).
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quer do uso comum, desgastado, da lngua. Provavelmente o conto mais reflexivo de Rosa, tambm, sem dvida, o mais complexo em termos de estrutura. Multiforme e variada, essencialmente repetitiva16, suspendendo e regressando vrias vezes mesma sequncia, a organizao do texto continuamente se desvia e interrompe, desarticulando a linearidade da fabula e pondo em causa a sua apreensibilidade pela construo orgnica e no emendada do conjunto, poderamos dizer. As duas perguntas que atravessam o texto do incio at ao seu final de quem a histria? e o que ser que ele foi buscar? (I 708) marcam a dificuldade na identificao da histria atravs dos diferentes cruzamentos de planos. Como em Pirlimpsiquice, a verdadeira histria, a que no temos acesso, constri-se no intervalo de vrias verses. A forma do dilogo, a pluralidade de vozes dos vaqueiros e o andamento sincopado do conto sublinham essa indefinio em relao reconstruo de um ncleo narrativo que tambm o ponto de orientao do movimento do desejo dos vaqueiros, que se interrogam sobre o sentido da viagem: Mais do que a curiosidade, era o mesmo no-entender que os animava (I 688). Como Marlowe, o conto parece insistentemente perguntar Do you see the story? Do you see anything? (Conrad 1995: 50)17; mas na multiplicidade de vozes em que se decompe, e que sistematicamente desautoriza, a prpria forma da histria que parece fazer a pergunta sobre o seu formato, pergunta em forma de cavalo-marinho. Na mesma carta ao tradutor italiano, Rosa fornece um resumo do texto que se tornou ponto de apoio na recepo da obra:

RESUMO: O Cara-de-Bronze era do Maranho (os campos-gerais, paisagem e formao geogrfica tpica, vo de Minas Gerais at l, ininterrompidamente).
Sofia Ortega-Galvez analisa a construo repetitiva do texto, referindo as repeties estruturais como actualizaes textuais (Ortega-Glvez 1999: 81-82). 17 E na pausa reflexiva que se segue a esta interrogao o narrador de Conrad aponta para a materialidade do corpo do contador como lugar do que na histria no se transmite: Of course in this you fellows see more than I could then. You see me (Conrad 1995: 50).
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Mocinho, fugira de l, pensando que tivesse matado o pai (pg. 619 [172]), etc. Veio, fixou-se, concentrou-se na ambio e no trabalho, ficou fazendeiro, poderoso e rico. Triste, fechado, exilado, imobilizado pela paralisia (que a exteriorizao de uma como que paralisia da alma), parece misterioso, e ; porm, seu corao, na ltima velhice, estalava. Ento, sem se explicar, examinou seus vaqueiros para ver qual teria mais viva e apreensora sensibilidade para captar a poesia das paisagens e dos lugares. E mando-o sua terra, para, depois, poder ouvir, dele, trazidas por ele, por esse especialssimo intermedirio, todas as belezas e poesias de l. O Cara-de-Bronze, pois, mandou o Grivo... buscar Poesia. Que tal? (Rosa 2003a: 93-94).

O resumo produz efeitos curiosos sobre as leituras do conto porque diz mais do que o texto, ou diz aquilo que o texto parece no querer dizer. Opera-se aqui, para uso do tradutor (explicao necessria, dir Rosa), um efeito de concentrao e de explicitao se ope ao prprio dispositivo do conto e sua estruturao: o estabelecimento de uma sequencialidade que o texto cuidadosamente evita e contra a qual sacrifica todo o primeiro plano da sua organizao. Num certo sentido, o resumo pode ser lido luz de uma oposio dominante na obra de Rosa, explicitada em Grande Serto: Veredas e que j referi de passagem a propsito de Meu Tio o Iauaret: a que contrape o caso inteirado em si sobre-coisa, a outra-coisa exigida por Quelemm ao narrador Riobaldo (II 130). A viagem, o vaqueiro enviado (o Grivo) e Cara-de-Bronze permanecem zonas de indefinio a sobre-coisa ao longo de todo o texto, que tem uma construo eminentemente interrogativa. A reconstruo de uma fabula dominante a partir da construo multiforme e variada do texto j, em si, uma operao plenamente mediada, que de certa forma reflecte os mecanismos de construo do texto tambm na medida em que este um texto que joga com construes autorais, desdobradas e absorvidas pela fico ao longo do seu desenvolvimento.

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Quase no final da novela, um dos vaqueiros, Adino, exclama em resposta personagem Jos Proeza: A, Z, opa! (I 712)18 a poesia, nome que no aparece em lugar algum do texto, remata o conto precisamente numa forma invertida, anagramtica e plenamente integrada no discurso dos vaqueiros. Se Cara-de-bronze pode ser lido como um texto orientado para a definio de uma ideia de poesia, preciso ter em conta o que este gesto final sublinha: tudo aponta para uma forma mediada e distanciada de apresentao dessa ideia. Esse distanciamento, por um lado, est j presente no jogo anagramtico: a poesia invertida num grito que apenas recupervel numa reconstituio exclusivamente muda e textual, exclusivamente visual. Trata-se, no fundo, de um momento em que se expe a resistncia material da linguagem. Essa inverso vem coroar a longa srie de tentativas de definio da poesia, por parte de todos os intervenientes do texto, essencialmente desviadas, ou marcadas por efeitos de catacrese, desestabilizadas pela coralidade polifnica dessas mesmas descries. como texto, e como texto mediado por diferentes formas de distanciamento, que a poesia se d aqui a ler na forma da prosa que para ela se orienta. E, mais uma vez, a orientao regressiva: para trs, e na releitura, que a poesia (o verso que se volta) se d a ler, tecida na linearidade da prosa que a oculta. A sua figura o bustrofdon, anagrama perfeito, movimento recursivo, alm do fim da linha, do texto rosiano19.

A indicao dada a Bizzarri: (Na pgina 620 [173], h um oculto desabafo ldico, pessoal e particular brincadeira do autor, s mesmo para seu uso, mas que mostra a Voc, no resisto: A, Z, pa!, intraduzvel evidentemente: lido de trs para diante = ap Za, : a Poesia...) (Rosa 2003a: 93). 19 Agamben, ainda em Idea della Prosa, v no andamento bustrofdico que o enjambement representa a marca do hibridismo original da poesia: L enjambement porta cos alla luce loriginaria andatura, n poetica n prosastica, ma, per cos dire, bustrofedica della poesia, lessenziale prosimetricit di ogni discorso umano. (Agamben 1985: 23). Agamben relacionar esse hibridismo constitutivo da palavra humana com a sublime hesitao do dilogo platnico, de que o prprio Rosa, na correspondncia com Bizzarri, aproxima as suas novelas (Rosa 2003a: 90).

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Dessarte, destarte Esse distanciamento deve ser posto em relao com o tema da viagem, luz da representao do espao que considerei anteriormente: como j sublinhei, todo o texto contorna a descrio de um acto potico a narrao do Grivo ao Cara-de-Bronze sobre o que o primeiro viu, l por l (I 688) que no se deixa substituir pela paralela narrao do Grivo aos vaqueiros20. O texto transborda, proliferando nas diferentes formas de representao, nos diferentes territrios grficos e textuais, invadindo a nota de rodap: a margem torna-se a nica realidade do texto, ao mesmo que tempo que se marginaliza a si prpria, encenando-se como mediada e informe. nessa estrutura que se joga a tenso do conto e a sua relao com o que aqui nos ocupa: a novela como forma eminentemente indirecta e crtica de caracterizao de um acto que , no pleno sentido do termo, irrepresentvel. uma questo que j sugeri como central, na primeira parte, para a representao das situaes de narrao: a representao textual e diferida de um valor performativo aparentemente vinculado a situaes de presena ou dilogo. Aqui, esse diferimento reforado pela figura da excluso. Como afirma Alkmar Santos: o movimento que a se entrev o do dedo que apia no ar a direo do percurso e assintoticamente traa o caminho que leva ao potico, sem nunca atingi-lo verdadeiramente. (Santos 1996: 86). O predomnio de uma auto-conscincia do dispositivo de representao acentuase de duas formas: em primeiro lugar, no momento em que o texto se concentra na aprendizagem da poesia a que so submetidos os vaqueiros escolhidos, organizandose numa explicitao de potica construda de forma dialgica; depois, nos modos de
Nem se confunde com o transbordamento da narrao para as notas de rodap, em que se acentua, abertamente, a passagem para um regime plenamente textual (que comentaremos adiante). o que parece sugerir Sofia Ortega Galvez: O facto de haver duas respostas, uma breve e outra mais completa e mais extensa, faz-nos pensar que as mesmas so para interlocutores diferentes, quais sejam: os vaqueiros, para os quais ele d resposta mais breve, e o Cara-de-Bronze, o verdadeiro interessado no resultado da viagem, para quem o Grivo narra todos os pormenores. (Ortega-Glvez 1999: 133-134).
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inscrio de diferentes instncias autorais, de que a parbase ser ainda figura determinante. Benedito Nunes aproxima o processo de seleco dos vaqueiros de uma demanda da palavra, recriando a atmosfera medieval das cortes (Nunes 1969b: 183). A associao reforada (ao mesmo tempo que desviada em termos de contexto) pela referncia, no campo das notas, ao leite da palavra como alimento no ChandoyaUpanishad (I 711). Do ponto de vista da estruturao, a descrio da formao dos vaqueiros um dos momentos de predomnio de uma exposio do fazer, dobrando o texto sobre si mesmo e sobre a tenso que o anima: Queria era que se achasse para ele o quem das coisas! (I 691). A escolha do Grivo resultou de uma seleco entre trs vaqueiros, de que a prova determinante foi envi-los juntos aos mesmos lugares para depois ouvir, em separado, a descrio do que cada um viu: Mandava-os por perto, a ver, ouvir e saber e o que ainda mais do que isso, ainda, ainda. (...) O Velho mandava. Tinham de ir, em redor, espiar a vista do de-cima do mrro e depois se afundar no sombrio de todo vo de grota, o que tem em toda beira de vertente, e l em alta campina, onde o sol estrala; e quando o vento roda a chuva, quando a chuva fecha o campo. (I 694-695).

A aprendizagem dessa ideia como o vento (I 691) que o Velho queria, conversao nos escuros, se rodeando o que no se sabe (I 691), feita a partir do movimento da viagem como conhecimento: o relato, o que Cara-de-Bronze procura, transformado a partir da experincia. Mas essa transformao tem como origem uma observao definida como imaginamento e divertir na diferena similhante (I 679). Reside a o elemento central da encenao desta formao: a aprendizagem da poesia uma aprendizagem orientada pela explicitao de um questionamento da representao que a valoriza enquanto criao e transformao Tudo tinham de transformar, ter em outras retentivas (I 695) ao mesmo tempo que pressupe um encontro com o mundo atravs da viagem. Na vinculao destes dois plos decide-se a importncia deste conto
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como potica para a obra de Rosa; e na descrio da observao como transformao e escolha21 reconhece-se o problema da referncia da fico rosiana, o problema da incorporao ficcional de um Serto que palavra, desdobrada nas suas inmeras transformaes, ao mesmo tempo que remete infinitamente para fora de si prpria para o Serto. E o problema da referncia lanado, repare-se, no mesmo gesto com que o conto se prope como possvel catlogo de situaes narrativas que Corpo de Baile explora. Falmos j da estreita vinculao entre estes exerccios de linguagem (a rosao das roseiras, I 690) e o mtodo rosiano; veja-se como, do mesmo passo, o que o Cara-de-Bronze procura traduzido em ncleos narrativos que o prprio livro, noutros lugares, explora: O virar, vazio por si, dos lugares. A brotao das coisas. A narrao de festa de rico e de horas pobrezinhas alegres em casa de gente pobre. (...) E adivinhar o que o mar... Quem que pode? (I 690). tentadora a aproximao a Campo Geral e Uma Estria de Amor: sugesto anterior de que na busca do potico que Cara-de-Bronze representa se reencontra a lgica das cadernetas do escritor pode agora acrescentar-se a ideia de que o prprio texto se faz repertrio fundador da potica de Corpo de Baile, explicitada como aprendizagem. Nesse sentido, a relao entre palavra e referncia que a formao sugere deve ser entendida como central para o estatuto da narrao rosiana: o tema da ida-e-volta, da palavra ao mundo, em que o mesmo se faz diferente, tambm uma representao do processo criativo. O prprio texto, no entanto, apresenta-nos j uma deslocao que refora este aspecto: enquanto os vaqueiros contam o que sabem sobre a transformao do Velho e a partida do Grivo, o cantador Joo Fulano vai improvisando quadras que incorporam aquilo de que se fala (como a cano de Pulgap incorporava os sinais do recado). O modelo de uma criao transformadora, que escolhe, reescreve e recria
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- Eu estava cumprindo lei. / De ver, ouvir e sentir, E escolher. Seus olhos no se cansavam.

(I 701).

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aquilo que recolhe, multiplica os seus nveis de aco: a experincia, se ainda ponto de partida, dilui-se na sua transformao progressiva, progressivamente remetida para um estatuto de anterioridade inacessvel: fora do crculo, no espao da viagem. E no entanto as quadras, que tambm divertem (cf. I 674), no deixam por isso de ser lidas pelos vaqueiros como testemunho de um conhecimento que os ultrapassa: Tais ouvindo, o que o homem est querendo relatar? (...) Que ser mais, que ele sabe? (I 670). No momento to aguardado em que o Grivo chega e abre a sua narrao para os vaqueiros, a expresso que usa : Sobrevim. (I 696). J referi, no captulo dois, o modo como tanto em Grande Serto: Veredas (o senhor homem sobrevindo) como em Meu Tio o Iauaret o interlocutor se caracteriza como aquele que chega, depois, e solicita do narrador a histria, que se insinua no presente com a sua temporalidade regressiva. Aqui, o Grivo o narrador que foi e voltou, segundo o modo como o prprio definir a sua viagem; nesse sentido, a sua narrao pode definir-se apenas em relao a uma exterioridade que o prprio mundo da viagem (I 707) representa. Percebe-se ento que esta se abra com a marca do regresso e termine pela sua reiterao: Eu tinha voltado (I 709). Mas o que a expresso vai traduzir, inevitavelmente, a natureza descontnua (e diferida) da relao entre viagem e palavra. A situao torna-se mais complexa se tivermos em conta que a pergunta do texto sobre aquilo que o Grivo foi buscar, e que a resposta que o texto oferece, nos diferentes modos que adiante veremos, situa na palavra o objecto da busca: a experincia, que est na base da necessidade da viagem, est j profundamente ligada a uma funo retentiva do verbal a viagem , j, espao da palavra, mas de uma palavra que atravs da viagem se situa tambm temporalmente. Nesse gesto a referncia ao mundo torna-se cada vez mais difcil de fixar, fugindo para o passado e para fora do crculo. De volta ao seu interior, a palavra parece apontar para uma experincia que recua infinitamente para a anterioridade
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inacessvel que j encontrmos, por exemplo, no mundo das velhas pessoas que conservavam as histrias em Uma Estria de Amor , e nesse gesto define-se como enunciao e diferena similhante. Se quisermos voltar ao texto de Agamben que h pouco referi, podemos pensar o problema luz da descrio do funcionamento da palavra potica como uma experincia essencialmente temporal que aponta para si prpria ao indicar uma aparente vinculao a um exterior determinado. O exemplo Linfinito, de Leopardi: Qui si rivela il particolare statuto dellenunciazione nel discorso poetico, che costituisce il fondamento della sua ambiguit e della sua tramandabilit: listanza di discorso, cui lo shifter si riferisce, lo stesso aver luogo del linguaggio in generale, cio, nel nostro caso, listanza di parola in cui qualsiasi locutore (o lettore) ripete (o legge) lidillio Linfinito. (...) listanza di discorso fin dallinizio affidata alla memoria, in modo, per, che memorabile la stessa inafferrabilit dellistanza del discorso come tale (e non semplicemente unistanza di discorso storicamente e spazialmente determinata), che fonda cos la possibilit della sua infinita ripetizione. Nellidillio leopardiano, il questo indica, gi sempre oltre la siepe, al di l dellultimo orizzonte, verso uninfinit di eventi di linguaggio. La parola poetica avviene, cio, in modo tale che il suo avvento sfugge gi sempre verso il futuro e verso il passato e il luogo della poesia sempre un luogo di memoria e ripetizione. (Agamben 2008: 95). Os gerais, alm do crculo, como anterioridade pressuposta, so aqui traduzidos num discurso em que ao Serto se substitui a palavra Serto, experincia alm do Serto, no passado e no futuro, que no entanto aponta e indica incessantemente a anterioridade da sua transformao. Suspensa entre uma experincia que convoca mas que no pode referir, a palavra o ponto de articulao resistente entre o mundo (a viagem) e a poesia: o que faz com que no possa ser nem unicamente referencial nem plenamente intransitiva, permanentemente fundando, no seu interior suspenso e voltado para uma exterioridade inacessvel, a referncia como indicao22. Podemos reconhecer
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Muitas das tenses da recepo rosiana parecem assentar numa diluio desta resistncia da representao que o tratamento da palavra em Cara-de-Bronze ilustra. A contraposio excessivamente rgida (acirrada discusso, num artigo de Ana Paula Pacheco [2001] em que a questo se d a ver de forma muito clara, e que aqui cito) entre uma leitura da obra de Rosa como espelho de uma experincia histrica do pas e a leitura marcada pela preocupao com o simblico que deixa a Histria de lado

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a um dos movimentos da suspenso parabtica: o que encena uma transgresso de fronteiras, regressando ao mundo, que insistentemente refere, apenas para o englobar no interior da fico. Talvez possam ser entendidas nesse quadro duas passagens em que o texto faz precipitar a noo de referncia: o momento em que se define a cor do Carade-Bronze23 com base numa negao da origem referencial da metfora; e a incluso, na narrao da viagem do Grivo, de como este viu conforme lhe mostraram em mo o vero retrato de uma pessoa que nunca tinha existido, retrato de fotografia. (I 706). O Grivo, menino das palavras sozinhas que contava uma estria comprida, diferente de todas (I 510), em Campo Geral, seleccionado e enviado com a funo de relatar depois. E essa narrao, na peculiar construo do texto, antes de mais uma descrio, dando corpo tendncia dicionarizante que comentmos atravs das listas e cadernetas (recorde-se mais uma vez a definio que Rosa dava da sua escrita: EU SEI O NOME DAS COISAS, apud Rnai 1983: 92) que prolongam, nas notas de rodap, o relato do Grivo. No estamos muito longe, neste movimento do conto, do incansvel inventrio a que os habitantes de Bauci submetiam o espao da sua ausncia, dando corpo sua negao atravs de uma enumerao detalhada. Aqui o inventrio Voc viu e aprendeu como tudo, por l? (I 712), pergunta o Cara-de-Bronze ao Grivo nas palavras muito trazidas, a viagem feita em nome daquele que no se pode j mover, que j no pode regressar a viagem da viagem, nico roteiro e mapa da exterioridade do mundo alm do crculo da palavra. A Bizzarri, Rosa dir:

marca dessa diluio. Na palavra que retm, em tenso, uma exterioridade a que no pode dar acesso, mas a que d um rastro letrevel, reside a tenso eminentemente parabtica de um texto que, tal como na bela descrio do sorriso de Doralda, no se separa de todo da pessoa, antes parece chamar tudo para dentro de si (I 807). Nesse plano, as dificuldades de fixao de uma referncia histrica e simblica que no tenha em conta esta tenso retentiva equivalem-se plenamente. 23 O vaqueiro Adino: Ara, um velho, baoso, escuro, com cara de bronze mesmo, u! Moimeichego: Voc j viu bronze? O vaqueiro Adino: Eu? Eu c, no, nunca vi. Acho que nunca vi, no senhor. Mas, tambm, no fui eu que botei o apelido nele... Moimeichego: Quem ps? (Silncio de todos. Pausa) (I 679).

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Da, Voc ver a razo para aquelas rvores arroladas em notas de p-de-pgina. Todas as que se enumeram, so rigorosamente da regio; mas enumeram-se apenas as que contm poesia em seus nomes: seja pelo significado, absurdo, estranho, pela antropomorfizao, etc., seja pelo picante, poetizante, do termo tup, etc. (Linguagem poesia fossilizada (ou petrificada?) Ruskin.) (Rosa 2003a: 94).

Nas notas, a viagem visivelmente feita texto a lista de rvores substitui a narrao. O exemplo que Rosa aponta a Bizzarri, desta vez a partir da leitura de Pedro Xisto24, a esse respeito exemplar. Os nomes de rvores, na sequncia aparentemente sem articulao, constroem uma estorinha ertica, representando um encontro, espacializado atravs da justaposio grfica25. A construo de um roteiro atravs da mesma explorao da lista ressalta da introduo das notas ao discurso do Grivo: Narrar o Grivo s por metades? Tem ele de pr a juros o segredo dos lugares, de certas coisas? Guardar consigo o segredo seu; tem. Carece. E difcil de se letrear um rastro to longo. Para o descobrir, no haver possveis indicaes? Haja, talvez. Alguma rvore. Seguindo-se a graa dessa rvore. (I 696).

Destaca-se deste modo a ntima relao entre os diferentes planos da materialidade do livro rosiano que at agora destaquei: as notas so inventrio, lista de palavras, lxico escolhido atravs de um mtodo, que correspondem a uma realidade regional, mas que no entanto se fazem, apenas, linguagem podemos pensar nas afirmaes a Lorenz sobre o dicionrio como antologia lrica. Essas palavras valem ento por si, dado que contm poesia, mas so rigorosamente da regio e so integradas numa narrativa de viagem que transforma a lista num mapa verbal: seguir o nome seguir um rastro, letreado, textualizado, transformado tambm em indicao de

No artigo busca da poesia (Xisto 1970). H mais. pgina 600 [115], Voc encontrar uma verdadeira estrinha, em miniatura, dada s atravs de nomes exatos de arbustos. (...) Conta o pargrafo 10 perodos. O 1 a apresentao de uma moa, no campo. O 2 a vinda de um rapaz, um vaqueiro. O 3 o rapaz cumprimentando a moa. O 4 a atitude da moa; e (o bilo-bilo) o rapaz tentando acarici-la. O 5 bvio. Assim o 6. E o 7 (mo boa...) e o 8 (o rapaz apertando a mocinha). Quanto ao 9: so gonalo sinnimo do membro viril... O 10: a reao da moa, alarmada, brava, aos gritos. (Rosa 2003a: 94).
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leitura e ndice da viagem (a viagem feita livro) o mapa verbal funda, ento, o espao que descreve, num plano recriado em que a dupla funo da poesia enunciao e memria se expe, fazendo do rastro algo que se pode seguir, infinitamente, atravs da poesia sem que ela seja jamais nomeada e sem nunca sair do crculo que separa o espao da linguagem do mar a redor para o qual aponta. Grande Serto: Veredas mostrava j a possibilidade de que um roteiro geogrfico construdo sobre o detalhe potico coincidisse com um roteiro subjectivo: Diadorim me ps o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como sei. (II 24). com base nessa coincidncia que a palavra potica, resguardada pelo silncio do quarto, pode assegurar a sua disponibilidade para a partilha dentro de uma construo que acentua a dimenso dialgica de outros textos atravs da relao entre mestre e discpulo, senhor e enviado. O Grivo repete, em outras retentivas, o que guardou de uma viagem que era j repetio da viagem de ida do Velho invertendo o tempo, em direco sua juventude26, representada pela noiva com que o Grivo pode casar corrigindo, ou seja, na suspenso de tempos que o encontro das viagens de sentido oposto origina, o atraso do tempo, como no encontro tambm contravertido entre Llio e Lina27. A imagem desse impossvel cruzamento a rede de noiva, com varandas de labirinto (I 712), ltima resposta do Grivo ao Velho, que repete a rede por ele trazida de l para o Urubuquaqu. As duas redes (a rede trazida e a rede que no tem fios, I 712) coincidem, a identificao entre mestre e discpulo pode ser feita a ponto de os papis se inverterem e de a transformao operar sobre quem conta (o

Cf. Cleusa Passos: Se tudo contraverte, segundo a observao arguta de Tadeu o vaqueiro mais antigo da fazenda a trajetria do Grivo inverte a de Cara-de-Bronze, pois se faz do presente para o passado, devendo conviver com as renovaes e desdobramentos que implica a volta ao ponto de partida. Tal movimento possibilita expressivos encontros de viagens, dentre eles, a do jovem (geogrfica e onrica), a da memria dos velhos, a da tradio literria etc. (Passos 2002: 86); Sobre a viagem do Grivo como regresso no tempo cf. Passarelli 2007: 80. 27 Agora que voc vem vindo, e eu j vou-mbora. A gente contraverte. Direito e avesso... Ou fui eu que nasci de mais cedo, ou voc nasceu tarde demais. (I 756).

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Grivo, ensinado pelo Velho e pela viagem demudado) e sobre quem ouve. A palavra, sendo j luogo di memoria e di ripetizione, pode, assim, operar como memria partilhada como a carta atrasada de Nhorinh, o mapa de palavras permite, na sua temporalidade suspensa, o encontro dos extremos fora do tempo: Fui e voltei. Alguma coisa mais eu disse!? Estou aqui. Como vocs esto. Como esse gado botado preso a dentro do curral jejua, jejua. Retornei, no tempo que pude, no berro do boi. No cumpri? Falei sozinho, com o Velho, com Segisberto. Palavras de voz. Palavras muito trazidas. De agora, tudo sossegou. Tudo estava em ordem... (I 710).

Do que narra, do que no conta A viagem do Grivo , como dizamos, apresentada atravs de figuras de leitura: letrear o rastro a aco da narrao (e a da leitura, consequentemente, a de rastrear a letra), a textualizao da viagem sendo acentuada atravs da explorao das potencialidades formais da pgina; parece ser nesse sentido que se constri tambm o roteiro, estruturando visualmente uma separao entre gesto e palavra, entre som e viso (atravs do cinema, que os combina). A poesia invertida, anagramaticamente disposta, o sinal mais forte dessa linguagem visvel. Mas a viagem , sobretudo, apresentada como texto incompleto, como forma lacunar, e a que a tenso entre o que texto dispe e a narrao do Grivo ao Cara-de-Bronze se faz mais evidente: texto excludo, a narrao inteira, dobra e segredo que apenas numa situao dialgica parece residir, no pode ser disposta no conto: Do que narra, do que no conta: que ser que ele foi buscar? (I 708); Dito completo? Falta muito. Falta quase tudo. (I 700); ou, mais uma vez: Narrar o Grivo s por metades? Tem ele de pr a juros o segredo dos lugares, de certas coisas? Guardar consigo o segredo seu; tem. Carece. (I 696).

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Reencontramos aqui, na figura do Grivo como narrador que recusa, que aprendeu a narrar sem contar, ou seja que aprendeu o se de segredo (I 710), as tenses focadas na primeira parte desta tese: recorde-se ainda a caracterizao de Joana Xaviel como figura que o que podia, furtava (I 565); a suspeita estava directamente ligada sua capacidade como contadora, detentora de algo que s na relao entre ela e a histria, visualmente, se constitua. Nesse gesto, a feiticeira da palavra despertava nos seus ouvintes o desejo de uma segunda parte, de que o corpo seria o primeiro lugar. Como no exemplo de Com o Vaqueiro Mariano (II 779), a narrativa um acto de resistncia porque a verdadeira parte, intransmissvel, das histrias performa o narrador sem dele se desprender. A materialidade que resiste parece ser, deste modo, a estranha figura da estria em Guimares Rosa, dando corpo a uma tenso violenta entre o desejo de sentido e a sua obstruo. Essa lacuna pautava todos os exemplos da primeira parte atravs da oposio entre closure e interrupo. Jogada contra um limite que a devolve falta que nela tem lugar, a histria revela uma incompletude constitutiva que a prolonga, atravs e alm da sua materialidade, ainda a partir do seu interior. O que assim se configura uma oposio entre uma ideia de transmisso e a resistncia que a histria oferecia aos seus ouvintes/leitores. Nesse gesto de acentuao toda a dimenso do transporte posta em causa: a escrita como veculo de uma oralidade encenada e, tambm, o livro como transporte e suporte da histria. A figura que mais directamente o mostrava era aquela que abertamente representava a sua visibilidade: o mensageiro que perturbava a comunicao atravs de uma negao da concluso como ponto de anulao e cumprimento da situao comunicativa. O Guegue apresenta-se, assim, como figura da subverso da transmisso: desobedincia, reteno e prolongamento ilgico do texto alm do fim eram os seus traos. Se a morte do tigreiro, em Meu Tio o Iauaret, podia ser lida como marcao de um vnculo

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indissolvel entre a histria e a sua materialidade, mergulhando o texto, perante a imposio da morte ao narrador, no vazio da pgina, o mensageiro oferece-nos outra forma de resistncia ao limite: o prolongamento descontrolado do transporte por aco daquele que se recusa a separar-se do recado, a sobrevivncia do texto alm da sua funo. E a movimentao do Guegue apenas repetia o que nos primeiros exemplos se deixava entrever: a sobrevivncia do texto alm de si prprio era possvel, apenas, no interior do circuito que lhe dava sentido. Para que o mesmo texto se transforme na diferena que a repetio institui, essencial que o mensageiro opere a sua deslocao sobre o mesmo quadro de referncias, desestabilizando-as (como vimos fazer o Guegue no seu percurso). Entre a ida e a volta, o texto faz-se outro sendo ainda o mesmo o reconhecimento da diferena de si a si mesmo, nica leitura possvel de um texto levado alm do seu limite, o gesto da releitura. A caracterizao do Grivo faz-se nos mesmos termos: por um lado, o Grivo a figura que retm informao, que conta por metades e que mantm a histria (e a poesia como sua verdadeira parte) no interior da relao privilegiada de interlocuo com o Cara-de-Bronze: Sem a existncia dele o Cara-de-Bronze teria sido possvel algum dia a ida do Grivo, para buscar a Moa? (I 689); do outro, todo o conto se orienta para a curiosidade dos vaqueiros, que querem obter do Grivo uma resposta que d sentido viagem. Nessa interrogao, os vaqueiros opem viagem o laboro (Boa mandatela! A gente aqui, no labro, e ele passeando o mundo-ser..., I 676), s palavras muito trazidas a suspeita de um objecto concreto da busca (Por seguro que deve de ter ido buscar alguma coisa, I 676), o efeito da viagem sendo, para eles, que o Grivo melhorou de sombra, aos olhos do patro, no corpo de uma escritura (I 708).

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A recompensa, tema do conto desde as alvssaras de alforria da segunda epgrafe28, cinde-se tambm, como todos os aspectos centrais da sua construo, na sua verso material e imaterial com base nessa ciso que os vaqueiros se distinguem, dando corpo dupla lgica, que sobrepe a finalidade como limite e a sua superao, que muitos dos exemplos encontrados j encenavam. De entre os vaqueiros que interrogam o Grivo, ser o vaqueiro Sos a assumir a funo explcita de marcao de um desejo de fim: Ento, por fim que finalmente: voc casou ou no casou?! (I 704). Terminada a narrao do Grivo aos vaqueiros, que selada, como vimos, pela referncia ao regresso, dele o comentrio decisivo para a caracterizao da forma do conto: S o chapado dessa conversa fastiada, que quem quisesse podia atalhar por fora, saltando, nem no carecia de ouvir... (I 707). A expresso determinante: o chapado dessa conversa, em que paisagem e palavra se fundem no rastro letreado do Grivo, apresentam-se ao vaqueiro como desvio. O que parece um excurso na verdade a obra, como diria Tristram Shandy (Sterne 1979: 335), contrariando aquilo a que chamar, noutro momento, a vicious taste which has crept into thousands (...) of reading straight forwards (idem: 41). Se nos exemplos que destacmos na primeira parte o gesto de imposio de um final pelos ouvintes era dramatizado como desejo eminentemente violento, aqui a figura de Sos recorda-nos a distino entre ler e no ler de que o prefcio de Schopenhauer, e os livros de Rosa, nos pareciam falar: o vaqueiro que coloca a hiptese de atalhar por fora precisamente aquele que j no estar presente na cena final entre os vaqueiros e o Grivo, em que a dimenso narrativa do conto abertamente convocada e articulada com o chapado de conversa do enviado. Atalhar por fora (imagem contrariada, no meio do conto, pelo atravessamento para o centro da fruta do bicho larvim, que adiante comentarei) a
Sobre a relao entre as epgrafes e os temas do conto ver as teses de Daniel Augusto (2006) e Paula Passarelli (2007).
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negao da lgica dupla de que falvamos, e que se revela plenamente na figura desdobrada, bifurcada, da noiva, entre a noiva do grivo e a outra, segundo a interrupo central: a estria no a do Grivo, da viagem do Grivo, tremendamente longe, viagem to tardada. Nem do que o Grivo viu, l por l. Mas estria da moa que o Grivo foi buscar, a mando de Segisberto Jia. Sim a que se casou com o Grivo, mas que tambm a outra, a Muito Branca-de-todas-as-Cores, sua voz poucos puderam ouvir, a moa de olhos verdes com um verde de folha folhagem, da pindaba nova, da que lustrada. (I 688-89).

O Cara-de-Bronze, pois, mandou o Grivo... buscar Poesia, dizia, como vimos, Rosa a Bizzarri. Como indicava Riobaldo a propsito da cano de Siruiz: O que eu queria saber no era prprio do Siruiz, mas da moa virgem, moa branca, perguntada, e dos ps-de-verso como eu nunca tive poder de formar um igual. (II 116). A afirmao, no entanto, pe em causa a direco da viagem. Se, por um lado, como dizamos a partir de Com o Vaqueiro Mariano, sendo a fazenda um centro, servia qualquer direo (II 790), a viagem de ida e volta tem um rumo (com ponto de destino, I 676), orientando-se para o Maranho, lugar de origem do Cara-de-Bronze. como repetio, invertida, da viagem do Cara-de-Bronze at ao Urubuquaqu29 que a viagem do Grivo se prope, fazendo-se volta dessa ida em aberto. Sobrepostas, as duas viagens instituem um circuito em que, uma vez mais, os dois plos precipitam, a ida fazendo-se volta e vice-versa, a repetio sendo a regra de qualquer movimento. A estruturao teleolgica da viagem (e da leitura) , tambm aqui, negada. Pense-se no modo como a pausa autoral, que comemos por ver no captulo trs e que ser o nosso ponto de chegada, questionava o desejo de um fim:

Maria Lcia Guimares de Faria comenta o modo como, enviando por, o Velho instaura a inverso de papis (Faria 2004: 14).

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No. H aqui uma pausa. Eu sei que esta narrao muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difcil: como burro no arenoso. Alguns dela vo no gostar, quereriam chegar depressa a um final. Mas tambm a gente vive sempre espreitando e querendo que chegue o termo da morte? Os que saem logo por um fim, nunca chegam no Riacho do Vento. Eles, no animo ningum nesse engano; esses podem, e melhor, dar volta para trs. Esta estria se segue olhando mais longe. Mais longe do que o fim; mais perto. (I 687)

J comentei o modo como esta interrupo, que representa aquilo que de mais prximo de uma parbase se pode encontrar na obra de Rosa, parece absorver a funo de seleco que vimos representada no prefcio filosfico, e de que dei como exemplo os prefcios de Nietzsche e Schopenhauer. No primeiro, acentuava-se a temporalidade lenta de uma leitura sem pressa como condio para o acesso ao livro; no segundo, como vimos, a insuficincia do suporte devia ser compensada numa complexa srie de releituras suplementares. A oposio bsica era, nos dois casos, entre ler e no ler; e vimos j como a construo do livro rosiano, tal como a explormos em Tutamia, fazia da releitura, alm do fim, condio necessria para a leitura. Aqui o desejo de chegar depressa a um final feito coincidir explicitamente com o desejo de morte movimento que explormos ao longo de toda a primeira parte e que ganha agora corpo com a representao dos vaqueiros como figuras encenadas de recepo da histria. por isso importante que um dos traos que caracterizam a relao do Grivo com o segredo seja, a par da sua insistncia sobre o percurso de ida-e-volta, que faz dele mensageiro de palavras muito trazidas, a sua representao como aquele que foi alm da morte, que tivesse morrido de certo modo e tornado a viver, todo o santo dia (I 710), cumprindo a ordem do Velho de chorar noites e beber auroras (I 698); percebemos melhor, assim, que a superao da morte (a que se chamar tambm alegria) o gesto da fico recursiva que nestes livros se encena, o que distingue a negao da closure que est aqui em causa da dupla configurao da questo que
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referimos, no captulo um, a partir de David Richter: a forma sem formato de uma fico que recusa um final no se constri isomorficamente sobre o fluxo informe da vida, e sim contra a sua forma necessariamente delimitada. Entende-se assim mais claramente a reaco de Riobaldo ao final caprichado do moo de fora: na vida e na fico, a busca de uma legibilidade orientada para um fechamento resulta, inevitavelmente, no encontro com a morte. A afirmao de uma narrativa aberta, com menos formato, faz-se assim contra essa morte, que no entanto deve ser repetida: a estrutura de Grande Serto: Veredas. Podemos, ento, recuperar de Corpo de Baile uma figura que ainda no referida que se pode considerar imagem de uma recursividade que opera sobre esse limite: refiro-me personagem de Aristeu, louco, contador, danador, desinventado de uma estria, em Campo Geral, figura apolnea que cura Miguilim da sua morte inventada30 atravs, precisamente, do poder das histrias31 e da evocao de uma morte de ida-e-volta (I 495): ... Eu vou e vou e vou e vou e volto! Porque se eu for Porque se eu for Porque se eu for hei de voltar... E isto se canta bem ligeiro, em tirado de quadrilha. (I 497) No momento em que entra em cena, como sublinha Erich Nogueira32, Aristeu desce de volta da Nhang, palavra que, na correspondncia com Bizzarri, Rosa associa a morte personificada (Rosa 2003a: 85). Aristeu vem da morte, como o prprio

Miguilim, dividido de tudo, se levantava mesmo, de repente so, no ia morrer mais, enquanto seu Aristeu no quisesse. Todo ria. Tremia de alegrias. (I 497). 31 Veja-se, a propsito, a bela leitura de Erich Nogueira (2004) na sua tese de mestrado sobre Campo Geral, que refora, a partir da novela, alguns dos pontos que aqui se sublinharam. Nos subcaptulos A resposta de Aristeu (137-145) e A travessia de Miguilim (145-151), Nogueira relaciona a figura de Aristeu com a aprendizagem das histrias por Miguilim como fluxo criador que permite superar a morte. 32 entende-se, na passagem de Campo Geral, que Seo Aristeu vinha chegando do mundo dos mortos, mas no s isso: ele descia de volta deste lugar. (Nogueira 2004: 138).

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indica: nesse ponto reafirma-se o sentido do tratamento da palavra que aqui posto em prtica. A histria que opera, carta que chega fora do tempo, pressupe sempre um vir da morte, que pode ser entendida aqui como exterioridade. Recorde-se que, no dizer dos vaqueiros, alm do crculo do Urubuquaqu s h urubus e estrias (I 678) a fundao que a estria rosiana pressupe, na sua volta alm do fim, tem na coincidncia entre limite e morte a suspenso do mundo e a sua refundao potica. Sair logo por um fim, como parece fazer o vaqueiro Sos, aquilo que o prprio centro do texto nega aos seus leitores: esses podem abandonar a narrao, porque nunca chegaro ao Riacho do Vento. Recorde-se que o que o Velho queria, na formao potica dos seus vaqueiros, era precisamente uma ideia como o vento (I 691) querer um fim, como vimos com Tutamia, parece ento equivaler a no ler; atalhar por fora o chapado de conversa , no fundo, sair do livro que atravs do desvio se faz. Parece ser isso que o Grivo aprende, na sua viagem: S estava seguindo, em servio do Cara-de-Bronze? Estava bebendo sua viagem. Deixa os pssaros cantarem. No ir seja at aonde se for tem-se de voltar; mas, seja como for, que se esteja indo ou voltando, sempre j se est no lugar, no ponto final. (I 705)

Na configurao da viagem do Grivo como repetio invertida da viagem do Cara-de-Bronze, como vimos, a direco perturbada, fazendo da ida do Grivo j um movimento de volta. Mas bebendo sua viagem, o Grivo, tal como o Guegue, que apreciava em excesso a sua viajinha, vai alm da sua funo; e s nessa subverso da ordem a ordem paradoxal do Cara-de-Bronze (ir para trazer a palavra) se pode cumprir. A busca da Poesia, em nome da qual o Grivo est cumprindo lei, depende dessa invalidao da direco que o mensageiro cumpre integralmente no momento em que pressupe uma dimenso intransitiva do transporte. Em cada ponto do seu percurso o
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mensageiro est a ir e voltar e o ponto final (aqui eu podia pr ponto) o encontro dessas direces de sinal oposto. O que aqui se decide, mais uma vez, a indistino entre leitura e releitura, se quisermos recuperar a sobreposio que estabelecemos inicialmente entre espao da viagem e espao do livro. Pense-se ainda numa das hipgrafes de Tutamia, disposta no final do penltimo conto: Se caminhando uma rs vinte passos por segundo, me diga, sendo profundo: quanto ela anda em um ms? COPLA VIAJADORA Resposta: O que ela anda, pouco faz, seja para trs ou para diante a rs caminha o bastante indo para diante ou para trs. (SIMPLES HIPGRAFE) (II 712)

Mas nessa sobreposio entre viagem e viagem que se define o sentido da parbase de Cara-de-Bronze, e que se define, tambm, a sua importncia como ponto possvel de chegada deste percurso. Porque entre as diferentes vozes dos vaqueiros, h uma que se destacar ao longo de todo o texto e que ganhar papel decisivo, na sequncia final, enquanto figura paterna. Ana Maria Machado desdobrou j o nome de Pai Tadeu no seu sentido explicativo, no dilogo final, representando a bno do pai a Cara-de-Bronze como motivo da viagem33. Nesse dilogo, Tadeu finalmente

No entanto, quem diz Deus te abenoe, meu filho (...) no o diz a Cara-de-Bronze, mas ao Grivo, que o interrompe para pedir a bno, medida que o segredo do Velho se ia lentamente revelando. S o Grivo poderia dizer por que queria ser abenoado por esse vaqueiro, a quem sintomaticamente chama de pai. E s ele, o Grivo, poderia responder a uma pergunta hipottica de Carade-Bronze (A beno, quem ta deu?), dizendo Pai Tadeu, e, com essa resposta, transmitir simultaneamente a bno a seu interlocutor. (Machado 2003: 89).

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aperta34 o Grivo levando as duas histrias, viagem e viagem, a contraverter, no futuro e nos passados: Tadeu (compassado, solene): Eu, uma vez, sube dum moo que teve de fugir para muito distante de sua terra, por causa que tinha matado o pai... Pensava que tinha matado o pai: o pai deu um tiro nele ento, pode se defender, ele tambm atirou... E viu o pai cair, com o tiro... Ento, no esperou mais, fugiu, picou o burro... GRIVO: Pai Tadeu... Tomo a beno... Tadeu (no mesmo tom): S mais de uns quarenta anos mais tarde, foi que ele soube: que no tinha matado ningum no...! O tiro no acertou! O pai dele tinha cado no cho, era porque estava s bbado mesmo... GRIVO: Tomo a beno, Pai Tadeu! Tadeu (prosseguindo): ...Com tantos anos assim passados, a moa que era namorada do rapaz j tinha casado com outro, tido filhos... Uma neta dessa moa, que se disse, era de toda e muita formosura... GRIVO: Pai Tadeu... Tadeu: Deus te abenoe, meu filho. GRIVO: Pai Tadeu, absolvio no o que se manda buscar que tambm pode ser condena. O que se manda buscar um raminho com orvalhos... Tadeu: A vida certa, no futuro e nos passados... Mainarte: A vida? Tadeu: Tudo contraverte... (I 712)

O que aqui acontece o encontro das duas linhas que se mantiveram em oposio ao longo de todo o conto35, construindo-se na tenso entre o Grivo e os vaqueiros, e que j relacionei com a oposio entre poesia e prosa. A convergncia das
Cicica: Hem, hem, Grivo? Com esses apertos... (I 712) Daniel Augusto l a oposio entre as duas linhas luz das teses de Piglia sobre o conto: Num conto clssico, esse momento revelaria de modo conclusivo o ponto em que as duas estrias se cruzam, e o leitor seria surpreendido por uma frase (uma rede grande, branca, com varandas de labirinto) que iluminaria as duas, dando-lhes um sentido ltimo e nico. S que Cara-de-Bronze no um conto clssico, mas um conto moderno, e as consequncias dessa frase sobre as duas estrias so bem diferentes, uma vez que ela refora a irresoluo, e traz o no dito para primeiro plano. (Augusto 2006: 19).
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duas histrias, fazendo coincidir a narratividade negada e a narrao da viagem do Grivo, pe em causa o comentrio, no incio deste captulo, sobre a oposio entre caso inteirado em si e a sobre-coisa que Grande Serto: Veredas propunha: se todo o conto se constri sobre uma recusa da histria de Tadeu, ou do resumo de Rosa, esta revela-se no fim, sobrepondo o caso inteirado em si sobre-coisa sobrepondo, ou seja, se quisermos pensar o uso dos termos no romance, a aprendizagem da narrativa junto do senhor com a sua interpretao por Quelemm: na integrao dos dois planos que o romance se faz, conjugando as duas figuras de destinatrio, e fazendo de Quelemm (a leitura sobre) a figura anterior depois que se aprende a contar. tambm isso que aqui acontece: o momento em que a viagem do Grivo e a segunda viagem se cruzam, dando corpo ao que o resumo oferecido a Bizzarri descrevia, o ponto de chegada do texto tambm aqui, depois que a narrativa se d a ver. Neste ponto do texto, o Grivo pode j reconhecer a narrativa e ao mesmo tempo afirmar que o que se manda buscar um raminho com orvalhos: o diferimento da revelao (a noiva a neta da noiva, a rede a rede) j materializou a poesia como a outra, como desvio e no momento em que a lei do pai se revela (a narrativa), a poesia a absorvla, e no o contrrio. A aprendizagem da poesia que o texto pe em prtica j se cumpriu no momento em que a narrativa se impe (no-entender, no-entender, at se virar menino, I 691); agora j possvel aprender a narrar. Como se dizia no centro do conto, quando a advertncia ainda no era legvel, tal como no eram legveis as associaes do centro de Grande Serto: Veredas: estria da moa que o Grivo foi buscar, a mando de Segisberto Jia. Sim a que se casou com o Grivo, mas que tambm a outra, a Muito Branca-de-todas-as-Cores (...) (I 689). No fundo, trata-se de um movimento que j conhecemos: a parbase revelada a posteriori, como sugeri, relanava o leitor para o meio, e institua uma distino no seio daquilo que se deu

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como indiferenciado. O conto oferece-nos uma noiva, que se bifurca em duas a narrativa completando e corrigindo o passado, num gesto que funda a poesia na memria. O momento em que percebemos a bifurcao entre o caso e a sobre-coisa tambm o momento em que a sua aco fundida se cumpriu, no permitindo mais a demarcao dos dois planos. A noiva, no momento em que a revelao acontece, j a projeco metonmica do conto, na sua disposio multiforme e enigmtica de uma prosa que contm poesia.

S se pode entrar no mato E por isso significativo que, mais uma vez, o limite, o ponto de chegada, remeta directamente para um meio que no era ainda legvel no momento da travessia. Se todo o conto Cara-de-Bronze se parece fazer sobre as tenses da parbase, na pausa, tantas vezes referida, que elas ganham a sua forma distintiva. E a pausa traz, tambm, a caracterizao mais directa dos problemas de uma autoria que se mostra na suspenso. Em Cara-de-Bronze, a figurao autoral desdobra-se, dentro e fora do intervalo. construo de um centro intransponvel como ponto de fuga do conto o quarto corresponde, assim, um movimento complexo de questionamento do papel da autoria e da iluso ficcional, que coincidir com a evidenciao de um centro estrutural, reforando a associao do texto parbase referida pelo ndice e articulando, mais uma vez, construo do espao e construo textual. A figura que comanda a interrogao em forma de dilogo apresentada inicialmente como um vaqueiro que vem de fora e vai representar um primeiro nvel de intruso metatextual e de acentuao dos processos de representao: Moimeichego, nome improvvel, composto por quatro formas
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diferentes do pronome pessoal, aparece como forma de inscrio autoral no interior do quadro narrativo. A marcao do espao concorre para essa identificao: Moimeichego integra o crculo exterior dos vaqueiros, distinguindo-se pela vontade de saber e pela arguta interrogao dos princpios representativos que estes pem em prtica. A intuio do potico o objecto para o qual se dirige o esforo maiutico da figura autoral inscrita que, como toda a construo do texto sugere, apenas pergunta e interroga, num movimento de desautorizao. Num determinado momento do interrogatrio, o vaqueiro Adino comenta uma expresso de Moimeichego: o que o senhor est dizendo, engraado: at, se duvidar, parece no entom desses assuntos do Cara-de-Bronze fazendo encomenda deles aos rapazes, ao Grivo... (I 679). Est lanada a primeira figurao auto-referencial do texto: a personagem autoral partilha o entom do objecto de tenso do conto, o seu movimento interrogativo integra a mesma matriz daquilo que se procura descrever como inclassificvel a poesia para os vaqueiros mas que se mostra aqui como reconhecvel. Mais explcita nesse sentido, a pausa narrativa que se insere a meio, como uma parbase, vem reforar essa auto-reflexividade: no centro do texto, o conto interrompese para se dobrar sobre si prprio, interpelando o leitor na voz do narrador que assume a conduo da escrita: No. H aqui uma pausa. Eu sei que esta narrao muito, muito ruim para se contar e ouvir, dificultosa, difcil (I 687). O meio acentua a tenso interrogativa, duplicando a marca autoral que Moimeichego introduzia, mas explicitamente saindo da fico para questionar os dispositivos de representao e a potica interna do texto. A interrupo, a quebra da continuidade no centro da narrativa vem chamar a ateno, mais uma vez, para a inscrio do lugar do irrepresentvel, no nico momento em que a poesia metaforizada atravs do desdobramento da figura da noiva. A parbase recupera a construo figural de um espao inacessvel, que o texto,
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como vimos, impunha atravs do crculo, para a alargar prpria presena autoral Quem j esteve um dia no Urubuquaqu? (I 687) desautorizando Moimeichego, e afectando tambm a primeira pessoa do narrador, que tambm no tem acesso a um conhecimento directo. Do mesmo modo com que afirma um centro em movimento (de quem a histria?) o texto questiona a voz autoral, no momento em que a parbase se interrompe para regressar fico, no momento em que o intervalo se dilui na continuidade: Mas isto so coisas deduzidas, ou adivinhadas, que ele no cedeu confidncia a ningum (I 690). Quer na figura do narrador, quer na figura ambgua de Moimeichego, a figura autoral, dentro do texto e no seu centro, no lugar pleno da parbase, nada mais pode fazer do que interrogar, solicitar atravs de perguntas uma possvel representao que constri o crculo como moldura em torno de um centro vazio, como figura da relao com o enigma, que apenas do enigma se alimenta, sem nele verdadeiramente poder penetrar. Parece ser deste modo (dessarte, destarte) que Cara-de-Bronze se pe em movimento, enquanto texto construdo sobre as formas da prosa, para fazer, criar, delimitar o lugar de uma ideia de poesia, dando corpo tendncia que tem a poesia para ir fugindo resposta que, no entanto, solicita. (Rubim 2003: 170): Quem l j esteve? Estria custosa, que no tem nome; dessarte, destarte. Ser que nem o bicho larvim, que j est comendo da fruta, e perfura a fruta indo para o seu centro. Mas, como na adivinha s se pode entrar no mato at ao meio dele. Assim, esta estria. Aquele era o dia de uma vida inteira (I 688). S se pode entrar no mato at ao meio dele: dentro da construo do territrio, o centro do conto , tal como em Bauci, um espao de negao. Ao deixarmos de entrar no mato, como na adivinha, comeamos j a sair dele36; s que nessa passagem

Existe uma charada de criana que bem interessante: At que ponto um cachorro entra no mato? (...) A resposta: o cachorro entra no mato at ao meio. S possvel entrar no mato at ao meio. Se

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deixamos a descrio do mundo (entrar no mato) para uma descrio da linguagem. De uma aco atravessar o mato a frase desloca-se, sem transio, para um jogo entre expresses usadas para comentar o mundo, que o estrutura numa forma orientada. O meio, ento, s pode ser o ponto em que se deixa de entrar para comear a sair. Os verbos, contguos, fazem do terceiro termo que os define uma fronteira sem lugar, presa numa relao entre extremos. E o problema desse terceiro termo , no fundo, aquele a que se tentou dar resposta ao longo destas pginas. Era disso que falava Riobaldo ao comentar a sua carta a Otaclia, referida no captulo anterior: Escrevi metade. Isto : como que podia saber que era metade, se eu no tinha ainda ela toda pronta, para medir? Ah, viu?! Pois isto eu digo por riso, por graa; mas tambm para lhe indicar importante fato: que a carta, aquela, eu somente terminei de escrever, e remeti, quase em data dum ano muito depois... (II 311) Sabemos j que sair, aqui, equivale a sair do livro. Por riso, por graa, como na adivinha, indica-se importante fato: a temporalidade diferida da identificao do lugar do meio, que as indicaes de leitura de Tutamia explicitamente sublinhavam. O que a adivinha encena e indica, ento, no mesmo gesto com que pe em causa a referncia, a prpria elusividade do meio na travessia. A permanncia no meio seria possvel apenas na suspenso paradoxal e impossvel do tempo e da sua orientao37, de que o meio-a-meio em que o pai de A Terceira Margem do Rio executa a inveno de se permanecer (II 409) a figura mais evidente. A partir daqui, toda a estrutura de Cara-de-Bronze s pode ser orientada por essa tenso negada: a da apreenso impossvel do lugar da poesia, ou da palavra, aparente espao de
o cachorro for alm do meio, ele no estar mais entrando, mas j estar saindo. Simples, no? (Otsu 2006: 40). 37 Finazzi-Agr sugere que a adivinha evoca a imagem do labirinto: nas entrelinhas, aquilo que se entrev , de fato, a figura do labirinto, evocada, aqui, atravs da imagem da adivinha, do inigma, do enigma em que a gente entra como em uma selva e de que, depois, no consegue sair: j que a sua verdade o meio, a sua razo est num centro escuro e terrvel assim como no prprio centro da estria de Cara-de-Bronze que encontramos esta pausa. esse o fatal e inelutvel perigo de viver: o de lidar, pelo prprio fato de existir, com o mistrio (Finazzi-Agr 2001: 40) o perigo, porm, na imagem da adivinha, parece residir mais na sada do que na permanncia.

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convergncia e de suspenso, sem lugar, no entanto, no binarismo das estruturas de sada e de chegada o exterior desse espao constituindo-se apenas enquadramento, ou moldura, na tentativa indirecta de rondar esse lugar elusivo. E, tal como com o bicho larvim, a tenso em direco ao centro, desviante, atrasada, j est comendo da fruta o percurso em direco ao lugar da histria a prpria histria, que se nega e revela atravs dessa moldura dia de uma vida inteira. Parece ser esse o espao da parbase em Cara-de-Bronze e em Corpo de Baile: o espao de um hiato, de uma interrupo, que solicita a estrutura do texto, que a mostra, mas apenas para a relanar como tenso orientada para o lugar suspenso que o prefixo par- introduz. Percebe-se ento que, na complexa estrutura do texto, no centro sem lugar, no centro ausente, lugar da coincidncia entre narrativa e comentrio, que o enviado e o mestre se podem encontrar e que a poesia pode ter lugar, no centro que os elementos de uma oposio entre interior e exterior se contaminam sem, porm, desfazer a tenso que faz do texto apenas moldura em torno desse espao, referncia deslocada, linguagem que indica sem representar. O centro de Cara-de-Bronze a parbase da parbase que se faz suspenso permanente na reproduo concntrica dos intervalos sobrepostos. E ento atravs da figura do centro que a prpria noo de travessia se reprope, como intervalo e trnsito entre dois pontos: articulada com a descrio da viagem do Grivo, podemos perguntar se o que a adivinha sobre o mato nos diz no est prximo de um dos motivos estruturantes de Grande Serto: Veredas a que j recorremos para interrogar a estrutura diferida do livro em Rosa e que pode ser lido, neste momento, como o n textual em que deixa de ser possvel distinguir entre comentrio do livro, do mundo e da leitura:

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Por que era que eu estava procedendo -toa assim? Senhor, sei? O senhor v pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregvel, num mim minuto, j est empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para l de tantos assombros... Um est sempre no escuro, s no ltimo derradeiro que clareiam a sala. Digo: o real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a gente no meio da travessia. (II 46) O meio da travessia, ou do mato, aqui, o ponto ao lado, sem lugar e deslocado, temporalmente inacessvel, em torno do qual se constri toda a obra. tambm, em Grande Serto: Veredas, o espao impossvel da presena ausente de Deus: Travessia, Deus no meio (II 199). A insistncia da narrao, em Cara-de-Bronze, sobre figuras da pausa, sobre o esforo de ir mais longe do que o fim (I 687) ou de vir aqum (I 711) reflectida no modo como o Grivo desautoriza a vontade dos vaqueiros de saber da viagem (Ningum no enxerga um palmo atrs de seu nariz..., I 711), fugindo narratividade, mensageiro que prende a carta no circuito so formas de orientao do texto e do leitor para esse no-lugar do centro, que parece ser tambm o espao da poesia (o raminho com orvalhos) que o Grivo foi buscar o espao da palavra fora do tempo, verdadeira parte que resiste na dobra do livro. E que o texto pode apenas interrogar, de fora para dentro, fazendo-se apenas exterior daquilo a que no pode dar lugar, recursivamente devolvendo a leitura a esse centro mais longe do que o fim; mais perto. Parece ser esta a ideia da forma em Guimares Rosa.

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ROTEIRO

Nada em rigor tem comeo e coisa alguma tem fim, j que tudo se passa em ponto numa bola; e o espao o avesso de um silncio onde o mundo d suas voltas. Estas Estrias

For I do not stop now, I stopped at the time when I began.

Sren Kierkegaard, Either/Or

Alice thought to herself: I dont see how he can ever finish if he doesnt begin. But she waited patiently. Alice in Wonderland

Escrevi metade. Isto : como que podia saber que era metade, se eu no tinha ainda ela toda pronta, para medir? Ah, viu?! Grande Serto: Veredas

So that this thread of Ariadnes implied that even victory over the monster would be vain, unless you could disentangle yourself from this web also. John Ruskin, Fors Clavigera

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II

At any rate, it is pleasant to read about whales through their own spectacles, as you may say. Herman Melville, Moby Dick

and having heard that when a man in a forest thinks he is going in a straight line, in reality he is going in a circle, I did my best to go in a circle, hoping in this way to go in a straight line. Samuel Beckett, Molloy

Books you were going to write with letters for titles. Have you read his F? O yes, but I prefer Q. Yes, but W is wonderful. O yes, W. James Joyce, Ulysses

H, porm, que sou um mau contador, precipitando-me s ilaes antes dos fatos, e pois: pondo os bois atrs do carro e os chifres depois dos bois. Primeiras Estrias

III

Join the extremes and you will find the true middle. Friedrich Schlegel, Ideen

Of such a letter, Death himself might well have been the post-boy. Herman Melville, Moby Dick

mal ver que o centro do assunto seja ainda de indiscusso, conformemente?

Estas Estrias

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