O saber histrico escolar sobre as mulheres e relaes de gnero nos livros didticos de histria

Cristiani Bereta da Silva*

Resumo: Este artigo busca discutir e problematizar algumas questes relacionadas forma como a histria das mulheres e as relaes de gnero foram incorporados (ou no) como saberes histricos escolares nos livros didticos de Histria, nos ltimos 20 anos. A anlise dos livros didticos a partir do gnero pode e deve contribuir para que estes livros, ao incorporar mudanas, possibilitem, tambm, a reviso de comportamentos normativos, preconceitos e discriminaes erigidos sobre diferenas. Palavras-Chave: Gnero. Saber Histrico Escolar. Livro Didtico. Abstract: This article searchs to argue about some questions related to the form as the history of the women and gender relations had been incorporated (or not) as historic knowledge in didactic books of History in the last 20 years. The analysis of didactic books from a gender approach, when incorporating changes, may contribute to the revision of normative behaviors, preconceptions and discriminations erected on differences. Keywords: Gender. Historic Knowledge. Didactic Books.

Cristiani Bereta da Silva , Doutora em Histria e professora do Departamento de Histria da Universidade do Estado de Santa Catarina.

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PERROT, Michelle. Os excludos da Histria: operrios, mulheres e prisioneiros. 2. ed. Traduo Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p.185.

O ofcio do historiador um ofcio de homens que escrevem a histria no masculino. Os campos que abordam so os da ao e do poder masculinos, mesmo quando anexam novos territrios. Econmica, a histria ignora a mulher improdutiva. Social, ela privilegia as classes e negligencia os sexos. Cultural ou mental, ela fala do Homem em geral, to assexuado quanto a Humanidade. Clebres piedosas ou escandalosas -, as mulheres alimentam as crnicas da pequena histria, meras coadjuvantes da Histria!1

Do livro didtico invariavelmente polmico - j se disse muita coisa: que fundamental ao trabalho docente e escolarizao; que perpetua um ensino tradicional; que o primo pobre da literatura e rico das editoras; que possui problemas de contedo, lacunas e erros conceituais e/ou informativos, etc. J se disse tanto que ao iniciarmos uma leitura cujo objeto de discusso o livro didtico, acompanha-nos certa sensao de dj vu. Ou seja, parece que no h nada muito novo a ser dito sobre os livros didticos, especialmente se considerarmos os de Histria, talvez os mais pesquisados dentre os pesquisados. Propor um exerccio de reflexo sobre o modo como as mulheres, gnero, papis sexuais esto sendo incorporados como saberes escolares nos livros didticos de Histria, tambm pode provocar certas reaes... Mulheres? Gnero? Livros didticos de Histria? Quase posso sentir o olhar de enfado! Portanto, ao empreender essa anlise, enfrento, aqui, um duplo desafio: tentar convencer eventuais leitores e leitoras de que, como objeto de estudo, o livro didtico tem ainda a oferecer muitas possibilidades de investigao: de prticas de leitura s prticas de ensino; sobre o cotidiano e construo de saberes escolares (dentre outras questes que se articulam a dimenses sociais, culturais e econmicas). Alm disso, os diferentes lugares ocupados pelo livro didtico na histria da escolarizao no Brasil, passada e presente, faz desse objeto cultural importante fonte de pesquisa. E embora, num primeiro momento, possa parecer

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uma discusso carregada de obviedades afinal, as lacunas e fragilidades referentes aos contedos do livro didtico so evidentes e h muito discutidas -, voltar a algumas questes sobre este tema pode contribuir para a reflexo de como as mulheres, sua histria e, tambm, o vasto territrio no qual se movimentam, vem sendo organizado e tambm (re) construdo como saber histrico escolar, nas ltimas dcadas. Acredito, muito em funo de uma opo poltica, que ainda no foram feitas perguntas ou, mesmo, se falou suficientemente, nem sobre os saberes histricos escolares organizados atravs dos livros didticos, e muito menos como estes saberes na histria ensinada vm sendo (re) construdos sob a perspectiva de gnero. Ou seja: uma preocupao relativamente recente, tanto do ponto de vista histrico quanto pedaggico. Portanto, como possvel perceber, no vou prometer novas perguntas, e nem mesmo um novo olhar. Mas vou evitar ficar apenas apontando o dedo inquisidor (embora politicamente concorde que tambm seja importante) sobre as lacunas dos livros didticos em relao aos temas relacionados histria das mulheres e gnero, ou sobre as representaes reconstitudas sobre os papis sexuais em seus textos. Antes, discutirei algumas questes relacionadas forma como a histria das mulheres e as relaes de gnero foram incorporadas (ou no) esteira das demandas do mercado consumidor e s exigncias por mudanas e incorporao dos novos temas e problemas da Histria, nos livros didticos, nas ltimas dcadas. O livro didtico e o saber histrico escolar Mesmo sendo familiar ao cotidiano escolar j h algum tempo, o livro didtico no pode ser considerado um objeto cultural de fcil definio. Circe Bittencourt lembra que essa dificuldade deve-se prpria complexidade da obra, caracterizada pela interferncia de diferentes sujeitos em sua produo,
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BITTENCOURT, Circe. Ensino de Histria: fundamentos e mtodos. So Paulo: Cortez, 2004, p.301.

Sobre esta e outras definies de livro didtico, ver: BATISTA, Antnio Augusto Gomes, 1999, p.542.

BITTENCOURT, Circe. Livro didtico e conhecimento histrico : uma histria do saber escolar. So Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 1993, p.25. (Tese de Doutorado). Idem.

circulao e consumo. Alm, claro, das funes bem diversificadas que pode assumir, dependendo das condies, lugar e tempo em que produzido e utilizado nas diferentes situaes escolares2. Embora partindo destas consideraes, aqui, livro didtico entendido como aquele que, em geral, pensamos quando a ele nos referimos, ou seja, o material impresso, empregado para o desenvolvimento de processo de ensino e de formao, e que, desde sua concepo, produzido tendo em vista tanto as finalidades escolares quanto o mercado escolar.3 No Brasil, o livro didtico surge sob o abrigo do Estado, no incio do sculo XIX. Inicialmente - para atender s necessidades de um sistema educacional que se organizava -recorreu-se s tradues e/ou importaes; em seguida, como parte de polticas educacionais mais efetivas, a autores nativos para produzir textos. O abrasileiramento, porm, da produo didtica, s ocorreria no final do sculo XIX e primeiros anos do sculo XX. Ao analisar a produo didtica ao longo do sculo XIX, Circe Bittencourt mostra que o livro didtico, num primeiro momento, destinava-se prioritariamente ao professor, devendo assegurar a este o domnio de um contedo bsico a ser transmitido aos alunos e garantir a ideologia desejada pelo sistema de ensino 4. Segundo o mtodo imaginado para as primeiras dcadas do sculo XIX herdeiro de uma concepo de educao do sculo XVIII -, os professores deveriam fazer ditados, e os alunos copiariam trechos ou ouviriam as prelees em sala de aula. 5 Somente no decorrer do sculo XIX e primeiros anos do sculo XX, o livro didtico passaria a ser considerado, tambm, como obra a ser consumida diretamente por crianas e adolescentes, passando estes a ter o direito de posse sobre ele. A partir da dcada de 1960, com o incio do processo de massificao do ensino brasileiro, os antigos manuais escolares tambm passariam por outro processo: o de transformao nos modernos

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livros didticos. Mesmo para olhares pouco cuidadosos (ou menos treinados), a observao da trajetria do livro didtico no Brasil um exerccio que pode nos revelar o quanto este objeto cultural mudou. No foram apenas revises em relao aos contedos e propostas de atividades; foram transformaes importantes em sua prpria feitura, que passou de uma produo praticamente artesanal a uma produo em escala industrial, com a implantao de uma poderosa indstria editorial. A partir de 1970, os livros passam a obedecer alguns padres de consumo que vo alterar no apenas seu tamanho, como tambm, e principalmente, sua apresentao grfica: linguagem utilizada, formatao dos textos, quantidade de imagens, uso de variadas cores, tipos de letras, etc. O livro didtico de Histria publicado entre as dcadas de 1970 a 2000, muito pouco se parece com aquele anterior dcada de 1960. Como objeto e produto cultural, alm de inscreverse numa longa tradio, o livro didtico contm um sistema de valores, de determinadas idias, de uma cultura. Nesse sentido, no pode e nem deve ser pensado em separado - tanto na sua elaborao quanto na sua utilizao - das circunstncias e condies histricas de seu tempo. Alvo de vigilncias e de crticas, no se pode discordar do importante lugar ocupado por esse impresso na histria da escolarizao no Brasil, passada e presente. Para Antnio Batista, alm de o livro didtico constituir-se na principal fonte de informao impressa utilizada pelas populaes escolares - uma utilizao que se intensifica quanto menor o acesso dessas populaes a bens econmicos e culturais , parece ser o principal impresso em torno do qual se organiza e se constitui a escolarizao e o letramento para parte significativa da populao brasileira6. Cotidianamente, o que se observa a utilizao do livro didtico pelos professores e professoras independente de seu uso em sala de aula para a preparao de suas aulas em diferentes nveis de

BATISTA, Antnio Augusto Gomes. Um objeto varivel e instvel: textos, impressos e livros didticos. In: ABREU, Mrcia (Org.). Leitura, histria e histria da leitura . Campinas, SP: mercado de Letras: Associao de Leitura do Brasil; So Paulo: Fapesp, 1999, p.531.

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Sobre como os/as professores/as de histria utilizam o livro didtico ver: SOUZA, Ivonete da Silva. A autoridade da fonte: como os professores de histria utilizam o livro didtico. Florianpolis: Centro de Cincias da Educao, Universidade Federal de Santa Catarina, 2001. (Dissertao de Mestrado).

escolarizao, quer para fazer o planejamento do ano letivo, quer para sistematizar os contedos escolares, ou simplesmente, como referencial na elaborao de provas e atividades. A maior parte das crticas em relao ao uso do livro didtico reside justamente no fato de que, ao contarem com o livro didtico como suporte e aliado didtico-metodolgico, muitos profissionais (certamente em funo de suas condies de trabalho, como a carga horria excessiva, por exemplo) acabam quase que deixando outras contribuies de lado. Ou, mesmo, de manter uma postura mais crtica e vigilante em relao aos textos e imagens nele contidos. Por outro lado, embora a utilizao do livro didtico em sala conduza o/a professor/a a fazer certas escolhas referentes a contedos e metodologias, no se est falando, aqui, numa relao de subordinao dos professores e professoras em relao aos conhecimentos, representaes, discursos contidos nestes livros.7 Certamente, esta relao implica em diferentes usos, bem como a criao de exerccios de subverso da organizao do contedo e atividades, inicialmente proposto pelo impresso. A abordagem pretendida outra: considera-se o livro didtico portador e veculo de determinados saberes histricos. Constituindo-se, nesse sentido, importante instrumento na formao da conscincia histrica de crianas e adolescentes, em seus usos diversos. Alm disso, como objeto e produto cultural traz consigo pedagogias que inscrevem padres normativos e hegemnicos sobre os sujeitos, suas relaes, comportamentos, etc. Fazse necessrio, portanto, pensar e analisar como temas relacionados s mulheres, assim como os papis sexuais vm sendo abordados e construdos como saber histrico escolar nos livros didticos de Histria. E ainda, questionar: o que a leitura dos livros didticos de Histria tem a dizer sobre a produo de diferenas e desigualdades de gnero? Quais os discursos que subsidiam os contedos, as infor maes e,

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principalmente, as explicaes acerca das diferenas e desigualdades entre homens e mulheres, nas histrias narradas e reconstitudas nestes livros? O ensino de Histria e as prticas que o envolvem historicamente tm sido tomados como significativos objetos de estudo e investigao de historiadores/as da educao, nas ltimas duas dcadas. Essas produes fazem parte das pesquisas e discusses sobre a histria das disciplinas escolares realizadas por pesquisadores/as, sobretudo franceses/as e ingleses/ as, que tm privilegiado os processos de elaborao dos currculos, de construo de procedimentos metodolgicos e da definio de polticas voltadas para o ensino de determinadas disciplinas nas escolas, em diferentes nveis de escolarizao. A investigao histrica das disciplinas escolares, nos ltimos anos, tem procurado desvendar no apenas os processos de sua constituio e de consolidao, como, tambm, as modalidades de sua difuso e apropriao, sejam por diferentes propostas curriculares ou por livros didticos e publicaes educacionais. Recentemente, o livro didtico vem sendo incorporado como importante fonte de anlise para se investigar a escolarizao dos saberes, e de como seu ensino tem sido organizado e praticado ao longo do tempo. No final da dcada de 1970 e ao longo da dcada de 1980, as pesquisas realizadas sobre o livro didtico de Histria destacavam o papel poltico e ideolgico presente nos contedos escolares. A conjuntura poltica deste perodo serviu de base para uma srie de pesquisas que buscaram flagrar, nos livros didticos e paradidticos brasileiros, a ideologia subjacente ao regime militar. Segundo Kazumi Munakata, entre as dcadas de 1970 e 1980 foram publicados - entre artigos e livros - treze textos que analisavam a ideologia presente nos contedos veiculados nos livros didticos de Histria.8 A partir da dcada de 1990, outras abordagens, que no apenas as ideolgicas, passaram a ser alvo

MUNAKATA, Kazumi. Histrias que os livros didticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 6. ed. So Paulo: Contexto, 2005, p. 271.

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Entre os trabalhos, podem ser citados: BITTENCOURT, Circe. Ptria, Civilizao e Trabalho. So Paulo: Edies Loyola, 1990; FONSECA, Thas Nvia de Lima e. Ver para compreender: arte, livro didtico e a histria da nao. In: SIMAN, Lana Mara de Catro; FONSECA, Thais Nvia de Lima e (orgs.) Inaugurando a Histria e construindo a Nao. Discursos e imagens no ensino de Histria . Belo Horizonte: Autntica, 2001. BITTENCOURT, Circe. 2004, op. cit., p.304. Considerando apenas os livros didticos de Histria, cito, para ilustrar, os trabalhos de MACHADO, Vanderlei e LOHN, Reinaldo Lindolfo. Gnero e imagem: relaes de gnero atravs das imagens dos livros didticos de Histria. Gnero : Ncleo Transdisciplinar de Estu-dos de Gnero, v.4, n.2, p.119-134. Niteri/RJ: Eduff, 2004 e FERREIRA, ngela Ribeiro. Histria das mulheres no ensino de Histria do Brasil: uma anlise das abordagens do livro didtico. Anais eletrnicos do XXIII Sim-psio Nacional da ANPUH, 2005. In: www.anpuh.uepg.br/ xxiii_simpsio/anais/ textos/angela%20ribeiro% 20ferreira.p.d.f. Acesso em 12 de agosto de 2006. Essas leituras foram realizadas por conta da pesquisa O ensino de Histria e a escolarizao de diferenas e desigualdades de gnero no espao escolar, desenvolvida, com apoio institucional, pelo Grupo de Pesquisa Relaes de Gnero e Famlia Centro de Cincias da Educao

das preocupaes de pesquisadores/as, tais como a relao entre contedos escolares e acadmicos e ausncias ou esteretipos de grupos tnicos ou minoritrios, dentre tantos outros. Nos ltimos anos, as pesquisas realizadas sobre o livro didtico de Histria tm investigado os discursos veiculados sobre determinadas noes de nao, cidadania, identidade, entre outros. 9 E, embora se perceba certa tendncia nas pesquisas em identificar lacunas relativas a determinados temas ou sujeitos histricos nestes livros10, ainda so relativamente poucas e esparsas as investigaes que tenham como objeto de estudo os livros didticos sob a perspectiva analtica de gnero.11 Ultimamente, tenho me detido em leituras bastante prazerosas de dezenas de livros didticos de Histria brasileiros, 12 e posso afirmar que as mulheres certamente no estiveram/esto ausentes em grande parte deles. bem verdade que, na grande maioria das publicaes passadas, elas no passaram de citaes: mes, esposas ou filhas de alguns ilustres personagens histricos. Em outros, so heronas, donas de grandes feitos e, assim, reverenciadas. Porm, como mercadoria, o livro didtico precisa adaptar-se demanda, como bem lembrou Munakata. 13 E a demanda, a partir da dcada de 1980, mas, principalmente, no decorrer da dcada de 1990, em relao a disciplina de Histria, foi no sentido de valorizar diferentes relaes, sujeitos e aes histricas: mulheres, negros, indgenas, movimentos sociais, etc, bem como abordagens que privilegiassem a reflexo crtica, a formao de uma conscincia histrica, a promoo da cidadania, dentre outras questes. Convm lembrar que estas demandas foram criadas a partir de diferentes lugares. A ampliao das pesquisas histricas e do repensar do ensino, acompanhado por um processo de alteraes nas relaes entre o conjunto da Indstria Cultural e a Academia, contriburam para a construo de um movimento que passou a exigir mudanas e renovao dos livros

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didticos de Histria.14 Os debates acadmicos que passaram a ser travados, sobretudo a partir da dcada de 1980 sobre movimentos sociais, feminismos, histria das mulheres e posteriormente gnero e a prpria e conveniente participao da indstria editorial nesses debates tambm fizeram parte desse movimento. Alm, claro, da emergncia de polticas pblicas educacionais, como as reformas curriculares na dcada de 1980 e os Parmetros Curriculares Nacionais para os nveis Fundamental e Mdio - 1997 e 1998 - respectivamente, bem como o Programa Nacional do Livro Didtico criado pelo Decreto 9.154 de 01/08/1985. O PNLD foi importante para a configurao de olhares crticos e vigilantes sobre os livros didticos, pois passou a estabelecer recursos regulares para sua compra e distribuio em todo o Pas. Dentre outras medidas, a partir de 1996 passou a submeter, primeiramente, livros didticos, e, em seguida, colees didticas inscritas no programa, a avaliaes sistemticas. Os resultados destas avaliaes so divulgados nos Guias de Livros Didticos distribudos nacionalmente para as escolas, com o objetivo de orientar professores e professoras na escolha do livro didtico. Em relao aos livros de Histria, especificamente, a preocupao com a renovao historiogrfica est explicitada como um dos critrios de avaliao das colees didticas, no PLND de 2005 e 2007. 15 A necessidade de incorporar renovaes historiogrficas como os novos temas e problemas histricos, dentre eles a histria das mulheres, aliada ao prprio desenvolvimento da mercadoria livro didtico nos ltimos anos, pode revelar, contudo, situaes singulares e, tambm, algumas armadilhas. Os livros publicados a partir da segunda metade da dcada de 1990 em diante certamente mudaram aspectos relacionados aos seus contedos e metodologias, e se preocuparam em abrir espaos para

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UDESC. Foram pesquisados cerca de 30 livros didticos de Histria, publicados entre as dcadas de 1930 a 2000. MUNAKATA, Kazumi. 2005, op. cit., p.274. FONSECA, Selva Guimares. Caminhos da Histria Ensinada . Campinas/SP: Papirus, 1993.

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Ver: avaliao de livros didticos em www.fnde.gov.br.

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ABUD, Ktia. Parado no Tempo. Nossa Histria. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, ano 1, n.. 9, julho de 2004, p.51.

outras discusses no campo da Histria. Contudo, as alteraes, no campo da renovao e incorporao historiogrfica, passaram a ser realizadas a partir de inmeros links, boxes, textos dentro de outros textos, bem como com uma pluralidade de imagens - que hoje caracterizam os livros didticos de modo especial. Esses recursos, de certa forma, abriram apenas parnteses para que questes que envolvam aspectos da vida cotidiana, privada e, assim, por associao histrica, da histria das mulheres e das relaes de gnero, fossem abordadas. A leitura de algumas colees de livros didticos de Histria, publicadas entre final da dcada de 1990 e incio de 2000, certamente permite constatar avanos tericos e metodolgicos incorporados aos textos didticos. Porm, no obstante estas constataes, essa mesma leitura pode revelar, tambm, algumas incmodas permanncias, ainda presentes nos textos escolares. Um breve exame dos livros didticos aprovados pelo PNLD revela que, mesmo incorporando recentes avanos tericos, o ensino de Histria preserva marcos cronolgicos estabelecidos ainda no sculo XIX. Para Ktia Abud, essa permanncia deve-se ao enraizamento, em nossa cultura em quase dois sculos de ensino de Histria , de uma tradio evolutiva, cronolgica e eurocntrica, que as reformas realizadas nesse perodo no conseguiram superar. Ainda segundo esta historiadora, a maioria das escolas e professores estaria presa aos antigos padres herdados dos vetustos Imperial Colgio de Pedro II e IHGB. 16 Penso que reside nessa dificuldade - a de superar a tradio qual o saber histrico escolar est historicamente atrelado algumas das armadilhas em relao histria das mulheres e gnero (restringemse, aqui, em funo do objetivo do texto, mas certamente devem-se citar, tambm, negros, indgenas e tantos outros sujeitos e/ou grupos sociais). Evidentemente que houve esforos, porm esses

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esforos realizaram, de certa forma, uma operao de incorporao que se revela problemtica. Ou seja: reuniram-se os chamados novos temas e problemas a saberes histricos j consagrados nos livros didticos, e que, mesmo sendo construdos e reconstrudos constantemente, revelam ritmos substancialmente mais lentos para mudanas efetivas do ponto de vista epistemolgico. Ao incorporar temticas que envolvem mulheres e relaes de gnero como apndices da histria geral atravs de textos complementares -, expem, paradoxalmente, permanncias, ao invs de mudanas. Mesmo depois de anos de contestaes de movimentos feministas que remontam as dcadas de 1960/70, todo o conjunto de estudos, discusses e debates travados a partir de pesquisas, encontros e simpsios; os novos temas e problemas da pesquisa histrica; at mesmo as iniciativas de transversalizar gnero e sexualidade nas disciplinas escolares dos Parmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental; entre outras instncias, as mulheres parecem permanecer como um grupo desviante entre os saberes histricos escolares, ao passo que os homens ainda ocupam a base da elaborao da regra. A histria das mulheres e, mesmo, as formulaes sobre as diferenas e desigualdades de gnero, so, ainda, adendos da histria geral, muitas vezes incorporadas e abrigadas sob o guarda-chuva das minorias tnicas, nacionais, religiosas ou sexuais. Textos e imagens presentes nos livros didticos apresentam prticas sociais que configuram como dadas, situaes que envolvem sexo e gnero, naturalizando assim homens e mulheres em papis normativos, inscrevendo-os como sujeitos a-histricos que atuariam na histria a partir de atitudes e condies socialmente preestabelecidas. De modo geral, os livros didticos utilizados nas escolas trazem apropriaes persistentes de imagens que informam um mundo ainda bastante masculino, de raa branca, adulto, cristo,
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heterossexual; de grupos que vivem em cidades, de sujeitos que esto trabalhando, que so magros, sadios, entre outros padres hegemnicos. Nesse sentido, portanto, devem, cada vez mais, ser analisados como pedagogias que inscrevem modelos normativos. A grande maioria das histrias acaba por fazer circular, nas escolas, representaes de modelos tradicionais de famlia: pai, me, uma filha e um filho, todos brancos e perfeitos, representando papis fixados em determinados momentos da histria, e ainda muito pouco problematizados em livros didticos, de forma geral. Investigar estas questes constitui-se numa maneira de perceber o lugar das prticas educativas na construo, hierarquizao e reposicionamento de papis tradicionais de gnero, no processo de escolarizao dos indivduos.

Doces Cabras ??? A Coleo Nova Histria Crtica Crtica. Um estudo de caso.
A coleo Nova Histria Crtica, publicada a partir de 1998, pode ser considerada o maior sucesso editorial na rea do livro didtico na atualidade. Assim como tantas outras, a coleo, graficamente, bem cuidada, possuindo uma srie de textos, hipertextos e muitas imagens. Diferencia-se das outras colees, contudo, pela linguagem irnica e humor presentes em pequenos comentrios e caricaturas, e pelas opinies livremente expressas pelo autor ao longo da obra. O professor Mrio Furley Schmidt, autor da coleo, e tambm de outros livros didticos, lecionou, durante muito tempo no ensino Fundamental e Mdio na rede de Colgios Itapuca, em Niteri/RJ, cidade onde reside. Nos ltimos 10 anos, porm, tem se dedicado exclusivamente pesquisa e elaborao de material didtico, todos publicados pela editora paulista Nova Gerao. Inscritos para o PNLD de 2002, os livros da coleo Nova Histria Crtica alcanaram o segundo lugar no ranking dos mais solicitados e, em

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2005, o primeiro lugar. Segundo a editora, desde a primeira edio j foram vendidos mais de 10 milhes de exemplares para todo o Brasil, tanto para atender rede pblica quanto a privada. Em Santa Catarina, cerca de 70% das escolas pblicas do Estado escolheram os livros da coleo, em 2005.17 Tanto sucesso tambm atrai polmicas. Aps inscrio no PNLD de 2002, a coleo e seu autor viram-se envolvidos em debates sobre os contedos e opinies explicitadas nos textos dos livros, visivelmente inspirados no Marxismo. Uma rpida busca na internet pode informar sobre o tom desses debates, que incluem, at mesmo, peties de protesto enviadas ao MEC.18 Uma reportagem publicada no Caderno Vida Urbana, do jornal Dirio de Pernambuco, em maio de 2002, aborda parte destas discusses:
Qual a Histria que os jovens brasileiros esto aprendendo? Pelo menos para cerca de 3,4 milhes de alunos de 5 a 8sries do Ensino Fundamental, a disciplina est sendo vista sob uma tica que vem gerando polmica. O alvo das discusses o professor Mario Furley Schmidt, autor da coleo Nova Histria Crtica, da editora Nova Gerao, que vem enfrentando reaes em todo o Pas por conta do contedo e das opinies explicitadas em sua obra. Ironia, sarcasmo e linguagem agressiva do o tom dos livros, aliados a uma viso histrica baseada na luta de classes, visivelmente inspirada no Marxismo. 19

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Informaes gentilmente disponibilizadas pela Editora Nova Gerao, atravs de contatos estabelecidos via correio eletrnico e, tambm, pelo telefone. Alguns dados sobre a compra dos livros pelo governo podem ser conferidos no site www.fnde.gov.br. Apenas como ilustrao, ver as seguintes pginas na internet: www.escolasempartido.org/ ?id=38,1,article,2,11, sid,1,ch; www.projetoreeducar.org.br/ p r o t e s t o . h t m ; w w w.vo zdasbeir as.com/ index.asp?idEdicao=62&id= 2010&idSeccao=505&Action= n o t i c i a ; w w w. m o n t f o r t . o r g . b r / p e r g u n t a s / livrohistoria.html.

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Na seqncia da reportagem, h uma srie de depoimentos de especialistas, tecendo crticas sobre a coleo; e, em outra parte, a reao de leitores defendendo a abordagem dada por Mrio Schmidt em seus textos, como, por exemplo:
As crticas coleo Nova Histria Crtica de M. Schmidt parecem partir de pessoas desinformadas. Um dos crticos diz que o autor trata o estudante como criana. Ora, e o que voc acha que um aluno de 10 ou 11 anos de idade na 5a srie, um adulto? Outros reclamam da abundncia de fontes iconogrficas, exatamente o

Ver reportagem de: GADELHA, Wilfred. Livros provocam polmica. Caderno Vida Urbana. w w w. p e r n a m b u c o. c o m / diario/2002/05/19/ urbana2_0.html. Acesso em: 15 de ago. 2006.

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aspecto grfico que tem sido a tendncia nos mais recentes livros didticos de histria na Frana e na Espanha, por exemplo. (...) {Nilo, por e-mail} Estou surpreso com o tamanho equvoco em relao obra do professor Mario Furley, um homem altamente gabaritado e possuidor de uma cultura invejvel. Esses crticos utilizam-se de comentrios banais, como se muitas ilustraes prejudicassem a compreenso do texto. Parece que os senhores crticos ainda acreditam que Cabral descobriu o Brasil por acaso, ou que Vargas foi o paizo dos pobres. Reflitam. {Andr, por e-mail}

20

Idem.

Depoimentos de professores e professoras, tambm na mesma reportagem, elogiam a obra, como a professora Lenise Lopes: o livro aborda experincias que os tradicionais nem tocam. E o prprio autor defende-se, alegando que esse tipo de crtica estaria atrelada ao ensino tradicional que exaltava os grandes heris e ignorava as aes do povo trabalhador. Alm disso, Mrio Schmidt reconhece que sua obra assumidamente poltica, e que vai manter seus leitores sempre atualizados com as ltimas pesquisas das Universidades. Segundo o texto jornalstico, ainda, o autor no se incomoda com as crticas linguagem utilizada; rebate as acusaes de sarcasmo e humor negro, afirmando que esta seria uma maneira de aproximar-se dos jovens.20 importante informar que, em entrevistas realizadas com professores e professoras de Histria da rede pblica da grande Florianpolis, a referida coleo destacada como a preferida no trabalho em sala de aula, por ser crtica, trazer temas atuais e possuir uma linguagem divertida, que agrada aos alunos que freqentam o ensino fundamental a partir da 5 srie. Em 2004, observando aulas referentes ao estgio docente de alunos da graduao em Histria, deparei-me com um professor de Histria utilizando livros da coleo Nova Histria Crtica em sala com alunos do Ensino Mdio em diferentes ocasies. Interessada, perguntei ao professor o porqu do uso
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dos livros, pois, afinal eram destinados ao Ensino Fundamental! O professor respondeu que o uso deviase ao fato de os alunos gostarem muito da forma divertida como os textos abordavam os temas histricos, sem serem chatos ou enfadonhos, como a maioria dos textos dos livros destinados ao Ensino Mdio. Chama a ateno a forte associao desta coleo com o que seria uma linguagem crtica, ou de inspirao marxista , ou mesmo de esquerda. Das colees destinadas ao Ensino Fundamental, editadas a partir da segunda metade da dcada de 1990, 21 esta, certamente, destaca-se pelo esforo - mesmo que bastante maniquesta, polarizado em dominantes e dominados, bons e ruins em tentar dar mais espao discusso que envolve as mulheres e as relaes de poder. Alm, claro, de procurar problematizar, de forma mais explcita, questes como, por exemplo, desigualdades de gnero. Algo que, do ponto de vista estritamente poltico no que concerne apenas visibilidade desta discusso nos manuais didticos -, no deixa de ter sua importncia assegurada. Dito isso, importa, aqui, perceber como essas mesmas questes foram organizadas junto aos contedos de Histria ditos tradicionais, que no foram totalmente abandonados pelo autor, mesmo nesta coleo que se pretende crtica. O livro da 5 srie, que vai da pr-histria cultura medieval, explica que a histria das diferenas e desigualdades entre homens e mulheres tem um incio, e o autor no abre mo de marcos que estabelecem um antes e depois:
Em muitas comunidades antigas, os homens e as mulheres dividiam as tarefas. Como as mulheres quase sempre estavam grvidas ou amamentando, tinham de se dedicar a tarefas que no exigiam movimento nem fora bruta. Assim, a caa, a pesca e a criao de animais ficaram com os homens. As mulheres trabalhavam na agricultura, na tecelagem, cuidavam das crianas e das habitaes.

21

Colees como as de: COTRIM, Gilberto. Saber e Fazer Histria. Histria Geral e do Brasil. 2. ed. reformulada. So Paulo: Saraiva, 2002; PILLETTI, Nelson e PILLETTI, Claudino. Histria e Vida Integrada . So Paulo: tica, 2001; MONTELLATO, Andra; CABRINI, Conceio; e CATELLI Jr., Roberto. Histria Temtica. 2 edio. So Paulo: Editora Scipione, 2002. MACEDO, Jos Rivair e OLIVEIRA, Mariley W. Brasil: uma histria em construo . So Paulo: Brasil, 1996.

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Textos: Igualdade entre homens e mulheres e Propriedade privada e o m a c h i s m o , respectivamente. SCHMIDT, Mrio Furley. Nova Histria Crtica. 5 srie. So Paulo: Nova Gerao, 1999, p.71. Grifo meu.

Era uma diviso natural do trabalho. (...) A partir do momento em que o trabalho feminino foi se reduzindo ao lar e que os homens se tornaram os chefes incontestveis da famlia, as mulheres se tornaram quase propriedades do marido, Comeava uma longa histria de opresso machista sobre as mulheres. Sculos e sculos com as mulheres sem direito de estudar tanto como os homens, sem direito de participar plenamente da vida pblica e intelectual, obrigadas a obedecer aos homens como doces cabras.22

Ao explicar a diviso sexual do trabalho como uma diviso natural, o autor acaba reforando a corrente que justifica algumas diferenas e desigualdades de gnero a partir de dados estritamente biolgicos. Ou seja, inscreve como natural e, portanto, no histrico, que caractersticas fsicas, como a fora, sejam suficientes para explicar a dominao masculina. conveniente que se diga que esta no uma particularidade de Mrio Schmidt; alis, este um modelo explicativo muito antigo e j h muito criticado por estudiosas/os feministas. No deixa de ser interessante notar que, num livro didtico de Histria de 1929, seu autor recorra mesma tradio para falar das diferenas nos costumes das primeiras civilizaes:
Parece que desde que se iniciou a poca pastoril, que a poca patriarcal por excellencia, a mulher passou a ser um instrumento, uma cousa, um objecto, em fim, de que o homem se valia para satisfazer seus desejos e nada mais. O homem, quanto mais coragem e fora revelasse nos ataques e na defeza, tanto mais liberdade tinha para possuir vrias mulheres. Como que para conservar alguma cousa dos costumes passados, uma s, entretanto, era considerada a esposa official.23

23

Referncias aos costumes das primeiras civilizaes em livro didtico. BAHLIS, Jorge. Histria da civilizao (Primeiro volume). Porto Aleg re: Editor Carlos J. Muller, 1929, p.31.

Outro autor e uma dcada depois, as mesmas bases epistemolgicas:

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A maior parte das tarefas penosas que tinham de ser feitas recaiam sobre as mulheres. O homem primitivo nada sabia de cavalheirismo. Quando o pequeno grupo humano mudava-se de lugar, as mulheres e meninas carregavam o pouco ou muito que havia a carregar, enquanto os homens andavam leves e livres, com as suas armas, prontos para qualquer eventualidade. O cuidado com as crianas era exclusiva obrigao das mulheres. Costuma-se supor que as mulheres que comearam a agricultura. Isto altamente provvel.24

24

No se quer, aqui, comparar as explicaes propriamente ditas, afinal escritas em tempos diferentes, no querem dizer, em absoluto, a mesma coisa. Tm outros significados, produziram e produzem sentidos tambm diferentes. Porm, no deixa de ser instigante pensar na longevidade dos usos da natureza, do lugar necessrio e natural destinado s mulheres e aos homens na histria, determinado pelas constituies biolgicas, e das relaes estabelecidas a partir da: agricultura, cuidado com as crianas para as mulheres; caa e proteo para os homens; passividade e subordinao feminina, frente fora e dominao masculina. Esta explicao sobre as origens da desigualdade sexual bastante clssica. As antroplogas Rosaldo e Lamphere lembram que, nela, reside a noo de que formas primitivas da sociedade encontram sua adaptao para diferenciar as atividades masculinas e femininas, dando s masculinas um valor todo especial; essa adaptao primitiva tornou-se parte da herana cultural da nossa espcie. 25 Ainda segundo os argumentos que sustentam essa noo, a caa aos animais de grande porte exigiria esforos coordenados de diferentes indivduos e, porque envolviam perigos e viagens longas, as mulheres foram excludas. Ficaram limitadas em seus movimentos, por terem de cuidar dos filhos. O tamanho e a fora masculina determinariam que os homens, e no as mulheres, assumiriam a responsabilidade da agresso e da defesa intergrupal. A caa a animais de grande porte passou a ser vista como ponto decisivo e criativo na evoluo

Referncia aos homens primitivos em livro didtico. WELL, H. G. Histria Universal. Primeiro tomo. Dos comeos da vida na terra at o fim do Imprio de Alexandre o Grande. Traduo de Ansio Teixeira. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, p.203.

25

ROSALDO, Michelle Zimbalist e LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade. Traduo de Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.23.

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26

Idem, p.24.

humana, enquanto que a caa a animais de pequeno porte praticada, por ambos os sexos, e a coleta, atividade dita feminina, foram consideradas secundrias.26 Convm notar que, mesmo havendo vrias outras interpretaes sobre a organizao social de homens e mulheres nestas sociedades primitivas, parece que a verso do caador chega contemporaneidade com status de modelo explicativo bastante atual. As explicaes baseadas em causas universais, acerca das relaes desiguais entre homens e mulheres, so reducionistas e insuficientes, pois, ao desconsiderarem a pluralidade de tempos, espaos e complexidades nas relaes entre o feminino e o masculino, naturalizam os chamados sistemas de dominao. Alm disso, o pensamento dicotmico e polarizado, que concebe os gneros como plos opostos que se relacionam dentro de uma lgica de dominao-submisso, certamente em nada, ou em muito pouco, contribui para um ensino de Histria que possa formar sujeitos plurais, capazes de pensar e refletir sobre o mundo e as relaes a partir de uma histria que se constri cotidianamente, e no pronta e definitiva. H, ainda, uma outra considerao a fazer: a recorrncia ao mito de origem, tambm bastante criticado na Histria, mas do qual no s Mrio Schmidt, mas tambm outros autores de livros didticos, fazem uso. Este tipo de concepo parece reforar a funo social de homens e mulheres ao longo dos processos histricos. E, mesmo com as tendncias inovadoras, modernas e crticas, ainda parecem ser um dos problemas que acompanham o fazer histrico, ou melhor, parece que os historiadores e historiadoras, professores e professoras necessitam de um ponto de partida que explique as relaes que se configuram na sociedade, sejam de gnero, ou de poder, ou de idade, ou de gerao, dentre outros. No apenas os textos de Mrio Schmidt, mas tambm as imagens que os acompanham, como que

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para reforar as informaes neles contidas, marcam as diferenas de gnero a partir de dados essencializados, incrustados no pensamento ocidental, que se pautam em oposies binrias dadas, como, por exemplo: natureza/cultura e homem/mulher. A imagem abaixo narra uma histria bem instigante sobre estes opostos, para exemplificar como se deu a diviso do trabalho:

Figura 1 - SCHMIDT, 5 srie, p.58

Figura 2 - SCHMIDT, 5 srie, p.59.

Na figura 1, possvel observar homens e mulheres fazendo duas atividades em conjunto: feitura de cestos e tijolos para levantar uma parede. Os homens que fazem cestos parecem no estar muito contentes, assim como o homem que carrega trs tijolos, ao contrrio da mulher que s carrega dois. Na outra imagem, figura 2, o trabalho reorganizado: mulheres fazem cestos, e homens fazem tijolos. Tudo parece estar em ordem
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27

SCHMIDT, Mrio Furley. Nova Histria Crtica. 8 srie. So Paulo: Nova Gerao, 2001, p.73.

agora! As foras produtivas finalmente foram reorganizadas. O ttulo da imagem, em letras maiores, no deixa dvidas: A diviso do trabalho aumenta a produtividade. Ao reproduzir certo modelo de linguagem identificada como marxista, as anlises e explicaes de Mrio Schmidt sobre as sociedades e as relaes revelam, em parte, a datada dificuldade do pensamento de esquerda em lidar com as questes de gnero. Historicamente, mesmo que o problema da opresso feminina tenha se colocado nestas discusses, as preocupaes com questes de classe negligenciaram as mulheres. Nestas imagens, temos, tambm, representados, a associao feminina com trabalhos leves, e a masculina com trabalhos pesados, embora a questo do texto seja sobre a especializao do trabalho. Essas associaes, carregadas de representaes de gnero, fazem parte da seqncia de imagens dos livros da coleo. Uma representao persistente a associao das mulheres a uma menor produtividade. No captulo 4 da 8 srie, Rebelies na Repblica Velha, numa discusso sobre produo e diviso dos alimentos, h uma imagem ilustrativa em que as mulheres aparecem ao lado da quantidade menor de milho, enquanto os homens aparecem ao lado das pilhas maiores, numa aluso produtividade de cada um. 27 Aqui, cabe tambm referncia a certa idiossincrasia do autor: ao contrrio de outros autores de livros didticos, Mrio Schmidt dispensa a colaborao de profissionais no processo de escolha das imagens que ilustraro seus textos, pois ele mesmo quem faz isso. Voltando novamente s representaes sobre homens e mulheres, temos, na seqncia de uma discusso sobre o machismo e a igualdade de gnero, uma imagem tambm bem significativa:

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Figura 3 - SCHMIDT, 5 srie, p. 65.

Em linhas bem coloridas, e com a clara inteno de ser divertida, a imagem acaba fazendo circular representaes de homens fortes, viris e dominadores, e mulheres frgeis. Alis, homens fortes e musculosos, e mulheres com peitos fartos e com expresses um tanto parvas, tambm sero uma constante ao longo da coleo. Outras associaes, atravs das imagens, so igualmente pertinentes para pensarmos algumas representaes sobre os papis sexuais.

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Figura 4 - SCHMIDT, 5 srie, p.77.

A histria acima trata de hierarquias acima de tudo, e, para isso, fixa essas posies em modelos bastante tradicionais. O homem provedor e a mulher donade-casa, a qual na histria em questo, ocupa uma posio hierarquicamente inferior a do marido. Utilizada com a proposta de discutir as desigualdades sociais, tambm fixa papis normativos em relao ao gnero. Uma outra possibilidade observar a forma com que as mulheres so retratadas em seus papis assumidos no interior da famlia, em contraposio a outros papis:

Figura 5 - SCHMIDT, 5 srie, p.77.

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Figura 6 - SCHMIDT, 5 srie, p.55.

Nas figuras 4 e 5, as mulheres - como mes e donas de casa - aparecem destitudas de apelos sexuais, ao contrrio da desnuda Eva, negra (Ado tambm, v l!!!), quadris e peitos fartos e, tambm, a atrapalhada mulher, mas com peitos muito desenvolvidos, agarrada pelo suposto viking, na figura 3. Alis, chama muito a ateno o leno nos cabelos das mulheres mes, e a persistente associao do pai como provedor. O pai sempre aparece sentado mesa esperando sua comida, porm dele a responsabilidade de prover o lar: trazer o dinheiro, comprar o po, etc. A me, com lenos nos cabelos, serve aos filhos e ao marido mesa, e tambm, se for o caso, como no livro da 8 srie, explica porque no tem po para comer a seu filho com fome: Porque seu pai no tem dinheiro para comprar po. Ele foi despedido da padaria onde trabalhava.28

28

Idem, p.119.

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Sobre esta questo, ver: CRREA, Mariza. Repensando a famlia patriarcal brasileira: notas para o estudo das formas de organizao familiar do Brasil. Cadernos de Pesquisa , So Paulo, n.37, maio de 1981 e MACHADO, Vanderlei e LOHN, Reinado Lindolfo, 2004, op. cit.

Arqutipos de homens maches e dominadores, brutos, fortes e corajosos; mulheres frgeis, dominadas, obedientes, vtimas e submissas, persistem nos livros didticos de Histria. Aos homens, cabem as grandes decises e a definio dos rumos da sociedade; as mulheres aparecem quando relacionadas a feitos notveis, ou quando se fala na histria da famlia, da criana, do patriarcado este ltimo modelo explicativo para diferentes sociedades em tempos e situaes bem diversos.29 Outro ponto importante a ser pensado que, para alm das representaes persistentes que estereotipam homens e mulheres em papis a-histricos, o fato de que temas relacionados s mulheres e s relaes de gnero no so problematizados em suas contingncias histricas: so dadas como necessrias, e fazem parte de uma histria pronta e acabada. As colees analisadas no conseguem fugir dessa armadilha e, portanto, no avanam nas discusses relativas as desigualdades de gnero. O texto sobre a Nova Mulher, inserido no captulo 7 da 8 srie, A crise de 29, ilustra alguns limites dessa discusso:
As transformaes na economia influenciaram as mudanas nos costumes. Por exemplo, o crescimento do nmero de mulheres no mercado de trabalho. Elas arrumavam emprego nas fbricas, nos escritrios, no comrcio. O trabalho fez com que elas conquistassem uma independncia que no sculo anterior no passava de sonho. Nos anos 20, nas grandes cidades do Ocidente, algumas mulheres de classe mdia e alta j podiam freqentar a universidade. Usavam cabelos curtos, fumavam, namoravam, iam a bares sozinhas ou com amigas, tornavam-se pintoras ou cientistas, falavam sobre a emancipao feminina. Algumas eram at intelectuais socialistas. Desde o fim do sculo XIX, as feministas enfrentavam at a polcia pelo direito de voto. Finalmente, a partir dos anos 20, os EUA e alguns pases da Europa Ocidental comearam a adotar o voto feminino. Mas, infelizmente, apesar de tudo isso a sociedade continuava muito machista. A maioria dos homens no aceitava a independncia feminina. Queriam esposas submissas.

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Escravizadas mentalmente, temendo a liberdade, muitas mulheres ainda aceitavam os velhos papis.30

30

Na dcada de 1920, as mulheres, graas sua entrada no mercado de trabalho, conquistam algumas independncias; as de classe mdia e alta j podiam at freqentar universidades, e algumas at mesmo eram intelectuais socialistas. As mulheres podiam, at, votar. Mas a sociedade, inexoravelmente machista, seguia seu curso, e muitas mulheres escravizadas mentalmente, temendo a liberdade, aceitavam velhos papis. Este texto emblemtico, pois, situado em meio a discusses sobre a dcada de 1920 - e a encerrado, pois no h questionamentos, problematizaes -, passa a idia de que s mulheres muito singulares conseguiam no se deixar escravizar mentalmente e se submeter ao jugo machista: muitas estavam fadadas submisso. Parece, assim, que o evento natural a dominao masculina; singular as mulheres conquistarem direitos, subverter a lgica machista. Enquanto mulheres e homens forem abordados sob a lgica da dominao masculina como sendo a nica possvel para explicar o mundo em que vivemos, estaremos fadados a livros e ensino de Histria sem perspectivas de investimentos em transformaes nas relaes sociais e de poder, sejam de classe, de raa ou de gnero. Suely Gomes Costa lembra que enfrentar um determinado tipo de Histria que j nasce pronta, seria um, dentre os muitos desafios colocados ao ensino de Histria.31 A anlise dos livros didticos a partir do gnero pode e deve contribuir para que estes livros, ao incorporar mudanas, possibilitem, tambm, a reviso de comportamentos normativos, preconceitos e discriminaes erigidos sobre diferenas. Concordo que falar dos contedos dos livros didticos falar de sua maior fragilidade: afinal h, limites, e sempre existiro problemas, quando o que se quer e se precisa organizar o maior nmero possvel de temas

SCHMIDT, Mrio Furley. 2001, op. cit., p.116. Grifo meu.

31

COSTA, Suely Gomes, Gnero e Histria. In: ABREU, Martha e SOIHET, Rachel. (Org.). Ensino de Histria: conceitos, temticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p.187208.

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circunscritos a um amplo recorte temporal em cerca de 250 pginas. Porm, essa constatao no inviabiliza, mas, sim, refora a necessidade de que revises sigam sendo realizadas para que os saberes histricos escolares sejam reconstrudos sob outras perspectivas, mais crticas no que concerne aos padres normativos e hegemnicos que subjetivam os sujeitos e as relaes: transformadoras, ao invs de mantenedoras das desigualdades entre homens e mulheres em suas diferenas.

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