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COMUNIDADE EVANGLICA LUTERANA SO PAULO

ESPAO CIENTFICO
Revista do Instituto Luterano de Ensino Superior de Santarm - Vol. 4, 2003, n. 1/2
ISSN 1518 - 5044

Presidente Delmar Stahnke Vice-Presidente Joo Rosado Maldonado

SUMRIO
Reitor Ruben Eugen Becker Vice-Reitor Leandro Eugnio Becker Pr-Reitor de Administrao Pedro Menegat Pr-Reitor de Graduao da Unidade Canoas Nestor Luiz Joo Beck Pr-Reitor de graduao das Unidades Externas Osmar Rufatto Pr-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao Edmundo Kanan Marques Pr-Reitor de Representao Institucional Martim Carlos Warth INSTITUTO LUTERANO DE ENSINO SUPERIOR DE SANTARM Diretor Geral: Antnio Estanislau Sanches Diretora Acadmica: Maria da Conceio Figueira Cardoso COMISSO EDITORIAL Maria da Conceio Figueira Cardoso Maria Sheila Gama Valria Rodrigues de Oliveira CONSELHO EDITORIAL Dra. Aida Terezinha Santos Matsumura (UFRGS) Dra. Alair dos Anjos Silva Miranda (UA) Dr. Anselmo Alencar Colares (UFPA) Msc. Eduardo Edison Riker (ILES Santarm) Dr. Fernando Facury Scaff (UFPA) Msc. Gladys Agmar Rocha (UFMG) Msc. Gladys Beatriz Martnez (EMBRAPA/PA) Msc. Jos Luiz de Sousa Pio (UA) Dr. Jos Luiz Quadros de Magalhes (UFMG) Dra. Jussar Gonalves Lummertz (ILES Manaus) Esp. Maria da Conceio Figueira Cardoso (ILES Santarm) Ms. Maria Llia Imbiriba Sousa Colares (ILES Santarm) Dr. Raul Jos Galaad Oliveira (ILES Santarm) EDITORA DA ULBRA E-mail: [email protected] Diretor: Valter Kuchenbecker Capa: Everaldo Manica Ficanha Editorao: Marcos Locatelli CORRESPONDNCIA Av. Srgio Henn, 1787, Diamantino CEP: 68025-000 Santarm/Par Fone/Fax: (93) 3524.1055 E-mail: [email protected] Os Institutos Luteranos de Ensino Superior (ILES) so administrados pela ULBRA por determinao da Mantenedora (CELSP), conforme o art. 34 do seu Estatuto. Os artigos assinados so de inteira responsabilidade de seus autores. 2
EDITORIAL ...................................................................................... 3

ENGENHARIA AGRCOLA Gesto dos recursos hdricos e hidroviais Dilaelson Rego Tapajs ........................................................................................ 5 INFORMTICA A informtica na educao em Santarm Eliel Marlon de Lima Pinto, Jorge Ricardo Souza de Oliveira, Michelle Monteiro Pacheco ................................................................................................ 1 3 LETRAS Caminhos e trilhas eletrnicas: uma literatura em construo Misanira Arruda .................................................................................................. 1 9
Cinema e literatura: interao entre as diversas artes Joel Cardoso ....................................................................................................... 2 3 Ensino/aprendizagem do francs como lngua estrangeira no ensino bsico: uma proposta alternativa Emlia Pimenta Oliveira, Nelci Brasil Cordovil ........................................................ 2 7 A pesquisa etnogrfica na constituio de uma anlise discursiva Jaqueline Brando da Silva ................................................................................. 3 3 Realismo maravilhoso: um discurso latino-americano Lauro Roberto do Carmo Figueira ........................................................................ 4 5

PEDAGOGIA O planejamento coletivo como fator integrante do projeto pedaggico Anselmo Alencar Colares, Maria Llia Imbiriba Sousa Colares ................................. 5 1
Conservadores numa nova era de revoluo social Lus Antonio Groppo ............................................................................................ 5 9 A educao rural no contexto das lutas do MST Luiz Bezerra Neto ............................................................................................... 6 9

RESENHA ......................................................................................... 7 9
NORMAS EDITORIAIS ...................................................................... 8 1

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Espao cientfico / Instituto Luterano de Ensino Superior de Santarm vol. 1, n.1 (2000) Canoas: Ed. ULBRA, 2000. Semestral. 1. Cincia e tecnologia-peridico I. Instituto Luterano de Ensino Superior de Santarm CDU 5/6 CDD 604

Setor de Processamento Tcnico da Biblioteca Martinho Lutero- ULBRA/Canoas

EDITORIAL

Iniciou-se com Plato, na Grcia clssica, a discusso de resultados de pesquisas. Essa atividade levou os filsofos a criarem a palavra Academia do latim Akadma, derivado do grego akadmeia de Akadmos, heri que deu nome a um jardim em Atenas, onde Plato ensinava. Todavia, a publicao e debates em revistas peridicas s ocorreram, na Europa, a partir da inveno da Imprensa, por Gutemberg, em 1422. No Brasil, mais especificamente no interior da regio amaznica, h Instituies que investem e acreditam que as pesquisas e os seus resultados devam circular entre e pela comunidade acadmica ou leiga. Pois, de nada adianta queimar pestanas, noites a fio, observar e analisar dados/fatos e guardar, na mente ou em arquivos, as hipteses e os resultados. Pensando dessa forma, mais uma vez a Revista Espao Cientfico traz ao pblico um novo exemplar do seu peridico. Com ele, presenteamos a regio amaznica, o Brasil, e todos os cantos do mundo, onde pesquisadores, com todas as dificuldades e restries existentes, tecem o fio da posteridade e da nova ordem social, econmica e poltica. Para ns a presente revista um evento significativo, dentro de um evento maior, como seja a Educao e a Cincia uma vez que impulsiona nosso intento maior: divulgar e debater as relaes humanas, com o ambiente, com a cultura, com o social, com o histrico, em diferentes tempos e espaos. Uma boa leitura a todos e sejam co-autores da Espao Cientfico.

Arlete Moraes Coordenadora de Ps-graduao, Pesquisa e Extenso

Engenharia Agrcola

GESTO DOS RECURSOS HDRICOS E HIDROVIAS


Dilaelson Rego Tapajs

Dilaelson Rego Tapajs tcnico especializado do Ministrio Pblico do Estado do Par, Mestre em Eng Ocenica, Doutor em Recursos Hdricos e Professor do curso de Engenharia Agrcola do ILES/ULBRA, email: [email protected]

Resumo
Um projeto setorial pode induzir demandas futuras que o faam ser tratado como um componente de um sistema que atenda a mltiplos propsitos. O projeto de uma hidrovia, ao atender o setor de transporte, pode induzir o surgimento de novas demandas de gua, como o abastecimento domstico de novas populaes urbanas, a gerao de energia hidroeltrica, a irrigao e o aumento de vazo para controle de poluio, dentre vrios outros usos. As hidrovias projetadas para as regies Amaznica e Centro Oeste esto envolvidas em fortes polmicas, mesmo que haja um reconhecimento das vantagens econmicas do transporte fluvial. Neste trabalho, feita uma breve discusso sobre os aspectos bsicos da gesto dos recursos hdricos, caracterizando-a como uma atividade recente e complexa. A partir do consenso de que a gua deve atender a mltiplas demandas e funes, e que os comits de bacias hidrogrficas passam a definir usos pretendidos, um projeto de interveno em um rio para torn-lo uma hidrovia continua a ter carter setorial, mas deve estar em conformidade com esses aspectos modernos de gesto dos recursos hdricos. Palavras-chave: gesto, hdricos, hidrovias.

Abstract
A sectional project may induce future needs on a way that make it be treated as a component of a system that deals with multiplying purposes. Helping the transportation section, the project of a waterway may induce the appearance of new needs of water like for example the domestic supply of new urban populations, the generation of hydroeletric power, the irrigation, and an increase of the water flow for the control of polution, among others. Even though there is recognition of economical advantages of the river transportation, the waterways designed for the Amazon and Middle West regions are involved in strong controversies. A brief discussion about the basic aspects of the management of waters resources, characterizing it as recent and complex activity is made in this paper. From the consensus that the water might deal with multiple needs and functions, and that the committees of hydrografic basin are to define intended uses, a project of intervention with the river in order to turn it into a continuous waterway having a sectional character, on the other hand, it might be in conformity with these modern aspects of management of the waters resources. Key words: waterway, water resources, water management.

Espao Cientfico - Revista do Inst. Luterano de Ensino Superior de Santarm - 2003 - Vol. 4 - pginas 5 a 12

ASPECTOS GERAIS DA GESTO DOS RECURSOS HDRICOS


A importncia do gerenciamento dos recursos hdricos est associada crescente escassez de gua, necessidade de proteo dos recursos naturais e s tendncias, inevitveis, de crescimento das demandas. Atender as demandas decorrentes do crescimento das populaes e da necessidade de desenvolvimento econmico/social um fator que atribui carter complexo atividade de gesto. O crescimento populacional provoca o aumento das demandas de duas formas: (1) atravs do uso direto, pela necessidade de consumir maiores quantidades de gua tratada e, (2) atravs do uso indireto, como uma forma de aumentar a atividade econmica e gerar novas oportunidades de empregos. O desenvolvimento econmico tambm pode provocar o aumento da demanda de forma direta (como o caso da atividade de irrigao) e indireta (como o caso das hidrovias). Naquelas regies, onde h abundncia dos recursos hdricos, como o caso da Bacia Amaznica e da Regio Centro Oeste, h um forte apelo para que esses recursos sejam utilizados como forma de proporcionar um desejvel desenvolvimento econmico e social.] A complexidade da gesto acentuada ao serem evidenciados dois aspectos intrnsecos aos recursos hdricos: (1) com relao qualidade ambiental, que motivar a aprovao de legislaes mais rigorosas, de forma a prevenir os impactos ambientais decorrentes do uso dos recursos hdricos; (2) com relao incerteza do futuro, que inibe uma viso determinstica de usos e conseqncias com relao aos recursos hdricos. O gerenciamento dos recursos hdricos, tendo como referncia a bacia hidrogrfica ou os aqferos subterrneos, assume um carter holstico: a gua reconhecida como um bem de valor econmico, passvel de ser utilizada para proporcionar desenvolvimento social e econmico. O gerenciamento dos recursos hdricos por bacia hidrogrfica vincula, alm dos recursos hdricos, recursos terrestres para a proteo dos ecossistemas naturais que, sob o ponto de vista participativo, envolvem usurios, planejadores e polticos. Como se observa, qualquer projeto de utilizao de recursos hdricos estar inserido em um ambiente complexo, dependente de anlises que incorporem variveis, no estritamente tcnicas e econmicas, muito menos setoriais.

em franco desenvolvimento e com alto grau de complexidade, pois necessrio conciliar diversos pontos de vista atravs da compatibilizao de demandas (quantitativas e qualitativas) no tempo e no espao. O desenvolvimento econmico exige maiores demandas de guas, tanto na quantidade quanto na variedade. No entanto, a gua usada para dessedentao e outros usos domsticos, como a criao de animais, considerada a primeira demanda que deve ser atendida. Outras necessidades continuam a surgir com o desenvolvimento da civilizao, como o caso da irrigao e o da navegao, surgindo disputas e conflitos entre usurios pelas guas mais disponveis. Diante disso, as demandas de gua podem ser divididas em trs categorias: (1) como infra-estrutura social: demandas gerais da sociedade nas quais a gua um bem de consumo final, como o caso do abastecimento urbano, ou o uso como infraestrutura, no caso de um curso dgua que serve como hidrovia; (2) como suporte da agricultura e da aquicultura: refere-se s demandas de gua como bem de consumo intermedirio, visando criao de condies ambientais adequadas para o desenvolvimento de espcies animais (piscicultura) ou vegetais (agricultura), de interesse para a sociedade; (3) como suporte industrial: demandas para atividades de processamento industrial (minerao) e energtico (hidroeletricidade), nas quais a gua entra como bem de consumo intermedirio. Uma outra classificao das demandas dos recursos quanto natureza da utilizao, podendo ser de trs tipos: (1) consuntivo: refere-se aos usos que retiram a gua de sua fonte natural, diminuindo suas disponibilidades quantitativas, espacial e temporalmente, como o caso dos usos nas atividades domsticas; (2) no consuntivo: refere-se aos usos que retornam fonte de suprimento, praticamente na totalidade da gua utilizada, podendo haver alguma modificao no seu padro temporal de disponibilidade quantitativa, sendo o uso para hidrovias um bom exemplo disso; (3) local: refere-se aos usos (como o caso da piscicultura) que aproveitam a disponibilidade de gua em sua fonte sem qualquer modificao relevante, temporal ou espacialmente, apresentando disponibilidade quantitativa. As duas classificaes tratam a questo dos recursos hdricos do ponto de vista da disponibilidade quantitativa, no tempo e no espao, para a satisfao/conciliao de demandas. Como em grande parte das atividades humanas e, especificamente, naquelas que usam a gua, existe a gerao de resduos,

CARACTERIZAO DAS DEMANDAS PELOS RECURSOS HDRICOS


O gerenciamento dos recursos hdricos uma atividade
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a gua pode at ser utilizada como meio de transporte (funcionando como solvente para diluies e depuraes). Modernamente, no entanto, a sociedade ampliou a diversidade de interesses com relao ao uso das guas, surgindo disputas que geram conflitos, havendo necessidade de criao de estratgias (tcnicas/polticas) para o gerenciamento das demandas quantitativas e qualitativas.

do setor de transporte, tanto quanto ao aproveitamento dos cursos dgua, como infra-estrutura de transporte. A gua destinada navegao seria classificada na categoria de demanda para a infra-estrutura social e de uso no consuntivo. Essa classificao, genrica, aborda o aspecto quantitativo da gua, considerando que o comprometimento do aspecto qualitativo seria mnimo, at desprezvel. No entanto, em termos de habitats, alguns estudos (MURPHY, WILLBY E EATON, 1997; Cole, 1996) reconhecem que a diversidade de habitats torna-se reduzida, espacial e temporariamente, tanto em funo das construes das obras hidrulicas, como das suas operaes e dos trfegos de embarcaes. Considerando ainda que a participao da sociedade na gesto do recurso cada vez mais crescente, a gua destinada navegao passa a apresentar caractersticas mais complexas de uso. A partir do reconhecimento de que a gua atende a mltiplos usos (seja em atividades estritamente antrpicas ou como suporte para atividades ecolgicas) e tem carter mais complexo na demanda para uma atividade de transporte, necessrio ampliar a classificao j estabelecida, para o caso especfico da navegao fluvial mercante: (1) quanto demanda: atende a uma infra-estrutura social, dado o carter de ter baixo custo, para implantao, operao e manuteno, que acaba refletindo menores preos de tarifas; (2) quanto ao uso: este est dividido em dois aspectos (2.1) quantitativo: com carter no consuntivo, todavia no pode ter uso concorrente que comprometa a lmina mnima exigida pela embarcao tipo; (2.2) qualitativo: com caractersticas consuntivas (varivel no tempo e no espao), tanto na fase de construo quanto na de operao e de manuteno (rudos, desestabilizao de margens e gerao de sedimentos); (3) quanto valorao: holstica, decorrente da caracterstica intrnseca da demanda que pode incorporar pontos de vista de trs grupos sociais (transportadores, embarcadores e outros grupos sociais), que dificultariam uma potencial valorao da lmina dgua (aspecto quantitativo) que, por usa vez, serviria de infra-estrutura para a navegao mercante, abrigando funes ecolgicas (aspecto qualitativo). Conforme possvel observar, a gua, que deve atender a um demanda de navegao mercante, no deve receber um tratamento simples no projeto, como se fosse uma determinada lmina dgua sem exigncia de caractersticas especiais de qualidade. De uma forma pragmtica, a demanda de gua para o transporte, mesmo que seja caracterizada como infra-estrutura de cunho social, precisa passar por um processo de negociao
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ASPECTOS GERAIS DA NAVEGAO INTERIOR


De acordo com o que foi exposto anteriormente, permitido caracterizar a gua destinada a um projeto hidrovirio como um recurso com mltiplas finalidades e com mltiplos valores. No entanto, em termos de planejamento como infraestrutura para o transporte fluvial, a gua tem sido vista apenas como um meio passvel de aproveitamento: permitindo a passagem de uma determinada embarcao e proporcionando as maiores economias possveis ao transporte a ser realizado. Enquanto o transporte rodovirio urbano tem uma longa histria de evoluo de modelos que relacionam uso do solo e transportes (NOVAES, 1982), o mesmo no ocorre com o transporte fluvial. No transporte fluvial, impera uma adaptao de um modelo do transporte martimo: otimizao de embarcaes e instalaes porturias para permitir as menores taxas de fretes. A crescente participao da sociedade nas tomadas de decises, associada com a diminuio da disponibilidade de gua e/ou de sua degradao, condiciona que um projeto hidrovirio v alm da garantia tcnica e econmica do empreendimento, uma vez que instalaes estruturalmente firmes tambm podem falhar, quando verificadas de perspectivas econmica, poltica e social. Dessa forma, o aproveitamento de rios para a implantao de uma hidrovia resultar na criao de novas agroindstrias e urbanizaes. Isso pode levar no apenas ao aumento quantitativo da demanda de gua, mas tambm ao aumento da poluio. Alm do mais,
por muito tempo os planejadores nos pases em desenvolvimento tm acreditado que maior melhor, e conseqentemente desprezam aplicaes de recursos em pequenos projetos que podem incorporar prticas locais de sustentabilidade melhor que fortes princpios de engenharia. (MADRAMOOTOO et al., 1996)

As polmicas que tm envolvido a implantao de projetos hidrovirios no Brasil so decorrentes de uma viso simplista

social de seu uso para desempenhar essa finalidade.

CONCILIAO DE USOS MLTIPLOS


As diversas finalidades de usos das guas so contempladas de uma forma no integrada, em decorrncia das estruturas institucionais estarem organizadas por setores da economia. Muitas vezes, a mesma gua necessria para que o setor energtico implemente hidreltricas deveria atender distritos de irrigao e necessidades do setor hidrovirio. Criam-se, dessa forma, diversos sistemas de demandas ligados naturalmente, mas sem integrao tcnica, pois os conflitos estaro estabelecidos, caso as demandas (inclusive as de carter qualitativo) atinjam um determinado nvel em que no seja mais possvel atend-las individualmente. Na situao de conflito, h necessidade de conciliao dos diversos usos entre os sistemas, pelo racionamento da oferta e/ou atravs de normas e regulamentaes, se estabelecida uma base de gerenciamento integrado. A implantao de um projeto tem seus efeitos multiplicadores, atraindo novas possibilidades econmicas. Um corredor de transporte fluvial que disponibilize novas terras pode gerar, aps algum tempo, a necessidade de satisfazer diversas demandas hdricas de outras naturezas, como o abastecimento domstico, a ampliao da prpria navegao, a gerao de energia hidroeltrica, a irrigao, o aumento de vazo para controle de poluio, dentre vrias outras. Assim, um projeto setorial pode induzir demandas futuras que o faam ser tratado como um componente de um sistema e atenda a mltiplos propsitos. Mesmo que um projeto de recursos hdricos seja caracterizado como pioneiro para o desenvolvimento regional, tornase necessrio, em fases iniciais, observar os diversos usos, atravs de cenrios hipotticos. Uma hidrovia projetada, disponibilizando transporte de baixo custo para grandes volumes de cargas de baixo valor, deve tambm avaliar os potenciais conflitos de uso das guas, resultantes tanto de sua implantao quanto de novos projetos que contribuam para a gerao de novas cargas. Esses conflitos podem ser de trs tipos, segundo Lanna (1999): (1) conflitos de destinao de uso: ocorre quando a gua passa a ser utilizada para outras finalidades, contrariando decises estabelecidas, que as reservaram para o atendimento de necessidades sociais, ambientais e econmicas. A retirada de gua de reserva ecolgica para a irrigao um bom exemplo; (2) conflitos de disponibilidade qualitativa: gerados a partir da inadequao do uso da gua provocado pela
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poluio. Uma situao bem tpica aquela em que no necessrio o aumento do lanamento de poluentes em um curso dgua para piorar a qualidade, mas apenas o aumento do consumo faz reduzir a vazo de estiagem; (3) conflitos de disponibilidade quantitativa: pode ocorrer devido ao uso intensivo. Uma via navegvel projetada para atender embarcaes tpicas com um determinado calado pode vir a ser prejudicada pelo uso da gua para irrigao, construo de hidreltrica e abastecimento urbano. permitido afirmar que de uma poltica de gesto das guas devem participar todas as entidades passveis de interveno nos problemas resultantes de seus usos. No entanto, a responsabilidade pela execuo de uma poltica deve competir a um rgo coordenador, em todos os nveis (TONET E LOPES, 1994). Ao longo do tempo, os mecanismos institucionais e financeiros de gesto foram evoluindo. Atualmente, caracterizam-se por um modelo sistmico de integrao participativa, no qual organismos centralizadores tm sido formados atravs de Conselhos Nacionais ou Estaduais de Recursos Hdricos, reunindo representantes de ministrios e secretarias estaduais, segmentos relacionados com a gua, seus usurios e representantes da sociedade. Diante da complexidade em gerenciar um recurso cada vez mais escasso, com demandas crescentes e participao social mais efetiva, alguns instrumentos passaram a ser discutidos como alternativas para auxiliarem numa utilizao socialmente tima do recurso. Dois instrumentos podem ser destacados: (1) instrumentos normativos: desenvolvidos para uma bacia, atravs de programas ou planos diretores, enquadramentos dos cursos de gua em classes de uso preponderante, criao de reas de interesse ecolgico ou de proteo ambiental; (2) instrumentos econmicos: visam quantificar e estabelecer, atravs de valores monetrios, o valor do recurso.

VALOR ECONMICO DA GUA


O aspecto econmico do recurso hdrico vem, progressivamente, ganhando maior relevncia, sendo real o tratamento do recurso como um bem, passvel de negociao em mercados (LEE e JURAVLEV, 1998). Demandas tradicionais, como aquelas destinadas irrigao, podem no oferecer grandes problemas de serem negociadas, sendo possvel que o livre mercado estabelea o uso mais eficiente. Considerando a gua como um recurso com mltiplas demandas (quantitativas e qualitativas), as situaes de demandas referentes proteo das guas so categorias mais

complexas de necessidades atuais, relacionadas com o ambiente no qual esse recurso se encontra, que podem tambm guardar valor econmico de uso. possvel distinguir trs categorias de proteo com essas caractersticas: (1) preservao: significa manter o meio hdrico no seu estado natural; (2) conservao: implica manter a situao corrente; (3) recuperao: volta-se a melhorar a qualidade do recurso atual. A participao da sociedade na gesto dos recursos hdricos, atravs dos comits de bacias hidrogrficas, visa a vincular o uso do recurso a uma situao tima social. A traduo de todos os valores sociais em termos monetrios nem sempre possvel, visto que a gua possui outros valores intrnsecos, de cunho social que devem ser considerados, como: (1) valor de opo de uso: significando valor potencial, contrapondo-se a um uso/valor atual, e s pode ser verificado em um tempo futuro; (2) valor intrnseco: atribudo aos recursos hdricos independentemente da possibilidade de seu uso, corrente ou potencial, mas se justifica por promover o bem-estar da sociedade. O aspecto econmico atribudo aos recursos hdricos no to evidente e preponderante. Isso apenas refora a afirmao de que a gesto dos recursos hdricos uma atividade complexa e, mesmo que um projeto tenha forte apelo de ser primordial para o desenvolvimento econmico regional, ainda assim h necessidade de que as anlises dessa demanda no tratem apenas da dimenso econmica.

transporte rodovirio oferece maior mobilidade, o transporte fluvial no apresenta essa caracterstica; enquanto o transporte rodovirio realiza o porta-a-porta, o transporte fluvial no realiza isso com grande facilidade; enquanto a principal infraestrutura (o curso dgua) do transporte fluvial dependente de um ciclo hidrolgico regular que no oferea variaes sazonais (variaes de profundidades e velocidade de correntes), uma rodovia pode funcionar sem grandes problemas por longos perodos. Essas contraposies, apenas em relao ao transporte rodovirio, tm apenas o objetivo de ilustrar que existem fatores reais que podem inibir as grandes vantagens referentes ao transporte fluvial. Um aspecto que pouco se discute em relao infra-estrutura do transporte, refere-se valorao econmica da gua. Normalmente, os oramentos montados para a viabilizao econmica de uma hidrovia contabilizam os valores referentes s obras de infra-estrutura, como derrocagens, dragagens, balizamentos, construo de eclusas, dentre outras. O volume de gua necessrio para franquear a embarcao de projeto tem sido tratado como tendo carter abundante, caracterizado como um bem livre, que pode ser utilizado na atividade na quantidade necessria para atender os objetivos do projeto. evidente que essa viso de bem abundante, em relao disponibilidade/uso da gua, caracteriza uma prtica que pertence ao passado, j experimentada em regies mais desenvolvidas do planeta, que acarretaram escassez e disputa pelo recurso. Atualmente, a gua vem recebendo um tratamento de bem estratgico, atravs da adoo de modelos de gerenciamento que buscam sua disponibilizao de forma mais eficiente, com uma viso integrada a outros recursos naturais. Surge a questo: como atribuir um valor econmico gua utilizada para a navegao? Antes de tentar buscar elementos que componham uma estratgia de valorao para a gua da navegao, importante verificar, rapidamente, que os modelos de gesto dos recursos hdricos tm evoludo. De acordo com Tonet e Lopes (1994), o modelo denominado sistmico, de integrao participativa o modelo mais moderno de gesto das guas, caracterizandose por quatro fatores: (1) o carter pblico das guas: o Estado assume seu domnio; (2) a descentralizao: o Estado permite o gerenciamento descentralizado e compartilhado com a sociedade; (3) o planejamento estratgico quando se utiliza a bacia hidrogrfica como unidade de interveno; (4) o uso de instrumentos normativos e econmicos no gerenciamento das guas, de acordo com diretrizes especficas determinadas no planejamento estratgico. Mais uma vez, o modelo sistmico de integrao participativa refora o ponto de vista de que a gesto da gua

VALORAO DA GUA PARA A ATIVIDADE DE TRANSPORTE FLUVIAL


A forte economia, principalmente no transporte de grandes quantidades de cargas, o argumento mais robusto e favorvel utilizao de um curso dgua para o transporte fluvial. Esse argumento se torna mais incisivo quando feita uma comparao do transporte aquavirio e as demais modalidades (aerovirio, ferrovirio, rodovirio e aquavirio), o que conduz concluso de que h um subaproveitamento do potencial hdrico do pas para o transporte e conseqente perda das vantagens que o modo aquavirio pode oferecer, em termos econmicos e ambientais. ponto pacfico que o transporte aquavirio vantajoso sob os aspectos econmicos e ambientais, quando comparado aos demais modos, em situaes hipotticas que no considerem outras relaes de dependncias, caractersticas de uma atividade meio, como o caso dos transportes. Enquanto o

uma atividade complexa. Nesse contexto, a sua valorao tambm o ser. De acordo com Gibbons (1986), uma primeira alternativa para valorar a gua para a navegao seria verificar o volume de gua necessrio para a passagem da embarca-

o tipo, contabilizar todas as despesas e receitas. A diferena representaria o valor da gua. Uma outra alternativa seria considerar a diferena direta entre as tarifas praticadas nas hidrovias e ferrovias como o valor da gua para a navegao.

v3 Valores

hidrovia 3

hidrovia 2 v2 hidrovia 1

v1

p1

p2

Profundidade

p3

p4

Figura 1 - valores da gua em funo do projeto hidrovirio

As duas alternativas sugeridas por Gibbons (1986) no encerram a discusso a respeito do valor da gua para a navegao. Ao contrrio, aplicadas no contexto do Brasil, mais especificamente a regies como a do Pantanal e a da Amaznia, essas sugestes pouco contribuem. A viabilidade econmica dos projetos hidrovirios desenvolvidos para essas duas regies dependente da produo de novas cargas. Dessa forma, a valorao da gua variaria em funo das caractersticas do projeto hidrovirio, conforme pode ser observado na Figura 1. At, aproximadamente, a profundidade p1 o valor da gua para a navegao teria um valor muito prximo de zero. Essa situao poderia ser compreendida como a de uma navegao em pequena escala, utilizando-se o rio em seu estado natural, atravs de pequenas embarcaes. A partir da profundidade p1 at a profundidade p4, o rio precisaria ser trabalhado para permitir a passagem de uma embarcao tipo. Essa interveno no rio, tanto em termos de obras, como de manuteno e trfego das embarcaes, que ir determinar o custo maior ou menor da gua. A complexidade na tentativa de valorar a gua destinada navegao, no caso de rios situados em regies como a do Pantanal e da Amaznia, decorre do fato de que esses rios abrigam atividades econmicas de variados grupos sociais. Dessa forma, a valorao dessa gua deve incorporar variveis que incorporem o ponto de vista desses grupos sociais. Anlises econmicas macro, sob uma tica de desenvolvimento econmico regional, podem conduzir a concluses que considerem que o transporte fluvial, por si s, incorpora um valor ao recurso gua que est sendo sub-utilizado. A gua tem recebido tratamento diferenciado em razo
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de seu esgotamento, tanto quantitativo quanto qualitativo, fazendo com que o poder pblico adote medidas de gerenciamento desse recurso em bases econmicas. cada vez mais freqente o incentivo criao de mercados de gua como forma de atribuir um valor financeiro a esse recurso (GIBBONS, 1986; YOUNG, 1996; WINPENNY, 1994). Outros recursos naturais (ar, florestas, fauna, etc.), mesmo que no utilizados diretamente pelo projeto, mas que sofrem seus efeitos, acabaram ganhando espao cada vez maior nas discusses a respeito de terem seus custos incorporados avaliao do projeto (PEARCE E MORAN, 1994; MOTTA, 1990; OYARZUN, 1998). No caso do uso dos cursos dgua como infra-estrutura para o transporte fluvial, os custos envolvidos com dragagens, por exemplo, para permitir lminas mnimas de gua requeridas pelos calados das embarcaes, podem sofrer as seguintes influncias: (1) custos diretos com dragagem e disposio do material em lugar apropriado, (2) custos de monitoramento do material em suspenso, (3) custos para elaborao e manuteno de um plano de contingncia, (4) custos de compensao a outros usurios da gua, (5) custos de compensao a usurios de recursos da fauna aqutica e (6) custos de compensao a usurios que utilizam o local como mera contemplao. Em contrapartida, o melhoramento realizado pela atividade de dragagem ir agregar um valor a esse curso dgua, resultando em dois benefcios diretos: (1) o lucro que ser obtido com o transporte de cargas e passageiros e, (2) o aumento da facilidade de transporte.

GERENCIAMENTO DE INCOMPATIBILIDADES
inquestionvel que as tomadas de decises para uso dos recursos hdricos, progressivamente, sero resultantes de

uma negociao coletiva. Dessa forma, os custos e benefcios de um projeto passaro a ser estimados de uma forma ampla e abrangente, comparando-se com os mtodos tradicionalmente aplicados. Na grande maioria dos projetos, as despesas so realizadas antecipadamente s receitas, sendo necessrio aguardar um intervalo de tempo para que o lucro do projeto comece a aparecer. Nas situaes de projetos que faam uso de recursos naturais, como a gua para uma hidrovia, os investimentos no so apenas financeiros. A ampliao de utilidade de um rio, que passe a funcionar como uma hidrovia, pode exigir a interrupo ou a paralisao de atividades como a pesca. Em uma anlise tipo custo/benefcio tradicional, o sacrifcio de uma atividade pode passar despercebido. Uma situao com essa caracterstica envidaria conflitos, pois a anlise econmica asseguraria que o projeto seria vantajoso. A soluo para conflitos dessa natureza ainda bastante difcil, uma vez que o encaminhamento de solues para os conflitos exige tomadas de decises crticas, pois provvel que haja restries ao atendimento de interesses. Essas decises crticas podem dar margem a questionamentos tcnicos, polticos e legais. Diante de situaes conflituosas, nem sempre a soluo final promove a maior satisfao social. A constituio dos comits de bacias hidrogrficas, determinada na Lei Federal 9.433/ 1997, uma tentativa de promover uma negociao social, atravs de um frum no qual todos os interesses na bacia hidrogrfica em questo possam ser discutidos de forma transparente e inequvoca. A Lei Federal 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que trata da Poltica e Sistema Nacional de Recursos Hdricos, estabelece diretrizes gerais para a gesto da gua no Brasil, que podem ser resumidas em trs aspectos: (1) viso sistmica: a gesto no deve estar dissociada dos aspectos de quantidade e qualidade; (2) convenincia regional: a gesto dos recursos hdricos deve estar adequada s diversidades fsicas, biticas, demogrficas, econmicas, sociais e culturais das diversas regies do Pas; (3) viso integral: a gesto dos recursos hdricos deve estar integrada gesto ambiental, a aspectos do uso do solo, bem como aos sistemas estuarinos e zonas costeiras. Quanto gesto dos recursos hdricos, conceitualmente, trs caractersticas especficas se identificam: (1) buscar o atendimento de demandas; (2) evitar a gerao de conflitos e (3) conservar aspectos qualitativos do recurso. Em regies como a Amaznica e o Pantanal, e naquelas situaes em que os rios servem naturalmente navegao, as trs caractersticas desejadas da gesto esto sendo evidenciadas; pois (a) o uso da gua atende a demanda do setor transporte

fluvial; (b) no se percebem conflitos gerados a partir do uso da gua para a navegao em tais regies e (c) no se evidenciam fortes sinais de degradao da gua a partir do uso para a navegao. Alm dos aspectos estritamente tcnicos de conciliao no atendimento a demandas (tanto no aspecto quantitativo quanto qualitativo) da gua, h uma forte legislao a ser observada no delineamento dos projetos hdricos. Observando os aspectos gerais da legislao e as recomendaes conceituais para adoo de modelos sistmicos de gesto da gua, pode-se afirmar que o transporte fluvial realizado no Brasil em rios naturalmente navegveis est perfeitamente inserido nesse contexto: uso franco, sem degradao do recurso e sem gerao de conflitos.

CONCLUSES
Os rios existentes nas regies do Pantanal e da Amaznia oferecem boas perspectivas de aproveitamento para uma navegao em grande escala. No Pantanal, a Hidrovia do ParaguaiParan um exemplo de projeto que visa a franquear a navegao nesses rios para grandes comboios de chatas. A principal justificativa econmica: o baixo custo do transporte fluvial que proporcionaria essa hidrovia. Na Amaznia, o projeto de hidrovia para o AraguaiaTocantins o mais conhecido. O argumento justificativo econmico, baseando-se em um potencial desenvolvimento de reas prximas ao eixo hidrovirio, que beneficiaria a regio de implantao do projeto. Os dois projetos mencionados estariam perfeitamente justificados na situao em que o recurso gua no tivesse finalidades mltiplas. No entanto, a Lei Federal 9.433, que trata da Poltica e Sistema Nacional de Recursos Hdricos, estabeleceu diretrizes gerais para a gesto das guas no Brasil (resumidas em trs aspectos: viso sistmica, convenincia regional e viso integral). Por sua vez, a gesto dos recursos hdricos est ancorada em trs caractersticas especficas: atender demandas, evitar conflitos e conservar aspectos qualitativos do recurso. Os dois projetos mencionados entraram em conflito direto, tanto com o que ficou estabelecido na Lei 9.433, quanto o que traz caractersticas especficas da gesto dos recursos hdricos. Discusses judiciais interminveis resultaram desses conflitos. Os efeitos provocados pela implantao de uma hidrovia so tantos que o projeto no tem dependncia apenas setorial (atender a uma demanda de transporte). O principal equvoco nas proposies de hidrovias no Brasil a desconsiderao, ainda em fases preliminares do projeto, de instrumentos de gesto dos recursos hdricos j disponveis.
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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Informtica

A INFORMTICA NA EDUCAO EM SANTARM


Eliel Marlon de Lima Pinto Jorge Ricardo Souza de Oliveira Michelle Monteiro Pacheco

Eliel Marlon de Lima Pinto Professor do Curso de Sistemas de Informao do ILES Santarm [email protected] Jorge Ricardo Souza de Oliveira Mestre em Engenharia Eltrica (UFSC) e professor do Curso de Sistemas de Informao do ILES Santarm [email protected] Michelle Monteiro Pacheco Acadmica do Curso de Sistemas de Informao do ILES Santarm [email protected]

Resumo
Este artigo apresenta uma viso geral da situao da informtica aplicada educao em Santarm Par. Inicialmente, descrita a atuao dos projetos governamentais de informtica na educao: PROINFO e FUST. So apresentadas algumas iniciativas de ensino a distncia, como a TV Escola e a Rdio pela Educao. exposta a situao dos programas de informtica na educao de algumas escolas particulares da cidade. So apresentados programas de capacitao de professores na rea. Finalmente, so levantadas concluses, discutindo os problemas encontrados e suas solues. Palavras-chave: informtica na educao, capacitao de professores, ensino a distncia.

Abstract
This paper presents a general view of the situation of the informatics applied on education at Santarm Par. First, it is described the actuation of the governmental projects of informatics education. Some initiatives of distance learning like TV Scholl and Radio by Education are presented. The situation of programs of informatics education of some private schools in the city is exposed. Teachers capacitating programs are presented. Finally, conclusions are depicted, addressing problems founded and their solutions. Key words: Informatics Education, Teachers Capacitating, Distance Learning. to intelectual e pessoal do indivduo. Alm disso, objetiva promover, utilizando os recursos de um ambiente computacional e telemtico, o desenvolvimento das potencialidades cognitivas dos alunos. Com a utilizao da informtica, os alunos tornamse sujeitos do seu processo de aprendizagem e da construo de seus conhecimentos, interagindo melhor com as pessoas e com a
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1 INTRODUO
Da mesma forma que em todas as atividades humanas, a informtica oferece novas e fascinantes ferramentas para a educao. A informtica aplicada educao um recurso pedaggico capaz de incentivar a aprendizagem e o crescimen-

Espao Cientfico - Revista do Inst. Luterano de Ensino Superior de Santarm - 2003 - Vol. 4 - pginas 13 a 18

realidade que os cercam. Nesse sentido, a formao de profissionais na rea de Informtica na Educao deve merecer especial ateno, uma vez que tais profissionais devem ser capazes de aplicar as novas tecnologias s atividades pedaggicas, buscando a promoo de mudanas profundas no modelo educacional vigente (PEREIRA, 1992). Esse trabalho tem como objetivo apresentar a situao das diversas iniciativas de aplicao da informtica educao, no municpio de Santarm. Inicialmente, apresentada a atuao dos programas PROINFO e FUST do governo federal nesse municpio. Em seguida, so descritas duas iniciativas de educao a distncia: TV Escola e Rdio pela Educao. Posteriormente, so apresentadas experincias de aplicao da informtica na educao em trs escolas particulares da cidade de Santarm. Ento, so discutidas vrias iniciativas para a capacitao de profissionais de informtica na educao. Finalmente, so levantadas concluses e perspectivas futuras da informtica na educao em Santarm.

suporte tcnico para a capacitao de professores e equipes administrativas das escolas (PROINFO, 2002). Entre os objetivos do PROINFO, esto a capacitao de professores e a implantao de laboratrios de informtica nas escolas. Os professores so capacitados em dois nveis: multiplicadores e de escolas. Os professores multiplicadores recebem uma formao mais ampla, sendo responsveis por ministrarem cursos aos professores de escolas. Utiliza-se o princpio professor capacitando professor. Para disputar um laboratrio, a escola deve ter mais de 150 alunos, apresentar um projeto e comprovar ter infra-estrutura fsica para a instalao dos equipamentos, como sala de aula adequada, rede eltrica e condies de segurana. A escola deve ter tambm recursos humanos capazes de usar a informtica no processo pedaggico. O nmero de equipamentos distribudos para cada escola proporcional ao nmero de alunos. Num primeiro momento, sero atendidas cerca de seis mil escolas, ou 13,4% do universo de 44,8 mil escolas pblicas de ensino fundamental e mdio. O NTE em Santarm possui uma equipe de cinco pessoas, coordenada pela professora Micheline da Silva Bastos, sendo que essa equipe subordinada ao Departamento de Informtica e Educao (DIED), com sede em Belm. Em Santarm, foram capacitados 39 professores multiplicadores e mais 253 em cursos diversos, ofertados nos laboratrios das escolas e no NTE. Atualmente, 300 profissionais esto sendo capacitados para os laboratrios de informtica com a coordenao e superviso do MEC. 2.2 FUNDO DE UNIVERSALIZAO DOS SER VIOS DE TELECOMUNICAES (FUST) SERVIOS O FUST, institudo em 17 de agosto de 2000, consiste em um fundo formado, entre outros, por 1% da receita bruta decorrente da prestao de servios de telecomunicaes, dos quais, 18% so obrigatoriamente destinados Educao. Os recursos do FUST visam universalizao dos servios de telecomunicaes, tendo como algumas de suas metas a implantao do acesso Internet (incluindo a construo de instalaes fsicas e a distribuio de equipamentos) em escolas pblicas de ensino mdio. O atendimento s escolas pblicas dever ocorrer em 3 etapas (ANATEL, 2001): Etapa1 (at 31/12/2001): 60% das escolas com mais de 600 alunos. Etapa2 (at 30/06/2002): 80% das escolas com mais de 300 alunos. Etapa3 (at 31/12/2002): as demais escolas. Dever ser fornecido um computador para cada grupo de 25 alunos. Em Santarm, as escolas Plcido de Castro, Almi-

2 PROJETOS DE INFORMTICA NA EDUCAO EM SANTARM


O governo federal possui uma srie de programas que visam disseminao da informtica em nosso pas. Esses programas so voltados para diversas reas como educao, infraestrutura, desburocratizao, cidadania e desenvolvimento tecnolgico. Os programas do governo federal para a rea da educao consistem no oferecimento de cursos profissionalizantes e na introduo da informtica nas escolas de nvel fundamental e mdio. Alm disso, est sendo realizada a informatizao dessas escolas. Dentre os diversos programas na rea de educao, destacam-se o Programa Nacional de Informtica na Educao (PROINFO) e o Fundo de Universalizao dos Servios de Telecomunicaes (FUST). 2.1 PROGRAMA NACIONAL DE INFORM TICA NA EDUCAO (PROINFO) INFORMTICA O PROINFO uma iniciativa do Ministrio da Educao, por meio da SEED (Secretaria de Educao a Distncia) e foi criado em 9 de abril de 1997, sendo desenvolvido em parceria com os governos estaduais e alguns municipais. As diretrizes do programa so estabelecidas pelo MEC e pelo CONSED (Conselho Nacional de Secretrios Estaduais de Educao). Em cada unidade da federao, h uma Comisso Estadual de Informtica na Educao responsvel pela aplicao e o controle do PROINFO. Esse programa possui ainda bases tecnolgicas nos estados, chamadas de NTEs (Ncleos de Tecnologia Educacional). Os NTEs consistem em estruturas descentralizadas de apoio ao processo de informatizao das escolas, auxiliando tanto no processo de planejamento e incorporao de novas tecnologias quanto no
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rante Soares Dutra, Pedro lvares Cabral, Onsima Pereira de Barros, lvaro Adolfo da Silveira, Rodrigues dos Santos, Jlia Gonalves Passarinho e Jos de Alencar j foram contempladas com os equipamentos bsicos de informtica (hardware e software), utilizando-se recursos do FUST.

como revistas, cadernos, guias para orientar os usurios em relao aos programas, cartazes e grade de programao. A programao da TV Escola inclui o Programa Salto para o Futuro, especificamente produzido para o aperfeioamento de professores que, em alguns estados e municpios, utilizado como apoio aos cursos de formao de professores para as sries iniciais. Esse programa possibilita aos professores, de diferentes locais do pas, um contato ao vivo com especialistas de um tema em anlise, debatendo-o, interativamente, com outros professores, reunidos em telepostos. Atualmente, so contabilizados mais de 800 telepostos. Alm disso, a participao dos professores em um determinado nmero de sries vinculadas permite contagem de pontos para progresso na carreira. Em Santarm, a aplicao do programa TV ESCOLA j est sendo acompanhada nas escolas da rede estadual pelos profissionais da 5a URE (Unidade Regional de Educao)1 . Para que o programa possa se desenvolver, a escola precisa dispor de um profissional (professor) para assistir, selecionar e gravar os programas. Todavia, na maioria das escolas estaduais, no h um professor para realizar essa atividade. J nas escolas municipais, onde o programa tem o acompanhamento da Secretaria Municipal de Educao de Santarm, existe um professor com carga horria disponvel para desenvolver a atividade, ou seja, o estudo dos programas da TV Escola. Outros problemas enfrentados na aplicao da TV Escola so a falta de professor qualificado e a resistncia aplicao do programa por parte de alguns professores. Apesar disso, a TV Escola possui uma grande aceitao entre os alunos, j que estes podem assistir, vivenciar e interagir com os assuntos transmitidos em sala de aula. 3.2 RDIO PELA EDUCAO Aproveitando o potencial educativo da linguagem radiofnica, o UNICEF desenvolve, em parceria com as Secretarias de Educao de Santarm e de Belterra e com a Rdio Rural, o projeto Rdio pela Educao: para Ouvir e Aprender, implantado em 1999. Responsvel pela implantao do projeto, o UNICEF repassa para os municpios 75% de todo material utilizado para a efetivao do programa, como o guia pedaggico; efetua o pagamento dos funcionrios do projeto, alm de fornecer o rdio, as caixas de som, as sesses, enfim, todo material radiofnico. As Secretarias de Educao oferecem apenas o acompanhamento pedaggico (professores). Por fim, a Rdio Rural oferece o espao para que as sesses sejam transmitidas.
1 rgo da Secretaria de Educao do Governo do Estado do Par, responsvel pelo acompanhamento das escolas estaduais nos municpios de Santarm, Belterra e Aveiros.

3 PROJETOS DE EDUCAO A DISTNCIA


A Secretaria de Educao a Distncia (SEED) tem como objetivo principal levar para a escola pblica toda a contribuio que os mtodos, tcnicas e tecnologias da educao a distncia podem prestar construo de um novo paradigma para a educao brasileira. A SEED, juntamente com os demais rgos do MEC e em conjunto com as Secretarias de Educao dos estados, desenvolve uma srie de programas que utilizam a metodologia de educao a distncia. Dentre esses programas, podemos destacar a atuao da TV Escola. Em Santarm, outro programa de educao a distncia que merece destaque o programa Rdio pela Educao, promovido pelo UNICEF. 3.1 TV ESCOLA A TV escola, programa lanado nacionalmente em 4 de maro de 1996, um canal de televiso, via satlite, destinado exclusivamente educao. O programa, de autoria da Secretaria de Educao a Distncia e do Ministrio da Educao MEC, dirigido capacitao, atualizao e aperfeioamento de professores de Ensino Fundamental e Mdio da rede pblica. Permite s escolas entrarem em sintonia com as grandes possibilidades pedaggicas oferecidas pela educao a distncia, enriquecendo o processo de ensino-aprendizagem. O ponto de partida do programa TV Escola foi enviar, para escolas pblicas com mais de 100 alunos, televisor, videocassete, antena parablica, receptor de satlite e um conjunto de dez fitas de vdeo VHS, para iniciar as gravaes do programa. H no Brasil, segundo o Censo de 1999, 60.955 escolas pblicas com mais de 100 alunos. Dessas instituies, com um total de 28.965.896 alunos e 1.091.661 professores, 56.770 j trabalham com a TV Escola, o que representa 93% da rede pblica brasileira. O programa transmite quatorze horas de programao diria, com reprises ao longo do dia, de forma a possibilitar, s escolas, diversas opes de horrio para gravar os vdeos. Aos sbados e domingos, veiculado o Escola Aberta, uma seleo especial de programas que busca alcanar tambm as famlias e a comunidade em geral. Como um dos princpios do trabalho da SEED a integrao de diferentes mdias, para enriquecimento do processo de ensinoaprendizagem e para o aumento do potencial de utilizao de um programa, a TV Escola complementada por materiais impressos

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A rdio recebe alunos de 1a 4a srie do ensino fundamental, tanto da zona urbana quanto da zona rural, para fortalecer seus conhecimentos. As sesses radiofnicas, que so utilizadas tambm como recurso pedaggico, so transmitidas trs vezes por semana, nos horrios matutino - das 7 h e 30 min s 8 h e 30 min- e vespertino - das 14 h e 35 min s 15 h e 35 min. O projeto, que se sustenta em um trip organizacional de sesses radiofnicas, guia pedaggico (contendo as disciplinas de portugus e matemtica) e acompanhamento pedaggico (professores), apresenta as seguintes sesses: sesso pedaggica, entrevista com o professor, entrevista com o aluno, sesso buscativa, sesso sonho do aluno, correio dos alunos, correio pedaggico, sesso de debate, sesso de leitura, rdio novela com quatro captulos, jornal informativo e entrevista com especialista. Vale ressaltar que o principal problema enfrentado pelo programa Rdio pela Educao a formao inadequada do professor e a qualidade de recepo nas escolas da zona rural.

que objetiva a construo de um livro para a disciplina de Lngua Portuguesa e o projeto interdisciplinar, Ecoturismo. Para desenvolver os projetos, a escola Cristo Redentor conta com um laboratrio contendo 13 computadores, com multimdia e acesso Internet. Alm disso, outros equipamentos, como impressora, scanner e datashow, quando solicitados, so disponibilizados pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Santarm (ILES)2 . Cada professor recebe acompanhamento tcnico de um profissional de informtica. Alm disso, os professores passam por um treinamento para a correta utilizao do computador e tambm por um constante estudo para analisar, verificar e aplicar, da melhor forma possvel, o projeto de informtica na educao. Para ajudar no processo de aprendizagem, tambm so adotados softwares educacionais, como por exemplo, o Coelho Sabido, utilizado na Educao Infantil e Matemtica 2.0, no ensino fundamental e mdio. Outros softwares no educacionais tambm so usados como o da Microsoft Word, Microsoft PowerPoint e softwares de outras autorias como o Everest. Com o uso desses softwares, os alunos podem interagir mais com os projetos que esto sendo desenvolvidos. Entre as maiores dificuldades enfrentadas na aplicao da Informtica Educao esto a inexistncia de um laboratrio especfico para os alunos da Educao Infantil e de 1a 4a srie do ensino fundamental. Um laboratrio especfico possuiria bancadas, mouses e cadeiras com tamanhos diferenciados, adequados conforme o tamanho dos alunos. Alm disso, h resistncia quanto aplicao do programa por parte de alguns professores. 4.2 COLGIO DOM AMANDO (CDA) O Colgio Dom Amando (CDA) aplica a informtica na educao desde o ensino fundamental at o ensino mdio. Dentre os projetos de informtica na educao, podemos destacar: Projeto de Arte Grega e Romana, Montagem de um dicionrio, Livro de Poesias, etc. Para desenvolver esses projetos, a escola conta com um laboratrio contendo 26 computadores e acesso Internet. Alm disso, tambm possui outros equipamentos como impressoras, scanners, filmadora, vdeo cassete, mquina digital, entre outros (SOBRINHO, 2002). Nessa escola, a informtica aplicada educao utiliza o computador como ferramenta, ou seja, no existindo uma disciplina exclusiva de informtica. A informtica serve de apoio para as outras disciplinas. Cada professor tambm possui acompanhamento tcnico permanente, que consiste no apoio de um profissional de informtica. Alm disso, os professores so constantemente capacitados, de seis em seis meses, para a correta

4 INFORMTICA NA EDUCAO EM ESCOLAS PARTICULARES


A aplicao da informtica nas escolas particulares tem por objetivo disseminar as tecnologias da informao de maneira a assegurar educao um alto padro de qualidade e eficincia. Alm disso, busca-se modernizar a gesto escolar. A adoo dessas novas tecnologias tem como conseqncia o aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, os alunos so capacitados a processar novos conhecimentos por meio do domnio das ferramentas da informtica. Os alunos tambm adquiriro, alm das habilidades tradicionais, conhecimentos sobre computadores e seu manejo, ingressando, assim, no mercado de trabalho com condies mais competitivas. Em Santarm, algumas escolas particulares j aplicam informtica na educao, dentre elas, podemos destacar o Centro Educacional Cristo Salvador (CEDUCS), o Colgio Dom Amando (CDA) e o Colgio Santa Clara (CSC). 4.1 CENTRO EDUCACIONAL CRISTO SALVADOR (CEDUCS) Aproveitando as ferramentas que o computador pode oferecer, a aplicao da informtica educao j faz parte do processo de ensino-aprendizagem de muitas escolas particulares. O Centro Educacional Cristo Salvador (CEDUCS) um exemplo de escola que j opera com a informtica na educao e que, contemplada no projeto pedaggico da escola, aplica-a em todas as sries, desde da educao infantil at o ensino mdio. Dentre os projetos de informtica em aplicao, que o Centro Educacional desenvolve, podemos destacar um da educao infantil, Retrato do Meu Aprendizado, com as turmas de 1a 4a srie; o Pequeno Escritor, com alunos de 5a 8a srie,
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2 O ILES e o Centro Educacional Cristo Salvador funcionam no mesmo local e compartilham parte de sua infra-estrutura.

aplicao da informtica nas disciplinas. A aplicao da informtica educao est sendo contemplada no projeto pedaggico da escola, e a partir dele a orientao de que cada professor monte o projeto de sua disciplina, juntamente com o profissional de informtica no incio ou no decorrer do ano. Para ajudar no processo de aprendizagem tambm so adotados softwares educacionais, como O Mundo de Sofia, O Jovem Explorador do Mundo, Esqueleto 3D, Barsa, etc. So usados tambm softwares no educacionais, como Microsoft Word, Microsoft PowerPoint e Paint. A aplicao da informtica educao tem uma aceitao por parte dos pais e alunos e muito estimulada pela direo da escola. Entre os problemas enfrentados na aplicao da informtica na educao, est a dificuldade que alguns professores enfrentam para adotarem os recursos que o computador pode oferecer. 4.3 COLGIO SANT A CLARA (CSC) SANTA Na tentativa de acompanhar as novas exigncias do mercado, o Colgio Santa Clara (CSC) incorporou a informtica na educao, desde a educao infantil at o ensino mdio. Durante a semana pedaggica, no incio do ano, os professores participam de um treinamento para docentes, quando lhes so repassadas todas as informaes sobre como os projetos sero trabalhados e as ferramentas que sero utilizadas durante o ano. Na escola, que utiliza o computador como ferramenta, no existe uma disciplina exclusiva de informtica, mesmo assim, muitos projetos j esto em desenvolvimento, dentre eles, podemos destacar: Brasil 500 anos, Ervas Medicinais, Identidade, Elaborao de livros, entre outros (DUARTE, 2002). Para que os projetos possam ser desenvolvidos, a escola conta com um laboratrio com 17 computadores ligados Internet e outros equipamentos como hub, impressora, scanner, televiso e vdeo. Nesse laboratrio, devido disponibilidade da coordenadora de informtica, s permitido o acesso dos alunos durante o horrio de aula. Para ajudar no processo de aprendizagem, so usados softwares educacionais da Expoente e softwares no educacionais, como Microsoft Word, Microsoft PowerPoint, e outros. Alm disso, apresentado para os professores o software Visual Class, usado para produo de aulas. Na educao infantil, destacam-se os softwares que desenvolvem a coordenao motora e na alfabetizao so usados softwares que trabalham a interdisciplinaridade. Apesar dos problemas enfrentados pela escola, infra-estrutura fsica, nmero de computadores do laboratrio e da resistncia dos professores, j existe at um projeto para reformar o antigo, pois a aplicao da informtica educao tem uma boa aceitao por parte dos pais e alunos. Alm do mais, a informtica ajuda o aluno a produzir trabalhos de outras disciplinas.

5 CAPACITAO DE PROFISSIONAIS PARA INFORMTICA NA EDUCAO


necessrio capacitar, com apoio de novas tecnologias, profissionais para auxiliar na implantao da informtica nas escolas. O processo de capacitao visa preparar professores para o uso integrado das tecnologias de informao nas suas atividades pedaggicas. Em Santarm, vrios cursos desta natureza j foram ou esto sendo realizados, dentre eles podemos destacar: o curso de Ps-graduao em Informtica na Educao, do Instituto Luterano de Ensino Superior de Santarm e os cursos de capacitao do Ncleo de Tecnologia Educacional de Santarm. 5.1 EXPERINCIA DO NCLEO DE ARM SANTARM TECNOLOGIA EDUCACIONAL DE SANT (NTE) O Ncleo de Tecnologia Educacional de Santarm at agora ofereceu apenas dois cursos visando capacitao de profissionais para trabalhar com a informtica na educao. O primeiro curso ocorreu em 1999 e teve uma durao de trs meses, com apenas 120 horas de aula. J que a carga horria do curso foi bastante reduzida, foram repassados aos alunos apenas conhecimentos bsicos da rea de informtica na educao (PINTO, 2002). A seleo dos 33 professores, para esse curso, ocorreu por meio da indicao dos diretores de escolas e contou com professores de formao em reas diversas, principalmente na de pedagogia. Aps a concluso do curso, a maior parte dos concluintes, que deveriam gerenciar laboratrios de informtica em suas escolas, no assumiu nenhum laboratrio. Em 2002, iniciou-se um segundo curso dirigido a mais de 200 professores de toda rede estadual de ensino de Santarm. Tal curso, com durao de 60 horas, oferece apenas conhecimentos a respeito da utilizao de aplicativos bsicos de informtica. Nessa segunda experincia, no foi tratada a informtica na educao em si, foi proporcionado aos participantes apenas o conhecimento de como utilizar o computador. 5.2 DO INSTITUTO EXPERINCIA LUTERANO DE ENSINO SUPERIOR DE SANT ARM (ILES/ULBRA) SANTARM A Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) trabalha a capacitao de profissionais de informtica na educao por meio de disciplinas e de cursos de ps-graduao em nvel de especializao. Estes cursos j formaram sete turmas com um total de 30 alunos cada. Como uma disciplina, de apenas 30 horas, a Informtica

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na Educao vista nos cursos de Administrao e Planejamento para Docentes e de Administrao Educacional. Apesar de ter uma boa aceitao por parte dos alunos, um dos maiores problemas enfrentados o desconhecimento total da informtica por parte de alguns alunos (BENTES, 2002). Tambm oferecido um curso de especializao exclusivamente em Informtica na Educao. Este ltimo curso, iniciado em janeiro de 2002, possui 13 disciplinas na rea da informtica e da pedagogia, somando um total de 460 horas. Em especial, os alunos aprendem a utilizar, de forma correta, as ferramentas da informtica, viabilizando a concepo dos seus objetivos educacionais. Alm disso, os alunos trabalham com as disciplinas de metodologia da pesquisa e monografia, que lhes possibilita o desenvolvimento de estudos e de pesquisas na rea. Para a realizao do curso, que ocorre no perodo de recesso da graduao, nos meses de janeiro e de julho, a instituio faz uso dos mesmos laboratrios dos cursos de graduao do ILES Santarm. Tais laboratrios so equipados com os recursos necessrios para que o professor possa ministrar suas aulas. O pblico-alvo do curso de informtica na educao so profissionais de diversas reas de formao, como bacharis em informtica, licenciados em pedagogia e outros que, em sua maioria, j trabalham na rea de educao. Aps o trmino do curso, os egressos estaro capacitados a trabalhar, de forma crtica, com a tecnologia da informao e com os projetos desenvolvidos em sua escola de atuao. Desde a primeira turma do curso, foram exigidos, alm da graduao concluda, conhecimentos mnimos de informtica. O corpo docente do curso formado por profissionais de informtica, em maior nmero, e de educao. Apesar disso, todos os docentes possuem conhecimentos nas duas reas e tm a titulao de mestre ou de especialista.

dos objetivos especficos da escola, caso contrrio, o computador acaba sendo utilizado, no como uma ferramenta de aprendizagem, mas sim como um passatempo entre as atividades da escola. Em Santarm, o maior problema enfrentado na aplicao da Informtica na Educao a resistncia dos professores. Essa situao pode ser verificada tanto nas escolas particulares da cidade Colgio Dom Amando, Colgio Santa Clara e Centro Educacional Cristo Salvador como nas escolas pblicas. Mas tambm se verifica uma tentativa de soluo para esse problema, com a criao de alguns cursos de capacitao, como o de ps-graduao em Informtica na Educao do ILES/ULBRA, em incio, e os cursos de capacitao do Ncleo de Tecnologia Educacional de Santarm. Entretanto, at agora, essas iniciativas ainda no apresentaram resultados prticos.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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6 CONCLUSO
Como o computador ser essencial s escolas no futuro, importante observar que, por mais que se criem laboratrios bem equipados e um bom ambiente de aprendizagem, o sucesso dessa atividade s ser alcanado se houver o envolvimento de todos os professores com essa nova realidade, uma vez que o uso dessas tecnologias de informao impe mudanas nos mtodos de trabalho dos professores, ocasionando modificaes nas escolas e na educao. Alm disso, o planejamento das atividades com o uso das ferramentas do computador fundamental para a definio

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Letras

CAMINHOS E TRILHAS ELETRNICAS: UMA LITERATURA EM CONSTRUO


Misanira Arruda

Misanira Arruda professora do Curso de Letras do ILES Santarm.

Resumo
O presente artigo fornece uma viso sobre o texto informatizado - hipertexto, hipermdia, multimdia e fico literria. Mostra at que ponto, e de que maneira, se diferenciam a forma e a sensibilidade literria da modernidade e da ps-modernidade frente ao avano da tecnologia digital, e como se processar a relao leitor/texto diante do novo quadro, que se estrutura na questo dos novos gneros literrios. Abre a discusso sobre a forma e a maneira de nos colocarmos neste questionamento, frente s posturas modernas e ps-modernas diante dessa questo. Examina-se ainda at que ponto a literatura est envolvida e quais os papis da crtica literria moderna na criao e recriao do espao da fico literria e nas novas relaes textuais. Palavras-chave: texto informatizado, hipermdia, hipertexto.

Abstract
The present article shows a vision of the question about digital text, hypertext, hypermedia, multimedia and literary fiction. It shows how and in which manner they are different in form (style) and the literary sensibility of the modern and post-modern in front of the advance of digital technology. Also, how one expects that will be the relation between reader/text towards a new vision that brings the question about new literary forms. It opens the discussion about the way and the manner one assumes it while facing this quest, and what are the modern and post-modern posture related to the question focused. It also examines the involvement level and which are the role of the modern literary criticism at creation and recreation of space and at new textual relations. Key words: Informatized, text, hypermedia, hypertext.

A Internet vem se tornando um campo frtil para experimentaes literrias, envolvendo o hipertexto e recursos multimdia. As meras transposies de textos literrios para o novo ambiente comunicacional, que marcaram os primrdios da Internet, esto dando lugar a obras que so produzidas

dentro de uma lgica prpria de estruturao e funcionamento, utilizando-se softwares, especificamente desenhados para a criao literria e com vistas a um aproveitamento pleno das possibilidades do hipertexto, multimdia e interatividade. O advento das mdias digitais de massa e das recentes
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tecnologias de informao/comunicao coloca em xeque o papel tradicional da literatura e da arte como um todo, desencadeando um movimento de autoquestionamento a partir de seus prprios fundamentos. Estes questionamentos ocorrem sob diversos aspectos, dentre os quais podemos citar: a noo e concepo de autoria, a fragmentao da narrativa, as novas relaes textuais - criadas a partir do conceito de hipertexto, a relao texto/imagem, a interatividade, a virtualizao do texto literrio e a introduo do conceito de cyberliteratura. Diante desse quadro, comea a ser esboada uma potica da literatura ps-moderna e de suas relaes com o mundo virtual, atentando-se especialmente para as obras que procuram redefinir e ampliar o estatuto do literrio, seja pelo dilogo intersemitico do texto com imagens, sons e movimentos, seja pelo questionamento de conceitos sobre leitura, autoria, narrativa e representao. Uma das discusses que atualmente tem merecido lugar de destaque no campo das cincias humanas , sem dvida, a questo relativa ao pensamento e produo literria na era do digital.

desenhar um percurso em uma rede que pode ser to complicada quanto possvel. (LVY, 1997, p. 33)

Ele explica que a idia de hipertexto foi enunciada pela primeira vez pelo matemtico e fsico Vannevar Bush, em 1945, quando trabalhava em um dispositivo denominado Memex, para organizar informaes. Contudo, foi s na dcada de 1960, quando os primeiros sistemas militares de teleinformtica foram instalados, que Theodore Nelson inventou o termo hipertexto para exprimir a idia de escritura/leitura no linear em um sistema de informtica (LVY, 1997 p. 29). Nelson referia-se ao sistema chamado Xanadu, uma imensa rede acessvel em tempo real, como ele sonhava, contendo todos os tesouros literrios e cientficos do mundo, que milhes de pessoas poderiam utilizar, para escrever, se interconectar, interagir, comentar os textos, filmes e gravaes sonoras disponveis na rede, anotar os comentrios, etc. (ibidem). interessante destacar que, para Lvy, o hipertexto no deve ser limitado s tcnicas de comunicao contempornea, pois ele retoma e transforma antigas interfaces da escrita.
A impresso, por exemplo, primeira vista sem dvida um operador quantitativo, pois multiplica as cpias. Mas representa tambm a inveno, em algumas dcadas, de uma interface padronizada extremamente original: pginas de ttulos, cabealhos, numerao regular, sumrios, notas, referncias cruzadas. Todos estes dispositivos lgicos, classificatrios e espaciais sustentam-se uns aos outros no interior de uma estrutura admiravelmente sistemtica: no h sumrios sem que haja captulos nitidamente destacados e apresentados; no h sumrios, ndice, remisso a outras partes do texto, e nem referncias precisas a outros livros sem que haja pginas uniformemente numeradas. (Idem, p. 34)

HIPERTEXTO, MULTIMDIA, HIPERMDIA E FICO LITERRIA


Diversos autores tentam explicar o que significam estes termos, to em uso nos ltimos tempos. Lucia Leo, no seu livro O Labirinto da Hipermdia (1999, p. 15), explica de maneira simples o que um hipertexto: um documento digital composto por diferentes blocos de informaes interconectadas, atravs de vnculos eletrnicos ou links, que permitem ao usurio avanar na leitura na ordem desejada. Muito vinculado tambm ao uso do computador, encontra-se a palavra multimdia, que em seu sentido mais comum refere-se incorporao de informaes diversas como som, textos, imagens, vdeo, etc., em uma mesma tecnologia -o computador (idem, p.16). Hipermdia, por sua vez, uma tecnologia que engloba recursos do hipertexto e multimdia, permitindo ao usurio a navegao por diversas partes de um aplicativo, na ordem que desejar (idem, p.17). Para Pierre Lvy (1997), os chamados blocos de textos so ns e os links conexes. Para ele, o chamado hipertexto
um conjunto de ns ligados por conexes. Os ns podem ser palavras, pginas, imagens, grficos ou partes de grficos, seqncias sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informao no so ligados linearmente, como em uma corda com ns, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexes em estrela, de modo reticular. Navegar em um hipertexto significa, portanto,

Quer dizer, existe uma relao dos textos com a escrita, que, desde o momento em que foi inventada, permitiu a possibilidade de um exame rpido do contedo, de acesso no linear e seletivo ao texto, de conexes com outros livros graas a notas de roda p de pginas e s bibliografias. Podemos fazer uma relao semelhante dos textos eletrnicos com a estrutura dos textos de Fico Literria que possuem sumrio e notas para nos remeter a determinadas pginas. Esto organizados em captulos e estes em sees fixas, permitindo uma rpida procura da informao desejada. Os ttulos e as imagens do livro chamam nossa ateno, dando-nos uma primeira idia da informao apresentada. S ento, comeamos, aps olhar o livro e sua capa, a ler-lhe o sumrio, at que alguma matria atraia nossa ateno e nos detenha, para

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uma leitura especfica. Essa estrutura reflete, em parte, a estrutura atual, das verses on-line, dos chamados textos eletrnicos. Eles so divididos em partes similares ao livro impresso: uma primeira pgina com as informaes principais dos captulos. Dali o usurio comea a navegar dentro das pginas, de acordo com o seu interesse, atravs dos links, que podem estar em imagens, textos ou qualquer elemento da pgina. Os links permitem uma ruptura da seqencialidade do texto, uma liberdade que no possvel no modelo de texto linear. O assunto que, por motivos de espao, precisa ser sucinto para a verso impressa, no precisa do mesmo tratamento na verso on-line, da esta verso ser maior que aquela. Uma publicao digital que otimiza o uso de hipertexto pode disponibilizar links em determinadas matrias ou assunto para outras pginas dentro de seu prprio site ou outros sites, com informaes detalhadas sobre o assunto tratado, ou disponibiliza links para edies passadas. Esta publicao tambm deveria fragmentar reportagens maiores em textos ligados entre si por links, j que grandes documentos dificultam a leitura e demoram a ser transferidos para a tela. Por sua vez, a exigncia de textos eletrnicos, no s as resenhas, mas tambm os constitudos por temas para que possam ser levados a hipertexto com imagens, requer maior organizao no planejamento quando comparado verso impressa. Alm disso, deve-se pensar na possibilidade de usar recursos multimdia, como gravaes de partes de entrevistas e at mesmo vdeos relacionados informao, tudo atravs de links. Mas, sempre levando em conta que quanto mais recursos e imagens houver numa determinada pgina mais tempo levar para ser carregada no computador do usurio, que muitas vezes no tem tempo disponvel. Para facilitar toda essa viagem atravs das pginas, o usurio conta com o que Lvy (1997) chama de princpios de interao amigvel: a utilizao de cones de fcil compreenso das estruturas de informao e dos comandos; o uso de mouse que permite ao usurio agir sobre o que ocorre na tela de forma intuitiva; os menus que mostram ao usurio as operaes que ele pode realizar e uma tela grfica de alta resoluo (p. 36). A isso podemos agregar alguns servios de busca por palavrachave, que nos oferecem algumas verses on-line do texto, e outros servios, como publicaes na rea de conhecimento desejada, acesso base de dados das livrarias ou redes de acervo bibliogrfico das universidades ou do prprio site do autor. Outra das caractersticas do novo texto refere-se interatividade ou participao direta do usurio na publicao. Segundo explica Andr Mata, no seu Guia da Internet (1997,
as notcias nos servios on-line e publicaes digitais na Web

no so distribudas, como nas formas anteriores de editorao (mdia impressa, rdio, TV, impresso, etc.), mas sim disponibilizadas em redes globais de computadores. Isto quer dizer que preciso haver um movimento ativo do leitor em busca das informaes que lhe interessam em diversos site.

Segundo ele, o que mais chama a ateno no texto online essa juno entre interatividade e comunicao de massas, at h pouco tempo dissociadas, j que no se pode falar de interatividade na televiso, no rdio e nos meios impressos. Para aproveitar esse potencial interativo da rede, os textos literrios on-line e as publicaes em geral esto fazendo uso de recursos como e-mail, os chats ou bate-papo e as pesquisas ou enquetes on-line sobre diversos temas de atualidade. De todos esses recursos, o mais utilizado o e-mail, para comunicao direta entre autores, editores, especialistas e usurios ou leitores. Tambm existem os chamados fruns de discusso de temas especficos, onde, atravs de e-mail, os usurios mandam opinies. Estas ficam disponveis na seo para serem lidas por quem se interesse em ler ou enviar a sua. Assim, podemos ver como o hipertexto desafia as prticas tradicionais de texto e como, diante da prtica corrente do mtodo de close reading, tornou-se, igualmente, problemtico o nosso conceito tradicional de literatura. A crise da crtica decorre em grande parte do fim das ideologias, que arrastou consigo as metodologias literrias afins (o estruturalismo e a escola de Frankfurt, a psicanlise e a crtica marxista). A idia de colaborao tornou-se mais determinante do que a idia de coerncia textual ou mesmo de pertinncia semntica. inevitvel que a interatividade venha a modificar o relacionamento da crtica com o navegador da Internet. Primeiro ponto: se, por um lado, o excesso de informao e a necessidade de encontrar critrios de dizimao, de subtrao, ou de adio, provavelmente, cria papis flexveis que variam de domnio para domnio, por outro lado, o futuro ser pior que o presente e atingiremos um nvel em que o excesso de informao e de censura se tornaro inseparveis. Os estudos acerca da utilizao dos hipertextos (DEDE, 1988; FOSS, 1988) trazem luz certos obstculos que derivam essencialmente da desorientao e da sobrecarga cognitiva provocadas pela navegao hipertextual (entropia cognitiva). Note-se, como P. Virilio o tem feito, que: nunca h informao sem desinformao. E uma desinformao de novo tipo parece possvel doravante, nada tendo a ver com a censura voluntria. Segundo ponto: o da identificao do leitor com o crtico e a conseqente morte deste: A opinio de toda a gente tem mais ou menos o mesmo peso on-line...No passo de mais um fulano on-line, diz o famosssimo crtico de cinema Roger Ebert. Um frum on-line? Ser esse o futuro da crtica? Terceiro ponto: o da interatividade
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multisensorial, a que se refere Laufer, por exemplo, e em que, pelo menos no mundo do cyborg, entra em cena a engenharia do corpo eltrico. Da mesma maneira que no faz sentido falar do fim do texto, em vez de falarmos do fim da crtica, melhor ser falarmos da sua transformao. Pode-se praticar uma crtica comprometida que no meramente posicionada, que j no ideologicamente alinhada de qualquer forma clara e manifesta e que j no obrigada a manter uma posio ou apresentar uma defesa argumentativa - que de preferncia nmade e ttica. Os problemas comeam com a definio da textualidade, prolongam-se na questo da prtica textual, que se d pelo nome de close reading, desembocam na sociologia da recepo, (por exemplo: como classifico Isto? como lido com a clusula e a indeterminao nas narrativas interativas?), prolongam-se com a questo da censura e terminam com a questo dos direitos de autor. Parece evidente que a mutao tecnolgica trazida pelo hipertexto tambm uma mutao cultural. A tecnologia do hipertexto liberta da antiga opresso das tcnicas de reproduo e das instncias de destinao; espera-se que a prtica da hiperfico produza o mesmo efeito libertador, na passagem do paradigma clssico da literatura para o novo paradigma em presena. A teoria desconstrutiva pode ser vista como o culminar de diferentes histrias da leitura, porque nada existe fora do texto, tambm no existe distncia entre leitor e texto. Igualmente, a idia de texto originrio se esvai, perdendo-se a linha que separava a crtica da criao literria da criao textual. Uma nova tarefa, nunca acabada e aportica, incumbe agora ao crtico: descentrar o texto, abrindo-o a outros textos, disseminar, dinamitar os horizontes semnticos da textualidade. No apenas Hartman que acusa os crticos da linha de Derrida de terem perdido o contato com a tradio arnoldiana e terem renunciado transmissibilidade e a uma certa intersubjetividade. Hartman partilha com Arnold uma concepo da funo do crtico como profeta. No fim da era mecnica, muitos daqueles que no esto on-line parecem possudos de uma certa dose de tecnofobia, derivada de um medo visceral do que a Net representa. Ao ouvir palavras como piratas e genricos, imediatamente pressupem que o ciberespao um terreno frtil para criar pervertidos virtuais e cyberfreaks empenhados em corromper a sociedade. O novo texto constitui-se no processo de refazer os textos antigos, de os violar e de se abrir deliberadamente aos desafios de leituras alternativas.

A questo dos direitos do autor est sempre presente no discurso sobre a publicao eletrnica. Esses direitos tendem a ser um problema mais complicado no campo das humanidades do que no das cincias. Nestas ltimas, a publicao de investigao concentra-se sobretudo em revistas, e os editores tm vindo progressivamente reclamar direitos de autor sobre elas. Historicamente, a lei sobre os direitos de autor tem protegido a propriedade intelectual, controlando a distribuio e reproduo dos meios fsicos que corporizam essa propriedade intelectual (um livro, por exemplo). O que contraria este regime criado pela Internet o fato de que a mquina utilizada para aceder obra - o computador - a mesma mquina que o leitor habitual pode usar para reproduzir e distribuir instantaneamente mltiplos exemplares da obra. A publicao eletrnica no respeita fronteiras nacionais e a transmisso de obras pelos sistemas online h muito que possvel. Com a transformao do texto, tambm a crtica se transformou. Ser a potica do hipertexto uma das formas do trabalho (da potica) do luto?

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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Letras

CINEMA E LITERATURA: INTERAO ENTRE AS DIVERSAS ARTES1


Joel Cardoso

Joel Cardoso professor de Literatura Brasileira, do programa de graduao e ps-graduao da UFPA.

Resumo
Reflexes sobre a utilizao do cinema como possibilidade de leitura na prtica pedaggica nas aulas de Literatura. Do texto literrio para o texto flmico ou vice-versa. Palavras-chave: texto literrio, texto flmico, interdisciplinaridade, processos de leitura.

Abstract
Reflections about the utilization of cinema as possibility of reading in pedagogic practice in literature classes. From the literary text to the filmic text, or vice-versa. Key words: Filmic Text, Literary text, Interdisciplinary, Reading process.

SOBRE A LEITURA
Admitindo, por conseguinte, que todo o fenmeno artstico constitui um peculiar fenmeno comunicativo, julgamos teoricamente indispensvel o reconhecimento de que as vrias artes possuem um estatuto comunicacional diferenciado. Esta diferenciao funda-se na natureza diversa dos signos constituintes do sistema semitico de cada arte, na heterogeneidade dos cdigos, dos canais, dos mecanismos de recepo e dos factores pragmticos actuantes em cada arte. A literatura, dada a sua essencial solidariedade semitica com o sistema da comunicao por excelncia de que o homem dispe a linguagem verbal , ocupa necessariamente uma posio privilegiada entre todas as artes. (VTOR MANUEL DE AGUIAR E SILVA) Parece cada vez mais difcil conceber um sistema de imagens ou objetos, cujos significados possam existir fora da linguagem. (...)
1 Texto apresentado durante o Primeiro Encontro de Arte-Educadores do PROJETO ARTE NA ESCOLA, em Belm, em setembro de 2003.

Haver um sistema de signos que possa dispensar a linguagem articulada? A palavra no ser o elemento de difuso fatal de qualquer ordem significante? (ROLAND BARTHES) *** Antes da aquisio da leitura, como a concebemos formalmente, j ramos leitores. Todos ns somos seres que, para sobreviver, somos inapelavelmente leitores. Aprendemos a ler desde a mais tenra idade. A leitura, a capacidade de compreenso, de apreenso, viabiliza-se em processos de decodificao, de descodificao inteligveis e interativos de mensagens, as mais diversas. Formal ou informalmente, lemos, por exemplo, a realidade que nos cerca, as fisionomias das pessoas, os fenmenos da natureza, os gestos e as reaes, enfim, o mundo. Seres ficcionais quando criamos a fico - e ficcionalizados (quando somos criados por outros), ns sempre nos interessamos pelas narrativas. Narramos as nossas vidas e tomamos conhecimento da vida e, pela vida afora, de outras narrativas, que constituem as outras pessoas, outras existncias, outros contextos, quer pessoais, quer histricos, nos quais estamos de um modo ou de outro - inseridos. Transformamos nossas vidas
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Espao Cientfico - Revista do Inst. Luterano de Ensino Superior de Santarm - 2003 - Vol. 4 - pginas 23 a 26

em discursos que, institudos como tais, nos remetem ao mundo da fico. Eis-nos, ento, fico de ns mesmos, das nossas realidades, das nossas vidas. Ora, cinema e literatura so, via de regra, artes essencialmente narrativas. Nem apocalpticos, nem integrados, para parodiar Umberto Eco 2 , vivemos o af de modernidade, na qual, ininterruptamente, as diversas linguagens, os diversos cdigos se misturam, se cruzam, se sobrepem. Linguagens e cdigos advindos das mais diversas fontes: livros, jornais e revistas, rdios, televiso, sistemas computadorizados, slogans, outdoors, sinais de trnsito, desenhos animados, cinemas, teatros, RPG etc. Se um discurso no existe isoladamente, vindo sempre perpassado, entrecortado, referenciando ou carregando explcita ou implicitamente outros discursos, embutindo e escamoteando outros referenciais, um texto, qualquer que seja ele, tambm no existe estanque e compartimentado. Um texto remete sempre a um outro, clara ou tangencialmente, que, por sua vez, como no clebre poema de Joo Cabral, Tecendo a manh, nos remete a outros textos, outros contextos.

e esforos de muitos artfices. A linguagem do Cinema, que como produto final - se pretende unvoca, para se constituir, incorpora, paradoxalmente, outras modalidades artsticas, cada qual com caractersticas e constituies prprias, com existncias e gramticas particulares. Fazem parte da arquitetura cinematogrfica, vale citar, a ttulo de ilustrao, a msica, a palavra falada e escrita, a fotografia, a pintura, o movimento, a dana, a encenao, o teatro, a pera, o jogo de luz. Se a Literatura se constitui, em muitos casos, o ponto de partida para a criao cinematogrfica, na modernidade, entretanto, o Cinema, invertendo esta rota, tem, por seu turno, interferido amide - com suas tcnicas, sua gramtica nos processos de criao literria. Basta que pensemos nos procedimentos de fragmentao que tm caracterizado boa parte da produo literria contempornea. Embora possam caminhar paralelamente, ambas as modalidades Cinema e Literatura so linguagens distintas e tm, tambm, objetivos absolutamente distintos e particulares. O destinatrio, tanto da Literatura, o leitor, quanto do Cinema, o espectador, tambm apresenta caractersticas distintas. Na literatura, deparamo-nos com um receptor nico, o leitor, que recria, no ato de ler, o texto com o qual se defronta. O cinema pode ter um nico ou mltiplos receptores, no caso, os espectadores, para uma nica exibio, ou seja, para um mesmo texto flmico. Se no mundo moderno, a palavra escrita est perdendo a sua primazia, se somos massificados pela ditadura das imagens que assolam o nosso cotidiano, principalmente nos centros urbanos, ns, enquanto educadores, temos uma preocupao com os nossos alunos, nascidos e criados sob a gide da TV, dos jogos eletrnicos uma praga - e do computador. Esse pblico precisa ser trabalhado para, em relao s artes de uma forma geral, e literatura de uma forma particular, desenvolver a sensibilidade adormecida quanto ao ato de leitura, qualquer que seja ele. Na sua prtica docente, o professor pode ou seria deve? - utilizar outros recursos que facultassem uma interao maior com a realidade exterior escola. Uma possibilidade seria lanar mo dos recursos oferecidos tanto pela Literatura quanto pelo Cinema, propiciando ao aluno uma ponte que interligasse, de forma potica potica, artstica e sensivelmente, as palavras material da Literatura -, aos recursos visuais e auditivos oferecidos pelo Cinema, levando o leitor a aprender e apreender - paulatina, mas ininterruptamente - a leitura crtica das imagens. So aquisies de leituras diferentes, mas indissociveis. Um processo, indubitavelmente, complementa o outro, ou, em outras palavras, um leva necessariamente ao outro. Ao lermos, somos levados pelo pensamento de outrem, e, apreendendo a mensagem, traduzindo-a, criamos, mentalmente, imagens. Por

LITERATURA E CINEMA
Os desenvolvimentos da lingstica, da antropologia e da psicanlise suscitaram o aparecimento de uma nova disciplina ou interdisciplina cientfica: a semiologia, que estuda os diferentes sistemas de signos e smbolos que constituem as mtiplas formas de comunicao. (...) Vrios estudiosos propuseram que o mtodo das cincias humanas fosse capaz de descrever e interpretar esses subsistemas e o sistema geral que os unifica. Esse mtodo a semitica, tomada como metodologia prpria s cincias humanas e capaz de unific-las. (MARILENA CHAU)

O que pretendemos numa primeira instncia correlacionar ou fazer uma aproximao entre dois sistemas estruturados de cdigos, que se viabilizam concretamente atravs de linguagens e signos absolutamente distintos e autnomos. Referimo-nos, aqui, Literatura e ao Cinema. Muito mais antiga e com uma soberania tradicionalmente instituda e aceita, com seu status muito bem definido no mundo cultural e das artes, a Literatura, como sabemos, , primordialmente, a arte da palavra. Exige, para a sua elaborao, na maioria das vezes, o ato solitrio de apenas um criador. O Cinema, ao contrrio, uma arte plural, centrada, sobretudo, na imagem visual. Para sua elaborao exige criao conjunta
2 Referncia ao livro Apocalpticos e integrados, de Umberto Eco, So Paulo: Perspectiva, 1970.

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outro lado, ao assistirmos s projees de imagens, ns as transformamos, de imediato, em discursos, ou seja, criamos, de acordo com a nossa viso de mundo, com a nossa experincia, textos paralelos.

PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZADO DA IMAGEM


No h duvida que na ordem da percepo, a imagem e a escrita por exemplo no solicitam o mesmo tipo de conscincia, e a prpria imagem prope diversos modos de leitura. (...) Pode, portanto, no ser oral; pode ser formada por escritas ou por representaes; o discurso escrito, assim, como a fotografia, escultura, a dana, os espetculos, tudo isso pode servir de suporte fala. (ROLAND BARTHES)

bm deve haver uma iniciao linguagem visual, no nosso caso, linguagem cinematogrfica, por sinal, demasiadamente densa, com suas complexidades, apresentando padres que se assentaram, se tornaram cannicos no gosto do receptor, padres j pr-definidos pela mdia, mdia que, por sua vez, j conseguiu, atravs da repetio, estratificar e cristalizar hbitos de consumo. Estamos, pois, frente a um problema que, uma vez constatado, incita-nos para que o resolvamos, incita-nos a novos desafios, ou seja, que ousemos interferir em gostos estruturados, propiciando mudana de hbitos, criando novas possibilidades de fruio textual, revivificando o prazer do texto. Dentre os meios de expresso e comunicao da modernidade, o Cinema, um dos mais complexos e tambm dos mais ricos, com diversificadas e inovadoras propostas de representao da realidade e do mundo, foi o primeiro a ganhar maturidade esttica, ocupando uma posio privilegiada em relao a outras modalidades que veiculam discursos de representao, a televiso, por exemplo. Como indstria do entretenimento, objetivando prioritariamente diverso, o cinema almeja, no entanto, extrapolar esses limites e se constituir tambm como arte. Um filme pode ser um pretexto para instaurar o prazer em abordagens interdisciplinares (matemtica, fsica, qumica, biologia, geografia, histria, filosofia, religio, poltica), para contextualizar situaes polmicas (AIDS, racismo, homossexualismo, violncia, aborto, relaes familiares, relaes entre professor e aluno etc), para sensibilizar atravs da imagem (simbolismo das cores, das imagens, das figuras), para dar acesso s diversas modalidades artsticas (msica, teatro, arquitetura, pintura, a prpria literatura etc.).

Questionamo-nos permanentemente sobre a independncia das imagens quanto produo de significados enquanto signos visuais. Estamos, porm, inclinados a pressupor que a imagem s se constri se apoiada e mediatizada pela linguagem. Consideremos, pois, que a cultura da modernidade est indelevelmente vinculada - para no dizer subordinada - escrita. Para que a comunicao seja possvel, o cdigo verbal, constitudo de imagens, ou, segundo a nomenclatura de Pierce, de iconicidade, remete, inapelavelmente, utilizao de imagens. Estamos certos de que, da mesma forma que possvel o ensino da leitura e, posteriormente, a efetivao de um processo de anlise e interpretao de textos (em prosa ou em verso), frente os quais o professor desvende as artimanhas e recursos formais e constitutivos do texto, os recursos lingsticos utilizados, a mensagem sub-reptcia, possvel, tambm, mutatis mutandis, educar e ensinar quanto maneira de se ver, de se ler e de se analisar um texto imagtico, tornando, deste modo, o espectador mais analtico, mais crtico e, obviamente, mais sensvel. imprescindvel que tiremos o espectador do padro imagtico a que est acostumado. Gostos so cultivados, so modificados, so criados. Gostar de uma determinada coisa , sem dvida, uma opo. Gostar s de uma determinada coisa , lamentavelmente, uma limitao que deve ser repensada, trabalhada. Problematizando o provrbio, gostos podem e devem ser discutidos, repensados, e, conseqentemente, modificados. J que estamos nos reportando aos ditos populares, s vezes, reza outro bordo popular, uma imagem diz mais que mil palavras. H, entretanto, que se selecionar. Que imagem? Vinculada a que texto? Expressa atravs de que meios? Por ou com quais tcnicas? Com quais finalidades? Quais os implcitos? Que intenes veiculam ou ocultam a imagem? Da mesma maneira que temos um processo de iniciao face diversidade e complexidade da linguagem literria, tam-

DA TEORIA PRTICA
Acreditar em algo e no viv-lo desonesto. (MAHATMA GANDHI, 1869-1948)

As imagens, assim como as palavras, so a matria de que somos feitos. (ALBERTO MANGUEL)

Em Bragana, municpio do nordeste paraense onde atuamos, criamos e coordenamos o projeto audio-visual: o cinema como recurso pedaggico, visando inicializao programtica de leituras, tendo o cinema como ponto de partida para as nossas reflexes e atuao. Alm de propiciar lazer e cultura, buscamos formar receptores mais aptos e sensveis para a compreenso, interpretao e anlise dos textos (literrios ou flmicos) que apre25

sentamos comunidade. Sabemos que os modos de produo alteram os modos de recepo textual de acordo com o desenvolvimento das tecnologias, das mudanas sociais, histricas, culturais ou polticas. Se no queremos que a escola se torne completamente obsoleta e ultrapassada, compete ao educador a tarefa de empreender um trabalho permanente e sistematizado, visando interao dessas mltiplas realidades discursivas geradas pela complexidade do mundo moderno.

BETTON, Grard. Esttica do cinema. So Paulo: Martins Fontes, 1987. CHAU, Marilena. Convite filosofia os campos de estudos das cincias humanas. So Paulo: tica, 2000. GERALDI, J. Wanderley (Org.). O texto na sala de aula. So Paulo: tica, 2000. JOSEF, Bella. Literatura e Cinema: a arte dos nossos dias. In: . A mscara e o enigma. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986, p. 318-368. MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. So Paulo: Cia das Letras, 2001. SILVA, Salete Therezinha de Almeida. A linguagem cinematogrfica na escola: uma leitura dO rei Leo. In. CHIAPPINI, Lgia (Coord.). Outras linguagens na escola. 3 ed. So Paulo: Cortez, 1999, p. 81-108.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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Letras

ENSINO/APRENDIZAGEM DE FRANCS COMO LNGUA ESTRANGEIRA NO ENSINO BSICO: UMA PROPOSTA ALTERNATIVA
Emlia Pimenta Oliveira Nelci Brasil Cordovil

Emlia Pimenta Oliveira doutora em Lingstica Aplicada pela PUC-RS e professora da UFPA e do ILES-ULBRA. Nelci Brasil Cordovil especialista em Ensino de Francs Lngua Estrangeira e professora da Aliana Francesa de Belm.

Resumo
Este artigo tem como objetivo contribuir para uma reflexo sobre o ensino/aprendizagem do francs lngua estrangeira no Ensino Fundamental. Toma-se como referncia o trabalho desenvolvido em turmas de 5 srie do Ncleo Pedaggico Integrado da Universidade Federal do Par (NPI/UFPA), por se acreditar que as caractersticas desse contemplam situaes comuns a outros estabelecimentos de ensino - pblicos e privados - que escolheram o francs como lngua estrangeira obrigatria. Palavras-chave: FLE, ensino/aprendizagem, francs instrumental, leitura.

Abstract
This article aims to bring up some reflections about teaching/learning French as a foreign language in basic education. As a reference, we take the work developed in 5th grade classes at the Ncleo Pedaggico Integrado of the Universidade Federal do Par (NPI/UFPA), because we believe that its characteristics covers common situations to other schools public or private which have chosen French as an obligatory foreign language. Key words: French Foreign Language, Teaching/learning, Reading.

PARA INTRODUZIR A QUESTO


A incluso das lnguas estrangeiras modernas no currculo obrigatrio do Ensino Fundamental provocou um sentimento ambguo nos professores de francs1 . Por um lado, enAntes do retorno das lnguas estrangeiras ao currculo obrigatrio do Ensino Fundamental, o Ncleo Pedaggico Integrado da Universidade Federal do Par possibilitava aos alunos de
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quanto primeira ou segunda lngua estrangeira nas escolas pblicas e privadas, o francs tem o seu ensino/aprendizagem assegurado, o que no pode ser desprezado diante do espao ocupado atualmente pela lngua inglesa; por outro lado, os
5 a 8 sries o acesso ao ingls e ao francs atravs do Clube de Lnguas Estrangeiras, que seguia os moldes de um curso particular de lnguas: desenvolvimento das quatro habilidades lingsticas, quatro horas de aula por semana, em turno contrrio ao da srie cursada.

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Espao Cientfico - Revista do Inst. Luterano de Ensino Superior de Santarm - 2003 - Vol. 4 - pginas 27 a 32

professores2 perguntam-se como realizar seu trabalho de maneira satisfatria nas condies de trabalho a que esto submetidos na maioria das escolas: inexistncia de recursos pedaggicos adequados (mtodos atualizados, gravador, vdeo, sala ambiente...), turmas numerosas (45 alunos em mdia em cada sala), nmero reduzido de aulas por semana, grande nmero de turmas, etc. A tais dificuldades vm se somar ainda os problemas decorrentes da (falta de) formao: os professores, na sua maioria, raramente tm a oportunidade de participar de cursos de aperfeioamento/atualizao lingstica, o que limita em parte suas possibilidade de encontrar alternativas para o quadro acima traado. A necessidade de seduzir os alunos para que continuem aprendendo a lngua francesa e, assim, garantir a permanncia dessa no currculo obrigatrio do Ensino Fundamental e Mdio, e, conseqentemente, nos exames vestibulares, esbarra na dificuldade, diante do que foi exposto, do professor tornar as aulas sempre estimulantes e interessantes, caractersticas, do nosso ponto de vista, importantes na conquista dos alunos da 5 srie para o aprendizado do francs, assim como de qualquer lngua.

aquisies significativas, apesar de todo o nosso empenho, levou-nos a refletir sobre a validade do trabalho realizado e a experimentar novas alternativas. Alm disso, os problemas de leitura em portugus lngua materna apresentados por esse pblico apontam para a necessidade de realizao de um trabalho mais eficaz, por parte da escola, no que se refere ao desenvolvimento e ao aperfeioamento da compreenso escrita. E isso vale tanto para os alunos quanto para os professores e no se resume apenas disciplina lngua portuguesa. O fato de a leitura ser concebida, via de regra, em contexto escolar, como decodificao de letras, slabas e palavras permite compreender o porqu das dificuldades mencionadas. Leitura enquanto processo ativo de construo de significado, resultante da interao texto-leitor-contexto, uma concepo ainda ausente das prticas escolares. Feitosa (2001), em sondagem realizada com professores das diferentes disciplinas que compem o currculo da 5 srie do Ensino Fundamental do NPI/UFPA, revelou que os docentes se ressentem, no que diz respeito leitura, da falta de embasamento terico. Em outros termos, os professores reconhecem que no aprenderam, ao longo da formao acadmica, como ajudar seus alunos a desenvolverem as habilidades lingsticas necessrias para torn-los leitores proficientes3 . Para tal autora, embora existam no NPI/UFPA tentativas individuais de reverter esse quadro, os resultados seriam mais vlidos se houvesse um esforo conjunto no mesmo sentido: todos os professores, e no apenas o de portugus, assumiriam o compromisso de contribuir para a formao de verdadeiros leitores. Isso implica, evidentemente, que os docentes estejam preparados para orientar a compreenso dos diferentes textos que compem o programa de suas disciplinas. Tal preparao, a nosso ver, pode constituir-se uma iniciativa individual - o que tem sido a regra - ou institucional, na medida em que a escola perceba o papel fundamental desempenhado pela leitura no ensino/aprendizagem de qualquer disciplina e promova cursos e oficinas que ajudem os professores de qualquer rea a aperfeioar a compreenso escrita de seus alunos. De uma forma ou de outra, essa lacuna deixada em suas formaes acadmicas (FEITOSA, 2001:110) precisa ser preenchida. Se a leitura for reconhecida no contexto escolar como imprescindvel para um bom desempenho em qualquer disciplina, o professor de portugus deixar de ser considerado o nico responsvel pelas dificuldades apresentadas pelos alunos, como ainda acontece atualmente.

EM BUSCA DE UMA ALTERNATIVA


A experincia como professoras de francs e de portugus em turmas de 5 srie e as indicaes presentes nos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), que sugerem o desenvolvimento, no que tange ao ensino/aprendizagem do ingls, de uma nica habilidade nesse nvel de aprendizagem, a habilidade de leitura, possibilitaram encontrar uma resposta para o dilema vivido a cada planejamento, desde o retorno das lnguas estrangeiras ao currculo do Ensino Fundamental: abordagem comunicativointerativa ou instrumental? No Ensino Mdio, esse impasse foi facilmente solucionado devido necessidade imediata de preparar os alunos para os concursos vestibulares, que priorizam a habilidade de leitura em lngua estrangeira. preciso ressaltar que a opo pela metodologia instrumental na 5 srie do Ensino Fundamental foi muito difcil de ser feita. Defensoras incansveis das abordagens comunicativointerativas, resistimos bastante at admitir a grande dificuldade de se desenvolver as quatro habilidades lingsticas (ouvir, falar, ler e escrever) em turmas de 30 alunos em mdia - caso do NPI/UFPA - e nas condies de trabalho descritas anteriormente. O fato de os alunos terminarem o perodo letivo com poucas

2 Optamos pela generalizao professores de francs porque as inquietaes aqui descritas so sentidas no apenas pelos professores de francs do Ncleo Pedaggico Integrado da Universidade Federal do Par, mas por vrios outros colegas que atuam tanto na rede pblica quanto na rede privada de ensino.

3 Os resultados da pesquisa confirmam colocaes feitas por KLEIMAN (1996:07) a respeito da questo.

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Seleo (ateno voltada para o que de fato relevante), antecipao (previso do que est por vir, com base naquilo que est explcito e em hipteses), inferncia (capacidade de captar o que no est dito claramente) e verificao (confirmao ou no das hipteses levantadas) so estratgias de leitura ainda pouco desenvolvidas nas aulas de portugus lngua materna, independentemente da srie, embora inmeras pesquisas em lingstica e em psicolingstica demonstrem o quanto importante ensinar os alunos a coloc-las em prtica desde o processo de alfabetizao. Tais estratgias no precisam ser explicitadas aos alunos: basta possibilitar-lhes refletir que, tanto em portugus quanto em lngua estrangeira, no se l sem um objetivo previamente definido. Em outras palavras, a leitura no um fim em si mesma e as pessoas so levadas a ler por razes de ordem prtica em qualquer que seja a lngua. O conhecimento dessas habilidades por parte do professor possibilita que este planeje e realize intervenes pedaggicas realmente produtivas. Tratase, em outras palavras, de criar oportunidades para que os alunos aprendam a usar e a coordenar as diferentes estratgias de leitura, condio indispensvel para que se tornem leitores de fato competentes. Logo, a concepo de leitura subjacente ao trabalho aqui proposto no a de leitura enquanto decodificao, decifrao, nem a de leitura enquanto atividade livre, dependente apenas do sujeito-leitor. A leitura entendida como uma relao dialtica de contnua interao entre os dados textuais e todos os tipos de informao de que dispe o leitor (DAVES/PROEG/ UFPA, 2000:12), concepo esta que serve de referencial terico no apenas metodologia instrumental, mas tambm didtica da leitura. Assim, o que est na base das atividades propostas para a 5 srie a idia de que
Priorizar o desenvolvimento da leitura em LE implica, necessariamente, defender a concepo de que saber ler , antes de tudo, compreender - construir/elaborar sentido(s). Implica entender que ler no consiste em construir uma representao com base unicamente nas informaes escritas, mas pressupe, antes, interao entre os elementos da pgina e as representaes que o leitor constri antes e durante a leitura, interao entre os elementos formais do texto e o saber prvio, as expectativas e os objetivos do leitor, suas crenas, valores e atitudes. (Op. cit, p.14)

trangeira aprendida sero fornecidas aos alunos na medida em que forem importantes para a construo do sentido do texto. Dessa forma, para o desenvolvimento da competncia de leitura em lngua estrangeira, alm de uma participao ativa,
necessrio que o leitor tenha conhecimento do uso da lngua em sua modalidade escrita, no para se expressar, mas para poder compreender um texto escrito. necessrio que ele saiba reconhecer os recursos lingsticos responsveis pela construo textual/discursiva (e entender o seu funcionamento na dinmica textual) (...). (Op. cit., p.17)

A convico de que as estratgias de leitura aprendidas em francs lngua estrangeira podem colaborar para o desenvolvimento das habilidades de leitura em portugus lngua materna, e vice-versa, refora os argumentos j apresentados para justificar a experincia que nos propusemos a desenvolver e que consiste basicamente em elaborar, aplicar e avaliar atividades de compreenso escrita em turmas de 5 srie do Ensino Fundamental. Esse instrumentalzinho, como costumamos chamar, procura responder aos interesses, expectativas e motivaes do pblico a que se dirige. Logo, os textos trabalhados em sala de aula refletem o universo de crianas e pr-adolescentes francfonos de 10 a 12 anos, faixa etria dos nossos alunos de lngua estrangeira, conforme poder ser observado nas sugestes de atividades. Devido dificuldade de acesso a revistas infanto-juvenis atualizadas, alguns textos foram retirados da internet, de pginas dirigidas a crianas e pr-adolescentes, como o caso dos que servem de base para as atividades que sero descritas posteriormente. Outra condio estipulada para a escolha dos textos a autenticidade dos mesmos. Conversas paralelas, brincadeiras e falta de concentrao durante as aulas so alguns dos comportamentos apresentados pela maioria dos alunos de 5 srie com que trabalhamos. Concordamos mais uma vez com Feitosa (2001) quando diz que talvez fosse oportuno tentar conhecer quais as possveis relaes entre tais comportamentos inadequados e a metodologia adotada na conduo das atividades. Dessa forma, no se pode pensar em um instrumental para essa faixa etria tomando como modelo o que feito para jovens e adultos: muitas adaptaes se fazem necessrias para atender esse novo pblico. O grande desafio do professor despertar no aluno o prazer de estudar a lngua, pois, enquanto para a aprendizagem do ingls so vrias as justificativas, as motivaes para o estudo do francs no so to evidentes para alunos de 5 srie. Assim, nessa fase da escolaridade, a nfase no pode ser dada, por exemplo, s estruturas gramaticais da lngua, sob pena de desinteressar completamente o pblico-alvo.
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A gramtica, em tal concepo, est a servio da compreenso dos textos e das necessidades dos alunos. No se trata mais de ensinar a gramtica pela gramtica, nem de usar o texto como pretexto para a realizao exclusiva de atividades gramaticais. Informaes sobre o sistema formal da lngua es-

Devemos esclarecer, ainda, que a opo pela abordagem instrumental no implica uma recusa absoluta da abordagem comunicativo-interativa nas aulas de francs lngua estrangeira. Atividades de compreenso e de produo oral (escuta e repetio de pequenos dilogos, msicas, poemas, jogos, etc.) podem ser mescladas com o trabalho com o texto, sem problemas. Em suma, a prioridade dada compreenso do texto escrito, mas as outras habilidades tambm podem ser abordadas, s que com menor nfase.

Je naime pas le franais et surtout pas lallemand. Je commence aussi cette anne faire de langlais. En dehors de lcole, jadore faire du roller in-line, de la natation, du snowboard, jouer la Nintendo 64, couter de la musique et chatter sur internet. Jai un frre qui a 10 1/2 ans mais cest souvent la bagarre nous deux!!! Jadore les animaux et en particulier les chevaux. Mon rve serait de faire de lquitation. Depuis un mois je fais un peu descrime pour essayer. Grande nouveaut, depuis peu jai un cochon dInde. Il sappelle CARUSO et il est brun dor. Je lai appel comme a car il chante tout le temps! Mon frre en a aussi un, qui sappelle PICASSO. Il est tricolore comme sil avait renvers les pots de peinture! http://www.reyunion.ch/coraline/sommpresencoco.htm Pr-leitura: Que informaes voc acha que so importantes em uma apresentao pessoal? 1 leitura: 1) D uma olhada no texto, prestando ateno em todos os seus componentes (imagens, nmeros, nomes prprios, organizao, fonte, etc.). 2) Quais as palavras parecidas com o portugus? 3) Existem palavras escritas em outra(s) lngua(s), alm do francs? Quais so elas e o que querem dizer? 4) Qual a relao das imagens com o texto? 2 leitura: A que se referem os nmeros presentes no texto? 13 1/2 = 7me = 64 = 10 1/2 =

A EXPERINCIA DO NPI/UFPA
Ao tomarem conhecimento de que passaramos a desenvolver a competncia de leitura em francs, os alunos reagiram negativamente, pois a modalidade escrita da lngua lhes parecia ainda mais difcil do que a oral, com que vnhamos trabalhando at ento. Diante do texto, a maioria afirmou, antes mesmo de tentar, que no era possvel ler em francs. medida que passaram a perceber, entretanto, que a compreenso no corresponde soma do significado das palavras, isto , que no necessrio conhecer palavra por palavra para saber qual o sentido global do texto, e, at mesmo, para se obter algumas informaes especficas (por exemplo, uma data, um nome, um nmero, etc.), as atividades propostas tambm passaram a fazer sentido para os alunos. A seguir, apresentaremos duas das atividades desenvolvidas nas turmas de 5 srie do Ensino Fundamental do Ncleo Pedaggico Integrado da UFPA. ATIVIDADE 1: CORALINE O texto abaixo foi retirado da Internet, de uma pgina pessoal. Trata-se da apresentao de uma pr-adolescente sua, Coraline. Inicialmente, houve um trabalho de antecipao das informaes que poderiam estar presentes no texto e, em seguida, solicitou-se aos alunos que respondessem a questes de compreenso global e especfica. O desenvolvimento da atividade descrito a seguir. Um aspecto interessante desse documento o fato de ele ser atualizado em mdia a cada seis meses, o que normalmente desperta o interesse dos alunos, que passaram a acessar a Internet para saber quais as novidades que Coraline tem para contar. Salut,

Je mappelle Coraline et jai 13 1/2 ans. Jhabite en Suisse et je suis en 7me anne. Ma branche prfre, ce sont les maths et surtout la gomtrie.

3 leitura: 1) Preencha a ficha de identificao abaixo:

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NOME NACIONALIDADE IDADE SRIE MATRIAS QUE PREFERE MATRIAS QUE DETESTA ANIMAL DE ESTIMAO PASSATEMPOS 2) Quantos anos tem o irmo de Coraline? Como eles se relacionam? 3) Coraline adora animais. Quais os seus preferidos? 4) Qual o esporte que Coraline sonha praticar? Relacione com a resposta anterior. 5) Qual o esporte que ela pratica atualmente para experimentar? 6) Quem so Caruso e Picasso? 7) Sugira um ttulo para este texto (lembre-se de que uma das funes do ttulo resumir o contedo apresentado). Ps-leitura Se voc quiser, voc pode se apresentar, por escrito, em portugus, tomando o texto de Coraline como modelo.

son panier... 7 Heureuse fte des Pres! 8 Bonne fte des Mres, petite maman chrie! 9 Paix et bonheur pour toutes les familles du monde! 10 Attention aux chats noirs: cest Halloween! 11 Que le Pre Nel tapporte tous les jouets du monde! 12 2002 motifs de bonheur et de paix! 13 Pour la nouvelle anne, je te souhaite simplement: 2002 voeux raliss! 14 Joyeuse Saint Valentin! 15 Vive Mardi gras! http://www.fr.greetings.yahoo.com/ Pr-leitura Que palavras, expresses, frases voc espera encontrar em um carto de Natal e de Ano Novo em portugus? E, em outras lnguas, voc acha que diferente? Voc sabe como se diz Feliz Natal e Prspero Ano Novo em ingls, espanhol, italiano, alemo e francs? 1 leitura: 1) H quantas mensagens nesse documento? 2) A que se referem essas mensagens? 3) A partir dessas mensagens, diga quais os eventos comemorados na Frana que no so comemorados no Brasil. 4) Quanto queles eventos comemorados no Brasil e na Frana, voc sabe se h coincidncia de datas? 5) Localize as mensagens em que h: Votos de feliz natal e de feliz ano novo Votos de feliz pscoa Votos de feliz dia das mes Votos de feliz dia dos pais Votos de feliz aniversrio 6) H mensagens que no se enquadram na classificao acima. Quais so e a que datas esto relacionadas? 7) Escolha uma das mensagens de Natal e/ou Ano Novo e crie um carto que dever ser enviado a um(a) colega.
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ATIVIDADE 2: CARTES DE VOEUX O procedimento adotado para o desenvolvimento dessa atividade semelhante ao da anterior. As mensagens que compem o documento tambm foram retiradas de uma pgina da Internet.

DES VOEUX
1 Que Noel tapporte lamour, la joie et la paix! 2 Joyeux Nol et bonne anne! 3 Bon anniversaire: cest aujourdhui la fte dune fillette adore! 4 Bonne fte charmante petite personne! 5 Joyeuses Pques! 6 Coucou! Ce petit lapin a quelque chose pour toi dans

CONSIDERAES FINAIS
As atividades de leitura aqui descritas foram realizadas de maneira satisfatria pelas turmas de 5 srie do Ensino Fundamental do Ncleo Pedaggico Integrado da Universidade Federal do Par, o que nos leva a acreditar que o desenvolvimento da competncia de leitura pode se constituir uma alternativa para o ensino/aprendizagem da lngua estrangeira no contexto escolar, como disciplina obrigatria, quando as condies de trabalho e de formao no possibilitarem o desenvolvimento das quatro habilidades lingsticas, objetivo maior do ensino/ aprendizagem de uma lngua estrangeira. *No resta dvida de que ainda h muito a ser realizado: faz-se necessrio construir um banco de textos (que dever ser constantemente atualizado), estabelecer uma progresso entre os diferentes documentos selecionados, elaborar atividades interessantes, que contribuam no apenas para o desenvolvimento de uma leitura proficiente em lngua francesa, mas que tambm colaborem no aperfeioamento da habilidade de compreenso em portugus lngua materna, j que a dificuldade dos alunos nessa rea apontada por professores de todos os nveis de ensino. A integrao do ensino/aprendizagem da lngua materna com o ensino/aprendizagem da lngua estrangeira, em sistema escolar, considerada atualmente, por lingistas e especi-

alistas em didtica das lnguas, como um caminho vivel para superar os problemas decorrentes da abordagem gramatical que ainda caracteriza a maioria das aulas de lngua portuguesa: alunos com srias dificuldades de compreenso/produo oral e escrita.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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Letras

A PESQUISA ETNOGRFICA NA CONSTITUIO DE UMA ANLISE DISCURSIVA


Jaqueline Brando da Silva

Jaqueline Brando da Silva Mestre em Lingstica (Anlise do Discurso) pela Universidade Estadual de Campinas e professora do Curso de Letras do ILES Santarm.

Resumo
A pesquisa etnogrfica com sua minuciosa descrio de dados, que se constituem de fatos, prticas scio-culturais (linguagem, formas de alimentao, viso de mundo, etc.) e histricas das comunidades, permite a compreenso do modo de se relacionar, de pensar e de sentir de outras pessoas (grupos); da sua importncia em trabalhos com povos indgenas. Palavras-chaves: pesquisa etnogrfica, texto, discurso, narrativa indgena Makurap.

Abstract
Ethnographic research, in its thorough description of data - consisting of facts, socio-cultural practices (language, forms of nourishment, world view, etc), and historical information - allows us to understand the ways of relating, thinking, and feeling of other people, hence it is important for works involving indigenous groups. Key words: ethnographic research, text, discourse, Makurap indigenous narrative.

1 O TRABALHO ETNOGRFICO
Trabalhar junto a sociedades indgenas implica em uma pesquisa etnogrfica que possibilita aos debatedores do tema compreender e interpretar dados/fatos luz do saber local1 . Isso porque o estudioso dessa rea inscrever o discurso social, o dito2 , transformando-o de acontecimento passado, que existe apenas quando dito, em um relato escrito que pode ser con-

1 2

GEERTZ, Clifford. O saber local. 3 ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 249. Na concepo de Geertz (1997), aquilo que relatado.

sultado novamente, em um outro momento. O trabalho etnogrfico consiste em um tipo de interpretao do dito, da memria. tambm um tipo de elaborao dos dados obtidos em pesquisa de campo e uma descrio densa de um ou de vrios aspectos sociais ou culturais de um povo ou grupo social: o etngrafo traa a curva de um discurso social, fixando-o numa forma inspecionvel (GEERTZ, 1997, p.29). Apesar disso, no o acontecimento enquanto acontecimento que interessa ao etngrafo, o discurso social bruto do qual ele no participou da construo; antes, o significado do acontecimento do falar - atos de fala, de algumas pequenas partes do discurso do informante - que pode levar compreenso da realidade. Con33

Espao Cientfico - Revista do Inst. Luterano de Ensino Superior de Santarm - 2003 - Vol. 4 - pginas 33 a 43

seqentemente, para compreender a cultura de um povo necessrio que esse povo seja escutado e colocado no quadro de suas prprias vivncias, que no se perca de vista as suas particularidades, que se vejam as coisas do ponto de vista da realidade desse povo. Todavia, no se deve esquecer que, ainda assim, essas descries e interpretaes sero sempre do ponto de vista de uma interpretao cientfica: o estudo interpretativo da cultura representa um esforo para aceitar as diversidades entre as vrias maneiras que seres humanos tm de construir suas vidas no processo de viv-las (GEERTZ,1997, p.29). Assim, compreende-se que uma pesquisa com base etnogrfica faz uma minuciosa descrio dos fatos/dados, resultados da observao de prticas socioculturais (linguagem, formas de alimentao, viso de mundo etc.) e histricas, de forma a permitir que seus ouvintes/leitores, em geral, possam compreender e relacionar o modo de pensar e os sentimentos de outras pessoas (grupos). Como a histria do contato entre os colonizadores e os ndios, que j viviam no Brasil, contada sem que se oua a voz do colonizado, toma-se a narrativa indgena como um texto, em que circulam discursos produzidos historicamente. Assim, nesse texto, a trama de sentido pode ser compreendida a partir da interpretao dos dados etnogrficos, dos documentos, e, principalmente, da voz que, ao falar de si, fala do outro, mas que mesmo assim afirma sua identidade.

das por Angenot (1994) 4 . Apenas os grupos Ajuru, Aru, Makurap Arikapu, Tupari e Jaboti preservam as suas lnguas nativas. Dentre esses, aqueles que tm o maior nmero de falantes so os Makurap, 45 falantes, e os Jaboti, cerca de 50 falantes, (PIRES, 1992); os demais apresentam menos de 10 falantes (BRAGA, 1992). Como o PIG constitudo por todas essas etnias, havia vrios caciques, e havia algumas etnias que, devido ao nmero de membros, um ou dois, no possuam caciques. Todavia, politicamente, as decises ficavam por conta dos Makurap e dos Jaboti que, por motivos histricos, eram os dois Tuxauas5 da comunidade. O PIG compreende quatro reas: Baa da Coca, Baa Rica e Baa da Ona6 , alm da sede da FUNAI - Posto Ricardo Franco, um total de 115.788,0842 ha (cento e quinze mil, setecentos e oitenta e oito hectares, oito ares e quarenta e dois centiares) e permetro de 222.976,174 quilmetros (duzentos e vinte e dois mil, novecentos e setenta e seis metros e cento e setenta e quatro milmetros). A rea foi homologada em 19967 . Nossa rea base era a considerada central pelas comunidades - Posto da FUNAI, e como no tnhamos recursos suficientes para o deslocamento e dada a distncia de algumas aldeias, no conseguimos trabalhar com todas as etnias. Apesar da distncia, muitas vezes, caminhei alguns quilmetros com os nativos, para conseguir informaes, ou para ir roa, ou mesmo para visitar o parente de algum deles, que morava mais distante. Durante o trajeto, conseguia sempre mais informaes e dados para a pesquisa, que me fizeram perceber algumas influncias de ordem fonolgica, morfolgica e sinttica da lngua indgena na variedade do portugus ali falado. Essas conversas dirias coletadas sinalizaram-me algumas interpretaes para anlise lingstica e a pesquisa etnogrfica in loco com gravaes do que me era permitido e levantamento de dados/fatos histricos, viso de mundo, prticas socioculturais e, posteriormente, levantamento documental, o que me possibilitou fazer tambm uma leitura discursiva das narrativas indgenas Makurap. Segundo documentos oficiais, a explorao e a ocupao da regio em torno do rio Guapor iniciou-se no sculo XVIII, por viajantes e missionrios e, no sculo XIX, por seringueiros que trabalhavam s suas margens e ao longo dos baixos cursos e afluentes. Em 1930, o SPI (Servio de Proteo ao ndio) implantou o PIG (ento Posto Indgena de atrao Ricardo Franco) para que contactasse os diversos grupos indgenas que viviam ao longo do rio Guapor e seus afluentes(LEO, 1986, p. 1). Outra finalidade do posto era atrair os grupos indgenas para
Artigo publicado em Anais da ABRALIN, 1994. Caciques 6 Nome das localidades que compreendem a Reserva Indgena do PIG. 7 Decreto de 26 de maio de 1996.
4 5

2 A PESQUISA ETNOGRFICA NO POSTO INDGENA GUAPOR


No perodo de 1990-1995, como bolsista de Iniciao Cientfica de O Portugus do Posto Indgena Guapor - RO (doravante este posto ser tratado como PIG), desenvolvido pela UFPA, fiz um levantamento, in loco, da variedade lingstica usada por essa comunidade indgena, com o objetivo de sistematizar e analisar o objeto de estudo. A pesquisa de campo e coleta de dados lingsticos deu-se de dezembro de 1993 a fevereiro de 1994. Os dados coletados configuram-se como narrativas mitolgicas e conversas em Portugus. O posto localiza-se ao sul do Estado de Rondnia, margem esquerda do rio Guapor, prximo cidade de GuajarMirim, fronteira com a Bolvia e, at 1995, possua 276 indgenas de nove etnias diferentes, a saber, Ajuru, Aru, Makurap, Tupari, Arikapu, Cano, Jaboti, Massak e Cujubim. Os quatro primeiros so classificados, lingisticamente, como grupos de lngua Tupi (RODRIGUES, 1986); os quatro grupos seguintes so isolados3 , e sobre os Cujubim algumas informaes foram da3 Grupos cuja classificao lingstica no revelam parentesco com nenhuma outra lngua (ver Rodrigues, 1986:93)

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a regio circunvizinha sua faixa de atuao, visando assim formar uma Colnia Agrcola Indgena (...). Esse tipo de atrao de grupos indgenas e fixao desses povos numa colnia agrcola (...) seria modelo para a regio (AMORIM,1993, p.1). Em 1935, o Marechal Rondon aprovou a demarcao e a regulamentao fundiria da rea indgena (AI) Guapor. Todavia, tal demarcao no incorporava as baas da Coca, Rica e do Igarap. Em 1958, comearam as invases de garimpeiros a essas baas e o governo Federal recebe a primeira proposta de re-incorporao dessas terras ao PIG. Apesar disso, somente em 1976 foi levada demarcao uma rea, que mesmo assim era muito inferior vasta regio historicamente ocupada pelos povos que ali viviam. Na ocasio, ndios e chefe do Posto Indgena juntaram-se e impediram a continuao dos trabalhos de demarcao. Diante desses conflitos, em 1977, a FUNAI criou um grupo de trabalho (GT) para resolver esse impasse, mas o parecer da equipe novamente retirava as baas da rea destinada aos ndios do PIG. As discusses continuaram e, em 1979, o engenheiro agrimensor Jos Jaime Mancin parte para a rea Indgena Guapor (AI Guapor). Depois de conversas e pesquisas, o agrimensor relata, em 1980, que no considerava recebidos os servios demarcatrios (idem) executados anteriormente, ou seja, as terras no tinham sido demarcadas. Apesar das evidncias de erros demarcatrios, somente em 1985 foi institudo um GT, composto por tcnicos da FUNAI e INCRA, que props inicialmente a rea de 128.196 hc e permetro 215 Km. Em 1996, o governo Federal homologou o AI Guapor com 115.788,0842 hc e permetro de 222.976,174 quilmetros, agora incluindo as trs baas. 2.1 DADOS LINGSTICOS ANTROPOLGICOS DA FORMAO DO PIG De acordo com o relatrio da antroploga Maria Auxiliadora C. de S Leo (1986), os povos habitantes da regio do Guapor so de lngua Tupi, patrilineares 8 e exogmicos (apud AMORIM,1993, p. 01). Segundo esse relatrio, os povos que habitavam a regio do Guapor foram todos reunidos na AI Guapor, logo aps o contato. Essa aglomerao de diferentes povos no PIG no respeitou as diferenas culturais existentes entre os vrios grupos que ocupavam uma vasta regio na fronteira entre Brasil e Bolvia, aproveitando os recursos naturais disponveis na regio de terra firme e vrzeas (idem). Os grupos colocados nessa rea, desde 1947, segundo levantamentos histricos da antroploga Leo (1986), foram os Tupari, Arikap, Cano, Ajuru, Makurap, Ajuru e Jaboti. Segundo Rodrigues(1986), o Makurap um grupo indgena da famlia Tupari, tronco Tupi e vivia tradicionalmente,
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ao longo do Rio Branco, afluente da margem direita do Guapor, nos rios Colorado e Mequens (MALCHER, apud AMORIM, 1993, p. 01). Os documentos oficiais mostram que o contato entre eles e a FUNAI deu-se em1947. Em relato de 1962 (GALVO, 1986), o cacique Wait Tupari narrou para Frans Caspar como fora a sua vida e a de alguns grupos do PIG. Segundo o relato, os Makurap foram sempre amigos do povo Tupari, e houve um certo capito e doutor, chamado Waikuli, que matou muitos Makurap e Jabuti envenenados. O relato diz que, como os Makuap trabalhavam na extrao de seringa, estes convenceram os Tupari a trabalhar nessa atividade. Os Makurap trabalhavam abrindo picadas atravs da mata e, em troca, recebiam facas e machados, calas e camisas, redes e mosquiteiros. Todavia, o contato contnuo com os brancos levou os Makurap a uma epidemia de tosse, que culminou com a morte de muitos. Devido a esse fato, em 1952, os Makurap, juntamente com os Tupari, Arikap, Jaboti e outros, atrados por missionrios catlicos, abandonaram seus territrios nas cabeceiras dos afluentes da margem esquerda do Guapor e se concentraram em torno da misso, instalada no mdio rio Branco(AMORIM, 1993). Em 1954, a maioria dos ndios dos diferentes grupos foi dizimada por uma epidemia de sarampo. Hoje, a quantidade populacional de ndios de Rondnia duas ou trs vezes menor do que aquela do momento do contato. A metade da populao indgena de Rondnia, no mnimo, morreu de doenas ou massacres nas ltimas quatro dcadas, completando um morticnio que comeou com os primeiros desbravadores da regio (idem). No incio do contato com o branco, os grupos indgenas, que hoje habitam o PIG e que sobreviveram violncia brutal do contato, foram absorvidos como mo-de-obra para o trabalho em seringais, onde se pode dizer que as relaes eram de semi-escravido, em regime de barraco. Nesse contato inicial com o branco, a lngua Makurap foi utilizada como idioma intertribal e o portugus foi utilizado na relao administradorseringueiro. Em conseqncia disso, a populao atual bastante heterognea: h vrias tribos, vrias lnguas e vrios graus de aculturao (MOORE, 1990). A organizao scio-poltica do PIG mostra que os grupos fixados no Guapor desenvolveram mecanismos que possibilitaram a manuteno dos principais aspectos de sua cultura. A reorganizao, entre os grupos, percebida nas trocas matrimoniais, relaes de parentesco, organizao espacial etc. (LEO, 1986, p. 2). De fato, no perodo em que ali estive, observei que havia uma diviso espacial do Posto Ricardo Franco entre os dois grupos majoritrios, Makurap e Jaboti. Esses dois grupos moram na rea central do Posto (prximo enfermaria, escola, casa do chefe de posto). Essa diviso espacial deve-se ao fato de
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Sucesso por linha paterna.

a regio central ter sido tradicionalmente moradia dos grupos Makurap e Jaboti. Tambm segundo Leo (1986) os casamentos intertribais entre os Jaboti e os Ajuru, Cano, alguns Tupari e Aru propiciam vrias formas de alianas sustentadas pelo vnculo de parentesco (idem). Conforme Leo (1986), os Jaboti detm a supremacia poltica no PIG, principalmente quando se observa o contato deles com os brancos e nos momentos de resolues mais importantes da comunidade. O domnio cultural no PIG, no entanto, dos Makurap: A comunidade do PIG incorpora aspectos importantes da organizao social, da lngua (quase todos os adultos entendem e falam Makurap, alm do portugus e da sua lngua original) e das festas tradicionais (idem). Outro aspecto para o qual a antroploga chama a ateno a existncia de uma certa animosidade entre os grupos majoritrios.
As reivindicaes diferenciadas, as acusaes mtuas, a diviso de espao para plantao e coleta e formao de grupos para caar e pescar, so os aspectos mais visveis da diviso entre os grupos e da forma como os agentes se movimentam dentro de um espao que lhes foi imposto a pelo menos 50 anos. (p. 21)

dura cerca de meia hora. A chicha e os narcticos (ps alucingenos produzidos das folhas de rvores), sempre foram utilizados nas festas e nos rituais de cura (MOORE, op. cit.). No relatrio de Leo (1986), consta tambm que entre os grupos do PIG existe a crena de que h um fluido invisvel, utilizado para o bem ou para o mal, que pode ser capturado, manipulado e incorporado pelos xams. Sobre isso, a autora afirma que persiste entre estes povos a crena de que os espritos dos mortos retornam para prejudicar seus inimigos e proteger seus amigos. 2.2 A SITUAO EDUCACIONAL E ECONMICA NO PIG Desde 1949, encontra-se instalada uma escola oficial no PIG que, segundo Leo (1986), tem como objetivo ensinar aos ndios, o portugus, higiene e valores morais da sociedade nacional, numa prtica deculturativa. Quando estive no PIG, os professores que nela atuavam eram, em sua maioria, ndios. As duas lnguas, alm do portugus, que faziam parte do currculo da escola eram as lnguas Makurap e Jaboti. Atualmente, o portugus a lngua utilizada na comunicao diria do Posto e, devido sua expanso, hoje a lngua materna dos jovens, que, em sua maioria, j no falam a lngua de seu grupo. Isso se deve, em parte, ao intercasamento entre as tribos, pois, se duas pessoas de tribos diferentes se casam, provavelmente, falaro entre si em portugus e, conseqentemente, seus filhos aprendero primeiro a lngua portuguesa. A interao com pessoas de fora do Posto, a exposio ao nosso sistema de comunicao em ondas radiofnicas e a presena da escola em lngua portuguesa contribuem tambm, por outro lado, para o uso generalizado da lngua portuguesa. A economia do PIG baseou-se no extrativismo da seringa e da castanha que, introduzido no PIG pelo antigo Servio de Proteo ao ndio (SPI), foi incorporado, a partir da dcada de 1940, economia deste posto. Hoje, a agricultura dos povos do PIG baseia-se em arroz, milho, macaxeira, banana, amendoim, car, batata. O plantio da roa feito pelas mulheres, cabendo aos homens a derrubada da roa. Cada famlia nuclear possui seu roado, o que no impede uma distribuio dos alimentos por grupos familiares da produo. A caa e a pesca so voltadas para a subsistncia dos prprios grupos que, apesar de serem atividades de grande importncia -tanto que so comuns caadas e pescarias coletivas-, constituem-se atividade difcil. Para caar, era preciso ir muito longe devido ao desmatamento; alm disso, os ndios da reserva caavam com espingarda e, como muitos no tinham munio, no saam para caar; por isso, muitas vezes, os ndios s comiam farinha. Alguns ndios mais velhos ainda

De acordo com a informante, entre os Makurap e os Jaboti houve um passado de luta que persiste ainda hoje. Outro ponto de disputa entre os Jaboti e os Makurap o estudo de suas respectivas lnguas. Por constiturem os grupos que ainda apresentam um nmero grande de falantes e por suas lnguas serem objeto de pesquisas lingsticas, eles disputam o prestgio decorrente dos interesses cientficos da sociedade branca. No passado, segundo o relatrio da antroploga Maria Auxiliadora C. de S Leo (1986), havia cinco xams ou curadores, que, segundo o Handbook of South American Indians, tinham grande importncia para os povos que residem no PIG, tanto nos processos ritualsticos, quanto nos de cura. No perodo em que l estive, havia mais de quatro pajs, os principais eram da etnia Ajuru e Makurap, todavia nenhum ritual aconteceu, mas fiquei sabendo que os velhos se renem com todos os outros grupos na casa de chicha9 para beber e cantar. A religio persiste forte e ainda h pajs que inspiram pelo nariz um p alucingeno, que, segundo pesquisas realizadas no museu Emlio Goeldi Belm-PA, composto por trs substncias: anjico (anadenanthera peregrina), tabaco e cinza da casca de um certo espinheiro (accia polyphylla). Esse p, que usado somente em cerimnia de pajelana, tem um efeito alucingeno que
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Bebida fermentada a base de milho.

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costumam pescar com azagaia10 e ensinam seus filhos (ou netos) como pescar com esta lana; os outros pescam com anzol. 2.3 OS POVOS DO PIG E AS NARRA TIV AS NARRATIV TIVAS TRADICIONAIS Os povos indgenas que vivem no PIG, em sua maioria povos de tradio oral, ainda (re)produzem seus costumes, seu modo de ver e viver atravs da oralidade. Essa prtica tradicional, cujo funcionamento se baseia na narrao dos fatos vividos pelos ancestrais conhecedores da verdade, assegurada e legitimada no mais pelo prestgio que envolve o narrador, mas pela prpria funo das narrativas em tais sociedades. Isso pode ser verificado quando, noite ou/e durante as chichadas11 , os Makurap renem-se junto a outros grupos para contar histrias: os mais velhos conversam em Makurap12 at se embriagarem, depois de muito vomitar, e os mais novos riem e cochicham entre si. Nesses momentos, vrias histrias mitolgicas so contadas, perguntas so feitas e respondidas, muito se discute sobre elas. Outras vezes, o mais velho fala e os outros somente escutam13 .

tocaio. Toda tarde ele deixava milho. No outro dia ele ia olhar, num tava mais, a ele, ele pensava que j, os bicho j tavum acostumado, ele fez tocaio e esperou. Quando ele escutou aquelas voz saindo debaixo da terra, saindo, conversando, e ele escutou uma mulher falando: Deixa pra mim, toda vez que eu venho buscar comida pro meu filho, vocs j acabam: dessa vez eu quero levar comida pro meu filho, ele chora de fome. A ele viu saindo aquelas mo, a pedra suspendeu, era encantada n, suspendeu, e saru todas as mo, as mo, e juntaru tudim o milho, e ele ficou ali pensando, e voltarum conversando de novo. A ele voltou e falava pro irmo dele, ele dizia: Mano, eu encontrei o pessoal. O irmo dele nem ligava, a ele disse: T mentindo, tu no encontra nada. A ele ficava calado, ele voltava... conversava de novo. Mano, eu encontrei o pessoal. A ele enju. Ele falou: Ento, vamu l olhar. A ele foi, ele chegou l e viu, e era verdade. A ele disse assim. Ento agora tu vai encantar16 um lugar grande com muita casa. A ele mandou... fechar olho, a ele fez s duas casa, um pedao assim pequeno n. A ele falou: Todas as coisa que a gente manda tu fazer, tu num sabe fazer nada. Fecha o olho e vira as costa. Ele fechou. A ele falou: J! Quando ele abriu, era um lugar bem grande com muita casa, uma fileira de casa ... A ele falou. Assim que pra fazer. A ele suspendeu a pedra, quando ele suspendeu, demorou, a comeou a sair gente Saa gente, gente, gente, gente, e essa mulher tinha sado como sendo segundo. A ela esqueceu da peneira dela n, ela voltou pra buscar. Ela voltou, a ela ... os povo j saindo. O ltimo que saiu foi dois civilizado barbudo, fumando e macaxeira na mo. A eles falaru: J! Fechem a.
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3 ANLISE DE UMA NARRATIVA MAKURAP


A narrativa analisada O comeo do mundo observada nas duas modalidades da lngua: oral e escrita. A verso oral da narrativa foi coletada por mim na rea indgena e a verso escrita foi publicada no livro Terra grvida, da antroploga Betty Midlin14 . Os personagens dessas narrativas mitolgicas entes sobrenaturais e antepassados do grupo contribuem para ordenao do mundo e diferenciao lingstica entre os seres humanos. 3.1 VERSO ORAL15 Foi assim, n? Minha me que conta. Mame fala que andava dois, duas pessoa, dois irmo pelo mundo, mas o incio foi assim, ainda no contei do comeo pra vocs, mas foi assim: deu um relmpago bem forte que partiu uma pedra bem grande, (retomada) saru dois rapaz. Nome dele indgena Waleyat, Waleyat, Waleyat. Ento eles andava, andava, andava, e eles encontrou um lugar limpo [e eles pensava que era cutia e pssaro comia por ali e ciscava. E ele disse que ia esperar e fazer um
Lana curta de arremesso. Evento realizado com grande ingesto da chicha. 12 Mesmo quando h mais de uma etnia. 13 No presenciei este tipo de cena. Apenas soube por conversas que estas situaes acontecem. 14 MIDLIN, Betty e narradores indgenas. Terra grvida. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos tempos, 1999. 15 Rosana Makurap.
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Significa criar.

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Junto com eles sarum um bicho, bem feio, a ele falou. Fecha, vai sair bicho que vai acabar com os pessoal que saru. Fechou. Saiu s um, o resto no saiu. A quando fechou, mas o bicho no saiu. A mulher chegou: Abre a porta. Eles num abrirum, a ela voltou e falou: , vocs que sarum so os feio, os bonitos que num sarum, e vocs a no... nem um no vo ser bonito, todos vo ser preguioso e feio. A voltou, t bom, a eles, eles bem no meio n, a eles falaru, botaru em fila os pessoal, tudim assim ao redor e ele falou: _Voc vai por aqui, eu vou por aqui. A eles iam ensinando a gria17 , o mais novo que encontrou os pessoal n ensinava gria Makurap, Jabuti, essas todos tribo, foi ensinando e quando chegou a parte bem no meio, a ele falou. No era pra ensinar assim, voc s ensina coisa que no presta. Ele foi ensinar a gria que ele vinha ensinando, mas eles j tinha decorado a outra n. Ensinou at a gria civilizado n, que a gria de vocs, portugus. A, falou. T bom. Agora vai cantar uma pedra, quando cantar esta pedra, vocs vo, vocs vo gritar e quando, um mago18 , mago gritar vocs responde. Eles disserum assim n pros civilizado e pra esses Urudo19 , que hoje em dia so n. A quando o mago gritou os nos... os nossos tribo que nunca aumenta responderu. E quando a pedra cantou, os civilizado e os tribos Urudo responderu. A ele disse: vocs nunca vo aumentar, enquanto vocs num aumentar, vai nascendo e vai morrendo, mas os civilizado esses, esses caboco, esses resto vo aumentar, e vocs nunca vo se aumentar. A ele ficou com raiva, a ele falou: Agora vamo l, quem vai aprender cantar? A ele mandou responder novamente n as pessoas que gosta de cantar gria e cantar as msica, esse negcio de voc, civilizado n. Os civilizado responderum novamente, a ele falou: T bom. Vocs num vo saber cantar mermo, vocs vo cantar somente s vai ser gria. A se passou. A depois de tudo, os... esses que saru assim

pra matar os outros n, esses ndio pelo mato, no quiseru ficar em casa, esses ndio Tupari, Makurap, Ajuru, tudo ficaru na sua aldeia, e o jabutizada n continuaru assim a andar no mato mermo, e o resto ficaru na sua aldeia. E a ele andou pelo mundo, j procurando o semente desses plantao. A ele continuou andando, ficou alegre. Os dois n. Os dois que...andavum sozinho, e ele ficou animado, os povo continuaru a, alguns povo saru pra procurar sua maloca separadamente igual Tupari, e ele ficou com os povo. Ento s isso. 3.2 A VERSO ESCRITA20 S existiam no mundo dois irmos. Nambu, o mais velho, sabia mais; Bed, o mais novo, era muito esperto. Tinham uma irm, Antoink. Bed era filho da pedra, no tinha me. Era chamado de Waimempid. Wai pedra, Waimempid quer dizer filho da pedra. Como filho da pedra, no morre. No tinha pai, saiu da pedra. Nambu e Antoink tambm eram filhos da pedra. Bed foi carregar troncos para fazer os esteios da maloca. Ia puxando a madeira, mas percebeu que havia algum segurando. De vez em quando, olhava para trs, e a madeira tinha desaparecido! Recomeava a arrastar os troncos ou os cips para amarr-los, mas algum impedia, desapareciam. Cismado, repetiu o esforo, olhando para trs desta vez. Viu s o brao de uma pessoa apanhando o seu esteio. Soltou o pau e correu para chamar o irmo mais velho, Nambu. Chamou, chamou, cansou de chamar o irmo mais velho. Este no queria ir. Encontrei gente, mano! Nambu acabou indo, alcanou o lugar em que Bed vira o brao, um campo aberto, quase sem floresta. Experimenta, abre ainda mais limpinho este lugar... pediu Bed. Fecha os olhos, que vou experimentar- Nambu respondeu. Limpou melhor o lugar, tirando o mato. Nesse tempo, era s falar uma coisa que acontecia. Bed no sabia fazer nada. Era sempre o seu irmo sabido quem criava novidades. Fechou os olhos. Nambu soprou a terra com fumaa de tabaco, abriu um buraco no cho. Saiu gente, saiu uma quantidade muito grande de gente que j vivia l embaixo. Uns carregavam pssaros, outros levavam macacos nos ombros, outros jacus, outros mutuns, e assim por diante. Cada pessoa vinha com o bicho que era o de seu
20 Retirada do livro Terra grvida, de Betty Midlin ,1997. Narrador: Iaxu Miton Pedro Mutum Macurap - Tradutora: Ewiri Margarida Macurap

Significa lnguas. Significa rvore. 19 Povo indgena que mora numa localidade prxima ao Posto Ricardo Franco.
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povo, o de seu grupo. Saiu gente com periquitinho. Saiu o povo do mutum, o povo do veado, o do papagaio. Cada um com seu bicho. O branco saiu com espingarda, j atirando... Onde Nambu limpou o mato saiu gente em fila, de todos os povos: Macurap, Ajuru, Tupari, Jabuti, Aru, Arikapu, Kamp. Saam calados, ningum sabia falar, no diziam nada. Antes no existiam esses povos. Nambu ordenou a Bed: Ensina direito nossa lngua para eles. Era para eles saberem s a nossa lngua, que o Macurap, mas Bed ensinou a lngua Jabuti, ensinou outras, ensinou errado, fez as pessoas falarem vrias lnguas. Era para ensinar s essa que ns falamos, mas Bed foi fazendo as pessoas aprenderem a falar em muitas lnguas. _ Ensina direito Nambu falava para Bed. Mas este foi ensinando lnguas diferentes. Ia por um lado da fila, e Nambu pelo outro. Quando Nambu alcanou aqueles a quem Bed ensinara, sabiam s outra lngua. J se instalara a confuso. por isso que os Jabuti tm a sua lngua, os Corumbiara a sua, os Aru outra e assim por diante. Bed fez um desastre, os povos no se compreendem. 3.3 O AUMENTO DA POPULAO
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diz respeito aos termos discurso e texto. Texto uma unidade complexa de significao, que se manifesta em diferentes gneros (narrativo, jornalstico, potico e outros). Essa unidade que apresenta duplicidade em sua constituio pode ser vista como objeto terico e como objeto emprico. Como objeto emprico, pode apresentar incio, meio e fim; j como objeto terico no um objeto acabado, visto que para a AD ele somente explicvel atravs do conceito de discurso. Quanto ao termo discurso, apresento a definio de Orlandi (2001), a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idia de curso, de percurso, de correr por, movimento. O discurso assim palavra em movimento, prtica de linguagem (...). Dito isso, estarei considerando, neste trabalho, o termo discurso como uma unidade terica delimitvel e definvel apenas no nvel histrico-social, cuja especificidade est em sua materialidade, que lingstica (ORLANDI, 1987). Atravs da especificao de discurso como conceito terico, e de texto como objeto emprico, pode-se dizer que h uma relao necessria entre eles, as propriedades detectveis do texto so aquelas que o constituem enquanto visto na perspectiva do discurso (ORLANDI, 2001, p.229). Dentro dessa perspectiva, a linguagem vista como forma de produo de sentidos construdos na relao entre sujeitos22 (ou na relao entre posies de sujeito) da e pela linguagem. Assim, o discurso se coloca, ento, como um lugar particular entre lngua e a fala: o lugar do social, histrico e no abstrato (ORLANDI, 1983-84, p.264). Essa definio permite pensar a linguagem em sua relao com a exterioridade e o discurso como o local visvel desta relao, isto , o discurso como o lugar em que se pode observar a relao entre lngua e ideologia.23 Agora, considerando a narrativa acima como um texto, pode-se pensar nela, uma vez que o discurso a palavra em movimento, imbuda de ideologia, como um discurso. Dessa forma, pode-se dizer que a narrativa, alm de revelar a origem da condio do mundo em um tempo particular do homem, das instituies religiosas, das regras de conduta e de comportamento humanos e os contedos inconscientes, um instrumento poderoso de definio e manipulao ideolgica (SAMAIN, 1984-85, p. 235). Pode parecer estranho que narrativas, que falam de entes sobrenaturais, de ancestrais mgicos e de tempos
22 O sujeito do discurso no um sujeito em si, mas um sujeito constitudo socialmente e, portanto, presa da contradio que o constitui. Pode-se dizer assim que ele produz linguagem ao mesmo tempo em que produzido por ela. A se coloca toda a questo da identidade/ alteridade que Pucheux (1975) chama de iluso discursiva do sujeito. (ORLANDI, 198485:266) 23 A concepo de ideologia adotada aqui a proposta por Orlandi (1990:244) como processo de produo de um certo imaginrio, ou seja, uma interpretao que aparece como necessria e que destina sentidos fixos para a palavra, num mesmo contexto scio-histrico.

As pessoas que saiam tinham que responder a vrios barulhos, buzinas. Nambu avisou que ningum devia responder cigarra; os ndios logo responderam, buzinaram. Quem gritou primeiro de alegria fomos ns, ndios. Se esperssemos, no respondssemos cigarra, amos aumentar mais que outros povos, ser mais numerosos; mas ns respondemos. Voc podia no ter gritado logo! Era para ser de outro jeito, muito melhor! Respondeu Nambu. O derradeiro que respondeu foi o branco; respondeu buzina da pedra. Por isso, o branco no tem muita doena, seu povo aumentou mais que os povos dos ndios.

4 A ANLISE DO DISCURSO E A NARRATIVA MAKURAP


A Anlise do Discurso (AD), segundo Orlandi (1987, p.12), se pretende uma teoria crtica que trata da determinao histrica dos processos de significao. Segundo essa teoria, h uma relao necessria entre a linguagem e as condies em que ela produzida. A esse respeito, explicitarei alguns dos conceitos construdos no interior da AD com o objetivo de articullos para a anlise das narrativas. A primeira distino que farei
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Narrador: Amampekb Aningu Baslios Makurap. Tradutor: Aiawid Waldemir Makurap.

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pitorescos, no sejam somente fbulas ou iluses criadas pelas comunidades indgenas com uma finalidade ldica, para explicar a realidade. A esse respeito, Samain (idem) afirma que estas estrias so (...) modalidades extremamente elaboradas e poticas da ideologia. Nesse sentido, pode-se considerar as narrativas mitolgicas como uma das ferramentas de que o grupo dispe para reorganizar e justificar as novas condutas, as quais est conduzindo para assumir o seu devir histrico (idem, p. 235). Se de fato isso o que ocorre, j sabemos que necessrio que se atente para o contexto sciocultural, no qual o mito surgiu (em que comunidade), o contexto situacional em que foi narrado o mito (quem, quando, aonde, para quem, por qu?). Mas tambm necessrio no esquecer a posio social do narrador e de quem o escuta/l. Portanto, necessrio considerar a multiplicidade das circunstncias nas quais o mito reproduzido dentro e para a comunidade da qual emana e se nutre, e que, ao mesmo tempo, ele informa e recria constantemente24 . 4.1 ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE O DISCURSO NAS NARRA TIV AS NARRATIV TIVAS Para apreender a historicidade do texto mitolgico, uma vez que para a AD compreender um texto significa apreender suas vrias possibilidades de significao constitudas histrica e socialmente, relacionei as formaes imaginrias com as condies de produo (contexto de situao imediata e contexto histrico-cultural). Como as formaes imaginrias possibilitam que o sujeito (ou a posio-sujeito) se reflita em seu discurso (ORLANDI, 1990), observei as narrativas mticas Makurap, considerando que nelas presentificam-se o discurso indgena (viso de mundo, forma de conceber a realidade), os processos histricos do contato (relao com as outras etnias indgenas) e o discurso do branco (o apagamento25 do ndio e a naturalizao deste apagamento). As narrativas das sociedades tradicionais, ainda que j no apresentem um carter ritualstico, constituem a identidade tnica destas sociedades. Ao mesmo tempo, a esta identidade so acrescentados novos sentidos constitudos historicamente. Apontarei, abaixo, os elementos textuais que, nas narrativas, referenciam o discurso ideolgico das sociedades tradicionais e os que referenciam a ideologia da sociedade ocidental, a ideologia dos brancos.

tem sofrido um processo de apagamento de sua identidade cultural, no s porque a identidade cultural do brasileiro exclui os ndios, mas porque, alm de eles j no terem terras que lhes garantam a subsistncia, tambm j no falam mais suas lnguas de origem. Para a autora, uma das formas desse apagamento se produz pelos mecanismos mais variados, dos quais a linguagem, com a violncia simblica que ela representa, um dos mais eficazes (p. 56). Devido a esses fatores, os ndios, ao longo do tempo, sofreram diferentes formas de excluso social e apagamento de seus lugares sociais legtimos. Segundo Orlandi, o apagamento encontra-se no domnio da ideologia, que se movimenta pelo discurso; logo, no h discurso sem ideologia. Para a autora (1996), pelo discurso que a ideologia fixa seu contedo e imprime um sentido, ou seja, no discurso que a ideologia se materializa e, como modo de produo, de definio e de imposio de determinados sentidos, inscreve e apaga significaes construdas historicamente. Se, como diz Orlandi (1990), o discurso da converso indgena no Brasil representa o momento em que o branco coloca seu discurso na boca do prprio ndio, construindo a imagem do ndio a partir de seu discurso, podemos dizer que na narrativa indgena, que mostra o branco como um ser superior e o ndio como um ser inferior, circula o discurso do colonizador, como se fosse a voz do ndio. Nas narrativas, j possvel observar a imagem que os ndios constroem de si mesmos (no-civilizados), pela oposio que estabelecem com os brancos, a exemplo da referncia aos dois civilizado barbudo, o que nos mostra que a identidade do ndio, desde o contato com as sociedades ocidentais, passa a apresentar traos que somente lhes foram agregados em funo de um discurso imposto aos ndios pela sociedade branca:
(01) O ltimo que saiu foi dois civilizado barbudo, fumando e macaxeira na mo (narrativa oral).

5 A ANLISE
De acordo com Orlandi (1987), historicamente, o ndio
Ibidem :239. Sobre isto remeto o leitor para o Trabalho de Silva (2003). Idem: 15. Para Orlandi, o apagamento do ndio no discurso do colonizador ocorre por meio da negao histrica e poltica a que aquele submetido por este, mas, no entanto, o colonizador reconhece culturalmente o ndio.
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Mesmo que a noo de civilizao esteja ligada noo de grau de evoluo tcnica, s regras do saber viver, ao desenvolvimento do conhecimento cientfico, s idias e usos religiosos(ELIAS apud, ORLANDI, 1990, p. 45), ela acaba por aludir expresso da conscincia ocidental,(...) o sentimento nacional ocidental, ou seja, ao branco atribudo o sentido histrico de ser superior. Pode-se, dessa forma, conceber que nas narrativas ocorre o mecanismo que Orlandi (1990, p.69) denomina de antecipao discursiva: um mecanismo que regula as respostas. Por ele o locutor se coloca no lugar do destinatrio. Esse tipo de discurso, em geral, ocorre para que o locutor/narrador oriente sua prpria fala para controlar o lugar em que seu destinatrio o espera (op.cit).

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Como j foi dito, os povos que habitavam o PIG foram mortos e subjugados pelos brancos. Para estes povos, segundo Leonel Jnior (1984, p.155), o PIG representava um misto de refgio paternalista e campo de concentrao para famlias de sobreviventes de vrios povos indgenas de Rondnia, subjugados e dizimados pelas armas e pelas doenas. Essa leitura histrica26 do contato entre os ndios do PIG com os brancos pode estar presente no discurso mitolgico, uma vez que, como j foi dito, no contato entre estes povos, o sarampo foi uma das doenas que mais dizimou as etnias do PIG27 . Durante a coleta de dados28 , alguns narradores informaram-me que muitos ndios morreram em guerra com os brancos e por conta de doenas; que muitas ndias foram estupradas por brancos e que os ndios do antigo Posto Ricardo Franco trabalhavam como escravos para os seringalistas e para o SPI29 . Esses acontecimentos histricos entrelaam-se com os eventos mticos e so incorporados narrativa mitolgica. Na narrativa Makurap em estudo, a materializao do discurso do extermnio (histrico) no acontece, o que emerge apenas a diferena numrica entre a populao ndia e branca, como conseqncia de eventos mticos.
(02) vocs nunca vo aumentar, enquanto vocs num aumentar, vai nascendo e vai morrendo, mas os civilizado esses, esses caboco, esses resto vo aumentar, e vocs nunca vo se aument. (narrativa oral) (03) O derradeiro que respondeu foi o branco; respondeu buzina da pedra. Por isso, o branco no tem muita doena, seu povo aumentou mais que os povos dos ndios. (narrativa escrita)

No enunciado abaixo, parte da narrativa oral, os ndios se dizem incapazes de cantar em outra lngua que no a sua, podendo o enunciado ser considerado como um sinal de limitao e no de afirmao de sua cultura. Pensando na histria do contato entre europeus e ndios, sabe-se que os missionrios estudaram e estudam a lngua com finalidades utilitrias de evangelizao (ORLANDI,1990, p.75). Essa disciplinarizao das lnguas indgenas, sistematizada de forma simplificada, visava instalar um poder de controle sobre os ndios e propagar a religio dos estrangeiros. Desta forma, a lngua indgena foi conduzida ao estigma de incapaz de desenvolvimento interno, matria sempre inerte, sem histria (ORLANDI, 1990, p. 78.). Esse discurso do opressor30 aparece na narrativa como profecia de entes sobrenaturais.
(04) A ele mandou responder novamente n as pessoas que gosta de cantar gria e cantar as msica, esse negcio de voc, civilizado n. Os civilizado responderum novamente, a ele falou. T bom. Vocs num vo saber cantar mermo, vocs vo cantar somente s vai ser gria. (narrativa oral)

Por outro lado, na narrativa escrita, possvel observar que so os narradores Makurap que apontam erros nos feitos de Bed por ele no ter ensinado a lngua Makurap para todos os outros povos. As aes de Nambu, ao contrrio das de Bed, so vistas com simpatia e parecem representar as aes Makurap. Este tipo de articulao discursiva promove a idia de que o povo Makurap o povo que est na terra desde o incio dos tempos e, portanto, tem primazia sobre os demais.
(05) Era para eles saberem s a nossa lngua, que o Macurap, mas Bed ensinou a lngua Jabuti, ensinou outras, ensinou errado, fez as pessoas falarem vrias lnguas. Era para ensinar s essa que ns falamos, mas Bed foi fazendo as pessoas aprenderem a falar em muitas lnguas. Ensina direito Nambu falava para Bed. Mas este foi ensinando lnguas diferentes. Ia por um lado da fila e Nambu pelo outro. Quando Nambu alcanou aqueles a quem Bed ensinara, sabiam s outra lngua. (narrativa escrita) (06) Voc vai por aqui, eu vou por aqui. A eles iam ensinando a gria, o mais novo que encontrou os pessoal n ensinava gria

O discurso do branco, sua ideologia apresenta-se, no texto, atravs de enunciados que valorizam a cultura do branco, de suas msicas, de seus costumes, mostrando que
cada texto tem os vestgios da forma como a poltica do dizer inscreveu a memria no interior de sua formulao. Um texto (...) sempre um conjunto de formulaes entre outras possveis, movimento do dizer face ao silncio tomado aqui como horizonte discursivo. (ORLANDI, 2001, p.111)
26 Na perspectiva de Paul Henry (1985, apud ORLANDI, 1990:14), a histria produo de sentidos. Ela algo da ordem do discurso. 27 De forma a esclarecer esta questo, apresento aqui um relato de um ndio Cano mais velho sobre a histria do contato: ... na poca parece que eru (era) uma trezentas cano...morreru tudo de sarampo...a interravu trei, quatro, cinco, s a noite, chega eu trabaiava cavando buraco at hora desse, cansado..., os Jabuti morreru l pra cima..., aqui ns tmus (estamos) assim misturado, Cano... Jabuti, Makurap, outro Ajuru, outro Arikap, outro l Aru...outro l Tupari...(Francisco Cano). 28 Para a AD, os dados constituem-se como discursos para a anlise (ORLANDI, 1990:34). 29 Em relao a esta questo, importante trazer um trecho do relato de dona Isabel Jabuti: O SPI s queria mermu era o su dos ndios.

30 Segundo Cmara (1977 apud ORLANDI, 1990:75-76) [O missionrio] fez um trabalho de disciplinarizao, de interpretao do Tupi segundo certos ideais [...] Ele utilizou a lngua assim disciplinada na catequese e o ndio se aculturava religiosamente ao mesmo tempo que se adaptava lingisticamente.

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Makurap, Jabuti, essas todos tribo, foi ensinando e quando chegou a parte bem no meio, a ele falou. No era pra ensinar assim, voc s ensina coisa que no presta. (narrativa oral)

que h relao entre lngua, sociedade, cultura e fatos histricos), isso no significa que os ndios deixaram de ver e de perceber a vida, as pessoas, a natureza e as suas prprias crenas de uma maneira tambm muito prpria, singular. Espero que este trabalho impulsione outros trabalhos, outros estudos das narrativas mitolgicas das sociedades indgenas a partir de uma perspectiva textual e discursiva. Para isso, necessrio tambm que as pesquisas sobre comunidades indgenas sejam realizadas de forma a produzir etnografias, uma vez que existe hoje uma considervel quantidade de anlises das lnguas indgenas brasileiras, mas ainda em um nmero muito pequeno de registros histricos e de anlises de aspectos socioculturais das atuais sociedades indgenas brasileiras.

6 CONSIDERAES FINAIS
Ao longo desse trabalho, procurei construir um percurso que conduzisse o leitor a entrever a discursividade produzida pelo contato entre brancos e ndios, pelas relaes intertribais, pelas migraes e, conseqentemente, pela difuso dos mitos indgenas no Posto Indgena Guapor. Este percurso foi necessrio para que, ao analisar as narrativas mitolgicas, eu pudesse apontar as formas pelas quais se materializam na lngua os processos histrico-sociais, ou seja, o discurso. A definio de discurso como conceito terico e de texto como unidade analisvel permitiu-me escutar o discurso e apontar nos textos os fenmenos que indicam a relao do discurso com a exterioridade. Dessa forma, espero ter conseguido mostrar porque o discurso o lugar em que se pode observar a relao entre lngua e ideologia e o texto o local da materializao dessa relao. Foi possvel tambm observar que as narrativas mitolgicas, alm de mostrarem o modo como as sociedades tradicionais repassam seus conhecimentos e viso do mundo, apresentam um carter doutrinador (ou ainda, um carter ideolgico, segundo Samain, 1984-85) em relao quele que as escuta. Com base neste pressuposto, apontei nelas no s as marcas de um discurso prprio, mas tambm as marcas do discurso do outro, que se encontra fundamentalmente constitudo por sua relao com outros grupos indgenas e com o discurso do branco, discurso falado pela boca do ndio, que fala de si, mas maneira como o branco o construiu desde a poca dos primeiros contatos. Como as narrativas foram produzidas em contextos situacionais diferentes, de acordo com os objetivos de cada pesquisa realizada e de seus resultados finais (verso oral e verso escrita), possvel afirmar que cada modalidade instaura um diferente ritual de linguagem, que reflete os diferentes recursos textuais e discursivos. Assim, pode-se dizer que as narrativas, apesar de serem produzidas em contextos situacionais diferentes, ao apresentarem recorrncias textuais (uma vez que abrangem as modalidades oral e escrita) e discursivas muito marcantes, revelam, principalmente, a fora dos mitos de origem. Essas recorrncias me permitiram mostrar que as narrativas mitolgicas so produzidas pelos ndios para a afirmao de uma identidade indgena. Mesmo que, com a violncia do contato, muitas vezes haja o desaparecimento das lnguas indgenas (e sabemos

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Letras

REALISMO MARAVILHOSO: UM DISCURSO LATINO-AMERICANO


Lauro Roberto do Carmo Figueira

Lauro Roberto do Carmo Figueira Mestre em Teoria Literria e Professor do Curso de Letras do ILES Santarm [email protected]

Resumo
O realismo maravilhoso um discurso narrativo com teorizao a partir da segunda metade do sculo XX. Crticos rotulam essa expresso narrativa tambm de realismo mgico, entretanto, este estudo defende a convenincia do sintagma realismo maravilhoso por entender a consagrao da palavra maravilhoso na histria da literatura. O discurso do realismo maravilhoso definido no confronto com as isotopias do mimtico, do estranho, do maravilhoso e particularmente do fantstico com o qual possui temas e proposies discursivas afins. A fico do texto realista maravilhoso o espelho de densa realidade, produto da mestiagem cultural na Amrica Latina: o cientfico, o histrico e o mtico confundem-se. O prprio acontecimento ordinrio a soma das variadas foras culturais. O acontecimento misterioso deixa de existir, pois recebe explicao pela perspectiva da crena no acontecimento mgico. inadequado defender a nomenclatura realismo mgico porque o evento de magia um dos aspectos do realismo maravilhoso. As concepes de normalidade e anormalidade, real e irreal encontram-se embutidas na defesa do escritor latino-americano que objetiva marcar a identidade da cultura das Amricas. Palavras-chave: realismo maravilhoso, realismo mgico, fantstico.

Abstract
Theorization about marvelous realism started in the second half of the 20s and some critics also label this narrative expression as magical realism. However, this paper defends the convenience of the phrase marvelous realism since it is stated the consecration of the word marvelous in the history of literature. Marvelous realism discourse is defined in the confrontation of the isotopies of the mimetic, the weird, the marvelous and particularly of the fantastic, with which it possesses similar themes and discursive propositions as well. The fiction of the marvelous realistic text is the mirror of a close reality produced by cultural crossbreeding in Latin America in which the scientific, the historic and the mythical are tangled. The ordinary happening itself is the sum of the diverse cultural forces. The mysterious happening doesnt exist already since it is given to it an explanation from the perspective of believing in the magical happening. It is inadequate to defend the magical realism nomenclature because the event of magic is one of the aspects of marvelous realism. Concepts as normality and abnormality, real and unreal are inlaid in the defense of any latin american writer who aims to set the identity of the culture of the Americas. Key-words: marvelous realism, magical realism, fantastic.

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Espao Cientfico - Revista do Inst. Luterano de Ensino Superior de Santarm - 2003 - Vol. 4 - pginas 45 a 50

REALISMO MGICO E REALISMO MARAVILHOSO


As vanguardas finisseculares novecentistas e emergentes do alvorecer do ltimo sculo (futurismo, dadasmo, surrealismo, cubismo), movimentos de ruptura com as convenes reproduzidas por dcadas, marcam renovaes nos modos de conceber e realizar a obra de arte. As novas ordens estticas, de origem europia, repercutem na Amrica Latina e influenciam a confeco de uma literatura em que se delineiam as esferas do imaginrio e do mtico, a tematizao da cultura latino-americana e a busca pela unio de elementos diversos dessa cultura. Escritores latino-americanos engendram um feitio textual a absorver uma potica sugestiva do ferico. Em face dessa orientao literria, o crtico Ramn Xirau aponta uma crise no realismo1 da literatura latino-americana, um discurso literrio adverso descrio de fatos e costumes para expressar nas linhas textuais exatamente os meandros da realidade de onde nasce o mote potico2 . Por seu turno, Jorge Enrique Adoun, no artigo Realismo de outra Realidade3 , escreve sobre uma nova literatura que constri, ela mesma, sua prpria realidade:
A arte [...] j no tem a comodidade daquele que tolera ou aceita a mesma realidade que quer transformar, mas se rebela contra ela [...], contra a rigidez de sua lgica, e concebe a criao como uma realidade em si mesma onde vigoram outras leis, outras noes de tempo, de durao, de espao, de movimento4 .

uma vigorosa fico emergencial na literatura latino-americana por volta dos primeiros anos da primeira metade do sculo XX. A expresso realismo mgico compreenderia a identificao de uma esttica de nova viso (mgica) da realidade5 . Realismo mgico aparece pela primeira vez com a funo de dar ttulo ao livro Realismo mgico post expresionismo, em 19256 , de autoria do crtico de arte alemo Franz Roth7 . O realismo mgico, na arte pictrica, redimensiona formas concretas do quotidiano. Os elementos captados pelos sentidos so ambientados no inefvel mundo dos sonhos e da livre fantasia. Uslar Pietri o primeiro a incorporar o termo realismo mgico crtica hispano-americana, na obra Letras y hombres de Venezuela (1948)8 . Luis Leal, em El realismo mgico en la literatura hispanoamericana, Cuadernos americanos (1967)9 , tambm acompanha a expresso com o entendimento oscilante de o realismo mgico compreender o produto de percepo do autor e a captao do ser misterioso da realidade. Nos estudos de Irlemar Chiampi, v-se retaliaes sobre a maioria das diligncias tericas acerca do realismo mgico, principalmente porque so abordagens extraliterrias em vez de investigarem os elementos e os discursos narracionais, a importncia da diegese, o narrador, o narratrio e o contexto cultural, a engendrar uma histria com diferentes nveis de realidade em conseqncia da evocao da instncia histrica peculiar da Amrica Latina. Depreende-se da leitura do livro Alejo Carpentier (1984), do argentino Jorge Quiroga, que o realismo mgico uma esttica narrativa que precede o realismo maravilhoso. O realismo mgico teria ocorrido em uma poca de vanguardismo no cenrio literrio latino-americano, com durao relativamente curta, nas primeiras dcadas do sculo XX. Segundo ngel Rama, o realismo mgico alcanou xito pelas ilhas do Caribe, onde se destacaram Miguel ngel Astrias e Luiz Cardozo, e em outras regies mais abaixo, alcanando Cuba (Alejo Carpentier), Colmbia (Jorge Zalamea), Martinica (Aim Cesaire) e Venezuela (Arturo Uslar Pietri)10 . Pelo final da segunda dcada desse scuCHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. So Paulo: Perspectiva, 1980. p. 19. ROTH, Franz. Realismo mgico post expresionismo. Madrid: Revista Ocidente, 1927. 7 Acerca do ps-expressionismo na pintura, Roth (Ibid., p. 37) fala de uma dialtica em que vive o homem: La humanidad parece [...] destinada a oscilar de continuo entre la devocin al mundo del sueo y la adhesin al mundo de la realidad, [...] si alguna vez se detiene este ritmo respiratorio de la historia, nos parece quedar otra cosa que la muerte del espritu. Essa tenso dialtica do ser humano, preso s contingncias da experincia terrenal e desperto a procurar respostas as suas questes ontolgicas em outra realidade, flagrada no escritor da nova esttica literria, respeitando as particularidades da realidade latino-americana, por meio de um discurso narrativo representativo da nova cultura dos mares do sul. 8 Diz o venezuelano Pietri: Passa a predominar no conto, em meio a dados realistas, a viso do homem como um mistrio. Uma decifrao, interpretao potica e uma negao potica da realidade, que podemos, na falta de outro termo, chamar de realismo mgico (Pietri apud QUIROGA, Jorge. Alejo Carpentier. So Paulo: Brasiliense, 1984. p. 69). 9 LEAL, Luis. El realismo mgico en la literatura hispanoamericana apud CHIAMPI, Irlemar, op., cit., p. 26. 10 Rama apud Quiroga, op. cit., p. 70.
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Ambos constatam uma singularidade literria e ao mesmo tempo defendem uma literatura proponente de diferentes concepes da realidade e do quotidiano. Neste passo, a potica latino-americana distancia-se da fico oitocentista, centrada na fotografia, na imagem servil, na fiel imitao da realidade (lgica e natural). Histria, mito, fbula, lenda, folclore, fantasia fundemse na composio de uma narrativa multidimensionada. Por conta de uma discusso terica, pergunta-se como atribuir uma nomenclatura eficiente a esta fico, em que os narradores se empenham em mostrar muitas faces da cultura latino-americana. Realismo mgico? Este termo foi de muito uso para rotular

1 XIRAU, Ramn. A crise do realismo. In: MORENO, Csar Fernndez (Coord.). Amrica Latina em sua literatura. So Paulo: Perspectiva, 1979. p. 179-199. 2 Ibid., p. 198. 3 ADOUN, Jorge Enrique. O realismo de outra realidade. In: MORENO, Csar Fernndez (Coord.). Amrica Latina em sua literatura. So Paulo: Perspectiva, 1979. p. 201-214. 4 Ibid., p. 209.

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lo, esses escritores propem nova potica, a exemplo de Carpentier que, aps experincias com os surrealistas franceses, formula a teorizao do real maravilhoso americano11 . Emir Rodrguez Monegal, no XVI Congresso do Instituto Internacional de Literatura Ibero-americana, em 1975, inicia um debate sobre a impropriedade da expresso realismo mgico a um gnero literrio. Segundo Monegal, desde os fins dos anos 40, do sculo XX, o sintagma realismo mgico passa a ser utilizado para identificar uma literatura hispano-americana, principalmente um tipo de romance, opositor na sua concepo do Realismo-Naturalismo. Foram reconhecidos pela crtica latino-americana os seguintes escritores, cujos textos seguem diretrizes do realismo mgico: Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, Arturo Uslar Pietri. Em tempos diversos, ainda outros escritores so listados na mesma compreenso: ngel Asturias, Adolfo Bioy Casares, Jos Lezama Lima, Juan Rulfo, Carlos Funtes, Gabriel Garcia Mrquez, Guilherme Cabrera Infante, Mario Vargas Llosa12 . certo ento dizer que, na primeira metade do sculo XX, surge uma literatura hispano-americana contrastante com os princpios objetivistas do sculo XIX. Quanto denominao dessa literatura, uns crticos insistem em defini-la por realismo mgico, outros por realismo maravilhoso. Para melhor incorporar uma discusso literria sobre a nova expresso potica latino-americana, prope-se o complemento de maravilhoso ao realismo, em vez de mgico. A palavra maravilha vem do latim mirabilia, com o sentido de coisas admirveis, belas ou feias, boas ou ms, em contraposio a naturalia, coisas comuns. Desse modo, o maravilhoso preserva referncias humanas; trata-se de um acontecimento natural. Em outro sentido, o maravilhoso difere do humano; trata-se da constituio da ordem sobrenatural13 . Essas duas acepes circundantes do termo maravilhoso so fundamentais compreenso terica do realismo maravilhoso com o fito de rotular as dimenses de um discurso narrativo, pois um gnero que exprime uma realidade onde Histria e Mito se confundem; onde experincias naturais e sobrenaturais convivem numa lgica no excludente, ao contrrio do fantstico14 . A escolha do termo maravilhoso se d por uma perspectiva estritamente literria. uma palavra consagrada pelos es11 Carpentier afirma que suas primeiras idias sobre o realismo maravilhoso apareceram em 1943, aps visitar o reino do ditador do Haiti, Henri Christophe, pas recm-sado da condio de colnia francesa, por aquela poca (CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 155). 12 RODRIGUES, Selma Calasans. O fantstico. So Paulo: tica. p. 50-51. 13 CHIAMPI, Irlemar, op. cit., p. 48. 14 Na narrativa fantstica, a dimenso da realidade natural e a da sobrenatural so estranhas uma a outra. O confronto entre a experincia comum e a inusitada promovem vazios narrativos da linguagem fantstica. Acontecimento diverso na narrativa do realismo maravilhoso, reconhecendo-se nesta a adeso das personagens esfera do mundo sobrenormal.

tudos poticos; tem uma teorizao que a descreve, a caracteriza e a distingue de outros processos discursivos literrios, elementos ausentes da palavra mgico. As referncias do mgico remetem discusso diversa do natural; pertencem a outra esfera cultural, a um corpo de conhecimento com intenes de dominar os seres e a natureza via poderes sobrenaturais15 . A abordagem sobre o acontecimento mgico na literatura se faz presente em diferentes gneros; no exclusividade de um modelo discursivo. Por sua vez, o crtico cubano Leonardo Padura analisa as distines entre realismo mgico e realismo maravilhoso, na obra Lo real maravilloso: creacin y realidad (1989). No entender do Autor, a f, um dos elementos a suscitar o maravilhoso na teorizao carpentieriana, tem provocado equvocos nos entendimentos das caractersticas do realismo maravilhoso com as do realismo mgico quanto identificao de ambos como uma nica prtica esttica. O acreditar no acontecimento misterioso, na concepo de Padura, constitui-se essncia para a viso mgico-realista, mas no determina, nem identifica o maravilhoso. Esclarece o Autor que a orientao do realismo mgico extrada do subconsciente coletivo para reforar a perspectiva realista do narrador16 . Padura advoga que a perspectiva do realismo maravilhoso sucede e complementa a realidade enfocada pelo realismo mgico. Para o Autor, a perspectiva do realismo maravilhoso abarca todo o continente latino-americano, absorvendo todas as manifestaes, tendo em vista as suas singularidades, onde o inslito, o irrepetvel e as foras contraditrias aparecem. Essa concepo totalizante em Padura tem fundamento cientfico e lgico e permite estabelecer historicamente as peculiaridades desse lado do planeta, alm das causas confluentes a revelar o conceito de maravilhoso. Na crtica de Padura, v-se a absoro de temas do realismo mgico pelo realismo maravilhoso um discurso narrativo englobante dos saberes da cultura cientfica, da cultura nativa e da cultura produto da mestiagem de raas. A distino de Padura pode ser desfeita. Em vez de se fixar limites entre teorias delimitadoras, mais pertinente reuni-las em favor da descrio de apenas um gnero narrativo. O mgico e o maravilhoso na cultura latino-americana ocorrem conjuntamente no quotidiano. A proposta de Chiampi, de abandonar o termo mgico e considerar o maravilhoso, concorre para a anulao dessas distines, alm de contribuir para uma perspectiva mais integrada da expresso potica nomeada realismo maravilhoso.
CHIAMPI, Irlemar, op. cit., p., p. 44. Los escritores latinoamericanos de la tendencia o esttica del realismo mgico [...] adoptan una visin de los fenmenos de la realidad que utiliza en diversa medida las estructuras del subconsciente colectivo americano y, sobretodo, los mecanismos mentales de los estratos menos instruidos de la sociedad (PADURA, Leonardo. Lo real maravilloso: creacin y realidad. Habana: Editorial Letras Cubanas, 1989. p. 34).
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Carpentier publica, em 1948, no jornal El Nacional, de Caracas, um texto com uma formulao terica sobre o real maravilhoso americano17 . Este mesmo texto, um ano depois, servir de prlogo ao romance El reino de este mundo, de sua autoria. O Autor prope que o escritor rena, em sua obra, o conjunto de foras opostas em jogo na histria da Amrica Latina18 . Para isso, Carpentier orienta o escritor latino-americano a descortinar o real, ou as diversas faces do real, e assumir a tarefa de receber a mensagem dos movimentos humanos, confirmar sua presena, definir, descrever sua atividade coletiva. [...] o trabalho do escritor consiste em dar forma a essa linguagem.19 No prlogo de El reino..., revezam-se dois nveis de definio do realismo maravilhoso: o modo de percepo do real pelo sujeito, e a relao entre o signo narrativo e o referente extralingstico. Quanto definio do modo de percepo do real pelo sujeito:
o maravilhoso comea a s-lo de maneira inequvoca quando surge de uma inesperada alterao da realidade (o milagre), de uma revelao privilegiada da realidade, de uma iluminao no habitual ou particularmente favorecedora das desconhecidas riquezas da realidade, de uma ampliao das escalas e categorias da realidade, percebidas com especial intensidade em virtude de uma exaltao do esprito que o conduz a um modo de estado limite. Para comear, a sensao do maravilhoso pressupe uma f 20 .

que acredite no acontecimento extraordinrio, da aceit-lo com normalidade (crena nos poderes sobrenaturais de animais e de objetos; antropozoomorfismos; duplos; explicao de fatos fugidios a interpretaes fsicas). Padura, a partir dos ensaios crticos e da obra ficcional de Carpentier, orienta que, para conceituar o realismo maravilhoso, preciso levar em conta o desenvolvimento literrio e ideolgico do escritor cubano e a perspectiva bissmica do termo. As palavras realismo e maravilhoso aludem a uma realidade e literatura. vedada a busca por uma definio sumria e totalizadora deste projeto, pois se trata de um processo. Por economia argumentativa, elege-se o ponto mais importante extrado do estudo de Padura, a superao de Carpentier em creditar f um importante elemento para suscitar o maravilhoso. Carpentier atesta uma realidade objetiva, ela mesma, maravilhosa, produto de variadas confrontaes de foras dspares (mestiagem cultural e tnica, lendas, mitos, costumes dos nativos latino-americanos, a prtica das instituies, a tcnica e a lgica racional do europeu instalado nas Amricas). Portanto, Padura desata os fenmenos maravilhosos de uma suposta exaltao do esprito, rejeita que a origem inesperada do maravilhoso seja obra de milagres, mas sim uma conseqncia de confrontos e absores de manifestaes histricas e sociais: a capacidade para determinar o que o maravilhoso, mais que uma f, provm de um exaustivo conhecimento do inslito e do lgico, do americano e do universal, entrelaados na realidade do nosso continente22 . Padura pretende mostrar que as primeiras concepes de Carpentier sobre o maravilhoso americano so superadas a cada obra escrita por este terico e ficcionista. Porm, concluise, dos estudos de Padura e da leitura de A literatura do maravilhoso (1987), do prprio Carpentier, a no superao do conceito da f a fundamentar o maravilhoso. Carpentier experimenta diferentes caminhos para achar o maravilhoso latinoamericano e a singularidade da cultura latino-americana dentro de um contexto universal. Portanto, os quatro processos23 formulados por Padura, a partir de suas anlises sobre Carpentier, so avanos por distintos caminhos para o ficcionista cubano encontrar a identidade latino-americana. O outro nvel de definio do realismo maravilhoso, a percepo do maravilhoso a compor a realidade, abre caminho para anlise das relaes pragmticas do texto literrio. A rela-

A reflexo carpentieriana sobre o realismo maravilhoso prope uma ampla observao da realidade latino-americana, observao esta a incluir necessariamente a f, a crena pelo povo do acontecimento inslito. Nesse sentido, Chiampi v a inteno de se deslocar a busca imaginria do maravilhoso e avanar uma redefinio da sobre-realidade: esta deixa de ser um produto da fantasia [...] para constituir uma regio anexada realidade ordinria e emprica, mas s apreensvel por aquele que cr21 . Desse modo, se uma personagem experimentar situaes sbitas de modificao da realidade (natural), ela vivencia uma realidade maravilhosa (sobrenatural), desde
17 Para a formulao carpentieriana do realismo maravilhoso, contribuem elementos extrados da cultura latino-americana, concentrados na concepo do barroco latino-americano (Carpentier, op. cit., p. 109), alm de influncias do surrealismo europeu. 18 Os estudos de Quiroga, Padura, Carpentier e Chiampi, remetem ao carter de representatividade do realismo maravilhoso, quanto s convenes da cultura latino-americana, para o compromisso que o escritor latino-americano tem em representar a sua realidade. 19 Carpentier apud Quiroga, op. cit., p. 53. 20 CARPENTIER, Alejo, op. cit., p. 140. 21 CHIAMPI, Irlemar, op. cit., p. 36.

22 la capacidad para determinar qu es lo maravilloso, ms que de una fe, proviene de un exhaustivo conocimiento de lo inslito y lo lgico, de lo americano y lo universal entrelazados en la realidad de nuestro continente (PADURA, Leonardo, op. cit., p. 33). 23 So estes processos: Antecedentes, Formulao e Reafirmao, pica contextual e Culminao (ibid., p. 39 et seq).

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o entre a obra e o seu contexto fica no plano das possveis explicaes para o acontecimento inslito. Assim, o acontecimento extraordinrio encontra uma explicao aceita e avalizada pela cultura em que um acontecimento se projeta; encontram-se justificativas, pois h um ajustamento do dado sobrenatural ao seu correspondente natural24 . So exemplos desse ajustamento as narrativas populares da Amaznia sobre seres fantsticos, muitos com sentido mtico: a Cobra Grande (Cobra Norato, Boina, Anaconda, Me Dgua, Me do Rio), o Boto, o Jurupari, etc.. Esses seres fazem parte do quotidiano de comunidades onde a populao conta histrias das quais protagonista. Nesse espao, todos acreditam em encanto, pressgio, agouro, antropozoomorfismo e na transgresso do espao e do tempo lgicos. As fronteiras entre os discursos literrios so embaadas. Os discursos entrepenetram-se. A densa imaginao do escritor no embargada por receiturios, deixando aos tericos da literatura o rduo ofcio de procurar convergncias e divergncias entre as manifestaes poticas e espartilh-las, ainda que forosamente, em gneros. Por este caminho, a fico do realismo maravilhoso definida no confronto com outras modalidades narrativas. Embora o fantstico e o realismo maravilhoso apresentem traos comuns, para Chiampi, trata-se de coincidncias genricas, que no suprimem diferenas no estatuto narrativo desses discursos. Vejam-se algumas das caractersticas presentes em ambos: a problematizao da racionalidade, a crtica implcita leitura romanesca tradicional, o jogo verbal para obter a credibilidade do leitor, alm de compartilharem de outros motivos legados pela tradio narrativa: aparies, demnios, metamorfoses, desarranjos da causalidade, do espao e do tempo, etc. 25 . Para a Autora, o trao definidor do fantstico o princpio psicolgico que lhe garante a percepo do esttico: um modo de produzir no leitor uma inquietao fsica (medo e variantes), atravs de uma inquietao intelectual (dvida)26 ou hesitao, nas investigaes de Todorov. E, ainda, apesar de o fantstico estar penhorado credibilidade do leitor, a realidade narracional se constri sob uma perspectiva conflitante da combinao do real com o no-real, perfazendo-se uma realidade duvidosa na conscincia do receptor (os cinco sentidos, a lgica, a memria). Em oposio natureza da potica da incerteza do discurso fantstico,

O inslito, [no realismo maravilhoso,] em ptica racional, deixa de ser o outro lado, o desconhecido, para incorporar-se ao real: a maravilha (est) (n)a realidade. Os objetos [...] que no fantstico exigem a projeo ldica de duas probabilidades externas e inatingveis de explicao, so no realismo maravilhoso destitudas de mistrio, no duvidosos quanto ao universo de sentidos a que pertencem. Isto , possuem probabilidade interna, tem causalidade no prprio mbito da diegese e no apelam [...] atividade de deciframento do leitor27 .

O fantstico e o realismo maravilhoso so regidos pela descontinuidade entre causa e efeito, mas a causalidade no primeiro questionadora e conflitiva, enquanto que no segundo no existe conflito, pois os acontecimentos inusitados so admitidos por outras vias, que no a do senso comum. Assim, no realismo maravilhoso h o apelo a uma causalidade onipresente uma causalidade mgica. Nele, os significados no so lacunares como no fantstico; no ficam na hesitao entre uma explicao real e outra sobrenatural. Por interligar realidades conflitantes, por dar importncia mitologia, s crenas religiosas e s tradies culturais como fator de redescoberta do que est reprimido pela racionalidade, o realismo maravilhoso supera a funo esttico-ldica do fantstico. Enquanto no realismo maravilhoso predomina uma forte referncia entre o texto e o contexto, no fantstico a obra se abre para a sua prpria inveno, surgindo, assim, o arbitrrio28 . A definio do realismo maravilhoso pode ser tambm conferida no confronto das isotopias29 dos discursos mimtico, estranho, maravilhoso, e fantstico: o mimtico se pauta pela isotopia natural (literatura realista-naturalista); o estranho se constri por meio de uma ambigidade aparente, resolvida por uma explicao natural (narrativas de mistrio, policial); o maravilhoso estabelece e sustenta uma isotopia sobrenatural, embora se tratar de uma dimenso ordinria s personagens (contos de fadas, contos rabes); na construo do discurso fantstico, ocorre uma isotopia natural e outra sobrenatural para fundar o conflito; por sua vez, o realismo maravilhoso rene as isotopias natural e sobrenatural numa relao conjuntiva30 . A posio do realismo maravilhoso em relao aos gneros discursivos referidos entendida do seguinte modo:
Ibid., p. 59. GOULART, Audemaro Taranto, op. cit., p. 33. 29 Para a definio de isotopia buscou-se apoio em Greimas: um conjunto redundante de categorias semnticas que torna possvel a leitura uniforme da narrativa [...] aps a resoluo de suas ambigidades (ALGIRDAS, Greimas. Elementos para uma teoria da interpretao da narrativa mtica. In: BARTHES, Roland et al. Anlise estrutural da narrativa. Petrpolis: Vozes, 1976. p. 65). 30 CHIAMPI, Irlemar, op. cit., p. 138-14 Realismo mgico e realismo maravilhoso
27 28

24 GOULART, Audemaro Taranto. O conto fantstico de Murilo Rubio. Belo Horizonte: Editora L, 1995. p. 28-30. 25 CHIAMPI, Irlemar, op. cit., p. 52-53. 26 Ibid., p. 53.

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no mimtico, h ausncia do mistrio, j no realismo maravilhoso o sobrenatural uma contingncia natural para as personagens, as quais crem em poderes mgicos, desfazendo-se qualquer mistrio; no estranho, os dados misteriosos suscitam a dvida, mas esta desfeita por uma soluo natural; por sua vez, no realismo maravilhoso, o acontecimento misterioso recebe uma explicao pela crena no sobrenatural; na narrao maravilhosa, enquanto os acontecimentos so regidos pelas leis da imaginao, uma vez que as leis naturais esto suspensas, no realismo maravilhoso, as leis naturais no esto totalmente suspensas, de modo que a normalidade e a sobrenormalidade se associam para construir no texto um outro sentido, no ajustamento do fato natural ao sobrenatural, pelas personagens; no fantstico, os eventos, formados por dados conflitantes natural e sobrenatural permanecem inexplicveis; j no realismo maravilhoso, os dados contraditrios afirmam um sentido, segundo uma lgica a explicar a correspondncia entre os elementos contraditrios natural e sobrenatural. O realismo maravilhoso, portanto, uma manifestao literria abarcada por teorizaes h pouco mais de 50 anos, compreendendo a fico latino-americana realizada por escritores compromissados ou no com a identidade da cultura mestia das Amricas. Ressaltam-se nesse discurso narrativo as questes pragmticas e contextuais que implicam os enredos. Trata-se de um texto com fisionomia peculiar, com autonomia esttica em relao a outros discursos narrativos. A criao imaginativa aliada observao da realidade latino-americana consubstancia a peculiaridade do escritor realista maravilhoso. Sobre a literatura do realismo maravilhoso, fruto do barroquismo da sociedade mestia latino-americana, finaliza-se o discurso sobre o binmio que encerra o fusionismo cultural latino americano com a definio de Carpentier: o inslito quotidiano.

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Pedagogia

O PLANEJAMENTO COLETIVO COMO FATOR INTEGRANTE DO PROJETO PEDAGGICO


Anselmo Alencar Colares Maria Llia Imbiriba Sousa Colares

Anselmo Alencar Colares. Doutor em Educao. Professor de Histria da Educao e de Filosofia da Educao, do Curso de Pedagogia do ILES/ULBRA-Santarm [email protected] Maria Llia Imbiriba Sousa Colares. Mestre em Educao. Doutoranda em Polticas de Educao e Sistemas Educativos pela UNICAMP. Coordenadora e Docente do Curso de Pedagogia do ILES/ULBRA-Santarm [email protected]

Resumo
No presente texto, procuramos apontar diferenas entre o tradicional e o novo planejamento, chamando a ateno para as inovaes que podem contribuir efetivamente no processo de aperfeioamento das ferramentas de gesto educacional. Apoiando-nos na histria, mostramos que o planejamento tanto pode ser autoritrio como democrtico. Todavia, nos perguntamos: estamos diante de um novo processo de planejar ou apenas do tradicional travestido de novo? h, de fato, mudanas substanciais entre os princpios orientadores do planejamento que confirmem a existncia de um contraste tradicional-novo? As reflexes suscitadas por estas questes, permeiam o artigo, desembocando na importncia de tais questes para a organizao do trabalho nas escolas. Palavras-chave: planejamento estratgico, projeto poltico pedaggico.

Abstract
In this text, we try to show differences between the traditional and the new planning. Our main points are the innovations that can effectively contribute to the process of improvement of the tools of educational administration. Based on history, we show that the planning can be either authoritarian or democratic. Nevertheless, the questions occur: after all, are we in a new process of planning or it is the traditional one in a new dress? Is there, in fact, substantial changes among the guidance principles of the planning that confirm the existence of the contrast between the traditional and new? The reflections raised by these questions permeate this article, ending in how important those questions are to the organization in schools works. Key words: Planning strategic; pedagogic and political project.

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Espao Cientfico - Revista do Inst. Luterano de Ensino Superior de Santarm - 2003 - Vol. 4 - pginas 51 a 57

INTRODUO
Estamos diante de um revigoramento do ato de planejar, aps um relativo perodo de baixa, se considerarmos o poder que ele exerceu, por exemplo, ao longo do regime militar (19641985). Todavia, naquelas circunstncias, o planejamento possua significados especficos, tanto no que diz respeito a sua concepo quanto aos objetivos almejados. Os planejadores, amparados por mecanismos repressivos, no contemplavam as opinies divergentes e no precisavam trabalhar com cenrios adversos, uma vez que havia mecanismos de controle eficientes para neutralizar as interferncias indesejveis. Tal planejamento, pelo fato de ter marcado uma poca e ter sido muito difundido e utilizado, assim como por representar uma concepo conservadora de sociedade e de poder, aqui o estamos chamando de tradicional, ao passo que ao seu contrrio, surgido exatamente para dar conta das exigncias decorrentes das transformaes sociais, polticas, econmicas e culturais, integradas a um esforo de redemocratizao, atribumos o qualificativo de novo. Hoje, o planejamento volta a merecer destaque. Mas, ao contrrio da fase anteriormente apontada embora ainda convivendo com resqucios e equvocos que no se apagam to facilmente est acrescido de novos ingredientes, entre os quais merece destaque o princpio de gesto democrtica uma conquista das foras polticas que contriburam para o fim do regime militar. Mas, como possvel que um instrumento que serviu com tanta propriedade ao autoritarismo possa se converter em um mecanismo capaz de dar suporte a princpios democrticos? Jeremy Bentham, filsofo que viveu no o sculo XVIII, apontado como um dos precursores da aplicao prtica das idias no sentido de aperfeioar a sociedade. Publicou, em 1789, Introduo aos Princpios de Moral e Legislao. John Stuart Mill ampliou as noes elementares de Bentham, que se tornaram inclusive conhecidas com o rtulo de utilitarismo. SaintSimon (apontado por alguns autores como o pai do planejamento cientfico) bebeu na fonte bentamiana, mas, sem dvida, apontou um caminho ousado e extremamente engenhoso, destinado a colocar nas mos do prprio homem o controle do destino, libertando-o dos entraves religiosos medievais. Em sua poca, a burguesia ainda no havia alcanado o poder poltico, sendo portadora de um esprito revolucionrio. Todavia, com o advento da industrializao, as teorias de Saint-Simon foram apoderadas pela burguesia nascente como uma arma ideolgica em sua luta pela dominao. Como classe social hegemnica, atravs de seus expoentes, passou a planejar cientificamente o futuro. Pensadores comprometidos com reais transformaes sociais, tais como Marx e Engels, empenharam-se na tarefa de
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oferecer ao proletariado as ferramentas tericas e prticas que os emancipasse, tanto da predestinao religiosa quanto da explorao econmica exercida pela burguesia. Ou seja, tratava-se de dotar a nova classe revolucionria de condies para enfrentar o Estado burgus, derrubando-o e assumindo o controle, passando a dar o direcionamento das aes, apoiados em um planejamento baseado no interesse dos trabalhadores. Grandes modificaes ocorreram na primeira metade do sculo XX, incluindo-se duas grandes guerras mundiais, que serviram no s para redefinir os centros de poder econmico e poltico, mas tambm para alimentar novas teorias no campo da administrao e do planejamento. Com a primeira guerra, caram as iluses burguesas de progresso ilimitado e comeou a ganhar terreno um sentimento de irracionalidade, na filosofia, nas artes e nas cincias. O terreno tambm ficou frtil para o desenvolvimento de ideologias totalitaristas e, conseqentemente, para a aplicao de um tipo de planejamento centralizado. A grande crise capitalista de l929 legitimou um papel intervencionista do Estado (keynesianismo), como alternativa para enfrentar as graves dificuldades econmicas. No ps Segunda Guerra, apesar do rastro da destruio, a recuperao econmica dos pases envolvidos no conflito foi rpida e espetacular, tendo no planejamento um poderoso aliado, principalmente onde proliferou o chamado estado de bem-estar social. Naquele contexto, novas concepes ganharam espao, tais como a do Desenvolvimento Organizacional, cuja literatura, dela resultante, gradualmente se distanciou do lucro como nico critrio da gesto e trazendo para o primeiro plano valores psicolgicos de desenvolvimento pessoal, assim como a Economia Institucional, que enfatiza o estudo das instituies econmicas e sociais, propondo reformas a partir do exame dos fracassos em relao ao propsito da instituio. Foi nesse ambiente de reconstruo mundial e de proliferao de idias, mas tambm de uma disputa sutil entre as potncias vencedoras da guerra em torno da liderana sobre os demais pases, que o Brasil conheceu grandes modificaes resultantes de importantes decises planejadas. Exemplos tpicos foram os governos de Juscelino Kubitschek e dos Militares ps-1964. A estes ltimos, dada a forma de orientao que deram ao ato de planejar, em todas as esferas, nos dedicaremos um pouco mais detalhadamente.

O PLANEJAMENTO EDUCACIONAL NO BRASIL, NO CONTEXTO DO AUTORITARISMO REPRESSIVO


Sob o Regime Militar, instaurado atravs do golpe de 1964, os dirigentes educacionais eram orientados para atuar como executores das aes emanadas de rgos centrais, com pouca ou nenhuma margem de autonomia para planejar. Nas escolas, comumente, desenvolvia-se a seguinte cena: o diretor

definia o que fazer em consonncia com as recomendaes dos rgos superiores e cobrava dos professores a execuo. Em alguns casos, ainda havia a figura do supervisor, vigilante da aplicao dos procedimentos tcnicos e burocrticos. Pouco ou nada refletiam sobre as finalidades mais amplas da educao. Isto, logicamente, atendia aos propsitos polticos do regime militar. O estudante, embora no discurso figurasse como a razo de existncia da escola, no tomava parte do planejamento. Tais procedimentos visavam a desmobilizar possveis focos de tenso, que fatalmente surgiriam se, nos espaos escolares, fosse permitida a anlise crtica da realidade. A fragmentao e especializao do trabalho educacional, espelhando-se no modelo desenvolvido por Frederick Winslow Taylor, significava, como destaca Braverman (1977, p. 82), um empenho no sentido de aplicar os mtodos da cincia aos problemas complexos e crescentes do controle de trabalho nas empresas capitalistas. Ao revolucionar a produo atravs da sistemtica diviso de tarefas, Taylor (final do sculo XIX) no buscava simplesmente aperfeioar a maneira de trabalhar, mas como melhor controlar o trabalho alienado. Tal controle foi cuidadosamente estudado e organizado em trs princpios bsicos: 1) o administrador rene todo o conhecimento adquirido pelos trabalhadores, classificando-os e reduzindo-os a regras, leis e frmulas, de tal sorte que, da por diante, o processo do trabalho, dissociado do conhecimento e das especialidades dos prprios trabalhadores, passa a depender inteiramente das polticas gerenciais; 2) todo o trabalho intelectual deve ser centrado nos departamentos de planejamento, resultando, na prtica, na separao entre a concepo e a execuo, do pensar e do fazer; 3) todo o trabalho ser planejado pela gerncia pelo menos com um dia de antecedncia, de tal forma que o trabalhador possa receber as instrues e segui-las fielmente. Assim, conforme Braverman (1977), o primeiro princpio a coleta e desenvolvimento dos processos de trabalho como atribuio exclusiva da gerncia; o segundo, a ausncia desse conhecimento entre os trabalhadores; e o terceiro princpio consiste na utilizao deste monoplio do conhecimento para controlar cada fase do processo de trabalho e seu modo de execuo. A adoo do modelo taylorista correspondia proposta tecnocrtica que havia se estabelecido no pas e que colocava a tcnica acima de tudo, acreditando no poder inabalvel do planejamento. Isso em parte ajuda a compreender a grande quantidade de normas, regulamentos e planos que foram elaborados naquele perodo. A concepo tecnicista, que predominou ao longo dos governos militares, estabelecia uma rgida hierarquia no sistema de ensino (diretor, supervisor, professor e aluno),

automatizando o trabalho pedaggico, pois estava impregnada do pressuposto da neutralidade cientfica e inspirada nos princpios da racionalidade, eficincia e produtividade. (SAVIANI, 1984, p. 15) Todas as atividades teriam que ser programadas em busca do retorno em termos de eficincia e produtividade. Para isto, interessavam-se os planejadores em conhecer (diagnosticar) a realidade, como se esta fosse imutvel, e agir sobre ela, moldando-a em conformidade com as metas que desejavam alcanar. Tal diagnstico incluindo farta documentao e tratamento estatstico deveria servir como fio condutor para o estabelecimento de diretrizes, metas, visando atingir ao fim almejado. Conseqentemente, o planejamento era um forte aliado do modelo autoritrio, fazendo com que as decises polticas fossem respaldadas na cincia e na tcnica, como sendo portadoras dos anseios de todos. Os ltimos anos do regime militar foram caracterizados por intensas movimentaes da sociedade civil, exigindo a redemocratizao do pas, na expectativa de que, sendo eleitos de forma direta, os governantes assumissem maiores compromissos para com a soluo dos graves problemas sociais. E isto implicava, de certo modo, num desejo de mudana nas estratgias de diagnosticar e executar as polticas pblicas, em suma, em novas formas de planejar as aes do Estado e sua relao com a sociedade. O processo de redemocratizao teve como pice legal a promulgao da Constituio Federal de 1988, com desdobramento nas Constituies Estaduais e nas Leis Orgnicas dos municpios. Tais instrumentos jurdicos consagraram o reconhecimento social dos direitos da criana, do jovem e do adulto educao, sendo o Estado responsvel por sua oferta gratuita e universal. Lanaram significativos desafios para o planejamento, uma vez que a conjuntura favorecia a interferncia de novas e diferentes vozes que buscavam ser participes do processo, e no simplesmente agentes passivos.

O PLANEJAMENTO EDUCACIONAL NO PROCESSO DE CONSTRUO DA DEMOCRACIA


Desenvolver instrumentos que garantam uma gesto efetivamente democrtica tem sido a preocupao de todos os que acreditam na possibilidade de sua concretizao, ao mesmo tempo em que se reconhece que impossvel esperar que ela acontea como obra do acaso. Gerir democraticamente implica em planejar democraticamente. So tarefas indissociveis e ambas decorrem da aplicao de conhecimentos especializados, passando inclusive pelo entendimento e incorporao crtica de elementos presentes nos modelos tradicionais.

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Como resultado da luta do conjunto de foras democrticas, vrios e significativos avanos podem ser apontados quanto aos direitos e garantias individuais e coletivas, bem como em relao ao papel do Estado na concretizao das mudanas desejadas pela sociedade. E para que tais concepes pudessem ser materializadas, o planejamento e a gesto passaram a ser objeto de preocupao terica, na busca pelo desenvolvimento de ferramentas que pudessem tornar o planejamento e a gesto eficazes e eficientes, mas tambm democrticos e comprometidos com os interesses da maioria da populao. Entre os que se dedicaram a esta tarefa, pela abrangncia e importncia de sua obra, merece destaque o chileno Carlos Matus Romo, o qual dedicou-se elaborao de ferramentas para planejar e governar, empenhado tambm em demonstrar que os governantes podem obter bons resultados, cumprir com sua plataforma eleitoral, desde que atuem de forma planejada. Com esses objetivos, desenvolveu uma proposta terico-metodolgica: o Planejamento Estratgico Situacional PES. Suas primeiras crticas com relao utilizao do planejamento econmico ocorreram antes de sua participao no Governo Salvador Allende (Chile, 1970-1973). Em meados da dcada de 80, d corpo estrutura do PES, uma ferramenta a ser utilizada por dirigentes pblicos que passam a atuar em uma realidade social muito complexa, a qual ele passa a se referir como jogo social. Para divulgar e desenvolver sua proposta de planejamento e gesto, Matus utilizou dois meios: assessorias e cursos, nos quais foram aplicados e revisados os seus conceitos e suas matrizes de anlise, visando a atender melhor as necessidades de governar. No Brasil, realizou assessorias e ministrou vrios cursos a partir do final da dcada de 80 at julho de 1998, momento muito prximo de sua morte. Segundo Matus, a revoluo da teoria do planejamento deve-se ao questionamento do pressuposto bsico de toda construo terica do planejamento tradicional: o ator que planeja est fora, ou, acima da realidade planejada. Sua proposta de um pressuposto mais realista: o de que o ator que planeja est dentro da realidade e a coexiste com outros atores que tambm planejam. E a partir deste princpio bsico, deduz como conseqncia todos os postulados do planejamento tradicional (PTr) e os reformula, adequando-os ao planejamento estratgico situacional (PES). Os tpicos apresentados a seguir, fundamentados em Matus (1996), fornecem uma visualizao rpida e explicativa das diferenas entre os dois tipos de planejamento, o que leva a admitir que existe de fato uma dicotomia, no se tratando de simples adequao ou mudana de nomenclaturas, embora, como no poderia deixar de ser, o PES incorpore criticamente alguns elementos j amplamente aceitos e consagrados do Planejamento Tradicional.
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a) O Planejamento Tradicional pressupe um sujeito que planeja um objeto, os quais so independentes, sendo que o primeiro pode controlar o segundo. Por outro lado, no PES, o sujeito que planeja est includo no objeto planejado, e este inclui outros sujeitos que tambm planejam. Portanto, o ator que planeja no tem sua capacidade de controle sobre a realidade planejada previamente assegurada, porque isso depende da ao do outro. b) No modelo tradicional, antes de planejar, o sujeito que planeja deve fazer o diagnstico da realidade para conhec-la, guiando-se por uma verdade objetiva e, conseqentemente, trabalha com um nico diagnstico. Isto era perfeitamente compatvel no perodo autoritrio, mas no se coaduna com a democracia. Da porque, no PES, parte-se do princpio de que h vrias explicaes da realidade, pois ela composta por vrios atores, os quais, por sua vez, so portadores de diferentes capacidades de planejar. O diagnstico nico e a verdade objetiva do lugar explicao situacional, na qual cada sujeito explica a realidade a partir da posio particular que ocupa no sistema (objeto) planejado. O entendimento do conceito de situao que fundamenta o Planejamento Estratgico Situacional fundamental para a compreenso dos demais termos utilizados por Matus, tais como ator, ao, momento, recurso, varivel. Seu esforo concentra-se em demonstrar que o dirigente poltico, por estar inserido em situaes de constantes mudanas, um ator social que est em um jogo social e desempenha um papel de protagonista e no um simples observador, sendo que para ele atuar nesta realidade mutvel precisa compreend-la. c) O planejador tradicional procura compreender a realidade e prever sua evoluo futura, descobrindo suas leis de funcionamento, redutveis a comportamentos sociais e explicveis em relaes de causa-efeito, de tal modo que previso e predio possuem o mesmo significado. No processo de planejamento estratgico situacional, para compreender a realidade e adquirir capacidade de prever sua evoluo, no suficiente nem possvel ao planejador reduzir as aes humanas a comportamentos predizveis. Os outros atores podem ser adversrios ou aliados , e essa relao exige clculo interativo ou julgamento estratgico, como formas de interao entre os atores sociais. Nesse jogo sem resultado combinado, a predio deve ser substituda pela previso. d) No modelo tradicional, o planejador no compartilha a realidade com outros atores, portanto, no h adversrios e, conseqentemente, seu critrio de eficcia ser restrito, podendo limitar-se a um clculo econmico. No PES, o ator que planeja compartilha a realidade com outros atores, e o planejamento deve abranger o problema de vencer ou evitar a resistncia dos outros. O planejamento no deve ser confundido com a concepo normativa do deve ser, mas deve englobar o

pode ser e a vontade de fazer. O planejamento econmico apenas um dos mbitos do planejamento scio-poltico, uma vez que as foras sociais e os atores sociais so o centro do plano, em substituio aos agentes econmicos. e) No modelo de planejamento tradicional, o plano produto de uma capacidade exclusiva do Estado e a situao final conhecida, bem como os meios para alcan-la, bastando haver o cumprimento do que est traado no plano. Para que se chegue aos resultados almejados, faz-se necessria a racionalidade tcnica. Para o PES, o plano no entendido como monoplio do Estado e, por conseguinte, deve-se ter clareza de que as diversas foras sociais lutam por objetivos prprios e esto capacitadas a fazer um clculo que precede e preside a ao. Portanto, h vrios planos em competio ou em conflito e o final est aberto a um nmero bem maior de possibilidades do que se possa imaginar. Outro conceito importante para o PES o de problema, uma vez que no corresponde simplesmente a uma situao que causa insatisfao ao ator que decide enfrent-la; mas, tambm pode ser uma situao muito boa que se quer preservar, ou ainda uma situao que se percebe como uma oportunidade. Nestas trs situaes, planeja-se estratgica e situacionalmente, tendo em vista os Problemas Bem-Estruturados e os Problemas Quase-Estruturados. No primeiro caso, As regras que configuram o sistema gerador do problema e as relaes do homem com ele so precisas, claras, invariveis e predeterminadas. As regras existem antes da soluo do problema e permanecem iguais depois de ele ter sido solucionado (MATUS, 1996: p. 133), enquanto que no problema quase-estruturado, as regras no so precisas, nem invariveis, nem iguais para todos. Os homens criam as regras e s vezes as modificam para solucionar os problemas (idem, p. 134): Ainda de acordo com Matus, para se governar necessria uma articulao constante entre as trs variveis do tringulo de governo1 , sendo que projeto de governo corresponde aos contedos das propostas de ao que um ator social prope-se a realizar para atingir os objetivos por ele indicados, os quais, para sua realizao, dependem das outras variveis. Por governabilidade de sistema entende-se a relao entre as variveis que o ator controla e a que ele no controla, sendo que a relao se d no campo da liberdade de ao do ator, que ser tanto maior quanto mais variveis relevantes para seu projeto controlar, e diretamente proporcional capacidade de governo do ator numa dada situao. E por fim, capacidade de governo refere-se ao acervo acumulado pelo ator e por sua equipe:

conhecimento de tcnicas e mtodos, experincias, destrezas, habilidades para conduzir ou dirigir o processo social de acordo com os objetivos propostos no projeto de ao. E tambm a capacidade de perceber que no sabe, no conhece algo que importante para viabilizar os projetos, para ento poder buscar respostas no interior de sua instituio ou fora dela. Partindo do princpio de que o enfrentamento dos problemas sociais ocorre numa realidade social, portanto, em situaes de conflito, de poder compartilhado e de mudanas rpidas, torna-se necessrio trabalhar o conceito de incerteza. Para Matus, o nico modo de construir o futuro atuar, e s se pode atuar hoje com a certeza de que qualquer clculo sobre o amanh um produto intermedirio. Em outros termos, quem planeja faz opes, mas no o faz nas circunstncias que deseja. O PES oferece algumas ferramentas que auxiliam o ator social a cercar-se de muitos cuidados para viabilizar o seu projeto eficazmente. O Planejamento Estratgico Situacional pode se constituir em importante instrumento auxiliar na construo de um projeto educacional que respeite os interesses e as necessidades da maioria da populao, tanto em nvel macro de governo quanto em instituies escolares. Como toda construo terica coletiva e de domnio pblico, pode ser livremente utilizado. Todavia, para que sejam respeitadas as suas origens e os seus propsitos, deve ser praticado por aqueles que desejam e defendem a democracia enquanto princpio e prtica. Somente assim, pode se converter no novo em superao qualitativa ao planejamento tradicional. Do contrrio, ser apenas mais uma pgina da longa histria do planejamento, que, embora contemple em seu trajeto preocupaes com a construo do futuro, acaba por servir, exclusivamente, aos interesses da burguesia classe ainda hegemnica no plano econmico e poltico.

O NOVO PLANEJAMENTO EM EDUCAO E SUA APLICABILIDADE NAS ESCOLAS


Assim como em termos de polticas pblicas e no mbito da gesto empresarial, o planejamento volta a estar na ordem do dia mesmo que em decorrncia das reformas cobradas pela necessidade de reestruturao do sistema produtivo o que se passa na educao no to diferente. Talvez nunca se tenha discutido tanto a importncia e a necessidade at porque em alguns casos passa a ser exigncia legal de se construir um Projeto Pedaggico. E para que tal Projeto seja construdo e executado, necessrio prever, organizar, pensar estratgias de acompanhamento e avaliao, enfim, planejar. No mbito das unidades escolares, a concretizao desse projeto passa pela compreenso de que as prticas pedaggicas so sociais e polticas, nas quais os educadores e educandos
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Projeto de Governo; Capacidade de Governo e Governabilidade do Sistema. Dirigir significa escolher uma direo e ter a capacidade de persistir nesta direo apesar dos obstculos que se ofeream. (MATUS, 1996, p. 50)
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estabelecem uma determinada relao com o trabalho que fazem (ensinar e aprender) e a natureza dessa relao pode conter (em maior ou menor medida) os princpios democrticos. A relao educativa uma relao poltica, por isso a questo da democracia se apresenta para a escola da mesma forma que se apresenta para a sociedade. Essa relao se define na vivncia da escolaridade em sua forma mais ampla, desde a maneira como a escola se insere e se relaciona com a comunidade, passando pelas relaes entre os trabalhadores da escola, pela distribuio de responsabilidades e poder decisrio, pelas relaes entre professor e aluno, chegando at relao com o conhecimento. Ao se incluir, por exemplo, questes que possibilitem a compreenso e a crtica da realidade no tratamento dos contedos, ao invs de trat-los como dados abstratos a serem aprendidos apenas para passar de ano, oferece-se aos alunos a oportunidade de se apropriarem deles como instrumentos para refletirem e mudarem suas prprias vidas. Por outro lado, o modo como se d o ensino e a aprendizagem, isto , as opes didticas, os mtodos, a organizao e o mbito das atividades, a organizao do tempo e do espao conforma a experincia educativa, ensina valores, atitudes, conceitos e prticas sociais. Atravs dessas opes, pode-se favorecer, em maior ou menor medida, o desenvolvimento da autonomia e o aprendizado da cooperao e da participao social. A contribuio da escola, portanto, a de desenvolver um projeto de educao comprometido com o desenvolvimento de capacidades que permitam intervir na realidade para transform-la. A organizao dos contedos em torno de projetos, como forma de desenvolver atividades de ensino e aprendizagem, favorece a compreenso da multiplicidade de aspectos que compem a realidade, uma vez que permite a articulao de contribuies de diversos campos de conhecimento. Uma vez definido o aspecto especfico de um tema, os alunos tm a possibilidade de aplicar os conhecimentos que j possuem sobre o assunto; buscar novas informaes e utilizar os conhecimentos e os recursos oferecidos pelas diversas reas para dar um sentido amplo questo. Para isso, importante que o professor planeje uma srie de atividades organizadas e direcionadas para a meta preestabelecida, de forma que, ao realiz-las, os alunos tomem, coletivamente, decises sobre o desenvolvimento do trabalho, assim como conheam e discutam a produo uns dos outros. Ao final do projeto, seu resultado pode ser exposto na forma de alguma atividade de atuao no meio, isto , de uso no mbito coletivo daquilo que foi produzido (seja no interior da classe, no mbito da escola ou fora dela). Assim, os alunos sabem claramente o qu e o porqu daquilo que esto fazendo,

aprendem tambm a formular questes e a transformar os conhecimentos em instrumento de ao. A organizao das etapas do projeto dever ser previamente planejada, de forma a comportar as atividades que se pretendem realizar, dentro do tempo e do espao que se dispe. Alm disso, devem ser includas no planejamento, sadas da escola para trabalho prtico, para contato com instituies e organizaes, de tal maneira que se possibilite um melhor aproveitamento das potencialidades de professores e alunos para que, assim, ambos alcancem objetivos e obtenham resultados satisfatrios no processo ensino-aprendizagem. Para que haja melhoria da aprendizagem dos alunos e da qualidade do trabalho docente e para que o projeto pedaggico atinja os objetivos esperados deve haver adeso de todos os professores, alunos e comunidade para a construo coletiva da identidade escolar. E isto implica em uma construo interna, pelos membros da prpria comunidade escolar. O planejamento feito por pessoas alheias escola corre o risco de propor o que impossvel alcanar ou alcanar o que no interessa ou ainda o que j foi alcanado. Sendo produto de um esforo coletivo, os resultados esperados so mais facilmente alcanados, pois j se tornam conhecidos desde o inicio do trabalho, da mesma forma o caminho a ser trilhado para sua concretizao. Um planejamento elaborado por especialistas, alheios realidade da escola, por melhor que possa ser do ponto de vista formal, estar fadado ao fracasso, a virar apenas um documento para cumprir exigncias legais, sem vida. Para que haja xito na execuo de uma atividade planejada para um grupo, preciso que este grupo participe e se comprometa. E esta adeso ao projeto s possvel se todos se sentirem parte integrante do processo.

CONSIDERAES FINAIS
A educao, assim como os demais componentes da organizao social, tende a acompanhar as modificaes que se processam no sistema produtivo. Por esta razo, importante que se busque entend-la luz dos acontecimentos de carter mais amplo. O educador no pode acreditar que a escola por si s possa resolver os problemas das pessoas e do pas, sob pena de cometer equvocos, cair no corporativismo e na estreiteza de viso. Ao mesmo tempo, no pode se deixar abater pelo pessimismo e tomar parte da angstia inercial que nada constri. Hoje, como em outras pocas passadas, temos uma tarefa histrica a cumprir: lutar pela valorizao e dignidade da pessoa humana, pelo direito justia, ao trabalho, ao lazer e ao conhecimento, pela moradia, pela terra e por alimento, assim como pela necessidade do convvio em harmonia com a natureza. Ao contrrio do que pregam os apologistas do mercado, que s se importam com a competio desenfreada que gera a

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autodestruio, temos a possibilidade de incentivar em nossos alunos a solidariedade e a cooperao, a aceitao do outro e o respeito mtuo, que geram o entendimento e a solidariedade. Quando ressurgem em vrias regies do mundo o obscurantismo religioso da Idade das Trevas e movimentos racistas e discriminatrios, importante que estejamos alertas para que no se perca de vista que a maior conquista que a humanidade conseguiu construir foi e ser a tolerncia e o dilogo, o que no significa ausncia de divergncias, mas, acima de tudo, o convvio respeitoso com o contrrio, sem extremismos. O planejamento e a gesto, estrategicamente pensados, podem ser poderosos aliados na reflexo sobre questes desta natureza, alavancando processos de mudana que efetivamente possam beneficiar a maioria. No se trata de desprezar o velho em detrimento dos modismos e nem tampouco de permanecer esttico num mundo de mudanas to intensas e rpidas. O planejamento e a gesto, se forem trabalhados na perspectiva democrtica, podem ser importantes auxiliares na continuidade das lutas que foram e continuam sendo travadas, no sentido de tornar o mundo mais humano. Mais do que o preparo para a competitividade, preciso que se aposte na solidariedade. O capital humano precisa mais que nunca ser convertido em prol do social. E para isto, torna-se necessrio espantar os fantasmas que nos rodeiam, atravs da adoo de princpios ticos que permitam ver as pessoas como seres humanos e no como meros recursos para servir aos interesses do capital. preciso superar a fragmentao do trabalho na escola, que durante muito tempo alimentou a existncia de campos isolados para atuao dos especialistas: o diretor cuidando da administrao (geralmente as tarefas burocrticas e o gerenciamento de recursos financeiros), o supervisor acompanhando

a elaborao e o desenvolvimento dos programas das disciplinas, etc. Este modelo, conhecido como tecnicista, no tem mais sentido em um mundo que exige cada vez mais o desenvolvimento de processos de participao. Precisamos superar a fragmentao do trabalho pedaggico que foi deliberadamente imposta atravs da legislao e das polticas educacionais ao longo do Regime Militar, cujos resqucios permanecem entre ns. E s possvel superar, ultrapassar, transformar, mediante o conhecimento, a ousadia, a prtica. Alm do mais, trata-se de um esforo que envolve a participao de todos, uma construo coletiva. Nesse sentido, torna-se de fundamental importncia a construo de um ambiente escolar onde todos os membros (direo, professores, alunos, pais e comunidade em geral) possam estar em condies de interagir, tornando-se co-responsveis pelo desenvolvimento do processo educacional. Portanto, fundamental que a escola propicie aes, objetivando encontrar os caminhos necessrios para implantar um processo de participao efetiva. No esperar que as mudanas ocorram aleatoriamente, porque o desenvolvimento do processo democrtico pressupe sua construo no cotidiano escolar, tendo como cerne a reflexo contnua dos obstculos e das potencialidades apresentadas.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BRAVERMAN, Herry. Trabalho e capital monopolista: a degradao do trabalho no sculo XX. Traduo de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. MATUS, Carlos. Adeus senhor presidente: governantes e governados. Traduo Lus Felipe Riego. So Paulo: FUNDAP, 1996. SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. 3 ed. So Paulo: Cortez/ Autores Associados, 1984.

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Pedagogia

CONSERVADORES NUMA NOVA ERA DE REVOLUO SOCIAL


Lus Antonio Groppo

Lus Antonio Groppo Doutor em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e Professor do Programa de Mestrado em Educao do Centro Universitrio Salesiano de So Paulo, Unidade Americana [email protected]

Resumo
Considerando a modernizao como um processo que acarreta, destacadamente, a imposio de novas formas de relaes sociais, legitimada, outrora, pelo liberalismo, e hoje, pelo neoliberalismo, demonstram-se as continuidades entre o conservadorismo da poca da Revoluo Industrial e o novo conservadorismo, que reage defensivamente diante dos problemas sociais ocasionados pela globalizao. Basicamente, atravs de pesquisa bibliogrfica, comparam-se os princpios do conservadorismo da passagem do sculo XVIII ao XIX, destacando Edmund Burke, com autores do novo conservadorismo, como John Gray e David Korten. Palavras-chave: conservadorismo, globalizao, Edmund Burke, John Gray.

Abstract
Considering the modernization as a process that results, in prominence, in the imposition of news forms of social relations, legitimated, formerly, by liberalism, and today, by neo-liberalism, one shows the continuities about the conservatism of Industrial Revolution and the new conservatism, that overreacts defensibly in presence of the social problems created by globalization. Though of bibliographical research, I compare the principles of conservatism in two moments of History: first, the times of Industrial Revolutions, mainly Edmund Burke; second, recent authors (John Gray and David Korten). Keywords: Conservatism, Globalization, Edmund Burke, John Gray.

CONSERVADORES NUMA NOVA ERA DE REVOLUO SOCIAL


A globalizao, alm de uma nova era do capitalismo a era do capitalismo global , tida como um novo ciclo de modernizao, estendendo-se agora no apenas ao mundo ocidental, mas para todo o planeta. A globalizao significa, na prtica, a instaurao de uma modernizao em escala mundial e, em projeto, a ocidentalizao do mundo. Esse projeto

acaba encontrando seus limites ao se chocar com a fora ou resistncia da diversidade de culturas e civilizaes, e no apenas com a solidez das tradies, revelando que a modernizao , desde suas origens, na verdade, tambm um processo de transculturao. Deste modo, considerando a modernizao como um processo que acarreta, destacadamente, a imposio de novas formas de relaes sociais, legitimada, outrora, pelo liberalismo, e hoje, pelo neoliberalismo, demonstram-se as continuida59

Espao Cientfico - Revista do Inst. Luterano de Ensino Superior de Santarm - 2003 - Vol. 4 - pginas 59 a 68

des entre o conservadorismo da poca da Revoluo Industrial e o novo conservadorismo, que reage defensivamente diante dos problemas sociais ocasionados pela globalizao. Os conservadores de hoje so capazes de perceber o processo de globalizao como ciclo expansivo do processo de modernizao, entendido tanto como a instaurao de um capitalismo global quanto implementao de sociedades modernas mundo afora, indicando, entretanto, os limites e os equvocos dos projetos hegemnicos, que acreditam poder implementar uma sociedade capitalista de nico tipo, inspirados no modelo ocidental. Os problemas sociais, resultantes das muitas contradies desse processo e projeto, so percebidos e denunciados pelo novo conservadorismo. Assim como na passagem do sculo XVIII ao XIX ergueram-se idelogos opositores, que apontavam para o que estava sendo solapado pela modernizao, na era do globalismo surgem novos defensores das tradies e unidades sociais nomodernas, que acabam sendo derrubadas. De certo modo, essas vozes tm importantes papis, como o de demonstrar os efeitos arrasadores da atual fase do capitalismo e de ajudar a criar indignao moral. Mas, principalmente, apontam criticamente para o presente, permitindo fundamentarem-se melhor e consolidarem-se de modo anlogo ao socialismo no sculo XIX , ideologias opositoras que consigam apontar para o futuro, para a construo de um novo corpo social que no apenas proteja indivduos e localidades, mas que seja mais justo e igualitrio.

reside na possibilidade de se cair no relativismo exagerado, em que direita e esquerda podem vir a se tornar meras caixas vazias, receptoras de contedos histricos mutantes. Procurase fugir, aqui, da queda ao relativismo. Para tanto, a questo progressistas versus conservadores est apenas associada modernidade, em especial ao capitalismo. Em seguida, progressistas e conservadores assumem, cada qual, posturas diferentes em relao temporalidade das transformaes sociais provocadas pelas ondas de modernizao primeiro, pela Revoluo Industrial, agora pela globalizao. Os conservadores reclamam a necessidade do retorno para a recomposio da ordem social tradicional, desmantelada pela recriao racionalista e artificial da vida scio-econmica via modernizao econmica e revoluo poltica. Os progressistas ficam insatisfeitos com o carter apenas parcial da modernizao e/ ou da revoluo poltica, ou ento denunciam a gerao de um outro sistema de dominao e injustia uma insatisfao em relao ao presente sem a nostalgia ou a idealizao do passado e, em geral, com a crena de que no presente encontram-se germes para um novo e melhor patamar de sociedade e vida humana. Torna-se urgente outra vez na histria a compreenso da dicotomia conservadores versus progressistas, principalmente para os que se dizem progressistas. A dicotomia renasce no momento em que a globalizao estende e refora uma nova onda de quantificao e mercantilizao dos comportamentos sociais. Diante disto, os novos progressistas talvez tenham algo a refletir. Primeiro, diante dos argumentos conservadores, poderiam reencontrar a fora e o valor das resistncias das comunidades humanas, numa perspectiva tpica do romantismo revolucionrio (que valoriza passadas e presentes lutas sociais pela emancipao). Dada a limitao de espao, este texto pretende apenas comparar os conservadores da passagem do sculo XVIII ao XIX com os atuais pensadores que retomam a lgica do conservantismo. Mas espera ter dado incio a uma discusso que, num segundo momento, ir abordar mais de perto os novos progressistas.

DICOTOMIAS POLTICAS
Norberto Bobbio (2001) defende a permanncia da dicotomia esquerda versus direita na poltica atual, indicando a manuteno dessa dicotomia nas diferentes maneiras como os mbitos da direita e da esquerda lidam com a questo da igualdade versus desigualdade. A esquerda tende a considerar as desigualdades como socialmente produzidas e politicamente superveis superao tida como positiva. A direita tende a considerar as desigualdades como naturalmente produzidas e, em geral, insuperveis ou, no caso de uma superao artificial, com efeitos prejudiciais ao todo social. Mesmo reconhecendo-se a importncia dessa caracterizao, a postura assumida neste texto acaba explorando um outro contedo desta histrica dicotomia poltica. Trata-se da distino progressistas (em geral, associados com a esquerda) versus conservadores (em geral, associados com a direita). Na verdade, tambm Bobbio (2001) considera essa outra concepo e percebe sua importncia, ainda que prefira a questo da igualdade versus desigualdade como tema crucial. O perigo da postura progressista versus conservadores
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A ERA DAS REVOLUES, LIBERALISMO E CONSERVADORISMO


O liberalismo clssico e o neoliberalismo so tomados aqui como doutrinas polticas que, cada qual em seu tempo, serviram como legitimao ideolgica dos rumos tomados pelo processo de modernizao em momentos crticos, como a Revoluo Industrial e a globalizao. Momentos nos quais se verifica uma acelerao, aprofundamento e extenso dos processos de construo de uma sociabilidade abstrata, racionalista, de-

sencantada, individualista e mercantilizada. Ou seja, o neoliberalismo se constri hoje, em parte, como base ideolgica que justifica a nova onda de desencantamento do mundo e reorganizao da vida social sobre bases abstratas, individualistas e universais. Trata-se, formalmente falando, de uma repetio do que se deu na consolidao da ordem burguesa e da economia capitalista durante o sculo XIX, na Europa legitimada pelo liberalismo , s que, agora, em extenses mais amplas e com maior complexidade. O liberalismo moderno nasce como ideologia representativa da nova sociedade burguesa, oriunda da Era das Revolues (1789-1848). O liberalismo surge da crtica sociedade tutelada pelo Estado absolutista do Antigo Regime e pelas tradies feudais. Seu valor principal a liberdade. Sua nfase o indivduo que, livre da priso das tradies sociais irracionais e do Estado absolutista, teria amplo poder criativo. O liberalismo moderno, na sua nfase sobre a liberdade e o indivduo, retomava uma viso geomtrica, racionalista, abstrata e a-histrica (e at anti-histrica) criada com o Jusnaturalismo ou Doutrina dos Direitos Naturais, o Contratualismo, originado no sculo XVII (BOBBIO, 1988, cap. 2). Apesar da grande diversidade de ideologias e linhas polticas dos seus autores, estes tinham em comum o mtodo: analisavam o direito e a moral cientificamente, propondo uma tica racional, separada de vez da teologia, com base na anlise e crtica racional dos seus fundamentos. Buscaram um sistema universal de direito, vlido para qualquer tempo e lugar. O contratualismo buscava ser uma teoria racional do Estado poltico e, ao mesmo tempo, uma teoria do Estado racional, Estado na qual o ser humano poderia realizar plenamente sua natureza de ser racional. O homem passa no mais a ser considerado como um ser divino, mas sim como um ser natural e racional, para o qual o Estado poderia vir a ser o instrumento da consolidao da razo humana (BOBBIO & BOVERO, 1987). Os contratualistas foram pensadores revolucionrios em seu tempo, porque se preocuparam em destruir uma situao poltica herdada historicamente. Desejavam fornecer uma nova base, racional, para uma nova sociedade e Estado, refletindo e legitimando o incio e a efetivao das Revolues Burguesas, que derrubaram o feudalismo e o poder divino dos reis. Mesmo superada no sculo XIX, a doutrina contratualista era o fundo racionalista, individualista e abstrato que dava suporte ideologia dominante na era de consolidao do capitalismo industrial. Logo, a doutrina do progresso e o evolucionismo superariam a verso a-histrica do contratualismo, reconciliando histria e razo. Contudo, ainda se herdava do contratualismo o aspecto perverso de se poder justificar os interesses do Estado (e de suas elites dominantes) atravs da razo. Tambm perigo-

sa era a viso contratualista, mantida no liberalismo moderno, de ignorar e desprezar as instituies intermedirias entre Estado e indivduo (famlia, parentesco, comunidade, corporaes, associaes etc.), indesejveis por serem frutos da irracionalidade da histria. Quando se erigiu, o conservadorismo moderno bateu forte contra o que apontavam como falcias do racionalismo contratualista, herdado pelo Iluminismo e pelo liberalismo clssico. Os conservadores modernos elegeram como seu principal valor a tradio. Seu enfoque no era o indivduo, mas o corpo social, a comunidade, a sociedade construda historicamente, com instituies, valores, tradies, preconceitos e hierarquias. A crtica da nova sociedade burguesa e a nfase no coletivo aproximam as primeiras ideologias alternativas ao liberalismo conservadorismo e socialismo. Mas enquanto o conservadorismo usa como ponto de vista o passado, o socialismo encara o futuro, pois o coletivo socialista uma nova sociedade, uma organizao social justa e igualitria. Contra o liberalismo, os conservadores enfatizam o fato de que, com a sociedade moderna, o indivduo perde a proteo do Estado e da sociedade. Natural e solitariamente, o indivduo frgil, necessitando das instituies e tradies de proteo e consolao que foram solapadas pela revoluo social. Contra o capitalismo, denunciam a fraqueza e o sofrimento do indivduo atingido pelas misrias trazidas pelo novo sistema econmico. No entender destes, se a hierarquia e os valores tradicionais promoviam desigualdades, por outro lado garantiam proteo ao indivduo. claro que se trata tambm, talvez principalmente, de uma ideologia em defesa dos privilgios ameaados ou retirados das classes dominantes tradicionais, nobres e aristocratas, bem como uma defesa da manuteno de seu tradicional controle exercido sobre as camadas populares. Como indica Karl Mannheim, a mentalidade conservadora, representante das classes dominantes tradicionais, s adquire poder e necessidade de teorizar a realidade quando v a ordem social que sustenta estas classes desmoronar. Neste momento, esboam uma nostalgia ou uma contra-utopia, nas palavras de Mannheim (1986, p. 253). O discurso conservador moderno erigiu-se no fim do sculo XVIII, em reao Revoluo Francesa (iniciada em 1789). Entre suas proposies, destaca-se a prioridade ao social, rejeitando o individualismo liberal e a doutrina dos direitos naturais, bem como o historicismo, ou seja, a defesa de que somos e devemos ser aquilo que a tradio histrica nos fez nos conservadores, portanto, o reconhecimento da Histria transformase em venerao ao passado e nostalgia (BOTTMORE & NISBET, 1980). O conservadorismo ir ajudar a revigorar o historicismo no qual se baseia , formar um importante par com o
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Romantismo (apesar deste no se esgotar no conservadorismo) e criar mesmo as razes da Sociologia. Entre os fundadores do conservadorismo moderno, merece destaque principal Edmund Burke, pensador poltico e parlamentar britnico de origem irlandesa, e sua obra Reflexes sobre a Revoluo em Frana, que comeou a ser escrita justamente em 1789, ano em que se iniciou esta revoluo que transformou a face do mundo moderno (BURKE, 1982). A obra era um violento ataque ao radicalismo da Revoluo Francesa, lida desde j como a derrubada indiscriminada do edifcio social herdado do passado, julgada como uma ao violenta e irresponsvel. Burke tem sua concepo baseada no valor do corpo social, do todo social, da sociedade tida como um organismo. Enfatiza a desigualdade como aspecto natural da sociedade, bem como o valor da religio e dos preconceitos. O senso comum era formado de preconceitos que justificam hierarquias, privilgios, discriminaes, separaes e desigualdades. Tomados um a um, cada preconceito era uma inverdade, racionalmente injustificado. Tomados em seu conjunto e em seus efeitos gerais, no entanto, os preconceitos eram essenciais para a ordem social, para o bom funcionamento da sociedade. Eram, deste modo, inverdades particulares que se transformavam em resultados positivos e racionais. Burke acredita que cada sociedade, povo, nao ou pas tem suas particularidades uma concepo que, juntamente com a viso orgnica da vida social, ser influente na origem da Sociologia. Deste modo, cada sociedade possui a forma poltica mais adequada e adaptada para as suas caractersticas singulares e tradies herdadas. Insurge-se contra o universalismo do contratualismo ou do iluminismo: no h um princpio ou modelo universal de Estado e leis. Forar a adoo de um modelo geral e abstrato seria uma violncia ao corpo social, at mesmo um golpe mortal contra a ordem interna do organismo. Ao mesmo tempo, Burke demonstra seu temor s multides um sentimento tpico, at hoje, do conservadorismo. Critica o princpio absoluto da democracia, que daria poder excessivo s classes populares, as quais no sabiam ainda lidar com to grande e nova liberdade, podendo colocar em risco o que era, na verdade, mais importante, a ordem social. Burke afirma no ser contra as mudanas, mas defende que elas devem ser feitas lentamente, atravs de correes parciais, conservando o edifcio social os homens devem considerar-se parte de um sistema social que tem a sabedoria para decidir o que deve ser conservado e o que deve ser mudado.

obra de Octavio Ianni (1992, 1997, 2000). Ianni interpreta a globalizao sobretudo como a era global do capitalismo. Deste modo, sua obra permite comparar os dois momentos de revoluo social, aqui discutidos, implementados pela expanso do capitalismo: a Revoluo Industrial, no passado, e a globalizao do capital, no presente. O marxismo empregado por Ianni permite que ele enxergue por um vis progressista, em vez de conservador, o clssico tema do desmanche das estruturas socioeconmicas tradicionais pelo capitalismo. A globalizao , ento, comparada acumulao originria, ou melhor, trata-se realmente de um novo surto extensivo e intensivo de acumulao originria, afetando assim modos de vida tradicionais ou pr-capitalistas. Naes, localidades e diversidades entram em crise, em geral, por uma adoo mais sistemtica (no caso da globalizao intensiva) ou, ento, pela chegada (no caso da extenso do capitalismo) ... dos mecanismos de mercado, das tcnicas de administrao e gerncia racionais, das expectativas e dos hbitos consumistas, das abstraes do imaginrio inerente economia poltica do capitalismo, da sociabilidade burguesa (IANNI, 1997, p. 38). Foras produtivas e relaes de produo em moldes capitalistas generalizam-se e, ao lado das peculiaridades scio-culturais de cada tribo, cl, nao ou nacionalidade, desenvolvem-se as tecnologias e as mentalidades organizadas com base nos princpios da produtividade, competitividade (IANNI, 1997, p. 222-3). Deste modo, pode-se considerar o capitalismo tambm como processo civilizatrio, ao desenvolver e generalizar suas formas de agir, pensar e sentir, bem como padres e valores scio-culturais. O capitalismo retoma sua tradio de ser um processo social avassalador, dissolvendo e recriando todas as formas sociais as quais entra em contato. Ainda que muito consiga se manter, tudo se modifica (IANNI, 1995, p. 136). No seu aspecto extensivo, a globalizao significa um novo ciclo de modernizao que leva destruio modos de vida particulares, um verdadeiro holocausto de povos e culturas: A gloriosa trajetria do capitalismo, europeizao ou ocidentalizao do mundo, pode ser vista, tambm, como uma espcie de holocausto (IANNI, 1992, p. 62). Contra as formas socioculturais no-modernas, os choques de modernizao (incluindo a globalizao) utilizam-se de ferramentas que atacam diretamente as suas bases: contra o territrio e o apego ao local, o desenraizamento; contra as formas econmicas localizadas, o mercado, a mercadoria, a moeda, capital, empresa e publicidade. Mas na era do globalismo, os centros decisrios e de influncia sobre a vida cotidiana dos povos e indivduos submetidos modernizao deslocam-se para alm das fronteiras nacionais, com a formao de estruturas mundiais descentralizadas e sem qualquer

GLOBALIZAO, COMUNIDADE E SOCIEDADE


Para interpretar a atual era do globalismo como um novo ciclo de modernizao do mundo, toma-se como base a
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localizao ntida: empresa transnacional, instituies supranacionais, cultura de massa mundial etc. (IANNI, 1992). A universalizao do capitalismo protagoniza a introduo de valores, instituies e princpios que parecem fundamentais para o bom funcionamento deste modo de produo, conturbando a vida de locais outrora nunca ou pouco tocados pelo capital. No seu comentrio, Ianni retoma a clssica dicotomia comunidade versus sociedade, opondo a vitalidade do mundo comunitrio e no-capitalista virtualidade da sociabilidade moderna:
Aos poucos, a comunidade recoberta pela sociedade, a sociabilidade baseada nas prestaes pessoais, ou na produo de valores de uso, recoberta e substituda pela sociabilidade baseada no contrato, na produo de valores de troca. Simultaneamente, ocorre a secularizao da cultura e do comportamento, a individuao, a emergncia do individualismo possessivo e, em alguns casos, da cidadania. (IANNI, 1997, p. 223)

por estar ainda em constituio, torna-se tambm pouco visvel ou invisvel, sutil, fugaz e irreal. Enquanto isto, o nacional e local, mesmo em processo de submisso, aparecem como mais visveis e reais, com tradies marcantes e territorialidade forte. A sociedade global se constitui principalmente atravs de teias virtuais, atravs da abstrao e universalizao dos instrumentos e tcnicas que se utiliza, como eletrnica, informtica, telecomunicaes etc. As teias virtuais da sociedade global, entretanto, ao mesmo tempo transpassam e envolvem o nacional e o local: Esses objetos, aparelhos ou equipamentos, tais como o computador, televiso, telefax, telefone celular, sintetizador, secretrio eletrnico e outros, permitem atravessar fronteiras, meridianos e paralelos, culturas e lnguas, mercados e regimes de governo (IANNI, 1997, p. 28).

A CRTICA CONSERVADORA DA GLOBALIZAO


As afirmaes sobre o carter virtual e urbano da globalizao reaparecem tambm em Jean Chesneaux (1995). Ele comea seu livro pedindo desculpas por seu tom amargo, mas justifica por sua sensibilidade sobre aquilo que perdemos com a modernidade-mundo:
O hbito de caminhar noite sob as estrelas, o cheiro dos tomates lentamente amadurecidos ao sol, a doura intacta das paisagens erguidas em milhares de sculos e, mais ainda, a capacidade do ser humano se orientar por si mesmo tanto na natureza como na sociedade; a capacidade de refletir e criar por si mesmo; de desabrochar sem depender de aparelhos eletrodomsticos e eletroculturais cada vez mais sofisticados. (CHESNEAUX, 1995, p. 13)

Mas h um dado novo no atual ciclo do capitalismo. Em certos lugares e momentos ele bem mais intensivo que extensivo. Ou seja, ele atua sobre e contra formas de sociedade, cultura, poltica, economia etc. que haviam sido moldados no interior da modernidade. O exemplo mais gritante disto parece ser a implementao de um capitalismo agressivo nos pases at h pouco tempo comunistas, na qual uma forma de civilizao moderna (capitalista) substituiu radicalmente outra (socialista). Muito lamentado tambm, na soleira do fim do Bloco Sovitico, foi o colapso do Estado do Bem-Estar Social e da social-democracia clssica. No antigo Terceiro Mundo, h o sepultamento de verses desenvolvimentistas e/ou populistas de projetos nacionais (IANNI, 2000, cap. II). Os agentes desta superao so, entre outros, as polticas de desestatizao e privatizao, as polticas de abertura de mercados e a modernizao das normas jurdico-polticas e das instituies. Ou seja, a atual onda de modernizao via globalizao do capitalismo no solapa apenas tradies, valores, sociabilidades, economias sociais e organizaes polticas pr-modernas. Mais do que nunca, o alvo da modernizao, da atual acumulao originria e da expanso da civilizao capitalista a prpria modernidade. Recria-se, na era do globalismo, a clssica dicotomia sociolgica comunidade versus sociedade. Segundo Ianni (1997), a globalizao acentua o carter virtual da sociabilidade moderna a sociedade que se impe cada vez mais a formas comunitrias de relaes sociais (pretritas ou alternativas modernizao capitalista). A sociedade global, muitas vezes,

A introduo de sua obra revela a motivao nostlgica de Chesneaux, o que o leva a denunciar a lgica circular que anima o sistema econmico, cultural e da vida cotidiana, que torna secundrias as posies concretas dos elementos no espao real numa demonstrao da presena do tema do real (vida) versus virtual (artifcio) no seu pensamento, ou seja, da lgica que ope comunidade e sociedade. Os aspectos citados pelo autor para comprovar tal afirmao permitem dizer que mesmo elementos tornados centrais na sociabilidade moderna podem vir a ser solapados, pela expanso do que chamado de modernidade-mundo. Por exemplo, a rua: para Chesneaux desaparece rua clssica como local de socializao criada com o tempo e plural, substituda pela via de trnsito esta priorizao da circulao em vez da presena vem desarticular as cidades. Perde-se o lugar pblico outra perda de algo criado na modernidade: os lugares pblicos para o encontro da coletivi63

dade, como catedral, centro, mercado, praa e parque, ou seja, os lugares de centralidade (CHESNEAUX, 1995, p. 37) vo desaparecendo. O tempo da experincia substitudo pelo tempo mecnico e cronometrado, pelo ... tempo tornado efmero, programado, tarifado (CHESNEAUX, 1995, p. 17). O tempo contrai-se ao imediato e o instante impe-se vida cotidiana: fast food, relgio digital, cotao do dlar a cada trinta segundos na Bolsa de Nova York, curta vida dos livros impressos etc. H, deste modo, uma separao do tempo tcnico social da temporalidade biolgica e natural (CHESNEAUX, 1995, p. 26); mas diante do trabalho ininterrupto nas indstrias e da flexibilizao do trabalho, por exemplo, os organismos reagem com stress e outras doenas psicossomticas. Percebe-se que, em Chesneaux, diversos aspectos da crtica conservadora modernidade reaparecem, adotados num contexto de denncia da globalizao: vida versus tcnica, natural e orgnico versus artificial e maquinal, tempo de experincia e memria versus tempo mecnico e do imediato, comunidade e organicidade versus sociedade e sistema. Isto leva o autor outra temtica tpica do conservadorismo: a insegurana do indivduo diante da fragmentao das referncias naturais e comunitrias. O presente supercarregado, superprogramado e supercomprimido pressiona o indivduo tanto quanto o futuro carregado de interrogaes inquietas e perigos (CHESNEAUX, 1995, p. 40). Talvez seja exagero considerar Jean Chesneaux como conservador. Mesmo nos prximos autores discutidos possvel no ser totalmente justa tal apreciao. No entanto, dentro dos termos conferidos por este texto ao pensamento conservador, John Gray e David Korten podem ser considerados como expoentes da nova crtica conservadora modernizao (em sua fase globalizada). Uma lgica similar de rejeio da modernizao avassaladora, universalista, abstrata e destradicionalizadora, tpica do conservadorismo da Revoluo Industrial, reaparece nestes importantes crticos da Era do Globalismo. O texto continua agora a argumentao que j anunciou ao discutir Jean Chesneaux. Busca analisar idias de alguns autores cujas obras contm, com papel fundamental ou de destaque, uma crtica globalizao, considerando-a como um novo choque destruidor de tecidos sociais construdos historicamente. Dois destes autores parecem francamente conservadores, John Gray e David Korten, ainda que de modo algum no sentido atribudo pela nova direita neoliberal. Mesmo tendo em comum a valorizao das tradies e instituies histricas, se afastam dos neoliberais quanto defesa do livre mercado (instituio que, na verdade, assume nestes autores o papel de causa dos malefcios da globalizao). Aps Gray e Korten, os
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autores aqui analisados no so conservadores, ao contrrio, mas percebe-se que contm denncias dos efeitos sociais perniciosos gerados pela globalizao que fazem ressonar a lgica da crtica modernizao feita pelos conservadores. Na verdade, os segundos tratam-se mesmo de progressistas, que apontam para a discusso final deste texto, que busca, analogamente ao socialismo do sculo XIX, partir da crtica ao presente mesmo que o comparando ao passado para propor um futuro com maior plenitude. John Gray escreveu um brilhante livro sobre a utopia do livre mercado global, Falso Amanhecer (GRAY, 1999). O argumento central de Gray encaixa-se exatamente na proposta analtica deste texto. Gray compara os dois momentos da histria em que o poder poltico procurou impor a instituio do livre mercado: primeiro, a Inglaterra em meados do sculo XIX; segundo, diversos pases de cultura anglo-sax no final do sculo XX (Inglaterra, Nova Zelndia e Estados Unidos), inclusive com a proposta de se criar um livre mercado global (proposta que constitui aspecto central das polticas das instituies econmicas supranacionais, como o Fundo Monetrio Internacional, o Banco Mundial e a Organizao Mundial de Comrcio). A tese de Gray ilustra diretamente a hiptese deste texto: a globalizao como uma nova fase de expanso da modernizao capitalista, cria problemas sociais anlogos aos da Revoluo Industrial, problemas que so diagnosticados por alguns os conservadores como sintomas da ruptura de tecidos sociais indispensveis segurana dos indivduos. Segundo Gray, baseado na obra clssica de Karl Polany (A grande transformao), a Inglaterra em meados do sculo XIX experimentou um verdadeiro processo de engenharia social, cujo objetivo era a liberao da vida econmica de qualquer controle social e poltico. Isto se fez atravs da construo de uma nova instituio, o livre mercado, quando foi preciso romper e at destruir mercados sociais, socialmente enraizados, que durante sculo existiram no pas. Se at ento a vida econmica fora regida pelos mercados sociais, de agora em diante o seria pelo livre mercado. esta ruptura que foi denominada por Karl Polany como a Grande Transformao. Processo semelhante estaria se dando hoje, como objetivo de organizaes transnacionais, num projeto liderado pelo ... ltimo grande regime fruto do Iluminismo, os Estados Unidos (GRAY, 1999, p. 10). Na crtica ao projeto dos EUA, Gray retoma a crtica antiuniversalista e historicista, tpica dos conservadores da Era das Revolues Burguesas. Na verdade, o autor demonstra as continuidades entre o Iluminismo, que ajudou a gerar o sistema poltico norte-americano, e o projeto do livre mercado global capitaneado pelos EUA. Contra o carter artificial das experincias do livre mercado, impe-se o carter espontneo da regulao dos mercados

sociais. Na verdade, o livre mercado criado e s se mantm enquanto o Estado for capaz de impedir que a necessidade humana de segurana e de controle dos riscos econmicos ganhe expresso poltica (GRAY, 1999, p. 28). Sem o Estado forte como garantia, o mercado ser inevitavelmente sufocado por uma mirade de restries e regulamentos. Isto surgir espontaneamente em resposta a problemas sociais especficos, no como elementos de qualquer grande projeto (GRAY, 1999, p. 28). Enquanto o livre mercado precisa de planejamento central, os mercados regulamentados criam-se espontaneamente, pela expresso das foras sociais e polticas abrigadas no interior da sociedade. Trata-se de mais um argumento anlogo aos dos primeiros conservadores: contra a violncia de projetos universais, abstratos e racionalistas opem-se a vitalidade, a criatividade e a especificidade dos organismos sociais, naturais e diversos. Tal argumento retomado na crtica de Gray aos arautos do livre mercado global, quando passam a considerar que a modernizao econmica a mesma em todo o lugar e causa homogeneizao, identificando erroneamente a globalizao com a expanso para todo o mundo de um modelo particular de capitalismo (o livre mercado americano). Porm, os frutos das utopias universalistas, derivados do Iluminismo, causam efeitos sociais perversos. Nas diversas vezes em que os Estados Unidos e as instituies supranacionais procuraram implantar sua fantasia irrealizvel, apenas criaram ... desordem econmica e instabilidade poltica em pases imensamente diferentes ao redor do mundo (GRAY, 1999, p. 30). Contra o universalismo e a utopia da homogeneizao encarnada, segundo Gray, pelos defensores do livre mercado, os neoliberais o autor clama pela necessidade de reconhecer o carter heterogneo das culturas e tradies histricas, a diversidade dos povos e a pluralidade de condies sociais. Ainda que considere que os efeitos da globalizao e das polticas de livre mercado tenham sepultado instituies como o Estado do Bem-Estar social (ou seja, impossvel retornar ao passado recente), clama por uma ... reforma da economia mundial que aceite a diversidade de culturas, regimes e economias de mercado como uma realidade permanente, j que o livre mercado global revela-se como uma fantasia baseada numa falsa universalidade de valores e instituies ocidentais, impedindo assim que as diversas culturas do mundo busquem modernizaes adaptadas s suas histrias, circunstncias e necessidades particulares (GRAY, 1999, p. 32-33). Gray procura desbancar a tese da ocidentalizao do mundo, afirmando que a formao de uma economia mundial tem significado, na verdade, a criao de ... regimes que atingem a modernidade pela renovao de suas prprias tradies culturais... Existem muitas modernidades... (1999, p. 252-3). Entre os pases modernizados de modo autctone, sem ocidentalizao, esto o Japo do sculo XIX, China, Rssia, Cingapura, Taiwan e Malsia.

Gray tambm denuncia que as polticas de livre mercado hoje criam desigualdades tais, bem como a diminuio da qualidade de vida, que rivalizam com o que se viu na Inglaterra no sculo XIX. O processo de implementao do livre mercado uma reengenharia social significa mesmo o desmantelamento das instituies sociais. Para alm de liberar o mercado de restries e necessidades sociais, tal implementao violenta destroa tecidos sociais que garantiam as necessidades mnimas de sobrevivncia e segurana a indivduos e grupos. No prprio EUA, nada parece ter restado para garantir a ordem social, a no ser a polcia e o encarceramento, indcio de um verdadeiro colapso da sociedade civil. O autor afirma que no h nada de anmalo na ... associao entre livre mercado e desordem social. Ainda que possa ele prprio tornar-se estvel, o livre mercado est destinado a destruir instituies atravs das quais a coeso social preservada (GRAY, 1999, p. 52). As duas obras de David Korten (1996, 2002), mesmo tendo sido trabalhadas em outro momento mais a fundo (GROPPO, 2002), sero aqui retomadas em seus aspectos mais gerais. Administrador norte-americano, depois de trabalhar por vrios anos nos pases pobres para agncias internacionais de desenvolvimento, Korten acabou partindo para o mundo das Organizaes No-Governamentais (ONGs), participando do Frum de Desenvolvimento Centrado na Pessoa. Ou seja, tratase no apenas de um crtico da globalizao, mas tambm de um militante. Sua primeira obra, Quando as corporaes regem o mundo (KORTEN, 1996), parte de um desencanto em relao ao modelo de desenvolvimento ocidental, baseado meramente no crescimento econmico, e no no bem-estar das comunidades. Clama, portanto, contra as novas tendncias de modernizao e mercantilizao das relaes sociais, pela proteo e estmulo das localidades, economias sociais e solues comunitrias para as necessidades coletivas. Isto o leva a afirmar-se como conservador, no sentido de defender a manuteno ou recriao dos tecidos sociais diante de processos avassaladores, homogeneizadores e universalistas da modernizao em sua era global. Em sua segunda obra, O mundo ps-corporativo (KORTEN, 2002), vai ainda alm, defendendo o princpio da vida e da espiritualidade contra o sistema do dinheiro (o capitalismo) e o materialismo monista. Passa a atacar o capitalismo e defender o sistema da vida, contrapondo o teor canceroso do capitalismo capacidade de auto-organizao da vida. A globalizao acelera os processos de degradao implementados com o avano da modernizao capitalista mundo afora. Vive-se, ento, uma trplice crise: o agravamento da pobreza, a destruio ambiental e a desintegrao social. A crise gerada pelo fato do sistema social, combalido pela ex65

plorao do sistema do dinheiro, ter se tornado incapaz de satisfazer aquilo que mais importante para os seres humanos e suas coletividades: vnculos sociais estveis, confiana, afeto e significado comum. Em sua primeira obra (KORTEN, 1996), a instituio que toma a linha de frente da globalizao a corporao transnacional o elemento apontado como a causa dos malefcios sociais. As corporaes crescem desmesuradamente de tamanho, desenrazam-se do local e at da nao em que tm sede e desenvolvem agenda institucional prpria, de acordo com seus interesses, necessidades, estrutura e a natureza de seus negcios. Geram um sistema prprio, que adquire autonomia e passa a funcionar para alm das necessidades bsicas dos indivduos e grupos humanos, ou melhor, com independncia e irresponsabilidade diante dos entes vivos. Tal sistema impe s sociedades o nus de sua manuteno e crescimento, transformando as corporaes em usinas de extrao de riqueza. O sistema das corporaes cria um capitalismo global baseado na concentrao de riqueza e poder em entidades alheias ao bemestar humano. Em sua segunda obra, Korten (2002) transforma a corporao em um dos elementos centrais componentes do mundo do dinheiro, ou capitalismo, que se torna, no seu entender, a causa dos problemas humanos na contemporaneidade. Neste mesmo livro, aprofunda uma proposta que o aproxima de uma posio liberal-conservadora. Para Korten, a economia de mercado no deve ser confundida com a economia capitalista. So, na verdade, sistemas opostos; o segundo, no mximo, uma condio degradada do primeiro. Korten recupera os clssicos do liberalismo econmico, Adam Smith e David Ricardo, principalmente o primeiro, para demonstrar que os requisitos de uma verdadeira economia de mercado no so nem de perto atingidos pelo capitalismo, principalmente num sistema todo voltado para o benefcio das corporaes e do capital financeiro especulativo, que vigora atualmente. Apesar da ideologia prcapitalista selecionar fragmentos da teoria de mercado para tentar provar ...que o interesse pblico fica mais bem servido quando megacorporaes de alcance global recebem licena para maximizarem seus lucros sem restries do poder pblico... (KORTEN, 2002, p. 55), realiza-se, sob o capitalismo, na verdade, uma deturpao total da teoria do mercado. Na verdade, os agentes do capitalismo promovem polticas pblicas que vo contra e destroem mesmo os pressupostos da verdadeira economia de mercado. Torna-se urgente, para o autor, a misso de reverter estas tendncias que vo contra o sistema da vida. Para tanto, prope uma revoluo ecolgica a partir do paradigma do organismo. A vida capaz de auto-organizar-se, via escolhas cooperativas que poderiam expandir as capacidades cooperativas de modo
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exponencial. Contra o capital financeiro, Korten ope o capital vivo. Trata-se do que chama de fonte de riqueza verdadeira, ou seja, a totalidade do conhecimento til acumulado pela vida (KORTEN, 2002, p. 138), que integra a capacidade de escolha, o estoque de energia e o potencial para criar formas mais complexas e aptas. Korten, portanto, ope, primeiro, corporao global e comunidade local. Segundo, capitalismo e mercado, ou dinheiro e vida. So os efeitos da reverso ao global, ao capitalismo e ao dinheiro que degradam os valores comunitrios, os interesses pblicos e a vitalidade humana. A nfase no local, no comunitrio, no orgnico, na vida e na afetividade revelam o quanto o autor bebeu na fonte dos conservadorismos, presentes desde a gnese da teoria social no sculo XIX, na Europa. Korte, prope uma verdadeira recriao da vitalidade comunitria com virulentos ataques s corporaes e aos poderes globais constitudos. Mas clara a presena de um grande teor nostlgico, romntico e at antimoderno no seu pensamento e retrica e o mesmo pode ser dito de parte importante da militncia crtica globalizao que inclui a prpria ONG de Korten. Aproxima o novo e o velho pensamento conservador oposio entre tradio e modernizao. De um lado, ficam experincia e memria, o carter natural da ordem social, a previsibilidade e a segurana. Trata-se daquilo que defendido pelos conservadores, justamente o que fica ameaado pelo que trazido com a modernizao: racionalismo universalista e a-histrico, recriao artificial, geomtrica e tecnicista da vida social, futuro em aberto e, como conseqncia, insegurana e medo. Tanto Korten quanto Gray, cada qual ao seu modo, defenderam os tecidos sociais de integrao e proteo, bem com os mercados sociais contra o livre mercado global (Gray) ou o verdadeiro mercado contra o capitalismo (Korten). Enquanto Gray defendeu a necessidade de se reconhecer a diversidade e as tradies histricas das sociedades, Korten enfatizou a capacidade criativa da vida (natural e humana). Ambos destacaram o carter espontneo das solues sabiamente construdas pelas comunidades humanas enraizadas. Ambos criticaram os abusos da reengenharia social, promovida por aqueles que, do alto e distantes, procuram reordenar a vida social e econmica das localidades. Tanto Korten quanto Gray retomam, cada qual ao seu modo, a dicotomia comunidade versus sociedade. Analisando suas obras, pode-se dizer que associam comunidade os seguintes elementos: vida, criatividade, capital social, local, mercado socialmente regulado, auto-desenvolvimento, interesse coletivo, desenvolvimento humano e valores espirituais. sociedade, associam os elementos que assumem tom negativo: dinheiro, extrao de riquezas, capital financeiro, global, livre mercado ou capitalismo corporativo, intervenes scio-econ-

micas no local decididas em instncias externas e distantes das localidades, interesses particulares, crescimento econmico e valores materiais. Uma aproximao entre velhos e novos conservadores parece se impor. Muitos consideram os conservadores de outrora como reacionrios, ou seja, como pregadores de um retorno ordem do Antigo Regime, como profetas do passado. claro que nos seus momentos mais extremos, o conservadorismo foi tanto na teoria quanto na prtica poltica da Restaurao reacionarismo. Mas deve ter ficado claro tambm que, na maior parte dos conservadores, o respeito pelo passado e a crtica nostlgica do presente no significa necessariamente a crena na possibilidade de um mero retorno ao passado. Na maior parte dos casos, inclusive em Edmund Burke, tratava-se de recuperar o esprito da ordem social, perdido dentro da avalanche soberba da Revoluo, ou ainda de permitir uma transformao dosada do sistema social via reformas paulatinas. Quanto aos atuais conservadores, talvez sejam os que mais se aproximam da alcunha de antiglobalizao, ou seja, da proposta que espera interromper o processo de globalizao, mantendo os elementos polticos e econmicos anteriores, em destaque o Estado nacional. V-se que isto s poderia ser aceito com fortes reservas. Nem Korten nem Gray so exatamente saudosos da ordem pr-global. De todo modo, se existem hoje aqueles que a imprensa denomina como anti-globais, seriam, no mximo, os movimentos e organizaes que se avizinham das idias conservadoras exemplificadas por estes dois autores. Na poro esmagadora daqueles que criticam ou politizam contra a globalizao capitalista, entretanto, no se tem o mero desejo do retorno ao passado pr-global, mas principalmente a proposio de uma outra globalizao. Como se observou com os socialistas do sculo XIX, novamente tem-se hoje pensadores e movimentos que criticam o presente e, para alm de denunciarem perdas em relao ao passado, apontam para um possvel futuro mais pleno que ambos, passado e presente.

te na modernidade. O capitalismo global avana contra aspectos considerados pelos progressistas de hoje e de ontem como valiosos, como os direitos trabalhistas, o Estado de Bem-Estar social, a democracia, a cidadania etc. John Gray e David Korten ilustraram a retomada da lgica conservadora clssica, agora para pensar os novos desdobramentos do capitalismo, em sua fase de globalizao. claro que aspectos reveladores de suas anlises sobre os problemas sociais causados pelo novo surto de modernizao a globalizao originam-se a partir de ricos dilogos com outras tradies do pensamento social e poltico, como o ambientalismo, o liberalismo de tipo clssico, democratismo e social-democracia to fortemente presentes em ONGs e movimentos humanitrios moderados. Ambos os autores procuraram ilustrar as falcias da ideologia do livre mercado o neoliberalismo diante da questo da segurana dos indivduos e das comunidades, da diversidade e das tradies locais. Se considerarmos o liberalismo como legitimador da onda de modernizao social do tempo da Revoluo Industrial, talvez seria possvel dizer que o neoliberalismo faz hoje a mesma funo diante da globalizao. Como outrora o liberalismo, o neoliberalismo rapidamente mostrou sua face anti-revolucionria, justificando desigualdades sociais e misrias econmicas resultantes da imposio da nova ordem social (ou da mesma ordem social capitalista reformada). Nesta legitimao, recorre-se a uma pretensa ordem social baseada na razo universal, desenhando estruturas sociais, normas e instituies formalistas e abstratas. Apela-se contra o passado, contra tradies que impedem o crescimento econmico e o livre desabrochar do indivduo. Afirma-se o fim da histria, com a vitria do sistema socioeconmico mais eficaz, que precisa apenas se refinar de agora em diante. Trata-se da arrogncia universalista caracterstica das ideologias derivadas do Iluminismo, que tanto irritaram os conservadores de outrora como Edmund Burke e irritam os de hoje como John Gray. Este texto procurou ilustrar como, no passado e no presente, os conservadores desenvolveram argumentos contrrios nova ordem social, baseando-se principalmente na retomada da Histria e na viso nostlgica de uma comunidade perdida. Este texto espera ter demonstrado tanto os trunfos quanto os limites do pensamento conservador diante das ideologias legitimadoras das novas ondas de modernizao. Mas reconhece a necessidade de que se continue a discusso aqui iniciada, demonstrando de que modo os novos progressistas assim como fez no sculo XIX o socialismo poderiam transformar em utopia, em vez de nostalgia, a crtica ao presente.

CONCLUSO
No decorrer deste texto, procurou-se argumentar que a retomada, hoje, das lgicas conservadora e progressista de crtica modernizao demonstra no apenas que continuam a existir as ideologias e que a histria no morreu, mas que se podem ler os processos, crises e transformaes do presente na tica da modernidade e da modernizao. Aumentam as complexidades da modernidade na era do globalismo, claro, pois o capitalismo global, como meio de produo e civilizao, avana no apenas sobre o que resta geogrfica e socialmente de pr-moderno, mas tambm sobre o que se construiu, social, econmica, poltica e culturalmen-

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Pedagogia

A EDUCAO RURAL NO CONTEXTO DAS LUTAS DO MST


Luiz Bezerra Neto
Luiz Bezerra Neto Doutor em Filosofia e Histria da Educao pela Universidade Estadual de Campinas e Professor do Curso de Pedagogia do ILES Santarm [email protected]

Resumo
Embora constitua uma problemtica antiga, a educao no meio rural continua a apresentar grandes e graves dificuldades ainda no solucionadas pelo nosso sistema escolar. Prova disso, que de acordo com pesquisa divulgada pelo INEP, em outubro de 2003, na zona rural, 29,8% dos adultos ainda engrossavam a massa de analfabetos, enquanto que no setor urbano esse nmero caa para 10,3%. Por outro lado, no campo, apenas 23% dos alunos de 10 a 14 anos estavam matriculados nas sries adequadas sua idade, ndice que chegava a 47% nos setores urbanos, demonstrando tanto a inadequao do ensino como das formas de investimento no meio rural. Neste texto, discuto tanto a problemtica da decorrente, quanto os vrios mecanismos que tm levado esse setor a aumentar ainda mais o grau de excluso a que est submetido o trabalhador do campo, visto que os dados apresentados pelo INEP demonstram tanto as dificuldades encontradas no que diz respeito infra-estrutura, como a situao de precariedade a que essas escolas so abandonadas. Discuto ainda, os efeitos da privatizao do ensino como um mecanismo que dificulta ainda mais o acesso dos jovens trabalhadores ao ensino superior. Por fim, busco demonstrar os limites desse processo educacional que mantm o trabalhador rural afastado do ensino superior e por conseqncia dos mecanismos de desenvolvimento da sua condio scio-cultural. Palavras-chave: educao, educao rural, MST.

Abstract
Although it is an old matter, the rural education continues to show big and grave difficulties still not salved by our school system. Evidences of it is that according with a research disclosed by INEP last October (2003), at rural zone, 29,8% of adults, still thicken the illiterate crowd, when at urban sector, this number falls down to 10,3%. Otherwise, in the country 23% of students with 10 to 14 years old were enrolled at the adequate level according with their age - an index that reached 47% at urban sectors, showing the inadequacy of education as in the same way of the investment in rural area. At this text, one discusses a question from it, the countless mechanisms that has been taken that sector to increase more and more the exclusions rank that country worker is submitted, once the INEPs numbers shown the difficulties found as infra-structure as the precarious situations of abandoned schools. One also discusses the effects of educations privatization as a mechanism that makes more difficult the access of young workers at superior education (university/ high school). Finally, One tries to show the limits of this educational process that keeps the rural worker far from the superior education (high school) and per consequence, the mechanisms of development of the socio-cultural conditions. Keywords: education, rural education, MST.
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Espao Cientfico - Revista do Inst. Luterano de Ensino Superior de Santarm - 2003 - Vol. 4 - pginas 69 a 77

A EDUCAO RURAL NO CONTEXTO DAS LUTAS DO MST


Em outubro de 2003, foram divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) alguns dados sobre a realidade da educao brasileira no campo, tanto no que diz respeito infra-estrutura quanto qualidade do que lhe oferecido em termos educacionais. Os dados demonstraram as enormes desigualdades entre a populao que habita essa zona e aquela que vive no meio urbano. Segundo o INEP, no perodo de realizao da pesquisa (2002), entre os habitantes da zona rural, 29,8% dos adultos podiam ser classificados como analfabetos, enquanto que no setor urbano esse nmero caa para 10,3%. Esse estudo aponta ainda que, no campo, apenas 23% dos alunos de 10 a 14 anos estavam matriculados nas sries adequadas sua idade, ndice que chegava a 47% na cidade, o que pode servir de indicativo da inadequao do ensino e dos investimentos realizados no meio rural. Outro dado que serve como parmetro diferenciador dessa escolaridade aquele que aponta o tempo mdio de permanncia na escola, pois enquanto o morador da zona rural na faixa dos 15 anos ou mais apresentava uma mdia de apenas 3,4 anos, no meio urbano, esse ndice subia para 7 anos. Alm disso, no campo, cerca de 60% das crianas do meio rural estavam cursando as primeiras quatro sries do ensino fundamental, terminando a sua participao na vida escolar. As diferenas entre a educao dos filhos dos trabalhadores rurais e a do homem citadino se ampliam ainda mais quando consideramos a infra-estrutura disponibilizada para ambos, visto que as escolas rurais so submetidas a situaes bem mais precrias. Prova disso o fato de somente 5,2% das escolas da zona rural possurem bibliotecas, enquanto que na zona urbana esse percentual sobe para 58,6%. Ao observarmos os fatores ligados ao setor de informtica, constatamos que esses dados so ainda mais aterradores, visto que apenas 0,5% das escolas rurais possuem computadores, contra 27,9%, do meio urbano. Esses dados nos possibilitam uma melhor compreenso da situao de penria a que est submetido o trabalhador rural no que diz respeito ao processo educativo. Outro importante ponto a ser destacado, nesse estudo, diz respeito formao dos docentes para a zona rural. Ainda de acordo com a pesquisa do INEP, lecionam em escolas da zona rural brasileira cerca de 354 mil professores, ou seja, nesse setor esto presentes cerca de 15% de todos os docentes do pas. Se considerarmos que o campo conta com um contingente de 20% da populao brasileira, isso nos levar necessariamente a concluir que muitos habitantes do campo so obrigados a se deslocarem at a cidade para estudar, j que, segundo a mesma
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pesquisa, o campo concentra cerca de 50% dos estabelecimentos de ensino de educao bsica (107 mil), com apenas 14% dos estudantes. Tais escolas so, geralmente, pequenas e com um nico professor que trabalha com turmas multisseriadas. Em funo dessas caractersticas, o quadro de carncia de pessoal docente qualificado para o meio rural torna-se ainda mais crtico do que aquele presente na zona urbana, dado que apenas 9% dos professores que atuam nas sries iniciais do ensino fundamental nessa rea tm formao superior, enquanto que no meio urbano esse contingente, em 2002, representava um total de 38%. Esses dados analisados por regio nos revelam uma situao ainda mais gritante, uma vez que no Norte do pas, menos de 1% dos professores das sries iniciais do ensino fundamental tinham cursos de graduao, enquanto que na Regio Sul esse nmero se elevava para 23%. Por outro lado, na regio Norte, a quantidade de docentes leigos, nesse nvel de ensino, era de 12%, enquanto na regio Sul esse nmero caia para 4%. Tais nmeros ficam mais explcitos, na medida em que analisamos o investimento global na educao brasileira, j que o gasto pblico nesse setor no ultrapassa a casa dos 4% do Produto Interno Bruto (PIB), quando o considerado ideal, por muitos membros do prprio governo, que ele devesse chegar a pelo menos 8% at 2011, com vistas a atender o que est estabelecido no Plano Nacional de Ensino (PNE). Esta exposio preliminar foi necessria para apontar algumas das dificuldades, porque expe a situao da educao no campo brasileiro e em especial a situao daqueles que atuam junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Considere-se que, em qualquer sociedade, o homem necessariamente levado a pensar de acordo com o modo de produo desenvolvido no momento em que ele est vivendo, pois a maneira como nos organizamos para produzir a nossa sobrevivncia determina nossa forma de pensar e agir socialmente, fazendo com que nos tornemos seres situados no tempo e no espao. Partindo desse princpio, no difcil compreender que a educao est ligada ao modo como os homens produzem sua sobrevivncia. Assim, teremos que compreender a produo do sistema capitalista, para que possamos entender nossas formas de pensamento. No nosso objetivo discutir aqui as vrias facetas do capitalismo em suas formas mercantilistas, industriais, nem tampouco enfatizar produo e circulao de mercadorias. Mas importante entender esse processo produtivo, visto que foi a partir do surgimento do modo de produo capitalista que, segundo Marx, a sociedade se dividiu em classes. O ponto de partida de nossa anlise , portanto, a sociedade dividida em classes e as lutas provocadas pelos interesses da decorrentes.

A educao, por no ser neutra, atende aos mais variados interesses polticos, econmicos e sociais, estando presente desde a montagem do currculo escolar at a discusso em torno do que deve ser estudado, quem deve estudar e como se deve estudar. Por outro lado, as informaes que recebemos tambm no so neutras, pois as agncias de informaes distribuem as que lhes interessam, omitindo aquilo que consideram desnecessrio que a sociedade em geral saiba. Com isso, a sociedade em geral, e o trabalhador, em particular, recebe somente alguns fragmentos de informaes, bastante distorcidos, visto que essas so passados de acordo com os interesses de quem os divulga, dificultando sua apreenso como base para a construo do conhecimento. Feitas estas consideraes, passaremos a discutir a importncia da contribuio que o MST vem dando para o debate em torno da educao no meio rural, pois, embora haja uma vasta produo em torno da questo educacional, a pesquisa a respeito do trabalhador que luta e conquista a terra e que busca dar a essa luta um carter educativo ainda est por ser feita. Por outro lado, preciso considerar que mesmo trazendo em seu interior, tanto no discurso quanto na prtica, um grande nmero de contradies internas, o MST , sem dvida, o mais importante movimento de luta no ltimo quarto do sculo XX e incio do XXI no Brasil e tem trazido para a discusso tanto o problema agrrio quanto o problema educacional, considerados por seus lderes como os dois principais instrumentos de transformao da classe trabalhadora deste pas. Alm da crena na transformao da realidade do homem do campo e da classe trabalhadora como um todo, o MST, inspirado em pedagogos escolanovistas e socialistas, sobretudo em Makarenko, advoga a construo de um novo modelo de homem, formado a partir de uma rgida disciplina e preparado para a luta em defesa de seus interesses. O MST luta tambm por uma educao destinada exclusivamente ao homem do campo, acreditando que essa educao poderia ser capaz de fixar o homem terra, fazendo a a apologia de uma nova forma de ruralismo pedaggico. Ao defender a metodologia adotada por Paulo Freire como ideal pedaggico, o MST passa a defender a idia de que a educao pode se transformar num fator de eqidade social, pois a entende como a redentora dos males sofridos pelo homem do campo, medida em que esse vier a se tornar um sujeito letrado e capaz de conduzir seu prprio destino. Em vista disso, a educao praticada no interior do MST tem como ponto fundamental a figura do cidado-militante1 . Buscando resga1 Cidado que luta para conquistar seus direitos e que permanece na luta aps ver suas reivindicaes atendidas, sobretudo porque entende que os direitos polticos e sociais devem ser estendidos a toda a populao

tar a idia de cidadania como forma de aprofundar o vnculo de seus professores com o Movimento, criou-se a escola de formao de professores do MST, localizada na cidade de Veranpolis, no Rio Grande do Sul. Para melhor entender esses aspectos da formao geral no MST, temos que compreender que a problemtica da educao tem sido amplamente discutida por diferentes grupos, com interesses sociais diversos, tratando sobretudo das dificuldades do ensino nesse segmento e de sua inadequao para o meio a que se destina, visto que o ensino pensado e construdo para o meio urbano aplicado ao meio rural, sem que se faa qualquer adaptao. A literatura que trata especificamente sobre o tema no meio acadmico, alm de bastante restrita, gira quase sempre em torno da educao nos acampamentos e assentamentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, visando analisar mais o processo de produo e de formao poltica que o de educao, o que de certa forma dificulta o desenvolvimento de qualquer pesquisa que trate da discusso em torno da formao do cidado-militante almejado pelo MST. No final dos anos 80 do sculo XX, estudos realizados por Marcela Gajardo (1988, pp. 19-20) apontavam que um dos principais problemas da educao rural decorria do fato de que ela foi sempre pensada como uma forma de elevar o nvel educativo da populao rural sem escolaridade ou com escolaridade incompleta e no como um programa global de atendimento s crianas da zona rural. Por no levar em conta a realidade do setor a que se destina, esse tipo de educao vem contribuindo para dificultar ainda mais o aprendizado das crianas em idade escolar, que habitam no campo, sem que se perceba nos rgos do Estado, responsveis por essa rea, a preocupao de se construir uma proposta educacional geral para esse setor. Para solucionar o problema da educao no campo, que no se restringe ao Brasil, visto que o analfabetismo no meio rural pode ser apontado como o grande problema dos pases menos desenvolvidos, a reforma agrria constitui-se num prrequisito bsico. Todavia, esse setor, via de regra, no faz parte da dotao oramentria dos Estados, ficando merc dos oramentos da escolarizao urbana, o que dificulta ainda mais as formas de viabilizao da educao no campo. Maria Helena Rocha Antuniassi (1983, p. 24) apontava, como uma das dificuldades apresentadas para a resoluo da problemtica da educao rural, o fato de que a mo de obra infanto-juvenil aparece como parte da unidade familiar de trabalho, j que a criana desde cedo ingressa no trabalho, diminuindo a disponibilidade de tempo para se dedicar ao estudo, mesmo considerando-o de grande importncia. Antuniassi (1983, p. 37) ressaltava ainda que a preocupao da academia com a problemtica educacional muda com o passar dos tem71

pos. Assim, na dcada de 60, preocupava-se com a questo do trabalho familiar; na dcada de 70, a grande preocupao foi o trabalho assalariado. Hoje, a tendncia estudar as relaes de trabalho a partir da luta pela terra, apesar de ainda ser pequena a produo acadmica a respeito desse tema. Essa discusso torna-se mais importante medida que constatamos que, apesar de ser um dos maiores territrios do planeta e possuir uma das mais extensas reas agricultveis do mundo, o Brasil no resolveu os inmeros problemas criados com a m distribuio de terras e as altas taxas de excluso social entre seus habitantes. Essa dificuldade de solucionar os problemas que envolvem a distribuio, posse e propriedade de terras foi geradora de intensos conflitos ao longo da histria do Brasil, desde a chegada dos portugueses Amrica e da introduo do processo de colonizao destas terras. Esses conflitos iniciaram-se com o processo de extermnio dos povos indgenas, ao mesmo tempo em que se realizava o deslocamento de grandes massas populacionais da frica para a Amrica, atravs do trfico de negros, trazidos na condio de trabalhadores escravos, a servio do capital europeu. Esse modelo de colonizao, executado no Brasil no bojo do capitalismo nascente, ocasionou problemas at hoje no resolvidos e deu origem a uma srie de lutas, iniciadas no perodo colonial e estendidas at nossos dias. Essas lutas possibilitaram o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um movimento que diz defender uma proposta socialista, mas que ao mesmo tempo aceita as polticas reformistas dos governos de planto. Nesse contexto, necessrio destacar que a luta dos trabalhadores rurais sem terra no recente, assim como no recente a luta por uma educao pblica, gratuita e de boa qualidade. A maneira, porm, como o MST aborda estas questes as fazem novas, principalmente por tentar relacionlas entre si. Mesmo sendo considerado como um dos movimentos mais importantes do Brasil, o MST, em que pese se reivindicar um carter revolucionrio, acaba assumindo posturas conservadoras, ao atribuir educao uma funo redentora dos males vividos por nossa sociedade, pois seus dirigentes colocam num mesmo patamar a necessidade de se fazer a reforma agrria e o investimento na educao. Para o MST, a conquista da terra de nada adiantar se no vier acompanhada de uma educao de classe voltada para os interesses dos trabalhadores em geral e dos trabalhadores rurais em particular. A conquista da educao para o MST um primeiro passo para a construo da sociedade socialista almejada por toda a classe trabalhadora. Apesar das contradies existentes no interior do MST, esse movimento tem assumido e se destacado na tarefa de trazer tona os conflitos sociais vividos no Brasil, com vistas a vislumbrar a possibilidade de construo de uma sociedade diferente,
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uma sociedade em que, segundo seus lderes, deve ter como base a solidariedade fraterna entre as pessoas, eliminando-se a relao de exploradores e explorados existente no modo de produo capitalista. Na leitura dos trabalhos publicados pelo MST e nas discusses de seus dirigentes, quer atravs do Jornal Sem Terra, quer na revista Sem Terra, ou em sua pgina na Internet, bem como nos jornais e revistas de circulao nacional, percebese que o MST reivindica uma educao que possibilite integrar a criana e o jovem ao trabalho para que, atravs de uma escola que d a formao, possam assumir, quando adultos, a condio no somente de dirigentes das cooperativas, mas tambm de luta rumo construo de uma sociedade socialista. Essa sociedade seria construda atravs da conquista da terra e da educao e deveria ser dotada de um novo modelo de organizao social, com um carter revolucionrio. Nesse sentido, tanto os membros do MST como alguns intelectuais da esquerda, a exemplo do economista Paulo Sandroni, atestam que o MST um movimento revolucionrio e que
essa fora social que luta pela terra que representa o principal aliado do proletariado urbano e rural na luta pela democracia e pelo socialismo. A base objetiva dessa aliana que os trabalhadores e as massas populares das cidades defendem em toda a linha as duas reivindicaes bsicas desse setor social: a terra e a liberdade de organizao, associao e expresso. (SANDRONI, 1993, p. 154)

Para Stdile (1993:275), no entanto, o capitalismo agrrio produz necessariamente o empobrecimento e a proletarizao dos pequenos agricultores, da a necessidade de se construir uma nova forma de organizao social que evite e supere esses problemas, promovendo o bem estar social entre os homens. Sendo assim, pode-se aferir que os trabalhadores rurais sem terra que compem o MST so pessoas que perderam a terra e buscam atravs da luta desencadear um processo de reforma agrria que, segundo o MST, inexorvel. Atravs da reforma agrria, o MST pretende solucionar os problemas que no Brasil esto presentes desde o perodo da colonizao. Essa reforma deve se dar, sobretudo, atravs de um processo de ocupao de terras planejado e organizado de forma disciplinada e controlada pelas lideranas do Movimento. A disciplina e a mstica desenvolvidas no MST constituemse em dois mecanismos que servem de estmulos para a luta no combate concentrao de terras e excluso social presentes na sociedade. Atravs dela, procura-se combater tambm o trabalho escravo e a explorao do trabalho infantil, entendidos como dois fatores que impedem a liberdade do homem e dificultam a construo da sociedade socialista.

Para o MST, essa sociedade seria construda atravs da perspectiva educacional, desde que a educao fosse posta a servio da classe trabalhadora e, particularmente, dos trabalhadores rurais. Nesse sentido, o MST tem buscado desenvolver algumas experincias educativas que considera inovadoras, sobretudo no que diz respeito prtica de gesto democrtica que se vem tentando construir nas escolas em que consegue influenciar. Esse trabalho educativo tem sido desenvolvido com xito, visto que o setor de educao do Movimento consegue atingir grande nmero de analfabetos, que jamais teriam oportunidade de acesso escola no meio rural se no fosse sua participao nas fileiras do MST. Sem poder contar com a ajuda oficial dos governos durante o perodo de acampamento, exceto no Rio Grande do Sul, em que foi instituda a escola itinerante, o MST tem que encontrar alternativas prprias para manter as crianas estudando, pois, durante esse perodo, o Estado no reconhece o direito de cidadania das pessoas que ali esto, alegando que isso seria reconhecer como legtima a ocupao de terras. Caso o MST no assumisse esse papel, as crianas ficariam condenadas a perder o perodo escolar. Da a grande importncia do setor educacional no interior do MST, notadamente no perodo de acampamento. Visando implantar seu projeto scio-poltico, o MST tem assumido a organizao da luta pelo acesso e qualidade da educao pblica, lutando ao mesmo tempo pela democratizao de sua gesto; tem ainda investido na formao dos educadores e reivindicado mudanas nos contedos da educao rural. Para o MST, de fundamental importncia que os filhos dos agricultores permaneam no campo, que dem continuidade luta pelo acesso terra, partilhando das tradies e do projeto social do movimento. Em outras palavras, a luta por uma reforma agrria e por uma sociedade socialista no deve parar jamais, pois somente assim se construir o homem novo almejado pelo movimento, e nesse processo, a educao considerada fundamental. Partindo desses princpios, o MST reivindica do Estado que a escola pblica do meio rural seja pensada e organizada para o trabalho no campo, dando a mesma nfase para o trabalho manual e o trabalho intelectual, rompendo assim com a dicotomia social do trabalho intelectual para uma classe e o trabalho braal para outra. O MST entende, portanto, que, partindo da prtica produtiva para o trabalho cientfico, estaria fazendo uma relao dialtica entre teoria e prtica. Dentro dessa perspectiva, a autonomia da escola pblica no deve significar a impossibilidade da existncia de um currculo mnimo a ser seguido por todas as unidades escolares, mas uma administrao escolar descentralizada e sob o controle dos trabalhadores que se utilizam dessa escola. A discusso a respeito do que seria uma gesto democrtica da educao tambm no est

totalmente concluda, embora o MST venha incentivando a participao das comunidades nas escolas, entendendo que estas devam ser geridas por grupos formados por professores, pais e tambm pelos educandos, os maiores interessados nos destinos da escola e da educao em geral. A autogesto uma das prticas mais estimuladas pelo MST, pois alm de o aluno aprender a gerir a escola, transformando-a num instrumento democrtico a servio da classe trabalhadora, tambm aprende a gerir as cooperativas e associaes criadas e mantidas pelos assentados, como forma de organizar a produo e distribuio de suas mercadorias. Com relao formao do cidado-militante, o Movimento entende que esta deva se dar na luta do dia-a-dia, nos processos de ocupao de terras, na organizao para o enfrentamento da represso policial, na distribuio das tarefas dos acampamentos e no processo de negociao com os governos, em todas as suas instncias administrativas. Essa educao dever, segundo o MST, ter tanto um carter formal quanto informal, pois, mais do que o acesso informao, o Movimento entende ser importante a luta pela escola, visto que esse um direito do cidado, do qual ele jamais deve prescindir. Na rea educacional, o MST tem buscado dar respostas ausncia do Estado no campo, bem como tem procurado implementar uma nova forma de gerenciamento da escola pblica, ao propor que o Estado apenas cuide de sua manuteno e financiamento, mas que a comunidade, composta por pais, alunos e professores, seja responsvel por sua organizao. O MST luta ainda por uma educao voltada para o trabalho, onde a criana possa trabalhar meio perodo e estudar a outra metade do dia. H forte estmulo para que seus integrantes assumam a gesto das escolas e que lutem para que elas se ajustem s necessidades do meio rural, propondo de certa forma um retorno ao ruralismo pedaggico, como j ocorreu no pas na primeira metade do sculo XX. Segundo o MST, uma das lies que se pode tirar de sua histria at aqui a de que lutar somente pela terra no basta. A luta pela Reforma Agrria deve ser bem mais ampla, implicando na conquista de todos os direitos sociais que compem o que se poderia chamar de cidadania plena. Nesse sentido, a Educao um dos direitos, pelo qual tambm preciso mobilizao, organizao e lutas, que envolve a participao das crianas, das mulheres, da juventude, dos idosos. Essa organizao construir novas relaes e conscincias, incluindo a participao nas marchas, assemblias, cursos, caminhadas, trabalhos voluntrios, gestos de solidariedade, ocupaes, mobilizaes, visando a que se aprenda e ensine, alm do alfabeto, o ato de ler e escrever a realidade e a vida. De acordo com informaes disponibilizadas no site do MST, o Movimento conta com um universo de 1.800 escolas de
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Ensino Fundamental, atendendo a cerca de 160 mil crianas e adolescentes que freqentam escolas em acampamentos e assentamentos (<mst.org.br/educao>. Acesso em: 30 de mar. 04). Apesar disso, o nmero de crianas e adolescentes fora da escola ainda muito grande, ou porque a escola ainda no reconhecida como um direito, ou porque, de acordo com o MST, no se respeita uma proposta de currculo adaptada s necessidades dos filhos dos trabalhadores rurais. A importncia do trabalho do MST aumenta, na medida em que se verifica que esse movimento trabalha diretamente com cerca de 3.900 educadores, alm dos 250 educadores que trabalham nas Cirandas Infantis, na educao de crianas de zero a 6 anos, presentes nos assentamentos e acampamentos de trabalhadores sem terra. Alm desse universo de professores e alunos, o Movimento afirma contar ainda com cerca de 3 mil educadores de alfabetizao de jovens e adultos, que atingem cerca de 30 mil alfabetizandos. Alguns educadores fazem trabalhos voluntrios, outros so mobilizados pelos projetos em parcerias (<mst.org.br/educao>. Acesso em:3o de mar. 04) com ONGs e estados ou municpios, contribuindo para retirar das estatsticas dos analfabetos do pas uma imensa massa de marginalizados. Ainda de acordo com as informaes do MST, as escolas instaladas nos assentamentos so mantidas pelo poder pblico, situao que, via de regra, no ocorre nos acampamentos, local em que esse direito ainda no foi devidamente reconhecido em todo o territrio nacional, embora esteja entre seus objetivos essa garantia. Cumpre destacar, porm, que no Estado do Rio Grande do Sul, esse direito j est assegurado desde 1996, atravs da aprovao pelo Conselho Estadual de Educao da Escola Itinerante, que atende crianas de 7 a 12 anos, de 1 a 5 sries, acompanhando o aluno para onde for o acampamento. O Movimento quer assegurar o direito educao bsica e construo de uma escola, de uma pedagogia, de metodologias e de prticas educativas adequadas realidade do meio rural e dos assentamentos. Para tanto, defende que as escolas dos assentamentos devam ser escolas pblicas e de qualidade e contar com alguns princpios filosficos, dos quais destacamos os seguintes: 1. educao para a transformao social; 2. educao aberta para o mundo, aberta para o novo; 3. educao para o trabalho e a cooperao; 4. educao voltada para as vrias dimenses da pessoa humana (<mst.org.br/educao>. Acessado em 30 de mar 04). Esses princpios filosficos, segundo o MST, dizem respei74

to sua concepo de mundo em relao pessoa humana, sociedade e aos que entendem o que seja educao. A eles, devem ser acrescentados alguns princpios pedaggicos, dos quais destacamos: 1. relao permanente entre teoria e prtica; 2. realidade como base da produo do conhecimento; 3. contedos formativos socialmente teis: educao para o trabalho e pelo trabalho; 4. vnculo orgnico entre processos educativos e processos polticos; 5. vnculo orgnico entre processos educativos e processos produtivos; 6. gesto democrtica; 7. auto-organizao dos estudantes; 8. criao de coletivos pedaggicos e formao permanente dos educadores; 9. combinao entre processos pedaggicos coletivos e individuais (<mst.org.br/educao>. Acesso em 30 de mar 04). Nessa perspectiva, seus princpios pedaggicos referemse ao jeito de fazer e de pensar a educao como mecanismo de concretizao dos prprios princpios filosficos, que devem estar sempre ligados a algumas linhas metodolgicas de trabalho, implementadas nas escolas do MST. Dentre as quais, destacamos: 1. a escola precisa preparar as crianas e os jovens no meio rural: desenvolver o amor pelo trabalho na terra e trazer conhecimentos que ajudem concretamente o assentamento a enfrentar seus desafios na produo, na educao, na sade, na habitao, etc.; 2. o ensino deve partir da prtica e levar ao conhecimento cientfico da realidade: o ponto inicial para desenvolver os contedos das vrias matrias de ensino deve ser as prprias experincias de trabalho organizadas pelas crianas e pelos jovens no assentamento; 3. um grande desafio para a escola ajudar no desenvolvimento cultural do conjunto do assentamento: a escola no precisa restringir sua atuao sala de aula. Atravs dos prprios alunos, a escola pode participar e organizar campanhas de alfabetizao de adultos, o jornal da comunidade, festas culturais, fazer reflexo sobre estas atividades para que sejam mais uma experincia que se integre ao conjunto das aulas; 4. o aluno precisa ter vez e voz na escola, trazendo seu

saber e as lies da luta para integrar o currculo; 5. construir uma metodologia de aprendizagem-ensino, em que a relao prtica-teoria-prtica consiga inverter a prpria lgica usual da apropriao e produo do conhecimento. O MST procura implementar programas especficos de capacitao para os professores que trabalham nestas escolas; 6. a escola tambm um lugar de viver e refletir sobre os valores do novo homem e nova mulher, eliminando vcios como o individualismo, o autoritarismo, o machismo e a falta de solidariedade, relaes, a maioria delas, exaltadas pela sociedade capitalista. A escola, pelas experincias de relacionamento coletivo que proporciona s crianas e aos jovens, pode ajudar a desenvolver os valores do companheirismo, da igualdade, da fraternidade e o prprio valor da busca coletiva e solidria da felicidade, atravs da luta perseverante pela justia e pela paz no mundo (caderno, 08 Princpios da Educao no MST). Os argumentos do MST ganham mais consistncia medida que verificamos que o nmero de analfabetos no Brasil ainda bastante elevado, pois o perodo de permanncia na escola ainda muito pequeno, para as mulheres e menor ainda para os homens, como poderemos ver nos grficos abaixo.
Anos de estudo das pessoas de 10 anos ou mais (%) 2001 Sem instruo e menos de 1 ano 1 a 3 anos 4 a 7 anos 8 a 10 anos 11 anos e mais Homens 12,8 17,4 33,8 15,6 20,1 Mulheres 12,5 15,7 32,5 15,7 23,2

possivelmente, pela maior oferta de vagas em cursos nas reas de formao de professores, onde elas aparecem mais e por outros cursos que, por no demandarem grandes investimentos pelas universidades e faculdades privadas, tm custos menores. Esse crescimento, de acordo com o INEP, deu-se em apenas cinco anos, quando o nmero de cursos de graduao presenciais cresceu 107%, passando de 6.950 cursos em 1998, para 14.399, no final de 2002, perodo em que foram abertos, em mdia, 1.490 cursos por ano, 124 ao ms e quatro a cada dia. Tal expanso ocorreu, principalmente, na rede privada, que passou de 3.980 para 9.147 cursos, concentrando 63,5% do total. Em decorrncia dessa expanso, houve grande aumento do nmero de matrculas na rede privada. Em 2002, estavam matriculados nos cursos de graduao presenciais 3.479.913 alunos, cerca de 450 mil a mais do que em 1998. Esses dados ajudam a demonstrar que a rede particular ampliou sua representatividade em relao ao nmero de estudantes, pois se em 1998 as instituies particulares detinham 62% das matrculas, em 2002, esse ndice subiu para 70%, elevando, em cinco anos, o nmero de alunos na rede privada em 84%, enquanto que nas instituies pblicas esse ndice foi de apenas 31%. Outro dado que chama a ateno o fato de que a matrcula continua concentrada na Regio Sudeste do pas, onde esto 50% dos estudantes, com 58% desses alunos em cursos noturnos, destinados principalmente a estudantes trabalhadores. O dado mais preocupante da expanso do ensino superior que esse crescimento ocorreu com padres de qualidade discutveis, pois suas finalidades so meramente econmicas. Trata-se de uma expanso privada que tende a se esgotar rapidamente, pois est condicionada renda da populao. Alm disso, nas instituies privadas o ndice de inadimplncia vem num movimento crescente, atingindo cerca de 30% da matrcula, demonstrando os limites desse crescimento. Outro fator que nos chama a ateno que nas regies mais pobres do pas no houve aumento do acesso educao superior. Como forma de expandir a educao superior, o MEC vem estimulando a abertura de cursos noturnos, a interiorizao das universidades e o preenchimento das vagas ociosas no setor pblico, dado que apenas 9% da populao de 18 a 24 anos esto matriculados nesse nvel de ensino, enquanto que em pases como Bolvia e Chile esses ndices ultrapassam a casa dos 20%. Devido ao forte investimento de poderosos grupos econmicos na criao de faculdades privadas nos ltimos cinco anos tem se evidenciado uma diminuio na relao candidato/vaga nos processos seletivos do conjunto de instituies de ensino. Prova disso que em 1998, para cada vaga no ensino superior geral havia 3,7 inscritos, nmero que caiu para 2,9 em 2002, apesar do aumento da demanda por vagas na educao superior pblica, cuja disputa passou de 7,7 candidatos/vaga em 1998 para 9,4 em 2002, enquanto que na rede privada, h cinco anos, havia 2,2
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FONTE: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios, 2001.

Anos de estudo das pessoas de 10 anos e mais 2001

FONTE: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios 2001

Como se pode perceber, o ndice de analfabetismo maior entre os homens, pois as mulheres tm tido maior acesso ao ensino superior do que os homens, fato que pode ser explicado,

inscritos por vaga, chegando a 1,6 em 2002. Para se ter uma dimenso da importncia dada ao ensino particular no nvel superior a partir de 1994, preciso levar em conta que no ano de 2002, 466.260 alunos receberam diplomas dos cursos de graduao. Desse total, 68% terminaram os estudos em instituies privadas, nmero compatvel com os 70% de participao do setor em relao matrcula. Se tomarmos por base o nmero de ingressantes em 1999 e concluintes em 2002, poderemos verificar que cerca de 40% dos alunos que ingressaram nas faculdades naquele ano no terminaram os seus cursos no tempo mnimo por motivos que vo desde a reteno, mobilidade dos estudantes entre as instituies e cursos, at a evaso, derivada da inadimplncia que, como se disse antes, chega casa dos 30% nesse setor. Com o aumento do nmero de faculdades, h, conseqentemente, uma maior demanda por professores, elevandose a quantidade daqueles que atuam nesse meio, fazendo com que, somente no ano de 2002, o nmero de funes docentes nos cursos de graduao presencial crescesse 11,6%. Se tomarmos por base o ano de 1998, verificaremos que esse aumento foi da ordem de 38%. De acordo com os dados do IBGE, 227.884 professores estavam em exerccio no ano de 2002, sendo que 63,1% deles trabalhavam na rede privada para atender a 70% dos alunos, demonstrando um quadro mais que deficiente que a rede estatal, na relao professor/aluno. Em 1998, as instituies particulares contavam com apenas 49,3% dos docentes. Essa expanso da quantidade de professores nas instituies privadas vem acompanhada pelo crescimento do nmero de doutores, tanto no setor pblico quanto no privado, pois em 2002, 21,6% dos professores, ou 49.287 docentes, tinham essa titulao contra apenas 31.073, equivalente a 18,8% do total em 1998. O expressivo crescimento absoluto do nmero de doutores no setor privado, que passou, em cinco anos, a ter mais dez mil professores com essa titulao, se dilui quando se identifica que, no mesmo perodo, seu quadro docente teve acrscimo de 62 mil docentes. Enquanto isso, as IES pblicas passaram a contar com apenas 268 docentes a mais, embora seus quadros se qualificassem com o incremento de oito mil doutores, evidenciando o maior investimento do setor pblico na qualificao de professores, mesmo que a qualidade do atendimento tenha se deteriorado medida que mais alunos passaram a ser atendidos por um nmero de professores qualitativamente menor. Ainda que tenha crescido o nmero de cursos superiores e aumentado o nmero de mestres e doutores nas faculdades pblicas e privadas, muitos professores do ensino infantil e fundamental ainda no contam com uma formao adequada, pois o Brasil conta com mais de 2,6 milhes de professores na educao bsica e superior, responsveis pela educao de 57,7 milhes de brasileiros.

Se no ensino superior h grande investimento do setor privado, o mesmo no acontece nas faixas de ensino infantil, fundamental e mdio, dado que cerca de 80% dos docentes que trabalham nesse setor atuam em escolas pblicas. ainda importante ressaltar que somente 15% do total dos professores lecionam em escolas rurais, os quais trabalham em condies dspares, pois, de acordo com os dados do INEP/MEC, 45% dos profissionais de educao trabalham em escolas pblicas sem biblioteca, 74% em estabelecimentos sem laboratrio de informtica e cerca de 80% no contam com laboratrios de cincias, sendo que nas Regies Norte e Nordeste do Brasil a ausncia de bibliotecas atinge 94% dos profissionais. Tambm chama nossa ateno o nmero de homens e mulheres que trabalham na rea educacional, bem como o tempo de dedicao ao trabalho que varia de acordo com a disciplina e o nvel de ensino. Nas quatro primeiras sries do ensino fundamental, por exemplo, as mulheres representam mais de 90% do quadro profissional no Pas. As condies de trabalho dos educadores no so duras apenas pela falta de condies fsicas e materiais, mas tambm porque, via de regra, o nmero de alunos por turma pode ser considerado elevado em todos os nveis de ensino. Nas creches, por exemplo, a mdia de quase 18 crianas por turma. No ensino mdio, esse nmero ultrapassa os 37, sendo que mais de 20% das turmas desse nvel de ensino no Pas contavam, em 2002, com mais de 40 alunos (<www.inep.gov.br>. Acesso em 20 de mar 2004). Alm disso, os professores so obrigados a se submeterem a uma dupla ou tripla jornada de trabalho, o que compromete, em muito, o seu desempenho profissional. Embora possamos verificar uma melhora na formao dos professores em todos os nveis de ensino, principalmente com a reduo dos professores leigos na ltima dcada, ainda grande o nmero de professores que no possuem uma habilitao adequada, pois apenas 57% dos docentes que atuam na pr-escola, ensino fundamental e ensino mdio possuem formao em nvel superior (<www.inep.gov.br>. Acesso em: 20 mar 2004). Na pr-escola, em 2002, somente 27% dos 259 mil docentes tinham nvel superior. Apesar do pequeno nmero, observa-se substancial melhora, pois em 1991, esse nmero era de apenas 17%. O ndice de profissionais com o ensino fundamental incompleto tambm caiu de 6% para apenas 1%, nesse mesmo perodo. Considerando-se a formao exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB) - magistrio ou licenciatura, constatamos que 91% dos professores que atuam nesse nvel de ensino possuem uma formao adequada (<www.inep.gov.br>. Acesso em 20 mar 2004). No ensino mdio, das 469 mil funes docentes, 89% tm a graduao completa e 79% fizeram curso de licenciatura. Nesse nvel de ensino,

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no entanto, quase 11% dos docentes ainda possuem somente o ensino mdio completo. Na educao superior, em 2001, 54% dos professores tinham mestrado ou doutorado concludos, 31% possuam somente especializao e cerca de 15% apenas a graduao. Em 1991, o percentual de mestres e doutores era somente de 35%). Apesar da melhoria na formao dos professores ocorrida na dcada de 1990, visto que o ingresso nos cursos de graduao que oferecem licenciatura mais que dobrou, passando de 166 mil, em 1991, para 362 mil, em 2002, neste perodo a matrcula cresceu de 556 mil para 1.059 milhes e o nmero de cursos passou de 2.512 para 5.880, com uma grande participao da rede pblica, que concentra 3.116 cursos. Apesar do aumento no nmero de licenciados, a estimativa de novos postos para atendimento das metas do PNE mostra que haver carncia de mo-de-obra at 2006. Considerando esses dados, somos forados a concluir que a presena do MST foi fundamental para o despertar e o desenvolver do ensino no campo, tendo em vista o fato desse movimento reunir milhares de pessoas e deles cobrar maior participao na vida poltica do pas, servindo para ajudar a melhorar tanto a qualidade da escola como o nvel de escolaridade daquele que mais marginalizado pela sociedade em termos de acesso educao, qual seja, o trabalhador rural de nosso pas.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
BEZERRA NETO, L. Sem Terra Aprende e Ensina: Estudo sobre as prticas educativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais, Campinas, autores associados, 1999. Caderno de Educao n 8 Princpios da Educao no MST 1996. CALDART, R. S. Educao em Movimento: Formao de educadoras e educadores no MST. Petrpolis, Editora Vozes, 1997. CALDART, R. S. Formao de Educadores/as no MST - Um currculo em movimento - mimeog, 1997. FUNDEP, Coragem de Educar: uma proposta de educao para o meio rural. Petrpolis, Vozes, 1995. GRZYBOWSKI, C. Movimentos populares rurais no Brasil: desafios e perspectivas. In: STDILE Joo Pedro. A Questo Agrria Hoje. Porto Alegre: Editora da Universidade. Universidade Federal do RS, 1994. HADDAD, S. e DI PIERRO, M. C. A educao no Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra em Bag e Sarandi. (RS) Braslia. DF: INEP, 1994. KASSEFF, L. Educao Rural: como organizar a educao para as regies em que competir escola, alm de suas funes ordinrias, uma mais intensa ao civilizadora. Rio de Janeiro, Jornal do comrcio Rodrigues & Cia, 1934. LEX, A. Biologia educacional. So Paulo, Companhia editora Nacional, 1973, 14 edio. MAKARENKO. A S Poema Pedaggico. So Paulo, Editora brasiliense, 1985. MAKARENKO. A S. Conferncias sobre Educao Infantil. So Paulo: Editora Moraes, 1981. MARX, K. A Ideologia Alem. So Paulo: Editora Moraes, 1984. MARX, K. A Luta de Classes na Frana. Rio de Janeiro, Livraria Editora Ctedra, 1986. MARX, K. O Capital. livro 1 vol. 1. Rio de Janeiro: editora civilizao brasileira, 1975. MARX, K. O capital. t. 2 So Paulo: editora abril Cultural, 1983. PALMEIRA, M. J. de O. (coord) Col. Cidadania. Educao e a Construo da Cidadania do Homem do Campo. Editora OEA UFBA EGBA, 1990. Revista Sem Terra, ano 1 n. 1 jul./set. 97. Revista Sem Terra, ano 1 n. 2 out./dez. 97. RIZZOLI . O real e o imaginrio na educao rural. Tese, Unicamp, Campinas, Poder 1936. SPEYER, A. M. Educao e Campesinato, Uma Educao para o homem do meio Rural. So Paulo: Edies Loyola, 1983.
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BIBLIOGRAFIA BSICA
ANTUNIASSI, M. H. R. Trabalhador infantil e escolarizao no meio ruraL, Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1983. ARGUMEDO, M. Educacion y Desarrollo Rural, Sembrando Ideas. Reflexiones para la educacion rural, Universidade Catlica de Chile, Santiago, 1989. GAJARDO, M. Enseanza Basica en las Zonas Rurales. Chile: UNESCO/OREALC, 1988. SANDRONI, P. A questo agrria e o socialismo, notas sobre problemas econmicos e polticos. In: STDILE, Joo Pedro. A Questo Agrria Hoje. Porto Alegre: Editora da Universidade. Universidade Federal do RS, 1994. STDILE, J. P. A Questo Agrria Hoje. Porto Alegre: Editora da Universidade. Universidade Federal do RS, 1994. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica. [S.I.], 2004. Disponvel em:<www.ibge.gov.br>. Acesso em 20 mar. 2004. BRASIL. Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais. Disponvel em: <www.inep.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2004. Movimento dos Sem Terra. Disponvel em: www.mst.org.br/educao, 20/03/04.

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Resenha

AJUDEM PAULO COELHO


Ney Ferraz Paiva1

A arte do escritor consiste em provocar, pouco a pouco, as palavras a se interessarem por seus livros. [EDMOND JABS]

Perguntado no Roda Viva da TV Cultura sobre que livro levaria para uma ilha deserta, Paulo Coelho responde sem hesitar: Como fazer um barco. Tal resposta no poderia ser mais reveladora. Embora esteja lanando um novo livro (Onze Minutos) e tenha vendido 54 milhes de exemplares, mundo afora, o que o coloca sentado direita do trono no galardo publicitrio do mercado editorial, trata-se de um escritor que precisa ser ajudado. Utilizando o mesmo estilo claro e direto, que procura dar a tudo que escreve, Paulo Coelho expressa suas idias sobre esttica, teoria do romance, trabalho literrio, bem como sobre cada uma de suas obras em particular, da mesma maneira que um manobrista almeja ser piloto de frmula-1. Presuno e pouca magia. Nem mesmo se v como suspeito para fazer a nica defesa que um escritor jamais deve se prestar: elogiar seu prprio texto. Ainda assim, se esfora para se ombrear com anes fortuitos da literatura: Antoine Exupry, Ernest Hemingway e, quem sabe, Richard Bach. Dito isso, suas escolhas literrias excluem de cara Marcel Proust e James Joyce. Ajudem Paulo Coelho! Ajud-lo passa justamente pelo ponto em que todo aspirante a escritor deve dar os primeiros passos: a leitura. Mas no qualquer leitura. Hospedar na sua leitura e escrita Malba Thaan, Monteiro Lobato, Jos Mauro de Vasconcelos, Jorge Amado, de enrubescer mesmo o crtico mais complacente. Mau leitor confesso do Ulisses, de Joyce, nosso pretenso escritor no deve ter dado tratamento melhor a Baudelaire, Flaubert, Balzac, todos injustiados pela crtica de seu tempo, assim como Paulo Coelho tambm se considera. Ler, estudar (no sentido de meditar) a obra de Dostoivski, Kafka, Beckett, livra o futuro escritor de incentivar com o seu trabalho uma estupidez difusa. Boa literatura no precisa necessariamente do grande pblico. Boa literatura exonerar-se do grande pblico, justamente porque o ato de escrever no se confunde com o de se exprimir bem (S interessa exprimir o que no se concebe bem PONGE). Picasso costumava dizer que a ele o que o salvava era que cada dia fazia pior, ou seja, que cada dia teria de fazer melhor, recomear, recuperar-se no incio de sua autenticidade. verdade que dependendo do orientador, a leitura pode no ser a melhor pedida para quem pretende ser um grande escritor. Charles Bukowski, num poema exatamente com esse ttulo, recomenda: Voc tem que foder um grande nmero de mulheres... Tambm a esta recomendao, digamos assim, obscena, Paulo Coelho vem se demonstrando relapso. Seu furor libidinoso faz questo de apontar como coisa do passado. Certo, o tema de Onze Minutos sexo, mas s como pretexto, pois as intenes do autor, evidenciadas na personagem Maria (uma prostituta), so ainda, por assim dizer, as melhores. Pelo livro inteiro almeja-se o restabelecimento ritual do equilbrio csmico. O que significar isto? Talvez que o mundo no gira em torno de algo que dura onze minutos, como parece querer nos lembrar Maria, seguindo a fala conceitual dos livros anteriores do mago, intentando nos inspirar o sagrado: cada um responsvel por aquilo que sente etc. etc.

Ney Ferraz Paiva poeta, autor de No era suicdio sobre a relva.

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Espao Cientfico - Revista do Inst. Luterano de Ensino Superior de Santarm - 2003 - Vol. 4 - pginas 79 a 80

Nem o talento individual nem a tradio (William Blake, D. H. Lawrence, Virginia Woolf, Henry Miller) nos levam a uma direo imprevista neste novo livro. Nenhuma deriva, nenhum descompasso com o resto da humanidade; nenhuma metamorfose, nenhuma transfigurao. Nem na ilha, nem no deserto da pgina em branco. (O deserto emite palavras ridas EDMOND JABS). O que vale dizer que prevalece o dado circunstancial da escrita, fora isso no h com o que se defrontar. Nada a fazer nem mesmo com a singeleza e a beleza moral que o livro procura ostentar, num mundo que tende a ficar cada vez pior. Uma escrita que no ganhou nada com o tempo; que se vale da mesma pulso de linearidade, da mesma saturao proverbial. E que talvez no possa, no deva, no merea, contrariando todo e qualquer positivismo cristo disponvel na praa, ser ajudada. Condenada a seu prprio impedimento.

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