Cartas Do Meu Moinho

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CARTAS DO MEU MOINHO ALPHONSE DAUDET Livros de Bolso Europa-Amrica - 12 Publicaes Europa-Amrica Digitalizao e Arranjo Agostinho Costa Alphonse

Daudet nasceu em Nimes, em 1840, e morreu em Paris, em 1897. Depois de uma juventude bastante vagabunda teve, para sobreviver, de trabalhar no colgio de Alais. Auxiliado por um irmo, vai para Paris tentar a sorte nas letras. Torna-Se conhecido com a colectnea de versos As Amorosas (1858). Atinge a celebridade com Cartas do Meu Moinho em que o seu bom humor, a fantasia, a ternura, a acuidade de observao e a poesia envolvem numa aura de beleza as imagens tristes ou miserveis e apelam para um optimismo sorridente, uma f obstinada pela vida. Foi talvez a influncia do seu torro natal, o Midi, que o ajudou a enfrentar Paris e a doena, que fez dos seus ltimos anos um lento suplcio. A melhor das suas peas de teatro A Arlesiana (1872), que Bizet musicou, tornando-a conhecida nas peras de todo o mundo. Fez parte da Academia Goncourt desde a sua fundao. Alem de Cartas do Meu Moinho, qui a mais clebre das suas obras, destacam-se tambem Tartarin de Tarascon, Tartarin Nos Alpes e Port-Tarascon. Ttulo Original: Lettres de Mon Molin Autor: Alphonse Daudet Traduo de Fernanda Pinto Rodrigues Direitos desta edio reservados por Publicaes Europa Amrica impresso, oficinas de P. E. A. (Agosto de 1971)

ndice PRLOGO ................................ 7 INSTALAO ............................. 9 A DILIGNCIA DE BEAUCAIRE ............. 13 O SEGREDO DO TIO CORNILLE ............. 17 A CABRA DO SR. SEGUIN ................. 24 AS ESTRELAS ........................... 31 A ARLESIANA ........................... 37 A MULA DO PAPA ........................ 42 O FAROL DOS SANGUINRIOS .............. 53 A AGONIA DA "SMILLANTE" .............. 59 OS GUARDAS ADUANEIROS ................. 66 O CURA DE CUCUGNAN .................... 71 OS VELHOS ............................. 78 BALADAS EM PROSA ...................... 86 A PASTA DE BIXIOU ..................... 93 A LENDA DO HOMEM DOS MIOLOS DE OURO ... 99 O POETA MISTRAL ...................... 104 AS TRS MISSAS REZADAS ............... 112 AS LARANJAS .......................... 121 AS DUAS ESTALAGENS ................... 125 EM MILiAN ........................... 130 OS GAFANHOTOS ........................ 142 O ELIXIR DO REVERENDO PADRE GAUCHER .. 147 EM CAMARGUE .......................... 158 SAUDADES DA CASERNA .................. 169

PRLOGO Perante mim, Honorat Grapazi, notrio com cartrio em Pamprigouste, Compareceu: O Sr. Gaspard Mitiflo, casado com Vivette Cornille, pequeno proprietrio no lugar de Cigalires, onde reside: O qual, pela presente escritura, vendeu e transmitiu, com todas as garantias de direito e de facto e livre de todos os encargos, previlgios e hipotecas, Ao Sr. Alphonse Daudet, poeta, residente em Paris, aqui presente e que declarou aceitar. Um moinho de vento e de farinha, sito no vale do Rdano, em pleno corao da Provena, numa encosta coberta de pinheiros e azinheiras; moinho que se encontra abandonado h mais de vinte anos e em estado imprprio para moer, como o demonstram as videiras bravas, o musgo, o alecrim e outras ervas parasitas que trepam por ele at ponta das suas aspas; Apesar do que, e tal como est e se encontra - com a grande m partida e a erva a crescer por entre os tijolos da plataforma -, declara o Sr. Daudet achar o dito moinho de acordo com as suas

convenincias e capaz de servir para os seus trabalhos de poesia, pelo que o aceita com todos os riscos e perigos e sem nenhum recurso contra o vendedor no tocante s reparaes de que porventura carea. Esta venda feita em bloco e mediante o preo convencionado, que o Sr. Daudet, poeta apresentou e depositou neste cartrio em moeda corrente, o qual preo foi em seguida contado e levantado pelo Sr. Mitiflo, tudo na presena do notrio e das testemunhas abaixo assinadas, do que se d quitao sob reserva. Escritura lavrada em Pamprigouste, no cartrio do notrio Honorat, na presena de Francet Mamai', tocador de pfaro, e de Louiset, por alcunha o Quique, cruciferrio dos penitentes brancos; Que assinaram com as partes e com o notrio, depois de lida... 8 INSTALAO Foi uma surpresa para os coelhos!... Havia tanto tempo que viam a porta do moinho fechada, as paredes e a plataforma invadidas pelas ervas, que tinham acabado por acreditar que se extinguira a raa dos moleiros, e, como o lugar lhes parecera bom, instalaram nele uma espcie de quartel-general, um centro de operaes estratgicas, o moinho de Jemmapes dos coelhos... Na noite da minha chegada, havia l pelo menos, sem exagero, uns vinte, sentados em crculo na plataforma, como se aquecessem as patas a um raio de luar... Assim que entreabri uma lucarna, frrt!, o bivaque ps-se em debandada e todos aqueles traseirinhos brancos fugiram, de cauda no ar, para o mato. Espero, no entanto, que regressem. Quem ficou tambm muito espantado, ao ver-me, foi o locatrio do primeiro andar, um velho mocho sinistro, de cabea de pensador, que habita o moinho h mais de vinte anos. Encontrei-o no quarto de cima, imvel e hirto no velho motor, no meio da calia e das telhas cadas. Observou-me por instantes com os seus olhos redondos e depois, muito assustado por no me reconhecer, ps-se a piar: Hu! Hu!, _ a agitar penosamente as asas cinzentas de poeira. (Diabos de pensadores, nunca se escovam!...) Mas no faz mal! Assim como , com os seus olhos piscos e a sua expresso carrancuda, este locatrio silencioso agrada-me mais do que qualquer outro, e, por isso, apressei-me a renovar-lhe o arrendamento. Como outrora, ocupa toda a parte superior do moinho, com entrada pelo telhado. Para mim, reservei o rs-do-cho, uma divisozinha caiada de branco, baixa e abobadada como o refeitrio de um convento. daqui que vos escrevo, com a porta principal escancarada ao sol. Um belo pinhal resplandecente de luz estende-se diante de mim at ao fundo da encosta. No horizonte recortam-se as cristas finas dos Alpilles... Nem um rumor... Apenas, de longe em longe, abafado pela distncia, se ouve um maarico-real no meio da alfazema ou

o guizalhar de mulas na estrada... S a luz d vida a esta bela paisagem provenal. Como quereis que tenha saudades do vosso Paris barulhento e sombrio? Estou to bem no meu moinho! , na verdade, o canto que procurava, um cantinho perfumado e quente, a mil lguas dos jornais, dos fiacres, do nevoeiro!... E que belas coisas me rodeiam! Instalei-me apenas h oito dias e j tenho a cabea repleta de impresses e de recordaes... Vede! Ainda ontem tarde assisti ao regresso dos rebanhos a um mas (uma herdade) que fica no sop da encosta, e juro-vos que no trocaria este espectculo por todas as estreias que tivestes em Paris esta semana. Julgai por vs prprios. Devo dizer-vos que na Provena costume, quando chega o calor, mandar o gado para os Alpes. Animais e pastores passam cinco ou seis meses l em cima, dormem ao relento e a erva chega-lhes ao ventre; depois, quando surgem os primeiros arrepios do Outono, descem novamente ao mas e voltam a pastar burgusmente nas colinazinhas acinzentadas perfumadas pelo rosmaninho... Pois ontem tarde os rebanhos regressaram. Desde manh que as portas estavam abertas de par em par para os receber e os apriscos cheios de palha fresca. De hora a hora dizia-se: Agora esto em Eyguires, agora em Paradou. At que, de repente, ao cair da tarde, soou um grande grito: Eles a vm! E l adiante, ao longe, avistmos o rebanho, que avanava envolto numa nuvem de poeira. Toda a estrada parecia marchar com ele...

10 Os carneiros velhos vinham frente, de chifres em riste e ar selvagem; atrs deles, o resto dos carneiros e as ovelhas, um pouco cansadas, com as crias entre as patas; as mulas, enfeitadas com borlas vermelhas, traziam nos seires os cordeirinhos de um dia, que embalavam ao andar; a seguir vinham os ces, ofegantes, com a lngua pendente at ao cho, e dois grandes marotos de dois pastores metidos em capotes de surrobeco que lhes caam at aos calcanhares como capas. Tudo isto desfilou diante de ns, alegremente, e enfiou pelo portal, fazendo com as patas um rudo de aguaceiro... Era digno de se ver o alvoroo dentro de casa. Do alto do poleiro, os grandes paves verdes e dourados, de poupa de tule, tinham reconhecido os recm-chegados e acolhiam-nos com um formidvel toque de trombeta. O galinheiro, que estava adormecido, despertou em sobressalto. Tudo se ps a p: pombos, patos, perus, galinhas-da-ndia. A criao parecia ter enlouquecido; as galinhas falavam de passar a noite em claro!... Dir-se-ia que cada carneiro trouxera na l, com o perfume dos Alpes bravios, um pouco do ar vivificante das montanhas, que embriaga e faz danar. Foi no meio de todo este barulho que o rebanho alcanou o seu poiso. Nada mais encantador do que esta instalao. Os carneiros velhos reviam o redil enternecidos. Os cordeirinhos, os mais pequenos, aqueles que 'haviam nascido durante a viagem e que jamais tinham visto a herdade, olhavam sua volta com espanto.

Mas o mais tocante ainda eram os ces, os valentes ces de pastor, muito atarefados atrs do gado, a nica coisa que lhes interessava no mas. O co de guarda fartou-se de os chamar do fundo da sua casota e o balde do poo, a trasbordar de gua fresca, bem lhes fez sinais; nada quiseram ver, nada quiseram ouvir, enquanto o rebanho no entrou, o grande ferrolho da portinha gradeada no foi corrido e os pastores no se sentaram mesa na diviso trrea. S ento se decidiram

- 11 a entrar no canil e a contar aos seus camaradas da herdade, enquanto lambiam a gamela de caldo, o que tinham feito l em cima, na montanha, uma regio desolada, onde havia lobos e grandes dedaleiras purpurinas a trasbordar de orvalho. 12 A DILIGNCIA DE BEAUCAIRE Foi no dia da minha chegada aqui. Tomara a diligncia de Beaucaire, uma pitoresca e velha carripana que pouco caminho tinha de percorrer para chegar ao seu destino, mas que seguia pachorrentamente ao longo da estrada, para se dar ares, noite, de vir de muito longe. ramos cinco na imperial, sem contar com o condutor. Em primeiro lugar, um guarda de Camargue, homenzinho atarracado, lzudo, a cheirar a malteses, de grandes olhos raiados de sangue e argolas de prata nas orelhas; a seguir, dois beaucairenses, um padeiro e o seu amassador, ambos muito vermelhos, muito congestionados, mas de perfis imponentes, duas medalhas romanas com a efgie de Vitlio; por fim, mais frente, junto do condutor, um homem... no!, um barrete, um enorme barrete de pele de coelho, que falava pouco e olhava a estrada com ar triste. Todos se conheciam uns aos outros e falavam muito alto da sua vida, com grande -vontade. O camarguense contava que vinha de Nmes, por ordem do juiz de instruo, devido a terem agredido um pastor com um forcado. Tinham o sangue na guelra, os de Camargue... Mas os de Beaucaire!... Ento os nossos dois beaucairenses no estavam quase a engalfinhar-se por causa da Virgem Santa? Parece que o padeiro era de uma parquia onde havia muito tempo se venerava Nossa Senhora, a quem os Provenais chamam boa me por ter o Menino Jesus nos braos; por seu turno, o amassador cantava no coro de uma igreja muito nova, consagrada ao culto da Imaculada Conceio, essa bela imagem sorridente que se representa com os braos pendentes e as mos cheias de raios de luz. A questo vinha da. 13

Valia a pena ver como se insultavam aqueles dois bons catlicos, a eles e s suas senhoras: - fresca, a tua imaculada! - Deixa-me em paz com a tua boa me! - Assistiu a bonitas coisas, a tua, na Palestina! - E a tua? Ah, a indecente!... Quem sabe o que ela fez... Pergunta primeiro a So Jos. Para nos imaginarmos no porto de Npoles, s faltava vermos reluzir as navalhas, e, palavra de honra, estou convencido de que to saboroso torneio teolgico no teria ficado por ali se o condutor no interviesse. - Deixem-nos sossegados com as vossas Senhoras - disse, a rir, aos beaucairenses. - Isso so histrias de mulheres, em que os homens no se devem meter. Depois disto, fez estalar o chicote com um arzinho cptico que ps toda a gente de acordo com ele. A discusso terminara; mas o padeiro, que lhe tomara o gosto, necessitava de dar vazo ao resto da sua eloquncia e, virando-se para o infeliz do barrete, silencioso e triste no seu canto, perguntou-lhe com ar chocarreiro: - E a tua mulher, amolador?... Em que parquia est ela agora? de supor que houvesse nesta frase uma inteno muito cmica, pois toda a imperial soltou uma grande gargalhada... O amolador, porm, no riu, nem se deu por achado. Em vista disso, o padeiro virou-se para o meu lado: - O senhor no conhece a mulher dele? uma sujeita divertida, garanto-lhe! Em Beaucaire no h duas como ela. As gargalhadas redobraram. O amolador no tugiu nem mugiu; limitou-se a dizer baixinho, sem levantar a cabea: - Cala-te, padeiro. 14 Mas o diabo do padeiro no tinha vontade nenhuma de se calar e teimou: - Papa-aorda! No de lamentar um camarada que tem uma mulher dessas... Pelo menos, um homem nunca se aborrece com ela... Imaginem! Uma bela que levanta voo de seis em seis meses traz sempre que contar quando volta... No h dvida, um lar muito divertido... Imagine o senhor que ainda no estavam casados h um ano, zs! A mulher ps-se a andar para Espanha com um vendedor de chocolate. O marido ficou sozinho em casa, a chorar e a beber... Andava como louco. Passado certo tempo, a bela voltou terra, vestida de espanhola e com uma pandeireta. Todos ns lhe dizamos: Esconde-te; ele mata-te. Ah, pois sim, mat-la... Voltaram a viver juntos, muito tranquilamente, e ela ensinou-o a tocar pandeiro. Nova exploso de gargalhadas. No seu canto, sem levantar a cabea, o amolador murmurou outra vez: - Cala-te, padeiro. O padeiro no lhe ligou importncia e continuou:

- O senhor julga, talvez, que depois de voltar de Espanha a bela ficou sossegada... Ah, mas no!... O marido tinha aceitado to bem as coisas! Apeteceu-lhe recomear... Depois do espanhol, arranjou um oficial, depois um marinheiro do Rdano, depois um msico, depois um... Que sei eu? E o engraado que de todas as vezes se repete a mesma comdia. A mulher parte, o marido chora; ela regressa, ele conforma-se. Sempre que lha levam, torna a receb-la... Imagine a resignao deste marido! Manda a verdade que se diga, porm, que a amoladorazinha extraordinariamente bonita... um petisco de fazer crescer gua na boca: viva, galante, reboludinha. Alm disso, tem a pele muito branca e uns olhos cor de avel que parecem rir quando vem um homem... Enfim, meu caro parisiense, se algum dia voltar a passar por Beaucaire... - Oh!, cala-te, padeiro, suplico-te... - pediu mais uma vez o pobre amolador, num tom de voz dilacerante. Naquele momento, a diligncia parou. Estvamos no mas dos Anglores. Foi l que os dois beaucairenses desceram, e juro-vos que fiquei satisfeito por os ver pelas costas... Que farsante de padeiro! Estava j no ptio do mas e ainda o ouvamos rir. Depois de eles sarem, a imperial pareceu ficar vazia. Deixramos o camargus em Aries e o condutor seguia agora a p pela estrada, ao lado dos cavalos... Estvamos ss l em cima, o amolador e eu, cada um no seu canto, calados. Fazia calor; o couro da capota escaldava. De vez em quando, sentia os olhos fecharem-se-me e a cabea pesada; mas era impossvel dormir. No me saa dos ouvidos aquele cala-te, suplico-te, to pungente e suave... Ele tambm no dormia. Pobre homem! Por detrs, via os seus ombros fortes estremecerem e a sua mo - grande, macilenta e grosseira - tremer nas costas do banco, como a mo de um velho. Chorava... - Chegmos, parisiense! - gritou-me de repente o condutor, e indicava-me com a ponta do chicote a colina verde, com o moinho pousado no alto, como uma grande borboleta. Apressei-me a descer. Ao passar perto do amolador, tentei v-lo por debaixo do barrete; queria observ-lo antes de partir. Como se tivesse adivinhado o meu pensamento, o pobre homem levantou bruscamente a cabea, pousou o seu olhar no meu e disse-me com voz surda: - Olhe bem para mim, amigo, e, se um dia destes souber que se deu uma desgraa em Beaucaire, poder dizer que conhecia quem a causou. Era uma figura aniquilada e triste, de olhos pequenos e avelhentados. Havia lgrimas naqueles olhos, mas na sua voz havia dio. O dio a clera dos fracos!... Se eu fosse a amoladora, teria medo. 16 O SEGREDO DO TIO CORNILLE Francet Mamai", um velho tocador de pfaro que vem de tempos a tempos passar o sero comigo e beber vinho quente, contou-me uma noite destas um dramazinho de aldeia de que o meu moinho foi

testemunha h cerca de vinte anos. A histria do bom homem comoveu-me e vou tentar cont-la tal qual a ouvi. Imaginem por instantes, meus caros leitores, que esto sentados diante de um canjiro de vinho perfumado e que um velho tocador de pfaro quem lhes fala. - A nossa terra, meu bom senhor, nem sempre foi um lugar estagnado e sem alegria como hoje. Dantes, fazia-se aqui um grande comrcio de moagem, e, dez lguas em redor, a gente dos mas trazia-nos o seu trigo para moer... A toda a volta da aldeia, as colinas estavam cobertas de moinhos de vento. Por todos os lados, s se viam aspas a girar, impelidas pelo mistral, por cima dos pinheiros, rcuas de burricos carregados de sacos, subindo e descendo ao longo dos caminhos, e toda a semana dava gosto ouvir l nos altos o estalido dos chicotes, o ranger das velas e os moos dos moleiros gritarem: esquerda! direita! Aos domingos, subamos em bandos aos moinhos. L em cima, os moleiros davam-nos moscatel. As moleiras eram belas como rainhas, com os seus lenos de rendas e as suas cruzes de ouro. Eu levava o meu pfaro e danavam-se farndolas at ao cair da noite. Como v, os moinhos eram a alegria e a riqueza da nossa regio. Infelizmente, uns franceses de Paris tiveram a ideia de instalar uma fbrica de moagem a vapor, na estrada de Tarascon. Outros tempos, outros ventos! As pessoas habituaram-se a mandar os seus cereais aos moageiros, e os pobres moinhos de vento ficaram sem trabalho. 17 Durante algum tempo, tentaram lutar, mas o vapor foi mais forte e, um aps outro, catrapus!, foram todos obrigados a fechar... Nunca mais se viram chegar os burricos... As belas moleiras venderam as suas cruzes de ouro... Acabou-se o moscatel! Acabaram-se as farmdolas!... O mistral bem podia soprar, as aspas conservavam-se imveis... Depois, um belo dia, a comuna mandou demolir todos esses pardieiros, e no seu lugar plantaram-se vinhas e oliveiras. Contudo, no meio da derrocada, um moinho se conservou de p e continuou a girar corajosamente no alto da sua colina, nas barbas dos moageiros. Era o moinho do Tio Cornille, este mesmo em que estamos agora a passar o nosso sero. O Tio Cornille era um velho moleiro que vivia h sessenta anos no meio da farinha e que no se cansava de resmungar contra a sua profisso. A instalao das moagens p-lo como louco. Durante oito dias, viram-no correr pela aldeia, amotinar toda a gente sua volta e gritar a plenos pulmes que queriam envenenar a Provena com a farinha dos moageiros. "No vo l", dizia ele. "Aqueles bandidos servem-se do vapor para fabricar o po, e o vapor uma inveno do Diabo, ao passo que eu trabalho com o mistral e com a tramontana, que so a respirao do Senhor..." E como estas, descobria uma catadupa de bonitas palavras em louvor dos moinhos de vento, mas ningum as escutava. Ento, fora de si, o velho fechou-se no seu moinho e passou a

viver s, como um animal feroz. Nem sequer quis conservar junto de si a neta, Vivette, uma criana de 11 anos, que, desde a morte dos pais, no tinha mais ningun no mundo alm do av. A pobre pequena viu-se obrigada a ganhar a vida e a assalariar-se um pouco por toda a parte nos mas, umas vezes nas ceifas, outras para tratar dos bichos-da-seda, 18 outras ainda na apanha da azeitona. E, no entanto, o av dava mostras de querer muito quela criana. s vezes, andava quatro lguas a p, debaixo de sol ardente, para a ir ver ao mas onde trabalhava, e quando estava ao p dela passava horas inteiras a olh-la e a chorar... Na regio pensava-se que o velho moleiro afastara Vivette por avareza e considerava-se pouco digno dele deixar a neta andar assim, de herdade em herdade, exposta s brutalidades dos ganhes e a todas as misrias das jovens nas suas condies. Tambm se via com muito maus olhos que um homem conceituado como o Tio Cornille, e que, at ali, se dera ao respeito, andasse agora pelas ruas como um autntico cigano, descalo, com o barrete roto e a faixa em frangalhos... A verdade que ao domingo, quando o vamos entrar na missa, ns, os velhos, tnhamos vergonha dele; e Cornille notava-o to bem que j no se atrevia a ir sentar-se no banco dos mordomos. Ficava sempre ao fundo da igreja, junto da pia da gua-benta, com os pobres. Na vida do Tio Cornille havia qualquer coisa pouco clara. Apesar de h muito tempo ningum da aldeia lhe levar trigo para moer, as velas do seu moinho continuavam a girar como outrora... tardinha, encontrava-se pelos caminhos o velho moleiro, a tocar sua frente o burro carregado de grandes sacos de farinha. "Boas tardes, Tio Cornille!", gritavam-lhe os aldeos. "A moagem vai indo?" "Vai indo, vai indo, meus filhos", respondia o velho, com ar prazenteiro. "Graas a Deus, trabalho no nos falta.". Ento, se lhe perguntavam donde diabo podia vir tanto labor, punha um dedo nos lbios e respondia gravemente: "Caluda! Trabalho para exportao..." Nunca se conseguiu tirar dele mais do que isto. Quanto a meter o nariz no seu moinho, nem pensar nisso. Nem a prpria pequena Vivette l entrava... Quando algum passava por l, via a porta sempre fechada, 19 as grandes aspas sempre em movimento, o velho burro a pastar na erva da plataforma e um grande gato magro deitado ao sol no parapeito da janela, que olhava para quem passava com ar malicioso. Tudo isto cheirava a mistrio e dava azo a muita tagarelice na aldeia. Cada um explicava sua maneira o segredo do Tio Cornille, mas a voz geral era que havia no moinho muito mais sacos de

dinheiro do que de farinha. Com o tempo, porm, tudo se descobriu. Foi assim: Quando fazia danar a juventude ao som de meu pfaro, notei, um belo dia, que o mais velho dos meus rapazes e a pequena Vivette se tinham tomado de amores um pelo outro. No fundo, no fiquei aborrecido, porque, apesar de tudo, considervamos Cornille um homem honrado e, no fim de contas, Vivette era um lindo passarinho que gostaria de ver saltitar pela minha casa. Apenas, como os nossos apaixonados tinham muitas ocasies de estar juntos, quis, para evitar complicaes, resolver o assunto imediatamente, e subi ao moinho para trocar duas palavras com o av... Ah, o velho manhoso! Se soubesse como me recebeu! Foi-me impossvel conseguir que me abrisse a porta. Expliquei-lhe as minhas razes o melhor que pude, atravs do buraco da fechadura, e durante todo o tempo que falei o tratante do gato magro no deixou de bufar como um demnio por cima da minha cabea. O velho no me deu tempo de terminar; gritou-me muito grosseiramente que voltasse para a minha flauta, que se tinha pressa de casar o meu filho, podia bem ir procurar-lhe noiva fbrica da moagem... Veja se no era caso para o sangue me subir cabea ao ouvir to ms palavras. Tive, porm, suficiente bom senso para me conter e, deixando o velho louco com a sua m, fui anunciar aos pequenos o meu malogro... Os pobres pombinhos nem queriam acreditar. Pediram-me por tudo que os deixasse Subir junto ao moinho e falar ao av... 20 No tive coragem de recusar e, pronto!, os meus apaixonados puseram-se a caminho. Precisamente quando chegaram l acima, o Tio Cornille acabava de sair. A porta estava fechada chave com duas voltas; mas o pobre velho deixara a escada de mo da parte de fora e os pequenos tiveram de repente a ideia de entrar pela janela, para dar uma vista de olhos ao que havia no famoso moinho... Coisa singular: a cmara da m estava vazia!... Nem um saco, nem um gro de trigo; nem uma partcula de farinha nas paredes, nem nas teias de aranha... No se notava sequer o bom cheiro quente a frumento modo, que perfuma os moinhos... O velho motor estava coberto de poeira e o grande gato magro dormia l em cima. O compartimento de baixo tinha o mesmo ar de misria e abandono: uma cama miservel, alguns andrajos, um naco de po num degrau da escada, e por fim, a um canto, trs ou quatro sacos arrebentados, dos quais saam calia e saibro. Era este o segredo do Tio Cornille! Era entulho o que passeava tarde pelas estradas, para salvar a honra do moinho e fazer crer que se tratava de farinha... Pobre moinho! Pobre Cornille! Havia muito tempo que os moageiros lhe tinham levado o ltimo fregus. As velas giravam sempre, mas a m trabalhava em vo. Os pequenos regressaram banhados em lgrimas e contaram-me o que tinham visto. Senti o corao cortar-se-me ao ouvi-los... Sem perda de um minuto, corri a casa dos vizinhos, contei-lhes tudo em duas palavras e assentmos que era necessrio levar

imediatamente ao moinho de Cornille todo o frumento que houvesse nas casas... Meu dito, meu feito. Toda a aldeia se ps a caminho e chegmos l acima com um cortejo de burros carregados de trigo - de verdadeiro trigo, claro! 21 O moinho estava aberto de par em par... Diante da porta, o Tio Cornille, sentado num saco de calia, chorava, com a cabea entre as mos. Descobrira, ao chegar, que durante a sua ausncia algum entrara no moinho e surpreendera o seu triste segredo. 'Pobre de mim!, dizia ele. Agora s me resta morrer... O moinho est desonrado. E soluava de modo que cortava o corao, chamava ao moinho toda a espcie de nomes, falava-lhe como se fosse uma autntica pessoa. Naquele momento, os burros chegaram plataforma e ns pusemo-nos todos a gritar muito alto, como nos bons tempos dos moleiros: " do moinho! Tio Cornille!" E os sacos comearam a empilhar-se diante da porta, e o belo gro louro comeou a espalhar-se pelo cho, por todos os lados... O Tio Cornille abriu muito os olhos. Tomara um punhado de trigo na palma da sua velha mo e dizia, rindo e chorando ao mesmo tempo: " trigo!... Meu Deus!... Bom trigo!... Deixem-me v-lo." Depois virou-se para ns: "Ah! Eu bem sabia que haviam de voltar... Todos esses moageiros so uns ladres." Quisemos lev-lo em triunfo aldeia, mas ops-se: "No, no, meus filhos; antes de mais nada, tenho de dar de comer ao meu moinho... Vejam! H tanto tempo que no lhe passa nada pelos dentes!" Todos ns vamos, de lgrimas nos olhos, o pobre velho afadigar-se para a direita e para a esquerda, a despejar os sacos, a inspeccionar a m, enquanto o gro era esmagado e a poeira fina do frumento subia at ao tecto. Faa-se-nos justia: a partir daquele dia, nunca deixmos sem trabalho o velho moleiro. Depois, uma manh, o Tio Cornille morreu e as velas do nosso ltimo moinho deixaram de girar, desta vez para sempre... Morto Cornille, ningum lhe sucedeu. Que lhe havemos de fazer. Tudo acaba neste mundo, e temos de nos convencer de que o tempo dos moinhos de vento passou, como passou o dos barcos de passageiros do Rdano, o dos parlamentos(1) das casacas bordadas. *1.Outrora, em Frana, chamava-se Parlamento ao que hoje se designa por Supremo Tribunal de Justia. (N. da T.) 22 - 23 A CABRA DO SR. SEGUIN

Ao Sr. Pierre Gringoire, poeta lrico de Paris. Hs-de ser sempre o mesmo, meu pobre Gringoire! Como?! Ento, oferecem-te o lugar de cronista num bom jornal de Paris e tens a coragem de recusar?... Olha para ti, infeliz rapaz! Repara nesse gibo esburacado, nesses cales arruinados, nessa cara magra de faminto. V aonde te levou a paixo pelas belas rimas! V o que ganhaste em dez anos de leais servios como pajem de mestre Apolo... Enfim, que feito da tua vergonha? Faz-te cronista, imbecil! Faz-te cronista! Ganhars bom dinheiro sem te ralares muito, ters o teu talher no Brbant' e poders ostentar nos dias de estreia uma pluma nova no barrete... No? No queres? Pretendes ser livre tua maneira at ao fim... Pois bem, presta um pouco de ateno histria da cabra do Sr. Seguin. Vers o que se ganha com querer viver livre. O Sr. Seguin nunca fora muito feliz com as suas cabras. Perdia-as todas da mesma maneira: uma bela manh, partiam a corda, fugiam para a montanha e, l em cima, o lobo comia-as. Nem as carcias do dono, nem o medo do lobo, nada as retinha. Eram o que se pode dizer cabras independentes, queriam a todo o custo o ar livre e a liberdade. O bom do Sr. Seguin, que no percebia nada do carcter dos seus animais, andava consternado. Dizia ele: Acabou-se, as cabras aborrecem-se junto de mim, no consigo segurar nem uma. 24 Todavia, no desanimava, e, depois de perder seis cabras da mesma maneira, comprou a stima. Apenas, desta vez, tomou o cuidado de a prender desde novinha, para que se habituasse melhor a viver em sua casa. Ah, Gringoire, como era bonita a cabrinha do Sr. Seguin! Como era linda com os seus olhos doces, a sua barbicha de sargento, os seus cascos negros e brilhantes, os seus chifres listrados e o seu comprido plo branco, que lhe dava o aspecto de andar de manto! Era quase to encantadora como o cabrito da Esmeralda - lembras-te, Gringoire? - e, dcil, meiga, deixava-se ordenhar sem se mexer, sem meter as patas na gamela. Um amor de cabrinha... O Sr. Seguin tinha nas traseiras da casa um logradouro cercado de pilriteiros. Foi l que meteu a nova pensionista. Amarrou-a a uma estaca, no stio mais agradvel do terreno, tendo o cuidado de lhe deixar a corda bastante comprida, e de tempos a tempos ia ver se ela estava bem. A cabra sentia-se muito feliz e tosava a erva com tanto apetite que o Sr. Seguin andava radiante. Enfim, pensava o pobre homem, aqui est uma cabra que no se aborrece junto de mim! O Sr. Seguin enganava-se; a cabra aborrecia-se. Um dia, ela disse para consigo, olhando a montanha: Como se deve estar bem l em cima! Que prazer cabriolar na urze, sem esta maldita arreata que me esfola o pescoo!... Pastar num cercado bom para os burros e para os bois!... As cabras precisam de

largueza. A partir daquele momento, a erva do cercado pareceu-lhe inspida. Sobreveio-lhe o tdio. Emagreceu e o seu leite tornou-se pouco abundante. Metia pena v-la puxar todo o dia a corda, com a cabea virada para o lado da montanha, as narinas dilatadas e balir tristemente: Mmmmmeeeee!... O Sr. Seguin notou perfeitamente que a cabra tinha qualquer coisa, mas no foi capaz de descobrir o que era... 25 Uma manh, quando acabava de a ordenhar, a cabra virou-se para ele e disse-lhe na sua linguagem: - Escute, Sr. Seguin: definho em sua casa; deixe-me ir para a montanha. - Ah, meu Deus!... Ela tambm!-gritou o Sr. Seguin, estupefacto; e, de sbito, deixou cair o balde do leite. Depois, sentou-se na erva ao lado da cabra e lamentou-se: - Ento, Blanquette, queres deixar-me? E Blanquette respondeu: - Sim, Sr. Seguin. - Falta-te erva aqui? - Oh, no, Sr. Seguin! - Ests talvez presa muito curta. Queres que ponha a corda mais comprida? - No vale a pena, Sr. Seguin. - Ento, que te falta? Que queres? - Quero ir para a montanha, Sr. Seguin. - Mas, desgraada, no sabes que h l lobos na montanha?... Que fars quando algum aparecer?... - Dar-lhe-ei marradas, Sr. Seguin. - O lobo escarnecer das tuas marradas. J me comeu cabras com chifres bem maiores do que os teus... Lembras-te da pobre e velha Renaude, que estava c o ano passado? Uma cabra grande, forte e ruim como um bode? Lutou com um lobo toda a noite... e depois, de manh, o lobo comeu-a. - Imaginem! Pobre Renaude!... Mas isso no quer dizer nada, Sr. Seguin. Deixe-me ir para a montanha. - Valha-me Deus!... - exclamou o Sr. Seguin. - Que tero feito s minhas cabras? Mais uma que o lobo vai comer... Ah, no... hei-de salvar-te, quer queiras, quer no queiras, velhaca! E, para que no quebres a corda, vou-te fechar no curral, onde ficars para sempre. Dito isto, o Sr. Seguin levou a cabra para um curral muito escuro e fechou-lhe a porta com duas voltas de chave. 26 Infelizmente, esqueceu-se da janela, e, mal virou costas, a cabrinha fugiu... Tu ris, Gringoire? Por Deus, creio bem que sim! Tomaste o partido das cabras, contra o bom Sr. Seguin... Vejamos se continuas a rir.

Quando a cabra branca chegou montanha, a admirao foi geral. Jamais os velhos abetos tinham visto nada to bonito. Receberam-na como uma pequena rainha. Os castanheiros inclinaram-se at ao cho para a afagar com a ponta dos seus ramos. As giestas douradas abriam-se sua passagem e requintavam o seu aroma o mais que podiam. Toda a montanha a festejava. Imagina, Gringoire, como a nossa cabra se devia sentir feliz! Nem corda, nem estaca... nada que a impedisse de retouar, de pastar vontade... Ali que havia erva! To alta que lhe chegava acima dos chifres, meu caro!... E que erva! Saborosa, fina, denteada, composta das mais variadas plantas... Era muito diferente da erva do cercado. As flores, ento!... Grandes campainhas azuis, dedaleiras purpreas de longos clices, um autntico jardim de flores silvestres, transbordantes de seiva capitosa!... A cabra branca, meio inebriada, espojava-se de pernas para o ar, rolava ao longo dos taludes, de mistura com as folhas cadas e com as castanhas... Depois, de repente, levantava-se de um salto, nas patas. Upa! E corria com a cabea inclinada para diante, atravs das moitas e dos buxais, e aparecia ora no alto dum cabeo, ora no fundo de um barranco, to depressa l em cima como c em baixo, por toda a parte... Dir-se-ia haver dez cabras do Sr. Seguin na montanha. Blanquette no tinha medo de nada. Transpunha de um salto as grandes torrentes, que a salpicavam de passagem de uma poalha hmida e de espuma. Depois, a escorrer, ia estender-se numa rocha plana, a secar ao sol... Uma vez, ao abeirar-se de uma planura, com uma flor de ctiso nos dentes, avistou l em baixo, ao fundo da plancie, 27 a casa do Sr. Seguin, com o seu cercado nas traseiras. A descoberta f-la rir at s lgrimas. Que pequenina!, exclamou. Como pude viver ali dentro? Pobrezita! Por se ver empoleirada to alto, julgava-se pelo menos to grande como o mundo... Em suma, foi um dia bem passado para a cabra do Sr. Seguin. Por volta do meio-dia, correndo de um lado para o outro, foi cair no meio de um rebanho de cabritos monteses que se preparavam para devorar uma videira brava. A nossa vagabundazinha vestida de branco causou sensao. Deram-lhe a melhor parte da videira brava e todos aqueles cavalheiros foram muito gentis... Parece at - mas isto deve ficar entre ns, Gringoire - que um jovem cabrito monts de plo negro teve a sorte de agradar a Blanquette. Os dois apaixonados vaguearam pelo bosque uma ou duas horas, mas, se queres saber de que falaram, vai pergunt-lo s nascentes tagarelas que correm invisveis pelo musgo. De sbito, o vento refrescou. A montanha tingiu-se de cor de violeta; a noite aproximava-se... J?!, exclamou a cabrinha, e deteve-se muito admirada. L em baixo, os campos cobriam-se de bruma. O cercado do Sr. Seguin sumira-se no nevoeiro e da casinha s se via o telhado, donde saa um pouco de fumo. Ela ouviu os chocalhos de um rebanho que recolhia

e sentiu a alma muito triste... Um gerifalte que regressava ao seu poiso tocou-lhe de passagem com as asas. Ela estremeceu... e a seguir ouviu-se um uivo na montanha: Huuuu! Huuu! Lembrou-se do lobo; do lobo em que no pensara durante todo o dia... Ao mesmo tempo, soou uma trompa, muito ao longe, no vale. Era o bom do Sr. Seguin que tentava um derradeiro esforo. Huuu! Huuu!..., uivava o lobo. Volta! Volta!..., gritava a trompa. 28 Blanquette sentiu vontade de voltar; mas, ao recordar-se da estaca, da corda, da sebe do cercado, pensou que j no podia habituar-se quela vida e que mais lhe valia ficar. A trompa calara-se... A cabra ouviu atrs de si um rudo de folhas. Virou-se e viu na sombra duas orelhas curtas, muito direitas, e dois olhos reluzentes... Era o lobo. Enorme, imvel, sentado nos quartos traseiros, observava a cabrinha branca e saboreava-a antecipadamente. Como tinha a certeza de que a comeria, o lobo no se apressava; apenas, quando ela se virou, se ps a rir malevolamente. Ah! Ah! A cabrinha do Sr. Seguin, e passou a grande lngua vermelha pelos beios ressequidos. Blanquette sentiu-se perdida... Por instantes, ao recordar-se da histria da velha Renaude, que lutara toda a noite, mas acabara por ser comida de manh, disse para consigo que talvez fosse melhor deixar-se comer imediatamente; depois, mudou de opinio, ps-se em guarda, de cabea baixa e chifres em riste, como uma valente cabra do Sr. Seguin que se prezava de ser... No era que esperasse matar o lobo - as cabras no matam os lobos -, mas somente para ver se poderia resistir tanto tempo como a Renaude... Ento, o monstro avanou e os chifrezinhos entraram em aco. Ah, valente cabrinha, como ela lutava com coragem! Mais de dez vezes - no minto, Gringoire - forou o lobo a recuar para tomar alento. Durante aquelas trguas de um minuto, a gulosa colhia ainda, apressadamente, um rebento da sua querida erva; depois, retomava o combate, com a boca cheia... Isto durou toda a noite. De tempos a tempos, a cabra do Sr. Seguin olhava as estrelas que danavam no cu enluarado e dizia para consigo: Oh! Contanto que resista at ao romper da aurora... 29 Uma aps outra, as estrelas extinguiram-se. Blanquette redobrou as marradas, o lobo as dentadas... Uma claridade plida surgiu no horizonte... O canto rouco do galo elevou-se de uma granja. Enfim!, disse o pobre animal, que s esperava o dia para morrer; e caiu por terra, com a sua bela pelica branca toda manchada de sangue... Ento, o lobo lanou-se sobre a cabrinha e comeu-a. Adeus, Gringoire!

A histria que acabas de ler no um conto da minha inveno. Se algum dia vieres Provena, os nossos camponeses falar-te-o muitas vezes da cabra de moussu Seguin, que se battgue touto la nui eme lou loup, e piei lou matin lou loup la mang(1). Creio que me entendes bem, Gringoire: E piei lou, matin lou loup la mang. *1. ...a cabra do Sr. Seguin, que se bateu toda a noite com o lobo, e depois, pela manh, o lobo comeu-a. 30 AS ESTRELAS Narrativa de um pastor provenal

No tempo em que guardava gado no Luberon, andava semanas inteiras sem ver vivalma, sozinho nas pastagens com o meu co labri e as minhas ovelhas. De tempos a tempos, o eremita do monte do Ure passava por l procura de ervas medicinais ou ento avistava o rosto mascarado de algum carvoeiro do Piemonte; mas eram criaturas simples, silenciosas fora de isolamento, que tinham perdido o gosto de falar e que nada sabiam a respeito do que se dizia no vale, nas aldeias e nas cidades. Por isso, de quinze em quinze dias, quando ouvia, na ladeira, os chocalhos do macho da nossa herdade, que me levava as provises da quinzena, e via aparecer pouco a pouco, no alto da encosta, a cabea esperta do pequeno miarro (moo de herdade) ou a coifa amarelada da velha Tia Norade, sentia-me verdadeiramente feliz. Pedia-lhes que me contassem as novidades do vale, os baptismos e os casamentos; mas o que sobretudo me interessava era saber o que fizera a filha dos meus amos, a nossa menina Stphanette, a mais bonita que existia dez lguas em redor. Sem ter o ar de estar muito interessado, informava-me se ia muito a festas, a seres, se lhe continuavam a aparecer novos pretendentes; e, se me perguntassem porque me interessava por tais coisas - a mim, pobre pastor da montanha -, responderia que tinha 20 anos e que Stphanette era o que eu vira de mais belo na minha vida. Ora, num domingo em que esperava os vveres da quinzena, aconteceu s chegarem muito tarde. De manh, disse para comigo: por causa da missa cantada; depois, por volta do meio-dia, desencadeou-se uma grande tempestade e pensei - 31 que a muar no se tivesse podido meter montanha devido ao mau estado dos caminhos. Enfim, cerca das trs horas, com o cu j lavado e a montanha brilhante de gua e de sol, ouvi, por entre o gotejar das folhas e o trasbordar das guas caudalosas dos

riachos, os chocalhos da muar, to alegres, to vivos, como um grande carrilho de sinos em domingo de Pscoa. Mas no era o pequeno micarro, nem a velha Norade, que a conduzia. Era... adivinhem quem!... a nossa menina, meus filhos! A nossa menina em pessoa, sentada muito direita entre os seires de esparto, toda corada do ar das montanhas e do fresco do temporal. O pequeno estava doente e a Tia Norade fora passar frias a casa dos filhos. A bela Stphanette contou-me tudo isto enquanto descia da muar e tambm que chegava tarde porque se perdera no caminho; mas, ao v-la to bem endomingada, com a sua fita florida, ia sua saia elegante e as suas rendas, achei-lhe mais o aspecto de quem se tivesse atardado nalguma dana do que procura do caminho nos bosques. Oh, que criatura to gentil! Os meus olhos no se cansavam de a admirar. verdade que nunca a vira to de perto. s vezes, no Inverno, quando os rebanhos desciam plancie e eu regressava noite herdade para cear, ela atravessava a sala apressadamente, sem sequer falar aos criados, sempre enfeitada e um pouco altiva... Mas agora tinha-a diante de mim, s para mim. No era de perder a cabea? Depois de tirar as provises do cesto, Stphanette ps-se a olhar curiosamente sua volta. Levantando um pouco a sua bela saia domingueira para a no sujar, entrou no redil, quis ver o canto onde me deitava - uma manjedoura com uma pele de carneiro por cima da palha -, o meu grande capote pendurado na parede, o meu cajado e a minha espingarda de pederneira. Tudo aquilo a divertia. - Ento, aqui que vives, meu pobre pastor? Como te deves aborrecer de estar sempre s! Que fazes? Em que pensas?... 32 Tive vontade de lhe responder: Em si, patroa, e no lhe teria mentido. Mas a minha perturbao era to grande que no fui capaz de pronunciar uma s palavra. Creio bem que notou o meu embarao e que sentia um prazer maldoso em o aumentar com as suas palavras maliciosas. - E a tua namorada, pastor, sobe a ver-te algumas vezes?... Deve ser, com certeza, a cabra de ouro ou a fada Estrelle, que nunca sai do cume das montanhas... E ela prpria, enquanto me falava, parecia perfeitamente a fada Estrelle, a sorrir com a cabea inclinada e com a pressa de se ir embora, que dava sua visita todo o ar de uma apario. - Adeus, pastor. - Deus a guarde, patroa. E l partiu, com os cestos vazios. Quando desapareceu no carreiro inclinado, pareceu-me que os seixos que rolavam debaixo das patas da muar me caam um a um no corao. Ouvi-os durante muito tempo e at ao fim do dia estive como que adormecido, sem ousar mexer-me, com receio de dissipar o meu sonho. tardinha, quando o fundo dos vales comeava a tingir-se de azul e os animais se apertavam, balindo, uns contra os outros, para entrar no redil, ouvi chamarem-me da encosta e vi aparecer a nossa menina, no j risonha, como sempre, mas sim

a tremer de frio e de medo, toda molhada. Parece que encontrara no sop da encosta o Sorgue muito engrossado pela chuva da tempestade e que, como teimara em transpor a corrente, estivera em risco de se afogar. O pior era que quela hora da noite no se podia pensar no seu regresso herdade, porque, sozinha, a nossa menina nunca seria capaz de atinar com o caminho e eu no podia abandonar o rebanho. A ideia de passar a noite na montanha atormentava-a muito, sobretudo por causa da inquietao dos seus. Eu procurava tranquiliz-la o melhor que podia: - Em Julho, as noites so curtas, patroa... Isto no Passa de uma pequena contrariedade. 33 Acendi imediatamente uma grande fogueira, para que secasse os ps e o vestido, encharcado da gua do Sorgue. A seguir, pus-lhe diante leite e queijos de ovelha. Mas a pobre pequena no pensava nem em se aquecer, nem em comer, e ao ver subirem-lhe aos olhos lgrimas grossas como punhos apeteceu-me chorar tambm. Entretanto, a noite cerrou-se por completo. Na crista das montanhas j s se via uma poalha de sol, um vapor luminoso do lado do poente. Quis que a nossa menina dormisse no redil. Estendi na palha fresca uma bela pele novinha em folha, dei-lhe as boas-noites e fui sentar-me da parte de fora. diante da porta... Deus testemunha de que, apesar do fogo de amor que me queimava o sangue, no tive nenhum mau pensamento; apenas sentia um grande orgulho s de pensar que num canto do redil, junto do rebanho que curioso, a via dormir, a filha dos meus amos - como uma ovelha mais preciosa e mais branca do que todas as outras - repousava, confiada minha guarda. Jamais o cu me parecera to profundo, as estrelas to brilhantes... De repente, o cancelo do redil abriu-se e a bela Stphanette apareceu. No podia dormir. Os animais faziam ranger a palha ao mexerem-se ou baliam nos seus sonhos, Preferia vir para junto do fogo. Ento, pus-lhe a minha pele de cabra pelos ombros, espertei o lume e ficmos sentados um ao p do outro, sem falar. Se alguma vez passaram a noite ao relento, devem saber que enquanto dormimos o mundo misterioso desperta na solido e no silncio. Nessa altura, as nascentes cantam mais cristalinamente e os charcos cobrem-se de chamazinhas. Todos os espritos da montanha vo e vm livremente e pairam no ar rumores, rudos imperceptveis, como se se ouvisse os ramos crescer e a erva brotar. O dia a vida dos seres, mas a noite a vida das coisas. Quando se no est habituado, mete medo! Tambm a nossa menina estava toda arrepiada e se chegava muito para mim ao menor rudo. Uma vez, um grito prolongado, melanclico, saiu de um charco que brilhava mais abaixo - 34 e subiu at ns, ondulante. No mesmo instante, uma bela estrela cadente deslizou por cima das nossas cabeas, na mesma direco, como se o queixume que acabvamos de ouvir trouxesse uma luz

consigo. - Que foi? - perguntou-me Stphanette, em voz baixa. - Uma alma que entrou no Paraso, patroa - e fiz o sinal da cruz. Persignou-se tambm e ficou um momento de cabea levantada, muito atenta. Depois, disse-me: - ento verdade, pastor, que vocs so feiticeiros? - De modo algum, menina. Mas aqui vivemos muito mais perto das estrelas e sabemos melhor o que se passa no cu do que as pessoas da plancie. Ela no tirava os olhos do alto, com a cabea apoiada na mo, embrulhada na pele de carneiro, como um pastorinho celeste. - Que infinidade de estrelas! Como so belas! Nunca tinha visto tantas... Sabes como se chamam, pastor? - Claro que sei, patroa... Escute! Mesmo por cima de ns, est a Estrada de Santiago (a Via Lctea), que vai de Frana direita a Espanha. Foi Sant'Iago da Galiza que a traou, para mostrar o caminho ao valente Carlos Magno, quando este andava em guerra com os Sarracenos(1). Mais longe, tem o Carro das Almas (a Ursa Maior], com os seus quatro eixos resplandecentes. As trs estrelas que vo frente so as Trs Cavalgaduras e aquela pequenina, ao p da terceira, o Cocheiro. V a toda a volta aquela chuva de estrelas cadentes? So as almas que Deus Nosso Senhor no quer no Cu... Um pouco mais abaixo est o Ancinho, ou os Trs Reis (Orion), que serve de relgio aos pastores. Basta-me olhar para l para saber que j passa da meia-noite. Um pouco mais abaixo, sempre para o lado do meio-dia, brilha Joo de Milo, o guia dos astros (Srio). Quer saber o que os pastores contam acerca desta estrela? Parece que, uma noite, Joo de Milo, os Trs Reis e o Sete-Estrelo (Pleiades) foram convidados para a boda de uma estrela das suas relaes. 35 O Sete-Estrelo, mais apressado, partiu,! Diz-se, frente, e tomou o caminho de cima. Veja-o, l no alto, mesmo ao fundo do cu. Os Trs Reis cortaram mais por baixo e apanharam-no; mas o preguioso do Joo de Milo, que dormira at mais tarde, ficou muito para trs. furioso, para os deter, atirou-lhes com o seu basto. por isso que os Trs reis se chamam tambm o Basto de Joo de Milo... Mas a mais bela de todas as estrelas, patroa, a nossa, a Estrela do Pastor, que nos alumia ao romper da aurora, quando samos com o rebanho, e tambm tarde, quando regressamos. Tambm lhe chamamos a Maguelona, a bela Maguelona, que corre atrs de Pedro de Provena (Saturno) e casa com ele de sete em sete anos. - Como, pastor, ento tambm h casamentos de estrelas?! - Sim, patroa. E, quando pretendi explicar-lhe o que eram tais casamentos, senti qualquer coisa fresca e macia pesar-me ligeiramente no ombro. Era a sua cabea aturdida de sono encostada a mim que me proporcionava o contacto agradvel de fitas, de rendas e de cabelos ondulados. Ficou cem se mexer at os astros empalidecerem no cu, ofuscados pelo dia nascente. Fiquei a v-la dormir, um pouco perturbado no fundo do meu ser. mas santamente protegido por aquela noite

lmpida que s me dera bons pensamentos. Em redor de ns, as estrelas continuavam a sua caminhada silenciosa, dceis como um grande rebanho, e por momentos imaginei que uma daquelas estrelas, a mais delicada e a mais brilhante, se perdera no caminho e viera pousar no meu ombro para dormir... *1. Todos estes pormenores de astronomia popular so transcritos do Almanaque Provenal, que se publica em Avinho. 36 A ARLESIANA Para ir aldeia, quem desce do meu moinho passa diante de um mas erguido beira da estrada, ao fundo de um grande ptio rodeado de ldos-bastardos. uma verdadeira casa de lavrador da Provena, com as suas telhas vermelhas, a sua ampla fachada sombria, de janelas irregulares, e, l no cimo de tudo, o cata-vento do sto, a roldana para iar as medas e alguns tufos de feno trigueiro salientes... Porque me impressionara esta casa? Por que motivo aquele portal fechado me oprimia o corao? No o poderia dizer, e, no entanto, aquela habitao causava-me arrepios. Reinava um grande silncio sua volta... Quando algum passava, os ces no ladravam e as pintadas fugiam sem cacarejar... L dentro, nem uma voz! Nada, nem mesmo o som de um guizo de mula... Sem as cortinas brancas das janelas e o fumo que se erguia acima do telhado, julgar-se-ia o local desabitado. Ontem, por volta do meio-dia, voltava eu da aldeia e, para evitar o sol, seguia rente aos muros da herdade, sombra dos ldos-bastardos... Na estrada, diante do mas, criados silenciosos acabavam de carregar uma carroa de feno... O portal ficara aberto. Deitei uma olhadela, de passagem, e Vi ao fundo do ptio, com os cotovelos em cima de uma grande mesa de pedra e a cabea entre as mos, um velho alto, todo branco, com uma vstia muito curta e os cales em farrapos... Parei. Um dos homens disse-me, baixinho: Caluda! o patro... Est assim desde a desgraa do filho. Naquele momento, uma mulher e um garoto, vestidos de preto, passaram junto de ns com grandes devocionrios dourados e entraram na herdade. 37 O homem acrescentou: - ... A patroa e Cadet, que vm da missa. Vo igreja todos os dias, desde que o menino se matou... Ah, senhor, que desolao!... O pai traz ainda o fato do morto; ningum consegue que o tire... Para o que havia de lhe dar! A carroa preparava-se para partir. Como queria saber mais

pormenores, pedi ao cocheiro que me deixasse subir para o seu lado e foi l em cima, no feno, que ouvi toda esta histria pungente. * * * Ele chamava-se Jan. Era um admirvel aldeo de 20 anos, recatado como uma rapariga, forte e de rosto franco. Como era muito belo, as mulheres olhavam-no; mas ele s uma trazia na cabea: uma arlesianazinha, toda veludos e rendas, que encontrara uma vez na arena de Aries. Ao princpio, no mas, no viram com bons olhos tal ligao. A rapariga passava por leviana e os pais no eram da regio. Mas Jan queria a sua arlesiana desse por onde desse e dizia: Se no ma derem, morro. Tiveram de desistir e decidiram cas-los depois da ceifa. Ora, um domingo tarde, a famlia acabava de jantar no ptio do mas. Fora quase uma boda. A noiva no assistira, mas bebera-se constantemente sua sade... Um homem apresentou-se porta e, com voz trmula, pediu para falar ao patro Esteve, s a ele. Esteve levantou-se e saiu para a estrada. - Patro - disse-lhe o homem -, sei que vai casar o seu filho com uma desavergonhada que foi minha amantf durante dois anos. Posso provar o que digo; aqui esto cartas!... Os pais sabem tudo e j ma tinham prometido mas desde que o seu filho a requesta, nem eles nem minha amante quiseram mais saber de mim... Creio, porm que depois de tudo isto ela no poder ser mulher de outro - Est bem - disse o patro Esteve, depois de ver as cartas -, entre e beba um copo de moscatel. 38 O homem respondeu: - Obrigado! Tenho mais mgoa do que sede. - E foi-se embora. O pai voltou a entrar, impassvel, reocupou o seu lugar mesa e o repasto acabou alegremente... Naquela tarde, o patro Esteve e o filho foram juntos para o campo. Estiveram muito tempo fora. Quando regressaram, a me ainda os esperava. - Mulher - disse o lavrador, indicando-lhe o filho -, beija-o! um desgraado... Jan nunca mais falou da arlesiana. No entanto, continuava a am-la, e talvez mais do que nunca, desde que lha tinham mostrado nos braos de outro. Somente, como era muito orgulhoso, nada dizia. Foi o que matou o pobre rapaz!... S vezes, passava dias inteiros sozinho a um canto, sem se mexer. Noutros dias, deitava-se terra com raiva e fazia sozinho o trabalho de dez jornaleiros... Ao cair da tarde, metia-se estrada de Aries e caminhava em frente at ver surgir no poente os campanrios esguios da cidade. Ento, voltava para trs. Nunca ia mais longe. Ao v-lo assim, sempre triste e s, a gente do mas no sabia que

mais fazer. Receava-se uma desgraa... Uma vez, mesa, a me fitou-o com os olhos rasos de lgrimas e disse-lhe: - Pois bem; escuta, Jan: se a queres, apesar de tudo, damos-ta... O pai, rubro de vergonha, baixou a cabea... Jan fez sinal que no e saiu... A partir daquele dia, mudou de vida; simulou estar sempre alegre, para sossegar os pais. Tornaram a v-lo no baile, na taberna, nas feiras. Na romaria de Fonvieille foi ele quem dirigiu a farndola. 39 O pai dizia: Est curado. A me, essa vivia num receio constante e mais do que nunca vigiava o filho... Jan dormia com Cadet, junto do viveiro dos bichos-da-seda; a pobre velha mandou armar uma cama ao lado do quarto deles... Os bichos-da-seda podiam precisar dela, durante a noite... Chegou a festa de Santo Eli, padroeiro dos lavradores. Grande alegria no mas... Houve Chteauneuf para toda a gente e vinho velho como se fosse chuva. Depois, petardos, fogos-de-artifcio, bales de cores em todos os ramos dos ldos-bastardos... Viva Santo Eli! Danou-se a farndola at fartar. Cadet queimou a sua blusa nova... O prprio Jan parecia muito contente. Quis mesmo obrigar a me a danar. A pobre mulher chorava de felicidade. meia-noite foram-se deitar. Toda a gente precisava de dormir... Jan, esse, no dormiu. Cadet contou depois que levara toda a noite a soluar... Ah, aquele fora atingido em cheio!... No dia seguinte, ao romper da aurora, a me ouviu algum atravessar-lhe o quarto a correr e teve como que um pressentimento. - Jan, s tu? Jan no respondeu; ia j na escada. A me levantou-se apressadamente. - Jan, aonde vais? Ele subiu ao sto; ela subiu atrs dele. - Meu filho, em nome do Cu! Ele fechou a porta e correu o ferrolho. - Jan, meu filho, responde-me. Que vais fazer? s apalpadelas, com as velhas mos a tremer, procurou o loquete... Uma janela que se abre, o rudo de um corpo nas lajes do ptio, e mais nada... O pobre rapaz dissera: Amo-a demasiado... No posso mais... Ah, miserveis coraes os nossos! muito triste que o desprezo no consiga matar o amor!... 40 Naquela manh, a gente da aldeia perguntava a si prpria quem gritaria assim, para as bandas do mas de Esteve. Era a me do rapaz, completamente despida, que no ptio, diante da mesa de pedra, coberta de orvalho e de sangue, se lamentava com o filho morto nos braos.

41 A MULA DO PAPA De todas as bonitas sentenas, provrbios ou adgios que os nossos aldeos da Provena introduzem nas suas conversas, no conheo nenhum mais pitoresco nem mais singular do que este. Quinze lguas em redor do meu mi nho, quando se fala de um homem rancoroso, vingativo, diz-se: Desconfiem daquele homem!... como a mula do papa, que guardou sete anos o seu coice. Procurei durante muito tempo a origem deste provrbio, qual seria a mula papal e o coice guardado durante sete anos. Ningum aqui me pde informar a tal respeito, nem mesmo Francet Mamai', o meu tocador de pfaro, que no entanto conhece as lendas provenais como a ponta dos dedos. Francet pensa, como eu, que no dito h aluso a alguma antiga crnica de Avinho, mas nunca a ouviu citar de modo diferente do provrbio. - S encontrar isso na biblioteca das Cigarras - disse-me o velho tocador de pfaro, rindo. A ideia pareceu-me boa e, como a biblioteca das Cigarras fica minha porta, meti-me l durante oito dias. uma biblioteca maravilhosa, admiravelmente organi zada, aberta aos poetas dia e noite, e servida por pequenos bibliotecrios que passam o tempo a tocar cmbalos. Passei l alguns dias deliciosos e, depois de uma semana de busca - deitado de costas -, acabei por descobrir o que queria, quer dizer, a histria da minha mula e do seu famoso coice guardado durante sete anos. O conto bonito, embora un pouco ingnuo, e vou tentar cont-lo tal como o li ontem de manh num manuscrito amarelecido pelo tempo, com u bom cheirinho a alfazema e rendilhado de teias de aranha. Quem no viu Avinho no tempo dos papas, no viu nada. Nunca existiu cidade que a igualasse em alegria, vida, animao e imponncia das festas. De manh noite, s se viam procisses, romagens, ruas juncadas de flores, grinaldas, chegadas de cardeais pelo Rdano, pendes ao vento, galeras empavesadas, soldados do papa a cantar em latim nas praas, matracas de frades mendicantes; depois, de alto a baixo das casas que se comprimiam volta do grande palcio papal, como abelhas roda do cortio, ouvia-se o tiquetaque dos teares de rendas, o vaivm das lanadeiras que teciam o ouro das casuks, os martelinhos dos cinzeladores de galhetas, as escalas que afinavam os fabricantes de alades, os cnticos dos teceles; sobrepunha-se a isto o toque festivo dos sinos e, continuamente, o de alguns tamboris, que se ouviam rufar ao longe, para os lados da ponte. Porque entre ns, quando o povo est contente, tem de danar, e dana; e como, naquele tempo, as ruas da cidade eram demasiado estreitas para danar a farndola, pfaros e tamboris postavam-se na ponte de Avinho, ao vento fresco do Rdano, e dia e noite danava-se, danava-se... Ah, felizes tempos! Feliz cidade! As alabardas no

feriam, nas prises do Estado metia-se o vinho a refrescar. No havia misria, no havia guerra... Era assim que os papas do condado sabiam governar o seu povo; foi por isso que o seu povo ficou com tantas saudades deles!... Houve um, sobretudo, um bom velho chamado Bonifcio... Oh, quantas lgrimas se choraram em Avinho quando ele morreu! Era um prncipe to amvel, to insinuante! Corria com tanta afabilidade do alto da sua mula! E quando algum passava por ele - quer fosse um pobre e humilde apanhador de garana, - 42 - 43 quer fosse o grande vigrio da cidade - dava-lhe a sua bno to delicadamente! Um verdadeiro papa de Yvetot, mas de um Yvetot da Provena, com o seu qu de finura no sorriso, um raminho de manjerona no barrete e sem qualquer espcie de ama... (A nica ama que jamais se conheceu a este bom padre foi a sua vinha - uma vinhazinha que ele prprio plantou, a trs lguas de Avinho, nas murtas de Chteau-Neuf.) Todos os domingos, depois de sair das vsperas, o digno homem ia fazer-lhe a corte, e quando estava l em cima, sentado ao sol, com a mula perto dele e os cardeais a toda a volta, estendidos aos ps das cepas, mandava ento abrir uma garrafa de vinho da sua lavra - do belo vinho cor de rubi que se chamou depois Chteau-N'euf dos Papas - e saboreava-o aos golinhos, olhando a vinha com ternura. Depois, despejada a garrafa, ao cair da noite, voltava alegremente cidade, seguido de todo o seu captulo; e quando passava na ponte de Avinho, no meio dos tambores e das farndolas, a mula, espevitada pela msica, rompia num galopezinho saltitante, enquanto ele prprio marcava o compasso da dana com o barrete, o que escandalizava muito os cardeais, mas fazia dizer a todo o povo: Ah, que bom prncipe! Que excelente papa! A seguir sua vinha de Chteau-Neuf, o que o papa mais estimava no mundo era a sua mula. O bom homem era perdido pelo animal. Todas as noites, antes de se deitar, ia ver se a estrebaria estava bem fechada, se no faltava nada na manjedoura, e nunca se levantava da mesa sem mandar preparar na sua presena uma grande malga de sopas de cavalo cansado, com muito acar e aromatos, que ele prprio lhe ia levar, a despeito das observaes dos cardeais... Diga-se em abono da verdade que o animal merecia tantos cuidados. Era uma bela mula negra, mosqueada de vermelho, de pernas firmes, luzidia, garupa larga e plana, que levantava altivamente a cabecita esguia toda ajaezada de borlas, laos, guizos de prata e tranas; alm disso, era meiga como um anjo, tinha olhos cndidos e orelhas compridas, sempre em movimento, que lhe davam um ar bonacheiro. Toda a Avinho a respeitava e quando errava pelas ruas no havia cortesias que lhe no fizessem, pois todos sabiam ser essa a melhor maneira de estar nas boas graas do palcio e que, com o seu ar inocente, a mula do papa j contribura para a fortuna de mais de uma pessoa, e a prova era Tistet Vdne e a sua prodigiosa aventura. Este Tistet Vdne fora, a princpio, um descarado moo de recados

que o pai, Guy Vdne, cinzelador de ouro, se vira obrigado a expulsar da oficina, porque no queria trabalhar e desencaminhava os aprendizes. Durante seis meses, viram-no coar a jaqueta por todas as esquinas de Avinho, mas principalmente nas imediaes do palcio papal, pois o velhaco tinha havia muito tempo as suas ideias a respeito da mula do papa e, como vereis, tramava a sua patifariazinha... Num dia em que Sua Santidade passeava s debaixo das muralhas com o animal, o nosso Tistet aproximou-se e disse-lhe, juntando as mos com ar de admirao: - Ah. meu Deus, venerando Santo Padre, que bonita mula tendes!... Deixai-me admir-la um bocadinho... Ah, meu Papa, que bela mula!... Nem o imperador da Alemanha deve ter uma igual. E afagava-a, e falava-lhe docemente, como a uma menina. - Vem c, minha jia, meu tesouro, minha prola fina... E o bom papa, muito comovido, dizia para consigo: Que bom rapazinho!... Como gentil com a minha mula! E depois, no dia seguinte, sabeis o que aconteceu? Tistet Vdne trocou a sua velha jaqueta amarela por uma bela alva arrendada, uma mura de seda cor de violeta, sapatos - 44 - 45 de fivela, e entrou ao servio do papa, honra que antes dele s fora concedida aos filhos dos nobres e aos sobrinhos dos cardeais... Ora aqui tendes o que a intriga!... Mas Tistet no se deu por satisfeito. Uma vez ao servio do papa, o velhaco continuou a fazer o jogo que to bons resultados lhe dera. Insolente com toda a gente, s tinha atenes e cortesias para a mula, e viam-no sempre nos ptios do palcio com um punhado de aveia ou com um molhinho de sanfeno, a agitar gentilmente os racimos rosados e a olhar para a varanda do santo padre, com ar de quem diz: Hem!... Para quem isto?... E tanto fez que por fim o bom papa, que se sentia envelhecer, acabou por lhe confiar o cuidado de olhar pela estrebaria e de levar mula a sua malga de sopas de cavalo cansado, o que no agradou nada aos cardeais. E tambm no agradou mula... Desde ento, hora do seu vinho, via sempre aparecerem cinco ou seis meninos de coro que corriam a esconder-se na palha, com as suas muras e as suas rendas; pouco depois, um cheirinho agradvel a caramelo e aromatos enchia a estrebaria, e surgia Tistet Vdne trazendo com precauo a malga de sopas de cavalo cansado. Comeava ento o martrio do pobre animal. O vinho perfumado, de que tanto gostava, que a aquecia e lhe dava asas, tinham a crueldade de lho levar manjedoura, de lho fazer aspirar; mas, depois de lhe encherem as narinas com o seu aroma, nunca mais lhe punha a vista em cima! O belo licor de vapor rosado ia todo parar garganta dos marotos... E, se apenas se limitassem a roubar-lhe o vinho... Mas no; depois de beberem, os meninos de coro pareciam diabos!... Um puxava-lhe as orelhas, outro a cauda; Quiquei saltava-lhe para o dorso, Bluguet experimentava-lhe o barrete,

46 e nenhum dos mariolas se lembrava de que com um toque de garupa ou uma parelha de coices o pacfico animal poderia mandar todos ver a Estrela Polar, ou mesmo mais longe... Mas no! Por algum motivo se mula do papa, mula das bnos e das indulgncias... Os garotos gostavam de brincar e ela no se zangava; Tistet Vdne era o nico que ela queria apanhar... Quando, por exemplo, o sentia atrs de si, assaltava-a uma comicho nos cascos... E, na verdade, o caso no era para menos. O patife do Tistet dava-lhe to maus tratos! Tinha invenes to cruis depois de beber!... Ento, um dia, no se lembrou de a fazer subir com ele ao campanrio da matriz, at l acima, mesmo at l acima, ao pinculo do palcio?!... E garanto-vos que no minto, pois viram-no duzentos mil provenais. Imaginai o terror da infeliz mula quando, depois de andar s voltas durante uma hora, s cegas, numa escada de caracol, e de trepar no sei quantos degraus, se encontrou de repente numa plataforma deslumbrantemente iluminada e avistou, mil ps abaixo de si, toda uma Avinho fantstica, as barracas do mercado mais ou menos do tamanho de avels, os soldados do papa diante da caserna como formigas vermelhas e ao longe, por cima de um fio de prata, uma pontezinha microscpica, onde se danava, danava... Ah, pobre animal! Que pnico! O grito que soltou fez estremecer todos os vidros do palcio. - Que ? Que lhe fizeram? - gritou o bom papa, precipitando-se para a varanda. Tistet Vdne estava j no ptio e simulava chorar e arrancar os cabelos. - Ah, venerando Santo Padre, que h-de ser?! Foi a vossa mula que subiu ao campanrio... - Sozinha?! - Sim, venerando Santo Padre, sozinha... Olhai! Vede-a, l em cima... Vedes as pontas das suas orelhas passarem de um lado para o outro?... Parecem duas andorinhas... 47 - Misericrdia! - suplicou o pobre papa, levantando os olhos. - Mas ela endoideceu! Vai-se matar... Desce j da, desgraada!... Pobrezita! Tomara ela poder descer... Mas por onde? Pela escada, nem pensar nisso. Pode-se subir a tais alturas; mas se tentasse descer, quebraria cem vezes as pernas... E a pobre mula, angustiada, andava roda da plataforma, com os seus grandes olhos cheios de vertigens, a pensar em Tistet Vdne: Ah, bandido, se escapo desta... que coice levas amanh de manh! A ideia do coice animou-a um pouco; sem isso no teria resistido... Enfim, conseguiram tir-la l de cima, mas com muito custo. Foi necessrio desc-la com um macaco, cordas e uma padiola. Imaginem que humilhao para a mula de um papa ver-se pendurada quela altura, a agitar as patas no vcuo como um besouro na ponta de um fio. E Avinho em peso a v-la!

O pobre animal no dormiu toda a noite. Parecia-lhe sempre andar roda da maldita plataforma, com toda a cidade a rir l em baixo; depois, lembrava-se do infame Tistet Vdne e do formidvel coice que lhe daria no dia seguinte de manh. Ah, meus amigos, que coice! O fumo havia de se ver em Pamprigouste... Ora, enquanto lhe preparava to boa recepo na estrebaria, sabeis que fazia Tistet Vdne? Descia o Rdano a cantar numa galera papal e ia para a corte de Npoles com o grupo de moos fidalgos que a cidade mandava todos os anos para junto da rainha Joana, a fim de aprenderem diplomacia e boas maneiras. Tistet no era nobre, mas o papa tinha de o recompensar dos cuidados que dispensara mula e principalmente da actividade que desenvolvera no dia do salvamento. A mula que ficou decepcionada no dia seguinte! Ah, o bandido, decerto suspeitou de qualquer coisa!, pensou, sacudindo os guizos com furor. Mas no faz mal... Vai, malvado, que na volta c o encontrars, o teu coice... Eu to guardarei! 48 E guardou-lho. Depois da partida de Tistet, a mula do papa retomou o seu modo de vida calma e o seu comportamento de outrora. Nem Quiquei nem Bluguet tornaram estrebaria. Voltaram os belos dias das sopas de cavalo cansado, e com eles o bom humor, as longas sestas e o passinho de gavota quando passava na ponte de Avinho. Todavia, depois da sua aventura, notava sempre certa frieza na cidade. Cochichavam sua passagem, os velhos abanavam a cabea e as crianas riam e apontavam para o campanrio. O prprio bom papa no tinha j tanta confiana na sua amiga e quando se deixava passar pelas brasas no seu dorso, aos domingos, no regresso da vinha, assaltava-o sempre este pensamento reservado: E se ao acordar me visse l em cima, na plataforma?... A mula adivinhava isto e sofria em silncio. Somente, quando se pronunciava o nome de Tistet Vdne diante dela, as suas orelhas afiladas fremiam e afiava as ferraduras na calada, com um sorrisinho maroto. Assim se passaram sete anos; depois, ao cabo desses sete anos, Tistet Vdne regressou da corte de Npoles. Ainda no terminara o seu tempo de permanncia, mas soubera que o primeiro-mostardeiro do papa morrera de repente em Avinho e, como o lugar lhe parecia bom, viera a toda a pressa para ver se o apanhava. Quando o intriguista Vdne entrou na sala do palcio, o santo padre mal o reconheceu, tanto crescera e ganhara corpo. Deve-se dizer tambm que o bom papa, por seu turno, envelhecera e que j no via bem sem culos. Tistet no se intimidou. - Como, venerando Santo Padre, no me reconheceis?!... Sou eu, Tistet Vdne!... -Vdne?... - Claro, vs bem sabeis... o que levava as sopas de cavalo cansado vossa mula. - Ah! Sim... sim... recordo-me... Eras bom mocinho, Tistet Vdne!... E agora, que queres de ns? 49

- Oh, pouca coisa, venerando Santo Padre!... Vinha pedir-vos... A propsito, ainda tendes a vossa mula? E ela est bem?... Ah, tanto melhor!... Vinha pedir-vos o lugar do primeiro-mostardeiro que acaba de morrer. - Tu, primeiro-mostardeiro?!... Mas s demasiado novo. Que idade tens? - Vinte anos e dois meses, ilustre pontfice, precisamente mais cinco anos do que a vossa mula... Ah, louvado seja Deus, que excelente animal!... Se soubsseis como gostava dessa mula, que saudades tive dela em Itlia!... Consentireis que a veja, no verdade? - Sim, meu filho, hs-de v-la - respondeu o bom papa, muito comovido. - E j que tanto a estimas, esse excelente animal, no quero que vivas mais tempo longe dela. A partir de hoje, ligo-te minha pessoa como primeiro-mostardeiro... Os meus cardeais ho-de protestar, mas pior para eles! J estou habituado... Vem procurar-nos amanh, sada das vsperas, para te impormos as insgnias do teu grau na presena do nosso captulo, e depois... levar-te-ei a ver a mula e irs vinha connosco... he!, he! Vamos, agora sai... Se Tistet Vdne estava contente quando saiu do salo e com que impacincia esperou a cerimnia do dia seguinte,, escuso de vos dizer. No entanto, havia no palcio algum ainda mais feliz e mais impaciente do que ele: era a mula. Desde o regresso de Vdne at s vsperas do dia seguinte, o terrvel animal no cessou de se empanturrar de aveia e de bater na parede com os cascos traseiros. Ela tambm se preparava para a cerimnia... Por fim, no dia seguinte, terminadas as vsperas, Tistet Vdne fez a sua entrada no ptio do palcio papal. Todo o alto clero l estava: os cardeais, com as suas vestes vermelhas; o advogado do Diabo, vestido de veludo negro; os abades do convento com as suas mitrazinhas, os mordomos de Santo Agrico, as muras cor de violeta da matriz, e tambm o baixo clero, os soldados do papa de grande uniforme, as trs confrarias de penitentes, os eremitas do monte Ventoux com os seus rostos carrancudos e, retaguarda, o pequeno clero com a sineta, os irmos flagelantes nus at cintura, os sacristes corados em trajes de juizes, todos, todos, at os dadores de gua benta, e os acendedores, e os apagadores... sem faltar um s. Ah, que bela ordenao! Sinos, petardos, sol, msica, e, como sempre, os endiabrados tamboris que marcavam a dana na ponte de Avinho. Quando Vdne apareceu no meio da assembleia, a sua boa presena e o seu belo semblante provocaram um murmrio de admirao. Era um magnfico provenal, mas dos louros, de longos cabelos encaracolados nas pontas e barbicha atrevida, que parecia feita das rebarbas de metal precioso sadas do buril de seu pai, o cinzelador de ouro. Corria o boato de que os dedos da rainha Joana tinham brincado algumas vezes com aquela barba loura, e, de facto, o senhor de Vdne tinha bem o ar glorioso e o olhar distrado dos homens que foram amados pelas rainhas... Naquele dia, em honra da sua terra, substitura os seus trajes napolitanos por uma jaqueta bordada, cor-de-rosa, provenal, e por cima do seu

barrete agitava-se uma grande pluma de bis de Camargue. Assim que entrou, o primeiro-mostardeiro saudou com toda a galantaria e dirigiu-se para junto do estrado onde o papa o esperava para lhe impor as insgnias do seu grau: a colher de buxo amarelo e o hbito cor de aafro. A mula estava no fundo dos degraus, toda ajaezada e prestes a partir para a vinha... Quando passou por ela, Tistet Vdne sorriu com simpatia e deteve-se para lhe dar duas ou trs palmadinhas amigveis no lombo, ao mesmo tempo que, pelo rabo do olho, procurava certificar-se se o papa o via. A posio era boa... A mula tomou balano... Toma! Apanha, bandido! Aqui tens o que te guardo h sete anos! 50 - 51 E atirou-lhe um coice to terrvel, to terrvel, que at em Pamprigouste se viu o fumo, um turbilho de fumo louro no qual volteava uma pluma de bis, tudo quanto restava do infortunado Tistet Vdne!... Os coices das mulas no so ordinariamente to fulminantes; mas aquela era uma mula papal e, depois - no se esqueam! -, ela guardara-o durante sete anos... No h exemplo mais notvel de rancor eclesistico. 52 O FAROL DOS SANGUINRIOS Esta noite, no pude dormir. O mistral estava encolerizado e os clamores da sua voz potente tiveram-me acordado at de manh. Balouando pesadamente as suas velas mutiladas, que a nortada fazia gemer como os aprestos de um navio, todo o moinho estalava. As telhas voavam do telhado arruinado. Ao longe, os pinhais que cobrem a colina agitavam-se e marulhavam na escurido. Parecia estar-se em pleno mar... Isto recordou-me imediatamente as minhas belas insnias de h trs anos, quando estive no farol dos Sanguinrios longe daqui, na costa corsa, entrada do golfo de Ajcio. Mais um bonito cantinho que descobrira para sonhar e estar s. Imaginem uma ilha avermelhada e de aspecto selvagem; numa ponta o farol e na outra uma velha torre genovesa onde, no meu tempo, habitava uma guia. Em baixo, beira da gua, um lazareto em runas, completamente invadido pelas ervas; depois, barrancos, mato, rochas enormes, algumas cabras selvagens, cavalinhos corsos saltando de crinas ao vento; por fim, l no alto, muito no alto, num turbilho de aves marinhas, a casa do farol, com a sua plataforma de alvenaria branca, em que os faroleiros passeavam de ponta a ponta, a porta verde em ogiva, a torrinha de ferro fundido e, por cima, a enorme lanterna facetada, que brilha ao sol e d luz mesmo de dia... isto a ilha dos Sanguinrios, tal como a tornei a ver esta noite, ao ouvir marulhar os meus pinheiros. Era nesta ilha encantada que antes

de ter o moinho me ia encerrar algumas vezes, quando necessitava de ar livre e de solido. 53 Que fazia l? O que fao aqui, ou menos ainda. Quando o mistral ou a tramontana no sopravam com demasiada fora, metia-me entre dois rochedos beira da gua, no meio das gaivotas, dos melros e das andorinhas, e ficava ali todo o dia na espcie de torpor e prostrao deliciosa que d a contemplao do mar. Conhecem esta bela embriaguez de alma, no verdade? No se pensa nem se sonha. Todo o nosso ser se evade, se evola, se dispersa. Somos a gaivota que mergulha, a poalha de espuma que plana ao sol entre duas vagas, o fumo branco do vaporzinho que se afasta, o coraleirozinho de vela vermelha, a prola de gua, o floco de bruma, tudo excepto ns prprios... Oh, que horas inefveis de semi-sonolncia e disperso passei na minha ilha!... Nos dias de muito vento, em que se no podia estar beira da gua, metia-me no ptio do lazareto, um patiozinho melanclico, todo embalsamado de rosmaninho e de absinto bravo, e ali, protegido por uma parede velha, deixava-me invadir docemente pelo vago perfume de abandono e tristeza que pairava com o sol nos cubculos de pedra, abertos a toda a volta como antigas sepulturas. De tempos a tempos, um bater de porta, um salto ligeiro na erva... era uma cabra que vinha pastar ao abrigo do vento. Quando me via, parava interdita e ficava especada diante de mim, atenta, com os chifres erguidos, a fitar-me com olhar infantil. Cerca das cinco horas, o porta-voz dos faroleiros chamava-me para jantar. Tomava ento por um carreirinho que subia a pique por entre o mato, sobranceiro ao mar, e regressava lentamente ao farol, voltando-me a cada passo para aquele imenso horizonte de gua e luz que parecia alargar-se medida que trepava. L em cima, era encantador. Parece-me ver ainda a bela sala de jantar, de lajes grandes, lambrim de carvalho, caldeirada de peixe a fumegar no meio, a porta grande aberta para o terrao branco e todo o sol-poente a entrar... Os faroleiros esperavam-me para se sentarem mesa. Eram trs, um marselhs e dois corsos, todos trs pequenos, barbudos, com o mesmo rosto curtido, apergaminhado, e o mesmo pelone (gabo) de pele de cabra, mas de temperamento e humor inteiramente opostos. Pela maneira de viver desta gente adivinhava-se imediatamente a diferena de origens. O marselhs, industrioso e vivo, sempre atarefado, sempre em movimento, corria a ilha de manh noite, a jardinar, a pescar, a procurar ovos de gouailles, embrenhando-se no mato para ordenhar uma cabra de passagem, e sempre com algum ioli ou alguma caldeirada em perspectiva. Os corsos, esses, fora do seu servio no se ocupavam absolutamente em nada; consideravam-se funcionrios e passavam todo o dia na cozinha a jogar interminveis partidas de scopa, que s interrompiam para reacender os cachimbos, com ar grave, e picar tesoura, na concha da mo, grandes folhas de tabaco verde...

Fora isto, marselhs e corsos eram todos trs boas pessoas, simples, sinceros e cheios de atenes para com o seu hspede, apesar de este, no fundo, lhes dever parecer um cavalheiro muito extraordinrio... Imaginem! Meter-se no farol por prazer!... E eles que achavam os dias to longos e que se sentiam to felizes quando chegava a sua vez de irem a terra... No Vero, tinham esta felicidade todos os meses. Dez dias em terra por cada trinta dias de farol, dizia o regulamento; mas, no Inverno e durante o mau tempo, o regulamento era letra morta. O vento soprava, a vaga subia, os Sanguinrios tornavam-se brancos de espuma e os faroleiros de servio ficavam bloqueados dois ou trs meses seguidos, s vezes at em situaes terrveis. 54 - 55 - Veja o que me aconteceu, senhor - contava-me um dia o velho Bartoli, enquanto jantvamos -, veja o que me aconteceu h cinco anos, a esta mesma mesa a que estamos, numa tarde de Inverno, como agora. Naquela tarde, s estvamos dois no farol, eu e um camarada chamado Tchco... Os outros estavam em terra, doentes, de folga, sei l... Estvamos a acabar de jantar, muito sossegados... De repente, o meu camarada parou de comer, fitou-me um momento com os olhos arregalados e, zs!, caiu sobre a mesa com os braos estendidos. Corri para ele, sacudi-o, chamei-o: Tch!... Tch!... Nada, estava morto... Imagine como fiquei. Durante mais de uma hora permaneci estupefacto, a tremer diante do cadver; depois, subitamente, lembrei-me: O farol! S tive tempo de subir lanterna e acend-la. Era j noite... Que noite, senhor! O mar, o vento, no tinham as suas vozes naturais. Parecia-me a todo o momento que algum me chamava na escada. Tinha uma febre, uma sede! Mas ningum seria capaz de me obrigar a descer... Sentia demasiado medo do morto. Contudo, de manhzinha, cobrei um pouco de coragem. Levei o meu camarada para a cama, cobri-o com um pano, rezei uma orao e corri para os sinais de alarme. Infelizmente, o mar estava demasiado agitado; bem chamei e tornei a chamar, mas ningum veio... Encontrava-me sozinho no farol com o meu pobre Tchco, e s Deus sabia por quanto tempo... Esperava poder conserv-lo junto de mim at chegada do barco, mas ao cabo de trs dias j no era possvel... Que fazer? Lev-lo l para fora? Enterr-lo? A rocha era demasiado dura e havia tantos corvos na ilha... No seria piedoso abandonar-lhes um cristo. Ento, pensei em sepult-lo num dos cubculos do lazareto... Gastei uma tarde inteira em to triste tarefa, e confesso-lhe que precisei de bastante coragem. Ah, senhor, ainda hoje, quando deso quele lado da ilha numa tarde de muito vento, parece-me sempre que levo o morto s costas... Pobre velho Bartoli! O suor corria-lhe da testa, s de recordar o transe por que passara. As nossas refeies passavam-se assim, a conversar durante muito tempo: do farol, do mar, a ouvir relatos de naufrgios e histrias de bandidos corsos... Depois, ao cair do dia, o faroleiro do primeiro quarto acendia o seu candeeirinho, pegava no cachimbo,

na cabaa e num grosso Plutarco de bordas vermelhas - toda a biblioteca dos Sanguinrios- e desaparecia pelo fundo. Ao cabo de um momento, ouvia-se em todo o farol o estrpito de correntes, de pols, de grandes pesos de relgio que subiam. Entretanto, ia-me sentar l fora, no terrao. O Sol, j muito baixo, descia at gua cada vez mais depressa, levando todo o horizonte atrs de si. O vento refrescava, a ilha tornava-se cor de violeta. No cu, perto de mim, passava pesadamente uma grande ave: era a guia da torre genovesa, que recolhia... Pouco a pouco, a bruma subia do mar. Em breve se via apenas a orla branca da espuma em torno da ilha... De repente, por cima da minha cabea, jorrava uma grande torrente de luz suave. Estava aceso o farol. Deixando toda a ilha na sombra, o brilhante raio de luz ia cair ao largo, no mar, e eu ficava ali, perdido na noite, debaixo daquelas grandes ondas luminosas que mal me salpicavam de passagem... Mas o vento refrescava mais e era necessrio recolher. s apalpadelas, fechava a grande porta e colocava as trancas de ferro; depois, sempre s apalpadelas, tomava uma escadinha de ferro fundido, que abanava e soava debaixo dos meus passos, e subia ao cimo do farol. Ali j havia luz. Imaginem uma gigantesca lmpada carcel com seis ordens de mechas, em torno da qual giravam lentamente as faces da lanterna, umas formadas por enormes lentes de cristal, outras abertas para grandes vidraas imveis, que punham a chama ao abrigo do vento... Quando entrava, ficava deslumbrado. Os cobres, os estanhos, os reflectores de metal branco, 56 - 57 as paredes de cristal convexo, que giravam em grandes crculos azulados, todo aquele resplendor, todo aquele crepitar de luzes, me causavam um momento de vertigem. Pouco a pouco, no entanto, os meus olhos habituavam-se e ia sentar-me mesmo ao p da lmpada, ao lado do faroleiro que lia o seu Plutarco em voz alta, com medo de adormecer... L fora, a escurido, o abismo. No varandim que contornava o envidraado, o vento galopava como louco, uivando. O farol estalava, o mar bramia. Na ponta da ilha, as vagas batiam nos rochedos como salvas de canho... De vez em quando, um dedo invisvel batia nas vidraas: alguma ave nocturna atrada pela luz e que vinha esmagar a cabea contra o cristal... Na lanterna, faiscante e quente, apenas o crepitar da chama, o rudo do leo a gotejar e da corrente a desenrolar-se, e uma voz montona a salmodiar a vida de Demtrio de Falero. meia-noite, o faroleiro levantava-se, lanava um ltimo olhar s mechas e descamos. Na escada encontrvamos o camarada do segundo quarto, que subia a esfregar os olhos, para o qual passava a cabaa e o Plutarco... Depois, antes de nos deitarmos, entrvamos um momento na cmara do ffundo, atravancada de correntes, de grandes pesos, de reservatrios de estanho, de cordas, e ali, luz do seu candeeirinho, o faroleiro escrevia no grande livro do farol, sempre aberto: Meia-noite. Mar encapelado. Tempestade. Navio largo.

58 A AGONIA DA "SMILLANTE" J que o mistral nos levou, a noite passada, para a costa corsa, deixem-me contar-lhes uma espantosa histria martima de que os pescadores falam muito ao sero e a respeito da qual o acaso me forneceu informaes muito curiosas. O caso passou-se h dois ou trs anos. Eu percorria o mar da Sardenha na companhia de sete ou oito marinheiros da alfndega. Rude viagem para um novato! Durante todo o ms de Maro, no tivemos um dia bonito. O vento leste encarniara-se contra ns e o mar no amainava. Uma tarde, impelido pela tempestade, o nosso barco refugiou-se entrada do estreito de Bonifcio, no meio de um macio de ilhotas... O seu aspecto no tinha nada de aprazvel: grandes rochas escalvadas, cobertas de aves, alguns tufos de absinto, moitas de lentiscos e, aqui e ali, no lodo, fragmentos de madeira semiapodrecida. Juro-lhes, porm, que, para passar a noite, aquelas rochas sinistras eram bem melhores do que o camarote de convs de um velho barco, de meia coberta, onde as vagas entravam como em sua casa, e por isso nos contentmos com elas. Logo que desembarcmos, enquanto os marinheiros acendiam o lume para a caldeirada, o patro chamou-me e, mostrando-me um recintozinho de alvenaria branca, perdido na bruma no extremo da ilha, perguntou-me: - Quer ver o cemitrio? - Um cemitrio, patro Lionetti?! Ento, onde que ns estamos? - Nas ilhas Lavezzi, senhor. aqui que esto enterrados os seiscentos homens da Smillante, no prprio stio onde a fragata se perdeu, h dez anos... 59 Pobres homens! No recebem muitas visitas; ao menos, j que estamos aqui, vamos dar-lhes os bons-dias... - Da melhor vontade, patro. Como era triste o cemitrio da Smillante!'... Parece-me estar ainda a v-lo com a sua muralhazinha baixa, a sua porta de ferro, enferrujada, perra, a sua capela silenciosa, e centenas de cruzes negras ocultas pela erva... Nem uma coroa de perptuas, nem uma lembrana! Nada... Ah, pobres mortos abandonados, como deviam ter frio na sua tumba de acaso! Demormo-nos l um momento, ajoelhados. O patro rezava em voz alta. Enormes alcatrazes, nicos guardas do cemitrio, voavam em crculos por cima das nossas cabeas e misturavam os seus gritos roucos com as lamentaes do mar. Terminada a orao, voltmos tristemente para o ponto da ilha onde o barco estava amarrado. Na nossa ausncia, os marinheiros no tinham perdido tempo. Encontrmos uma grande fogueira a arder ao

abrigo de uma rocha e o caldeiro a fumegar. Sentmo-nos roda, com os ps voltados para o lume, e em breve cada um tinha nos joelhos, numa malga de barro vermelho, duas fatias de po negro bem ensopadas de molho. A refeio decorreu em silncio: estvamos molhados, tnhamos fome, e a vizinhana do cemitrio... Contudo, depois das malgas despejadas e dos cachimbos acesos, pusemo-nos a conversar um pouco. Naturalmente, falou-se da Smillante. - No fim de contas, como que as coisas se passaram? - perguntei ao patro, que, com a cabea entre as mos, olhava o lume com ar pensativo. - Como que as coisas se passaram? - respondeu-me o bom Lionetti, com um grande suspiro. - Ai de mim, senhor, ningum no mundo o pode dizer. Tudo o que sabemos que a Smillante, carregada de tropas para a Crimeia, partira de Tulono na vspera tarde, com mau tempo. noite, o tempo piorou. Vento, chuva, mar alteroso como nunca se vira... De manh, o vento amainou um pouco, mas o mar continuou na mesma, e, ainda por cima, uma maldita bruma do diabo no deixava ver nada quatro palmos adiante do nariz... No imagina, senhor, como tais brumas so traioeiras... Mas isso no explica o que aconteceu. Suponho que a Smillante perdeu o leme de manh, porque, apesar da bruma, sem uma avaria nunca o capito teria naufragado aqui. Era um marinheiro rijo, que todos ns conhecamos. Comandara o cruzeiro na Crsega durante trs anos e conhecia a costa to bem como eu, que no conheo outra coisa. - E a que horas supe que a Smillante naufragou? - Deve ter sido ao meio-dia. Sim, senhor, mesmo ao meio-dia... Mas, com mil demnios, com o mar coberto de bruma, o meio-dia no melhor do que uma noite negra como a goela de um lobo!... Um guarda aduaneiro da costa contou-me que naquele dia, cerca das onze e meia, tendo sado da sua casita para prender as portas de madeira das janelas, o vento lhe levara o bon e que, com risco de ser ele prprio levado pelas vagas, correra atrs dele, ao longo da praia, de gatas. O senhor compreende, os guardas da alfndega no so ricos e um bon vale dinheiro... Ora, pareceu a certa altura ao nosso homem, quando levantou a cabea, ter visto perto de si, na bruma, um grande navio desarvorado que corria, aoitado pelo vento, para os lados das ilhas Lavezzi. Tal navio ia to depressa, to depressa, que o guarda no teve tempe de o ver bem. Tudo leva a crer, porm, que era a Smillante, pois cerca de meia hora depois um pastor das ilhas o viu em cima das rochas... Mas est precisamente aqui o pastor a que me referia, senhor, e ele prprio lhe vai contar o caso... Bons dias, Palombo!... Anda aquecer-te um pouco; no tenhas medo. 60 - 61 Um homem encapuzado, que havia momentos eu via andar roda da nossa fogueira e tomara por algum da nossa tripulao, pois ignorava que houvesse um pastor na ilha, aproximou-se de ns medrosamente. Era um velho leproso, meio idiota, atacado no sei de que mal

escorbtico que lhe inchava os lbios e lhes dava aspecto horrvel. Explicaram-lhe com grande dificuldade de que se tratava. Ento, erguendo com o dedo o lbio doente, o velho contou-nos que, com efeito, naquele dia, cerca do meio-dia, ouvira na sua cabana um barulho medonho, vindo dos rochedos. Como a ilha estava toda coberta de gua, no pudera sair e s no dia seguinte, ao abrir a porta, vira a praia coberta de destroos e cadveres, trazidos pelo mar. Apavorado, deitara a correr para a sua barca, a fim de ir a Bonifcio dar a notcia. Fatigado por ter falado tanto, o pastor sentou-se e o patro retomou a palavra: - Sim, senhor, foi este pobre velho que nos foi prevenir. Estava quase louco de pavor, e, desde ento, ficou com o crebro transtornado. A verdade que no era caso para menos... Imagine seiscentos cadveres amontoados na areia, de mistura com bocados de madeira e farrapos de velas... Pobre Smillante!... O mar esmagou-a de tal modo, reduziu-a de tal forma a migalhas, que entre todos os seus destroos o pastor Palombo s com grande custo encontrou com que pudesse fazer uma paliada roda da sua choupana... Quanto aos homens, quase todos desfigurados e horrorosamente mutilados... confrangia v-los agarrados uns aos outros, como cachos... Encontrmos o capito de grande uniforme, o capelo de estola ao pescoo, e num canto, entre duas rochas, um grumete com os olhos abertos... que dava a impresso de ainda estar vivo. Mas no! Estava escrito que ningum escaparia... 62 Aqui, o patro interrompeu-se para gritar: - Cuidado, Nardi! O lume est-se a apagar. Nardi lanou na fogueira mais dois ou trs bocados de tbuas alcatroadas, que se inflamaram, e Lionetti continuou: - O que h de mais triste nesta histria o seguinte: trs semanas antes do sinistro, uma pequena corveta que ia para a Crimeia, como a Smillante, naufragou da mesma forma, quase no mesmo lugar; somente, dessa vez, chegmos a tempo de salvar a tripulao e vinte soldados expedicionrios que iam a bordo... Os pobres expedicionrios estavam em maus lenis, como deve calcular. Levmo-los para Bonifcio e tivemo-los connosco durante dez dias, na marinha... Depois de bem secos e restabelecidos, boas noites! Felicidades! Regressaram a Tulono, onde, algum tempo mais tarde, os embarcaram de novo para a Crimeia... Adivinhe em que navio!... Na Smillante, senhor... Tornmos a encontr-los todos, todos os vinte, no meio dos mortos, no stio onde estamos... Eu prprio recolhi um garboso sargento, de sedosos bigodes louros, um peralvilho de Paris, que hospedara em minha casa e que nos fizera rir constantemente com as suas anedotas... Ao v-lo assim, cortou-se-me o corao... Ah, Santa Madre!... Depois disto, o valente Lionetti, muito comovido, sacudiu a cinza do cachimbo, enrolou-se no seu gabo e deu-me as boas-noites... Durante algum tempo, os marinheiros estiveram ainda a conversar uns com os outros, a meia voz... Em seguida, um aps outro, os cachimbos apagaram-se... No se falou mais... O velho pastor

foi-se embora... Eu fiquei sozinho, a sonhar no meio da tripulao adormecida. Ainda debaixo da impresso da lgubre narrativa que acabara de ouvir, tentei reconstituir mentalmente o pobre navio - 63 desaparecido e a histria daquela agonia de que os alcatrazes tinham sido as nicas testemunhas. Alguns pormenores haviam-me impressionado; o capito de grande uniforme, a estola do capelo, os vinte soldados expedicionrios, ajudaram-me a adivinhar todas as peripcias do drama... Via a fragata largar de Tulono, de noite... Saa do porto. O mar estava mau, o vento terrvel; mas o capito era um valente marinheiro e toda a gente estava tranquila a bordo... De manh, a bruma eleva-se do mar. Comeam a ficar inquietos. Toda a tripulao viera para cima... O capito no saa do tombadilho... Na entreponte, onde os soldados estavam fechados, a escurido era absoluta e a atmosfera irrespirvel. Alguns, adoentados, tinham-se deitado em cima das mochilas. O navio balouava horrivelmente; impossvel estar de p. Conversavam sentados no cho, em grupos, agarrados aos bancos; tinham de gritar para se fazerem ouvir. Havia quem comeasse a sentir medo... Escutem agora! Os naufrgios so frequentes nestas paragens; os expedicionrios que o digam, e o que eles contam no nada tranquilizador. O seu sargento, sobretudo, um parisiense que est sempre a gracejar, causa-lhes arrepios com as suas zombarias: Um naufrgio!... Mas muito divertido, um naufrgio. Apanharemos apenas um banho gelado e depois levar-nos-o para Bonifcio, onde nos daro a comer melros em casa do patro Lionetti. E os expedicionrios riram... De sbito, um estalido... Que foi? Que aconteceu?... - O leme acaba de se partir - diz um marinheiro todo molhado, que atravessa a entreponte a correr. - Boa viagem! - grita o atrevido do sargento, mas isto j no faz rir ningum. Grande tumulto na ponte. A bruma no deixa ver nada. Os marinheiros vo e vm, assustados, s apalpadelas... No h leme! impossvel manobrar... A Smillante, desgovernada, segue ao sabor do vento... neste momento que o guarda aduaneiro a v passar; so onze e meia. proa da fragata ouve-se como que um tiro de canho... Os cachopos! 64 Os cachopos!... o fim, j no h nada a esperar, vo direitos costa... O capito desce ao seu camarote... Passado um momento, reocupa o seu lugar no tombadilho, de grande uniforme... Quis vestir-se de gala para morrer. Na entreponte, os soldados, ansiosos, entreolham-se sem dizer nada... Os doentes tentam levantar-se... O sargentozinho j no

ri... ento que a porta se abre e que o capelo aparece no limiar, com a sua estola. - De joelhos, meus filhos! Toda a gente obedece. Em voz retumbante, o padre inicia a orao dos agonizantes. De sbito, um choque formidvel, um grito, um nico grito, um grito imenso, braos estendidos, mos que se agarram, olhares espantados, nos quais a viso da morte passa como um relmpago... Misericrdia! Foi assim que passei toda a noite a sonhar, a evocar, a dez anos de distncia, a alma do pobre navio cujos destroos me cercavam... Ao longe, no estreito, a tempestade rugia; a chama do acampamento inclinava-se ao sabor das rajadas, e eu ouvia o nosso barco danar junto das rochas e fazer ranger a amarra. 65 OS GUARDAS ADUANEIROS

O batel Enlie, de Porto Velho, a bordo do qual fiz a lgubre viagem s ilhas Lavezzi, era uma velha embarcao da alfndega, de meia coberta, onde s havia para nos abrigarmos do vento, das vagas e da chuva um camarotezinho alcatroado onde mal cabiam uma mesa e dois beliches. Por isso, eram dignos de lstima os nossos marinheiros quando fazia mau tempo. Os seus rostos escorriam, as blusas ensopadas fumegavam como roupa branca numa estufa, e em pleno Inverno os desgraados passavam assim dias inteiros, e at noites, acocorados em cima dos seus bancos molhados, a tiritar por via desta humidade doentia; porque no se podiam acender fogueiras a bordo e a praia era muitas vezes difcil de alcanar... E, no entanto, nenhum destes homens se queixava. Debaixo dos maiores temporais, vi-os sempre com a mesma placidez, com o mesmo bom humor. E, contudo, que triste vida a dos marinheiros da alfndega! Quase todos casados, com mulher e filhos em terra, andam meses por fora, a bordejar estas costas to perigosas. Para se alimentarem, s tm po bolorento e cebolas bravas. Nem vinho, nem carne, porque a carne e o vinho so caros e eles s ganham quinhentos francos por ano! Quinhentos francos por ano! Imaginem como deve ser negra a sua cabana na marinha, e se os filhos no ho-de andar descalos!... Mas no importa! Toda esta gente parece contente. Havia r, junto do camarote, uma grande selha cheia de gua da chuva onde a tripulao ia beber, e recordo-me de que, depois da ltima golada, cada um daqueles pobres diabos sacudia o copo com um ah! de satisfao, com uma expresso de bem-estar, ao mesmo tempo cmica e comovente. 66 O mais alegre, o mais satisfeito de todos, era um pequeno

bonifaciano, tisnado e rechonchudo, que se chamava Palombo. Passava a vida a cantar, mesmo durante os maiores temporais. Quando as vagas se tornavam alterosas, o cu sombrio e baixo se enchia de granizo e ficvamos todos de nariz no ar, agarrados escota, espera da rajada iminente, ento, no meio do grande silncio e da ansiedade de bordo, a voz calma de Palombo comeava: "No, monsenhor, honra demasiada. Lisette ajui... zada, Fica na al... deia... E a rajada soprava forte, fazia gemer os aprestos, sacudia e inundava o barco, mas a cano do marinheiro continuava o seu curso, equilibrando-se como uma gaivota na crista das vagas. s vezes, o vento acompanhava-o com violncia e no deixava entender as palavras; mas entre cada pancada de mar, no meio do gorgolejar da gua a escoar-se, o estribilhozinho voltava sempre: Lisette ajui... zada, Fica na al... deia... Um dia, porm, em que ventava e chovia muito, no o ouvi. O caso pareceu-me to extraordinrio que deitei a cabea fora do camarote e gritei: - Eh, Palombo! Ento hoje no se canta? Palombo no respondeu. Estava imvel, deitado debaixo do seu banco. Aproximei-me dele. Batia os dentes e todo o seu corpo tremia de febre. - Tem uma pountoura - disseram-me os seus camaradas, tristemente. 67 Chamam pountoura a uma pontada, a uma pleurisia. O grande cu plmbeo, o barco encharcado, o pobre doente febril embrulhado num velho capote de borracha que brilhava de chuva como uma pele de foca, tudo isto tinha um ar to lgubre como eu nunca vira. Em breve, o frio, o vento, o balano das vagas, agravaram o seu mal. Sobreveio-lhe o delrio e foi necessrio demandar terra. Depois de muito tempo e de muitos esforos, entrmos ao entardecer num portinho rido e silencioso, onde o nico sinal de vida era o voo circular de alguns gouailles. A toda a volta da praia erguiam-se altas rochas escarpadas e macios inextricveis de arbustos verdes, de um verde-escuro, perene. Em baixo, beira da gua, uma casinha branca, de persianas cinzentas: era o posto da alfndega. No meio daquele deserto, aquela construo do Estado, numerada como o bon de um uniforme, tinha um no sei qu sinistro. Foi para l que levmos o infeliz Palombo. Triste asilo para um doente! Encontrmos o guarda aduaneiro a preparar-se para comer, ao canto da lareira, com a mulher e os filhos. Toda aquela gente tinha rosto macilento, plido, e olhos dilatados, febris. A me, ainda nova, com um pequenito nos braos, tiritava ao falar connosco. - um posto terrvel - disse-nos baixinho o inspector. - Somos obrigados a render os nossos guardas de dois em dois anos. A febre palustre devora-os... Era necessrio, porm, arranjar um mdico, mas s havia um em Sartne, ou seja, a seis ou oito lguas dali. Que fazer? Os nossos marinheiros j no podiam mais e era muito longe para mandar l um dos garotos. Ento a me debruou-se da janela e chamou:

- Cecco!... Cecco! E vimos entrar um rapago desempenado, autntico tipo de caador furtivo ou de bandido. com o seu barrete de l escura e o seu pelone de pele de cabra. J reparara nele ao desembarcar, sentado diante da porta, com o seu cachimbo vermelho nos dentes e uma espingarda entre os joelhos; 68 mas, no sei porqu, fugira assim que nos aproximramos. Talvez julgasse que trazamos gendarmes connosco. Quando ele entrou, a mulher do guarda corou um pouco. - meu primo... - disse ela. - No h perigo de se perder no matagal. Depois, falou-lhe em voz baixa e mostrou-lhe o doente. O homem inclinou-se sem responder, saiu, assobiou ao co e partiu de espingarda ao ombro, saltando de rocha em rocha com as suas pernas compridas. Entretanto, as crianas, que a presena do inspector parecia atemorizar, acabaram pressa o seu jantar de castanhas e de brucio (queijo branco). E sempre gua e s gua na mesa! E, no entanto, um copo de vinho no faria mal aos pequenos. Ah, misria! Por fim, a me foi deit-los; o pai acendeu a sua lanterna e saiu para inspeccionar a costa e ns ficmos lareira a velar o nosso doente, que se agitava no seu catre, como se estivesse ainda em pleno mar, sacudido pelas vagas. Para o aliviarmos um pouco da pountoura, aquecamos seixos e tijolos e pnhamo-los no flanco. Uma ou duas vezes, ao aproximar-me do seu leito, o desgraado reconheceu-me e, para me agradecer, estendeu-me penosamente a mo, uma grande mo spera e ardente como um daqueles tijolos sados do lume... Triste sero! L fora, o mau tempo voltara com o cair da noite, e o fragor, o ribombar, o jorrar da espuma, assinalavam a batalha das rochas com a gua. De tempos a tempos, uma rabanada de vento do largo conseguia insinuar-se na baa e envolvia a nossa casa. Sentamo-lo pelo avivar sbito da chama que iluminava bruscamente os rostos melanclicos dos marinheiros, agrupados em torno da chamin a olhar o fogo com a placidez de expresso que d o hbito das grandes extenses e dos horizontes uniformes. s vezes, Palombo tambm gemia baixinho. Ento, todos os olhos se viraram para o canto escuro onde o pobre camarada se encontrava s portas da morte, 69 longe dos seus, sem socorro, e todos os peitos se dilatavam e ouviam-se grandes suspiros. Era tudo quanto podia arrancar queles trabalhadores do mar, pacientes e dceis, o sentimento do seu prprio infortnio. Nem revoltas, nem greves. Um suspiro e mais nada!... Creio, no entanto, que me engano. Ao passar diante de mim para deitar um feixe de lenha mida no lume, um deles disse-me baixinho, em voz magoada:

- Veja, senhor... s vezes, passamos alguns tormentos na nossa profisso! 70 O CURA DE CUCUGNAN Todos os anos, na festa da Candelria, os poetas provenais publicam em Avinho um engraado livrinho completamente recheado de belos versos e de bonitas histrias. O deste ano chegou-me neste instante e encontrei nele uma fbula adorvel que vou tentar traduzir-vos, abreviando-a um pouco... Parisienses, estendei os cestos. a pura farinha-flor provenal que vos vai ser servida desta vez... O abade Martin era cura... de Cucugnan. Bom como o po, muito franco, amava paternalmente os seus Cucugnanenses. Para ele, Cucugnan seria o Paraso na Terra se os Cucugnanenses lhe dessem um pouco mais de ateno. Mas - ai! - as aranhas teciam as teias no confessionrio e no belo domingo de Pscoa as hstias ficavam no fundo do santo cibrio. O bom padre trazia o corao mortificado e pedia constantemente a Deus a graa de no o levar antes de reconduzir ao redil o seu rebanho tresmalhado. Ora, ides ver como Deus o escutou. Um domingo, depois do Evangelho, o abade Martin subiu ao plpito. - Meus irmos - disse ele -, acreditai-me se quiserdes. A noite passada encontrei-me, eu, miservel pecador, porta do Paraso. Bati e So Pedro veio abrir! -Olha! Sois vs, meu caro Martin? - disse-me ele. - Que bom vento vos traz por c?... Em que vos posso servir? 71 - Meu bom So Pedro, vs, que tendes o Livro das Almas e a Chave, poder-me-eis dizer, se no sou demasiado curioso, quantos cucugnanenses tendes no Paraso? - No tenho nenhum motivo para vos recusar o que me pedis, Martin. Sentai-vos para vermos isso juntos. E So Pedro pegou no seu grande livro, abriu-o e ps os culos. -Ora vejamos: Cucugnan, dizeis vs. Cu... Cu... Cucugnan. C est: Cucugnan. Meu caro Martin, a pgina est toda em branco. Nem uma alma... so tantos os cucugnanenses como os espores numa perua. - Como?! Ningum de Cucugnan est aqui? Ningum? No possvel! Vede melhor... - Ningum, santo homem. Vede vs mesmo, se julgais que estou a brincar. -Pobre de mim! Bati os ps e, de mos postas, implorei misericrdia. Ento, So Pedro disse-me: - Vamos, Martin, no vos mortifiqueis assim, que podeis ter uma apoplexia. A culpa no vossa, no fim de contas. Talvez os vossos

Cucugnanenses tenham de passar por uma quarentenazinha no Purgatrio... -Ah, por caridade, grande So Pedro! Permiti, ao menos, que os possa ver e confortar. -Da melhor vontade, meu amigo... Tomai, calai depressa estas sandlias, porque os caminhos no so muito bons... Assim estais melhor... Agora, caminhai a direito, sempre em frente. Vedes l adiante, ao fundo, aquela curva? Encontrareis uma porta de prata, toda constelada de cruzes negras... mo direita... Batei, que vo-la abriro... Adeusinho! Desejo-vos sade e alegria. Caminhei... caminhei! Que estafa! Sinto arrepios s de pensar em tal coisa. Um carreirinho cheio de silvas, de rubis brilhantes e de serpentes que silvavam, levou-me at porta de prata. 72 - Truz-truz! -Quem bate? - perguntou-me uma voz rouca e dolente. - O cura de Cucugnan. -De...? - De Cucugnan. - Ah!... Entrai. Entrei. Um grande anjo muito belo, com duas asas negras como a noite, uma tnica resplandecente como o dia e uma chave de diamante pendente da cintura, escrevia - crre-crre - num grande livro, ainda maior do que o de So Pedro... - Afinal, que quereis, que procurais? - inquiriu o anjo. - Belo anjo de Deus, queria saber (sou talvez demasiado curioso) se tendes aqui os Cucugnanenses. - Os...? - Os Cucugnanenses, as pessoas de Cucugnan... de quem sou prior. - Ah! Sois o abade Martin, no verdade? - Para vos servir, Sr. Anjo. - Dissestes de Cucugnan... E o anjo abriu e folheou o seu grande livro, molhando o dedo de saliva para passar melhor as folhas... - Cucugnan - disse ele, soltando um prolongado suspiro. - Abade Martin, no temos no Purgatrio ningum de Cucugnan. - Jesus! Maria! Jos! Ningum de Cucugnan no Purgatrio! Oh, Santo Deus! Onde estaro eles ento? - Eh, santo homem, esto no Paraso! Onde diacho quereis que estivessem? 73 - Mas do Paraso venho eu... - Vindes de l?... E ento? - Ento, no esto l!... Ah, Santa Me dos anjos!... - Que quereis, Sr. Cura? Se no esto no Paraso, nem no Purgatrio, e no h mais nada de permeio, esto... - Santa Cruz! Jesus, filho de David! Ai! Ai! Ai! Ser possvel?... Ter mentido o grande So Pedro?... Contudo, no

ouvi cantar o galo!... Ai, pobres de ns! Como irei eu para o Paraso se os meus cucugnanenses no esto l? - Escutai, meu pobre abade Martin: uma vez que quereis, custe o que custar, certificar-vos de tudo e ver com os vossos prprios olhos o que se passa, tomai por esse carreiro, deitai a correr, se podeis correr, e encontrareis esquerda um grande porto. L, dar-vos-o todas as informaes. Deus vos acompanhe! E o anjo fechou a porta. Era um carreiro comprido, todo pavimentado de brasas rubras. Eu cambaleava, como se tivesse bebido; tropeava a cada passo; estava encharcado, cada plo do meu corpo tinha uma gota de suor e arquejava de sede... Mas, por minha f, graas s sandlias que o bom So Pedro me emprestara, no queimava os ps. Depois de dar muitos passos em falso, manquejando, vi minha mo esquerda uma porta... no, um porto, um enorme porto, completamente escancarado, como a porta de um grande forno. Oh, meus filhos, que espectculo! Ali, no me perguntaram o nome; ali, no havia nenhum registo. s fornadas e com a porta toda franca, entrava-se ali, meus irmos, como ao domingo vs entrais na taberna. O suor escorria-me em gotas grossas e, no entanto, estava transido, sentia calafrios. Tinha os cabelos em p. 74 Cheirava-me a queimado, a carne torrada, a qualquer coisa como o odor que se espalha na nossa Cucugnan quando Eli, o ferrador, queima, para ferrar, o casco de um burro velho. Faltava-me a respirao naquele ar ftido e abrasado! Ouvia um clamor horrvel, gemidos, urros e pragas. - Ento, entras ou no entras? - disse-me, picando-me com a sua forquilha, um demnio chifrudo. - Eu? No entro. Sou um amigo de Deus. - s um amigo de Deus... Eh, ... tinhoso! Que vens fazer aqui?... -Venho... Ah! No me diga mais nada, que j nem me posso ter nas pernas... Venho... venho de longe... perguntar-vos humildemente... se... se, por obra do acaso... no tereis aqui... algum... algum de Cucugnan... - Ah, fogo de Deus! Ests a fazer-te tolo, tu, como se no soubesses que toda a Cucugnan est aqui. Escuta, corvo disforme, olha e vers como tratamos aqui os teus famosos Cucugnanenses... E vi, no meio de um medonho turbilho de chamas: O mandrio do Coq-Galine - todos vs o conhecestes, meus irmos-, o Coq-Galine que se emborrachava com tanta frequncia e que no menos frequentemente sacudia as pulgas sua pobre Clairon. Vi Catarinet... a vadiazita... com o nariz no ar... que pernoitava sozinha no celeiro... Creio que vos lembrais disso, meus brejeiros!... Mas passemos adiante, pois j falei demasiado dela. Vi Pascal Doigt-de-Poix, que fazia o seu azeite com as azeitonas do Sr. Julien. Vi Babet, a respigadora, que, enquanto respigava, para atar mais depressa o seu molho, roubava s mos-cheias o trigo das medas.

Vi o Tio Grapasi, que lubrificava to bem a roda do seu carrinho de mo. 75 E Dauphine, que vendia to cara a gua do seu poo. E o Tortillard, que quando me encontrava com o vitico seguia o seu caminho, com o barrete na cabea e o cachimbo na boca... e arrogante como Artbano... como se tivesse encontrado um co. E Coulau, com a sua Zette, e Jacques, e Pierre. e Toni... Impressionado, lvido de medo, o auditrio gemia, vendo no Inferno escancarado este o pai, aquele a me, uns a av, outros a irm... - Vs sentis bem, meus irmos - insistia o bom do abade Martin -, vs sentis bem que isto no pode continuar. Sou responsvel pelas almas e quero, quero salvar-vos do abismo em que estais prestes a rolar irreflectidamente. Amanh, meterei mos obra; amanh mesmo, sem mais tardana. E a obra ter de ir avante! Ser isto que farei. Para que tudo saia bem, necessrio fazer tudo com mtodo. Iremos pouco a pouco, como em Jonquires quando se dana. Amanh, segunda-feira, confessarei os velhos e as velhas. No custa nada. Tera-feira, as crianas. Ser rpido. Quarta-feira, os rapazes e as raparigas. Isso j dever demorar mais. Quinta-feira, os homens. Abreviaremos. Sexta-feira, as mulheres. Direi: nada de patranhas! Sbado, o moleiro!... No de mais um dia s para ele... E se no domingo tivermos terminado, sentir-nos-emos muito felizes. Como sabeis, meus filhos, quando o trigo est maduro, preciso ceif-lo; quando o vinho est tirado, preciso beb-lo. Aqui h bastante roupa suja e trata-se de a lavar e de a lavar bem. esta a graa que vos desejo. men! Dito e feito. Procedeu-se barrela. Depois daquele domingo memorvel, o perfume das virtudes de Cucugnan respira-se dez lguas em redor. E o bom pastor, o abade Martin, feliz e cheio de alegria, sonhou uma noite destas que, seguido de todo o seu rebanho, subia, em resplandecente procisso, no meio de crios acesos, de uma nuvem de incenso que embalsamava o ar e de meninos de coro que cantavam Te Deum, o caminho luminoso da cidade de Deus. Aqui est a histria do cura de Cucugnan, tal qual me ordenou que vo-la contasse o grande velhaco do Roumanille, que a ouviu ele prprio de outro bom companheiro. 76 - 77 OS VELHOS - Uma carta, Tio Azan?

- Sim, senhor... e vem de Paris. Estava todo orgulhoso por ela vir de Paris, o bom do Tio Azan... Eu, no. Qualquer coisa me dizia que aquela parisiense da Rua Jean-Jacques, caindo na minha mesa to inesperadamente e to de manhzinha, me ia fazer perder todo o dia. E no me enganava, como ides ver: Preciso que me prestes um servio, meu amigo. Vais fechar o teu moinho por um dia e partir imediatamente para Eyguires... Eyguires um grande burgo a trs ou quatro lguas de onde ests; uma passeata. Assim que chegares, procurars o Convento das rfs. A primeira casa depois do convento uma casa baixa, de persianas cinzentas, com um jardinzito nas traseiras. Entrars sem bater - a porta est sempre aberta - e, depois de entrares, gritars bem alto: Bons dias, minha gente! Sou o amigo de Maurice... Ento, vers dois velhinhos - oh, mas velhos, velhos, arqid-velhos! - estenderem-te os braos do fundo das suas grandes poltronas, e abra-los-s da minha parte, com todo o teu corao, como se te pertencessem. Depois, conversareis; eles falar-te-o de mim, s de mim, contar-te-o mil tolices, que escutars sem te rires... No te rirs, hem?... So os meus avs, dois entes para quem sou tudo na vida e que no me vem h dez anos... Dez anos muito tempo! Mas que queres? A mim, retm-me Paris; a eles, a sua muita idade... So to velhos que, se me viessem ver, ficariam pelo caminho... Felizmente, ests tu a, meu caro moleiro, e, 78 ao abraarem-te, as pobres criaturas julgaro abraar-me um pouco a mim mesmo... Tenho-lhes falado tantas vezes de ns e da nossa boa amizade, que... Diabos levem a amizade! Justamente naquela manh estava um tempo admirvel, mas que no era grande coisa para percorrer estradas: demasiado mistral e demasiado sol, um autntico dia da Provena. Quando a maldita carta chegou, j escolhera o meu cagnard (refgio) entre duas rochas e pensava ficar l todo o dia, como um lagarto, a embriagar-me de sol e a ouvir cantar os pinheiros... Enfim, que havia de fazer? Fechei o moinho a praguejar, meti a chave debaixo da gateira, peguei na bengala e no cachimbo e pus-me a caminho. Cheguei a Eyguires cerca das duas horas. A vila estava deserta; toda a gente andava nos campos. Nos ulmeiros da alameda, brancos de poeira, as cigarras cantavam como em pleno Grau. Na praa da mairie, um burro apanhava sol, os pombos esvoaavam roda da fonte da igreja, mas no havia ningum que me indicasse o orfanato. Por sorte, apareceu-me de repente uma velha fada, agachada a fiar ao canto da sua porta. Disse-lhe o que procurava e, como era uma fada muito poderosa, bastou-lhe levantar a roca:

num pice, o Convento das rfs ergueu-se diante de mim como que por magia... Era um casaro desagradvel e negro, todo orgulhoso por exibir por cima do seu portal ogivado uma velha cruz de arenito vermelho, com uma inscriozinha em latim volta. Ao lado desta casa, vi outra mais pequena. Persianas cinzentas, jardim nas traseiras... Reconheci-a imediatamente e entrei sem bater. Recordarei toda a vida aquele comprido corredor fresco e calmo, a parede pintada de cor-de-rosa, o jardinzito que se adivinhava ao fundo atravs de um estore claro e as flores e os raminhos de violetas 'desbotados pintados em todas as almofadas das portas. Parecia-me ter entrado em casa de algum velho bailio do tempo de Sedaine... 79 ao fundo do corredor, esquerda, por uma porta entreaberta, ouvia-se o tiquetaque de um grande relgio e uma voz de criana, mas de criana de escola, que lia, parando em cada slaba: En...to... San...to... I...re...neu...gri...tou... Eu... sou... o... fru...men...to... do... Se...nhor... ... pr...ci...so... que... eu... sei...j... mo......do... pe...los... den...tes... des...tes... a...ni...mais... Aproximei-me devagarinho da porta e espreitei... No sossego e meia-luz de um quartito, um velhinho de faces rosadas, engelhado at ponta dos dedos, dormia no fundo de uma poltrona, com a boca aberta e as mos nos joelhos. A seus ps, uma rapariguinha vestida de azul - grande romeira e touquinha, o hbito das rfs - lia a vida de Santo Ireneu num livro maior do que ela... Aquela leitura miraculosa produzira efeito sobre toda a casa. O velho dormia na sua poltrona, as moscas dormiam no tecto e os canrios na gaiola, ao fundo, junto da janela. O grande relgio ressonava: tiquetaque,- tiquetaque. Em todo o quarto, s se encontrava acordada uma rstia de luz que caa, direita e branca, entre as persianas fechadas, cheia de centelhas vivas e de valsas microscpicas... No meio do torpor geral, a criana continuava a sua leitura, com ar grave: De... re...pen...te... dois... l...es... pr...ci...pi...-.ta... ram...se... so...bre... ele... e... de...vo...ra...ram...no... Foi neste momento que entrei... Se os lees de Santo Ireneu se tivessem precipitado no quarto, no produziriam mais espanto do que eu. Um verdadeiro lance de teatro! A pequena soltou um grito, o grande livro caiu, os canrios e as moscas acordaram, o relgio de sala comeou a dar horas, o velho soergueu-se sobressaltado, muito aflito, e eu prprio, um pouco perturbado, parei no limiar e gritei bem alto: - Bons dias, minha gente! Sou amigo de Maurice. Oh! Ento, se vissem o pobre velho, se o vissem vir para mim com os braos estendidos, abraar-me, apertar-me as mos, 80

e correr desorientado pelo quarto, ao mesmo tempo que dizia: - Meu Deus! Meu Deus!... Todas as rugas do seu rosto sorriam. Estava afogueado. Balbuciava: -Ah, senhor!... Ah, senhor!... Depois, ia at ao fundo e chamava: - Mamette! Abriu-se uma porta, ouviu-se um passinho de rato no corredor... e apareceu Mamette. Nunca vira nada to bonito como aquela velhinha com a sua touca de fitas, o seu vestido castanho-claro e o seu leno bordado, que conservava na mo, em minha honra, moda antiga... Pormenor enternecedor: pareciam-se um com o outro. Com um jeitinho e algumas fitas amarelas, ele tambm se poderia chamar Mamette. Somente, a verdadeira Mamette devia ter chorado muito na sua vida e estava ainda mais engelhada do que ele. Como ele tambm, tinha junto de si uma criana do orfanato, uma guardazinha de romeira azul, que nunca a deixava; e ver os velhotes protegidos pelas rfs era o que se podia imaginar de mais tocante. Mal entrou, Mamette comeou por me fazer uma grande vnia, mas com uma palavra o velho cortou-lhe a vnia em duas: o amigo de Maurice... De repente, ela comeou a tremer, a chorar, esqueceu-se do leno, ps-se vermelha, muito vermelha, ainda mais vermelha do que ele... Velhos! No tm mais de uma gota de sangue nas veias e menor comoo ela sobe-lhes ao rosto...; - Depressa, depressa, uma cadeira...--disse a velha sua pequenita. - Abre as persianas!... - gritou o velho sua. E, tomando-me cada um por sua mo, levaram-me em passinhos midos e apressados at janela, que foi aberta de par em par - 81 para me verem melhor. Aproximaram-se as poltronas, instalei-me entre os dois num banquinho, com as pequenas de azul atrs de ns, e o interrogatrio comeou: - Como est ele? Que faz? Porque no veio? Est contente?... E mais isto e mais aquilo! E assim durante horas. Eu respondia o melhor que podia a todas as suas perguntas, dava a respeito do meu amigo os pormenores que sabia, inventava descaradamente os que ignorava e tomava sobretudo o cuidado de no confessar que nunca notara se as suas janelas fechavam bem ou de que 'cor era o papel do seu quarto. - O papel do seu quarto!... azul, minha senhora, azul-claro, com grinaldas... - Deveras? - perguntava a pobre velha, comovida; e acrescentava, virando-se para o marido: - um excelente rapaz! - Oh, sim, um excelente rapaz!-confirmava ele, com entusiasmo. E, enquanto falei, no cessaram de trocar acenos de cabea, sorrisinhos cmplices, piscadelas de olho, ares de entendimento, nem o velho de se aproximar para me dizer: - Fale mais alto... Ela um bocado dura de ouvido. E ela, por seu turno:

- Um pouco mais alto, peo-lhe!... Ele no ouve muito bem... Ento, levantei a voz e ambos me agradeceram com um sorriso; e naqueles sorrisos murchos com que me brindavam, procurando at ao fundo dos meus olhos a imagem do seu Maurice, comoveu-me muito encontrar a imagem vaga, velada, quase imperceptvel, do meu amigo, como se o visse sorrir-me de muito longe, do meio da neblina. 82 De repente, o velho endireitou-se na sua poltrona. - Mas agora me lembro, Mamette... ele, se calhar, ainda no almoou! E Mamette, aflita, erguendo os braos ao cu: - Sem almoar!... Meu Deus!... Julguei tratar-se ainda de Maurice e ia a responder que o excelente rapaz s esperava pelo meio-dia para se sentar mesa. Mas no, era j de mim que se falava; e ento que foi digna de se ver a sua atrapalhao quando confessei que ainda estava em jejum. - Depressa, um talher, pequenas! A mesa no meio do quarto, a toalha do domingo, os pratos de flores. E no se riam tanto, se fazem favor! Despachemo-nos... Creio bem que se despacharam. Apenas o tempo preciso para quebrar trs pratos e o almoo estava servido. - Um bom almocinho!- dizia-me Mamette, levando-me para a mesa. - O que tem de comer sozinho... Ns j almomos de manh. Pobres velhos! A qualquer hora que os encontremos, comeram sempre de manh. O bom almocinho de Mamette eram dois dedos de leite, tmaras e uma barquette, qualquer coisa como uma filh, o que chegaria para ela e os seus canrios se alimentarem pelo menos durante oito dias... E dizer que eu, sozinho, dei conta de todas aquelas provises!... Tambm, que indignao em torno da mesa! Como as pequenas cochichavam e se acotovelavam, e no seu poleiro, ao fundo da gaiola, como os canrios tinham o ar de dizer: Oh, aquele senhor capaz de comer a barquette toda! Comi-a toda, com efeito, e quase sem dar por isso, ocupado como estava a olhar minha volta a sala clara e aprazvel, onde pairava como que um aroma a coisas antigas... Havia, sobretudo, duas caminhas das quais no podia tirar os olhos. 83 Aquelas camas, quase dois beros, imaginava-as de madrugada ao lusco-fusco, quando eles estavam ainda escondidos debaixo dos seus grandes cortinados franjados. Batem trs horas, a hora a que todos os velhos acordam. - Dormes, Mamette? - No, meu amigo. -No verdade que Maurice um excelente rapaz? - Oh, sim, um excelente rapaz.

E imaginava-os a conversar assim s por ter visto as duas caminhas de velho colocadas ao lado uma da outra... Entretanto, passava-se um drama terrvel do outro lado do quarto, diante do armrio. Tratava-se de tirar l de cima, da ltima prateleira, certo frasco de cerejas em aguardente que esperava Maurice havia dez anos e que queriam abrir para me obsequiar. A despeito das splicas de Mamette, o velho teimara em ir ele prprio buscar as suas cerejas; e, empoleirado numa cadeira, com grande terror da mulher, tentava chegar l acima... Imaginem este quadro: o velho que treme e que sobe, as pequenas agarradas cadeira, Mamette atrs dele, arquejante, com os braos estendidos, e por cima de tudo isto um leve perfume de bergamota, que se exala do armrio aberto e das grandes pilhas de roupa branca muito bem lavada... Era encantador. Enfim, depois de muitos esforos, conseguiram tirar do armrio o famoso frasco e, com ele, um velho copo de prata todo amassado, o copo de Maurice quando era pequeno. Encheram-no de cerejas at acima; Maurice gostava tanto de cerejas! E, enquanto me servia, o velho dizia-me ao ouvido, com ar de gula: - uma grande felicidade para si pod-las comer!... Foi a minha mulher quem as preparou... Vai provar o que bom. Ai de mim! A mulher preparara-as, mas esquecera-se de as aucarar. Que querem? As pessoas tornam-se distradas - 84 com a idade. Eram intragveis as suas cerejas, minha pobre Mamette... Mas isso no me impediu de as comer todas, sem pestanejar. Terminada a refeio, levantei-me para me despedir dos meus anfitries. Quereriam talvez reter-me um pouco mais, para conversarmos acerca do seu excelente rapaz, mas a noite aproximava-se, o moinho ficava longe e era necessrio partir. O velho levantara-se ao mesmo tempo que eu. - Mamette, o meu casaco!... Quero acompanh-lo at praa. Estou certo de que, no seu ntimo, Mamette achava que j estava bastante frio para ele me acompanhar praa; mas no deixou transparecer nada do que sentia. Somente, enquanto o ajudava a enfiar as mangas do casaco - um belo casaco cor de tabaco de Espanha, com botes de madreprola -, ouvi a adorvel criatura dizer-lhe docemente: - No vens demasiado tarde, pois no? E ele, com um arzinho malicioso: - Eh! Eh!... No sei... talvez... Em seguida, olharam-se a rir, as pequenas riram-se de os ver rir e no seu canto os canrios riram tambm, a seu modo... Aqui para ns, creio que o aroma das cerejas deixara todos um pouco embriagados. A noite caa quando samos, o av e eu. A pequena vestida de azul seguiu-nos de longe para o reconduzir a casa; mas ele no a via e estava todo ufano por caminhar pelo meu brao, como um homem. Mamette, radiante, observava isto do limiar da porta e, enquanto nos olhava, acenava encantadoramente com a cabea, como se

quisesse dizer: Assim mesmo, meu pobre homem!... Ainda caminha. 85 BALADAS EM PROSA Quando abri esta manh a minha porta, havia em torno do moinho um grande tapete branco de neve. A erva brilhava e estalava como vidro; toda a colina tiritava... hoje, a minha querida Provena resolveu mascarar-se de pas do Norte; e entre os pinheiros franjados de geada e os tufos de alfazema abertos em ramos de cristal que escrevo estas duas baladas de inspirao um pouco germnica, enquanto a geada me brinda com as suas centelhas brancas e l no ciMo, no cu claro, grandes tringulos de cegonhas vindas do pas de Henri Heine descem para Camargue, gritando: Est frio... frio... I A MORTE DO DELFIM O pequeno delfim est doente, o pequeno delfim vai morrer... Em todas as igrejas do reino, o Santssimo Sacramento conserva-se exposto dia e noite e ardem grandes crios pelo restabelecimento do infante real. As ruas da velha capital esto tristes e silenciosas, os sinos no tocam, as carruagens vo a passo... Nas imediaes do palcio, os burgueses curiosos olham, atravs das grades, para os suos de faixas douradas que conversam nos ptios com ar importante. Todo o castelo est inquieto... Camareiros, mordomos, sobem e descem a correr as escadarias de mrmore... As galerias esto cheias de pajens e de cortesos vestidos de seda, 86 que andam de grupo em grupo cata de notcias em voz baixa. Nos amplos patamares, as damas de honor, lacrimosas, fazem grandes vnias e enxugam os olhos com bonitos lenos bordados. Na estufa das laranjeiras h uma numerosa assembleia de mdicos togados. Vem-se, atravs dos vidros, agitar as longas mangas negras e inclinar doutoralmente as perucas frisadas... O aio e o escudeiro do pequeno delfim passeiam diante da porta, espera das decises da Faculdade. Moos de cozinha passam por eles sem os saudar. O Sr. Escudeiro pragueja como um pago e o Sr. Aio recita versos de Horcio... De vez em quando, l em baixo, para os lados das cavalarias, ouve-se um prolongado relincho plangente. o alazo do pequeno delfim que os palafreneiros esqueceram e que chama tristemente por eles diante da manjedoura vazia.

E o rei? Onde est monsenhor o rei? O rei est fechado sozinho num quarto, no extremo do castelo... As majestades no gostam que as vejam chorar... Para a rainha, outra coisa. Sentada cabeceira do pequeno delfim, tem o belo rosto banhado de lgrimas e solua bem alto diante de todos, como qualquer mercadora de panos. Na sua caminha de rendas, o pequeno delfim, mais branco do que as almofadas em que est deitado, repousa com os olhos fechados. Julgam que ele dorme, mas no dorme. O pequeno delfim no dorme... Vira-se para a me e, ao v-la chorar, diz-lhe: - Senhora Rainha, porque chorais? porque acreditais sinceramente que vou morrer? A rainha quer responder, mas os soluos impedem-na de falar. - No choreis, Sr.a Rainha; esqueceis que sou o delfim e que os delfins no podem morrer assim... A rainha solua ainda mais alto e o pequeno delfim comea a assustar-se. 87 - Basta! - diz ele. - No quero que a morte me venha buscar e saberei impedi-la de entrar aqui... Mandem vir imediatamente quarenta lansquenetes bem fortes para ficarem de guarda em torno do nosso leito!... Que cem grandes canhes velem dia e noite, com a mecha acesa, debaixo das nossas janelas! E desgraada da morte se ousar aproximar-se de ns!... Para satisfazer os desejos do infante real, a rainha faz um aceno. Ouvem-se imediatamente os grandes canhes rodar no ptio e quarenta grandes lansquenetes, de partazana em punho, vm enfileirar-se em volta do quarto. So todos velhos soldados de bigodes grisalhos. O pequeno delfim bate as mos ao v-los. Reconhece um e chama-o: - Lorrain! Lorrain! O soldado d um passo para o leito. - Gosto muito de ti, meu velho Lorrain... Deixa-me ver um pouco o teu grande sabre... Se a morte me quiser levar, havemos de a matar, no verdade? Lorrain responde: - Sim, monsenhor. E duas grossas lgrimas 'Correm-lhe pelas faces tisnadas. Neste momento, o capelo aproxima-se do pequeno delfim e fala-lhe demoradamente em voz baixa, ao mesmo tempo que lhe mostra um crucifixo. O pequeno delfim escuta-o com ar muito admirado e depois interrompe-o de repente: - Compreendo bem o que me dizeis, Sr. Abade; mas, enfim, no poderia o meu amiguinho Beppo morrer em meu lugar, dando-lhe muito dinheiro?... O capelo continua a falar-lhe em voz baixa e o pequeno delfim parece cada vez mais admirado. Quando o capelo termina, o pequeno delfim responde-lhe, com um suspiro: - Tudo o que me dizeis bem triste, Sr. Abade; mas uma coisa me conforta: que l em cima, no paraso das estrelas, continuarei

a ser o delfim... Sei que Nosso Senhor meu primo - 88 e que no pode deixar de me tratar de acordo com a minha condio. Depois acrescenta, virando-se para a me: - Que me tragam os meus mais belos trajos, o meu gibo de arminho branco e os meus escarpins de veludo! Quero apresentar-me bem vestido aos anjos e entrar no Paraso vestido de delfim. Pela terceira vez o capelo se inclina junto do pequeno delfim e lhe fala demoradamente em voz baixa... No meio do seu discurso, o infante real interrompe-o com clera: - Mas, ento - grita -, ser delfim o mesmo que no ser nada! E, sem querer ouvir mais, o pequeno delfim vira-se para a parede e chora amargamente. II O SUBPREFEITO NO CAMPO O Sr. Subprefeito anda em visita de inspeco. Cocheiro frente, lacaio atrs, a calea da Subprefeitura leva-o majestosamente feira regional de Combe-aux-Fes. Para esta tarde memorvel o Sr. Subprefeito vestiu a sua bela casaca bordada, os seus cales justos, de listas prateadas, ps o seu chapu armado e a sua espada de gala, com punho de madreprola... Nos joelhos repousa-lhe uma grande pasta de chagrm lavrado, que ele olha tristemente. O Sr. Subprefeito olha tristemente a sua pasta de chagrm lavrado e pensa no famoso discurso que ter de pronunciar dentro de pouco tempo, perante os habitantes de Combe-aux-Fes: Senhores e caros administrados... Ele bem torce a seda dourada das suas suas e repete vinte vezes a fio: Senhores e caros administrados..., mas o resto do discurso no sai. 89 O resto do discurso no sai... Faz tanto calor na calea! A estrada de Combe-aux-Fes brilha a perder de vista sob o sol do meio-dia... O ar est abrasador e nos ulmeiros da beira do caminho, todos cobertos de poeira branca, milhares de cigarras conversam de uma rvore para outra... De repente, o Sr. Subprefeito estremece. L ao longe, no sop de um outeiro, acaba de descobrir um bosquezinho de carvalhos verdes que parece cham-lo. O bosquezinho de carvalhos verdes parece dizer-lhe: Venha para aqui, Sr. Subprefeito; estar muito melhor debaixo das minhas rvores para compor o seu discurso... O Sr. Subprefeito est seduzido; salta da calea e diz aos seus

homens que o esperem, pois vai compor o seu discurso no bosquezinho de carvalhos verdes. No bosquezinho de carvalhos verdes h aves, violetas e nascentes na erva macia... Quando as aves deram pela presena do Sr. Subprefeito, com os seus belos cales e a sua pasta de chagrm lavrado, tiveram medo e deixaram de cantar, as nascentes no ousaram rumorejar mais e as violetas esconderam-se na erva... Todo aquele pequenino mundo jamais vira um subprefeito e interrogava-se em voz baixa quem seria aquele cavalheiro que passeava de cales de prata. Em voz baixa, sob a folhagem, perguntava-se quem era aquele cavalheiro de cales de prata... Entretanto, o Sr. Subprefeito, encantado com o silncio e a frescura do bosque, levantou as abas da casaca, pousou o chapu na erva e sentou-se no musgo, ao p de um carvalho novo. Em seguida, abriu em cima dos joelhos a sua grande pasta de chagrm lavrado e tirou uma comprida folha de papel de ofcio. - um artista! - disse a toutinegra. - No - replicou o pisco -, no um artista, porque tem cales de prata; deve ser um prncipe. - Nem artista nem prncipe - atalhou um velho rouxinol que cantara durante toda uma estao nos jardins da Subprefeitura. 90 - Eu que sei o que ele : um subprefeito! E todo o bosquezinho cochichou: - um subprefeito! um subprefeito! - Como ele calvo! - notou uma cotovia de grande poupa. As violetas perguntaram: - mau? - mau? - perguntaram as violetas. O velho rouxinol respondeu: - De maneira nenhuma! E com esta certeza as aves recomearam a cantar, as nascentes a correr, as violetas a perfumar o ambiente, como se o Sr. Subprefeito no estivesse ali... Impassvel no meio de toda aquela agradvel algazarra, o Sr. Subprefeito invocou no corao a musa dos comcios agrcolas e, de lpis levantado, comeou a declamar com a sua voz de circunstncia : - Senhores e caros administrados... - Senhores e caros administrados - disse o subprefeito com a sua voz de circunstncia. Uma gargalhada interrompeu-o; voltou-se e viu apenas um grande picano-verde que o olhava a rir, empoleirado no seu chapu armado. O subprefeito encolheu os ombros e quis continuar o seu discurso, mas o picano-verde interrompeu-o novamente e gritou-lhe de longe: - Para que serve isso? - Como?! Para que serve isto? - disse o subprefeito, corando muito; e, enxotando o atrevido com um gesto, recomeou com nfase: - Senhores e caros administrados... - Senhores e caros administrados... - recomeou o subprefeito, com nfase.

Mas ento as pequenas violetas ergueram-se at ele na ponta dos seus caules e disseram-lhe docemente: - Sr. Subprefeito, j notou como cheiramos bem? 91 E as nascentes executaram uma msica divina debaixo do musgo; e nas ramadas, por cima da cabea do Sr. Subprefeito, bandos de toutinegras vieram cantar-lhe as suas mais belas rias e todo o bosquezinho conspirou para o impedir de compor o seu discurso. Todo o bosquezinho conspirou para o impedir de compor o seu discurso... O Sr. Subprefeito, entontecido pelos perfumes, brio de msica, tentou em vo resistir ao novo encanto que o invadia. Apoiou-se nos cotovelos em cima da erva, desabotoou a sua bela casaca e balbuciou ainda duas ou trs vezes: - Senhores e caros administrados... Senhores e caros admi... Senhores e caros... Depois mandou os administrados para o Diabo; e a musa dos comcios agrcolas no teve outro remdio seno velar o rosto. Velai o rosto, musa dos comcios agrcolas!... Quando, ao cabo de uma hora, o pessoal da Subprefeitura, inquieto com a demora do seu chefe, entrou no bosquezinho, viu um espectculo que o fez recuar de horror... O Sr. Subprefeito estava deitado de bruos, na erva, descomposto como um bomio. Despira a casaca... e, mordiscando violetas, o Sr. Subprefeito fazia versos. 92 A PASTA DE BIXIOU Numa manh do ms de Outubro, alguns dias antes de deixar Paris, vi chegar a minha casa - quando estava a almoar - um velho de casaca no fio, cambaio, enlameado, curvado, a tiritar em cima das suas longas pernas como uma cegonha depenada. Era Bixiou. Sim, Parisienses, o vosso Bixiou, o feroz e encantador Bixiou, o trocista acerbo que h quinze anos tanto vos diverte com os seus panfletos e as suas caricaturas... Ah, o infeliz, que misria! Se no fosse uma careta que fez quando entrou, no o teria reconhecido. Com a cabea inclinada sobre o ombro e a bengala na boca como um clarinete, o ilustre e lgubre farsante avanou at ao meio da casa, veio encostar-se minha mesa e disse, com voz dolente: - Tende piedade de um pobre cego!... Estava to bem imitado que no pude deixar de rir. Mas ele retorquiu-me, muito friamente: - Julga que estou a brincar?... Veja os meus olhos. E voltou para mim duas grandes pupilas brancas, sem vida. - Estou cego, meu caro; cego para toda a vida... o que acontece a quem escreve com vitrolo. Queimei os olhos nesse belo ofcio; mas queimei-os at ao fundo... at arandela! - acrescentou,

mostrando-me as plpebras calcinadas, onde no havia sequer a sombra de um clio. Estava to comovido que no encontrei nada que lhe dissesse. O meu silncio inquietou-o: - Est a trabalhar? - No, Bixiou, estou a almoar. Quer fazer o mesmo? 93 No respondeu, mas, pelo fremir das narinas, vi bem que estava morto por aceitar. Peguei-lhe na mo e fi-lo sentar ao p de mim. Enquanto o serviam, o pobre diabo farejava a mesa, com um sorrisinho. - Tudo isto parece ser bom. Vou-me regalar; h tanto tempo que no almoo! Um po de soldo todas as manhs, enquanto percorro os ministrios... porque, como sabe, agora percorro os ministrios; a minha nica profisso. Ando a ver se consigo um estanco... Que quer, preciso comer l em casa! No posso desenhar, no posso escrever... Ditar?... Mas o qu?... No tenho nada na cabea, no invento nada... O meu ofcio era ver as carantonhas de Paris e desenh-las; agora, j no posso... Por isso pensei num estanco; no nos bulevares, bem entendido. No tenho direito a tal favor, porque nem sou me de bailarina, nem viva de oficial superior. No! Simplesmente uma casinha na provncia, em qualquer parte, bem longe, num recanto dos Vosgos. Teria um grande cachimbo de porcelana, chamar-me-ia Hans ou Zebedeu, como em Enckmann-Chatrian, e consolar-me-ia de j no escrever fazendo cartuchos de tabaco com as obras dos meus contemporneos. tudo quanto peo. No grande coisa, no verdade?... Pois bem, o diabo para o conseguir... No entanto, as proteces no me deveriam faltar. Antigamente tinha boas relaes. Jantava em casa do marechal, do prncipe, dos ministros; toda essa gente me convidava porque os divertia ou porque tinham medo de mim. Hoje no meto medo a ningum. Oh, os meus olhos! Os meus pobres olhos! Agora j ningum me convida. to triste uma cabea de cego mesa. Passe-me o po, se faz favor... Ah, os bandidos! Fazem-me pagar caro o miservel estanco. H seis meses que corro todos os ministrios com a minha petio. Chego de manh, hora a que acendem os foges e passeiam os cavalos de Sua Excelncia no saibro do ptio; s me vou embora noite, quando acendem os lampies e nas cozinhas comea a cheirar bem... 94 Passo a vida sentado nas arcas de madeira das antecmaras. Os contnuos j me conhecem! No Interior tratam-me por este bom senhor! E eu, para conquistar a sua proteco, fao calembures ou desenho de um trao, num canto dos mata-borres, grandes bigodes que os fazem rir... Aqui est ao que cheguei passados vinte anos de xitos retumbantes, aqui est o fim de uma vida artstica!... E dizer que h em Frana quarenta mil galopins a

quem a nossa profisso faz crescer gua na boca! Dizer que h todos os dias por esses departamentos uma locomotiva que aquece para nos trazer cestadas de imbecis vidos de literatura e de elogios nos jornais!... Ah, provncia romanesca, se a misria de Bixiou te pudesse servir de lio! Depois desta tirada, meteu o nariz no prato e desatou a comer avidamente, sem dizer palavra. Fazia pena v-lo. A cada instante perdia o po, o garfo, tacteava para encontrar o copo. Pobre homem, ainda no se habituara! Passado um momento, recomeou: - Sabe o que ainda mais horrvel para mim? no poder ler os jornais. necessrio ser do ofcio para compreender isto... s vezes, tarde, quando regresso, compro um, s para sentir o cheiro a papel hmido e a notcias frescas... to bom! E no ter ningum para mos ler! A minha mulher bem podia, mas no quer: pretende que h no noticirio coisas inconvenientes... Ah, estas antigas amantes! Depois de casadas, no h nada que no faam para se fingir virtuosas. Desde que fiz dela a Sr.a Bixiou, julgou-se obrigada a tornar-se beata falsa, mas a que ponto!... Ento no queria que friccionasse os olhos com gua de La Salette! E depois o po benzido, os peditrios, a Santa Infncia, 95 os pequenos chineses, que sei eu?... Estamos metidos nas boas obras at ao pescoo... Seria, no entanto, uma boa obra ler-me os jornais. Mas est bem, ela no quer... Se a minha filha estivesse connosco, lia-mos; mas desde que ceguei meti-a em Notre-Dame-des-Arts, para ter menos uma boca a sustentar... Essa mais uma que me preocupa! Ainda no h nove anos que veio ao mundo e j teve todas as doenas... triste! feia! Mais feia do que eu, se possvel... um monstro! Que quer, nunca soube fazer seno caricaturas... Ah, para que havia de me dar! Contar-lhe as minhas histrias de famlia. Que lhe pode isto interessar?... Vamos, d-me um pouco mais desta aguardente. Tenho de ir vida. Quando sair daqui, vou Instruo Pblica e os contnuos no so fceis de alegrar. So todos antigos professores. Deitei-lhe a aguardente. Comeou a sabore-la aos golinhos, com ar entendido... De repente, no sei que mosca lhe mordeu, levantou-se com o copo na mo, passeou um instante sua volta a cabea de vbora cega, com o sorriso amvel do cavalheiro que vai falar, e depois, com voz estridente, como se estivesse a arengar num banquete de duzentos talheres, gritou: - s Artes! s Letras! Imprensa! E l partiu depois de um brinde de dez minutos, o mais louco e maravilhoso improviso jamais sado daquele crebro de farsante. Imaginem uma revista de fim de ano intitulada: O Balano das Letras em 186...; as nossas assembleias supostamente literrias, as nossas tagarelices, as nossas querelas, todas as ridicularias de um mundo excntrico, monturo de tinta, inferno sem grandeza, onde se degola, onde se estripa, onde se rouba, onde se fala muito mais de juros e grossas maquias do que entre os burgueses, o que no impede que entre ns se morra de fome mais do que em qualquer

outra parte; todas as nossas cobardias, todas as nossas misrias; o velho baro T... da Tmbola a ir fazer nh... nh... nh... s Tulherias com a sua escudela e a sua casaca azulada; 96 depois os nossos mortos do ano, os enterros com publicidade, a orao fnebre do Sr. Delegado, sempre a mesma: Querido e chorado! Pobre querido!, em honra de um desgraado de quem se recusa pagar a sepultura; e os que se suicidaram, e os que enlouqueceram; imaginem tudo isto, contado, esmiuado, gesticulado por um caricaturista de gnio, e tero uma ideia do que foi o improviso de Bixiou. Terminado o brinde, despejado o copo, perguntou-me as horas e foi-se embora, com ar furibundo, sem me dizer adeus... Ignoro como os contnuos do Sr. Duruy receberam a sua visita naquela manh; mas sei bem que nunca na minha vida me senti to triste, to mal-humorado, como depois da partida do terrvel cego. O meu tinteiro repugnava-me, a minha pena causava-me horror. Gostaria de ir para longe, de correr, de ver rvores, de sentir qualquer coisa agradvel... Que dio, meu Deus! Que fel! Que necessidade de difamar tudo, de tudo sujar! Ah, o miservel!... E percorria o meu quarto com furor, julgando ouvir sempre a gargalhada de desgosto que ele dera ao falar-me da filha. De repente, junto da cadeira em que o cego estivera sentado, senti qualquer coisa rolar-me debaixo do p. Baixei-me e reconheci a sua pasta, uma grande pasta luzidia, de cantos rotos, que nunca o abandonava e a que chamava, rindo, a sua bolsa de veneno. Aquela pasta era to famosa entre ns como os famosos cartes do Sr. Girardin. Dizia-se que havia coisas terrveis l dentro... A ocasio no podia ser melhor para me certificar. A velha pasta, muito cheia, rebentara ao cair e todos os papis se tinham espalhado no tapete; tive de os apanhar um por um... Um mao de cartas escritas em papel florido, comeando todas por Meu querido pap e assinadas Cline Bixiou - 97 das Filhas de Maria: receitas antigas para doenas de crianas] garrotilho, convulses, escarlatina, sarampo... (a pobre pequena no escapara a uma!); finalmente, um grande sobrescrito lacrado do qual saam, como de um chapu de menina, duas ou trs madeixas louras todas encaracoladas, e no sobrescrito, em letras grandes e trmulas, escrita de cego: Cabelos de Cline, cortados em 13 de Maio, data da sua entrada no recolhimento. E aqui est o que havia na pasta de Bixiou. Vamos, Parisienses, sois todos os mesmos. O desdm, a ironia, um riso infernal, piadas ferozes, e depois, para terminar... Cabelos de Cline, cortados em 13 de Maio. 98

A LENDA DO HOMEM DOS MIOLOS DE OURO senhora que pede histrias alegres Ao ler a sua carta, minha senhora, senti como que um remorso. Fiquei aborrecido comigo prprio por causa da cor um tanto excessivamente de luto aliviado das minhas historietas e prometi a mim mesmo oferecer-lhe hoje algo alegre, loucamente alegre. Afinal de contas, porque estarei triste? Vivo a mil lguas dos nevoeiros parisienses, numa colina luminosa, na terra dos tamborileiros e do vinho moscatel. minha volta s h sol e msica; tenho orquestras de narcejas, orfees de melharucos; de manh, os maaricos-reais fazem: Cureli! Cureli!, e ao meio-dia cantam as cigarras; depois, os pastores tocam pfaro e as belas raparigas morenas ouvem-se rir nas vinhas... Na verdade, o lugar mal escolhido para tristezas; deveria antes mandar s damas poemas cor-de-rosa e cabazadas de contos galantes. Mas no! Estou ainda demasiado perto de Paris. Todos os dias at nos meus pinheiros, Paris me envia os salpicos de lama das suas tristezas... Na prpria hora em que escrevo estas linhas, acabo de receber a notcia da morte miservel do pobre Charles Barbara, e todo o meu moinho est de luto. Adeus, maaricos-reais e cigarras! J no tenho alegria no corao... E aqui tem, minha senhora, por que motivo, em vez do conto divertido que a mim prprio prometera dedicar-lhe, ainda hoje ter uma lenda melanclica. 99 Era uma vez um homem que tinha miolos de ouro; sim, minha senhora, um crebro todo de ouro. Quando veio ao mundo, os mdicos pensaram que a criana no viveria, to pesada era a sua cabea e desproporcionado o seu crnio. Contudo, vingou e cresceu ao sol como uma bela oliveira; somente a sua grande cabea o impedia de conservar o equilbrio e metia pena v-lo esbarrar com todos os mveis quando caminhava... Caa muitas vezes. Um dia, rolou do alto de uma escadaria e foi bater com a testa num degrau de mrmore, onde o seu crnio soou como um lingote. Julgaram-no morto; mas, quando o levantaram, s lhe encontraram uma ligeira beliscadura, com duas ou trs gotinhas de ouro coalhadas nos seus cabelos louros. Foi assim que os pais souberam que o filho tinha miolos de ouro. O caso foi mantido em segredo; nem mesmo o pobre pequeno suspeitou de nada. De vez em quando, perguntava porque o no deixavam ir correr diante da porta com os garotos da rua. -Poderiam roubar-te, meu lindo tesouro! - respondia-lhe a me. Ento, o pequeno tinha muito medo de ser roubado e voltava a brincar sozinho, sem dizer nada. e arrastava-se pesadamente de uma sala para outra... S aos 18 anos os pais lhe revelaram o dom monstruoso que recebera do destino; e como o tinham educado e sustentado at ali.

pediram-lhe em troca um pouco do seu ouro. O rapaz no hesitou; acto contnuo - como? Por que meio? No o diz a lenda -, arrancou do crnio um pedao de ouro macio, um pedao do tamanho de uma noz. e atirou-o orgulhosamente para o regao da me... Depois, deslumbrado pelas riquezas que trazia na cabea, louco de desejos, brio do seu poder, deixou a casa paterna e foi pelo mundo fora dissipar o seu tesouro. Pelo modo como vivia, principescamente, semeando ouro sem contar, dir-se-ia que o seu crebro era inesgotvel... Todavia, ele esgotava-o, e, medida que se esgotava, os seus olhos tornavam-se mortios e as suas faces iam-se cavando. Por fim, um dia, na manh seguinte a uma orgia louca, o desgraado, que ficara sozinho entre os restos do festim e os lustres que se apagavam, admirou-se da enorme brecha que j abrira no seu lingote. Era tempo de parar. Desde ento, levou uma existncia nova. O homem de miolos de ouro foi viver isolado, do trabalho das suas mos. desconfiado e medroso como um avarento, fugindo s tentaes, procurando esquecer ele prprio as riquezas fatais em que no queria voltar a tocar... Por desgraa, um amigo acompanhara-o na sua solido, e esse amigo conhecia o seu segredo. Uma noite, o pobre homem acordou sobressaltado com uma dor na cabea, uma dor insuportvel; levantou-se como louco e viu. a um raio de luar, que o amigo fugia com qualquer coisa escondida debaixo da capa... Mais um bocado de crebro que lhe levavam!... Algum tempo depois, o homem de miolos de ouro apaixonou-se, e ento tudo acabou... Amava de todo o corao uma jovem loura, que tambm o amava muito, mas que amava ainda mais as borlas, as plumas brancas e as bonitas bolinhas castanho-avermelhadas a baterem ao longo das botinas. Nas mos da gentil criatura - metade pssaro, metade boneca -. os pedacinhos de ouro fundiam-se que era um consolo. Ela tinha todos os caprichos e ele nunca era capaz de lhe dizer que no; at com medo de a entristecer, escondeu-lhe at ao fim o triste segredo da sua fortuna. - Somos ento muito ricos? - perguntava ela. E o pobre homem respondia-lhe: - Oh. sim...muito ricos! 100 - 101 E sorria com amor avezinha azul que lhe devorava o crnio inocentemente. De vez em quando, porm, o medo assaltava-o e sentia desejos de ser avaro; mas ento a mulherzinha aproximava-se dele, saltitante, e dizia-lhe: - Meu marido, que s to rico, compra-me qualquer coisa que seja muito cara!... E ele comprava-lhe qualquer coisa muito cara. Isto durou assim dois anos; depois, uma manh, a mulherzinha morreu, sem que se soubesse porqu, como um passarinho... O tesouro estava no fim. Com o que lhe restava, o vivo fez sua querida morta um belo enterro. Sinos a dobrar, pesadas carruagens forradas de negro, cavalos empenachados, lgrimas de prata nos

veludos, nada lhe pareceu demasiado belo. Que lhe importava agora o seu ouro?... Deu-o igreja, aos moos funerrios, s vendedeiras de perptuas; deu-o a rodos. Tambm, ao sair do cemitrio, no lhe restava quase nada daquele crebro maravilhoso; apenas algumas partculas pegadas s paredes do crnio. Viram-no ento andar pelas ruas, desvairado, com as mos estendidas para diante, a cambalear como um brio. noite, hora a que os bazares se iluminam, parou diante de uma grande montra, na qual montes de tecidos e de adereos brilhavam expostos luz, e ficou ali durante muito tempo a olhar duas botinas de cetim azul bordadas a penugem de cisne. Sei de algum a quem estas botinas dariam muito prazer, disse para consigo, sorrindo; e, no se lembrando j de que a sua mulherzinha estava morta, entrou para as comprar. Nos fundos da loja, a vendedora ouviu um grande grito: acorreu e recuou apavorada ao ver um homem de p, encostado ao balco, que a olhava dolorosamente, com ar idiota. Tinha numa das mos as botinas azuis com bordados de cisne e estendia a outra mo, completamente ensanguentadas com restos de ouro nas pontas dos dedos. Tal , minha senhora, a lenda do homem dos miolos de ouro. A despeito do seu ar de conto fantstico, esta lenda verdadeira de uma ponta outra... H no mundo infelizes condenados a viver do seu crebro, que pagam em belo ouro fino, com o seu miolo e com a sua substncia, as mais insignificantes coisas da vida. Para eles, cada dia uma dor; e depois, quando esto cansados de sofrer... 102 - 103 O POETA MISTRAL No ltimo domingo, ao levantar-me, julguei ter acordado na Rua do Faubourg-Montmartre. Chovia, o cu estava cinzento e o moinho triste. Tive receio de passar em casa aquele frio dia de chuva, e, de repente, apeteceu-me ir aquecer-me um bocadinho ao p de Frdric Mistral, o grande poeta que vive a trs lguas dos meus pinheiros, na sua aldeiazinha de Maillane. Se bem o pensei, melhor o fiz; uma vara de mirto, o meu Montaigne. uma capa e a caminho! Ningum nos campos... A nossa bela Provena catlica deixa a terra repousar ao domingo... Os ces sozinhos nas casas, as quintas fechadas... De longe em longe, um carro com o toldo a escorrer, uma velha encapuzada na sua capa cor de folha seca, muares arreadas de gala, cobertura de esparto azul e branco, borlas vermelhas, guizos de prata, transportando a trote curto uma carrada completa de gente de mas que vai missa; depois, ao longe, atravs da bruma, uma barca na roubine e um pescador em p, a lanar a sua tarrafa... No h maneira de ler pelo caminho num dia assim. A chuva caa em torrentes e a tramontana atirava-ma em cntaros cara...

Percorri todo o caminho de uma assentada e, por fim, depois de trs horas de marcha, avistei diante de mim os bosquezinhos de ciprestes no meio dos quais a aldeia de Maillane se abriga com medo do vento. Nem um gato nas ruas da aldeia; toda a gente estava na missa cantada. Quando passei diante da igreja, o serpento roncava e vi os crios reluzirem atravs dos vitrais. A casa do poeta fica na extremidade da povoao; a ltima casa mo esquerda, na estrada de So Remgio, 104 uma casinha de um andar, com jardim frente... Entrei devagarinho... Ningum! A porta do salo est fechada, mas ouo atrs dela algum passear e falar em voz alta... Aqueles passos e aquela voz so-me muito familiares... Detenho-me um momento no corredorzinho caiado, com a mo na maaneta da porta, muito comovido. O corao bate-me. Ele est ali. Trabalha... Devo esperar que termine a estrofe?... Por minha f! Tanto pior, entremos. Ah, Parisienses! Quando o poeta de Maillane vos visitou para mostrar Paris sua Mireille e o vistes nos vossos sales, esse Chaotas em trajo citadino, de colarinho direito e grande chapu alto, que o incomodava tanto como a sua glria, julgastes que era Mistral... No, no era ele. S h um Mistral no mundo, aquele que surpreendi no ltimo domingo na sua aldeia, com o chapelo de feltro inclinado sobre a orelha, sem colete, de jaqueta, com a sua vermelha faixa catal em torno dos rins, o olhar iluminado, o fogo da inspirao nas faces, soberbo, com um sorriso bondoso, elegante como um pastor grego e caminhando a passos largos, de mos nos bolsos, a fazer versos... - Como, s tu?! - gritou Mistral, saltando-me ao pescoo. - Que boa ideia tiveste de vir!... Justamente hoje, a festa de Maillane. Temos msica de Avinho, touros, procisso, farndola; ser magnfico... A me deve estar a chegar da missa; almoamos e depois, zut!, vamos ver danar as raparigas bonitas... Enquanto ele falava, eu olhava comovido o salozinho de tapearia clara, que no via h muito tempo e onde j passara to belas horas. Nada mudara. O mesmo sof de coxins amarelos, os dois cadeires de palha, a Vnus sem braos e a Vnus de Arles em cima do fogo, o retrato do poeta por Hbert, a sua fotografia por tienne Carjat, e a um canto, junto da janela, a escrivaninha - uma pobre escrivaninha de recebedor - 105 de registos - completamente carregada de velhos alfarrbios e dicionrios. No meio da escrivaninha, vi um grande caderno aberto... Era o Calendal, o seu novo poema, que deve ser publicado no fim deste ano, no dia de Natal. O poeta trabalha nele h sete anos e h perto de seis meses que escreveu os ltimos versos; todavia, ainda no se atreveu a separar-se dele. Como

compreendereis, h sempre uma estrofe a polir, uma rima mais sonora a encontrar... Mistral escusava de escrever em provena visto burilar os seus versos como se toda a gente os pudesse ler nessa lngua e apreciar os seus esforos de bom obreiro... Oh, o grande poeta! este o Mistral de quem Montaigne teria podido dizer: Lembrai-vos daquele a quem, quando lhe perguntavam porque se dedicava tanto a uma arte inacessvel maior parte das pessoas, respondia: Poucas me bastam. Contento-me com um s. Contento-me mesmo com nenhum.' Tinha o caderno do Calendal nas mos e folheava-o muito comovido... De repente, uma msica de pfaros e de tamboris estrondeia na rua, diante da janela, e acto contnuo o meu Mistral corre ao armrio, tira de l copos e garrafas, arrasta a mesa para o meio do salo, abre a porta aos msicos e diz-me: - No te rias... Vm oferecer-me a alvorada... sou vereador. A salita enche-se de gente. Pousam os tamboris em cima das cadeiras, o velho estandarte a um canto, e o vinho velho circula. Depois de despejarem algumas garrafas sade de Frdric, de conversarem gravemente acerca da festa e de perguntarem se a farndola ser to bonita como a do ano passado e se os touros sero bravos, os msicos retiram-se e vo oferecer a alvorada a casa dos outros vereadores. Neste momento, a me de Mistral 'chega. 106 Num abrir e fechar de olhos, a mesa est posta: uma bela toalha branca e dois pratos. Conheo os hbitos da casa e sei que quando Mistral tem visitas a me no se senta mesa... A pobre velhinha s conhece o seu provenal e sentir-se-ia pouco vontade se tivesse de conversar com franceses... Por outro lado, precisa na cozinha. Meu Deus, que rico banquete tive esta manh! Um pedao de cabrito assado, queijo serrano, compota de mosto, figos e uvas moscatis, tudo regado com o bom chteauneuf dos papas, que tem to bela cor rosada nos copos... sobremesa, fui buscar o caderno do poema e coloquei-o em cima da mesa, diante de Mistral. - Tnhamos dito que sairamos - observa o poeta, sorrindo. - No, no... Calendal! Calendal! Mistral resigna-se e, com a sua voz musical e doce, marcando o compasso dos versos com a mo, inicia o primeiro canto: De uma rapariga louca de amor. / agora, que j contei a triste aventura, / cantarei, se Deus quiser, um rapaz de Cassis, / um pobre pescadorzinho de anchovas... L fora, os sinos tocavam as vsperas, os petardos estoiravam na praa, os pfaros passavam e repassavam nas ruas com os tamboris. Os touros de Camargue, que iam ser lidados, mugiam. Eu, com os cotovelos na toalha e as lgrimas nos olhos, escutava a histria do pescadorzinho provenal. Calendal era apenas um pescador; o amor fez dele um heri... Para conquistar o corao da sua amada -a bela Estrelle-, empreendeu coisas miraculosas, e os doze trabalhos de Hrcules no foram nada

comparados com os seus. Uma vez, tendo-se-lhe metido na cabea ser rico, inventou formidveis engenhos de pesca e trouxe para o porto todo - 107 o peixe do mar. De outra vez, escorraou um terrvel bandido dos desfiladeiros de Ollioules, o conde Svran, at ao seu covil, com os seus sequazes e as suas concubinas... Que valente moo, o pequeno Calendal! Um dia, em Sainte-Baume, encontrou dois grupos de camaradas que tinham ido ali para decidir uma querela a pontap sobre o tmulo de mestre Jacques, um provenal que construiu o vigamento do templo de Salomo, se quiserem fazer o favor de acreditar nisto. Calendal lanou-se no meio da luta e apaziguou os companheiros com as suas palavras... ( Empresas sobre-humanas!... Havia no alto dos rochedos de Lure uma floresta de cedros inacessveis, onde nenhum lenhador ousava subir. Calendal foi l e instalou-se sozinho nos rochedos durante trinta dias. Durante esses trinta dias, ouviu-se o barulho do seu machado, que vibrava ao cravar-se nos troncos. A floresta gritava; uma aps outra, as velhas rvores gigantescas tombavam e rolavam at ao fundo do abismo, e quando Calendal tornou a descer no restava um nico cedro na montanha... Enfim, como recompensa de tantas proezas, o pescador de anchovas obteve o amor de Estrelle e foi nomeado cnsul pelos habitantes de Cassis. Esta a histria de Calendal... Mas que interessa Calendal? O que h sobretudo no poema a Provena - a Provena do mar, a Provena da montanha -, com a sua histria, os seus costumes, as suas lendas, as suas paisagens, todo um povo simples e livre que encontrou o seu grande poeta antes de morrer... E agora tracem caminhos-de-ferro, levantem postes telegrficos, expulsem a lngua provenal das escolas! A Provena viver eternamente na Mireille e no Calendal. - Basta de poesia! - disse Mistral, fechando o seu caderno. - Temos de ir ver a festa. 108 Samos; toda a aldeia estava na rua; uma grande nortada varrera o cu e este brilhava alegremente por cima dos telhados vermelhos molhados de chuva. Chegmos a tempo de ver recolher a procisso... Durante uma hora, foi um interminvel desfilar de penitentes de cogula, de penitentes brancos, de penitentes azuis, de penitentes cinzentos, de confrarias de irms veladas, de estandartes cor-de-rosa de flores bordadas a ouro, de grandes santos de madeira dourada, desbotados, transportados a quatro ombros, de santas de faiana coloridas como dolos, com grandes ramos de flores na mo, de capas de asperges, de custdias, de plios de veludo verde, de crucifixos guarnecidos de seda branca, tudo isto a ondular ao vento, luz dos crios e do sol, no meio de salmos, de litanias e de sinos a tocarem furiosamente. Terminada a procisso, recolhidos os santos s suas capelas,

fomos ver os touros, depois os jogos de terreiro, as lutas de homens, os trs saltos, o jogo do gato, o jogo do odre e todas as lindas festas da Provena... Caa a noite quando regressmos a Maillane. Na praa, diante do cafzinho onde Mistral vai noite jogar a sua partida com o seu amigo Zidore, tinham acendido uma grande fogueira... Organizava-se a farndola. Lanternas de papel recortado acendiam-se por toda a parte, afastando as trevas; a juventude tomava posies; e em breve, a um sinal dos tamboris, comeou roda da fogueira uma dana louca, ruidosa, que devia durar toda a noite. Depois da ceia, muito cansados para andarmos mais, subimos ao quarto de Mistral. um modesto quarto de campons, com duas grandes camas. As paredes no tm papel; vem-se os barrotes do telhado... H quatro anos, quando a Academia atribuiu ao autor de Mireille o prmio e trs mil francos, a Sr.a Mistral teve uma ideia. - E se ns mandssemos forrar e cobrir o teu quarto? - Disse ela ao filho. 109 - No, no! - respondeu Mistral. - No dinheiro d poetas no se toca... E o quarto continuou desguarnecido; mas enquanto o dinheiro dos poetas durou, aqueles que bateram porta de Mistral encontraram sempre a sua bolsa aberta... Eu levara o caderno do Calendal para o quarto e quis que ele me lesse mais uma passagem antes de adormecer. Mistral escolheu o episdio das faianas... Resumido em poucas palavras, assim: Num grande banquete, no sei onde, puseram na mesa um magnfico servio de faiana de Moustiers. No fundo de cada prato, desenhado a azul no esmalte, havia um tema provenal; toda a histria da regio estava ali dentro. digno de registo o amor com que so descritas as belas faianas; uma estrofe para cada prato, outros tantos poemazinhos de estilo singelo e erudito, perfeitos como um quadrinho de Tecrito. Enquanto Mistral me lia os seus versos na bela lngua provenal, quase inteiramente latina, que as rainhas falaram outrora e que presentemente s os nossos pastores compreendem, eu admirava no meu foro ntimo aquele homem e, ao pensar no estado de runa em que encontrou a lngua materna e o que fez dela, imaginei um desses velhos palcios dos prncipes de Baux, como os que se vem nos Alpilles: sem telhados, sem balastres nas escadarias, sem vitrais nas janelas, com o triflio das ogivas partido, o braso das portas comido pelo musgo, as galinhas a debicar no ptio de honra, os porcos a chafurdar debaixo das delicadas colunetas das galerias, o burro a pastar na capela onde a erva cresce, os pombos a virem beber s grandes pias de gua benta cheias de gua das chuvas, e finalmente! entre os escombros, duas ou trs famlias de camponeses, que construram cabanas nos flancos do velho palcio.

Depois, um belo dia, o filho de um desses camponeses enamora-se das grandes runas e indigna-se de as ver assim profanadas; depressa, muito depressa, enxota o gado para fora - 110 do ptio de honra e, como se as fadas viessem em seu auxlio, ele sozinho reconstri a grande escadaria, restitui os painis de talha s paredes, os vitrais s janelas, reergue as torres, redoura a sala do trono e volta a pr de p o vasto palcio de outros tempos, onde se hospedaram papas e imperatrizes. Este palcio restaurado a lngua provenal. O filho de campons Mistral. 111 AS TRS MISSAS REZADAS Conto de Natal I. - Duas peruas trufadas, Garrigou?... - Sim, meu reverendo, duas peruas magnficas cheias de trufas. Posso diz-lo porque ajudei a ench-las. Dir-se-ia que a pele lhes ia rebentar enquanto assavam, to esticada estava... -'Jesus, Maria! E eu que gosto tanto de trufas!... D-me depressa a minha sobrepeliz, Garrigou... E, alm das peruas, que viste mais na cozinha?... - Oh, toda a espcie de coisas boas!... Desde o meio-dia que no paramos de depenar faises, poupas, frangas, tetrazes. As penas voavam por toda a parte... Depois, trouxeram da lagoa enguias, carpas douradas, trutas... - De que tamanho so as trutas, Garrigou? - Assim, deste tamanho, meu reverendo... Enormes!... - Oh, meu Deus, parece-me que estou a v-las!... Deitaste o vinho nas galhetas? --Sim, meu reverendo, deitei o vinho nas galhetas... Mas garanto-lhe que no se compara com o que beber logo, depois da Missa do Galo. Se visse na sala 'de jantar do castelo a quantidade de garrafas que flamejam cheias de vinhos de todas as cores... E a baixela de prata, os centros de mesa cinzelados, as flores, os candelabros!... Nunca se viu uma consoada assim. O Sr. Marqus convidou todos os fidalgos da vizinhana. Sero pelo menos quarenta mesa, sem contar com o bailio e o tabelio... Ah, meu reverendo, bem feliz por ser um deles!... S de ter cheirado aquelas belas peruas, 112

o aroma das trufas segue-me para toda a parte... hum!... - Vamos, vamos, meu filho. Guardemo-nos do pecado da gula, sobretudo na noite da Natividade... Vai depressa acender as velas e tocar a primeira chamada para a missa; porque a meia-noite aproxima-se e no nos podemos atrasar... Esta conversa travava-se numa noite de Natal do ano da graa de mil seiscentos e tantos, entre o reverendo D. Balagure, antigo prior dos Barnabitas, presentemente capelo dos Srs. de Trinquelage, e o seu aclito Garrigou, ou pelo menos o que ele julgava ser o aclito Garrigou, pois fiquem sabendo que, naquela noite, o Diabo tomara o rosto redondo e as feies imprecisas do jovem sacristo, para melhor tentar o reverendo padre e lev-lo a cometer o medonho pecado da gula. Deste modo, enquanto o suposto Garrigou (hum!, hum!) fazia tocar com toda a fora os sinos da capela senhorial, o reverendo acabava de vestir a sua casula na sacristiazinha do castelo e, com o esprito j perturbado por todas aquelas descries gastronmicas, repetia para consigo mesmo enquanto se vestia: Peruas assadas... carpas douradas... trutas deste tamanho!... L fora, o vento da noite soprava e espalhava a msica dos sinos, ao mesmo tempo que as luzes apareciam no escuro, nas encostas do monte Ventoux, no alto do qual se erguiam as velhas torres de Trinquelage. Eram famlias de caseiros que vinham ouvir a Missa do Galo ao castelo. Trepavam a encosta a cantar, em grupos de cinco ou seis, o pai frente, de lanterna na mo, as mulheres embrulhadas nos seus grandes mantos pardos, onde os filhos se aninhavam e abrigavam. A despeito da hora e do frio, toda aquela boa gente caminhava alegremente, estimulada pela ideia de que, ao vir da missa, teria, como nos outros anos, mesa posta para si, em baixo, nas cozinhas. De tempos a tempos, na penosa subida, os vidros da carruagem de um senhor, precedida de moos com archotes, 113 cintilavam ao luar, ou ento uma mula a trote agitava os guizos, e, ao claro das lanternas envolvidas pela bruma, os caseiros reconheciam o seu bailio e saudavam-no passagem: -Boas noites, boas noites, Sr. Arnoton! -Boas noites, boas noites, meus filhos! A noite estava clara, as estrelas brilhavam mais devido ao ar frio; a nortada cortava e uma geada fina, que deslizava pelas roupas sem as molhar, conservava fielmente a tradio dos Natais brancos de neve. No alto da encosta, o castelo surgia como o alvo ambicionado, com a sua massa enorme de torres, de empenas, o campanrio da capela recortado no cu azul-negro e uma multido de luzinhas, que bruxuleavam, iam, vinham, se agitavam em todas as janelas, e pareciam, no fundo sombrio do edifcio, falhas a correr em cinzas de papel queimado... Transposta a ponte levadia e a poterna, era necessrio, para chegar capela, atravessar o primeiro ptio, cheio de carruagens, de criados, de cadeirinhas, tudo iluminado pelo lume dos archotes e pelas chamas das cozinhas. Ouvia-se o tinido dos espetos, o rudo das caarolas, o entrechocar dos cristais e das

pratas, movimentados nos preparativos do banquete; e, pairando por cima de tudo, um vapor tpido, que cheirava deliciosamente s carnes assadas e aos condimentos dos molhos complicados, fazia dizer aos caseiros, como ao capelo, como ao bailio, como a toda a gente: Que boa consoada vamos ter depois da missa! II. Dreland da!... Dreland da!... a Missa do Galo que comea. Na capela do castelo, uma catedral em miniatura, de arcos entrecruzados, revestida de carvalho at ao cimo das paredes, foram estendidas tapearias e acesas todas as velas. E que ror de gente! E que trajos! 114 Em primeiro lugar, sentados nas cadeiras esculpidas que rodeiam o coro, o Sr. De Trinquelage, vestido de tafet cor de salmo, e junto dele todos os nobres senhores convidados. Em frente, em genuflexrios guarnecidos de veludo, tomaram lugar a velha marquesa viva, no seu vestido de brocado cor de fogo, e a jovem Sr.a De Trinquelage, com a cabea coberta por alta touca de renda, ltima moda da corte de Frana. Mais atrs vem-se, vestidos de negro, com amplas perucas em bico e as caras rapadas, o bailio Thomas Arnoton e o tabelio Ambroy, duas notas graves no meio das sedas vistosas e dos damascos lavrados. Depois, seguem-se os mordomos anafados, os pajens, os picadores, os intendentes, a Sr.a Barbe, com o seu molho de chaves pendente da cintura, numa argola de prata fina. Ao fundo, nos bancos, a arraia-mida, as criadas, os caseiros com as suas famlias; e por fim, ainda mais ao fundo, mesmo junto da porta, que entreabrem e fecham discretamente, os moos de cozinha, que vm, entre dois molhos, respirar um arzinho de missa e trazer um odor de consoada igreja toda em festa e tpida de tantas velas acesas. Ser a vista dos seus barretinhos brancos que ocasiona distraces ao oficiante? Ou no ser, pelo contrrio, a campainha de Garrigou, essa endiabrada campainhazinha que Se agita ao p do altar com precipitao infernal e que parece dizer constantemente: Despachemo-nos, despachemo-nos... Quanto mais depressa acabarmos, mais depressa nos sentaremos mesa. A verdade que todas as vezes que ela telinta, essa campainha do Diabo, o capelo esquece-se da missa e s pensa na consoada. Imagina os cozinheiros atarefados, os fornos onde arde um lume de forja, o vapor que sai pelas tampas entreabertas, e, no meio desse vapor, duas peruas magnficas, repletas, inchadas, marmoreadas de trufas... Ou ento v passar filas de pajens transportando travessas das quais se evolam vapores tentadores, e, com eles, entra na grande sala j pronta para o festim. Oh, delcias! 115

Eis a mesa imensa carregadinha e rutilante, os paves vestidos com as suas penas, os faises com as asas castanho-douradas abertas, as garrafas cor de rubi, as pirmides de frutos resplandecentes entre os ramos verdes e os peixes maravilhosos de que falava Garrigou (ah, sim, Garrigou!) estendidos num leito de funcho, com as escamas nacaradas, como se acabassem de sair da gua, e um raminho de ervas aromticas nas suas narinas de monstros. To viva a viso de tais maravilhas que parece a D. Balagure que todos estes pratos mirficos so servidos diante de si, em cima dos bordados da toalha do altar, e duas ou trs vezes surpreende-se a dizer Benedicite em vez de Dominus vobiscum! parte estes ligeiros enganos, o digno homem recita o seu ofcio muito conscienciosamente, sem saltar uma linha, sem omitir uma genuflexo; e tudo segue muitssimo bem at ao fim da primeira missa. Porque, como sabem, no dia de Natal o mesmo oficiante deve celebrar trs missas consecutivas. Uma!, diz para consigo o capelo, com um suspiro de alvio; depois, sem perder um minuto, faz sinal ao aclito, ou a quem julga ser o seu aclito, e... Dreland da!... Dreland da! Comea a segunda missa, e com ela comea tambm o pecado de D. Balagure. Depressa, depressa, despachemo-nos, grita-lhe com a sua vozinha penetrante a campainha de Garrigou, e desta vez o infeliz oficiante, todo entregue ao demnio da gula, atira-se ao missal e devora as pginas com a avidez do seu apetite sobreexcitado. Freneticamente, baixa-se, levanta-se, esboa os sinais da cruz, as genuflexes, encurta todos os gestos para chegar mais depressa ao fim. Mal levanta os braos ao Evangelho, mal bate no peito ao Confteor. Entre o aclito e ele, ver quem tartamudear mais depressa. Versculos e responsos precipitam-se, atropelam-se. As palavras, meio pronunciadas, sem abrir a boca, o que levaria demasiado tempo, terminam em murmrios incompreensveis. - Oremus ps... ps... ps... - Mea culpa... p... p... 116 Quais vindimadores apressados a pisar as uvas na dorna, ambos patinham no latim da missa e atiram salpicos para todos os lados. - Dom... scum!... - diz Balagure. - ... Stutuo!... - responde Garrigou; e l est a danada campainha, sempre a tilintar-lhe aos ouvidos, como os guizos que se pem nos cavalos de posta para os fazer galopar velozmente. Como podem calcular, desta maneira depressa se despacha uma missa rezada. - E duas!-diz o capelo, muito esbaforido; depois, sem perder tempo a tomar flego, vermelho, a suar, desce a correr os degraus do altar e... Dreland da!... Dreland da!... Comea a terceira missa. Faltam apenas alguns passos para chegar sala de jantar; mas - ai de ns! -, medida que a consoada se

aproxima, o infortunado Balagure sente-se dominado pela loucura da impacincia e da gula. A sua viso acentua-se, as carpas douradas, as peruas assadas, esto ali... ali... Toca-lhes... ele... Oh, meu Deus!... As travessas fumegam, os vinhos embalsamam o ar, e, agitando o seu endemoninhado badalo, a campainha grita-lhe: Depressa, depressa, ainda mais depressa!... Mas como poderia ele ir mais depressa? Os seus lbios quase no se mexem. J no pronuncia as palavras... A no ser que defraude Deus e lhe escamoteie a missa... E o que ele faz, o desgraado!... De tentao em tentao, comea por saltar um versculo, depois dois. A seguir, como a epstola demasiado comprida, no a acaba; aflora o Evangelho, passa adiante o Credo, sem entrar, salta o Pater, sada de longe o prefcio e, aos trancos e solavancos, precipita-se assim na danao eterna, sempre seguido do infame Garrigou (vade retro, Satans!), que o secunda com maravilhosa compreenso, lhe levanta a casula, vira as folhas duas a duas, d encontres nas estantes, entorna as galhetas e sem parar, sacode a campainhazinha cada vez com mais fora, cada vez mais depressa. 117 digna de se ver a cara de espanto dos assistentes! Obrigados a seguir pela mmica do padre uma missa de que no entendem palavra, uns levantam-se quando os outros se ajoelham, sentam-se quando os outros esto de p; e todas as fases do singular ofcio se confundem nos bancos, numa profuso de atitudes diversas. A estrela do Natal, em viagem pelos caminhos do cu, l longe, nas imediaes do estbulozinho, empalidece de pavor ao ver tal confuso... - O abade vai demasiado depressa... No se pode segui-lo - murmura a velha marquesa viva, agitando a coifa, desorientada. O Sr. Arnoton, com as suas grandes lunetas de ao encavalitadas no nariz, procura no devocionrio onde diacho se estar. No fundo, porm, todas estas excelentes pessoas, que tambm pensam em consoar, no esto zangadas por a missa ir naquele galope de mala-posta; e quando D. Balagure, de rosto radiante, se vira para a assistncia e grita com todas as suas foras Dite, missa est, na capela todos lhe respondem em coro com um Deo gratias to jubiloso, to entusistico, que nos julgaramos j mesa no primeiro brinde da consoada. III. Cinco minutos mais tarde, a multido dos senhores sentava-se na grande sala, com o capelo no meio deles. O castelo, iluminado de alto a baixo, ressoava de cnticos, de gritos, de risos, de rumores; e o venervel D. Balagure cravava o garfo numa asa de frango e afogava o remorso do seu pecado em torrentes de vinho

do papa e no saboroso suco das carnes. Tanto bebeu e comeu, o pobre santo homem, que morreu naquela mesma noite, de um terrvel ataque, sem ter tido sequer tempo de se arrepender; depois, de manh, chegou ao Cu, ainda todo em rebulio das festas da noite, e imaginem como foi recebido. 118 -Retira-te da minha vista, mau cristo!-disse-lhe o Supremo Juiz, senhor de todos ns. - A tua falta suficientemente grande para apagar uma vida inteira de virtude... Ah, roubaste-me uma missa a noite passada!... Pois bem, pagar-me-s trezentas por ela e s entrars no Paraso quando tiveres celebrado na tua prpria capela essas trezentas missas de Natal, na presena de todos os que pecaram por tua culpa e contigo... ... E aqui est a verdadeira lenda de D. Balagure, tal como a contam no pas das oliveiras. Hoje, o castelo de Trinquelage j no existe, mas a capela ainda est de p no alto do monte Ventoux, no meio de um bosquezinho de azinheiras. O vento faz bater a sua porta desconjuntada, a erva invade a soleira; h ninhos nos cantos do altar e nos vos das altas janelas, cujos vitrais coloridos h muito desapareceram. No entanto, parece que todos os anos, pelo Natal, uma luz sobrenatural erra por entre as runas e que, quando vo para as missas e para as consoadas, os camponeses encontram o espectro da capela iluminado por crios invisveis que ardem ao ar livre, mesmo debaixo da neve e do vento. Riam, se quiserem, mas um vinhateiro do lugar, chamado Garrigue, sem dvida um descendente de Garrigou, afirmou-me que numa noite de Natal, encontrando-se um pouco embriagado, se perdeu na montanha para os lados de Trinquelage; e o que viu foi isto... At s onze horas, nada. Tudo estava silencioso, extinto, inanimado. De sbito, por volta da meia-noite, um carrilho tocou no alto do campanrio, um velho, muito velho carrilho que parecia estar a dez lguas de distncia. Em breve, no caminho ngreme, Garrigue viu tremular luzes, agitarem-se sombras imprecisas. Debaixo do alpendre da capela, caminhava-se e cochichava-se: - Boas noites, Sr. Arnoton! - Boas noites, boas noites, meus filhos!... Depois de toda a gente entrar, o meu vinhateiro, que era muito destemido, aproximou-se devagarinho e, quando olhou pela porta desmantelada, viu um espectculo singular. 119 Todas as pessoas que vira passar estavam enfileiradas em torno do coro, na nave em runas, como se os antigos bancos ainda existissem. Viam-se belas damas vestidas de brocado, com toucas de renda, cavalheiros agaloados de alto a baixo, camponeses de jaquetas floridas como eram as dos nossos avs, todos com um ar de velhice, murchos, poeirentos, fatigados. De tempos a tempos, as aves nocturnas, hspedes habituais da capela, acordadas por todas aquelas luzes, esvoaavam em redor das velas, cuja chama subia direita e indefinidamente como se ardesse por detrs de uma

gaze; e o que mais divertia Garrigue era uma certa personagem de grandes lunetas de ao, que sacudia a todo o instante a sua alta peruca negra, em cima da qual uma das aves se mantinha direita, muito comprometida, a bater silenciosamente as asas... Ao fundo, um velhinho de estatura infantil, ajoelhado no meio do coro. agitava desesperadamente uma campainha sem badalo e sem som, enquanto um padre, vestido de ouro velho, ia e vinha diante do altar, a recitar oraes de que no se ouvia uma nica palavra... Sim. era D. Balagure a dizer a sua terceira missa rezada. 120 AS LARANJAS Fantasia Em Paris, as laranjas tm o ar triste de frutos cados das rvores e apanhados do cho. Quando chegam em pleno Inverno pluvioso e frio, a sua casca brilhante, o seu perfume exagerado, nestas regies de sabores calmos, do-lhes aspecto estranho, um pouco bomio. Nas noites brumosas, enfileiram-se tristemente ao longo dos passeios, empilhadas nos carrinhos ambulantes, luz frouxa de uma lanterna de papel vermelho. Acompanha-as um prego montono e agudo, abafado pelo rodar das viaturas e pelo estrpito dos nibus: - A dois soldos a de Valena! Para trs quartos dos Parisienses, este fruto colhido longe, vulgar na sua forma redonda, em que a rvore s deixou um delgado pezinho verde, tem algo de doaria, de confeitaria. O papel de seda que o envolve, as festas que acompanha, contribuem para esta impresso. Sobretudo quando se aproxima Janeiro, os milhares de laranjas disseminadas pelas ruas, todas essas cascas arrastadas pela lama do enxurro, levam a pensar numa espcie de rvore de Natal gigantesca que sacudisse por cima de Paris os seus ramos carregados de frutos fictcios. No h canto onde no se encontrem. Nos escaparates iluminados dos estabelecimentos, escolhidas e enfeitadas; porta das prises e dos hospcios, entre os pacotes de biscoitos e as pilhas de mas; diante da entrada dos bailes, dos espectculos domingueiros. E o seu perfume delicado mistura-se com o cheiro do gs, com o rudo das cegarregas, com a poeira das bancadas das galerias. Chegamo-nos a esquecer que so necessrias laranjeiras para produzir laranjas, 121 pois enquanto o fruto nos chega directamente do Meio-Dia, em caixas cheias, a rvore, podada, transformada, disfarada, metida na estufa quente onde passa o Inverno, s faz uma 'curta apario ao ar livre dos jardins pblicos.

Para conhecer bem as laranjas, necessrio t-las visto na sua terra, nas ilhas Baleares, na Sardenha, na Crsega, na Arglia, no ar azul-dourado, na atmosfera tpida do Mediterrneo. Estou a lembrar-me de um laranjalzinho s portas de Blid; l que elas eram lindas! No meio da folhagem escura, lustrosa, envernizada, os frutos tinham o brilho de vidros de cor, e douravam o ar ambiente com essa aurola de esplendor que cerca as flores deslumbrantes. Aqui e ali, algumas clareiras deixavam ver atravs dos ramos as muralhas da cidadezinha, o minarete de uma mesquita, o zimbrio de um marabuto, e, l no alto, a enorme massa do Atlas, verde na base, coroado de neve, como se estivesse envolto numa pele branca, toda encaracolada e rodeada de leves flocos de neve pendentes. Uma noite, quando l estive, no sei por que fenmeno ignorado h trinta anos, aquela zona de geadas e de invernias estendeu-se por cima da cidade adormecida e Blid acordou transformada, polvilhada de branco. Naquele ar argelino to leve, to puro, a neve parecia uma poalha de madreprola. Tinha reflexos de penas de pavo branco. O mais belo era o laranjal. As folhas, slidas, conservavam a neve intacta e direita como sorvetes em pratos de goma-laca, e todos os frutos, polvilhados de geada, tinham uma suavidade esplndida, uma radiao discreta, como o ouro velado por transparente tecido branco. Dava vagamente a impresso de uma festa de igreja, de sotainas vermelhas debaixo de vestidos de rendas, de dourados de altar envoltos em guipuras... Mas a minha melhor recordao das laranjas vem-me ainda de Barbicaglia, um grande jardim ao p de Ajcio, onde ia dormir a sesta nas horas de calor. Ali, as laranjeiras, mais altas, 122 mais espaadas do que em Blid, desciam at estrada, da qual o jardim estava separado apenas por uma sebe viva e por um fosso. Logo a seguir, ficava o mar, o imenso mar azul... Que belas horas passei naquele jardim! Por cima da minha cabea, as laranjeiras em flor e em fruto queimavam os seus perfumes de essncia. De tempos a tempos, uma laranja madura desprendia-se de repente e caa junto de mim, como que aturdida de calor, com um baque surdo, sem eco, na terra lisa. S tinha de estender a mo. Eram frutos soberbos, de um vermelho-prpura por dentro. Achava-os deliciosos, e, depois, o horizonte era to belo! Por entre as folhas viam-se retalhos de mar azul, deslumbrantes como pedaos de vidro estilhaado que faiscassem na bruma do ar. Junte-se a isto o movimento das vagas, agitando a atmosfera a grandes distncias, o murmrio cadenciado que nos embala como num barco invisvel, o calor, o aroma das laranjas... Ah, que bem se dormia no jardim de Barbicaglia! Algumas vezes, porm, no melhor momento da sesta, os rufos de tambor despertavam-me em sobressalto. Eram os infelizes soldados que vinham fazer exerccio em baixo, na estrada. Atravs dos buracos da sebe, distinguia o cobre dos tambores e os grandes aventais brancos por cima das calas vermelhas. Para se abrigarem um pouco da luz ofuscante que a poeira da estrada lhes enviava

implacavelmente, os pobres diabos colocavam-se ao p do jardim, sombra curta da sebe. E rufavam! E tinham calor!... Ento, arrancando-me fora ao meu hipnotismo, divertia-me a atirar-lhes alguns daqueles belos frutos de ouro vermelho, que pendiam perto da minha mo. O tambor visado parava. Havia um minuto de hesitao, um olhar circular, para ver donde viera a soberba laranja que rolava diante dele no fosso; depois, apanhava-a muito depressa e cravava-lhe os dentes, sem mesmo a descascar. Lembro-me tambm de que mesmo ao lado do Barbicaglia, 123 e separado apenas por um murinho baixo, havia um jardinzito bastante original, que dominava da altura a que me encontrava. Era um cantinho de terra burgusmente desenhado. Os seus carreiros de saibro fulvo, ladeados de buxo muito verde, os dois ciprestes da porta de entrada, davam-lhe o aspecto de uma casa de campo marselhesa. Nem uma linha de sombra. Ao fundo, um edifcio de pedra branca, com postigos de subterrneo rentes ao cho. Ao princpio, julguei que fosse uma casa de campo; mas depois de observar melhor a cruz que a encimava e uma inscrio que via de longe gravada na pedra, sem distinguir o texto, reconheci um tmulo de famlia corsa. A toda a volta de Ajcio h muitas destas capelinhas morturias, isoladas no meio de jardins. A famlia visita-as ao domingo, presta culto aos mortos. Assim compreendida, a morte menos lgubre do que na confuso dos cemitrios. S passos amigos lhe perturbam o silncio. Do meu lugar, via um simptico velho andar tranquilamente pelos carreiros. Todo o dia podava as rvores, cavava, regava e cortava as flores murchas, com grandes cuidados; depois, ao pr do Sol, entrava na capelinha onde dormiam os mortos da sua famlia; guardava a enxada, os ancinhos, os grandes regadores; tudo isto com a tranquilidade, com a serenidade, de um jardineiro de cemitrio. Todavia, sem que ele prprio desse por isso, aquele excelente homem trabalhava com certo recolhimento, tomava o cuidado de abafar todos os rudos e de fechar sempre discretamente a porta do subterrneo, como se temesse acordar algum. No grande silncio radioso, o arranjo do jardinzinho no perturbava um passarito e a sua vizinhana no causava a mnima tristeza. Somente dali o mar parecia mais imenso, o cu mais alto, e aquela sesta interminvel punha sua volta, no meio da natureza perturbante, cansativa fora de vida, o sentimento do repouso eterno... 124 AS DUAS ESTALAGENS Foi ao regressar de Nmes, numa tarde de Julho. Estava um calor sufocante. A perder de vista, a estrada branca, abrasada,

poeirenta, serpenteava entre oliveiras e canalhinhas, debaixo de um grande sol de prata fosca, que enchia todo o cu. Nem uma mancha de sombra, nem um sopro de vento. Nada, excepto a vibrao do ar quente e o canto estridente das cigarras, msica louca, ensurdecedora, de compassos apressados, semelhante prpria sonoridade da imensa vibrao luminosa... Caminhava em pleno deserto havia duas horas, quando, de repente, surgiu diante de mim, da poeira da estrada, um grupo de casas brancas. Era a chamada estao de muda de cavalos de So Vicente: cinco ou seis mas de extensos celeiros de telhado vermelho, um bebedouro sem gua no meio de umas figueiras enfezadas ", mesmo na extremidade do aglomerado, duas grandes estalagens em frente uma da outra, de cada lado do caminho. A vizinhana daquelas estalagens tinha um no sei qu de surpreendente. De um lado, um grande edifcio novo, cheio de vida, de animao, com todas as portas abertas, a diligncia parada defronte, os cavalos fumegantes a serem desatrelados, os passageiros apeados a beberem pressa na estrada, sombra curta das paredes, o ptio cheio de muares, de carruagens, os coheiros deitados debaixo dos alpendres, espera da fresca. L dentro, gritos, pragas, murros em cima das mesas, entrechocar de copos, barulho de bilhares, rolhas de limonadas a saltarem, e, sobrepondo-se a todo este tumulto, uma voz - 125 alegre, clara, a cantar de modo a fazer tremer as vidraas: A bela Margoton, Mal a manh nasceu, Pegou no seu cntaro de prata E foi com ele gua... como que abandonada. Erva debaixo do portal, janelas partidas, por cima da porta um ramo de azevinho j murcho, pendente como um penacho velho, os degraus da entrada calcetados com pedras da estrada... Tudo to pobre, to miservel, que seria uma verdadeira obra de caridade parar l para beber um copo. Ao entrar, deparou-se-me uma comprida sala deserta e triste que a luz ofuscante de trs grandes janelas sem cortinas tornava ainda mais triste e mais deserta. Algumas mesas coxas, onde pareciam esquecidos copos embaciados pela poeira, um bilhar rebentado, com as suas quatro ventanilhas em tal estado que pareciam escudelas, um sof amarelo e um balco velho, dormiam para ali, debaixo de um calor doentio e pesado. E moscas, moscas! Nunca vira tantas: no tecto, pousadas nos vidros, nos copos, aos cachos... Quando abri a porta, foi um zumbido, um frmito de asas, como se tivesse entrado numa colmeia. Ao fundo da sala, no vo de uma janela, estava uma mulher em p, encostada aos vidros, muito ocupada a olhar para fora. Tive de a chamar duas vezes:

- Eh, patroa! Virou-se lentamente e mostrou-me um pobre rosto de camponesa, engelhado, gretado, terroso, emoldurado em compridas fitas de renda rua, como as que usam as velhas das nossas aldeias. 126 Contudo, no era velha; mas as lgrimas tinham-na envelhecido. - Que deseja? - perguntou-me, limpando os olhos. - Sentar-me um momento e beber qualquer coisa... - Olhou-me muito atnita, sem se mexer donde estava, como se no tivesse compreendido. - Ento, isto aqui no uma estalagem? A mulher suspirou. - Sim... uma estalagem, se assim o quer... Mas porque no foi ali defronte, como os outros? muito mais alegre... - demasiado alegre para mim... Gosto mais da sua casa. E, sem esperar resposta, instalei-me a uma mesa. Quando se convenceu de que falava seriamente, a estalajadeira comeou a andar de um lado para o outro com ar muito atarefado, a abrir gavetas, a remexer em garrafas, a limpar copos, a enxotar as moscas... Via-se bem que ter um viajante para servir era um grande acontecimento. Por momentos, a infeliz parou e levou as mos cabea, como se desesperasse de chegar ao fim. Depois, passou diviso interior. Ouvi-a mexer em grandes chaves, martirizar fechaduras, remexer na arca do po, soprar, escovar, lavar pratos. De tempos a tempos, um grande suspiro, um soluo abafado... Ao cabo de um quarto de hora de idas e vindas, tinha diante de mim uma pratada de passerttes (passas de uva), um velho po de Beaucaire, duro como pedras, e uma garrafa de gua-p. - Pronto - disse a estranha criatura, e voltou imediatamente para o seu lugar diante da janela. Enquanto bebia, tentei puxar-lhe pela lngua. - No vem muita gente aqui, pois no, boa mulher? 127 - Oh, no, senhor, nunca vem ningum!... Quando ramos s ns c na terra, era diferente: tnhamos a posta, banquetes de caa durante o tempo dos marrecos, carruagens todo o ano... Mas desde que os vizinhos se estabeleceram aqui, perdemos tudo. As pessoas gostam mais de l ir. Na nossa casa acham tudo demasiado triste... De facto, a casa no muito agradvel. No sou bonita, sofro de sezes, morreram-me as minhas duas filhas... Ali, pelo contrrio, esto sempre a rir. A dona da estalagem uma arlesiana, uma bela mulher que usa rendas e um cordo de ouro de trs voltas ao pescoo. O condutor, que seu amante, leva para l a diligncia. Alm disso, as criadas so uma scia de desavergonhadas... Tambm, no lhes falta com quem aprender! Vai l toda a mocidade de Bezouces, de Redessan, de Jonquires. Os cocheiros do uma grande volta s para passar por casa dela... Eu... eu fico para

aqui todo o dia, sem ningum, a consumir-me. Dizia isto com voz distrada, indiferente, com a testa sempre encostada ao vidro. Evidentemente, havia na estalagem defronte qualquer coisa que a preocupava... De sbito, do outro lado da estrada, surgiu grande movimento. A diligncia agitava-se na poeira, ouviam-se chicotadas, a corneta do postilho e as raparigas, que tinham corrido para a porta, gritavam: - Adeus!... Adeus!... E, a seguir, a formidvel voz de pouco antes recomeou, mais alto: Pegou no seu cntaro de prata E foi com ele gua; De l a viram vir Trs cavaleiros de exrcito... Ao ouvir esta voz, todo o corpo da estalajadeira estremeceu; e, virando-se para mim, perguntou-me em voz baixa: - Ouviu? o meu marido... No verdade que canta bem? Olhei-a, estupefacto. - Como? O seu marido!... Ento, ele tambm l vai? E ela, com ar magoado, mas com grande doura, respondeu-me : - Que quer o senhor? Os homens so assim, no gostam de ver chorar; e eu estou sempre a chorar desde a morte das pequenas... Depois, este grande casebre onde no vem ningum to triste... Ento, quando se aborrece de mais, o meu pobre Jos vai beber ali defronte, e, como tem uma bonita voz, a arlesiana manda-o cantar. Caluda!... L recomea ele. E, trmula, com as mos estendidas e derramando grossas lgrimas que a tornavam ainda mais feia, ficou como que extasiada diante da janela, a ouvir o seu Jos cantar para a arlesiana: O primeiro disse-lhe: - Bons dias, minha linda! 128 - 129 EM MILiAN Notas de viagem Desta vez vou levar-vos a passar o dia numa bonita cidadezinha de Arglia, a duzentas ou trezentas lguas do moinho... Afastemo-nos um pouco dos tamboris e das cigarras... Vai chover, o cu est cinzento, as cristas do monte Zaccar escondem-se na bruma. Domingo triste... No meu quartinho de hotel, com a janela aberta para as muralhas rabes, tento distrair-me a acender cigarros... Puseram minha disposio toda a biblioteca do hotel. Entre uma histria muito pormenorizada da

administrao e alguns romances de Paul de Kock, descobri um volume desirmanado de Montaigne... Aberto o livro ao acaso, reli a carta admirvel acerca da morte de La Botie... E aqui estou eu mais sonhador e mais melanclico do que nunca... Caem j algumas gotas de chuva. Cada gota, ao cair no rebordo da janela, abre uma grande estrela na poeira acumulada no vidro desde as chuvas do ano passado... O livro escorrega-me das mos e fico longos instantes a olhar esta estrela melanclica... Batem duas horas no relgio da cidade - um antigo marabuto de que avisto daqui as esguias muralhas brancas... Pobre diabo de marabuto! Quem lhe havia de dizer, h trinta anos, que um dia traria no meio do peito um grande mostrador municipal e que todos os domingos, ao soarem as duas horas, daria s igrejas de Milian o sinal de tocar as vsperas?... Dang! Dong! L comeam os sinos!... Ouvi-los-emos durante muito tempo... 130 Decididamente, este quarto triste. As grandes aranhas da manh, chamadas pensamentos filosficos, teceram as suas teias em todos os cantos... Vamos at l fora. Chego grande praa. A banda de msica do 3 de linha, que um pouco de chuva no assusta, cerra fileiras em torno do seu chefe. A uma das janelas da diviso, aparece o general, cercado pelas filhas; na praa, o subprefeito passeia para c e para l de brao dado com o juiz de paz. Uma meia dzia de garotos rabes, seminus, jogam ao berlinde, num canto, soltando gritos ferozes. Alm, um velho judeu esfarrapado vem procurar um raio de sol que deixou ontem neste mesmo lugar e que fica admirado de no encontrar... Um, dois, trs, marche! A banda toca uma antiga mazurca de Talexy, que os realejos tocaram no ltimo Inverno debaixo das minhas janelas. Esta mazurca, que dantes me aborrecia, agora comove-me at s lgrimas. Oh, como so felizes os msicos do 3? Com os olhos fixos nas semicolcheias, brios de ritmo e de barulho, s pensam em contar os seus compassos. A sua alma, toda a sua alma, est posta naquele quadradinho de papel do tamanho da palma da mo, que treme na ponta do instrumento, seguro por uma pina de cobre. Um, dois, trs, marche! Tudo se resume nisto para esta boa gente; nunca as msicas nacionais que tocam lhes deram saudades da sua terra... Ai! Pois a mim, que no perteno banda, esta msica entristece-me e por isso me afasto... Onde poderia passar agradavelmente esta cinzenta tarde de domingo? Bom, a loja de Sid'Omar est aberta... Entremos na loja de Sid'Omar. 131 Apesar de ter uma loja, Sid'Omar no um lojista. um prncipe de sangue, o filho de um antigo Bei de Argel que morreu estrangulado pelos janzaros... Na altura da morte do pai,

Sid'Omar refugiou-se em Milian com a me, que adorava, e viveu alguns anos como um grande senhor filsofo entre os seus galgos, os seus falces, os seus cavalos e as suas mulheres, em belos palcios muito frescos, cheios de laranjeiras e de fontes. Vieram os Franceses. Sid'Omar, ao princpio nosso inimigo e aliado de Abd-el-Kader, acabou por se malquistar com o emir e submeteu-se. Para se vingar, o emir entrou em Milian, na ausncia de Sid'Omar, pilhou os seus palcios, cortou as suas laranjeiras, levou-lhe os cavalos e as mulheres e esmagou o pescoo da me debaixo da tampa de um grande cofre... A clera de Sid'Omar foi terrvel: ps-se imediatamente ao servio da Frana e nunca tivemos melhor nem mais feroz soldado do que ele, enquanto durou a nossa guerra contra o emir. Terminada a guerra, Sid'Omar regressou a Milian; mas ainda hoje, quando se fala de Abd-el-Kader diante dele, empalidece e os seus olhos se incendeiam. Sid'Omar tem 60 anos. A despeito da idade e das bexigas, o seu rosto ainda belo: grandes clios, um olhar de mulher, um sorriso encantador, o ar de um prncipe. Arruinado pela guerra, s lhe resta da sua antiga opulncia uma quinta na plancie do Chlif e uma casa em Milian, onde vive burgusmente com os trs filhos, educados debaixo da sua orientao. Os chefes indgenas nutrem por ele grande venerao. Quando surge uma disputa, tomam-no voluntariamente por rbitro e o seu julgamento quase sempre lei. Sai pouco; encontra-se todas as tardes numa loja pegada sua casa e que deita para a rua. O mobilirio da sala no rico: paredes caiadas de branco, um banco circular de madeira, coxins, compridos cachimbos, dois braseiros... l que Sid'Omar d audincia e administra justia. Um Salomo numa loja... 132 Hoje, domingo, a assistncia numerosa. Uma dzia de chefes esto sentados, nos seus albornozes, a toda a volta da sala. Cada um tem junto de si um grande cachimbo e uma chvenazinha de caf, numa delicada bandeja de filigrana. Entro; ningum se mexe... Do seu lugar, Sid'Omar manda ao meu encontro o seu mais encantador sorriso e convida-me com a mo a sentar-me ao p dele, num grande coxim de seda amarela; depois, com um dedo nos lbios, faz-me sinal para escutar. O caso este: o caide dos Beni-Zuguezugues teve uma disputa qualquer com um judeu de Milian, por causa de um pedao de terra, e as duas partes acordaram submeter o diferendo ao julgamento de Sid'Omar. A audincia foi marcada para o mesmo dia e convocaram-se as testemunhas. Mas, de repente, o judeu reconsiderou, apresentou-se sozinho, sem testemunhas, e declarou preferir entregar o caso ao juiz de paz dos Franceses, em vez de a Sid'Omar... O assunto estava neste p quando cheguei. O judeu - um velho de barba terrosa, tnica castanha, meias azuis e barrete de veludo - levanta o nariz ao cu, rola os olhos suplicantes, beija as pantufas de Sid'Omar, inclina a cabea, ajoelha-se, junta as mos... No compreendo o rabe, mas pela pantomima do judeu e pelas palavras zouge de paix, zouge de paix, que se percebem a todo o instante, adivinho por completo este

eloquente discurso: - No duvidamos de Sid'Omar, Sid'Omar sbio, Sid'Omar justo... Todavia, o zouge de paix pode resolver melhor o nosso caso. O auditrio, indignado, fica impassvel, como rabe que ... Estendido no seu coxim, com os olhos semicerrados e a boquilha de mbar nos lbios, Sid'Omar - deus da ironia - sorri e escuta. De sbito, no meio do seu mais belo perodo, o judeu interrompido por um enrgico caramba! que o detm de chofre; 133 ao mesmo tempo, um colono espanhol que estava ali como testemunha do caide deixa o seu lugar, aproxima-se do Iscariotes e despeja-lhe por cima da cabea uma cabazada de imprecaes em todas as lnguas e de todas as cores - entre outros, certo vocbulo francs demasiado grosseiro para ser reproduzido aqui... O filho de Sid'Omar, que compreende o francs, cora ao ouvir semelhante palavra na presena do pai e sai da sala (reter esta particularidade da educao rabe). O auditrio continua impassvel e Sid'Omar sempre sorridente. O judeu levanta-se e dirige-se para a porta s arrecuas, a tremer de medo, mas sem deixar de gaguejar o seu eterno zouge de paix, zouge de paix... Sai. O espanhol, furioso, precipita-se atrs dele, apanha-o na rua e - zs!, trs!- prega-lhe duas bofetadas em pleno rosto... O Iscariotes cai de joelhos, com os braos em cruz... O espanhol, um pouco envergonhado, reentra na loja... Depois de ele entrar, o judeu levanta-se e passeia um olhar manhoso pela multido variegada que o cerca. H ali gente de todas as cores - malteses, magoes, negros, rabes -, todos irmanados no dio ao judeu e contentes por verem maltratar um deles... O Iscariotes hesita um instante e depois, segurando um rabe pelas abas do albornoz, diz-lhe: - Tu viste, Achmed, tu viste... tu estavas ali... O cristo bateu-me... Tu sers testemunha... bem... bem... tu sers testemunha. O rabe solta o albornoz e repele o judeu... No sabe nada, no viu nada; precisamente naquele momento, tinha virado a cabea... - Mas tu, Kaddur, tu viste... tu viste o cristo bater-me... - grita o infeliz Iscariotes a um corpulento negro que descasca um figo da Berberia. O negro cospe em sinal de desprezo e afasta-se; no viu nada... Tambm no viu nada o maltesito cujos olhos negros como o carvo brilham maliciosamente debaixo do barrete, 134 igualmente no viu nada a magoesa cor de tijolo que foge a rir, com o seu cabaz de roms cabea... O judeu bem grita, suplica e se afadiga... Nem uma testemunha! Ningum viu nada... Por felicidade, dois dos seus correligionrios passam na rua neste momento, de cabea baixa, rentes s muralhas. O judeu chama-os:

- Depressa, depressa, meus irmos! Depressa ao procurador! Depressa ao zouge de paix!... Vocs viram... vocs viram bater num velho! Se viram?... Creio bem que sim. chvenas, acende os cachimbos. Conversa-se e ri-se s gargalhadas. to divertido ver desancar um judeu!... No meio da vozearia e do fumo, aproximo-me disfaradamente da porta; apetece-me ir dar uma volta para os lados de Israel, a fim de saber como os correligionrios do Iscariotes receberam a afronta feita ao seu irmo... - Venha jantar comigo esta noite, mussi! - grita-me o bom Sid'Omar. Aceito e agradeo. Eis-me na rua. No bairro judaico, toda a gente est em movimento. O caso j deu muito que falar. Ningum nas locandas. Bordadores, alfaiates, albardeiros - todo o Israel est na rua... Os homens - de barrete de veludo e meias de l azul - gesticulam ruidosamente, em grupos... As mulheres, plidas, bochechudas, rgidas como dolos de madeira nos seus vestidos lisos de peitilho dourado, com o rosto emoldurado de fitinhas negras, andam de grupo em grupo como se miassem... No momento da minha chegada, a multido agita-se. Empurram-se, precipitam-se... Apoiado nas suas testemunhas, o judeu - heri da aventura - passa entre duas alas de barretes, debaixo de uma chuva de exortaes: - Vinga-te, irmo; vinga-nos, vinga o povo judeu. No tenhas receio; tens a lei por ti. 135 Um ano asqueroso, a cheirar a pez e a couro velho, aproxima-se de mim com ar lamuriante e diz-me, soltando grandes suspiros: - V como so tratados os pobres judeus! um velho, repara. Quase o mataram. Na verdade, o pobre Iscariotes parece mais morto do que vivo. Passa diante de mim com o olhar mortio, o rosto desfigurado; no caminha, arrasta-se... S uma grande indemnizao capaz de o curar; por isso no o levam ao mdico, mas sim ao procurador. H muitos procuradores na Arglia, quase tantos como gafanhotos. O ofcio rendoso, segundo parece. Em todo o caso, tem a vantagem de se poder exercer livremente, sem exames, sem caues, sem estgios... Tal como em Paris nos fazemos homens de letras, assim se fazem procuradores na Arglia. Para tanto, basta saber um bocado de francs, de espanhol, de rabe, trazer sempre um cdigo nas bolsas da sela e ter, sobretudo, o esprito do ofcio. As suas funes so muito variadas; sucessivamente advogado, solicitador, corretor, perito, intrprete, guarda-livros, comissrio, escrivo pblico; enfim, o mestre Tiago da colnia. Simplesmente, Harpago tinha apenas um mestre Tiago e a colnia tem mais do que os precisos. S em Milian contam-se s dzias. Em geral, para evitar as despesas de escritrio, estes cavalheiros recebem os seus clientes no caf da praa principal e do as suas consultas - do-nas? - entre o absinto e o chomporeou.

Foi para o caf da praa principal que o digno Iscariotes se encaminhou, ladeado pelas suas duas testemunhas. Deixemo-lo ir. Sa do bairro judaico e passei diante da casa da administrao rabe. Vista de fora, com o seu telhado de ardsia - 136 e a bandeira francesa a flutuar por cima, parece uma Mairie de aldeia. Conheo o intrprete; entremos para fumar um cigarro com ele. De cigarro em cigarro, acabarei decerto por matar este domingo sem sol! O ptio que precede a administrao regurgita de rabes esfarrapados. So cerca de cinquenta, espera de serem recebidos, agachados ao longo da parede, nos seus albornozes. Esta antecmara beduna exala - mesmo ao ar livre - um cheiro acre a bodum humano. Passemos depressa... Na administrao, encontro o intrprete s voltas com dois grandes tagarelas, completamente nus debaixo de compridas mantas imundas, que contam com uma mmica endiabrada no sei que histria de um colar roubado. Sento-me numa esteira a um canto e observo... Uma linda farda, a farda do intrprete; e como o intrprete de Milian a sabe vestir bem! Completam-se mutuamente. A farda azul-cu, tem alamares negros e botes dourados, reluzentes. O intrprete louro, rosado, e tem o cabelo todo encaracolado; um belo hussardo cheio de bom humor e de imaginao. Um pouco tagarela - fala tantas lnguas!-, um pouco cptico - conheceu Renan na escola orientalista! -, grande amador de desporto, to vontade no acampamento rabe como nos saraus da subprefeita, danando a mazurca melhor do que ningum e fazendo cuscuz como nenhum outro. Parisiense, e est tudo dito. Aqui tendes o meu homem, e no admira que as damas se apaixonem por ele. No tocante a elegncia, s tem um rival: o sargento da administrao rabe. Este - com a sua tnica de pano branco e as suas polainas com botes de madreprola - o desespero e a inveja de toda a guarnio. Destacado na administrao rabe, est dispensado do servio de linha e exibe-se constantemente nas ruas, enluvado de branco, frisado de fresco, com grandes livros de registo debaixo do brao. Admiram-no e temem-no. uma autoridade. Decididamente, esta histria do colar roubado ameaa prolongar-se demasiado. Boas tardes! No espero pelo fim. 137 Ao retirar-me, encontro a antecmara em alvoroo. A multido comprime-se em volta de um indgena de elevada estatura, plido, altivo, coberto com um albornoz negro. Este homem bateu-se h oito dias com uma pantera, em Zaccar. A pantera morreu, mas o homem ficou com metade do brao comido. tarde e de manh vem tratar-se administrao rabe e de todas as vezes o detm no ptio para o ouvirem contar a sua histria. Fala devagar, numa bela voz gutural. De tempos a tempos, afasta o albornoz e mostra o brao esquerdo, que traz ao peito, envolto em ligaduras ensanguentadas.

Mal chego rua, desencadeia-se uma violenta tempestade. Chuva, troves, relmpagos, siroco... Abriguemo-nos depressa. Enfio por uma porta ao acaso e caio no meio de um grupo de nmadas, empilhados debaixo dos arcos de um ptio mourisco. Este ptio fica pegado mesquita de Milian; o refgio habitual da piolheira muulmana e chama-se o ptio dos pobres. Grandes galgos magros, todos cobertos de parasitas, vm rondar-me com ar feroz. Encostado a um dos pilares da galeria, procuro manter certo aprumo e, sem falar com ningum, olho a chuva que esparrinha nas lajes coloridas do ptio. Os nmadas esto espalhados pelo cho, deitados aos montes. Perto de mim, uma rapariga quase bela, com o colo e as pernas vela, grossos braceletes de ferro nos pulsos e nos artelhos, canta uma ria extravagante, em trs notas melanclicas e fanhosas. Ao mesmo tempo que canta, d de mamar a uma criana completamente nua, cor de bronze, e, com o brao livre, esmaga cevada num almofariz de pedra. A chuva, impelida por um vento agreste, encharca de vez em quando as pernas da lactante e o corpo do lactente. A nmada pouco se importa com isso e continua a cantar debaixo da ventania, a esmagar a cevada e a dar o seio. 138 A tempestade diminui. Aproveito uma aberta, apresso-me a deixar o ptio dos milagres e dirijo-me para o jantar de Sid'Omar; so horas... Ao atravessar a praa principal, encontro ainda o meu velho judeu de h pouco. Apoia-se no seu procurador; as testemunhas caminham alegremente atrs; um bando de irrequietos garotos judeus salta volta deles... Todos os rostos esto radiantes. O procurador encarrega-se do assunto e pedir ao tribunal dois mil francos de indemnizao. Em casa de Sid'Omar servem-me um jantar sumptuoso. A sala d para um elegante ptio mourisco, onde cantam duas ou trs fontes... Excelente banquete turco, encomendado ao baro Brisse. Entre outros pratos, noto um frango com amndoas, cuscuz com baunilha, carne de tartaruga - um pouco indigesta, mas de sabor requintado - e biscoitos com mel, a que chamam bocados do cdi... Como vinho, s champanhe. A despeito da lei muulmana, Sid'Omar bebe um pouco - quando os criados esto de costas... Depois do jantar, passamos ao quarto do nosso anfitrio, onde nos servem doces, cachimbos e caf... O mobilirio do quarto muito simples: um sof, algumas esteiras; ao fundo, um grande leito muito alto, em cima do qual esto dispersos coxinzinhos vermelhos bordados a ouro... Da parede pende uma velha pintura turca, representando as faanhas de um certo almirante Hamadi. Parece que na Turquia os pintores s empregam uma cor em cada quadro. Este quadro dedicado ao verde: o mar, o cu, os navios, o prprio almirante Hamadi, tudo verde, e que verde!... O uso rabe exige que nos retiremos cedo. Tomado o caf, fumados os cachimbos, dou as boas-noites ao meu anfitrio e deixo-o com as suas mulheres. Aonde irei acabar a noite? demasiado cedo para me deitar, os clarins dos spais ainda no tocaram a recolher. Por outro lado,

os coxinzinhos dourados de Sid'Omar danam minha roda farndolas fantsticas que me impediriam de dormir... J que estamos diante do teatro, entremos um momento. 139 O teatro de Milian um antigo armazm de forragens razoavelmente transformado em sala de espectculos. Grandes candeeiros que se enchem de azeite durante o intervalo fazem as vezes de lustres. Os lugares de plateia so lugares de p e os de orquestra em cima de bancos. As galerias so lugares de luxo, porque tm cadeiras de palha... A toda a volta da sala, um comprido corredor escuro, sem parquete... Julgamo-nos na rua; nada falta... Quando entrei, a pea j comeara. Com grande surpresa minha, os actores no so maus (refiro-me aos homens); tm entusiasmo, tm vida... So quase todos amadores, soldados do 3. O regimento sente-se orgulhoso deles e vem aplaudi-los todas as noites. Quanto s mulheres, ai Jesus!... Sempre o eterno feminino dos teatrinhos de provncia, pretensioso, exagerado e falso... H, no entanto, duas damas que me interessam especialmente, duas judias de Milian, muito novas, que se estreiam no teatro... Os pais esto na sala e parecem encantados. Esto convencidos de que as suas filhas vo ganhar milhares de duros nesta profisso. A lenda de Raquel, israelita milionria e comediante, j se espalhou entre os judeus do Oriente. Nada mais cmico nem mais comovente do que as duas pequenas judias no palco... Conservam-se timidamente num canto da cena, empoadas, pintadas, decotadas e muito direitas. Tm frio e vergonha. De tempos a tempos, estropiam uma frase que no compreendem e, enquanto falam, os seus grandes olhos hebraicos contemplam a sala com espanto. 140 Saio do teatro... No meio do escuro que me rodeia, ouo gritos num canto da praa... Sem dvida, so alguns malteses que procuram ajustar contas facada... Regresso ao hotel, lentamente, ao longo das muralhas. Um aroma adorvel de laranjeiras e tuias sobe da plancie. O ar est suave e o cu quase limpo... Ao longe, ao fundo do caminho, ergue-se um velho fantasma de muralha, restos de algum templo antigo. Aquele muro sagrado; todos os dias as mulheres rabes vo l pendurar ex-votos, fragmentos de haques e de fotos, longas tranas de cabelos ruivos entretecidos de fios de prata, abas de albornozes... Tudo isto adeja iluminado por um fino raio de luar, ao sabor da aragem tpida da noite... 141 OS GAFANHOTOS

Mais uma recordao da Arglia e depois regressaremos ao moinho... Na noite da minha chegada a esta granja do Sahel, no pude dormir. O ineditismo da regio, a agitao da viagem, os uivos dos chacais, depois um calor enervante, opressivo, que sufocava por completo, como se as malhas do mosqui teiro no deixassem passar um sopro de ar... Quando abri a janela, ao romper do dia, uma bruma pesada, de estio, que se revolvia lentamente, com as extremidades franjadas de negro e rosa, pairava no ar como uma nuvem de p por cima de um campo de batalha. Nem uma folha se mexia, e, nos belos jardins que tinha diante dos olhos, as vinhas espaadas nas encostas, torreira do sol que torna os vinhos aucarados, os frutos da Europa abrigados num canto de sombra, as pequenas laranjeiras, as tangerineiras em longas filas microscpicas, tudo tinha o mesmo aspecto triste, a imobilidade das folhas que esperam a tempestade. As prprias bananeiras, os grandes canaviais de um verde suave, sempre agitados por alguma aragem que emaranha a sua fina cabeleira to leve, erguiam-se silenciosos e direitos, em penachos regulares. Fiquei um momento a contemplar aquela plantao maravilhosa, onde se encontravam reunidas todas as rvores do mundo e cada uma dava, na estao prpria, mesmo no exlio, as suas flores e os seus frutos. Entre os campos de trigo e os macios de sobreiros, brilhava um curso de gua que parecia refrescar a manh sufocante; e, enquanto admirava o luxo e a ordem de tais coisas, esta bela propriedade com as suas arcadas mouriscas, os seus terraos todos rosados pela aurora, as cavalarias e os telheiros agrupados volta, pensava que h vinte anos, 142 quando esta boa gente veio instalar-se neste vale do Sahel, s encontrou uma arruinada barraca de cantoneiro, uma terra inculta eriada de palmeiras-ans e de lentiscos. Tudo a criar, tudo a construir. Os rabes revoltavam-se a cada instante. Era necessrio deixar a charrua e pegar em armas. Em seguida, as doenas, as oftalmias, as febres, as ms colheitas, as hesitaes da inexperincia, a luta com uma administrao tacanha, sempre flutuante. Quantos esforos! Quantas fadigas! Quanta vigilncia incessante! Ainda agora, apesar de terem findado os maus tempos e de haverem conquistado a riqueza por to alto preo, ambos, o homem e a mulher, so os primeiros a levantar-se na granja. A esta hora matinal j os vejo andar de um lado para o outro nas grandes cozinhas do rs-do-cho a tratar do caf dos trabalhadores. Pouco depois toca uma sineta e, passado um momento, o pessoal desfila no caminho. So vinhateiros da Borgonha, agricultores cabilas esfarrapados e de barrete vermelho na cabea, cavadores magoes de perna vela, malteses, luqueses, toda uma populao heterognea, difcil de dirigir. Diante da porta, o colono distribui a cada um a sua tarefa do dia, em voz breve, um pouco rude. Quando termina, o excelente homem

levanta a cabea, perscruta o cu com ar inquieto e, vendo-me janela, diz-me: - Mau tempo para a agricultura... Vem a o siroco. Com efeito, medida que o Sol se levanta, rajadas de ar ardentes, sufocantes, chegam-nos do sul como da porta de um forno que se abre e fecha. Ningum sabia onde se meter nem o que viria. Passa-se assim toda a manh. Tomamos caf sentados nas esteiras da galeria, sem coragem para falar nem para nos mexermos. Os ces, estiraados, procuram a frescura das lajes, com a respirao opressa. O almoo anima-nos um pouco, um almoo copioso e singular, composto de carpas, trutas, javali, ourio, manteiga de Staueli, vinhos de Crescia, goiabas, bananas, toda uma variedade de iguarias exticas que representam bem a natureza to complexa de que estamos rodeados... Chegou a altura de nos levantarmos da mesa. 143 De repente, ouvem-se grandes gritos junto da porta de sacada, fechada para nos preservar do calor escaldante do jardim: - Os gafanhotos! Os gafanhotos! O meu anfitrio empalidece como um homem a quem se anuncia uma desgraa e samos precipitadamente. Durante dez minutos reina na habitao, ainda h pouco to calma, o rudo de passos precipitados, de vozes indistintas, perdidas na agitao de um despertar. Da sombra dos vestbulos em que estavam adormecidos, os criados precipitam-se para fora e fazem ressoar com paus, forquilhas e manguais todos os utenslios de metal que encontram mo: caldeires de cobre, bacias e caarolas. Os pastores sopram nas suas trompas de apascentar. Outros servem-se de bzios e cornetas de caa. Tudo isto provoca um alarido espantoso, discordante, dominado por uma nota agudssima, os lu! lu! lu! das mulheres rabes que acorreram de um aduar vizinho. s vezes, parece que basta um grande barulho, uma convulso sonora do ar, para afugentar os gafanhotos e impedi-los de descer. Mas onde esto os terrveis animais? No cu, vibrante de calor, s vejo uma nuvem vir do horizonte, acobreada, compacta, como uma nuvem de granizo, acompanhada de um rudo de vento tempestuoso a soprar nos mil ramos de uma floresta. So os gafanhotos. Apoiados uns nos outros pelas asas escuras estendidas, voam em massa e, a despeito dos nossos gritos, dos nossos esforos, a nuvem avana sempre e projecta na plancie uma sombra imensa. Em breve est sobre as nossas cabeas. Nas extremidades v-se durante um segundo um franjamento, um rasgo. Como as primeiras gotas de um aguaceiro, alguns destacam-se, visveis, arruivados; em seguida, toda a nuvem rebenta e a saraivada de insectos cai densa e estrepitosa. A perder de vista, os campos ficam cobertos de gafanhotos, de gafanhotos enormes, do tamanho de um dedo. 144

Ento, comea o massacre. O esmagamento provoca um murmrio repugnante, parecido com o espezinhar de palha. As grades, os alvies e as charruas revolvem o solo movedio, mas quantos mais se matam, mais gafanhotos aparecem. Fervilham em camadas, com as altas patas entrelaadas; os de cima praticam prodgios de destreza, saltam ao focinho dos cavalos atrelados para esta lavoura singular. Os ces da granja e os do aduar correm atravs dos campos, atiram-se a eles, trituram-nos com furor. Nesta altura, duas companhias de atiradores argelinos, de clarins frente, chegam em socorro dos infelizes colonos e a matana muda de aspecto. Em vez de esmagarem os gafanhotos, os soldados queimam-nos com compridos rastilhos de plvora acesos, espalhados pelos campos. Cansado de matar, enjoado pelo cheiro infecto, volto para casa. Dentro desta h quase tantos como l fora. Entraram pelas aberturas das portas e das janelas e pelos respiradouros das chamins. Nas salincias das guarnies das paredes, nos cortinados j todos rodos, arrastam-se, caem, voam e trepam pelas paredes brancas como uma sombra gigantesca duplamente repugnante. E sempre o mesmo cheiro insuportvel. Ao jantar, tivemos de passar sem gua: cisternas, bacias, poos, viveiros, tudo estava infectado. noite, no meu quarto, onde no entanto se tinham matado enormes quantidades, ainda ouvi zumbidos debaixo dos mveis e um crepitar de litros semelhante ao estalido das vagens quando rebentam por excesso de calor. Naquela noite no pude dormir. Alis, em torno da granja, toda a gente estava acordada. As chamas rastejavam duma ponta outra da plancie. Os atiradores argelinos continuavam a matana. No dia seguinte, quando abri a minha janela, como na vspera, os gafanhotos j tinham partido; mas que devastao haviam deixado atrs deles! Nem uma flor, nem uma folhinha de erva; estava tudo negro, rodo, calcinado. As bananeiras, os damasqueiros, os pessegueiros, as tangerineiras, 145 s se reconheciam pelo aspecto dos seus ramos despidos, sem o encanto e a agitao das folhas, que do vida s rvores. Limpavam-se os depsitos de gua e as cisternas. Por toda a parte, os moos de lavoura cavavam a terra para destruir os ovos deixados pelos insectos. Cada torro era virado e cuidadosamente desfeito. E o corao apertava-se-nos ao vermos as mil razes brancas, cheias de seiva, que apareciam no meio da runa total daquela terra frtil... 146 O ELIXIR DO REVERENDO PADRE GAUCHER - Beba isto, vizinho, e diga-me que tal lhe parece. E, gota a gota, com o cuidado minucioso de um lapidrio a contar

prolas, o cura de Graveson deitou-me dois dedos de um licor verde, dourado, quente, brilhante, delicado... que pareceu encher-me o estmago de sol. - o elixir do padre Gaucher, a alegria e a sade da nossa Provena - disse-me o excelente homem, com ar de triunfo. - Fabricam-no no convento dos Premonstratenses, a duas lguas do seu moinho... No verdade que o melhor licor do mundo?... E se soubesse como divertida a histria deste elixir! Ora oua... Ento, muito ingenuamente, sem uma pontinha de malcia, na sala de jantar do presbitrio, to cndida e to calma com a sua Via Sacra em quadradinhos e os seus bonitos cortinados claros engomados como sobrepelizes, o abade comeou a contar-me uma historieta ligeiramente cptica e irreverente, maneira de um conto de Erasmo ou de Assoucy. - H vinte anos, os Premonstratenses, ou, -antes, os padres brancos, como lhes chamavam os nossos Provenais, tinham cado numa grande misria. Se visse a sua casa nesse tempo, ter-lhe-ia feito pena. A fachada e a torre Pacmio caam aos bocados. A toda a volta do claustro, cheio de ervas, as colunatas fendiam-se, os santos de pedra caam dos seus nichos. Nem um vitral inteiro, nem uma porta em condies. Nos ptios, nas capelas, o vento do Rdano soprava como em Camargue, apagava as velas, 147 arrancava o chumbo das vidraas, fazia a gua benta trasbordar das pias. Mas o mais triste de tudo era o campanrio do convento, silencioso como um pombal vazio, e os frades, falta de dinheiro para comprarem um sino, viam-se obrigados a tocar as matinas com matracas de pau de amendoeira!... Pobres padres brancos! Estou ainda a v-los na procisso do Corpo de Deus a desfilarem tristemente nas suas capas remendadas, plidos, magros, alimentados de citres e de melancias, e atrs deles o Sr. Abade, de cabea baixa, muito envergonhado por mostrar luz do dia o seu bculo desdourado e a sua mitra de l branca roda das traas. As senhoras da confraria choravam de pena no cortejo e os corpulentos porta-estandartes riam uns com os outros baixinho e diziam, apontando para os pobres monges: 'Os estorninhos emagrecem quando andam em bandos.' O caso que os infortunados padres brancos chegaram a perguntar a si mesmos se no fariam melhor em levantar voo atravs do mundo e procurar alimento cada um por seu lado. Ora, num dia em que este grave problema se debatia no captulo, vieram anunciar ao prior que o irmo Gaucher pedia que o ouvissem em conselho... Para seu governo, fique sabendo que o irmo Gaucher era o boieiro do convento; quer dizer, passava os dias a vaguear de arcada para arcada do claustro, tocando diante de si duas vacas esquelticas que procuravam a erva nas fendas do pavimento. Criado at aos 12 anos por uma velha tonta da regio de Baux, conhecida pela Tia Bgon, e recolhido depois pelos monges, o infeliz boieiro s aprendera a

guardar gado e a rezar o seu Pater noster; e ainda o dizia em provenal, pois tinha a cabea dura e o esprito aguado como uma adaga de chumbo. Cristo fervoroso, alis, embora um pouco visionrio, usava o cilcio e respeitava a regra com uma convico robusta e com uns braos!... Quando o viram entrar na sala do captulo, simplrio e bronco, a saudar a assembleia com uma perna recuada, 148 prior, cnegos, tesoureiro, todos desataram a rir. Era sempre o efeito que produzia quando chegava a qualquer parte, com a sua cabea grisalha, a sua barba de chibo e os seus olhos um pouco loucos; por isso, o irmo Gaucher no se ofendeu. - Meus reverendos - disse em tom bonacheiro, torcendo o seu rosrio de caroos de azeitona -, com razo se diz que os tonis vazios cantam melhor. Imaginai que fora de espremer a minha pobre cabea, j to espremida, creio ter encontrado o meio de sairmos de todos os apuros. Eis como: sabeis bem quem era a Tia Bgon, a boa mulher que cuidou de mim em pequeno, (Deus tenha a sua alma em descanso, velha brejeira! Cantava canes bem indecentes, depois de beber.) Fiquem sabendo, meus reverendos padres, que a Tia Bgon, dado o seu modo de vida, conhecia as ervas das montanhas to bem ou melhor do que um velho melro da Crsega. Tanto assim que preparou, no fim dos seus dias, um elixir incomparvel, misturando cinco ou seis espcies de simples que amos colher juntos nos Alpilles. H quantos anos isto foi! Mas julgo que com a ajuda de Santo Agostinho e a permisso do nosso padre-abade poderei, procurando bem, tornar a encontrar a composio do misterioso elixir. Depois, s teremos de o engarrafar e de o vender um bocadinho caro, o que permitir comunidade enriquecer despreocupadamente, como os nossos irmos da Trapa e da Grande... No lhe deram tempo de acabar. O prior levantara-se para lhe saltar ao pescoo. Os cnegos apertavam-lhe as mos. O tesoureiro, ainda mais comovido do que todos os outros, beijava-lhe com respeito a fmbria desfiada do escapulrio... Depois, cada um voltou para o seu cadeiral, a fim de deliberarem; e, acto contnuo, o captulo decidiu que se confiassem as vacas ao irmo Trasbulo, para que o irmo Gaucher se pudesse dedicar por completo preparao do seu elixir. 149 Como foi que o bom do frade conseguiu encontrar a receita da Tia Bgon? custa de quantos esforos? custa de quantas viglias? No o diz a histria. Simplesmente, do que no h dvida de que, ao cabo de seis meses, o elixir dos padres brancos era j muito popular. Em todo o condado, em toda a regio de Arles, nem um mas, nem uma granja, queria deixar de ter ao fundo da despensa, entre as garrafas de vinho velho e os frascos de azeitonas midas, uma botijazinha de barro

castanho-escuro, selada com as armas da Provena e com um monge em xtase num rtulo prateado. Graas fama do seu elixir, a casa dos Premonstratenses enriqueceu muito rapidamente. Levantaram de novo a torre Pacmio. O prior teve uma mitra nova e a igreja bonitos vitrais granitados; e no campanrio finamente rendilhado instalou-se toda uma companhia de sinos e sinetas, numa bela manh de Pscoa, a badalar e a tocar em carrilho, todos uma. Quanto ao irmo Gaucher, pobre frade leigo cujas rusticidades divertiam tanto o captulo, no houve mais problemas com ele no convento. Dali em diante, passou a ser conhecido pelo reverendo padre Gaucher, homem inteligente e de grande saber, que vivia completamente margem das ocupaes mais midas e rotineiras do claustro e se fechava todo o dia na sua destilaria, enquanto trinta monges batiam a montanha procura de ervas odorferas... A destilaria, onde ningum, nem mesmo o prior, tinha o direito de entrar, era uma antiga capela abandonada, mesmo ao fundo do jardim dos cnegos. A simplicidade dos bons padres fizera dela uma coisa misteriosa e formidvel; e se, por acaso, um mongezinho atrevido e curioso se agarrava s videiras trepadeiras e chegava at roscea do portal, descia logo a toda a pressa, admirado de ter visto o padre Gaucher, com a sua barba de feiticeiro, curvado sobre as suas fornalhas, com o pesa-licores na mo; 150 alm disso, rodeavam-no retortas de grs cor-de-rosa, alambiques gigantescos, serpentinas de cristal, tudo numa miscelnia extravagante que resplandecia magicamente claridade avermelhada dos vitrais... Ao entardecer, quando soava a ltima badalada das trindades, a porta daquele lugar de mistrio abria-se discretamente e o reverendo dirigia-se para a igreja, a fim de tomar parte no ofcio da tarde. Era digno de se ver o acolhimento que lhe dispensavam quando atravessava o mosteiro! Os irmos abriam alas sua passagem e dizia-se: "Caluda!... Ele que tem o segredo!..." O tesoureiro seguia-o e falava-lhe de cabea baixa... No meio destas adulaes, o padre l ia, a enxugar a testa, com o seu tricrnio de abas largas puxado para o alto da cabea, como uma aurola, e a olhar sua volta, com ar complacente, os grandes ptios plantados de laranjeiras, os telhados azuis onde giravam cata-ventos novos e, no claustro resplandecente de brancura - entre as colunatas elegantes e floridas -, os cnegos de hbitos novos, que desfilavam dois a dois com ar repousado. " a mim que devem tudo isto!", dizia o reverendo para consigo; e este pensamento cada vez aumentava mais os seus arrebatamentos de orgulho. O pobre homem foi bem castigado por isso, como ver... Imagine que uma tarde, durante o ofcio, chegou igreja numa excitao extraordinria: rubro, esbaforido, com o capuz s trs pancadas, e to perturbado que, ao tomar a gua benta, molhou as mangas at aos cotovelos. Julgou-se ao princpio que a sua atrapalhao era por chegar tarde; mas quando o viram fazer grandes reverncias ao rgo e s tribunas, em vez de saudar o

altar-mor, atravessar a igreja como um p-de-vento, errar pelo coro durante cinco minutos procura da sua cadeira - 151 -

e depois, j sentado, inclinar-se para a direita e para a esquerda e sorrir com ar beatfico, um murmrio de espanto percorreu as trs naves. Cochichava-se de brevirio para brevirio: 'Que ter o nosso padre Gaucher?... Que ter o nosso padre Gaucher?' Por duas vezes o prior, impaciente, bateu com o bculo no lajedo, para impor silncio... L atrs, ao fundo do coro, os salmos prosseguiam sem interrupo, mas os responsos falhavam a entrada... De sbito, no meio da Ave verum, eis que o nosso padre Gaucher se vira na sua cadeira e entoa com voz estentrea: "Em Paris, h um padre branco, Patalim, patatam, tarabim, tarabam..." Consternao geral. Toda a gente se levanta. Grita-se: "Levem-no daqui, que est possesso!..." Os cnegos persignam-se. O bculo de monsenhor agita-se... Mas o padre Gaucher no v nada, no ouve nada; e dois monges vigorosos vem-se obrigados a arrast-lo pela portinha do coro, a debater-se como um exorcismado e a gritar cada vez mais alto os seus patatins e os seus tarabans. No dia seguinte, logo de manhzinha, o infeliz vai ajoelhar-se no oratrio do prior e confessar a sua culpa, num mar de lgrimas: - Foi o elixir, monsenhor, foi o elixir que me perdeu - dizia ele, batendo no peito. E ao v-lo to sentido, to arrependido, o bom prior ficou tambm muito comovido. - Vamos, vamos, padre Gaucher. acalme-se. Tudo isso secar como o orvalho ao sol... Apesar de tudo, o escndalo no foi assim to grande como pensa. certo que a cano era - 152 um pouco... hum, hum... Enfim, espero que os novios no a tenham ouvido... Agora, vejamos, diga-me francamente como que isso lhe aconteceu... Foi a experimentar o elixir, no verdade? Escapou-lhe um pouco a mo... Sim, sim, compreendo... Aconteceu-lhe o mesmo que ao irmo Schwartz, o inventor da plvora: foi vtima da sua inveno... Mas diga-me, meu bom amigo, indispensvel que esse terrvel elixir seja experimentado mesmo por si? - Infelizmente, , monsenhor... A proveta indica-me com preciso a fora e o grau alcolico; mas para lhe dar o sabor, o aveludado, s confio no meu paladar... - Ah, muito bem!... Mas escute ainda um pouco mais o que lhe digo... Quando prova assim o elixir, por necessidade, sabe-lhe bem? Sente nisso algum prazer?... - Ai de mim! Sim, monsenhor - respondeu o infeliz padre, corando

muito. - Olhe, h duas tardes que lhe encontro um sabor, um aroma!... Foi com certeza o Demnio que me armou este lao traioeiro... Por isso, estou resolvido a, daqui em diante, s me servir da proveta. Tanto pior se o licor no for bastante fino, se no fizer bem o ponto... - Tenha cautela com isso - interrompeu-o o prior, com vivacidade. - No nos podemos arriscar a descontentar a clientela... Tudo o que tem de fazer agora, que est prevenido, tomar cautela... Vejamos, de que quantidade precisa para a prova?... Quinze ou vinte gotas, no verdade?... Digamos vinte gotas... S se o Diabo for muito fino que o apanhar com vinte gotas... Alm disso, para evitar qualquer acidente, dispenso-o doravante de ir igreja. Rezar o ofcio da tarde na destilaria... E agora v em paz, meu reverendo, e, sobretudo... conte bem as suas gotas. Ai dele! O pobre reverendo bem poderia contar as gotas... O Demnio tomara-o ao seu cuidado e no o largaria mais. A destilaria que ouviu singulares ofcios! 153 Durante o dia, mesmo assim, tudo corria bem. O padre andava bastante calmo. Preparava os seus foges, os seus alambiques, separava cuidadosamente as ervas, todas ervas da Provena, finas, cinzentas, denteadas, saturadas de perfumes e de sol... Mas tarde, depois de pronta a infuso dos simples, quando o elixir arrefecia em grandes bacias de cobre vermelho, o martrio do pobre homem comeava. "... Dezassete... dezoito... dezanove... vinte!...' As gotas caam da pipeta no copo de prata dourada. Estas vinte, o padre engolia-as de um trago, quase sem prazer. S a vigsima primeira lhe despertava desejos. Oh, a vigsima primeira gota!... Ento, para fugir tentao, ia ajoelhar-se na extremidade do laboratrio e recolhia-se nos seus padre-nossos. Mas do licor ainda quente evolava-se um vaporzinho carregado de aromatos, que ia girar em torno dele, e, de bom ou mau grado, o levava outra vez para junto das bacias... O licor era de um belo verde-dourado. Debruado sobre ele, com as narinas dilatadas, o padre remexia-o muito suavemente com a sua pipeta e, nas palhetinhas cintilantes que rolavam naquelas ondas de esmeralda, parecia-lhe ver os olhos da Tia Bgon, a rirem e ficarem pousados nele... 'Vamos, mais uma gota!' E, gota a gota, o infeliz acabava por encher o copo at acima. Ento, sem foras, deixava-se cair numa grande poltrona e, com o corpo abandonado e as plpebras semicerradas, saboreava o seu pecado aos golinhos, ao mesmo tempo que dizia para consigo, baixinho, com um remorso delicioso: "Ah! Estou a condenar-me... estou a condenar-me..." O mais terrvel era que no fundo daquele elixir diablico encontrava, no sei por que sortilgio, todas as srdidas canes da Tia Bgon: So trs comadrezinhas que falam - 154 -

de dar um banquete... ou: A pastorinha do tio Andr vai para o bosque sozinha... e sempre a famosa cantiga dos padres brancos: Patatim, patatam. Imagine a sua atrapalhao no dia seguinte, quando os seus vizinhos de cela lhe diziam com ar malicioso: "Eh, eh, padre Gaucher, ontem noite, quando se deitou, tinha cigarras na cabea!..." Ento, vinham as lgrimas, os desesperos, e o jejum, c o cilcio, e a disciplina. Mas nada podia contra o demnio do elixir; e todas as tardes, mesma hora, a tentao recomeava. Entretanto, as encomendas choviam na abadia como uma bno. Vinham de Nimes, de Aix, de Avinho, de Marselha... Dia aps dia, o convento tomava cada vez mais o arzinho de uma fbrica. Havia irmos acondicionadores, irmos rotuladores, outros para a escrita, outros para o transporte. O servio de Deus perdia nisto e naquilo alguns toques de sino, mas a pobre gente da terra no perdia nada, garanto-lhe... E, contudo, um belo domingo de manh, quando o tesoureiro lia em pleno captulo o seu inventrio de fim de ano e os bons cnegos o escutavam com os olhos brilhantes e o sorriso nos lbios, o padre Gaucher precipitou-se no meio da conferncia, a gritar: - Acabou-se... No fao mais... Dem-me outra vez as minhas vacas. - Que aconteceu, padre Gaucher? - perguntou-lhe o prior, que tinha as suas fundadas desconfianas acerca do que acontecera. - Que aconteceu, monsenhor?... Aconteceu que estou em vias de arranjar para mim uma bela eternidade de chamas e de forquilhadas... Porque eu bebo, bebo como um miservel... - Mas eu disse-lhe que contasse as gotas. 155 - Ah, pois sim, contar as gotas! Os copos que seria agora conveniente contar... Sim, meus reverendos, cheguei a isto: trs garrafinhas por noite... Ora, como compreendeis bem, isto no pode continuar... Portanto, mandai fazer o elixir por quem quiserdes... Que o fogo de Deus me queime se lhe tornar a mexer! O captulo j no ria. - Mas, desgraado, ides arruinar-nos! - gritou o tesoureiro, agitando o seu livro de escrita. - Preferis que me dane? Nesta altura, o prior levantou-se. - Meus reverendos - disse, estendendo a sua bela mo branca onde brilhava o anel pastoral -, h uma maneira de remediar tudo... tarde, no , meu querido filho, que o Demnio o tenta?... - Sim, Sr. Prior; regularmente, todas as tardes... Por tal motivo, agora, quando vejo chegar a noite, sinto virem-me uns suores como, com vossa licena, ao burro de Capitou quando via aproximar-se a albarda. - Est bem, sossegue... Doravante, todas as tardes, ao ofcio, rezaremos em sua inteno a orao de Santo Agostinho qual est

ligada a indulgncia plenria... Assim, acontea o que acontecer, estar protegido... A absolvio acompanhar o pecado. - Oh, assim, est bem! Muito obrigado, Sr. Prior! E, sem querer saber de mais nada, o padre Gaucher voltou para os seus alambiques, to ligeiro como uma cotovia. Efectivamente, a partir daquele momento, todas as tardes, no fim das completas, o oficiante nunca se esquecia de dizer: "Rezemos pelo nosso pobre padre Gaucher, que sacrifica a sua alma aos interesses da comunidade... Oremus Domine..."' E enquanto por cima dos capuzes brancos, prosternados na sombra das naves, a orao corria num frmito, como uma brisazinha sobre a neve, longe deles, mesmo ao fundo do convento, atrs das vidraas incendiadas da destilaria, 156 ouvia-se o padre Gaucher cantar a plenos pulmes: "Em Paris h um padre branco, Patatim, patatam, tarabam, tarabim; Em Paris h um padre branco, Que faz danar as freirinhas, Trim, trim, trim, num jardim; Que faz danar as... os meus paroquianos me ouvissem!... 157 EM CAMARGUE A PARTIDA I. Grande rumor no castelo. O mensageiro acabava de trazer um recado do guarda, meio em francs, meio em provenal, anunciando terem-se verificado j duas ou trs belas passagens de galons e charlotinnes, e que os oiseaux de prime tambm no faltavam. O senhor vai connosco!, escreveram-me os meus amveis vizinhos; e esta manh, por volta das cinco horas da madrugada, o seu grande breque, carregado de espingardas, de ces e de vitualhas, veio buscar-me ao fundo da encosta. Metemos estrada de Arles, um pouco seca, um pouco nua, nesta manh de Dezembro em que o verde-plido das oliveiras mal se v e o verde-cru dos carrasqueiros ainda demasiado hibernal e factcio. Os estbulos movimentam-se. Antes de romper o dia, j se vem iluminadas as janelas das herdades, e nos recortes de pedra da abadia de Montmajour as guias-marinhas, ainda entorpecidas de sono, batem as asas entre as runas. Contudo, j nos cruzamos ao longo dos valados com velhas camponesas que vo para o mercado ao trote dos seus burricos. Vm de Ville-des-Baux e percorrem seis boas lguas para se sentarem uma hora nos degraus de So Trofimo e venderem pacotinhos de ervas apanhadas na montanha!... Estamos agora nas muralhas de Arles; muralhas baixas e ameadas, como se vem nas estampas antigas, onde guerreiros armados de lanas aparecem no cimo de taludes mais nos do que eles.

Atravessamos a galope esta maravilhosa cidadezinha, 158 uma das mais pitorescas da Frana, com a suas varandas esculpidas, arredondadas, protegidas por gelosias, que avanam at ao meio das ruas estreitas ladeadas de velhas casas negras, de portinhas mouriscas, ogivais e baixas, que nos transportam ao tempo de Guilherme Nariz Curto e dos Sarracenos. A esta hora ainda no anda ningum c fora. Apenas o cais do Rdano est animado. O barco a vapor que serve Camargue aquece as caldeiras ao fundo dos degraus, prestes a partir. Lavradores vestidos de sarja de l rua, raparigas de La Roquette que vo procurar trabalho nas herdades, sobem para a coberta connosco, a conversar e a rir umas com as outras. Debaixo das suas compridas capas castanho-escuras, traadas por causa do ar cortante da manh, o alto penteado arlesiano torna-lhes a cabea elegante e pequena, d-lhes um ar de altivez, como se quisessem esticar-se para lanar bem longe o riso ou a malcia... A sineta toca; partimos. Graas trplice velocidade do Rdano, da hlice e do mistral, as duas margens ficam rapidamente para trs. De um lado a Crau, uma plancie rida, pedregosa. Da outra, a Camargue, mais verde, que se prolonga at ao mar com a sua erva curta e os seus pntanos cheios de canaviais. De vez em quando, o barco pra junto de um ponto, esquerda ou direita, no Imprio ou no Reino, como se dizia na Idade Mdia, no tempo do reino de Arles, e como os velhos marinheiros do Rdano dizem ainda hoje. Em cada ponto, uma herdade branca, um renque de rvores. Os trabalhadores descem carregados de ferramentas e as mulheres com os seus cabazes no brao, direitas na prancha. Umas vezes do lado do Imprio, outras do lado do Reino, o barco vai-se despejando pouco a pouco, e quando chega ao ponto do Mas-de-Giraud, onde desembarcamos, no h quase ningum a bordo. O Mas-de-Giraud uma velha herdade dos senhores de Barbentane, onde entramos para esperar o guarda, que nos deve - 159 vir procurar. Na cozinha, de tecto alto, todos os homens da herdade - moos de lavoura, vinhateiros, pastores e pastorinhos - esto sentados mesa, graves, silenciosos, a comer lentamente, servidos por mulheres que s comem depois. Em breve o guarda aparece com a carriola. Verdadeiro tipo de Fenimore, caador e pescador de trpola, guarda-rios e guarda-caa, a gente da regio chama-lhe lou Roudirou (o rondador), porque se v sempre, nas brumas da aurora ou do pr do Sol, escondido a espreitar a caa entre os canaviais, ou ento imvel no seu batelzinho, ocupado a vigiar as suas nassas nos clairs (pntanos) e nos roubines (canais de irrigao). Foi talvez o seu mister de permanente espio que o tornou to silencioso, to concentrado. Todavia, enquanto a pequena carriola carregada de espingardas e de cestos roda nossa frente, d-nos notcias da caa, do nmero de passagens, dos lugares onde as aves de arribao desceram. E

assim, a conversar, vamo-nos internando na regio. Passadas as terras cultivadas, eis-nos em plena Camargue selvagem. A perder de vista, entre as pastagens, os pntanos e os'canais brilham nas salicrnias. Tufos de tamargueiras e de canas formam ilhotas como num mar calmo. Nem uma rvore de grande porte. O aspecto uniforme, imenso, da plancie, no quebrado por nada. De longe em longe, currais de gado desdobram os seus telhados baixos, quase rentes terra. Rebanhos dispersos, deitados nas ervas salinas ou caminhando reunidos em torno da capa rua do pastor, no interrompem a grande linha uniforme; so como que esmagados pelo espao infinito de horizontes azuis e de cu dilatado. Como do mar plano, apesar das vagas, desprende-se desta plancie uma sensao de isolamento, de imensidade, aumentada ainda pelo mistral, que sopra ininterruptamente, sem obstculo, e que, com o seu hlito poderoso, parece aplanar, engrandecer a paisagem. Tudo se curva diante dele. Os arbustos mais insignificantes conservam os sinais da sua passagem, ficam torcidos, inclinados para o sul, numa atitude de perptua fuga... 160 II. A CABANA Um telhado de canas, paredes de canas secas e amarelas, tal a cabana. este o nome do nosso ponto de reunio de caa. Tipo de casa camarguesa, a cabana compe-se de uma nica diviso, alta, espaosa, sem janelas, onde a luz do dia entra por uma porta envidraada que se fecha noite com taipais. A todo o comprimento das grandes paredes rebocadas, caiadas, os armeiros e os cabides aguardam as espingardas, as sacolas, as botas de gua. Ao fundo, cinco ou seis leitos dispostos em torno de um verdadeiro mastro cravado no solo e que se ergue at ao tecto, ao qual serve de apoio. noite, quando o mistral sopra e a casa range por todos os lados, apesar de o mar estar distante, o vento aproxima-o, transporta o seu rudo, prolonga-o e aumenta-o, e julgamo-nos deitados no camarote de um navio. Mas sobretudo tarde que a cabana encantadora. Nos nossos belos dias de Inverno meridional, gosto de ficar sozinho junto da alta chamin onde fumegam alguns ps de tamargueira. Debaixo do assalto do mistral ou da tramontana, a porta bate, as camas gemem, e todas estas sacudidelas so um eco bem pequeno da grande agitao da natureza em torno de mim. O sol de Inverno, aoitado pela tremenda corrente de ar, espalha-se, junta os seus raios e torna a dispers-los. Grandes sombras correm debaixo de um cu azul admirvel. A luz vem at ns em ondas e os rudos tambm; e os chocalhos dos rebanhos ouvem-se de repente, depois emudecem, perdidos no vento, e voltam a cantar junto da porta sacudida, com a graa de um estribilho... A hora mais deliciosa a do crepsculo, um pouco antes do regresso aos caadores. Ento, o

vento amaina. Saio por um momento. O grande Sol vermelho desce em paz, incendiado, sem calor. 161 A noite cai e toca-nos ao de leve, de passagem, com as suas asas negras, todas hmidas. Ao longe, rente ao solo, o claro de um tiro passa com o brilho de uma estrela vermelha, avivada pela sombra envolvente. No que resta de dia, a vida apressa-se. Um grande tringulo de patos voa muito baixo, como se quisessem tomar terra; mas, de sbito, a cabana, onde o caleil est aceso, afasta-os. O que vai cabea da coluna levanta o pescoo, torna a subir, e todos os outros atrs dele sobem mais alto, soltando gritos selvagens. Em breve se aproxima um rumor imenso, semelhante ao rudo de um aguaceiro. Milhares de carneiros, tocados pelos pastores e perseguidos pelos ces, apressam-se a voltar aos currais, medrosos e indisciplinados, em galope confuso e com a respirao anelante. Sou apanhado, tocado, cercado por um turbilho de ls frisadas, de balidos; uma autntica vaga em que os pastores parecem transportados como fantasmas por ondas saltitantes... Atrs dos rebanhos, ouo passos conhecidos e vozes alegres. A cabana est cheia, animada, ruidosa. Os sarmentos ardem. Rimo-nos tanto mais quanto mais cansados estamos. Reina uma vertigem de fadiga feliz; as espingardas esto a um canto, as grandes botas amontoadas a trouxe-mouxe. as sacolas vazias, e, ao lado, as plumagens ruas, douradas, verdes, prateadas, todas sujas de sangue. A mesa est posta; e no meio do fumegar de uma boa sopa de enguias estabelece-se o silncio, o grande silncio dos apetites robustos, apenas interrompido pelos rosnidos ferozes dos ces, que lambem a sua gamela, s escuras, diante da porta... O sero ser curto. Diante do lume, que tambm j pestaneja, s estou eu e o guarda. Conversamos, isto , de tempos a tempos dirigimos um ao outro meias palavras, como os camponeses, interjeies quase indianas, curtas e depressa extintas, como as ltimas centelhas dos sarmentos consumidos. Enfim, o guarda levanta-se, acende a sua lanterna e ouo os seus passos pesados perderem-se na noite... 162 III. A ESPERA A espera! Que belo termo para designar a espreita, a expectativa do caador emboscado e as horas indecisas em que tudo aguarda, espera, hesita entre o dia e a noite. A espreita da manh, um pouco antes de nascer o Sol; a espreita da tarde, ao crepsculo. esta ltima que prefiro, sobretudo nesta regio pantanosa, onde a gua dos charcos conserva a luz durante tanto tempo...

Algumas vezes a espera faz-se num negochin, um batel minsculo, sem quilha, estreito, que baloua ao mais pequeno movimento. A coberto dos canaviais, o caador espreita os patos do fundo do barco. De fora, apenas a pala do bon, o cano da espingarda e a cabea do co a farejar o ar e a abocanhar os mosquitos, ou ento com as patorras estendidas a inclinar o barco todo para um lado e a ench-lo de gua. Confesso, porm, que esta espera demasiado complicada para a minha inexperincia. Por isso, a maior parte das vezes fao a espera a p, a patinhar em pleno pntano, com enormes botas talhadas a todo o comprimento do couro. Caminho lentamente, prudentemente, com medo de me enterrar no lodo. Evito os canaviais, onde abundam os odores ftidos e as rs saltadoras... Enfim, c temos uma ilhota de tamargueiras, um bocado de terra seca onde me instalo. O guarda quis dar-me a honra de me confiar o seu co, um enorme co dos Pirenus, de grande plo lzudo, caador e pescador de primeira ordem e cuja presena no deixa de me intimidar um pouco. Quando uma galinha-d'gua passa ao meu alcance, olha-me de certo modo irnico, deitando para trs, com um gesto de cabea artista, duas compridas orelhas flcidas que lhe caem para os olhos; depois, faz-me negaas como se fosse parar, agita a cauda, 163 entrega-se a toda uma mmica de impacincia para me dizer: Atira... atira agora! Atiro e falho. Ento, com o corpo completamente estendido, boceja e espreguia-se com ar cansado, desanimado e insolente... Pois sim. admito que sou mau caador. Para mim, a espera o momento que passa, a luz que diminui e se refugia na gua, as lagoas que brilham e reflectem em tons de prata fina a tinta cinzenta do cu escurecido. Gosto deste cheiro a gua, do frmito misterioso dos insectos nos canaviais, do murmuriozinho das folhas longas que estremecem. De tempos a tempos, uma nota triste perpassa no cu como o sussuro de uma concha marinha. o alcaravo que mergulha na gua o seu bico imenso de ave-pescadora e sopra... rrruuu! Revoadas de grous passam-me por cima da cabea. Ouo o roagar das penas, o eriar da penugem tocada pelo ar cortante e at o castanholar dos biquitos cansados. Depois, mais nada. Apenas a noite, a noite profunda, com um resto de dia, subsiste na gua... De repente, sinto um estremecimento, uma espcie de opresso nervosa, como se estivesse algum atrs de mim. Viro-me e vejo a companheira das noites belas, a Lua. uma grande lua muito redonda, que sobe suavemente, num movimento de ascenso primeiro muito sensvel, mas que se torna cada vez mais lento medida que se afasta no horizonte. J distingo um primeiro raio perto de mim, depois outro um pouco mais longe... Agora, todo o pntano est iluminado. O menor tufo de erva tem a sua sombra. A espera terminou, as aves vem-nos; temos de nos retirar. Caminha-se no meio de uma inundao de luz

azul, leve, empoada, e cada um dos nossos passos nos charcos, nos roubines, agita montes de estreks cadas e de raios de luar que traspassam a gua at ao fundo. 164 IV. O VERMELHO E O BRANCO Muito perto de ns, a um tiro de espingarda da cabana, h outra semelhante, mas mais rstica. l que o nosso guarda habita com a mulher e os dois filhos mais velhos: a filha, que trata das refeies dos homens e conserta as redes de pesca; o rapaz, que ajuda o pai a levantar as nassas, a vigiar as martilires (comportas) das lagoas. Os dois mais novos esto em Arles, com a av, e por l ficaro at aprenderem a ler e fazerem o seu bon jour (primeira comunho), porque aqui est-se demasiado longe da igreja e da escola e, alm disso, o ar da Camargue no bom para os pequenos. Com efeito, quando chega o Estio, os charcos secam e a vasa branca dos roubines greta devido ao muito calor, a ilha no , na verdade, habitvel. Vi isso uma vez, no ms de Agosto, quando vim atirar aos patos-bravos, e nunca esquecerei o aspecto triste e selvagem desta paisagem abrasada. Aqui e ali, as lagoas fumegam ao sol como imensos balseiros e conservam muito no fundo um resto de vida que se agita, um bulcio de salamandras, de aranhas, de moscas-d'gua, que procuram os cantos hmidos. O ar torna-se empestado, nuvens de miasmas pairam pesadamente, e tudo isto ainda aumentado por incontveis turbilhes de mosquitos. Ento, em casa do guarda toda a gente tremia, toda a gente tinha febre, e metia pena ver os rostos plidos, tensos, olheirentos, os olhos arregalados daqueles infelizes condenados a arrastarem-se durante trs meses debaixo deste sol ofuscante e inexorvel, que queima os febricitantes sem os aquecer... Triste e penosa vida a de guarda-caa em Camargue! Contudo, ele ainda tem a mulher e os filhos consigo; mas duas lguas mais longe, no pntano, mora um guarda de cavalos que vive absolutamente s de uma ponta do ano outra e leva uma autntica existncia de Robinson. 165 Na sua cabana de canas, que ele prprio construiu, no h um utenslio que no seja obra sua, desde a cama de vime entranado, das trs pedras negras que juntas formam a lareira, dos ps de tamargueira talhados em escabelos, at fechadura e chave de madeira de btula que fecham esta singular habitao. O homem to estranho, pelo menos, como a sua casa. uma espcie de filsofo silencioso como os solitrios, que esconde a sua desconfiana de campons debaixo de sobrancelhas espessas como tojos. Quando no anda nas pastagens, encontra-se sentado diante da porta a decifrar lentamente, com uma aplicao infantil e

comovedora, uma dessas brochurazinhas cor-de-rosa, azuis ou amarelas que acompanham os frascos de remdios de que se serve para tratar os cavalos. O pobre diabo no tem outra distraco a no ser a leitura, nem outros livros a no ser aqueles. Embora sejam vizinhos de cabana, o nosso guarda e ele no se vem. Evitam mesmo encontrar-se. Um dia em que perguntei ao roudeirou a razo de tal antipatia, respondeu-me com ar grave: por causa das nossas opinies... Ele vermelho e eu sou branco. Assim, mesmo neste deserto, cuja solido os deveria ter aproximado, estes dois selvagens, to ignorantes, to simplrios um como o outro, estes dois boieiros de Tecrito que vo cidade apenas uma vez por ano e a quem os cafzinhos de Arles, com os seus dourados e os seus espelhos, deslumbram como se fossem o palcio dos Ptolemeus, encontraram maneira de se odiar em nome das suas convices polticas.

V. O VACOARS O que h de mais belo em Camargue o Vacoars. Muitas vezes, abandono a caa e venho sentar-me beira deste lago salgado, um marzinho que parece um pedao do grande 166 metido no meio das terras e tornado familiar devido ao seu prprio cativeiro. Em vez da secura e da aridez que de ordinrio entristecem as costas, o Vacoars ostenta nas suas margens um pouco altas, muito verdes de erva tenra, aveludada, uma flora original e encantadora: centureas, trevos aquticos, gencianas e as bonitas saladelles, azuis no Inverno e vermelhas no Vero, que mudam de cor consoante o estado da atmosfera e, numa florao ininterrupta, assinalam as estaes com a diversidade dos seus tons. Cerca das cinco horas da tarde, hora a que o Sol declina, estas trs lguas de gua sem um barco, sem uma vela que limite e transforme a sua extenso, tm um aspecto admirvel. No o encanto ntimo dos pauis, dos roubines, que aparecem de longe em longe entre as pregas de um terreno poroso, debaixo do qual se sente a gua filtrar-se por toda a parte, prestes a mostrar-se menor depresso do solo; aqui, a sensao de grandeza, de amplitude. De longe, o brilho das vagas atrai bandos de marrecos, de garas-reais, de alcaraves, de flamingos de ventre branco e asas cor-de-rosa, que se alinham para pescar a todo o comprimento da margem de modo a disporem as suas cores variegadas numa longa faixa igual: e, depois, vm os bis, os verdadeiros bis do Egipto, que se instalam muito a seu bel-prazer neste sol esplndido e nesta paisagem muda. Do meu lugar s ouo, com

efeito, a agitao da gua e a voz do guarda a chamar os seus cavalos dispersos pela margem. Todos eles tm nomes retumbantes: Cifer!... (Lcifer)... O Esteio!... O Estornelo!... Cada animal, ao ouvir o seu nome, corre, com as crinas ao vento, e vem comer a aveia mo do guarda. Mais longe, sempre na mesma margem, encontra-se uma grande manado (manada) de bois, que pastam em liberdade como os cavalos. De tempos a tempos, avisto por cima de um tufo de tamargueiras a aresta do seu dorso curvado e os seus cornitos em forma de crescente, quando se levantam. 167 A maior parte destes bois de Camargue so criados para correr nas ferrades e nas festas das aldeias: e alguns tm nomes j clebres em todas as arenas da Provena e do languedoque. assim que a manado vizinha conta, entre outros, com um terrvel combatente chamado Romano, que j estripou no sei quantos homens e cavalos nas corridas de Arles, de Nmes e de Tarascon. Por isso, os seus companheiros tomaram-no por chefe; porque, nestas manadas singulares, os animais governam-se a si mesmos, agrupados em torno de um touro velho, que adoptam como guia. Quando um furaco cai sobre a Camargue, terrvel nesta grande plancie onde nada se lhe ope, nada o detm, digno de se ver a manado cerrar-se atrs do seu chefe, todos de cabea baixa, e virarem para o lado do vento as suas largas frontes, onde se concentra a fora do boi. Os nossos pastores provenais chamam a esta manobra tira la bano au gisele, ou seja. virar os cornos ao vento. E ai da manada que no fizer o mesmo! Cega pela chuva, arrastada pelo furaco, a manado em desordem vira sobre si mesma, espanta-se, dispersa-se, e os bois perdidos, correndo sempre em frente para escapar tempestade, precipitam-se no Rdano, no Vacoars ou no mar. 168 SAUDADES DA CASERNA Esta manh, aos primeiros clares da aurora, um formidvel rufar de tambor despertou-me em sobressalto... Ram-plam-plam! Ram-plam-plam!... Um tambor no meu pinhal a semelhante hora!... Ora aqui est uma coisa deveras singular. A toda a pressa, salto da cama e corro a abrir a porta. Ningum! O barulho cessou... De entre as videiras-bravas molhadas, dois ou trs maaricos-reais levantam voo, depois de sacudirem as asas... Uma brisa suave canta nas rvores... Para os lados do oriente, por cima da crista pontiaguda dos Alpilles, acumula-se uma poalha de ouro da qual o Sol sai lentamente... Um primeiro raio afaga j o telhado do moinho... Ao mesmo tempo, o tambor, invisvel, pe-se a rufar nos campos, dissimuladamente... Ram... plam... plam. plam, plam!

Diabos levem a pele de burro! Tinha-me esquecido. Mas, enfim, quem o selvagem que vem saudar a aurora do fundo dos bosques com um tambor?... Por mais que olhe, no vejo nada... nada excepto os tufos de alfazema e os pinheiros que descem at l abaixo, estrada... H talvez por ali, no mato, algum duende escondido que lhe deu para brincar comigo... Trata-se, sem dvida, de Ariel ou de mestre Puck. O patife deve ter dito para consigo, ao passar diante do meu moinho: Este parisiense est demasiado tranquilo l dentro; vamos tocar-lhe a alvorada. A seguir, pegou num grande tambor e... ram-plam-plam!... ram-plam-plam!... Cala-te, maldito Puck! Vais acordar as minhas cigarras. 169 No era Puck. Era Gouguet Franois, por alcunha O Pistolet, tambor do 31 de linha e nesta altura a gozar seis meses de licena. Pistolet aborrece-se na terra, sente saudades do seu tambor e - quando consentem em lho emprestar o instrumento da comuna - vem, melancolicamente, rufar para os bosques, a sonhar com a caserna do Prncipe Eugnio. Foi para a minha colinazinha que veio sonhar hoje... Est alm, encostado a um pinheiro, com o tambor entre os joelhos, a dar largas ao seu entusiasmo... Revoadas de perdiges assustados levantam voo a seus ps, sem que ele d por isso. A verbena perfuma todo o ar e nem sequer a sente. Nem ao menos v as finas teias de aranha que tremem ao sol entre os ramos, nem as agulhas de pinheiro que lhe caem em cima do tambor. Todo entregue ao seu sonho e sua msica, olha amorosamente o movimento das baquetas e o seu grande rosto de simplrio ilumina-se de prazer a cada rufo. Ram-plam-plam! Ram-plam-plam!... Como bela a grande caserna, com o seu ptio de enormes lajes, as suas fileiras de janelas bem alinhadas, a sua populao de bivaque e as suas arcadas baixas cheias do rudo das marmitas!... Ram-plam-plam! Ram-plam-plam!... Oh, a escada sonora, os corredores caiados, o cheirinho a rancho, os cintures que se lustram, o tabuleiro do po, as caixas de graxa, as camas de ferro com cobertas cinzentas, as espingardas que brilham no armeiro! Ram-plam-plam! Ram-plam-plam! Oh, os bons dias de guarda, as cartas de jogar que se pegam aos dedos, a dama de espadas muito feia, com ornatos feitos pena, o velho Pigault-Lebrun sem parceiro, que se arrasta por cima da tarimba!... Ram-plam-plam! Ram-plam-plam! Oh, as longas noites de sentinela porta dos ministrios, a velha guarita onde a chuva entra, os ps enregelados!... E as carruagens de luxo, que nos salpicam de lama ao passar!... Oh, as faxinas de castigo, os dias de deteno, a tina que cheira mal, o cabealho de madeira, a alvorada fria nas manhs de chuva, o recolher debaixo de nevoeiro hora a que o gs se acende, a

formatura da noite, a que se chega esbaforido! Ram-plam-plam! Ram-plam-plam! Oh, o bosque de Vincenas, as grandes luvas brancas de algodo, os passeios nas fortificaes!... Oh, a barreira da Escola, as namoradas dos soldados, o cornetim do Salo de Marte, o absinto nos estancos, as confidncias entre dois soluos, os sabres que se desembainham, a romanza sentimental cantada com a mo no corao!... Sonha, sonha, pobre homem! No serei eu quem te ir acordar... Bate vontade na tua caixa, com toda a fora. No tenho o direito de te julgar ridculo. Se tens saudades da tua caserna, no as tenho eu tambm da minha? O meu Paris at aqui me persegue, como o teu. Tu tocas tambor debaixo dos pinheiros, eu fao pouco mais ou menos o mesmo... Ah, que bons provenais que ns somos! Longe daqui, nas casernas de Paris, tnhamos saudades dos nossos Alpilles azuis e do aroma silvestre da alfazema; agora, em plena Provena, sentimos a falta da caserna e tudo o que no-la recorda nos querido!... Batem oito horas na aldeia. Pistolet, sem deixar as baquetas, ps-se a caminho de casa... Ouo-o descer pelo bosque, 170 - 171

sempre a tocar... E eu, deitado na erva, doente de saudades, julgo ver, ao som do tambor que se afasta, todo o meu Paris desfilar entre os pinheiros... Ah, Paris, Paris!... Sempre Paris! Coleco Livros de Bolso Europa-Amrica 1 - Esteiros, Soeiro Pereira Gomes 2 - O Msico Cego, Vladimiro Korolenko 3 - Frei Lus de Sousa, Almeida Garrett 4 - A Oeste nada de Novo, Erich Maria Remarque 5 - A Misso, Ferreira de Castro 6 - Mar Morto, Jorge Amado 7 - A Um Deus Desconhecido, John Steinbeck 8 - O Valente Soldado Chveik, Jaroslav Hasek 9 - A Cidade do Sossego e O Capote, Nicolau Gogol 10 - O Monte dos Ventos Uivantes. Emily Bronte 11 - Gaibus, Alves Redol 12 - Cartas do Meu Moinho, Alphonse Daudet A Publicar: 13 - O Mdico e o Monstro, R. L. Stevenson

Data da Digitalizao Amadora, Abril de 2003

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