A Atuação Do Psicólogo Escolar
A Atuação Do Psicólogo Escolar
A Atuação Do Psicólogo Escolar
RESUMO. Este artigo discute a noo de clnica no contexto da psicologia escolar. Na medida em que ns sugerimos como metodologia de pesquisa e de interveno para o psiclogo escolar a observao participante, entendemos que tal discusso tambm se refere a questes epistemolgicas - uma vez que a produo de conhecimento se d na ordem da implicao, pois construo intersubjetiva. Alm disso, considerando a complexidade do cotidiano escolar, apresentamos a abordagem multirreferencial e a escuta clnica como perspectivas para a compreenso dos fenmenos que ali se desenrolam.
Palavras-chave: psicologia escolar, multirreferencialidade, escuta clnica.
Em minha prtica docente comum discutir com meus alunos sobre o campo da Psicologia Escolar, e a pergunta mais freqente que me colocada diz respeito postura e ao papel do psiclogo no contexto escolar. De certa forma, o que os alunos me solicitam expressa a necessidade de estabelecermos uma diferena entre os campos de atuao profissional do psiclogo, quais sejam: psicologia clnica, psicologia organizacional e a psicologia escolar. Esta discusso muito antiga no contexto da psicologia. No que diz respeito identidade do psiclogo escolar, geralmente ela passa pela superao do modelo mdico (o que nos remeteria para os fundamentos da psicologia clnica), que estabelece seus parmetros em torno da dicotomia sade x doena, normal x anormal, enfatizando-se o papel de educador que este profissional pode assumir quando atua no contexto da escola. esta posio que encontramos num texto de Roger Reger intitulado Psiclogo escolar: educador ou clnico? De acordo com esse autor, medida que
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um nmero maior de psiclogos passou a fazer parte das escolas pblicas, questes que dizem respeito ao seu papel tornaram-se importantes, e, segundo ele, determinar qual o papel do psiclogo escolar ajudaria a esclarecer vrios problemas que atualmente no podem ser focalizados. Para Reger, o psiclogo atuaria como clnico no contexto escolar quando baseia sua interveno num modelo mdico. Seu interesse gira em torno da sade e da doena mental e do diagnstico e cura de problemas de comportamento. (Reger, 1989, p. 13). Para ele h um modelo mais apropriado para o profissional que deseja atuar no contexto escolar, qual seja, assumir um papel de educador. Nesse sentido, seu objetivo seria o de ajudar a aumentar a qualidade e a eficincia do processo educacional atravs da aplicao dos conhecimentos psicolgicos (...) Ele est nas escolas para ajudar a planejar programas educacionais para as crianas (p.13). Reger (1989) tambm afirma que, alm de um profissional,
Departamento de Psicologia Social e Institucional Universidade Estadual de Londrina. Doutor em Educao pela Universidade Federal de So Carlos - UFSCar
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(...) o psiclogo escolar um cientista, um engenheiro educacional ou projetista de planos educacionais que usa das mais modernas metodologias e tcnicas. medida que busca utilizar o sistema educacional to efetivamente quanto possvel para cada criana ou grupos de crianas, tem muito em comum com o administrador educacional e com o professor. Assim como os outros educadores, ele daria mais nfase ao crescimento e desenvolvimento da criana do que patologia. Mas diferencia-se do administrador e do professor conforme visa aplicao mais consistente do mtodo cientfico na resoluo e problemas educacionais e psicolgicos. (p. 14)
Ainda segundo o autor, o psiclogo escolar seria um elo entre o mundo acadmico e o sistema escolar. O psiclogo escolar serve, no modelo clnico, como elo entre vrias agncias de sade mental e o sistema escolar. Enquanto agente de ligao entre o mundo acadmico e o sistema escolar, o psiclogo escolar est interessado em metodologias cientficas e resultados de pesquisas, geralmente obtidos no ambiente acadmico. Enquanto profissional vinculado ao campo educacional, traduziria estas metodologias e resultados em ao nas escolas. Fazendo isso, poderia atender a dois objetivos: ajudar a superar o descompasso entre educao e aplicao de resultados de pesquisa e encorajar atividades de pesquisa nas escolas, servindo como elemento de ligao para os acadmicos que queiram fazer contato com indivduos que falem a sua linguagem nas escolas. Como educador comprometido com a identidade acadmica, pode tambm tentar ensinar a outros profissionais no sistema escolar, fornecendo condies de aprendizagem para os que podem tomar as melhores decises referentes a programas educacionais. O psiclogo escolar experiente poderia exercer com facilidade os papis de consultor, orientador, professor e pesquisador. (Reger, 1989, p.15) Uma outra caracterizao do trabalho do psiclogo escolar proposta por Carmem S. de A. Andal, que, em 1984, publicou um texto intitulado O papel do psiclogo escolar, onde discute a insero desse profissional no mbito da escola. Para ela, a psicologia escolar considerada uma rea secundria da psicologia, que no requer muito preparo nem experincia profissional. Dentro da escola, o psiclogo pouco valorizado ou mesmo considerado dispensvel, pois inexistem servios dessa natureza. Tal perspectiva talvez seja proveniente do fato de que a rea escolar foi caracterizada historicamente como
um desmembramento da rea clnica, gerando uma viso de psicologia escolar clnica. Segundo a autora, os psiclogos escolares tm feito um trabalho clnico dentro da escola, usando testes variados, como de QI, de personalidade, e elaborando diagnsticos e orientaes detalhadas, ou ento, oferecendo psicoterapia para os alunos considerados como portadores de distrbios emocionais, de conduta, e at mesmo de psicomotricidade. Tal atitude pode acarretar em uma srie de problemas, como o risco de discriminar e estigmatizar os alunos que se beneficiam desta forma de servio. O sigilo pode no ser mantido pelos prprios alunos, uma vez que a escola uma organizao onde a privacidade restrita etc. Sob a perspectiva da psicologia escolar clnica, o trabalho do psiclogo tem como papel evitar desajustes ou desadaptaes do aluno. Estes, por sua vez, so equacionados em termos de sade x doena, o que, na escola, retraduzido como problemas de ajustamento e adaptao. A escola, como instituio, tomada como adequada, cumpridora dos objetivos ideais que foram propostos. De certa forma, sob a perspectiva acima, os problemas que surgem no contexto escolar so centrados nos alunos, e investe-se o psiclogo de um carter de onipotncia, e seu papel acaba sendo tratar estes alunos-problema, devolvendo-os sala de aula bem-adaptados. Isso leva, freqentemente, a uma atitude de ambivalncia e resistncia por parte da instituio escolar, que muitas vezes dificulta ou at mesmo impede a continuidade dos servios de psicologia. A alternativa mais adequada para a interveno do psiclogo no contexto escolar sugerida por Andal (1984) aquela em que, sem excluir as contribuies da psicologia clnica e acadmica, o profissional assuma o papel de agente de mudanas dentro da instituio escolar. Ele atuaria como um elemento centralizador de reflexes e conscientizador dos papis representados pelos vrios grupos que compem tal instituio. Ou seja, em vez de abordar os problemas escolares centrando seu olhar sobre os alunos, o psiclogo atuaria sobre as relaes que se estabelecem neste contexto, levando em considerao o meio social em que estas relaes esto inseridas e o tipo de clientela que atende, assim como os grupos que a compem. Ele atuaria, portanto, sobre a instituio escolar1. Nossa experincia no atendimento s demandas das escolas no contexto da cidade de Londrina, no
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entanto, tem demonstrado que as coisas no so to claras assim. Apesar das mudanas ocorridas no contexto das teorias psicolgicas e educacionais, as expectativas sociais acerca do trabalho do psiclogo na escola ainda esbarram no modelo mdico. Uma pesquisa realizada em 1994, junto s escolas que recebem atendimento da rea de Psicologia Escolar do Departamento de Psicologia Social e Institucional/UEL, revelou que as solicitaes de trabalho feitas por estas instituies estavam diretamente relacionadas ao "modelo mdico" referido anteriormente - esperava-se que as crianas com dificuldades fossem tratadas fora do contexto escolar e, aps a cura, fossem novamente inseridas nas salas de aula (Costa, Kumata & Siqueira, 1994). Machado e cols. (1993), numa investigao sobre a relao do psiclogo escolar com outros profissionais em escolas (pblicas e particulares) da cidade de Ribeiro Preto, nos mostram que a funo mais exercida por estes profissionais no contexto escolar a de mantenedor da disciplina escolar entendida como uma ao de suspenso de alunos quando necessrio, conversa com pais tendo em vista a adaptao escolar dos alunos s normas da instituio. (p. 51). Tais fatos revelam a dificuldade da insero do psiclogo no contexto escolar sob novas perspectivas perspectivas que superem o modelo mdico. No entanto, entendemos que a tentativa de Reger (1989) em atribuir a priori uma srie de papis ao psiclogo escolar no avana na superao destas dificuldades, uma vez que o lugar ocupado por esse profissional na instituio escolar se estrutura em funo do contexto e do cotidiano institucional. J a perspectiva desenhada por Andal (1984, 1993) uma insero profissional que tenha como perspectiva a instituio se revela mais promissora. Em que pese s expectativas sociais atribudas ao psiclogo escolar, este deve compreender os fatores sociais e institucionais que possibilitaram a emergncia das representaes a respeito de seu trabalho seja no contexto escolar, seja no contexto social em que est inserido pois ser no mbito das relaes que estabelece no interior da instituio escolar que ter condies de proporcionar novas alternativas para seu trabalho. no mbito desta perspectiva a institucional que apresentamos a abordagem multirreferencial como uma possibilidade analtica e de interveno para este profissional, uma vez que ela assegura a complexidade do contexto escolar. Alm disso, tal abordagem coloca questes epistemolgicas e metodolgicas, uma vez que psiclogo escolar se v s voltas com vnculos de
diversas ordens (conscientes e/ou inconscientes), que o implicam,o capturam e esto presentes em seu campo de trabalho, vnculos estes que devem ser reconhecidos. Nesse sentido, o trabalho do psiclogo se inscreve na ordem da intersubjetividade, do vivido, da experincia, o que nos leva a reconsiderar a questo da clnica no mbito da psicologia escolar enquanto uma escuta clnica, caracterizando o trabalho do psiclogo como uma espcie de acompanhamento dos fenmenos que emergem no cotidiano escolar. Tais dimenses sero ampliadas e discutidas nas sesses que se seguem.
MULTIRREFERENCIALIDADE E IMPLICAO
Em 1996 (Martins, 1996) indicava que o psiclogo, ao tomar o cotidiano escolar como o espao para sua interveno, utilizando-se da metodologia da observao participante, teria acesso s vrias dimenses da instituio a sua histria documentada e a sua histria no-documentada, conforme nos diz Ezpeleta e Rockwell (1986) o dito e o no-dito na perspectiva da anlise institucional (Lourau, 1995. Martins, 2000). O mesmo autor apontava ainda que, ao intervir no cotidiano, o psiclogo propiciaria situaes onde as prticas sociais teriam condies de ser ressignificadas, assim como a percepo acerca da sua atuao. A estruturao do trabalho deveria, portanto, envolver o coletivo escolar, assegurando e proporcionando a participao democrtica de todos os segmentos que vivenciam a escola. Tal fato, por sua vez, nos leva a compreender a escola como um campo propcio para a emergncia das contradies socioculturais e econmicas que marcam nossa sociedade, e nossa interveno pode propiciar a expresso destas contradies atravs da organizao dos diversos segmentos (estudantes, pais, professores, etc.) que participam de seu cotidiano. Tal possibilidade de trabalho permite uma reflexo acerca dos objetivos da escola, seus procedimentos, seus mtodos de avaliao, e um redirecionamento de suas prticas assegurando-se assim o processo de democratizao da escola. Como podemos observar, ao considerar estas dimenses acerca da instituio escolar, o olhar do psiclogo se amplia: multirreferencializa-se e se complexifica2. Isto significa, por sua vez, reconhecer que o fenmeno educativo e seus desdobramentos
A idia de complexidade aqui referida est vinculada obra de Edgard Morin. Mais detalhes ver Morin, 1996a e 1996b.
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psicolgicos se do em vrias dimenses - a dos sujeitos, a dos grupos, a da organizao, a da instituio e a da sociedade - e que a psicologia exclusivamente no d conta de explicitar todas as suas nuanas. Destarte, para compreendermos um pouco melhor os fenmenos que se apresentam no contexto escolar, temos que lanar mo de outras disciplinas sociologia, antropologia, psicanlise, economia, psicologia social, psicossociologia, etc. A complexidade destes fenmenos nos incita a abordlos multirreferencialmente a partir de vrias referncias tericas3. Cabe ressaltar que a anlise multirreferencial aqui proposta no tem como pretenso esgotar seu objeto de estudo. Analisar, neste contexto, no se define mais atravs da nossa capacidade de recortar, de decompor, de dividir, reduzir a elementos mais simples, mas atravs de nossas possibilidades de compreenso, de acompanhamento dos fenmenos vivos e dinmicos (Ardoino, 1995, p. 9). Tal postura nos aproxima de um tipo especfico de metodologia de trabalho que tem como pressuposto o reconhecimento do carter implicacional da atividade de pesquisa ou de interveno. Ao indicar a observao participante como uma metodologia de trabalho para o psiclogo escolar, Martins (1996) quis enfatizar que esse profissional ao se inserir no contexto escolars se confronta com uma certa tenso. De um lado, ele deve estabelecer um certo distanciamento do seu objeto de estudo e de interveno, de tal modo que possa conhecer seus interstcios; por outro lado, deve buscar estabelecer uma relao de implicao junto aos agentes envolvidos no processo, sem a qual seria impossvel desenvolver sua atividade. Tal fato, por sua vez, traz em si mesmo um problema epistemolgico, que diz respeito, fundamentalmente, questo da relao entre sujeito e objeto. Como assinala Bohoslavsky (1976):
El psiclogo tiene en su cuenta ... que su rol de observador modifica, aun por su sola presencia, el campo de observacin; es, por lo tanto, un observador participante y consciente de esa participacin en el fenmeno que est bajo su mirada. Al observar una situacin, est por consiguiente observndose a s mesmo y al vnculo que ha
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estabelecido con ella. Es dicer, conforma un nuevo campo del qual, a la vez que forma parte, se distancia, efectuando lo que se ha lhamado una "disociacin instrumental": es objeto que participa de la situacin y por ende la condiciona y, al mismo tiempo, sujeto que se auto-observa a fin de discriminar cmo y qunto condiciona su presencia la situacin que estudia. (p. 20-1)
Isto significa dizer que a possibilidade de pesquisa/interveno ser circunscrita na/pela interatividade: o conhecimento e a prtica profissional se realizam na/pela relao mesma entre sujeito e objeto na relao intersubjetiva. Nesse sentido, o trabalho do psiclogo escolar no neutro e nem objetivo, pois alm de ele no dominar (no sentido de controle) seu objeto a dinmica da escola ele est implicado com (n)ele.4 Queremos dizer com isso que esta relao psiclogo x escola entendida como um encontro intersubjetivo, requer o reconhecimento de dimenses que no esto relacionadas nem com os aspectos tericos nem com os aspectos metodolgicos que ele pode utilizar quando da realizao de seu trabalho. Tais dimenses esto circunscritas pela ordem do psquico, do desejo, da vontade, que implicam afetos nem sempre dizveis no cotidiano acadmico, mas que emergem durante a insero profissional.5
A ESCUTA CLNICA
no contexto das consideraes anteriores que vislumbramos a escuta clnica como uma forma de abordar os fenmenos que se desenrolam no cotidiano escolar. Tradicionalmente o termo clnico, seja ele empregado como substantivo, seja como adjetivo, indica ou um tipo de prtica, de experincia, de formao, ou um estabelecimento onde as pessoas
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Entendemos implicao como o ... engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua prxis cientfica, em funo de sua histria familiar e libidinal, de suas posies passadas e atual nas relaes de produo e de classe, e de seu projeto scio-poltico em ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinmica de toda atividade de conhecimento. (Barbier, 1985, p. 120) Muitas vezes as informaes provenientes deste tipo de experincia so registradas em nossas anotaes, em nossos cadernos de campo, e lapidados e re-elaborados sob o prisma da razo. Sobre esta questo ver Borba, 1997, especialmente o captulo intitulado Jornal de Pesquisa.
O conhecimento produzido sob esta perspectiva aproximarse-ia da atividade da bricolagem, pois tais disciplinas seriam operacionalizadas de tal forma que elas no se reduzissem umas s outras, conforme nos indica Ardoino, 1998 e Lapassade, 1998. Ver tambm, Martins, 2000.
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procuram um tratamento para suas doenas: clnica psicolgica, clnica mdica etc. No mbito da medicina, este termo nos remete para o trabalho do mdico junto a seu paciente, o que traz implcita a idia de uma certa evoluo favorvel da doena que o paciente apresenta, em funo da ateno que ele recebe6. Nesse sentido, entende-se que h uma certa relao entre o conceito de clnico e a noo de mudana o que implica uma dimenso histrica. No entanto, Ardoino (1990) nos alerta que as expectativas implcitas nestas mudanas esto relacionadas com um retorno a uma norma, a uma situao anterior e a ao do mdico ser reparatria, pressupondo-se o restabelecimento de um estado considerado anteriormente como normal. No mbito das Cincias do Homem e da Sociedade, o sentido original do termo clnico, encontra-se consideravelmente modificado7. A questo no est mais colocada sobre uma qualidade ou estado de um paciente, o que demandaria um certo tipo de trabalho e, por conseqncia, uma determinada prtica e/ou metodologia de interveno, mas [O] projeto do clnico est-se tornando fundamental para a inteligibilidade de sua prtica. Ao questionamento metodolgico se superpe... uma interrogao epistemolgica. (Ardoino, 1990, p. 37). De uma certa maneira, as consideraes tradicionais sobre o clinicar nos remete para um tipo de familiaridade (com o doente), para o conhecimento pela experincia. Mas, essas idias, acrescenta-se, atualmente, a idia de interveno do prtico e o postulado de uma capacidade de evoluo, de aquisies, que se do pela integrao e pelo jogo de alteraes8. Nesse sentido Ardoino afirma: justamente essa hiptese de transformaes possveis, (...), que se torna essencial quando se trata de prticas sociais definidas como clnicas. (1990, p. 37). Apesar de ainda encontrarmos o emprego do termo clnico em sua acepo original, vinculando-o
ao do mdico sobre o doente; as prticas sociais que implicam alteraes, como o caso tanto das psicoterapias e socioterapias, como em certos aspectos da educao, da formao etc., trazem novos sentidos para o termo. Estes ltimos, por sua vez, incorporamse ao sentido original, ampliando-o, suportando algumas contradies, o que o localiza no mbito de uma certa polissemia. A noo de clnico, portanto, se inscreve na ordem da praxiologia, enquanto ao-reflexo, seja no mbito da escola, seja no mbito do hospital... Assim, clnico passa a ser um conceito chave, na confluncia da cincia fundamental com a cincia aplicada no que se refere ao homem. (Barbier, 1985, p. 46). Para Ardoino:
(...) o procedimento clnico e sua teorizao devem conquistar o lugar que lhes foi at agora recusado (...) o que fundamental ao procedimento clnico o respeito, ou melhor, a sensibilidade ao que ambguo, ao duplo sentido e hipercomplexidade. (Ardoino citado por Barbier, 1985, p. 46)
Etimolgicamente "clnica" deriva de "cama". Utilizado para caracterizar la labor de los mdicos, este trmino seala el trabajo concreto sobre un paciente especfico. Luego se extiende hasta abarcar un mbito geogrfico: el hospital, o una rama de las enseanzas mdicas. (Bohoslavsky, 1976, p. 23, n. 3) Ver Lvy (2001) e Arajo e Carreteiro (2001). A alterao entendida aqui como uma dinmica onde se reconhece que numa relao entre pessoas, elas se influenciaro entre si, modificando-se. Neste processo esto implcitos no apenas os aspectos conscientes de cada um, mas tambm esse processo marcado por desejos, vontades etc. traos muito mais relacionados com o inconsciente.
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Podemos caracterizar o olhar clnico como aquele que toma em considerao um campo - de pesquisa ou de interveno - estruturado por um jogo de relaes e de interaes dinmicas e complexas. No entanto, ele tambm supe que o prtico e o pesquisador estejam convenientemente deslocados na relao, isto , que eles assumam uma postura de implicao-distanciamento. Tal postura, por sua vez, possibilitar-lhes- estar efetivamente co-presentes na situao que eles analisam, sem perder, para tanto, suas especificidades e suas competncias. Da Matta (1987) aproxima-se bastante desta perspectiva ao analisar possibilidades do trabalho antropolgico no mbito das sociedades em que o antroplogo est inserido. Ele nos aponta que a tarefa do antroplogo nessa situao ser transformar o que lhe familiar em extico". Isto requer, o que podemos denominar de uma atitude de estranhamento para o que vivenciado como rotineiro, comum, prximo, conhecido etc., o que significa, concomitantemente, um estranhamento de si mesmo, um auto-estranhamento. Tal atitude, portanto, implica a busca de novos sentidos para a relao que o antroplogo estabelece com seu objeto, reconhecendo nela - na relao a possibilidade de dar novos sentidos para as suas prprias representaes. Ardoino, por sua vez, nos lembra, nesse caso
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(...) o tipo de anlise em questo no tem mais grande relao com a anlise entendida etimologicamente (decomposio, reduo do complicado em elementos mais simples) mais uma sagacidade (perspiccia), vinculada a um processo de acompanhamento numa durao, a intimidade partilhada, donde (...) os exemplos: psicanaltico, socioanaltico, etnolgico, etnogrfico, e at etnometodolgico, podem nos dar alguma idia. (Ardoino, 1990, p. 38)
atribudos, pela abertura ao desconhecido, pela disponibilidade para a alterao (e por conseqncia da heterogeneidade), para a escuta do inefvel.
CONSIDERAES FINAIS
Cabe salientar que a clnica se apia fundamentalmente na observao - no olhar mais ou menos caracterizado por uma ambio de controle, como o que caracteriza a postura mdica tradicional. No entanto, quando ela ( observao) aproximamos a importncia da escuta, mais temporal, aquela do no-dito. O ouvido a se encontra assim conjugado com o visto. (Ardoino, 1990, p. 39). Isto significa que as funes do olhar e da escuta, que se apiam sobre vises de mundo diferentes ou seja, implicam paradigmas diferentes (os primeiros mais voltados para dimenses espaciais enquanto que os relativos ao segundo mais voltados para as dimenses temporais) e conseqentemente em metodologias especficas devem ser articuladas convenientemente a fim de estabelecer pontos de referncia no tempo e no espao, concomitantemente. Para Ardoino h nessa escuta, como na interpretao que a acompanha, uma primeira forma de multirreferencialidade
(...) a lngua do outro, sua indexicabilidade que necessrio apreender e falar, para encontrar os fios de sua pr-histria e os avatares de seu desejo. [Na relao clnica] o discurso no tem necessidade de ser explcito pois ela joga essencialmente ao nvel do subentendido. (Ardoino, 1990, p. 40)
Em vista do reconhecimento da heterogeneidade que a abordagem clnica pressupe em si mesma, ela notadamente multirreferencial quando se trata de sujeitos coletivos. Nesse caso, para compreend-los, necessrio recorrer a (...)ticas de leitura e de linguagem diferentes (psicolgica, psicossociolgica, sociolgica, econmica etc.), heterogneas, que necessrio saber combinar e articular. (Ardoino, 1990, p. 40). Tal perspectiva, no plano das prticas do psiclogo escolar, permite o reconhecimento de elementos at ento desconsiderados na abordagem dos processos educativos, possibilitando uma reapropriao da experincia e dos sentidos, a eles
Abordar a escola multirreferencialmente, o que isso significa para o psiclogo escolar? Tal questo nos remete para vrias dimenses da atuao do psiclogo no contexto da escola. Inicialmente cabe registrar que a abordagem multirreferencial possibilita ao profissional compreender a instituio em sua complexidade, abordando os fenmenos que ali se desenvolvem sob vrias ticas disciplinares: sociologia, psicologia, antropologia, etc... de tal forma que elas no se reduzam umas as outras. O conhecimento produzido acerca desta realidade um conhecimento conjugado, tecido, localizado, historicizado; conhecimento que, em princpio, deve ser construdo coletivamente. Cabe registrar que a complexidade no intrnseca aos fenmenos, mas ela se constri a partir dos olhares que so colocados sobre ele. Isto significa que a atuao do psiclogo enquanto pesquisador/interventor no contexto escolar - marcada pela sua implicao, ou seja, o conhecimento produzido e/ou a interveno efetivada se circunscrevem a partir relaes intersubjetivas que so estabelecidas no cotidiano escolar, o que significa reconhecer a influncia do desejo, da vontade, dos afetos etc... que emergem durante sua insero profissional e que esto presentes (mas muitas vezes negados) nos encontros entabulados na escola. Abordar multirreferencialmente a instituio escolar significa tambm assumir uma outra postura em seu cotidiano, uma postura que no se inspire nos modelos positivistas nem cartesianos cujo objetivo simplificar a realidade para melhor control-la. Uma postura que se estruture numa escuta, numa escuta clnica, que aqui deve ser entendida como uma forma de acompanhamento, um acompanhar da realidade escolar em sua historicidade, resgatando-se o vivido, o experienciado. No se trata de trabalhar no eixo doena x sade, como pressupe Andal em sua crtica ao modelo mdico, mas criar espaos onde as vivncias escolares possam ser ditas e escutadas seja sob na perspectiva da sociedade, seja na perspectiva da instituio, seja na perspectiva dos indivduos ou grupos, etc... Tal lugar o da escuta possibilita ao psiclogo criar situaes coletivas, espaos de construo de conhecimentos sobre si mesmo sobre a escola, sobre as experincias dos envolvidos no processo
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educacional, etc. - de tal forma que os problemas vividos sejam amplamente discutidos e a busca de solues para os mesmos, compartilhada. O exerccio da escuta clnica, por suas vez, tem como perspectiva desvelar dimenses do cotidiano escolar e das relaes que o estruturam at ento impensadas, desconhecidas, mas que tangenciam as prticas que a se estabelecem. O psiclogo, nesse lugar, tem a condio de sair da desconfortvel situao de bombeiro onde sua ao se restringe a apagar incndios e contribuir para com a organizao dos envolvidos com a escola, criar no coletivo novas pautas de compreenso da realidade vivida, sugerir novas formas de avaliao dos processos que se desdobram no contexto escolar (de aprendizagem, de avaliao, referentes a organizao, a instituio, etc...). Cabe registrar, no entanto, que este lugar que desenhamos para o psiclogo no existe, ainda no se consolidou, pois as expectativas depositadas sobre sua atuao ainda se estruturam no eixo doena x sade. A mudana, por sua vez, pode ser vislumbrada, desde que seja promovida no contexto das relaes sociais que se estabelecem tanto no contexto escolar como na sociedade mais ampla. no mbito dessas relaes que vislumbramos as possibilidades de mudana, pois a que o profissional ter a oportunidade de negociar sentidos, ampliar o significado de sua prtica, apresentar novas perspectivas de interveno e de compreenso da realidade.
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