Contardo - Calligaris - Qual Romance Você Está Lendo
Contardo - Calligaris - Qual Romance Você Está Lendo
Contardo - Calligaris - Qual Romance Você Está Lendo
(Contardo Calligaris, Folha de So Paulo, 17/out/2013) Sempre pensei que fosse sbio desconfiar de quem no l literatura. Ler ou no ler romances para mim um critrio. Quer saber se tal poltico merece seu voto? Verifique se ele l literatura. Quer escolher um psicanalista ou um psicoterapeuta? Mesma sugesto. E, cuidado, o hbito de ler, em geral, pode ser melhor do que o de no ler, mas no me basta: o critrio que vale para mim ler especificamente literatura --fico literria. Voc dir que estou apenas exigindo dos outros que eles sejam parecidos comigo. E eu teria que concordar, salvo que acabo de aprender que minha confiana nos leitores de fico literria justificada. Algo que eu acreditava intuitivamente foi confirmado em pesquisa que acaba de ser publicada pela revista "Science" (migre.me/gkK9J), "Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind" (ler fico literria melhora a teoria da mente), de David C. Kidd e Emanuele Castano. Uma explicao. Na expresso "teoria da mente", "teoria" significa "viso" (esse o sentido originrio da palavra). Em psicologia, a "teoria da mente" nossa capacidade de enxergar os outros e de lhes atribuir de maneira correta crenas, ideias, intenes, afetos e sentimentos. A teoria da mente emocional a capacidade de reconhecer o que os outros sentem e, portanto, de experimentar empatia e compaixo por eles; a teoria da mente cognitiva a capacidade de reconhecer o que os outros pensam e sabem e, portanto, de dialogar e de negociar solues racionais. Obviamente, enxergar o que os outros sentem e pensam uma condio para ter uma vida social ativa e interessante. Existem vrios testes para medir nossa "teoria da mente" --os mais conhecidos so o RMET ou o DANVA, testes de interpretao da mente do outro pelo seu olhar ou pela sua expresso facial. Em geral, esses testes so usados no diagnstico de transtornos que vo desde o isolamento autista at a inquietante indiferena ao destino dos outros da qual do prova psicopatas e sociopatas. Kidd e Castano aplicaram esses testes em diferentes grupos, criados a partir de uma amostra homognea: 1) um grupo que acabava de ler trechos de fico literria, 2) um grupo que acabava de ler trechos de no fico, 3) um grupo que acabava de ler trechos de fico popular, 4) um grupo que no lera nada. Concluso: os leitores de fico literria enxergam melhor a complexidade do outro e, com isso, podem aumentar sua empatia e seu respeito pela diferena de seus semelhantes. Com um pouco de otimismo, seria possvel apostar que ler literatura seja um jeito de se precaver contra sociopatia e psicopatia. Mais duas observaes. 1) A pesquisa mede o efeito imediato da leitura de trechos literrios. No sabemos se existem efeitos cumulativos da leitura passada (hoje no tenho tempo, mas "j li muito na adolescncia"): o que importa no se voc leu, mas se est lendo. 2) A pesquisa constata que a fico popular no tem o mesmo efeito da literria. A diferena explicada assim: a leitura de fico literria nos mobiliza para entender a experincia das personagens. "Como na vida real, os mundos da fico literria so povoados por indivduos complexos cujas vidas interiores devem ser investigadas, pois so raramente de fcil acesso." "Contrariamente fico literria, a fico popular (...) tende a retratar o mundo e as personagens como internamente consistentes e previsveis. Ela pode confirmar as expectativas do leitor em vez de promover o trabalho de sua teoria da mente." Em suma, o texto literrio aquele que pede esforos de interpretao por aquelas caratersticas que foram notadas pelos melhores leitores do sculo 20: por ser ambguo (William Empson), aberto (Umberto Eco) e repleto de significaes secundrias (Roland Barthes). Na hora de fechar esta coluna, na tera-feira, encontro a mesma pesquisa comentada na seleo do "New York Times" oferecida semanalmente pela Folha. A jornalista do "Times" pensou que a leitura literria, ajudando-nos a enxergar e entender os outros, facilitaria nossas entrevistas de emprego ou nossos encontros romnticos. Quanto a mim, imaginei que, na prxima vez em que eu for chamado a sabatinar um candidato, no esquecerei de perguntar: qual o romance que voc est lendo? E espero que o candidato mencione um livro que conheo, para verificar se est falando a verdade.