Tese Sobre Anarquismo e Sindicato No Brasil
Tese Sobre Anarquismo e Sindicato No Brasil
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Ti ago Bernardon de Ol i vei ra
Ni teri , Abri l de 2009.
2
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
A
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Tiago Bernardon de Ol i vei ra
Tese apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Histri a da UFF
como exignci a parci al para obteno
do t tul o de Dout or em Hi st ri a.
Ni teri , Abri l de 2009.
3
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
O48 Oliveira, Tiago Bernardon de.
Anarqui smo, si ndi cat os e revol uo no Brasi l (1906-1936) /
Tiago Bernardon de Ol i vei ra. 2009.
267 f.
Ori entador: Marcel o Badar Mat tos.
Tese (Dout orado) Uni versi dade Federal Fl umi nense,
Inst i tut o de Ci nci as Humanas e Fi losofi a, Departament o de
Hi st ri a, 2009.
Bi bl i ografi a: f. 251-267.
1. Anarqui smo. 2. Si ndi cali smo Brasi l . 3. Moviment o
operri o. 4. Luta de cl asses. 5. Brasi l Repbl i ca. I. Matt os,
Marcel o Badar. II. Uni versi dade Federal Flumi nense.
Inst i tut o de Ci nci as Humanas e Fi losofi a. III. T t ul o.
CDD 335. 83
4
A An na ar rq qu ui i s sm mo o, , s si i n nd di i c ca at t o os s e e r re ev vo ol l u u o o n no o B Br ra as si i l l ( ( 1 19 90 06 6- -
1 19 93 36 6) ). .
Tiago Bernardon de Oliveira
Niteri: Tese de doutorado em Histria / Universidade Federal Fluminense, 2009.
Comisso examinadora:
_____________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Badar Mattos (orientador)
Universidade Federal Fluminense (UFF)
_____________________________________________
Profa. Dra. Silvia Regina Ferraz Petersen
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
_____________________________________________
Prof. Dr. Claudio Henrique de Moraes Batalha
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
_____________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Fortes
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
_____________________________________________
Prof. Dr. Norberto Osvaldo Ferreras
Universidade Federal Fluminense (UFF)
5
RESUMO
Entre os anos de 1906 e 1936, particularmente, o movimento e as idias anarquistas
contriburam para o desenvolvimento da identidade e conscincia da classe
trabalhadora no Brasil. Sua rea de ao concentrou-se, basicamente, nos centros
urbanos e o pblico alvo preferencial de sua propaganda foram os trabalhadores das
cidades, embora os libertrios partilhassem de uma concepo mais ampla de classe,
segundo a qual pertenceriam mesma classe todos os que vivessem de seu prprio
trabalho e no da explorao alheia, fossem eles do campo ou da cidade, exercessem
atividades manuais ou no. Assim, a presente tese versa sobre a trajetria do
movimento anarquista em sua relao com o movimento operrio brasileiro, sobretudo
nos estados de So Paulo, Rio Grande do Sul e do antigo Distrito Federal. Procura-se
apresentar as estratgias, concepes e avaliaes desenvolvidas pelos militantes
libertrios quanto s possibilidades de se fazer eclodir no Brasil um processo
revolucionrio que permitisse a concretizao de seu ideal.
ABSTRACT
The Anarchist Movement and its ideas contributed to the development of the Brazilian
working class identity and awareness principally from 1906 to 1936. Its area of action
was basically focused on urban centers and the main target public of its propaganda
were the workers in the cities, even though the libertarians shared a wider concept of
class, of which all those who made their money from their own work and not from
other peoples exploration, living in farms or in cities, performing manual activities or
not, would belong to. Thus, this thesis is about the course of the Anarchist Movement
and its links to the Brazilian Labor Movement, mainly in the states of So Paulo, Rio
Grande do Sul, and the former Federal District. The strategies, concepts, and
evaluations developed by the libertarian militants regarding the possibilities of
breaking out a revolutionary process that allowed the realization of its ideal in Brazil
are presented.
6
Agradecimentos
Muito embora a responsabilidade pelas limitaes e falhas desta tese caiba
nica e exclusivamente a mim, devo atribuir sua concluso ao apoio e confiana de
muita gente que acreditou que este trabalho seria finalizado e viesse a pblico. Sinto-
me muito feliz de ter encontrado conforto intelectual e emocional entre tantas pessoas,
que talvez nem saibam o quanto ajudaram. Ciente de que o esquecimento
inevitavelmente se impe em horas como essas, tambm sei que aqueles que no
tiverem seus nomes listados aqui no se ofendero, pois sabem de minha gratido.
Assim, comeo por agradecer meu orientador, Marcelo Badar Mattos, que
teve que se confrontar com um orientando difcil de lidar. Mas no desistiu e no se
permitiu abandonar o barco algo que outro, em seu lugar, provavelmente o teria feito
h muito tempo. A ele agradeo pela amizade, pela tolerncia e pelo esforo que
dedicou a mim nesses quatro anos. Lamento apenas suas escolhas e opinies
futebolsticas...
Quem sabe do que estou falando, pois viveu a experincia de ser minha
orientadora no mestrado a professora Silvia Petersen, que hoje est avaliando este
trabalho. A ela devo agradecer no somente sua gentil aceitao em participar da
comisso examinadora, como tambm o seu pronto apoio h quatro anos, quando
decidi me submeter ao processo seletivo do doutorado. Depois disso, ainda me
forneceu materiais de pesquisa seus, dentre os quais alguns de seus escritos ainda
inditos, que foram de grande utilidade.
Aos demais membros da comisso examinadora, Claudio Batalha, Alexandre
Fortes e Norberto Ferreras, tambm sou grato por sua disposio em compor a banca
de avaliao, e, antecipadamente agradeo sua leitura atenta e as contribuies que,
certamente, sero valiosas. Aproveito a ocasio para reforar meus agradecimentos a
Alexandre e a Norberto, pelo exame de qualificao.
Agradeo ao professor Jacques Rouillard, da Universit de Montral, que me
acolheu em um breve estgio de pesquisa, j na etapa final de redao da tese,
propiciado pelo Ministre des Affaires trangres et Commerce international Canada
(MAECI) e do Bureau canadien de lducation internationale (BCEI), cujos
desdobramentos das atividades desenvolvidas devero ser retomados logo a seguir.
7
Tive a oportunidade tambm de ter sido aluno da professora Virgnia Fontes e
de ter participado de algumas reunies de seu GTO. Apesar de minha passagem ter
sido breve, aprendi com os colegas que ali se reuniam. Assim como nas reunies do
GT-Mundos do Trabalho da UFF, que se modificou nesses quatro anos, com entradas e
sadas de muita gente boa, como Felipe Demier, Rmulo Mattos, Paulo Terra, Maya
Valeriano, Luciana Lombardo, Julia Monnerat, Marcela Goldmacher, Erika Bastos,
Rafael Maul. Gabriel Aladrn, Mirna Arago, Demian Melo, Marco Marques, e tantos
outros.
Aos funcionrios das bibliotecas e arquivos visitados, sou bastante grato pela
presteza com que fui recebido. Dentre eles, agradeo especialmente a Eduardo
Verzoini, do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo; Leila Duarte, do Arquivo
Pblico do Estado do Rio de Janeiro; Marco Aurlio Santana Rodrigues, do Arquivo
da Memria Operria do Rio de Janeiro; e a Luis Alberto Zimbarg, do Centro de
Documentao e Memria da Universidade Estadual Paulista.
Fora do universo acadmico, pelo menos fora do mbito de minha pesquisa,
muita gente, atravs de sua amizade, me ajudou a desempenhar minhas atividades.
Cibele Masotti e Rafael Garcia Vianna foram por demais generosos ao me
concederem abrigo em suas casas e tornarem minha estadia em So Paulo muito
agradvel, enquanto eu coletava dados nos arquivos. Com idntica amabilidade, Anita
Bevilaqua me alojou em Resende, semanalmente, para que eu pudesse desempenhar
minhas atividades de professor, at que eu fosse agraciado com uma bolsa do CNPq,
mantida pelo dinheiro do pblico, a quem, alis, sou grato por ter me proporcionado de
dedicao exclusiva pesquisa, por trs anos.
Por falar em alunos, guardo com carinho a lembrana daquele perodo, quando
colegas e estudantes da Escola-Um, Escola Municipal Jardim das Accias e da UFRJ,
me acompanharam na expectativa de ter meu projeto aprovado.
Suporte afetivo indispensvel, dado tambm por muitos amigos, antigos e
novos, que estiveram sempre por perto, mesmo quando a distncia se impunha entre
ns: Juca e Maristel Nogueira, Arlene Foletto, Gerson Fraga, Vanderlise Baro,
Natalia Pietra, Patricia Anastcio, Daniel Minossi e Isabel, Martha Hameister, Bruna
Sirtori, Z Luis, Antonio Holzmeister, Luciana Lombardo, Laura Hahn, Tas,
Leonardo Napp, Renata Dal Sasso, Gabriel e Joana, Mauro Messina, Maurcio Fried e
Mrcia, der Pezzi e Adriana Spilki, Joo Alexandre Corra, Marcela Britto e Adriana
8
Cerqueira, Simone Gamba, Marcela Asi e seus familiares, Elisabeta Mariotto, Patrcia
e Gabriele, Isabel Bilho e Hernn Ramirez, Frederico Duarte Bartz (com quem
mantive dilogos de trabalho muito proveitosos), Marcella Beraldo, Clarice, Flvio,
Luciana e Caio, Renira, Lavnia Popica, Adriana Facina, Claudia Trindade e suas
queridas Beatriz e Helena, Eduardo e Leonardo ngelo e Llis, Silvana, Roberto e
Laura, Lzaro e Nil e tantos outros trados agora pela minha memria. Cabe especial
agradecimento a Tiago Lus Gil, velho camarada que sempre esteve prximo em
momentos bastante difceis, assim como em outros mais alegres. Com ele aprendi o
quanto algum pode ser verdadeiramente amigo.
Nesses quatro anos, talvez como nunca antes, tomei maior conscincia do
quanto sou felizardo por fazer parte de uma famlia extraordinria. Vnculo afetivo
eterno e cada vez mais intenso da famlia em que nasci e que sempre me deu foras
sem hesitar. Seu Eitor, dona Irene, Ktia, Diego e Andressa, esto sempre em meu
corao, e no sei como agradecer tudo o que fizeram por mim.
Alis, sinto-me integrante de duas grandes famlias, pois seu Manoel, dona Rita
e Guilherme, me acolheram de tal forma nessas terras fluminenses que no posso mais
desligar-me deles.
Por fim, e jamais por ltimo, agradeo Manoela Pedroza. No h dvida de
que foi ela quem mais sofreu com minhas angstias. Nunca deixou de ser
companheira, mesmo em momentos conturbados. Por tudo o que passamos juntos,
tenho a convico redobrada de que nada pode nos abalar. O nosso futuro a ns
pertence. Retribuo todo o sentimento que emana de ti, dedicando-te essas mal traadas
linhas.
9
Sumrio
INTRODUO ...................................................................................................................................... 10
CAPTULO 1 - ANARQUISMO, ANARQUISTAS E SINDICATOS NO BRASIL ....................... 30
A REPBLICA, REFORMISTAS E SOCIALISTAS ....................................................................................... 34
A EMERGNCIA DA AO DIRETA .......................................................................................................... 43
A RECEPO DO ANARQUISMO NO BRASIL ........................................................................................... 49
O CRESCIMENTO DA MILITNCIA ANARQUISTA E DE SUA REPRESSO NO BRASIL................................. 55
SINDICALISMO E ANARQUISMO............................................................................................................. 58
A EMERGNCIA DO ANARCO-SINDICALISMO SINDICALISMO E ANARQUISMO .................................. 67
A INSTRUMENTALIZAO DO SINDICALISMO PELOS ANARQUISTAS ...................................................... 79
CAPTULO 2 - DO DIREITO REVOLUO................................................................................ 90
REIVINDICAO OPERRIA E DIREITO .................................................................................................. 91
AS GREVES DE 1917 ............................................................................................................................. 98
DA AO DIRETA POR DIREITOS PARA A REVOLUO ........................................................................ 111
PRIMEIRAS CRTICAS AO BOLCHEVISMO: DITADURA DO PROLETARIADO OU ANARQUISMO? ............... 127
O CONGRESSO OPERRIO DO RIO GRANDE DO SUL, DE 1920 ............................................................ 137
O III CONGRESSO OPERRIO DE 1920 E O ENCAMINHAMENTO DA CISO ........................................... 144
CAPTULO 3 - A QUEDA .................................................................................................................. 153
ANARQUISTAS E COMUNISTAS: A RUPTURA ........................................................................................ 158
O ANARQUISMO NA POCA DAS REVOLUES PEQUENO-BURGUESAS E BURGUESAS ................... 167
NO OIAPOQUE OU NO CHU ................................................................................................................ 179
SOB O GOVERNO VARGAS .................................................................................................................. 190
A DECADNCIA E A POLTICA DE FRENTE NICA ................................................................................ 196
CAPTULO 4 - INTERNACIONALISMO, RAA E NACIONALIDADE NA PROPAGANDA
ANARQUISTA DO BRASIL .............................................................................................................. 210
DIVULGAO DE NOTCIAS INTERNACIONAIS E O INTERNACIONALISMO DA CLASSE TRABALHADORA 213
AES DE SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL ...................................................................................... 219
ETNOCENTRISMO E DARWINISMO SOCIAL NA FORMAO DA CLASSE OPERRIA DO BRASIL .............. 225
A FRICA NA IMPRENSA ANARQUISTA BRASILEIRA ............................................................................ 228
RAAS E REVOLUO SOCIAL ........................................................................................................... 232
CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................................. 247
ARQUIVOS .......................................................................................................................................... 251
FONTES CONSULTADAS ................................................................................................................. 252
2.1. PROCESSOS JUDICIAS (APERGS) ................................................................................................ 252
2.2. CORRESPONDNCIA DE ASTROJILDO PEREIRA (CEDEM) ........................................................... 252
2.3. OPSCULOS APERJ .................................................................................................................... 252
2.4. JORNAIS E REVISTAS (AEL, CEDEM, AMORJ, NPH, BN, APERGS E APESP) ........................ 252
2.5. PRONTURIOS DA DELEGACIA DE ORDEM POLTICA E SOCIAL DE SO PAULO (DEOPS-SP) ..... 254
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................. 258
10
Introduo
O movimento anarquista de todo o mundo sofreu um grande declnio a partir da
dcada de 1930, agravado aps a II Guerra Mundial, quando a nova ordem que se
instaurou recrudescia a franca oposio entre blocos de pases capitalistas e socialistas.
Nesse conflito poltico-ideolgico, para ambos os lados a corrida tecnolgico-militar
tornou-se essencial. Concepes de mundo se digladiavam no embate ou melhor, na
ameaa de embate concreto entre Estados, o que reforava ainda mais a ingerncia
do Estado na vida social e a sensao de que no havia outras estratgias de ao
revolucionria potencialmente eficientes seno as que objetivavam a conquista do
aparelho estatal. Era o que pareciam demonstrar tambm as lutas de descolonizao e
as revolues na China e em Cuba. Julgava-se, ento, que o anarquismo, tanto o
movimento quanto a ideologia, parecia um captulo definitivamente encerrado no
desenvolvimento dos movimentos revolucionrios e operrios modernos
1
.
Porm, um novo flego foi dado ao movimento anarquista em 1968, quando
movimentos como a primavera de Praga e o maio francs tornaram-se dois dos
principais smbolos da seqncia de eventos que trouxeram novas questes sobre
mtodos e objetivos da luta revolucionria. Nesse mesmo contexto, movimentos
formalmente desvinculados do anarquismo, como o pacifismo impulsionado pela
Guerra do Vietn e a contracultura hippie, contriburam indiretamente para uma
renovao do interesse pelas idias libertrias. Todos esses eram movimentos que
diziam ter nascidos espontaneamente, descentralizados, fora da rigidez disciplinadora e
das prioridades e objetivos estabelecidos por vanguardas dirigentes, tais como os
partidos comunistas de matizes soviticas. Instigados pelo clima de mudana, muitos
dos participantes desses movimentos foram buscar apoio nos escritos libertrios,
revitalizando o interesse adormecido, ou quase amortizado, pelo anarquismo.
A partir da dcada de 1970 se observa o crescimento de bandeiras polticas de
minorias oprimidas, em especial em questes de gnero, sexualidade e raa. Percebia-
se, corretamente, que a soluo para o problema da explorao de classe no
significava a certeza da supresso de outras formas de explorao ou preconceito. Mas,
1
HOBSBAWM, Eric J. Reflexes sobre o anarquismo. In: Revolucionrios Ensaios contemporneos.
Rio de Janeiro: 2.ed., Paz e Terra, 1985, p. 90.
11
em muitas ocasies, ao invs de procurar uma articulao em torno de uma causa em
comum, diversos desses grupos militantes negavam a subordinao de suas lutas a uma
bandeira que colocasse o mundo do trabalho e a explorao de classe como referencial
central. O resultado foi uma pulverizao de causas e energias militantes, cuja soluo
particular de cada questo, para muitos, poderia ser obtida sem necessariamente se
romper com a ordem capitalista.
Esse fenmeno poltico veio acompanhado pelo desenvolvimento de novos
arcabouos tericos que, por um lado, passaram a identificar a reproduo da opresso
poltico-social em discursos terico-filosficos que se pretendiam revolucionrios.
Segundo essas concepes ps-estruturalistas, o marxismo passou a ser visto como
uma metalinguagem que, como todas as outras, dissimulava ser revolucionrio,
conquanto no passava de mais um discurso produtor de sentidos aprisionantes em sua
lgica hermtica. Todos os aspectos da vida estariam submetidos a discursos em
conflito, que tentavam se impor como dominantes. Por mais revolucionrios e
libertadores que aparentassem ser, ao se tornarem discursos dominantes na organizao
social, inevitavelmente se tornariam opressores de outros aspectos da vida, gerando
resistncias de discursos oprimidos que lutariam por se tornar dominantes, e assim
sucessivamente, indefinidamente. A liberdade absoluta seria uma utopia irrealizvel,
seno tambm um componente de um discurso em conflito. Restaria to somente um
certo conformismo quanto aos limites da militncia pela liberdade e a fragmentao de
lutas de acordo com as mltiplas identidades existentes que compunham os indivduos.
Entretanto, a seu ver, esta constatao aparentemente pessimista era muito mais
libertadora do que o revolucionarismo calcado nos opressores discursos cientificistas
do sculo XIX dominantes at ento, pois os resultados prticos de lutas pontuais e
cotidianas se tornavam muito mais eficazes que as pretenses de se construir um
homem novo atravs da conquista do Estado.
Muitos militantes e intelectuais julgaram compor, ento, a agenda de uma
nova esquerda, mais aberta e mais plural. E tambm no movimento anarquista, que
historicamente havia dado ateno s mltiplas formas de opresso cotidiana, houve
quem tentasse uma aproximao do ideal libertrio com essas teorias ps e
antiestruturalistas. Salvo Vaccaro
2
e Margareth Rago
3
, por exemplo, filsofo e
2
VACCARO, Salvo. Foucault e o anarquismo. Rio de Janeiro: Achiam, 2000 (consultada a verso
eletrnica disponvel em http://www.nodo50.org/insurgentes/biblioteca/foucault_e_o_anarquismo_-
_vaccaro.pdf ).
12
historiadora declaradamente anarquistas, tentam fazer uma aproximao do seu ideal
poltico com o arcabouo terico formulado por Foucault. De acordo com esses
autores, dentre muitos outros, o filsofo francs, embora no se considerasse
anarquista, possua uma dimenso libertria ao perceber que o lugar do exerccio do
poder no era o Estado, mas os micro-poderes cotidianos, cujos efeitos na construo
das subjetividades individuais s poderiam ser combatidos e transformados a partir de
intervenes nas mesmas esferas.
Essas tentativas de aproximar a filosofia foucaultiana do anarquismo podem ser
entendidas tambm como esforos para dot-lo de um arcabouo terico-metodolgico
de pesquisa social prprio, capazes de desenvolver conceitos coerentes ao iderio
anarquista. Isso no significa desprezar as heranas de militantes, como Bakunin,
Kropotikin, Malatesta, entre tantos outros que expressaram as particularidades do
pensamento anarquista. Apenas se constata que o anarquismo, talvez pelo seu carter
mais prtico e por abrigar mltiplas tendncias, jamais conheceu um terico que lhe
devotou um arcabouo terico e filosfico prprio, de modo semelhante, por exemplo,
ao que Marx legou ao marxismo.
No importa aqui adentrar em pormenores das argumentaes que tentam
estabelecer correspondncia entre o anarquismo e o ps-estruturalismo, seno
reconhecer nesse esforo uma manifestao da revitalizao que o anarquismo
experimentou no desenvolvimento de idias e mobilizao, nesses ltimos quarenta
anos.
Outros intelectuais bastante influentes no mundo contemporneo, com matizes
tericas bastante diferentes das de Foucault, como Noam Chomsky
4
, declaram sua
simpatia pelos ideais libertrios em suas consideraes sobre a necessidade de combate
contra a dominao em todas as esferas da vida humana, em tempos de radicalizao
da violncia fsica e simblica a favor do capital. Ao mesmo tempo, a partir da dcada
de 1990, uma srie de movimentos antiglobalizao, heterogneos, organizados de
maneira absolutamente descentralizada e executando manifestaes pblicas de massa,
3
RAGO, Margareth. Foucault, histria e anarquismo. Rio de Janeiro: Achiam, 2004.
4
Dos diversos escritos de Chomsky que, de uma forma ou de outra, possuem uma abordagem libertria,
destaca-se a seguinte compilao de textos, que tratam diretamente de suas impresses acerca do
anarquismo: CHOMSKY, Noam. Notas sobre o anarquismo. So Paulo: Editora Imaginrio/Sedio
Editorial, 2004.
13
resgataram uma srie de prticas de mobilizao e de pautas antigas elaboradas pelos
velhos militantes anarquistas.
O desmantelamento da Unio Sovitica e a instaurao de uma nova ordem
mundial fundada em um Pensamento nico
5
que, paradoxalmente, fortalecia o
Estado para garantir a implementao de um laissez-faire exacerbado, trouxeram, por
um lado, alguma desconfiana em torno da eficincia do partido como elemento
estratgico central de resistncia revolucionria. Os partidos e suas atribuies no
desapareceram, certo, mas cresceram as expectativas em movimentos sociais que
apareciam como o centro da resistncia popular s radicais transformaes impostas
pelo deus-mercado em expanso. Movimentos como o Exrcito Zapatista de
Libertao Nacional, no Mxico, um exemplo desses movimentos que ganharam
destaque na primazia da articulao da resistncia popular autnoma frente aos
partidos polticos. Claro que no se pode taxar esses movimentos de anarquistas.
Tampouco as grandes mobilizaes antiglobalizao de Seattle e Gnova, e menos
ainda o Frum Social Mundial de Porto Alegre, dada a heterogeneidade de grupos,
muitos dos quais possuam posies polticas definidas distintas, e at em oposio, ao
anarquismo. Porm, o vulto tomado por tais ondas de mobilizao popular
contriburam para trazer tona o interesse pelos velhos debates sobre temas,
organizao e objetivos revolucionrios dos anarquistas, expresso mesmo em debates
internos do marxismo, como o controvertido e provocador Mudar o mundo sem tomar
o poder
6
, de John Holloway.
A presente tese, portanto, fruto desse contexto. O projeto de pesquisa que lhe
deu origem foi formulado em fins de 2004, quando, j havia algum tempo, crescia a
sensao (pelo menos a minha, em particular) de que os caminhos institucionais eram
incapazes de pr freio expanso da instaurao de um regime totalitrio do mercado,
cujos expoentes assumiam, a meu ver, feies cada vez mais prximas do proto-
fascismo e da intolerncia que lhe prpria. Essa minha sensao era reforada pela
anunciada crise interna que o Partido dos Trabalhadores viveria aps a eleio de Lula
presidncia da Repblica, cuja campanha caracterizou-se por pragmatismo de
5
Essa expresso, bastante utilizada pelos movimentos antiglobalizao e de esquerda, de forma geral,
foi cunhada no seguinte editorial: RAMONET, Ignacio. La pense unique. Le Monde Diplomatique,
Paris, jan. 1995, p. 1. (verso eletrnica do editorial disponvel em http://www.monde-
diplomatique.fr/1995/01/RAMONET/1144 )
6
HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder. So Paulo: Boitempo, 2003. (original em
ingls de 2002).
14
alianas e compromissos pblicos conciliatrios. A expulso de alguns de seus quadros
contrrios aos rumos adotados logo no primeiro ano do governo trouxe imediatamente
questes acerca da pertinncia da construo de um novo partido poltico e sobre quais
bases e objetivos
7
.
Avaliao de conjuntura correta ou no, o fato que eu, que no sou anarquista
e sempre que exerci alguma atividade de militncia o fiz de modo parco e espordico,
me senti atrado, como tantos outros, por compreender melhor o anarquismo e
conhecer eventuais contribuies que tal corrente pudesse oferecer aos impasses atuais.
Mas este apenas um aspecto da historicidade que circunda esta tese. Sob outro, ela
minusculamente se insere em um outro processo histrico correlato, com feies
polticas e acadmicas especficas do contexto brasileiro.
A histria do anarquismo no Brasil ganhou notvel impulso como objeto de
estudo acadmico na dcada de 1980, atravs da proliferao de pesquisas sobre a
histria do movimento operrio brasileiro. O interesse de cientistas sociais acadmicos
foi despertado, em grande medida, pelo ressurgimento, no final da dcada de 1970, de
uma mobilizao sindical, sendo justamente Lula seu principal expoente, que desafiava
a rigidez da represso imposta pela ditadura militar nascida em 1964. O afrontamento
interdio do direito de greve e de manifestao do livre pensamento gerou uma
expectativa muito grande em torno do ocaso definitivo do regime em vigor. Por outro,
entrou na ordem do dia daqueles que almejavam uma transformao muito alm da
forma de governo, uma ruptura definitiva da ordem capitalista. A dimenso adquirida
pelas mobilizaes e os seus contornos definidos sob moldes que se diziam autnomos
em relao ao Estado e s correntes ideolgica-polticas trouxeram questes novas
sobre estratgias de ao e os agentes polticos que poderiam construir um futuro que
se apresentava promissor. Desse processo, se optou pela construo de uma estrutura
partidria menos hierarquizada internamente, e com maior organicidade com o
movimento sindical e demais movimentos sociais, o que deu origem ao PT.
7
Para dar um exemplo dos debates polticos e tericos, direta ou indiretamente relacionados a essa crise
interna do PT e formao do PSOL, ver a entrevista com Michael Lwy e o dossi Partido Poltico
da revista Margem esquerda ensaios marxistas. So Paulo, Boitempo, n. 4, p. 9-54, out. 2004.
Dentre os artigos, encontra-se um pequeno texto do autor citado acima, John Holloway (Partidos
polticos?, p. 45-49.)
15
Em meio a esse processo, logo se exaltaria a entrada dos trabalhadores como
novos personagens
8
na cena poltica brasileira, antes relegados a um plano secundrio,
seno reduzidos a meros expectadores da sua prpria histria. Colocavam-se novos
problemas que necessitavam de novas contribuies para desenvolv-los. Para tanto, se
passou a procurar ajuda em recursos tericos desenvolvidos em outras paragens, mas
com preocupaes semelhantes, como as idias propostas por Edward Palmer
Thompson e sua A formao da classe operria inglesa
9
, publicada originalmente em
1963. Ali o professor britnico redimensionava o conceito de classe social, num
esforo por retomar o legado de Marx e extrapolar os limites que historicamente
confinavam tal conceito em uma categoria esttica, desprovida da dinmica que lhe era
prpria, como experincia histrica concreta. Classe social deixava de ser definida
apenas pelo lugar que os homens ocupavam na produo de bens, para ser
compreendida como um processo histrico, forjado na relao de conflito entre grupos
sociais cujos interesses eram antagnicos e na medida em que seus agentes tomavam
conscincia dessa realidade. Isso implicaria, por outra parte, uma reformulao da
compreenso de conscincia de classe, freqentemente entendida como o acatamento a
um especfico projeto estratgico de luta revolucionria, e avaliada segundo o juzo do
analista social
10
. Assim, a conscincia de classe no se manifestaria somente nos
instrumentos tradicionalmente considerados como expresso de combatividade da
classe trabalhadora, tais como os sindicatos e o partido poltico, mas tambm em
arenas de luta antes negligenciadas, como expresses culturais variadas e o prprio
cotidiano.
Claro que uma abordagem terica desse tipo no se limita a determinar novas
formas de percepo, por si s, seno tambm, e principalmente, contribui para se
pensar e forjar novas formas de interveno na realidade. Alis, deve-se frisar que o
enfoque thompsoniano funda-se em preocupaes polticas. Ele integra um esforo
coletivo de um grupo de marxistas britnicos que, sob a inspirao de Cristopher Hill,
8
SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experincias, falas e lutas dos
trabalhadores da Grande So Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: 2.ed., Paz e Terra, 1988.
9
THOMPSON, E. P. A formao da classe operria inglesa. Rio de Janeiro: 3.ed., Paz e Terra, 1987.
(edio original The making of the English Working Class. Londres: Victor Gollancz, 1963).
10
Muito mais do que no famoso prefcio de A formao...(op. cit.), em A misria da teoria ou um
planetrio de erros: uma crtica ao pensamento de Althusser (Rio de Janeiro: Zahar, 1981. texto
original em ingls de 1978), Thompson confronta de maneira mais incisiva e direta as deturpaes das
idias de Marx feitas por seus seguidores, a comear por seu companheiro Engels, denunciando o
estancamento de sua contribuio intelectual e poltica no sculo XX, provocado, principalmente, pelo
stalinismo e sua verso refinada pela academia de Althusser.
16
procuraram transpor barreiras tericas e prticas aps seu rompimento com o Partido
Comunista Ingls, em 1956. Tal como seus colegas, Thompson faz uma crtica
marxista corrente marxista predominante. A seu ver, praticava-se uma poltica que
no s no correspondia filosofia de Marx, como era notoriamente antimarxista, o
que poderia colocar em risco toda a sua produo e a prxis revolucionria que ela
inspirava. Desde a ecloso da Revoluo Russa, todos os crticos do marxismo
enxergavam a consubstanciao dessa corrente filosfica no Estado sovitico e nos
demais estados ditos comunistas. Segundo os liberais e conservadores de diferentes
matizes, nesses pases se cometiam, sob inspirao de Marx, as maiores barbaridades
da histria do mundo civilizado, comparvel apenas ao Estado nazista. Para os
anarquistas, a centralizao poltica, a censura livre expresso de pensamento, a
hipertrofia do Estado, os atentados contra os direitos individuais e a criao de uma
nova classe de burocratas dirigentes, nada mais era do que a concretizao inevitvel
de uma ditadura do proletariado, ao qual dirigiram advertncias desde Bakunin, no seio
da Associao Internacional dos Trabalhadores. Por outro lado, ressalta-se que
Thompson no foi o primeiro a combater o stalinismo de dentro do marxismo. As
primeiras grandes crticas de impacto datam de 1924, quando o comandante do
Exrcito Vermelho, Len Trotsky, se ops publicamente ao governo sovitico e aos
rumos que a revoluo estava tomando. Essas crticas, tais quais as de Thompson e dos
demais colegas britnicos, sempre procuraram preservar a filosofia e a capacidade
revolucionria do pensamento de Marx, Engels e, no caso de Trotsky, mesmo de
Lenin, ao estabelecer diferenas com o desvirtuamento conservador e retrgrado
praticado sob o comando de Stlin e outros prceres.
Deve-se registrar que a iniciativa de Thompson foi acolhida de diferentes
maneiras entre os marxistas. Houve os que o saudaram como uma renovao do
marxismo, um resgate, ainda que revisitado, do pensamento marxiano; enquanto
outros, mesmo aqueles que reconheciam mritos e honestidade no trabalho do
historiador, divergiam de suas concepes, por tornar o conceito de classe e sua
conscincia elementos quase que evasivos, pelo carter diludo de sua manifestao na
realidade, o que dificultava a construo de uma resistncia minimamente disciplinada,
com objetivos estratgicos concretos, tais como a tomada do poder atravs da
conquista do Estado. Alm disso, como analisa Marcelo Badar Mattos
11
, existiriam
11
MATTOS, Marcelo Badar. E. P. Thompson no Brasil. Outubro, So Paulo, n. 14, p. 81-110 , 2. sem.
2006.
17
ainda aqueles que se valeram de leituras particulares da nova conceituao de classe
para justificar enfoques tericos e polticos diversos, de modo semelhante ao que se
passou com Marx e seus leitores, segundo o prprio Thompson. De toda forma,
inegvel o impacto que esse historiador ingls produziu na historiografia
contempornea.
Deixando de lado a discusso acerca da pertinncia ou no das crticas e da
adeso a Thompson, interessa aqui reconhecer que o desenvolvimento de pesquisas
sobre o movimento anarquista do Brasil se deu, por um lado, sob o impacto da
emergncia do chamado novo sindicalismo, e, por outro, pela influncia crescente
desse autor na historiografia brasileira, cujo interesse tambm decorreu, em parte,
pelas perspectivas que se apresentavam para novas formas de organizao da classe
operria brasileira. Isso porque tanto o novo sindicalismo quanto o aporte terico do
marxismo britnico contriburam para perceber a influncia anarquista sobre o
movimento operrio da Primeira Repblica brasileira como parte integrante de um
complexo processo permanente de construo da classe e de sua conscincia pelos
trabalhadores do Brasil.
Tal perspectiva contrastava com a viso predominante at ento, por sua vez
tambm fabricada pelos conflitos polticos decorrentes da prpria luta de classes, de
que essa influncia correspondia a um perodo precedente a um rpido
amadurecimento poltico da classe operria brasileira, que assim mostrava
compreender qual o papel histrico que lhe caberia frente da revoluo social e
nacional em marcha
12
, atravs de seu partido, o Partido Comunista do Brasil.
Chegava-se a reconhecer a combatividade dos militantes anarquistas e a sua
importncia para o desenvolvimento do movimento operrio de antes da formao do
PCB, como o fez um de seus fundadores e ex-anarquista, Astrojildo Pereira. Porm
essa avaliao positiva vinha acompanhada de julgamentos que condenavam o
anarquismo como um movimento fadado ao fracasso, perdido em desbragado
verbalismo revolucionrio, que desperdiava as energias das ondas de greves e as
lutas de massa, espontneas e irresistveis, por no admitirem a necessidade de um
12
PEREIRA, Astrojildo. Formao do PCB Notas e documentos, 1922-1928. Rio de Janeiro: Editorial
Vitria, 1962, p. 33.
18
partido da classe operria sob uma direo poltica e firme (...) de orientao
marxista
13
.
Embora Astrojildo admitisse a importncia histrica do movimento ao qual
pertencera, sua avaliao estava calcada em uma tradio leninista que imputava ao
anarquismo a pecha de ideologia pequeno-burguesa. Lenin atribuiu a refutao da
luta parlamentar pelos anarquistas sua concepo de mundo (...) burguesa posta ao
revs, cujas teorias individualistas e seu ideal individualista colocava o
anarquismo em oposio direta ao socialismo
14
.
Confundia-se adeso a uma corrente ou a uma estratgia poltica com
conscincia de classe. Esse procedimento de busca da identificao imediata bastante
compreensvel, como assinalou Pierre Bourdieu
15
. De acordo com o socilogo francs,
toda corrente poltica, especialmente aquelas que se identificam com uma determinada
classe social em particular, procura conquistar o monoplio da legitimidade poltica de
um grupo social. Nessa dinmica de embates polticos, surge a afirmao que tenta se
impor como verdade, de que as aes e os desejos de determinado partido so as aes
e os desejos de um povo, de uma nao, de um segmento social ou de uma classe. Esse
processo, que tambm pode ser verificado na vida sindical, acaba se naturalizando para
os prprios agentes que, de fato, acreditam estar frente da representao da
agrupao a que dizem expressar.
Guardadas as diferenas entre os arcabouos tericos de Thompson e Bourdieu,
que no cabe aqui serem aprofundadas, deve-se somente lembrar que para nenhum dos
dois a crtica ao carter objetivo da classe e de sua expresso poltica pode ser
interpretada como negao de sua existncia real. Para ambos, a classe social no
uma inveno discursiva daqueles que procuram descobrir o que se esconde por trs de
aparentes fenmenos naturais ou daqueles que simplesmente incitam a participao de
massas populares para presso poltica. As classes sociais existem, concretamente, e
em grande medida so determinadas pelo lugar que os homens ocupam na produo.
Porm, sua realizao como fenmeno social decidida por um processo complexo de
relaes sociais, mediadas por diversas manifestaes culturais e polticas, dentre as
13
Idem, ibidem, p. 136-137.
14
LENIN, V. I. Socialismo y anarquismo. In: MARX, C., ENGELS, F. e LENIN, V. I. Acerca del
anarquismo y del anarcosindicalismo. Moscou: Editorial Progreso, 1976, p. 194. (Texto escrito
originalmente entre nov. e dez. 1905 e publicado no jornal Nvaya Zhizn, n. 21, 25 nov. 1905).
15
BOURDIEU, Pierre. Espao social e gnese das classes. In: O poder simblico. Rio de Janeiro, 7.
ed., Bertrand Brasil, 2004, p. 133-161.
19
quais agem tambm esses discursos polticos. A conscincia, assim, nasce,
nescessariamente de dentro e jamais de fora da classe.
Embora essa abordagem no elimine preferncias polticas do cientista social,
ela redimiu o anarquismo do rtulo de corrente deslocada e desvirtuadora da
verdadeira conscincia de classe. Tornou-se necessrio abandonar uma condenao
previamente estabelecida pelo pesquisador que analisa sua influncia sobre o
movimento operrio. No se pode mais imputar ao anarquismo em si, ou a qualquer
outro elemento inerente condio histrica da prpria classe, a causa de uma eventual
incapacidade revolucionria em algum momento considerado decisivo para a histria.
Deve-se compreend-lo como parte integrante da complexidade da luta de classes
contingenciada por fatores histricos locais de ordem diversa.
E assim, medida em que inteirava-se com a abordagem de Thompson, abria-
se possibilidade para os historiadores brasileiros, muitos dos quais interessados e
envolvidos no processo de construo do novo sindicalismo e do PT, debruarem-se
no estudo do movimento operrio da Primeira Repblica sem os ranos que
imputavam um rtulo de fase infantil, no madura, da classe operria brasileira.
configurao do novo sindicalismo interessava sobremaneira a histria das
prticas sindicais anteriores a 1930. Reportava-se, desse modo, a um perodo da
histria do sindicalismo brasileiro anterior ao jugo das leis de sindicalizao forjadas
sob o comando de Getlio Vargas, que tanto amarravam a autonomia do movimento
operrio e, por isso mesmo, eram preservadas at mesmo pela ditadura militar que se
instalou em oposio herana varguista.
A Primeira Repblica corresponderia, portanto, a uma era em que os sindicatos,
malgrado todas as dificuldades impostas pela no observao das garantias
constitucionais mnimas, eram livres para organizar-se e agir sem a ingerncia do
Estado em sua forma de organizao interna. Tratava-se de analisar uma experincia
histrica concreta da classe operria vista sob o prisma da liberdade sindical e da
combatividade espontnea da classe trabalhadora brasileira. Fazia parte de um grande
esforo poltico-historiogrfico em dar voz queles que sempre falaram pela boca de
dirigentes partidrios ou pela histria oficial do Estado, e dar ateno sua capacidade
mobilizatria autnoma e expresso de suas preocupaes por eles mesmos.
preciso fazer a ressalva de que o movimento de trabalhadores urbanos nesse perodo
nunca pde ser superestimado, e seu peso poltico, nesse sentido, foi relativamente
20
pequeno, pelo menos at a dcada de 1920. Ainda assim, proporcionou grandes
momentos de mobilizao social, atribulao poltica e temor classe dominante de
uma eventual situao revolucionria, tal qual volta e meia se sabia existir nos pases
industrializados do Atlntico Norte ou mesmo na Argentina.
Nesse esforo por resgatar as primeiras experincias da classe operria na
histria republicana, essa historiografia dos anos 1980 dedicou especial ateno ao
estudo de prticas sindicais influenciadas pelo anarquismo, talvez em decorrncia de
um olhar que procurava perceber traos de combatividade, rebelio e revoluo em
uma classe trabalhadora tida, sob o antigo prisma do juzo falsa/verdadeira
conscincia, por amorfa, aptica e resignada de sua condio de dominada. Nessa
procura de articulao orgnica de prticas de resistncia contra a dominao do
capital, acabou se fazendo alguma espcie de associao entre a experincia da classe e
a militncia anarquista na Primeira Repblica.
E assim, muito mais do que outras correntes polticas, a influncia do
anarquismo no movimento operrio brasileiro foi alada condio de um dos
principais objetos de estudo daqueles que se mostravam interessados em reconstituir
aspectos da histria da classe operria na Primeira Repblica. No entanto,
interessante notar o paradoxo de se remeter a prticas que tiveram de algum modo
relao com a militncia anarquista, enquanto se tentava produzir uma histria da
classe operria brasileira tentando desvincul-la do vcio de perceb-la atravs de
correntes ideolgicas predominantes.
verdade que o socialismo teve escassa penetrao nas organizaes sindicais
no Brasil durante todo o perodo. Menos ainda um socialismo de matriz marxista.
Contudo, nem por isso o movimento operrio brasileiro pode ser atribudo como um
movimento de carter essencialmente anarquista. Tomando o pas, em conjunto, a
grande maioria das formas de organizao operria se fez segundo caractersticas que
podem ser associadas, de modo geral, a um reformismo
16
que na maioria das vezes no
visava o rompimento da ordem capitalista, seno somente atenuar a situao de penria
dos trabalhadores, conquistando para eles melhorias das condies de vida e de
trabalho.
16
BATALHA, Claudio. Uma outra conscincia de classe? o sindicalismo reformista na Primeira
Repblica. Cincias Sociais Hoje, So Paulo: Vrtice/Anpocs, 1990, p. 117-127.
21
A situao vai se alterando com o crescimento de cursos de ps-graduao em
todo o pas, mas ainda hoje so poucos os estudos que tomaram por objeto estritamente
as formas de organizao sindical reformistas na Primeira Repblica, como o fizeram
Claudio Batalha
17
, sobre o movimento operrio amarelo no Rio de Janeiro, Adhemar
Loureno da Silva Jr.
18
, sobre as sociedades de beneficncia e socorro mtuo do Rio
Grande do Sul e Benito Schmidt
19
, com as biografias de lideranas socialistas Antonio
Guedes Coutinho, da cidade de Rio Grande, e Francisco Xavier da Costa e Antonio
Carlos Cavaco, de Porto Alegre. Dada a diferena em termos numricos, constata-se
uma maior atrao dos historiadores pelo estudo do anarquismo, quando tratam de
analisar especificamente alguma tendncia poltica influente no movimento operrio.
De outra parte, essa concentrao temtica vem acompanhada seno
originada de outra, de carter espacial, que restringe o estudo do movimento operrio
brasileiro a poucos pontos do pas. Isso est diretamente relacionado ao fato de o Brasil
da Primeira Repblica ser um pas predominantemente agrrio. Logo, a concentrao
urbana era muito pequena, sendo menor ainda a proporo de operrios empregados,
seja no artesanato, nas manufaturas e nas poucas indstrias de maquinrio moderno.
Dessa forma, se bem que o mito-fundador remete as origens do anarquismo
no Brasil experincia de uma comuna agrcola, a Colnia Ceclia, nos arredores de
Palmeira, no Paran, a histria do anarquismo brasileiro uma histria francamente
urbana, intrinsecamente ligada ao movimento operrio urbano do pas, principalmente
(embora no exclusivamente) dos grandes centros. Assim, para a Primeira Repblica,
falar de movimento operrio no implica necessariamente falar em movimento
anarquista, mas o contrrio no verdadeiro. A repercusso que o movimento
anarquista obteve no Brasil se deveu essencialmente sua articulao com o
movimento operrio o qual, por sua vez, recebeu grandes estmulos organizatrios
por parte dos militantes anarquistas.
17
BATALHA, Claudio. Le syndicalisme amarelo a Rio de Janeiro (1906-1930). Paris: Tese de
doutorado em Histria/Universit de Paris I, 1984.
18
SILVA Jr., Adhemar Loureno da. As sociedades de socorros mtuos: estratgias privadas e pblicas
(estudo centrado no Rio Grande do Sul Brasil, 1854-1940). Porto Alegre: Tese de doutorado em
Histria/PUC-RS, 2004.
19
SCHMIDT, Benito Bisso. Um socialista no Rio Grande do Sul: Antnio Guedes Coutinho (1868-
1945). Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000; O Patriarca e o Tribuno: caminhos,
encruzilhadas, viagens e pontos de dois lderes socialistas Francisco Xavier da Costa (187?-1934)
e Carlos Cavaco (1878-1961). Campinas: Tese de doutorado em Histria/Unicamp, 2002.
22
Assim, a historiografia do movimento operrio brasileiro acabou por concentrar
suas temticas nas regies onde o movimento anarquista desempenhou atividades
consideravelmente relevantes. Quando desenvolvi minha dissertao de mestrado
20
,
pude me certificar, por exemplo, da grande disparidade em nmero de estudos sobre o
movimento operrio em Minas Gerais
21
em relao ao antigo Distrito Federal, ao
estado do Rio Grande do Sul e, principalmente, ao estado de So Paulo. Essa situao,
no entanto, se repete, ainda com maior disparidade, para as outras regies
22
.
Essa desigual distribuio quantitativa de trabalhos de carter regional e suas
implicaes na construo de uma histria que no se restrinja a alguns poucos
centros, j h tempos tem sofrido advertncias de diversos autores, dentre os quais, se
destaca Silvia Petersen
23
. A autora destaca a distoro freqente, no exclusiva da
historiografia do movimento operrio, que desconsidera as particularidades regionais e
submete a complexidade do panorama nacional s sintetizaes generalizadoras
produzidas a partir dos centros definidores de sentido
24
, no caso Rio de Janeiro e So
Paulo.
20
OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Mobilizao operria na repblica excludente: um estudo
comparativo da relao entre Estado e movimento operrio nos casos de So Paulo, Minas Gerais e
Rio Grande do Sul nas duas primeiras dcadas do sculo XX. Porto Alegre: Dissertao de
mestrado/UFRGS, 2003.
21
Dos relativamente poucos trabalhos acadmicos sobre o movimento operrio em Minas Gerais na
Primeira Repblica, destacam-se: DUTRA, Eliana Regina Freitas. Caminhos operrios nas Minas
Gerais: um estudo das prticas operrias em Juiz de Fora e Belo Horizonte na Primeira Repblica.
So Paulo: Hucitec, 1988; ANDRADE, Silvia Maria Belfort Vilela de. Classe operria em Juiz de
Fora: uma histria de lutas (1912-1924). Campinas: Dissertao de mestrado em Histria/Unicamp,
1984; FARIA, Maria Auxiliadora e GROSSI, Yonne de S. A classe operria de Belo Horizonte: 1897-
1920. In: V Seminrio de Estudos Mineiros A Repblica Velha em Minas. Belo Horizonte:
UFMG/PROED, 1982, p. 165-213; DUARTE, Regina Horta. A imagem rebelde: a trajetria
libertria de Avelino Fscolo. Campinas: Editora da Unicamp, 199; VERIANO, Carlos Evangelista.
Belo Horizonte: cidade e poltica 1897-1920. Campinas: Dissertao de mestrado em
Histria/Unicamp, 2001; ALMEIDA, Mateus Fernandes de Oliveira. Movimento operrio em Juiz de
Fora na Primeira Repblica. Rio de Janeiro: Dissertao de mestrado em Histria/UFRJ, 2005.
22
Apenas a ttulo de registro, cito alguns desses trabalhos centrados em outros estados: Cear
GONALVES, Adelaide. A imprensa dos trabalhadores no Cear, 1862-1920. Florianpolis: Tese
de doutorado em Histria/UFSC, 2000; Sergipe ROMO, Frederico Lisboa. Na trama da histria;
o movimento operrio de Sergipe (1871 a 1935). Aracaju: E. J. Andrade, 2000; Bahia
CASTELLUCCI, Aldrin A. S. Flutuaes econmicas, crise poltica e greve geral na Bahia da
Primeira Repblica. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, vol. 25, n. 50, p. 131-166, jul.-dez.
2005.
23
PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. Cruzando fronteiras : as pesquisas regionais e a histria operria
brasileira. Anos 90, Porto Alegre, UFRGS, n. 3, p. 129-153, maio 1995.
24
Ver crtica generalizao a partir dos centros definidores de sentido em CATTANI, Antonio
David. A ao coletiva dos trabalhadores. Porto Alegre: Palmarinca/SMEC, 1991, p. 44-48. Essa
obra lista a produo acadmica, de at ento, voltada para temas da histria do trabalho no Rio
Grande do Sul.
23
Especialmente durante a dcada de 1990 esse fenmeno de nacionalizao de
casos regionais recebeu a contrapartida de estudos regionais. Todavia, como foi dito
acima, desenvolveu-se tambm de modo desigual, principalmente no Rio Grande do
Sul.
Para se compreender os motivos pelos quais nesse estado encontra-se
atualmente um dos principais ncleos de histria do movimento operrio do pas,
deve-se considerar tambm a influncia de aspectos polticos. De forma geral, a
historiografia trata de temas regionais, tanto pela facilidade de acesso s fontes locais,
quanto pela particularidade da sua formao histrica e seus usos polticos, que ainda
hoje, no senso comum, despertam, em sua populao, discursos regionalistas, que, por
sua vez, so vistos pelos demais brasileiros, freqentemente, como bairrismo
separatista. Especificamente quanto temtica da histria do trabalho e das formas de
resistncia populares, em toda a histria republicana, existiu uma certa ebulio
poltica em torno da relao entre o Estado e a participao poltica dos trabalhadores.
Na Primeira Repblica, o partido do governo estadual fundou-se sobre princpios do
positivismo de Auguste Comte, que previa a incorporao do proletariado sociedade
moderna em seu sistema social conservador. Esse discurso paternalista e o
comportamento do governo em alguns episdios relacionados ao movimento operrio
chegaram a ser identificados como as origens do trabalhismo no Rio Grande do Sul
25
,
e que se alastraria pelo Brasil com Vargas e seus herdeiros polticos, Joo Goulart e
Leonel Brizola. Alm dessa vertente trabalhista, nesse estado nasceram iniciativas de
organizao camponesa que, articuladas com outras do pas, dariam origem ao MST,
ao mesmo tempo em que foi um dos principais redutos de formao do PT e de suas
experincias governativas municipais e do prprio estado, o que lhe conferiu um
simbolismo de resistncia e alternativa poltica, expresso no Frum Social Mundial,
ocorrido em Porto Alegre, pela primeira vez em 2001.
Porm, de modo geral, as pesquisas que se realizaram ali possuam, e ainda
possuem, um carter bastante regionalizado. Essa no uma caracterstica exclusiva da
produo historiogrfica gacha, de maneira geral, nem da histria do movimento
operrio, de maneira especfica. A profissionalizao da prtica do historiador
estabeleceu a necessidade de um maior rigor com a historicidade, o que implica um
recorte mais restrito no tempo e no espao. O resultado, de forma geral, a confeco
25
BODEA, Miguel. A greve de 1917: as origens do trabalhismo gacho. Porto Alegre: L&PM, 1979.
24
de trabalhos mais rigorosos, atentos complexidade local e com o desenvolvimento
aprofundado de questes que as generalizaes no permitem perceber.
No entanto, como ressalta Silvia Petersen, h pouca preocupao com a
articulao inter-regional desses trabalhos, o que dificulta a constituio de um quadro
nacional da histria do movimento operrio brasileiro. Corre-se o risco, como sucede
muitas vezes com outras reas temticas, de um acmulo de estudos de casos sem o
estabelecimento de uma necessria conexo. Para superar restries analticas
produzidas por recortes temticos, a autora sugeriu alguns temas gerais para que se
tentassem desenvolver pesquisas que dessem conta de anlises de carter inter-regional
ou mesmo internacional. Ela prpria vem h sete anos desenvolvendo pesquisas em
torno da circulao da imprensa operria e de militantes
26
.
A preocupao de Silvia Petersen insere-se tambm em uma perspectiva
internacional. Marcel van der Linden, por exemplo, o principal propagador da
necessidade de se fazer uma histria transnacional do trabalho, justamente para superar
deficincias semelhantes s que Petersen apontou para o contexto brasileiro, e
desenvolver e apurar conceitos, como o prprio de classe trabalhadora, a partir de uma
percepo internacional, que vise superar limitaes provindas da imposio de um
conceito forjado a partir de um centro definidor de sentido e disseminado para o
estudo de casos particulares
27
. Essa necessidade surge em um contexto de
intensificao das relaes globais do capital. O capital cada vez mais deixa de
reconhecer as fronteiras polticas formais e, com ele, trabalhadores de todo o mundo
experimentam novas formas de explorao, algumas compartilhadas, todas inter-
relacionadas. Perceber as interconexes seria tambm, de alguma forma, contribuir
26
Resultados parciais de sua pesquisa Relaes interestaduais e internacionais no processo de
formao do movimento operrio brasileiro, constituda de diversas etapas, tm sido apresentados em
congressos pela autora, mas at este momento ainda no existe uma publicao sistematizada do
conjunto dessa pesquisa. Alguns desses textos, referentes circulao de militantes e de seu material
de propaganda, so: A circulao de militantes e trabalhadores: percursos e efeitos no movimento
operrio brasileiro em suas primeiras dcadas. Anais eletrnicos do XXII Simpsio Nacional de
Histria - ANPUH, Joo Pessoa: ANPUH, 2003; Fugitivos o deportados de Brasil: itinerrios y
efectos de la persecucin a agitadores indeseados en el movimiento obrero de las primeras dcadas
del siglo XX. III Jornadas de Historia de las Izquierdas Exilios politicas argentinos y
latinoamericanos. Buenos Aires: CEDINCI, Buenos Aires, 2005; Relaes interestaduais e
internacionais no processo de formao do movimento operrio brasileiro. 53 Congresso
Internacional de Americanistas-LASA, Montreal, v. 1, 2007; A mesma classe, a mesma luta, o
mesmo idioma. Breves notas sobre a circulao da imprensa operria publicada no Brasil e em
Portugal. Anais eletrnicos do IX Encontro Estadual da ANPUH-RS. Porto Alegre: ANPUH-RS,
2008 (www.eeh2008.anpuh-rs.org.br/resources/content/anais/1210861237_ARQUIVO_PETERSEN-
ANPUHRS2008.pdf).
27
LINDEN, Marcel van der. Rumo a uma nova conceituao histrica da classe trabalhadora mundial.
Histria, So Paulo, UNESP, v. 24, n. 2, p. 11-40, 2005.
25
para uma ampliao da percepo dos prprios trabalhadores de sua experincia em
comum e a construo de formas de resistncia e ao internacionais
28
.
Especificamente no caso brasileiro, as sugestes de Petersen encontraram
alguma ressonncia. Minha dissertao de mestrado citada anteriormente, por
exemplo, foi desenvolvida, sob a orientao da autora, com essa preocupao de tentar
mensurar elementos particulares e gerais da relao entre governos estaduais e
movimento operrio brasileiro em trs estados, So Paulo, Minas Gerais e Rio Grande
do Sul. Malgrado alguns limites, sobretudo por ter concentrado a anlise nas capitais,
com exceo de Minas, e das dificuldades inerentes a um estudo comparativo, pude me
certificar daquilo que outros autores j apontavam anteriormente, de que a
caracterizao geral da Primeira Repblica, simplificada no esquema esteriotipado do
Estado liberal-repressor X militantes anarquistas de origem estrangeira, funda-se a
partir do caso paulista e tem pouca fundamentao para ser reproduzida em outras
partes do Brasil.
Indo mais alm, desenvolveram-se trabalhos que procuraram apreender
aspectos da complexidade da histria do movimento operrio brasileiro atravs de
relaes estabelecidas com outras partes do mundo.
Nesse sentido, por exemplo, Vitor Wagner Neto de Oliveira
29
analisou as
relaes de trabalho e de ao de resistncia coletiva dos trabalhadores martimos e
porturios do rio da Prata, assim como a rede coordenada de represso e controle social
a essas iniciativas. A riqueza da sua anlise, portanto, consiste na superao das
fronteiras polticas nacionais ao colocar, por assim dizer, o rio como elemento espacial
e o conjunto de categorias de trabalho ligadas ao transporte fluvial/martimo como seu
objeto de estudo.
Com perspectiva de rompimento dos estreitos limites espaciais, alguns autores
procuraram compreender aspectos do movimento operrio brasileiro atravs de sua
28
Apenas para citar exemplos desse esforo por contribuir com uma histria transnacional do trabalho,
ainda indefinida, em formao, ver LINDEN, Marcel van der. The Globalization of Labor and
Working-Class History and its consequences. International Labor and Working-Class History, n. 65,
p. 136-156, primavera 2004; BONNER, Philip, HYSLOP, Jonathan e WALT, Lucien van der.
Rethinking worlds of labour: Southern African Labour History in International Context. African
Studies, n. 66, p. 137-168, ago.-dez. 2007; SILVER, Beverly J. Foras do trabalho: movimentos de
trabalhadores e globalizao desde 1870. So Paulo: Boitempo, 2005.
29
OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Entre o Prata e Mato Grosso: uma viagem pelo mundo do
trabalho martimo de 1910 a 1930. (Buenos Aires, Montevidu, Assuno e Corumb). Campinas:
Tese de doutorado em Histria/Unicamp, 2006.
26
insero internacional, e confeccionaram biografias de militantes do movimento
operrio, que circularam por pases diferentes. Esse foi o caso de Oreste Ristori,
militante italiano anarquista e depois comunista, que viveu entre a Itlia, o Brasil e o
Uruguai, biografado por Carlo Romani
30
, e do portugus Neno Vasco, advogado que
se tornou um dos principais articulistas pela propaganda do sindicalismo
revolucionrio no Brasil, cuja vida e pensamento foram analisados por Alexandre
Samis
31
. Edilene Toledo
32
, por sua vez, analisou a vida de trs militantes italianos do
sindicalismo revolucionrio em So Paulo, com preferncias polticas distintas:
Alceste De Ambris, socialista, Giulio Sorelli
33
, anarquista e Edmondo Rossoni, que se
converteria em organizador do sindicalismo fascista e ministro da Agricultura de
Benito Mussolini, entre 1935 e 1943.
O trabalho dessa autora, especialmente, se tornou uma referncia bastante
importante para o desenvolvimento da presente tese. Isso porque ela chama a ateno
para um aspecto pouco desenvolvido na historiografia brasileira, de forma geral, para a
particularidade do sindicalismo revolucionrio, como corrente distinta do anarquismo.
Como ela demonstrou, anarquismo e sindicalismo revolucionrio podem ser tomados
como duas correntes distintas. O sindicalismo revolucionrio tomou corpo terico com
o escrito de George Sorel, Reflexes sobre a violncia
34
, onde estabelecia as virtudes
da ao direta dos trabalhadores e a importncia do mito da greve geral
revolucionria. Segundo seus adeptos, os sindicatos deveriam promover aes
deliberadamente revolucionrias sem, no entanto, assumir nenhuma definio poltica
ou religiosa. A funo do sindicato era aglutinar trabalhadores e as situaes prticas
tratariam de conscientiz-los de seu potencial revolucionrio e projetar o futuro.
A nica divergncia que tenho com a anlise de Edilene Toledo, compartilhada,
alis, por Alex Buzeli Bonomo
35
, que no percebo o sindicalismo revolucionrio no
30
ROMANI, Carlo. Oreste Ristori: uma aventura anarquista. So Paulo: Annablume, 2002.
31
SAMIS, Alexandre. Minha ptria o mundo inteiro: Neno Vasco, o anarquismo e as estratgias
sindicais nas primeiras dcadas do sculo XX. Niteri: Tese de doutorado em Histria/UFF, 2006.
32
TOLEDO, Edilene. Travessias revolucionrias: idias e militantes sindicalistas em So Paulo e na
Itlia (1890-1945). Campinas: Editora da Unicamp, 2004
33
A autora publicou sua biografia em uma outra publicao: TOLEDO, Edilene. Anarquismo e
sindicalismo revolucionrio: Trabalhadores e militantes em So Paulo na Primeira Repblica. So
Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004.
34
SOREL, Georges. Reflexes sobre a violncia. So Paulo: Martins Fontes, 1992. (escrito datado de
1907).
35
BONOMO, Alex Buzeli. O anarquismo em So Paulo: as razes do declnio (1920-1935). So Paulo:
Dissertao de mestrado em Histria/PUC-SP, 2007, p. 235-299.
27
Brasil como uma corrente autnoma do anarquismo. Isso no quer dizer, como ela
demonstra, que no houvesse divergncias com militantes anarquistas sobre a nfase
que os adeptos do sindicalismo davam funo revolucionria dos sindicatos,
tampouco que no existiam militantes no-anarquistas que se diziam sindicalistas
revolucionrios. A meu ver, o sindicalismo revolucionrio no Brasil no pode ser
dissociado da militncia anarquista, e, como a prpria autora ressalta, muitas vezes o
sindicalismo assumiu feies revolucionrias mais em termos de discurso, na
propaganda anarquista e nos estatutos de federaes, do que na prtica propriamente
dita dos sindicatos.
Exceto por essa ressalva, o trabalho de Edilene Toledo tomado como um
importante referencial. Antes dela, muitos autores
36
chamaram a ateno para esse
aspecto, mas nenhum desenvolve o debate em torno do sindicalismo revolucionrio e
do anarquismo no Brasil de modo to aprofundado.
Instigado por essa perspectiva, procurei resgatar as estratgias e dilemas que o
movimento anarquista enfrentou no Brasil durante o perodo que assumiu alguma
relevncia no Brasil, entre 1906 e 1936. As fontes utilizadas, basicamente, foram o
material destinado propaganda anarquista, atravs, fundamentalmente, da imprensa
sob seu comando (jornais anarquistas e sindicalistas revolucionrios). Mas no se
desprezei fontes produzidas ou coletadas pela polcia, principalmente do DEOPS-SP,
que alm de fornecer materiais de bastidores, ainda ofereciam algumas percepes e
juzos que ajudam a contrastar a opinio e o ponto de vista interno de seus militantes.
O mote geral foi perceber como os anarquistas tentaram disseminar seu ideal
entre os trabalhadores para fazer eclodir um efetivo movimento revolucionrio. , sem
dvida, uma histria das idias, tal qual Edilene Toledo diz ter sido a sua. Mas diria
ainda mais: uma histria de intenes. De intenes que no atingiram seu objetivo
final a revoluo , muito embora tenham produzido resultados concretos e ajudado
a transformar realidades e participado da experincia da classe trabalhadora dos
principais centros industriais do Brasil da Primeira Repblica.
36
Destacam-se SFERRA, Giuseppina. Anarquismo e anarcossindicalismo. So Paulo: Editora tica,
1987; SEIXAS, Jacy Alves de. Mmoire et oubli: Anarchisme et syndicalisme rvolutionnaire au
Brsil. Paris : ditions de la Maison des Sciences de lHomme, 1992; BATALHA, Claudio. Le
syndicalisme... (op. cit.), p. 165-169; ARAVANIS, Evangelia. A utopia anarquista em Porto Alegre
nos anos 1906 e 1907. Estudos ibero-americanos, Porto Alegre, PUCRS, v. XXII, n. 2, dez. 1996, p.
45-46.
28
Para tanto, a tese foi elaborada em quatro captulos, sendo os trs primeiros
organizados seguindo uma ordem cronolgica. No primeiro, se procurou reconstituir o
processo pelo qual o anarquismo ascendeu no Brasil atravs da relao estabelecida
com o movimento operrio. Apresenta-se as discusses em torno da estratgia de ao
no interior do movimento operrio, para melhor instrumentaliz-lo para seus fins
revolucionrios. Dada a fragilidade e m reputao que a ideologia dominante conferia
ao anarquismo, a fase analisada no primeiro captulo, finda em 1913, uma fase de
tenso entre a prudncia e a impacincia, expressas por grupos de militantes.
J o segundo captulo, por sua vez, trata do perodo das grandes greves
iniciadas em 1917 por todo o pas. um perodo em que os militantes acreditam estar
vivendo um momento chave, de inflexo histrica, no Brasil e no mundo, diante do
desenvolvimento da Revoluo Russa. Estabeleceu-se um quadro que levou o
movimento, como um todo, a discutir a possibilidade de se passar a uma ofensiva real,
com chances de derrocar o sistema de explorao e opresso vigente no pas, e
construir o socialismo anarquista. Uma srie de dilemas e impasses, na avaliao sobre
a definio de estratgias e da conjuntura propcia, se imps para os militantes
anarquistas naquele momento.
A crise se estabeleceu, parte da militncia abandonou o movimento para fundar
o PCB, convictos de que as estratgias anarquistas haviam atingido seu esgotamento.
Outra parte permaneceu fiel s antigas convices, mas uma nova conformao das
estruturas poltico-sociais no pas colocava novos desafios ao movimento anarquista. O
terceiro captulo analisado sob a perspectiva da perda do monoplio do discurso
revolucionrio, que caracterizou o anarquismo no Brasil nas duas dcadas anteriores.
Nos anos 1920 e 1930, os anarquistas remanescentes oscilaram entre o apoio e a
oposio a movimentos encabeados por tenentistas e comunistas. Por trs dessa
oscilao, a hesitao frente necessidade de se escolher entre a preservao de sua
identidade poltica e de seu purismo revolucionrio ou o risco de se cair no
ostracismo at sua amortizao completa enquanto movimento organizado.
O quarto e ltimo captulo foge ao esquema cronolgico dos demais, mas
debate uma questo que perpassa os primeiros: como convencer a classe trabalhadora
de seu potencial revolucionrio? Isso implicou um esforo de construo da identidade
operria adequada sua concepo internacionalista. De outra parte, implicou
enfrentar as divises nacionais e raciais existentes no Brasil. O captulo tenta
29
demonstrar algumas dificuldades que os anarquistas encontraram nesse esforo de
propaganda e, ao mesmo tempo, levantar questes acerca de seu olhar sobre a
composio racial e nacional dos trabalhadores do Brasil, entre 1908 e 1921, tomando
So Paulo como referncia.
Alis, depois de tudo o que foi falado sobre os avanos e debates concernentes
aos recortes espaciais, optou-se por analisar a documentao produzida pela militncia
anarquista do Distrito Federal, de So Paulo e do Rio Grande do Sul. O Brasil do
ttulo desta tese reduz-se, na verdade, a esses trs casos. Ainda que algumas vezes se
remeta a algumas cidades do interior, principalmente Santos e Pelotas, a prioridade
concentra-se nos casos das capitais. Desconsiderou-se, de outra parte, os vestgios
deixados por militantes de outras partes do pas, embora alguns pudessem ser
percebidos nas fontes consultadas, que pouco poderiam ser restitudos por mim, dada a
dificuldade de acesso s fontes e falta de conhecimento de estudos regionais (em boa
parte dos casos, inexistentes). Fica a, ainda, uma lacuna a ser preenchida no futuro.
Porm, devo advertir que a abordagem no foi feita de modo simtrico, at
mesmo porque o movimento anarquista no foi, como no poderia ser, uniforme em
intensidade nem em periodizao. O movimento anarquista, por exemplo, sofreu seus
primeiros profundos ataques, que se mostrariam irreversveis no Rio de Janeiro, j a
partir da formao do PCB, em 1922. No Rio Grande do Sul, existia ainda um
resqucio na metade da dcada de 1920, com progressivo enfraquecimento no
alvorecer da dcada seguinte, at sua marginalizao. A dcada de 1930, assim, ficou
praticamente reduzida cidade de So Paulo.
Estou consciente de que tal opo representa andar na contramo da tendncia
ao recorte regional ou local especfico, e, de certa forma, um retorno generalizao
e seus problemas. Representa, de outra forma, um esforo, com todos os riscos
implicados, por tentar compreender o movimento anarquista enquanto movimento
minimamente articulado, atravs de militantes das trs principais regies onde o
anarquismo exerceu influncia. Queria-se evitar uma narrativa, por vezes habitual, que
toma um fenmeno por particular e, por vezes, com exagero, quando, na realidade, ele
encontra congneres em outros espaos. Procurou-se apresentar dilemas e respostas
comuns ao conjunto da militncia libertria, reconhecendo algumas particularidades,
sem, no entanto, haver procupao com uma comparao sistemtica, seno apenas
esboada.
30
Captulo 1
Anarquismo, anarquistas e
sindicatos no Brasil
A definio poltica de um grupo ou de um indivduo no uma tarefa fcil.
Isso porque quando algum procura estabelecer uma caracterizao geral de uma
corrente poltica aplicada a um grupo, muitas vezes, resulta em protestos dos
observados e de outros observadores, que pedem mais ateno s matizes e sutilezas
que separam aqueles que aparentemente esto juntos sob um mesmo rtulo. Na maioria
das vezes, h razo para tanto. Deste modo, por exemplo, existem grandes
divergncias tericas e de mtodos de ao entre as diversas correntes que se dizem
marxistas, da mesma maneira que existem diferenas significativas na escala de
valores e prticas dos ditos conservadores. E preciso levar em conta essas matizes
para poder compreender se existem ou no aproximaes que permitem que esses
grupos sejam identificados ou auto-identificados pela mesma nomenclatura poltica.
Quando se pensa no movimento operrio na Primeira Repblica brasileira, a
principal imagem difundida, a partir dos casos de So Paulo e do Rio de Janeiro, a do
predomnio do anarquismo nos meios sindicais. A historiografia do movimento
operrio brasileiro, de modo geral, apesar de reconhecer, tende a no levar muito em
conta a diferenciao entre o que chamado aqui de anarquismo puro (anarco-
comunismo) e anarco-sindicalismo no Brasil
37
, fazendo, na maioria das vezes, breves
menes existncia de diferenas em suas concepes e mtodos de luta. De todo o
modo, a falta de uma demarcao explcita das diferenas entre esses dois grupos no
tem grandes implicaes, uma vez que ambos os grupos eram anarquistas que
procuravam estar bastante prximos dos trabalhadores, diferenciando-se basicamente
no peso que conferiam aos sindicatos como elemento estratgico para a destruio do
capitalismo.
37
Dentre os principais trabalhos que procuram estabelecer essa diferena, encontram-se SFERRA,
Giuseppina. Anarquismo e anarco-sindicalismo. So Paulo: Editora tica, 1987 e MAGNANI, Silvia
Lang. O movimento anarquista em So Paulo (1906-1917). So Paulo: Brasiliense, 1982. Ambas as
autoras fundamentaram o seu trabalho a partir da anlise de dois jornais: o paulista La Battaglia e o
carioca A Terra Livre.
31
Recentemente, esse debate tomou uma nova dimenso com Edilene Toledo
38
ao
apresentar os resultados de sua pesquisa e defender a tese de que o sindicalismo
revolucionrio, entendido como uma corrente autnoma, com um corpo terico
prprio, em voga em diversas partes do mundo graas repercusso obtida pela
Confdration Gnrale du Travaille (CGT francesa), era a orientao predominante na
vida sindical dos principais centros industriais do pas. Atravs da estratgia principal
do sindicalismo revolucionrio, de manter os sindicatos livres de qualquer orientao
religiosa ou poltica, dentre as quais o prprio anarquismo, militantes anarquistas
conviviam com militantes de outras correntes e diversas religies nas organizaes
sindicais. Portanto, sindicalismo revolucionrio no o mesmo que anarquismo,
confuso usualmente feita na historiografia que, por vezes, tende a considerar o termo
anarco-sindicalismo como sinnimo de sindicalismo revolucionrio. Ou seja,
uma nova problematizao acerca de alguns dos elementos que eram vistos
simplesmente como dados de prova da influncia ou controle dos anarquistas.
Como a proposta desta tese discutir a militncia anarquista e sua influncia
nos meios operrios brasileiros, o objetivo deste captulo analisar o processo de
ascenso anarquista no movimento sindical, que permitiu criar uma imagem de
vinculao quase estrita entre um e outro para o caso da Primeira Repblica. Creio ser
importante apresentar as diferentes correntes anarquistas atuantes no movimento
operrio da primeira metade do sculo XX. Inspirada no trabalho de Edilene Toledo,
desenvolveu-se a hiptese central deste captulo, que se resume idia de que se a
concepo predominante na organizao sindical da Primeira Repblica era o
sindicalismo revolucionrio, coube aos anarquistas grande parte da responsabilidade de
sua divulgao e da repercusso atingida. Neste sentido, pelo menos do ponto de vista
dos anarquistas que o propagavam, o sindicalismo revolucionrio foi muito mais um
mtodo de ao do que propriamente uma corrente poltica autnoma. Os anarquistas o
viram como o meio para manterem-se atuantes no meio operrio para conseguir
adeptos e combater seus adversrios. Um mtodo que, se no exclusivo, foi
instrumentalizado a tal ponto de ser apresentado como o mtodo em contraposio aos
mtodos maliciosos de seus adversrios, principalmente no que se refere s
tentativas de atrelamento das associaes sindicais a um partido (o que no se
38
TOLEDO, Edilene. Travessias revolucionrias: idias e militantes sindicalistas em So Paulo e na Itlia
(1890-1945). Campinas: Editora da Unicamp, 2004; Anarquismo e sindicalismo revolucionrio:
trabalhadores e militantes em So Paulo na Primeira Repblica. So Paulo: Editora Fundao Perseu
Abramo, 2004.
32
generalizou, em boa parte, tambm, devido incansvel atuao anarquista). A
intensidade da defesa dos princpios do sindicalismo revolucionrio pelos anarquistas,
pelo menos no que tange neutralidade poltica, deveu-se, assim, a uma estratgia de
sobrevivncia do anarquismo na organizao sindical dos principais centros em
industrializao do pas (e aqui talvez caiba uma analogia s avessas da planta
extica), que permitiu sua ampliao e tambm sua identificao com o sindicalismo
revolucionrio.
Assim, durante a anlise desse processo, apesar da ressalva da autora quanto ao
anacronismo da expresso, apenas para fins de nomenclatura e diferenciao dos
puros, utilizarei a expresso anarco-sindicalismo para me dirigir especificamente
aos anarquistas adeptos da estratgia do sindicalismo revolucionrio. Ela permite
tambm diferenci-los e reconhecer a existncia dos outros diversos grupos
sindicalistas, alm dos seus adeptos anarquistas, inclusive dos que tomavam o
sindicalismo revolucionrio como uma corrente autnoma. Por fim, utilizarei os
termos libertrios, anarquistas, cratas, quando houver a possibilidade de tomar,
a partir do que eles tm em comum, os diversos grupos anarquistas em sua forma geral.
Para este grupo, o sindicalismo era uma estratgia, um meio, uma base na qual
pudessem semear seus princpios e instigar os trabalhadores e at mesmo os outros
sindicalistas sinceros (a seu ver, os que no eram politiqueiros, oportunistas, mas
lutavam com dignidade e valentia, apesar de no serem anarquistas) s formas de
solidariedade que fossem ensaios da solidariedade crata futura.
Para no incorrer no problema da desagregao, os anarco-sindicalistas
prezaram muito pelo princpio da neutralidade poltica e religiosa no interior do
sindicato. Como se ver, as referncias explcitas ao anarquismo nas publicaes
sindicalistas, ou seja, nos rgos de imprensa de associaes sindicais eram, de forma
geral, parcas se comparadas, evidentemente, s publicaes de grupos estritamente
anarquistas. Sobre isso interessante notar, por exemplo, que A Voz do Trabalhador,
rgo da Confederao Operria Brasileira (COB), tinha muitas similaridades e
diferenas de um jornal como A Guerra Social, em cujas redaes atuavam quase que
com os mesmos quadros do Rio de Janeiro.
certo, entretanto, que a defesa do princpio da neutralidade no implicou
arrefecimento da propaganda anarquista. Como se ver no sindicalista A Voz do
Trabalhador, notcias, autores e discusses de interesses claramente identificados com
33
o anarquismo ocupavam espaos em suas colunas, em detrimento de outras correntes
polticas, que, quando tinham suas opinies publicadas, podiam receber uma resposta
de seus editores no nmero seguinte.
Como se trata da anlise de um grupo poltico que tem na fala uma das suas
mais fortes formas de expresso, se no a principal, muito do caminho escolhido para
realizar essa tarefa passa por uma anlise que d destaque ao discurso dos militantes, o
que pode causar certa averso por parte do leitor, receoso de ver uma tese sobre a
histria do movimento operrio que no d ateno s suas prticas. Almeja-se, no
entanto, que este no seja o caso, ao menos neste captulo. Se sua tnica a anlise do
discurso dos agentes, em contrapartida, se procurar sempre relacion-lo com os
mtodos prticos de organizao e propaganda, j que o objetivo da tese ver as
realizaes da militncia e no apenas o que diziam ou deixavam de dizer. Porm, no
se pode prescindir da fala desses militantes, pois se trata de um movimento poltico e,
como tal, faz-se e refaz-se na medida em que se posiciona diante de conflitos
discursivos, processo pelo qual tambm se do os contornos da prpria classe operria.
Considerando que todos os agentes polticos s existem em carter relacional
39
,
o anarquista s existe na medida em que existe todo um mundo no-anarquista, do qual
quer diferenciar-se produzindo uma imagem de si mesmo e dos outros (e os outros
dele), a ponto de positivizar seus atributos em detrimento daquilo e daqueles que quer
combater. Por isso, para compreender a adoo do sindicalismo revolucionrio como o
principal mtodo de luta eleito por parte dos militantes libertrios e a projeo do
movimento anarquista alcanada graas sua forte presena na luta sindical, deve-se
pensar quais as suas condies de emergncia, como e contra quem construram essa
sua relativa hegemonia no movimento operrio brasileiro, cujo auge se daria na
conjuntura de greves de 1917-1920. Claro est, portanto, que eles no eram os nicos a
desejarem que o movimento operrio seguisse os seus princpios para atingir os fins
que consideravam pertinentes. Para tanto, centremo-nos nas condies estruturais da
poltica brasileira, iniciando com as dificuldades encontradas pelos grupos socialistas,
cuja presena nas primeiras formas de organizao operria, nos primeiros anos
republicanos, mesmo que frgil, era mais forte do que a dos anarquistas.
39
BOURDIEU, Pierre. A representao poltica. Elementos para uma teoria do campo poltico. In: O
poder simblico. Rio de Janeiro, 7. ed., Bertrand Brasil, 2004, p. 178.
34
A REPBLICA, REFORMISTAS E SOCIALISTAS
A partir da queda da monarquia, houve a expectativa de vrias correntes
polticas, a maioria de carter reformista, de encontrar na Repblica a oportunidade de
implementar na prtica a concretizao de suas idias.
Os positivistas eram os que tinham maiores razes para crer que a doutrina de
Augusto Comte seria a base para a organizao poltica e social do pas, afinal, foi ela
quem orientou a movimentao dos alunos de Benjamin Constant na Escola Militar da
Praia Vermelha e deu suporte proclamao da Repblica pelo Marechal Deodoro da
Fonseca. A filosofia positivista entendia o processo histrico como um movimento
cumulativo e progressivo, em que o desenvolvimento dos avanos cientficos e
tecnolgicos que se observava no sculo XIX era uma prova e um meio da caminhada
de toda a humanidade rumo a um estgio superior, o Estado Positivo, caracterizado
idealmente pela hierarquizao harmnica da sociedade, em que cada membro de cada
classe social viveria para outrem e desempenharia uma funo importante para o
desenvolvimento de toda a coletividade. Nessa ode razo, a organizao social
tambm deveria ser regida por preceitos cientficos, desenvolvida e difundida por
todos, sob a orientao de personagens mais afeitos cincia e filosofia.
Uma das principais preocupaes para conservar melhorando rumo ao Estado
Positivo referia-se ao proletariado, que deveria constantemente ser incorporado
sociedade atravs da sua elevao espiritual e moral pela educao. Idealizado como
um trabalhador cheio de virtudes, a quem no se permite o desenvolvimento de suas
capacidades
40
, o proletrio desempenharia uma funo-chave para a elevao moral
de toda a sociedade, pois, dadas as condies materiais a que estava submetido, estava
mais propenso a desenvolver um esprito cooperativo. Alm disso, acataria com mais
facilidade, e difundiria com a prtica do exemplo s outras classes, em particular aos
seus patres, as propostas iluminadas dos dirigentes polticos de extirpar o egosmo
liberal e a avidez incessante por lucros individuais, tornando possvel a colaborao
harmnica das classes.
Seus intentos reformadores no tiveram grande entrada no movimento operrio
e, apesar da inscrio na bandeira nacional, o positivismo no conseguiu fazer valer na
plenitude seus princpios na promulgao da Constituio Federal de 1891. Sua esfera
40
BOEIRA, Nelson. O Rio Grande de Augusto Comte. In: DACANAL, Jos Hidelbrando e GONZAGA,
Sergius (orgs.). RS: cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 36-37.
35
de influncia ficou reduzida basicamente ao Rio Grande do Sul, onde Jlio de
Castilhos, apesar das divergncias com o Apostolado da Igreja Positivista do Rio de
Janeiro, ergueu trincheiras, sob a proteo do federalismo que ele prprio ajudou a
instituir quando constituinte federal, atravs da Constituio Estadual outorgada em
1893. Ainda assim, no que se refere relao capital/trabalho, o positivismo
compartilhava os valores liberais e recusava-se a admitir a possibilidade de existir
alguma forma de regulamentao promovida pelo Estado. O contrato de trabalho cabia
estritamente esfera privada, realizado entre dois homens livres e iguais (o patro e o
empregado), que poderia ser quebrado por qualquer uma das partes envolvidas quando
julgassem conveniente: o trabalhador era livre para pedir demisso quando considerava
seu salrio insatisfatrio, do mesmo modo que o patro era livre para recusar seus
servios no momento que considerava pertinente. Ao Estado, de acordo com os
positivistas, especialmente na verso castilhista, cabia apenas exercer a pedagogia do
exemplo sobre os demais patres, ensinando-lhes a tratar com justia e dignidade os
seus empregados.
Neste momento inicial da Repblica, existiram grupos, muitos deles ligados ao
exrcito, que mesclavam influncias positivistas com concepes socialistas que j
haviam chegado em terras brasileiras dcadas antes. Ressaltando que no se pode
compreender socialismo apenas como marxismo, pode-se dizer que as idias
socialistas chegaram ao Brasil to logo comearam a desenvolver-se na Europa
41
.
Na Revoluo Praieira de 1848, segundo alguns autores, possvel encontrar traos da
influncia do socialismo de Fourier combinados ecleticamente com outros muitos
autores (dentre os quais, telogos considerados santos pela Igreja Catlica)
42
. Antes
dessa revolta pernambucana, Fourier tambm seria a principal referncia da
organizao de duas curtas experincias comunitrias de colonos franceses no interior
de Santa Catarina (o Falanstrio do Sa ou Colnia do Sa, organizada por Benot Jules
41
BANDEIRA, Moniz; MELLO, Clvis e ANDRADE, A.T. O ano vermelho: a Revoluo Russa e seus
reflexos no Brasil. So Paulo: 2.ed., Brasiliense, 1980, p. 13. (1 edio: Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 1967.).
42
CHACON, Valmireh. Histria das idias socialistas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
1965; MORAES Filho, Evaristo de. A proto-histria do marxismo no Brasil. In: MORAES, Joo
Quartim de e REIS Filho, Daniel Aaro (orgs.). Histria do marxismo no Brasil Vol. I: O impacto das
revolues. Campinas: 2.ed. rev., Editora da Unicamp, 2003, p. 16-19. (1 edio original: Editora Paz e
Terra, 1991); RODRIGUES, Edgar. Socialismo e sindicalismo no Brasil (1675-1913). Rio de Janeiro:
Laemmert, 1969, p. 26-33. (Este ltimo autor procurou inserir diversos episdios de revoltas e de
formas de organizao de cunho popular, dentre os quais o quilombo de Palmares, Cabanada e Canudos,
na trajetria de lutas pelo socialismo no Brasil. Da o recorte cronolgico apresentado no ttulo de seu
livro iniciar em 1675).
36
Mure, e a Colnia do Palmital, liderada por um dissidente, Michel Derrion
43
) e de duas
publicaes de propaganda dita socialista: o jornal niteroiense O Socialista da
Provncia do Rio de Janeiro, de 1845, e os trs volumes do livro O Socialismo, do
General Jos Abreu e Lima, escritos no Recife desde 1852 e publicados em 1855, alm
de outros ttulos de peridicos que sinalizavam tentativas de aproximao, pelo menos
em discursos, com os trabalhadores tendo como horizonte uma noo de socialismo
44
.
Entre homens das Foras Armadas brasileiras, que desde as dcadas finais do
Imprio colocavam a instituio em uma posio de organizador social e moral, alm
da forte influncia do positivismo observa-se tambm a presena de outras vertentes
reformistas, atuando principalmente no Distrito Federal. A seus olhos, era patente a
necessidade de organizar os trabalhadores para, a seu modo, incorpor-los (ou
emancip-los) sociedade para pr fim s injustias sociais, com os novos mtodos
que a Repblica legalmente reconhecia, sobretudo pela via eleitoral.
Uma primeira tentativa de organizao foi feita pelo ex-militar e jornalista
Gustavo de Lacerda, cujo partido desapareceu no mesmo ano de fundao, em 1890,
aps o fracasso dos resultados eleitorais desse ano. Mas no mesmo ano, outros dois
surgiriam.
43
COGGIOLA, Osvaldo. Origens do movimento operrio e do socialismo no Brasil. In: Web Page do
Grupo de Trabalho Estudos de Histria Contempornea/Grupo de Pesquisa Histria e Economia
Mundial Contempornea/ USP, jan. 2008, p. 1. (Disponvel em:
http://www.gtehc.pro.br/Textos/Origens_mov_operario_socialista_no_Brasil.pdf - visto em 23/1/2008.).
Benito Bisso Schmidt (Os partidos socialistas na nascente Repblica. In: FERREIRA, Jorge e REIS
Filho, Daniel Aaro (orgs.). As esquerdas no Brasil Vol. 1: A formao das tradies (1889-1945).
Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007, p. 141) tambm faz referncia ao Falanstrio do Sa
reportando-se GALLO, Ivone Ceclia dAvila. A aurora do socialismo: fourierismo e o Falanstrio do
Sa (1839-1850). Campinas: Tese de doutorado em Histria/Unicamp, 2002.
44
LINHARES, Hermnio. Contribuio histria das lutas operrias no Brasil. So Paulo: 2.ed., Editora
Alfa-mega, 1977, p. 28-35 (1 edio de 1955). Linhares, como Edgar Rodrigues (Socialismo... op.
cit.), tambm faz referncias a inmeros movimentos sociais na trajetria da luta operria antes da
Repblica, dentre os quais a Conjurao Baiana e o movimento abolicionista. Na sua cronologia inicial,
sem entrar em maiores detalhes, lista tambm diversos outros jornais do Imprio, que, dentre eles,
empregavam em seus ttulos, alm de povo, palavras variantes de anarquia, operrio, proletrio,
trabalho e socialismo, dos quais no tive acesso, mas creio terem as acepes desses termos as mais
diversas e fluidas conotaes: Em 1825 Triunfo da Legalidade. Rio. Lutava contra a faco dos
anarquistas; terminou em 1826. Verifica-se que j nesta poca havia certa preocupao contra o
movimento anarquista. (...) Em 1831 O Grito da Ptria Contra os Anarquistas. Rio. (...) Em 1835 O
Anarquista Fluminense. (...) Em 1849 O Grito Anarquial. Rio (...) Em 1869 O Operrio. So Paulo.
(...) Em 1879 O Trabalho. So Paulo. Jornal operrio. (...) Em 1875 Gazeta dos Operrios. Rio. (...).
Em 1876 A Revoluo Social. Rio. (...) Em 1877 O Proletrio. Rio. (...) Em 1878 O Socialista.
Rio. (...) Em 1879 O Operrio. Recife. Semanal. (...) Em 1884 Trabalho. So Paulo. Incio de
agosto; durou pouco. (...). A obra do General Jos Abreu e Lima aparece tambm referida no balano
organizado a partir do primeiro nmero da revista anarquista A Vida das obras sobre a questo social
publicadas no Brasil, figurando como a mais antiga bibliografia brasileira sobre a questo social. A Vida,
Rio de Janeiro, 30 nov. 1914, p. 8 In: A Vida Peridico Anarquista (Edio Fac-similar). So Paulo:
cone Editora/Centro de Memria Sindical (CMS)/Arquivo Histrico do Movimento Operrio Brasileiro
de Milo (ASMOB), 1988).
37
Um deles era o Partido Operrio, fundado pelo tenente da Marinha, Jos
Augusto Vinhaes, cuja vinculao com o governo federal era clara. Segundo
Beiguelman, competia a este partido manter sob controle, de maneira conciliatria,
as reivindicaes da massa popular, no perodo de instabilidade das instituies que o
pas atravessava, com a Repblica recm-proclamada
45
. Apesar do estreito vnculo
com o poder pblico federal, no pode ser visto apenas como um mero apaziguador de
conflitos. Na greve do porto de Santos, de 1891, a Associao Comercial de Santos
solicitou sua presena para atuar como mediador. No entanto, depois de verificar as
exigncias dos grevistas e suas condies de trabalho, considerou o movimento
justificado, e foi retirado da cidade pelo chefe de polcia local
46
. A Vinhaes tambm se
deve, com o apoio de Deodoro, a reforma de dois artigos do Cdigo Penal que
impediam o direito de greve
47
. Porm, sua vida poltica seria to rpida quanto a do seu
partido, sendo exilado na Argentina aps tomar parte, tentando mobilizar os
ferrovirios da Central do Brasil, na Revolta da Armada contra Floriano Peixoto, a
quem apoiara no golpe dado contra Deodoro.
Mas a estratgia delineada por Vinhaes sofreu uma srie de crticas por parte de
grupos que se diziam realmente socialistas, dentre os quais, o grupo liderado por seu
rival, Frana e Silva. O tipgrafo no via com bons olhos a falta de autonomia que
acarretaria aproximaes com a classe dirigente, e tambm fundou um outro Partido
Operrio no mesmo ano de 1890, em uma sesso com cerca de 120 operrios
48
, tendo
como rgo de propaganda o jornal Echo Popular. Entre seus quadros figurava, com
19 anos, Evaristo de Moraes
49
, que se notabilizaria como militante socialista e
advogado criminalista, encarregado da defesa de muitos companheiros, inclusive de
anarquistas, na Justia.
Sem atingir os resultados eleitorais almejados, a durao do partido de Frana e
Silva seria efmera, do mesmo modo que, nos primeiros anos de 1890, foram formados
45
BEIGUELMAN, Paula. Os companheiros de So Paulo: Edies Smbolo, 1977, p. 17.
46
Idem, ibidem, p. 17.
47
MORAES Filho, Evaristo de. O socialismo brasileiro. Braslia: Cmara dos Deputados; UnB, 1981, p.
17; FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). So Paulo/Rio de Janeiro: Difel,
1977, p. 45-46.
48
HARDMAN, Francisco Foot e LEONARDI, Victor. Histria da indstria e do trabalho no Brasil: das
origens aos anos vinte. So Paulo: Global, 1982, p. 244; Benito Schmidt (Os partidos socialistas na
nascente Repblica. In: FERREIRA, Jorge e REIS Filho, Daniel Aaro (orgs.). As esquerdas no Brasil
Vol. 1: A formao das tradies (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007, p. 146.)
afirma que a data de fundao dos dois partidos foi a mesma, 9 de fevereiro de 1890. A sesso de
Frana, ao contrrio do indicado, teria a participao apenas de 52 assistentes, na Phoenix Dramtica,
enquanto o partido de Vinhaes, no Recereio Dramtico, seria aclamado por 3.000 presentes.
49
MORAES Filho, Evaristo de. O socialismo... op. cit., p. 17.
38
crculos e partidos socialistas em diversos pontos do pas, incluindo a capital federal,
So Paulo, Santos, Porto Alegre e as cidades de Pelotas e Rio Grande. Em muitos
deles, seus quadros eram originados basicamente das fileiras abolicionistas e
republicanas (como era o caso de Frana e Silva, que na dcada anterior combatia a
escravido e a monarquia no Centro Abolicionista Gutemberg), que viam na Repblica
uma possibilidade de ampliao da participao poltica e da constituio, pela via
eleitoral, de uma nova ordem social baseada na igualdade.
Apesar do entusiasmo inicial, os socialistas teriam enormes obstculos a
superar para tornar viveis os meios de organizao e propaganda do socialismo,
dentre os quais a criao de um partido poltico-eleitoral com fora suficiente para
fazer frente aos partidos oligrquicos da classe dominante. Do mesmo modo que os
grandes partidos estavam organizados, os partidos socialistas eram fundamentalmente
regionais, quando conseguiam ter alguma extenso alm dos limites de algum
municpio. Frana e Silva esteve frente da primeira tentativa de organizao
partidria socialista em termos nacionais. Depois de um ms de congresso operrio,
surgiu em 1892, no Rio de Janeiro, o Partido Operrio do Brasil, que teria por porta-
voz O Socialista. Mas, seu alcance permaneceu limitado e logo se desfez. Quinze anos
depois, em um artigo do jornal Avanti!
50
, redigido e mantido por socialistas italianos
de So Paulo, se reconhecia o esforo anterior, mas se lamentava ter que admitir que,
na verdade, o partido socialista no existe, e nunca existiu neste pas. Fundaram-se
grupos, elaboraram-se estatutos, mas por isso no se pode dizer que constitua um
partido orgnico e vital. Se as contingncias dadas pela vastido continental e
diversidade de populao e costumes do pas levava o articulista a ponderar se os
socialistas deveriam talvez [se] contentar com a formao de organizaes estaduais,
independentes uma das outras, salvo pelo que respeita necessria concrdia e
acompanhar as questes que interessam igualmente todo o pas, por outro lado, ele
acreditava que o Brasil, sobretudo do Rio de Janeiro para o sul, tem os elementos
necessrios para a formao de um forte partido socialista, que poderia exercer uma
ao poderosa no desenvolvimento econmico e poltico do pas. Para tanto,
conclamava o Crculo Socialista Internacional de So Paulo para tentar reunir um
congresso socialista realmente brasileiro (...) [de onde] dever sair uma profisso de
50
Il partito socialista in Brasile, Avanti!, 13-2-1907 apud PINHEIRO, Paulo Srgio e HALL, Michael M.
A classe operria no Brasil: Documentos (1889-1930) Vol. I O movimento operrio. So Paulo:
Alfa-mega, 1979, p. 61-63.
39
f, um programa de ao e um partido grande ou pequeno, no importa, porm
fortemente organizado. Embora continuassem se formando partidos socialistas, com
menor nmero que nos anos iniciais, ao longo da Primeira Repblica os partidos
permaneceriam efmeros, e nenhum com alcance nacional
51
.
Havia duas dificuldades principais para se criar um contingente eleitoral que
desse suporte constituio de partidos socialistas no pas, especialmente nas regies
em industrializao do centro-sul: a grande quantidade de imigrantes que, por serem
estrangeiros, no possuam direitos polticos, salvo solicitassem e adquirissem a
naturalizao; e a grande quantidade de analfabetos, especialmente entre os
trabalhadores
52
.
De modo geral, ainda que em um horizonte mais ou menos longnquo estivesse
a idia de revoluo, nas primeiras dcadas republicanas o socialismo no Brasil se
apresentou como uma tendncia fortemente reformista, no no sentido muitas vezes
atribudo queles que aceitam e defendem a colaborao de classes, mas de galgar
gradualmente, sem a anuncia de mtodos revolucionrios admitidos apenas para
alguns contextos imprecisamente definidos na prtica , conquistas garantidas em lei
que conduziriam ao socialismo.
Em seus manifestos, programas e demais escritos, no se observa uma
caracterstica marcadamente marxista, mas, antes, apropriaes e referncias de um
conjunto amplo e ecltico de autores, que, no mais das vezes, ainda que contraditrios
entre si, acabavam por compor um conjunto coerente aos olhos desses militantes, no
51
Manifestos e notcias publicados na imprensa operria e na grande imprensa de Rio e So Paulo sobre a
fundao de quatro partidos socialistas no Distrito Federal, de 1909, 1912, 1925 e 1932 encontram-se na
ntegra em MORAES Filho, Evaristo. O socialismo... op. cit., p. 254-259 e 262-271.
52
Uma das linhas de continuidade verificadas entre o Imprio e a Repblica diz respeito conservao do
aspecto da Lei Saraiva, de 1881, que exigia dos eleitores saber ler e escrever. Segundo Jos Murilo de
Carvalho (Desenvolvimiento de la ciudadana en Brasil. Mxico: El Colegio del Mexico/Fondo de
Cultura Econmica, 1995, p. 24-25), baseado em nmeros apresentados por Richard Graham, a restrio
censitria ao voto, estabelecida pela Constituio de 1824, era fcil de ser superada, para votar, contudo,
em primeiro nvel, no diretamente. Comparadas as percentagens com outros pases, em 1870, o nmero
de eleitores no Brasil (quase 50% da populao masculina, sendo 11% da populao total ou 13%, se
excludos os escravos) era superior ao nmero de eleitores em relao populao total nos pases
europeus: Gr-Bretanha, 7%; Itlia, 2%; Portugal, 9%; e Holanda, 2,5%; enquanto, nos Estados Unidos,
nas eleies de 1888, esse nmero chegou a 18%. Aps a Lei Saraiva, o nmero de eleitores diminuiu
drasticamente: nas eleies de 1886, compareceram s urnas apenas 0,8% da populao total. Durante
toda a Primeira Repblica, nas eleies presidenciais, mdia da relao, nos 11 pleitos que se seguiram a
partir de 1894, foi de 2,61%, sendo a mxima 5,6% em 1930. Assim, apesar da roupagem mais
democrtica e aberta, em conformidade com valores em voga de progresso atravs da ilustrao e da
anulao de privilgios garantidos pelo dinheiro, o voto literrio mostrou-se, na prtica, mais restritivo
e excludente na Repblica do que no Imprio. Maiores detalhes sobre a Lei Saraiva ver PORTO, Walter
Costa. O voto no Brasil Da Colnia 6 Repblica. Rio de Janeiro: 2.ed.rev., Topbooks, 2002. (1
edio: 1989).
40
qual Marx aparecia como par de diversos autores politicamente e/ou filosoficamente
antagnicos
53
. Influenciado ou no por este ou aquele autor, o fato que, diante das
condies adversas para se constituir um partido poltico, alguns grupos e militantes
que, inicialmente, ofereciam propostas de reestruturao social em que constavam,
ainda que a longussimo prazo, a aniquilao da propriedade privada, acabaram por
apresentar propostas em defesa de programas cada vez mais reformistas. Dentre as
propostas em defesa expressa do reformismo como nica opo possvel para construir
o socialismo no Brasil, dadas as dificuldades impostas pelo contexto brasileiro, estava
a do italiano Antonio Piccarolo, publicada em 1908 sob o ttulo O socialismo no
Brasil: esboo de um Programa de Ao Socialista
54
.
Para Piccarolo, a derrota da greve geral de 1906 em solidariedade aos
ferrovirios da Cia. Paulista e o no cumprimento das reivindicaes aparentemente
conquistadas na greve pelas 8 horas em So Paulo, em 1907, eram provas dos
insucessos a que estava submetido um movimento para a construo do socialism no
Brasil. Discursos vos de autoproclamados revolucionrios, que defendiam
organizaes anacrnicas em um pas que recentemente se livrou da escravido,
ajudavam apenas a dilacerar as organizaes de trabalhadores. Segundo o autor, era
preciso reconhecer que a revoluo social no estava prxima e pensar outros mtodos
e outras estratgias de organizao prprias para o contexto brasileiro. O programa do
Centro Socialista Paulistano dividia-se em duas partes: a primeira, voltada aos
trabalhadores rurais, tendo em vista, principalmente, o apoio pequena propriedade
(que representa , neste momento a libertao do colono) e o apoio a instituies de
amparo ao trabalhador agrcola (patronato de assistncia, escritrios de colocao,
patrocnio jurdico gratuito, cooperativas de consumo, produo e crdito, escolas
primrias e agrcolas, etc.); e a segunda, voltada ao trabalhador industrial, atravs
53
BATALHA, Cludio H. M. A difuso do marxismo e os socialistas brasileiros na virada do sculo XIX.
In: MORAES, Joo Quartim (org.). Histria do marxismo no Brasil Vol. II: Os influxos tericos.
Campinas: Editora da Unicamp, 1995, p. 11-44. Batalha assinala que a principal referncia terica entre
os socialistas de origem brasileira, ao contrrio dos italianos e alemes, neste perodo viria a ser Benot
Malon, autor do socialismo integral, com forte influncia do positivismo e da tradio humanista
francesa, cuja principal caracterstica era a defesa do reformismo. Outro autor que seria bastante
conhecido e influente, atravs tambm de uma traduo do alemo para o francs feita pelo prprio
Malon, teria sido Ferdinand Lassalle, por quem Marx no nutria simpatias polticas, tendo condenado os
rumos que o Partido Social-Democrata Alemo tomou sob sua liderana atravs da Crtica ao Programa
de Gotha.
54
Deste texto, dois fragmentos (Tentativas de socialismo e de lutas operrias no Brasil e Esboo para
um programa prtico de ao socialista), os quais so os referidos aqui, encontram-se em MORAES
Filho, Evaristo. O socialismo... op. cit., p.118-121. Moraes transcreve os trechos de uma edio de
1932.
41
dos esforos para o fortalecimento dos laos de solidariedade operria atravs da
formao de uma conscincia poltica em franca campanha pela naturalizao dos
estrangeiros e a obteno de seu cadastro eleitoral e da instruo popular (pois nela
que est a principal mola do progresso).
Sem dizer explicitamente que em alguns casos se poderia pensar em apoiar at
mesmo medidas oriundas de setores alheios ao proletariado, o texto sugere que os
socialistas do Centro Paulistano estavam dispostos a apoiar tudo o que significa
progresso sobre as condies atuais. Admitiam que suas propostas estavam longe do
socialismo que estava em pleno desenvolvimento na Europa, onde j existem uma
burguesia e um proletariado; mas tudo o que de bom e de prtico podem fazer aqui
os socialistas, se no querem perder seu tempo em discusses tericas, prematuras e
sem nenhum valor. Para Piccarolo, mereciam apoio todas as medidas que ajudassem a
desbancar a mentalidade escravocrata do patronato brasileiro, ainda que elas viessem
propostas por setores progressistas da prpria burguesia.
Nesse sentido, se o socialismo era impossvel de ser implantado no Brasil, se a
Terra Prometida do coletivismo estava distante, o autor justificava que nesse
caminhar coletivo a estratgia explicitamente reformista era a nica vivel, pois ao
mesmo tempo que incutia os princpios socialistas no proletariado para suas aes no
futuro, promovendo pequenas conquistas dia aps dia, evitava o desnimo e a
desiluso, que para a classe trabalhadora representam um regresso.
Justamente por seu carter cada vez mais declaradamente reformista, o autor
desse texto representou uma ciso do movimento socialista italiano em So Paulo, com
a fundao do jornal Il Secolo e do Centro Socialista Paulistano, respectivamente em
1906 e 1908, para contrapor uma viso socialista-reformista, mais moderada do
Centro Socialista Internacional, dirigido pelo grupo do Avanti!
55
, peridico do qual
foi redator e diretor entre 1904 e 1905, a convite de Alceste De Ambrys. Ainda assim,
a apresentao de seu programa significativa das dificuldades impostas a uma
militncia poltico-partidria alternativa ao jogo oligrquico.
Sem perder a convico da necessidade da luta na arena parlamentar, Piccarolo
chegou a propor estrategicamente a necessidade de reconhecer a legitimidade da
propriedade privada dos meios de produo e fomentar alianas polticas com setores
55
HECKER, Alexandre. Um socialismo possvel: a atuao de Antonio Piccarolo em So Paulo. So
Paulo: T. A. Queiroz, 1988, p. 11.
42
das classes dominantes. Antes de considerar tal proposta propriamente como um
abandono dos ideais socialistas, dado o ceticismo que as estruturas polticas e sociais
inspiravam em sua avaliao, ela representa um esforo de transpassar a estrutura
monoliticamente oligrquica, no caso do Partido Republicano Paulista (PRP), que se
permitia o luxo de deixar uma liberdade eleitoral quase plena na certeza que dessa
no poder advir nenhum risco para a oligarquia
56
. Em So Paulo, no entanto, at
pelo menos 1926, quando houve uma dissidncia real no interior do partido oficial,
jamais existiria tal abertura para qualquer participao poltica tanto dos socialistas,
quanto de qualquer outro grupo poltico fora dos limites oligrquicos.
Em contrapartida, no Rio Grande do Sul, os socialistas iniciaram um processo
de aproximao com o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), tendo por lder
Francisco Xavier da Costa, militante que havia se notabilizado pela liderana nas
negociaes da primeira greve de grandes propores do estado, a greve generalizada
de Porto Alegre de 1906. A partir de 1912, ele ocupou o cargo de conselheiro
municipal pelo partido oficial
57
.
Um dos fatores que permitiu que tal fenmeno ocorresse no Rio Grande do Sul
diz respeito ao seu contexto poltico particular na Primeira Repblica, no qual, ao
contrrio do restante do pas, incluindo So Paulo onde as dissidncias do PRP
tinham como opo poltica o isolamento ou o retorno estrutura do partido governista
, o partido governista sofria severa oposio da tradicional oligarquia pecuarista do
estado, aglutinada, principalmente, no Partido Federalista. Dessa oposio, resultaram
duas guerras civis, e a busca por apoio poltico levou ambos os partidos da classe
dominante a procurar alar pontes com as camadas populares, especialmente com o
proletariado. Essa ingerncia no movimento operrio resultou, no caso gacho,
especialmente no caso porto-alegrense, no aprofundamento de cises entre socialistas e
anarquistas
58
, questes a que retornaremos adiante.
56
A proposito delle elezioni, Avanti!, 4-2-1907 apud PINHEIRO, Paulo Srgio e HALL, Michael M. A
classe operria no Brasil: Documentos, vol. II (1889-1930) Condies de vida e de trabalho, relaes
com os empresrios e com o Estado. So Paulo: Brasiliense; Campinas: FUNCAMP, 1981, p. 248.
57
O processo de cooptao de Francisco Xavier da Costa j foi amplamente analisado. Dentre as
anlises, encontram-se BILHO, Isabel. Rivalidades e solidariedades do movimento operrio: Porto
Alegre 1906-1911. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. SCHMIDT, Benito Bisso. O patriarca e o
tribuno: caminhos, encruzilhadas, viagens e pontes de dois lderes socialistas Francisco Xavier da
Costa (187?-1934) e Carlos Cavaco (1878-1961). Campinas: Tese de doutorado em Histria,
Unicamp, 2002.
58
SILVA Jr., Adhemar Loureno da. A bipolaridade poltica rio-grandense e o movimento operrio (188?-
1925). Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUC/RS, vol.XXII, n. 2, p. 5-26, dez. 1996.
43
Por ora, basta perceber que as dificuldades estruturais e conjunturais no Brasil
da Primeira Repblica no permitiram o desenvolvimento da principal estratgia
socialista, qual seja a organizao de um partido poltico-parlamentar, tendo por base
preferencial o operariado. Assim, apesar da importncia histrica que reputa aos
socialistas, por pouco numerosos que fossem, (...) as primeiras anlises estruturadas
e profundamente crticas, (...) do regime poltico partidrio brasileiro (...) e da
sociedade em seu conjunto e [constitussem] a nica proposta de reforma do regime
oligrquico (...)
59
, na realidade, os grupos socialistas no conseguiram expandir seu
campo de atuao, no passando do pequeno crculo, com escassa penetrao nos
meios populares
60
.
Para contornar as dificuldades estabelecidas pela estrutura oligrquica em
vigncia, muitos militantes chegaram concluso de que era preciso eleger outros
meios de ao coletiva, para que os trabalhadores pudessem autonomamente resistir
dominao capitalista (ou a pelo menos alguns de seus aspectos) e desenvolver prticas
revolucionrias, de modo efetivo.
A EMERGNCIA DA AO DIRETA
Paralelamente aos esforos dos socialistas em constituir um partido poltico, o
operariado brasileiro constitua outras organizaes, muitas delas com apoio e
sustentao dos socialistas. Desde os tempos do Imprio, nos principais centros
urbanos do pas, constituram-se sociedades de beneficncia e mtuo socorro em casos
de doenas, acidentes, falecimento, desemprego e outras fatalidades que poderiam
suceder na vida de um trabalhador.
Datam tambm do Imprio, as primeiras notcias acerca de paralisaes de
carter reivindicatrio, pelo menos no Rio de Janeiro e arredores: a greve dos
tipgrafos de 1858, por aumento salarial, e a paralisao dos trabalhadores
escravizados das oficinas da fundio e estaleiro da Ponta da Areia, em Niteri, em
1857
61
.
59
PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. Que a Unio Operria seja a nossa ptria! Uma histria das lutas
dos operrios gachos para construir suas organizaes. Santa Maria: editoraufsm; Porto Alegre: Editora
da Universidade/UFRGS, 2001, p.61.
60
FAUSTO, Boris. Trabalho... op. cit., p. 97.
61
MATTOS, Marcelo Badar. Experincias comuns: escravizados e livres na experincia da formao da
classe trabalhadora carioca. Niteri: Tese de concurso para Professor Titular/UFF, 2004, p. 5-7.
(mimeo).
44
Mas ser na Repblica que as organizaes e os movimentos reivindicatrios
de trabalhadores urbanos se afirmaro, definitivamente, como agente poltico,
especialmente a partir de 1903, embora, at ento, j viessem se desenrolando uma
srie de greves localizadas, especialmente no Rio e em So Paulo.
Em um contexto politicamente fechado e excludente, sem uma legislao
reguladora da relao capital/trabalho ou que garantisse conquistas mnimas aos
trabalhadores, a estratgia da ao direta ganhou espao, e passou a ser apresentada
por seus propagadores como a principal alternativa de ao do movimento operrio dos
principais centros industrializados do centro-sul do pas. Isso se tornou patente,
principalmente a partir da greve generalizada de 1903, no Distrito Federal, com a
amplitude atingida pela solidariedade operria e o fracasso do movimento imputado
interveno, em seu nome, de personagens externos classe, que estiveram na frente
de negociao.
A experincia da disseminao da solidariedade operria na capital federal teve
grande impacto a partir de agosto de 1903, aps a morte por acidente de trabalho de
um trabalhador e a declarao de lock-out como reprimenda aos protestos dos
operrios txteis da fbrica Aliana. Foi, ento, deflagrada uma greve que logo se
generalizaria entre diversas outras categorias de trabalho do Distrito Federal. A intensa
represso que se abateu sobre os grevistas (cujo nmero, segundo a imprensa operria
da poca, teria oscilado entre 22.000 a 25.000
62
) e o fracasso da conduo das
negociaes promovidas pelo Centro das Classes Operrias, sob a tutela do doutor
Vicente de Souza, um republicano adepto do socialismo reformista no movimento
operrio
63
, marcariam assim uma ruptura na histria do movimento operrio
brasileiro, pois a greve desencadeia um sentimento de recusa aos mtodos de
arbitragem [promovidos por elementos reformistas, advogados, mdicos, polticos,
etc.] dos conflitos entre o proletariado e a burguesia. Esse sentimento est na origem
da conscincia sindicalista que emerge a partir de ento
64
.
Este movimento passa a reafirmar a esperana de se conquistar melhorias nas
condies de vida e trabalho atravs da ao coletiva dos trabalhadores, sem a
intermediao de indivduos oriundos da poltica dominante, alimentando tambm as
62
SEIXAS, Jacy Alves de. Mmoire et oubli: Anarchisme et syndicalisme rvolutionnaire au Brsil.
Paris : ditions de la Maison des Sciences de lHomme, 1992, p. 30-31. Sobre a importncia do ano de
1903 e da greve generalizada do Rio de Janeiro, ver p. 28-37.
63
Idem, ibidem, p. 36.
64
Idem, ibidem.
45
convices daqueles que almejavam uma transformao radical da sociedade. Pela
fora da mobilizao coletiva, emerge, em definitivo, ainda que muitas vezes para ser
negada, a questo social entre as preocupaes dos crculos das classes mdia e
dominante. Por outro lado, consolidam-se formas de organizao dos trabalhadores,
dentre elas o sindicato de resistncia, que passa a assumir uma das funes centrais na
vida poltica operria. A partir de ento, a idia de ao direta ganharia fora, e o
sindicato seria eleito como a principal forma de organizao dos trabalhadores, onde
ela estimulada e corretamente orientada.
Dadas as dificuldades de se criar um partido poltico-eleitoral, os socialistas
tambm se sentiam estimulados com as crescentes mobilizaes operrias e com
algumas vitrias alcanadas. Durante a greve pelas oito horas em So Paulo, em 1907,
um deles chega a escrever um artigo, publicado em um jornal socialista de Porto
Alegre, cujo editor-chefe, o j citado Francisco Xavier da Costa, foi o representante
operrio no acordo feito com o patronato pela reduo da jornada de trabalho na
capital gacha. O entusiasmo de Costa Rego neste artigo o faz colocar a idia do
partido-poltico em segundo plano, elegendo a greve como um dos meios, seno o
nico meio, de levar o operariado a um advento positivo na luta que empreendeu
contra a atual organizao econmica
65
. A greve paulista, em que destacaria a
dedicao de militantes anarquistas, era um sintoma animador, principalmente
quando vemos que a conquista quase total, sem terem os grevistas necessidade de
recorrer a meios violentos (...). O articulista, sem fazer meno aos fracassos da luta
eleitoral, acredita que a estratgia da ao direta poderia render melhores frutos no
Brasil:
De resto, o nosso ambiente francamente mais apto
para o bom resultado dessas agitaes. Ns vemos diariamente
a simpatia com que so recebidas as greves. Dir-se-ia que
todos ns somos revolucionrios...
Mais ou menos sinceros, a verdade que todos temos a
nossa pontinha de rebelio; e, se no somos libertrios, temos
em compensao, o prazer de nos mostrarmos sempre
descontentes, e isto j uma grande vantagem.
66
Ainda que muitas vertentes do socialismo defendam a necessidade de
movimentos reivindicatrios, em especial as greves, paralela e conjuntamente ao
partidria-eleitoral, a opo pela ao direta supunha, dentre seus elementos, a
65
REGO, Costa. A greve. A Democracia, Porto Alegre , ano III, n. 60, 2 jul. 1907, p. 3.
66
Idem, ibidem.
46
desconfiana quanto s prticas de poltico-parlamentares e dos patres: mudanas
resultantes em melhorias das condies de vida e trabalho somente ocorreriam atravs
da presso provocada por aes dos trabalhadores que alterassem o cotidiano e
resultassem em perdas de lucratividade das empresas, e no atravs de promessas de
entendimento mtuo entre as partes envolvidas (trabalhadores, patres e governos). A
intransigncia em no admitir a intermediao de agentes externos aos operrios,
principalmente se vinculados ao Estado (parlamentares, autoridades polticas ou
policiais, etc.) era um elemento forte que fazia vincular a estratgia da ao direta com
o anarquismo, o qual sempre insistia em denunciar formas de cooptao poltica e
patronal do operariado, e o carter insurrecional da mobilizao operria frente ao
Estado.
Evidentemente, a existncia de movimentos paredistas independe dos vnculos
com grupos ou orientaes polticas. Muitas greves, sobretudo as localizadas, foram
obra de operrios de fbricas e oficinas sem quaisquer laos com organizaes ou
correntes polticas especficas. No , portanto, exclusivismo do anarquismo a adoo
de mtodos da ao direta como estratgias de lutas, sendo suas principais formas
manifestadas em greves, boicotes e sabotagens. Seus alcances e limites, entretanto,
eram vistos de modo diverso pelos grupos que influam, ou pretendiam influir, nos
meios operrios, especialmente no Brasil. Mesmo aqueles que condenavam mtodos
mais bruscos, como os colaboracionistas que pregavam o entendimento das classes,
em certos momentos, viram-se na contingncia de apoi-los, ou mesmo participar de
greves (como foi o j mencionado caso de Vinhaes em Santos), em sinal de respeito a
certa autonomia que lhes conferia legitimidade, embora com todas as ressalvas
possveis para evit-las ou faz-las acontecer dentro dos limites da ordem, longe das
arruaas destruidoras dos agitadores profissionais.
As condies de vida e de trabalho na ordem liberal republicana levaram at
mesmo os positivistas a reconhecer que, em determinados casos, as greves eram
legtimas e justas. Teixeira Mendes, por exemplo, principal nome do Apostolado
Positivista do Brasil, segundo o jornal porto-alegrense e socialista A Democracia, teria
publicado um artigo no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, em ocasio da greve
dos carroceiros na capital federal, de ttulo A atual atitude do Patriciado e do
Proletariado perante a reorganizao social. Em seu texto, o positivista denuncia os
abusos dos patres que, alm de requererem que os trabalhadores do Estado substituam
47
os seus operrios grevistas, exigem uma intensa reao dos rgos de represso do
Estado para violar as liberdades civis que a poltica destinada a garantir no
combate s greves. Deste modo, imputa, ou pelo menos faz compartilhar, a
responsabilidade da violncia a que se poderia verificar em movimentos grevistas no
apenas o patronato, mas tambm o Estado:
As greves representam um curso extremo, um
verdadeiro mal, a que s lcito recorrer para evitar
desgraas ainda maiores.
E os responsveis por uma greve no so s os seus
promotores diretos, so tambm todos os que a no previnem
ou a entretm.
assim que se reconhece quanta culpa tm nas greves
os patres, no atendendo as solicitaes proletrias no que
encerram de justo, o que determina a exacerbao dos
instintos egostas e faz surgirem as pretenses descabidas.
assim que se percebe a culpa dos governos, intervindo para
prestar aos patres um apoio que os torna surdos s mais
justas representaes proletrias.
67
Embora no fosse a prtica geral recorrente, ao longo da Primeira Repblica
tambm houve momentos em que a prpria polcia, governadores e prefeitos
manifestaram-se favorveis, ou, pelo menos, se negaram a intervir diretamente com
violncia contra determinadas greves, por considerarem as reivindicaes pleiteadas
justas. Esses comportamentos eram excees regra, mas existiam, fossem eles
movidos pela sinceridade de autoridades pblicas ou por interesses polticos
conjunturais. De todo o modo, o no uso da coero, quando ocorria, sempre era
justificado de acordo com o julgamento de justia dos homens que ocupavam os
cargos do executivo quanto s reivindicaes e na sua avaliao sobre o carter
pacfico do movimento, ou seja, quando consideravam no oferecer riscos ordem
pblica
68
. Em todo o caso, so episdios que demonstram a afirmao imposta pela
67
As greves e a Igreja e Apostolado Positivista do Brasil. A Democracia Jornal dos Operrios. Porto
Alegre, ano II, n. 39, 13 jan. 1907, p. 3.
68
No Rio Grande do Sul, o governador Borges de Medeiros interveio favoravelmente s reivindicaes da
greve geral de Porto Alegre e da greve dos ferrovirios de Santa Maria, ambas de 1917. Como veremos,
havia interesses polticos especficos que permitiriam ao governador tirar proveito das mobilizaes, e
constituam excees no conjunto das aes de seu governo ao longo da Primeira Repblica, que, ao
contrrio dos usuais discursos paternalistas, no abriu mo da represso e jamais interveio nas relaes
capital/trabalho do setor privado. No contexto do jogo oligrquico, os membros do PRR
propagandearam os feitos do seu chefe como exemplo de bom governo a ser seguido em contraposio
s prticas exclusivamente repressivas dos demais governadores, especialmente de So Paulo. J tive
oportunidade de procurar demonstrar, em minha dissertao de mestrado, que essa particularidade do
governo gacho era um tanto relativa, pois em Minas Gerais, na greve generalizada de 1912 em Belo
Horizonte, o governador Jlio Bueno Brando decretou a regulamentao da jornada de 8 horas de
trabalho para todas as categorias de trabalho na nova capital. Joo Tristan Vargas (O trabalho na ordem
48
ao direta, reconhecida como instrumento poltico, ainda que, na maioria das vezes,
considerado ilegtimo.
Assim, as greves, a forma mais importante e impactante assumida pela ao
direta no Brasil, eram uma realidade poltica concreta e recorrente. Mas, apesar dos
atributos revolucionrios conferidos por elementos mais radicais, a ao direta nem
sempre significava necessariamente ameaa ordem vigente, tendo mltiplos
significados, variando da condenao, s ressalvas e sua eleio como o mtodo de
preparao para a greve geral, o grande momento no qual eclodiria a revoluo que
conduziria anarquia.
Se a ao direta em si necessariamente no chegava a oferecer perigo ordem
social instituda, por outro lado havia os que nela projetavam o desenvolvimento de
prticas que eclodiriam em uma revoluo social. Aos olhos dos militantes que
pretendiam revolucionar a estrutura social, era preciso um insistente trabalho de
militncia para que as aes de trabalhadores pudessem resultar em aes
revolucionrias. Por mais que se atribua ao anarquismo uma crena quase dogmtica
na espontaneidade revolucionria das massas, que saberiam, quase que por instinto,
provocar e promover efetivamente uma revoluo, na realidade, os anarquistas, quando
falavam em espontanesmo, na maioria das vezes o faziam em uma perspectiva
relativa, pois sabiam da necessidade constante de organizao, propaganda e educao
das massas para a promoo de prticas revolucionrias. Isso se torna mais evidente a
partir dos debates em torno das formas de organizao para a catalisao da ao
direta, em especial da validade do sindicato como instrumento de luta rumo anarquia.
Afinal, o reconhecimento do sindicato como forma de organizao revolucionria no
foi algo imediato, tampouco contou com a adeso de todos os grupos e militantes que
liberal: o movimento operrio e a construo do Estado na Primeira Repblica. Campinas:
Unicamp/CMU, 2004), por sua vez, procura sustentar a tese de que a interpretao dominante da
historiografia de que a represso era a poltica de Estado diante do movimento operrio , em parte,
encampada das interpretaes dos militantes da poca. Tristan Vargas entende, ao contrrio, que a
represso existia e era recorrente, sim, mas havia momentos em que dela no se fazia uso, para lamento
e reclamao de alguns patres. Considervel parte das violncias e abusos cometidos contra o
operariado era fruto de uma certa autonomia em determinados nveis da polcia, com sua lgica e
prticas prprias, revelia das ordens das autoridades superiores e do executivo, o que, a seu ver, no
permitiria identificar na prtica predominantemente repressiva uma poltica de Estado. Entendo que,
apesar da contribuio do seu trabalho, ao problematizar a relao entre movimento operrio, polcia e
os trs poderes para alm do modelo liberalismo intransigente, a represso foi a tnica da ao do
Estado em relao aos movimentos sociais, de forma geral, e ao movimento operrio da Primeira
Repblica, no caso em questo, dada a inexistncia de uma poltica efetiva para combater os abusos
cometidos pelo Estado. Nesse sentido, partilho da viso de PINHEIRO, Paulo Srgio. Transio poltica
e no-estado de direito na Repblica. In: Brasil: um sculo de transformaes. So Paulo: Cia. das
Letras, 2001, p. 260-305.
49
se diziam anarquistas. Na histria do anarquismo e do movimento operrio, houve
muita discusso em torno da funcionalidade do sindicato para os propsitos almejados
por seu ideal. A ao direta se tornaria o principal meio que colocaria em evidncia os
propsitos da militncia anarquista, constituindo-se na principal ferramenta poltica a
contribuir para a proliferao de sindicatos e da relativa fora que o movimento
operrio atingiria no Brasil da Primeira Repblica. Interessa aqui ver como se deu esse
processo.
A RECEPO DO ANARQUISMO NO BRASIL
A fundao da Colnia Ceclia, uma colnia coletivista de italianos no Paran,
tida como uma espcie de marco do surgimento do anarquismo no Brasil em 1890,
ainda que se identifique como precedente, em 1888, uma rpida experincia da
comunidade fundada pelo italiano Artur Campagnoli em Guararema, So Paulo,
composta por espanhis, russos, franceses e alguns brasileiros, mas, sobretudo,
italianos
69
. A disseminao do anarquismo no Brasil creditada ao mito fundador j
foi contestada por Isabelle Felici, que considera que se a Ceclia atraiu para o Brasil
anarquistas, dos quais alguns tiveram no incio uma atividade poltica, essa
contribuio freqentemente exagerada, pois a atribuio usual de feitos
importantes a ex-colonos, particularmente em So Paulo, Paran e Rio Grande do Sul,
na realidade teria sido obra de outros militantes que nunca haviam chegado perto
daquela rea rural de Palmeira, prxima a Curitiba. Assim, apesar da presena de
alguns antigos colonos da Ceclia no movimento anarquista de So Paulo e na
imprensa anarquista no Brasil, nem a colnia, nem seu fundador Giovanni Rossi,
deixaram traos profundos na histria do movimento operrio, nem italiano, nem
brasileiro
70
.
De todo o modo, influentes ou no, o fato que concomitantemente a essas
experincias coletivistas, observa-se na dcada de 1890 a presena de militantes
69
RODRIGUES, Edgar. Os anarquistas: trabalhadores italianos no Brasil. So Paulo: Global Editora,
1984, p. 16-21. Neste trecho do livro, ao tratar da Comunidade Anarquista em Guararema, o autor
identifica alguns episdios e movimentos da histria brasileira que simbolizariam a resistncia contra a
opresso, e que partilhavam valores de emancipao humana muito antes do surgimento formal de
tendncias polticas operrias, como o socialismo e o anarquismo (como o quilombo de Palmares) ou
que sofreriam alguma influncia de suas idias (segundo o autor, como a Revoluo Praieira e a Revolta
dos Farrapos). Nesse contexto ele menciona as Comunidades de Oleiros como uma importante
experincia de anarquistas italianos em So Paulo, sem apresentar datas.
70
FELICI, Isabelle A verdadeira histria da Colnia Ceclia de Giovanni Rossi. Cadernos AEL:
anarquismo e anarquistas, Campinas, Unicamp, v. 8-9, 1998, p. 58 e 9, respectivamente.
50
anarquistas chegados do exterior em meio s ondas migratrias que vinham
sobrecarregar a oferta de braos, principalmente para as lavouras cafeeiras dos
latifndios paulistas. E com os anarquistas, ampliava-se o medo da classe dominante,
ressabiada com as possveis conturbaes sociais que poderiam surgir nesse perodo de
incerteza dada pelo fim da escravido e pelo novo regime.
A classe dominante brasileira, amendrontada pelas experincias das constantes
ameaas de revoltas de escravizados vividas nas ltimas dcadas de vigncia da
escravido, tambm importou, junto com mo-de-obra, idias e valores, os
preconceitos ao anarquismo gerados na Europa, e sua participao com violentas
sublevaes populares, como a Comuna de Paris
71
. Os senhores de escravos e
condutores do lento processo de abolio da escravido partilhavam da convico
tomada das classes dominantes inglesas e francesas, de que existiria um vnculo
estreito entre pobreza, ociosidade e crime, o que, aos seus olhos, tornava as classes
populares em classes perigosas. Segundo sua lgica, as classes populares no eram
apenas o reduto social onde se reproduziriam os mais vis crimes, mas uma massa
explosiva em que bastaria algumas poucas fagulhas para incendiar todas as conquistas
da civilizao, espelho da ordem social vigente. O teor do contedo de classe por trs
dos discursos em defesa da civilizao e o medo das revoltas populares, em especial no
contexto da passagem do trabalho escravo para o livre pode ser percebido nos
discursos parlamentares a respeito do processo revolucionrio parisiense
72
. As notcias
vindas dos acontecimentos ocorridos na capital francesa, com ativa participao de
anarquistas como Bakunin, eram interpretadas como ataques brbaros civilizao, e
uma prova do quanto poderiam ser irracionalmente violentas as revoltas das classes
populares. Tal qual na Europa, no se podia abrir mo dos instrumentos de vigilncia e
represso para manter a hierarquia social em tempos de transformaes do trabalho.
Alm da repercusso sobre a Comuna de Paris em 1871, nas dcadas seguintes,
chegaria tambm ao Brasil a idia que associava o anarquismo com crimes, violncia,
atentados com explosivos de dinamite e regicdios. O anarquismo tomou grande vulto
em terras brasileiras, especialmente aps os clebres julgamentos pelos atentados e
assassinatos efetuados, independentemente um do outro, no incio dos anos 1890, por
71
HARDMAN, Francisco Foot. Incndios sublimes: figuraes da Comuna no Brasil. In: BOITO Jr.,
Armando (org.). A Comuna de Paris na histria. So Paulo: Xam, 2001, p. 183-215.
72
LOURENO, Fernando. Delito de Lesa-Humanidade: os parlamentares do Imprio brasileiro frente
Comuna de Paris. In: BOITO Jr., Armando (org.). A Comuna... op. cit., p. 171-181.
51
Ravachol e Emile Henry, na Frana
73
. Como assinala James Joll, alm de muitos
indivduos que provocavam atos de violncia seguindo a convico de que assim
contribuiriam para denunciar o sistema de explorao, a reputao do anarquismo
tambm sofreu com muitos outros assassinos comuns que passaram a tentar atenuar a
pena por seus crimes com a justificativa de que tambm agiam de acordo com
motivaes polticas anarquistas
74
.
Os partidrios da vertente terrorista em nome do anarquismo efetuaram sua
propaganda pelo fato em diversos pontos do mundo, especialmente Espanha, Frana
e Itlia, mas, com exceo de um ou outro caso isolado, no tiveram adeso dos
anarquistas no Brasil. Em geral, os anarquistas brasileiros, como muitos outros de todo
o mundo, repudiavam os atentados e denunciavam a estratgia da reao em atribuir
aos anarquistas qualquer ato de violncia, sobretudo os arranjados pela prpria polcia
para justificar ondas de represso.
Ainda assim, possvel encontrar alguns registros de defensores do uso de
bombas como manifestao legtima de revolta e resistncia revolucionria, como o
fez Jos Tavares, que, de Rio Grande, em 1926, respondendo a um artigo publicado
anteriormente por um companheiro no jornal O Syndicalista, rgo da Federao
Operria do Rio Grande do Sul:
Ns, os produtores de toda a indstria na qual
gastamos as nossas foras corporais, em contnuos momentos,
e que nada temos direito, nem sequer, muitas vezes, ao da
palavra. Quando j farto de sofrer o pesado jugo da tirania,
levantamos o grito de rebeldia e pedimos mais po e liberdade,
somos algemados e encerrados nos imundos presdios,
quando no nos metem a cabea na corda de um carrasco, ou
no o nosso corpo atravessado pelas balas das carabinas
governamentais. Devemos ento deixar impune estes
destruidores da sociedade humana? Devemos deixar que nos
massacrem? No! impossvel que os nossos coraes,
embora dotados dos melhores sentimentos, no se revoltem. E
depois revoltados o que aspiramos? A vingana. Como
73
Sobre a disseminao de prticas terroristas em nome do anarquismo e a histria l, ver JOLL, James.
Terrorismo e propaganda pela ao. Anarquistas e anarquismos. Lisboa: Publicaes Dom Quixote,
1970, p. 135-172. Especificamente sobre Ravachol e Henry, p. 154-160.
74
Idem, ibidem, p. 109. O autor recorda, nas pginas 106 a 110, outro episdio, muitas vezes esquecido,
mas que ajuda a entender a difuso da imagem de violncia e terror em nome do ideal anarquista na
Europa do sculo XIX. Trata-se da rpida parceria entre Bakunin e Sergei Gennadevich Nechaev, em
1869-1870. Desta parceria resultaram manifestos, como Catecismo Revolucionrio e Princpios da
Revoluo, que ajudaram a proclamar e difundir a idia da propaganda pelo fato. Por mais que
Bakunin se arrependesse e passasse a condenar a prpria experincia j em 1872, ela ajudou a construir
uma m reputao do anarquismo.
52
podemos vingar-nos do terrvel flagelo que ameaa destruir
todo o rgo proletrio? Se no temos carabinas, nem
metralhadoras, nem canhes de altos calibres? Temos ento de
recorrer ao processo que mais fcil se nos apresenta, que a
bomba, porque com ela que muitas vezes nos defendemos dos
nossos inimigos, com ela que tambm fazemos tremer de
terror os capitalistas. Ns, s j extenuados pelas grandes
lutas, lanamos mo dela como nico ponto de salvao. (...)
Eis o que eu penso a respeito da bomba, ser que o
companheiro escreveu contra a bomba para agradar aos
exploradores e governantes, ou porque seja dono de
indstrias e receie que lhe sejam destrudas pelos
revolucionrios em alguma greve? Ou convidar os
camaradas para alguma controvrsia? Pois seja qual for o
ponto de vista, eu estou disposto a defend-la at onde
cheguem os meus conhecimentos revolucionrios, nasci para a
luta e dela jamais retirarei em um s passo.
75
Ainda que se pudessem encontrar concepes semelhantes entre outros
anarquistas, casos como o do rio-grandino Jos Tavares no passaram, na maioria das
vezes, de discursos sem concretizao na prtica. A publicao de sua resposta ao
artigo condenatrio do uso da bomba escrito por Campos Lima, no representa a
concordncia do grupo editor do jornal O Syndicalista, mas deve ser entendida como
parte do tradicional hbito dos anarquistas propiciarem espaos para debates abertos e
francos de idias entre si. De modo geral, os anarquistas aceitavam o uso da violncia
para determinados momentos de insurreio popular que conduziria revoluo, mas a
maior parte dos anarquistas que militaram no Brasil no eram partidrios dos mtodos
terroristas, pois tal qual Campos Lima, consideravam que seu uso acarretaria graves
conseqncias (...) propaganda revolucionria. Era comum, em contrapartida,
construrem argumentos que invertiam a lgica estereotipada, colocando os agentes do
Estado e a classe dominante como os que cometiam atos de violncia, e os anarquistas,
por sua vez, os que a combatiam, apesar de se mostrarem compreensivos diante de
eventual ato de reao violenta de algum movimento ou militante:
Segundo narram os telegramas, o movimento grevista
do Rio ultimamente tem assumido um carter violento com
diversos atentados a dinamite. lamentvel que os
trabalhadores se vejam na contingncia de recorrer a tais
meios para conseguir ver triunfar as suas reivindicaes. E
no seremos ns, que sempre protestamos contra a violncia
organizada das classes dirigentes, que iramos bater palmas a
75
TAVARES, Jos. Um apologista da bomba. O Syndicalista rgo da Federao Operria do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, ano VIII, n. 2, 1 Maio 1926, p. 4.
53
uma tal atitude como meio regular de conquistar os direitos
operrios.
76
Em resumo, para justificar eventuais atos violentos, o argumento era: a
anarquia nada tem a ver com a violncia; quando os anarquistas a empregam
sempre como um meio de defesa
77
. Verdade ou no, o certo que os anarquistas
sofreram desde cedo com o estigma de serem presumivelmente detonadores de bombas
e assassinos, argumento que foi usado para persegui-los em nome da preveno.
Para evitar eventos semelhantes em terras brasileiras, ao lado das preocupaes
reformistas de setores dominantes que procuravam incorporar o proletariado
sociedade, havia para a maioria da classe dominante a necessidade de estabelecer
mecanismos que garantissem a segurana da ordem social. Nesse sentido, a instituio
por decreto do primeiro Cdigo Penal da Repblica brasileira (em 11 de outubro de
1890) antes da Constituio (24 de fevereiro de 1891), evidencia uma lgica,
respaldada pelo momento de instabilidade gerado pela troca de regime, de se
estabelecer um cdigo punitivo queles que ousassem promover sublevaes,
principalmente entre as camadas populares, as quais, julgava-se, eram capazes dos atos
mais violentos e criminosos
78
. Dada a m fama do anarquismo projetada entre os
governos e as classes dominantes internacionalmente, associando-o com prticas
terroristas, o Estado brasileiro, afora o curioso mito do apoio dado por D. Pedro II
criao da Colnia Ceclia, cedendo terras no Paran para concretizar as idias de
Giovanni Rossi de se viver em vida comunitria
79
, promoveu a perseguio aos
anarquistas desde o incio da Repblica.
Assim, foram efetuadas prises e expulses de estrangeiros considerados ou
suspeitos de serem adeptos do anarquismo desde pelo menos o incio dos anos 1890,
como atesta uma correspondncia de 1894 do embaixador italiano em Madri ao
ministro de Estado espanhol sobre os preparativos da expulso de Portugal e do trajeto
76
A Escola da Violncia - Quem semeia ventos... O Syndicalista rgo da Federao Operria do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, ano I, n. 4, 17 Jun. 1919, p. 1. (grifo meu).
77
TRISTO. Em torno do atentado. A Guerra Social Peridico Anarquista. Rio de Janeiro, ano II, n.
29, 29 set. 1912, p. 1.
78
ALVES, Paulo. A verdade da represso: prticas penais e outras estratgias na ordem republicana:
1890-1921. So Paulo: Editora Arte & Cincia/UNIP, 1997.
79
Isabelle Felici atribui a difuso do mito, sem fundamento histrico, da entusiasmada correspondncia
entre D. Pedro II e Giovanni Rossi, quando da estadia do imperador enfermo em Milo, a um romance
de Afonso Schmidt, Colnia Ceclia, originalmente publicado em 1942 e reeditado em 1980 (FELICI,
Isabelle. A verdadeira... op. cit., p. 49-50). Uma narrativa militante que reporta iniciativa do imperador
lcido, inteligente e interiormente livre de ofertar 300 alqueires de terras no Paran a Rossi encontra-
se em RODRIGUES, Edgar. Os anarquistas... op. cit., p. 21-24.
54
que deveria seguir at a Itlia o preso Nivardo Monti Fumelli, anarquista
perigosssimo considerado por nosso governo [da Itlia] capaz de organizar e de
executar qualquer atentado. Segundo as informaes apresentadas, Nivardo
gostaria de retornar ao Brasil, onde deixou mulher e filhos, e de onde foi expulso por
aquele Governo, mas lhe faltam os meios para fazer a viagem
80
, o que permite aferir,
embora no seja possvel precisar se este seja o caso, que muito provvel, devido
recorrncia da no observncia dos procedimentos jurdicos e constitucionais nas
expulses que se efetivaram durante a Primeira Repblica, que o italiano tenha sido
expulso sem julgamento e sem que se verificasse se era casado e/ou pai de filhos
nascidos no Brasil. Como ele, em novembro de 1892, oito estrangeiros acusados de
terem proferido discursos sediciosos, instigando a violncia no Centro do Partido
Operrio, no Rio de Janeiro, teriam sido presos e expulsos, enquanto poucos dias
depois, outros anarquistas teriam sido presos em Niteri, tomado como prova de culpa
um caderno de escritos onde se encontrava uma frase em que se evocava o uso da
dinamite e do punhal para a conquista do bem-estar
81
.
Na esteira internacional de combate ao anarquismo, o Estado brasileiro tambm
se inseriu em uma rede diplomtica de troca de informaes sobre a movimentao de
militantes anarquistas para combat-los, como demonstra um telegrama, desde
Petrpolis, do embaixador espanhol ao ministro de Estado de seu pas, a 17 de maio de
1906, em que se evidencia que a polcia gacha vigiou de perto o embarque de um
anarquista espanhol e tratou de reportar o fato imediatamente s autoridades de sua
terra natal:
Ministro de Relaes Exteriores me diz ter aviso
Autoridades Porto Alegre anarquista Miguel Mora Monchis ali
embarcado dia 12 vapor Prudente Nora para Buenos
Aires suposto Juan Muoz. baixo, bigodes negros, grosso,
cara redonda, cabelo negro, jaqueta escura, calas azuis,
chapu escuro. Ocupao ambulante. ACQUARONI.
82
80
Correspondncia Reservadssima e urgente do Embaixador italiano em Madri ao Ministro de Estado
de Espanha, em 24 de dezembro de 1894. Legajo 2757 AGMAEC Madri. (parte 2 fotos 007 e 014)
(Esto na mesma pasta as cartas em italiano e sua traduo em espanhol).
81
SAMIS, Alexandre. Clevelndia: anarquismo, sindicalismo e represso poltica no Brasil. Rio de
Janeiro: Achiam; So Paulo: Imaginrio, 2002, p. 37-38. As notcias sobre as prises dos anarquistas
referidas pelo autor foram extradas do carioca Jornal do Comrcio, e datam, respectivamente, de 1
dez.1892 e 25 nov. 1892.
82
Cpia para Seccin II de telegrama cifrado do Encarregado Negcios de Espanha ao Ministro do
Estado de Espanha enviado de Petrpolis, em 17 de maio de 1906, a Madri. Legajo 2757 AGMAEC
Madri. (parte 2 fotos 004)
55
Claro est que a violncia repressiva da lei e das prticas policiais contra
estrangeiros no visava unicamente os anarquistas, mas aos indesejveis em geral
(ladres, cftens, agiotas, jogadores, bbados, arruaceiros, etc.). Aos olhos da classe
dominante e de seus aparelhos repressivos, os cratas se encontravam nesse bojo de
escria social, contra os quais a ao dura do Estado significava higienizar a
sociedade. Persegui-los e conden-los tal qual os demais criminosos objetivava certo
efeito moralizador sobre as camadas populares, na perspectiva de reforar os valores
sustentadores da hierarquia social e seu modelo conveniente de civilizao que a
Repblica engessava. Mas o militante anarquista constituiu-se como o principal alvo
da represso contra os movimentos polticos das classes populares. Combat-lo era
uma forma de demonstrar aos setores populares as implicaes que resultavam queles
que contestavam a ordem vigente.
Seria nesse contexto um tanto quanto adverso, concomitante intensificao da
represso, que a militncia libertria se esforaria para deitar razes entre os
trabalhadores brasileiros.
O CRESCIMENTO DA MILITNCIA ANARQUISTA E DE SUA REPRESSO NO
BRASIL
O rtulo de anarquista poderia render dificuldades bastante inconvenientes a
qualquer um e ningum gostaria de arcar com suas conseqncias, ainda mais quando
no s no professava, mas era contrrio aos princpios anarquistas. Os socialistas, ao
apresentarem os seus partidos como o instrumento por excelncia para vencer as
estruturas que mantinham a explorao de classes, no se limitavam apenas a
estabelecer as diferenas entre eles e os partidos oligrquicos dominantes, mas tambm
tratavam de deixar claro que no compactuavam, eram crticos e no poderiam ser
confundidos com os anarquistas. Um artigo publicado em duas edies de julho de
1893 do jornal pelotense Democracia Social
83
exemplar da preocupao dos
socialistas de se livrarem das mculas atribudas aos anarquistas. Em um texto
ambguo, rebate e reproduz valores e imagens da burguesia e do positivismo acerca do
anarquismo e da revoluo.
83
Socialismo e anarquismo. Democracia Social. Pelotas, 23 jul. 1893, p. 2; Socialismo e anarquismo
(concluso). Democracia Social. Pelotas, 30 jul. 1907, p. 1-2 apud PETERSEN, Silvia e LUCAS, Maria
Elizabeth. Antologia do movimento operrio gacho (1870-1937). Porto Alegre: Tch!/Editora da
Universidade/UFRGS, 1992, p. 34-37.
56
Ao caracterizar o anarquismo, o articulista J. L. reconhece aspectos positivos
que so escamoteados e distorcidos pelo senso comum burgus. Contradizendo os
estigmas pejorativos, no prprio Brasil existiria uma prspera colnia anarquista (a
Colnia Ceclia, no Paran) que constitua um modelo de ordem e de trabalho, mas,
na sua opinio, poucos dos que a trazem [a bandeira preta do anarquismo] trabalham
regularmente para ganhar com o suor do rosto o po cotidiano. Em estilo ambguo,
o autor reconhecia que, para os anarquistas, a razo era o fundamento de todas as
suas negativas em relao religio, propriedade e governo, porm, recusavam-se a
aceitar as premissas bsicas da aplicao da cincia das leis naturais a todas as
aes humanas, apesar de entre os numerosos adeptos da razo anarquista
figurarem sbios universalmente conhecidos e estimados, homens que querem
destruir, e constroem todos os dias monumentos, obras cientficas que passam
posteridade como Proudhon, Blanqui e o patriarca Elise Reclus (...), prncipes como
Kroptkine, mulheres de educao superior e oficiais de alta patente. Expressando seu
julgamento, perceptivelmente influenciado por concepes herdadas do positivismo, a
limitao da filosofia anarquista estava em no admitir que as desapropriaes que
promoveriam a sociedade socialista deveriam ser realizadas em uma poca de
transio, de uma ditadura do proletariado, passageira, porm, absolutamente
necessria, em que o ritmo das transformaes decorreria racionalmente,
gradualmente, obedecendo s circunstncias e lei suprema da natureza que por si s
far a revoluo de que no seremos mais que meros instrumentos. Tendo
inicialmente repelido os rtulos de assassino e terrorista lanados indiscriminadamente
contra o anarquismo pois os que porventura fizessem uso de bombas de dinamite e
provocassem a morte de vtimas inocentes no o fariam por inspirao de nenhuma
doutrina, mas sim pela loucura ou pelo dio para vingar-se do juiz que o condenou
depois de ter sido perseguido e remetido priso por roubar um po e sem pr em
dvida a sinceridade da f de seus adeptos, J.L. no deixaria qualquer dvida quanto
sua posio. Ao terminar seu texto, estabeleceu a grande diferena entre socialistas e
anarquistas quanto sua relao com o mundo do trabalho e aos mtodos de ao
empregados, sintetizada da seguinte forma: A divisa do socialismo a luta, o sol, o
dia. Viver trabalhando, morrer combatendo. E dos falsos revolucionrios, dos
pseudo-revolucionrios, a noite, as trevas. Viver sem trabalhar, assassinar sem
combater.
57
O juzo de valor exposto por J. L., alm de compartilhar a viso dominante
contra o anarquismo, demonstrativo das lutas que se projetariam com maior
intensidade a partir da dcada seguinte entre as diversas correntes polticas que
pretendiam exercer a funo de orientadora do potencial revolucionrio atribudo ao
proletariado, quando os anarquistas, em suas variadas tendncias, conseguiram criar
associaes para propagar suas idias e sair do isolamento, apesar dos esforos
repressivos em contrrio. Maior penetrao e influncia entre os trabalhadores
conseguiram os anarco-sindicalistas que, a partir de, aproximadamente, 1903,
conseguiram adentrar em sindicatos e em federaes que contavam com a participao
de militantes socialistas e colaboracionistas, numa poca em que as correntes
ideolgicas ainda no estavam claramente definidas
84
.
A proliferao dos sindicatos e a notoriedade e influncia anarquista neles
seriam ampliadas especialmente nos anos subseqentes a 1906, nos principais centros
em industrializao do pas, concomitantemente m reputao imposta por seus
adversrios, sejam os agentes do Estado, a classe dominante ou outras correntes
polticas no movimento operrio, e suas estratgias repressivas. significativa a
existncia dessa dupla faceta (crescimento da militncia anarquista e da represso), a
decretao da lei que admitia a legitimidade da existncia de associaes sindicais
(Decreto n 1637, de 5 de janeiro de 1907), apenas 2 dias antes da intimidatria lei
Adolpho Gordo (Decreto n 1641, de 7 de janeiro de 1907), que estabelecia normas
mais severas para se efetivarem expulses de estrangeiros. A represso, em contextos
especficos, somada a outros fatores, dentre os quais crises de emprego e afluncia da
mo-de-obra imigrante, teve, de fato, peso em diversos perodos de enfraquecimento,
chegando quase nulidade, das atividades de mobilizao operria nas duas primeiras
dcadas dos anos 1900, mas no impediu que a militncia anarquista imprimisse a sua
marca e contribusse sobremaneira no movimento operrio, na deflagrao de
manifestaes pblicas e greves, cujo auge remete-se aos movimentos de 1917 a 1920.
A caracterizao geral do movimento operrio brasileiro da Primeira Repblica
com o anarquismo, no entanto, no deve ser tomada como um dado sem
problematizao, na medida em que a aceitao do sindicato como meio de luta contra
a explorao capitalista no era compactuada por todas as correntes internas do
anarquismo.
84
MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e movimento operrio brasileiro (1889-1920). Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 89.
58
SINDICALISMO E ANARQUISMO
A existncia de mltiplas correntes internas do anarquismo, muitas delas
conflitantes entre si, por vezes dificulta uma definio geral que englobe o que h de
comum entre todas as matizes de concepes filosficas, ideais de futuro e mtodos de
luta. Diante desse quadro diversificado, h ponderaes, como a de Alex Crtes, de
que o mais correto seria referir-se, no ao anarquismo, como nico e monoltico,
mas aos anarquismos, idias plurais e prticas baseadas na propaganda pela ao
direta, meios de construo de uma sociedade libertria
85
, situao agravada pela
valorizao da capacidade e liberdade do indivduo, o que decorreria em um
caleidoscpio de individualidades, sobre o qual uma tentativa de sntese seria ainda
mais complexo de estabelecer.
Dizer que as bases comuns do anarquismo so a averso ao Estado, a ao
direta e a primazia do indivduo como elemento revolucionrio aceitvel at certo
ponto: dependendo da vertente, h os que defendem intransigentemente a liberdade
individual como valor supremo e intocvel (e a ao direta seria fruto exclusivo dessa
liberdade individual absoluta) e os que, mesmo a considerando como princpio
fundamental, ponderam que ela deve, s vezes, estar submetida aos interesses e
estratgias definidas coletivamente; quanto averso ao Estado, que tambm se
justifica sob a perspectiva da valorizao absoluta do indivduo, possvel verificar, na
prtica histrica, apesar dos discursos contrrios, momentos de tolerncia e frentes de
negociao em algumas greves e tambm em situaes limites, como, no caso extremo,
a concordncia em compor o governo republicano espanhol sob a avaliao de ser a
ltima e nica alternativa de manter a resistncia revolucionria contra os falangistas
86
,
ou ainda no apoio ditadura do proletariado, nos primeiros anos do governo sovitico.
Mesmo assim, em linhas gerais, a averso ao Estado e defesa intransigente da
liberdade individual, e a ao direta so elementos presentes, pelo menos em teorias e
discursos, dos que se diziam anarquistas no Brasil.
85
CRTES, Alex Sandro Barcelos. Razes do anarquismo no Brasil. In: DEMINICIS, Rafael Borges e
REIS Filho, Daniel Aaro (orgs.). Histria do anarquismo no Brasil Vol. I. Niteri: EdUFF; Rio de
Janeiro: Mauad, 2006, p. 56.
86
Na extensa bibliografia sobre a guerra civil espanhola, a trajetria de quatro militantes e o dilema e
conflitos do movimento anarquista em torno da deciso que os tornaria ministros do governo
republicano durante seis meses de 1937, destaca-se MARN, Dolors. Ministros anarquistas: la CNT em
el Gobierno de la II Repblica (1936-1939). Barcelona: Debolsillo/Random House Mondadori, 2005.
59
Desta maneira, tal qual no contexto internacional, no Brasil tambm
desenvolveram-se anarquismos conflituantes, crticos uns com os outros em debates
francos e acalorados.
O mais diretamente criticado era o anarquismo individualista, por no aceitar
qualquer forma de organizao coletiva que pudesse, a seu ver, cercear a liberdade do
indivduo, submetendo-a a alguma forma de restrio. Segundo seus adeptos, a
necessidade de organizao conduziria a coletividade a impor limites de ao e no
prprio pensamento dos indivduos, no permitindo o pleno desenvolvimento de suas
habilidades e limitar sua liberdade, valor supremo que s existe intrinsecamente ligado
existncia individual. Nesse modo de pensar, qualquer sujeio do indivduo a
alguma deciso contrria sua vontade deveria ser considerada um atentado contra a
liberdade. Por essa lgica, que v no indivduo a medida de todas as coisas, ao aderir a
alguma organizao coletiva, como o sindicato, que exige a maior coeso possvel dos
seus integrantes, o indivduo deixaria de ser plenamente livre, no sentido de que se
sobreporia uma autoridade imposta contra a vontade individual e o seu exclusivo
direito de fazer somente aquilo que julgar ser certo. A oposio entre vontade e
organizao, vista como autoridade, foi combatida como falsa dentre os prprios
anarquistas, como o fez o italiano Errico Malatesta, uma das referncias tericas
preferidas dos libertrios sociais (todos aqueles que defendiam formas de
organizao e censuravam os individualistas) no Brasil. Com ironia, o italiano criticou
o absolutismo da liberdade individual ao imaginar uma sociedade futura sob suas
bases:
Na verdade, esta fixao [pela plenitude da liberdade
individual] chegou ao ponto de fazer sustentar coisas
realmente incrveis. Combateu todo o tipo de cooperao e de
acordo porque a associao a anttese da anarquia. Afirma-
se que sem acordos, sem obrigaes recprocas, cada um
fazendo o que lhe passar pela cabea, sem mesmo se informar
sobre o que fazem os outros, tudo estaria espontaneamente em
harmonia: que a anarquia significa que cada um deve bastar-
se a si mesmo e fazer tudo o que tem vontade, sem troca e sem
trabalho em associao. Assim, as ferrovias poderiam
funcionar muito bem sem organizao, como acontecia na
Inglaterra (!). O correio no seria necessrio: algum de
60
Paris, que quisesse escrever uma carta a Petersburgo... Podia
ele prprio lev-la (!!) etc.
87
Pode-se localizar uma convergncia entre o individualismo do alemo Max
Stirner e o evolucionismo positivista presente no pensamento do anarquista Piotr
Kropotkin, no que se refere a uma idia de inevitabiliade da revoluo social, nos
argumentos daqueles que se diziam defensores da soberania individual contra qualquer
autoridade no Brasil. Por acreditar que o desenvolvimento intelectual no s era
fundamental, mas suficiente como forma de libertao individual, essa corrente
limitou-se a servir de auto-rtulo entre elementos letrados, afeitos academia, onde
despenderam grandes esforos no sentido de propagar o ideal anarquista, procurando
desvincul-lo do esteretipo terrorista e conferir-lhe uma aura de respeitabilidade
filosfica. No Brasil, essa vertente quase inexistiu, e no adquiriu a fora que teve em
outros pases. Dada a inexistncia de vontade e de concordncia em admitir formas de
organizao coletiva, os individualistas, tais quais os terroristas, no tiveram grande
ressonncia no movimento operrio brasileiro.
Defensores tambm das liberdades individuais, mas em outra escala, os
anarquistas de outras correntes trataram de denunciar em seus escritos o carter
pernicioso do pensamento individualista propaganda libertria
88
.
Do lado das tendncias sociais do anarquismo, podemos localizar duas, que
foram as mais influentes, e que chamamos aqui de anarco-comunistas e anarco-
sindicalistas. A principal diferena entre esses dois grupos diz respeito s suas
concepes acerca da pertinncia da funo dos sindicatos para o desenvolvimento de
um processo revolucionrio.
Esses debates em relao estratgia sindical tomam fora no Brasil na mesma
poca em que se acaloram internacionalmente, conforme mencionamos no incio do
captulo. A efervescncia das atividades operrias em torno de sindicatos
independentes de partidos polticos na Frana a partir de 1884 despertou o interesse de
anarquistas de todo o mundo para suas possibilidades revolucionrias.
A Confdration Gnrale du Travail (C.G.T.), uma confederao de sindicatos
autnomos e independentes, seria o grande modelo contrapartida decepcionante das
87
MALATESTA, Errico. A Organizao I. LAgitazione, Ancona, 4 jul. 1897. In: MALATESTA, Errico.
Escritos Revolucionrios. Edio on-line de LCC Publicaes Eletrnicas, p. 28. (Disponvel on-line
em: http://www.culturabrasil.org/zip/malatesta.pdf).
88
Dentre diversos textos, destaca-se LUZ, Fabio. A lei suprema. A Vida Peridico Anarquista, Rio de
Janeiro, ano I, n. I, 30 nov. 1914, p. 2-3.
61
tradicionais trade-unions inglesas. Sua idia fundamental, consubstanciada na Carta de
Amiens, de 1906, era congregar todos os trabalhadores em sindicatos organizados por
ofcios, independentemente de correntes polticas, quaisquer que fossem, para
fomentar a resistncia ao capitalismo. A concepo de greve geral revolucionria de
Georges Sorel oferecia um componente estimulante para que anarquistas vissem nos
sindicatos o meio de aproximao com o proletariado para difundir seus ideais e
instigar seu potencial insurrecional. Isso porque, em linhas gerais, segundo os
defensores do sindicalismo da CGT francesa, o sindicato deveria ser a mola propulsora
de reunio e de ao entre os trabalhadores, perniciosamente divididos por causa da
concorrncia pela sobrevivncia e por diversas formas de preconceitos e opinies
polticos, religiosos, raciais, nacionais, etc. A preocupao com a identificao dos
interesses puramente econmicos das categorias profissionais (jornada de trabalho,
salrio, descanso semanal, etc.) permitiria, num primeiro momento, a reunio dessa
amlgama para a conquista de melhorias parciais. Nas prticas sindicais, se
desenvolveriam as experincias de solidariedade no apenas entre os trabalhadores de
uma mesma categoria, mas tambm com os das demais, promovendo e fortalecendo a
identificao de interesses comuns entre eles e em antagonismo com os patres,
proprietrios das fbricas e das terras. A proposta do sindicalismo revolucionrio
consistia, ento, em congregar todos os trabalhadores independentemente da viso
poltica e religiosa, pois tais elementos seriam dispersantes, contrrios unio
necessria e comprometiam o prprio carter revolucionrio que os trabalhadores
sindicalizados poderiam desenvolver. Por esse motivo, o sindicalismo revolucionrio
no admitia nenhuma corrente poltica ou religiosa como a corrente oficial do
sindicato, incluindo o anarquismo
89
.
Os moldes franceses de organizao sindical tiveram grande impacto em todo o
mundo
90
, e no Brasil, considera-se sua consolidao a partir das resolues aprovadas
no I Congresso Operrio Brasileiro, realizado em 1906, no Rio de Janeiro.
A organizao do evento ficou a cargo dos que propugnavam pela colaborao
das classes. Antonio Pinto Machado, por exemplo, influente no operariado carioca,
com entradas em Minas Gerais, combatido pelos anarquistas que o taxavam de
89
JULLIARD, Jacques. Autonomie ouvrire: tudes sur le syndicalisme daction directe. Paris:
Gallimard; Le Seuil, 1988.
90
LINDEN, Marcel van der e THORPE, Wayne. Essor et dclin du syndicalisme rvolutionnaire, Le
Mouvement Social, Paris, n. 159, p. 3-36, abr.-jun. 1992.
62
amarelo, foi um dos membros da comisso preparatria do 1 Congresso,
representante do Centro Artstico Cearense e presidiu a 6 sesso dos trabalhos
91
. Alm
dele, participaram ativamente seus companheiros Mariano Garcia, Melchior Pereira
Cardoso e Jos Hermes de Olinda Costa. De acordo com seus propsitos, era inteno
que da reunio se tirasse a deciso de construir um partido operrio com fortes bases
no sindicalismo, preferencialmente, de amplitude nacional. Contudo, ativa
participao no Congresso dos colaboracionistas, no entanto, contraps-se o
temperamento combativo dos delegados representantes do operariado paulista,
unido aos representantes do operariado do Rio, j experimentados em lutas
anteriores
92
. Seu esforo foi suficiente para impedir a criao de um forte partido
poltico, para servir os interesses da burguesia e permitir a consolidao das teses
sindicalistas defendidas, as quais foram aprovadas quase em sua totalidade naquele
momento. Das resolues determinantes para imprimir o carter conferido
Confederao Operria Brasileira, destacam-se as referentes orientao, organizao
e ao operria:
SOBRE ORIENTAO:
Tema 1: A sociedade operria deve aderir a uma
poltica de partido ou conservar a neutralidade? Dever
exercer uma ao poltica?
Considerando que o operariado se acha
extremamente dividido pelas suas opinies polticas e
religiosas;
que a nica base slida de acordo e de ao so os
interesses econmicos comuns a toda classe operria, os de
mais clara e pronta compreenso;
que todos os trabalhadores, ensinados pela experincia
e desiludidos da salvao vinda de fora de sua vontade e ao,
reconhecem a necessidade iniludvel da ao econmica direta
de presso e resistncia, sem a qual, ainda para os mais
legalitrios, no h lei que valha;
o Congresso aconselha o proletariado a organizar-se
em sociedade de resistncia econmica, agrupamento
essencial, e sem abandonar a defesa, pela ao direta dos
rudimentares direitos polticos de que necessitam as
organizaes econmicas, a pr fora do sindicato a luta
poltica especial de um partido e as rivalidades que
resultariam da adoo, pela associao de resistncia, de uma
doutrina poltica ou religiosa, ou de um programa eleitoral.
(...)
91
RODRIGUES, Edgar. Socialismo... op. cit., p. 132-133.
92
Relatrio da Confederao Operria Brasileira contendo as resolues do Segundo Congresso Operrio
Brasileiro, reunido no Rio de Janeiro nos dias 8, 9 , 10, 11, 12 e 13 de setembro de 1913. Rio de Janeiro,
1914 apud PINHEIRO, Paulo Srgio e HALL, Michael M. A classe... op. cit. (Vol. I), p. 207.
63
SOBRE ORGANIZAO:
Tema 1: O sindicato de resistncia deve ter como
nica base a resistncia ou aceitar conjuntamente o subsdio
de desocupao, de doena ou de cooperativismo?
Considerando que a resistncia ao patronato a ao
essencial, e que, sem ela, qualquer obra de beneficncia,
mutualismo ou cooperativismo seria toda a cargo do
operariado, facilitando mesmo ao patro a imposio de suas
condies;
que essas obras secundrias, embora trazendo ao
sindicato grande nmero de aderentes, quase sempre sem
iniciativa e sem esprito de resistncia, servem muitas vezes
para embaraar a ao da sociedade que falta inteiramente ao
fim para que fora constituda a resistncia;
o Congresso aconselha, sobretudo, resistncia, sem
outra caixa a no ser a destinada a esse fim e que, para melhor
sintetizar o seu objetivo, as associaes operrias adotem o
nome de sindicato.
(...)
SOBRE AO OPERRIA:
Tema 1: Quais os meios de ao que o operariado,
economicamente organizado, pode usar vantajosamente?
Considerando que o proletariado economicamente
organizado, independente dos partidos polticos, s pode,
como tal, lanar mo dos meios de ao que lhe so prprios;
tendo em vista a moo votada sobre o 1 tema
discutido:
o Congresso aconselha como meios de ao das
sociedades de resistncia ou sindicatos todos aqueles que
dependem do exerccio direto e imediato da sua atividade, tais
como a greve parcial ou geral, a boicotagem, a sabotagem, o
label, a manifestao pblica, etc., variveis, segundo as
circunstncias de lugar e de momento.
(...)
Tema 9: Que meios empregar para garantir os salrios
dos trabalhadores e o pagamento em dia?
Considerando que dentro da organizao atual nada
existe que garanta realmente o salrio dos trabalhadores, os
quais, por isso, so constantemente caloteados; assim como
nada est estabelecido de seguro sobre a forma de pagamento,
isto , se este deve ser dirio, semanal ou mensal, o que
prejudica enormemente os trabalhadores;
o Congresso Operrio aconselha aos sindicatos que:
1 - procurem tornar o menos curto possvel os prazos
dos pagamentos, os quais devem ser, no mximo, semanais,
pois que, assim, os operrios se furtaro a um sem nmero de
exploraes e, ao mesmo tempo, quando caloteados, ser
menor a quantia que perdem;
2 - e, quando decididamente caloteados, por haver
liquidado a empresa ou falido o patro, etc., devem os
operrios e respectivos sindicatos lanar mo de todos os
64
meios, inclusive os tribunais, para que o patro ou empresa
caloteira no possa aparecer como proprietria enquanto no
houver pago aos trabalhadores.
93
A partir dessas resolues, em particular, se estabeleceu certo consenso entre os
historiadores do movimento operrio, acadmicos e militantes, de que se podia
verificar clara a predominncia do anarco-sindicalismo como tendncia orgnica do
proletariado no Brasil, naquele momento
94
. Contudo, h vises divergentes sobre o
carter do I Congresso Operrio. Paulo Srgio Pinheiro e Michael Hall consideram que
suas resolues demonstram que, apesar da clara influncia do sindicalismo
revolucionrio (...), de fato, (...) so muito mais sindicalistas que revolucionrias (do
anarquismo dificilmente se encontra algum trao)
95
.
Retomando, agora a partir das questes postas por essas fontes, a discusso
historiogrfica mencionada no incio do captulo, lembramos que a relao entre o
sindicalismo revolucionrio e o anarquismo, torna-se assim, algo que no simples de
ser determinado. Jean Maitron
96
, ao analisar a histria do anarquismo na Frana, j
ponderou sobre a falta de consenso entre os historiadores quando tratam do
sindicalismo revolucionrio e do anarquismo. Para uns, o sindicalismo revolucionrio
nasce do anarquismo, e a histria de ambos passa a ser dissocivel uma da outra a
partir dos anos subseqentes Comuna de Paris. Para outros, so duas correntes
completamente diferentes, e o sindicalismo revolucionrio seria, quando surgiu, algo
novo, um herdeiro do anarquismo e do socialismo, ao mesmo tempo em que uma
ruptura com o anarquismo, assim como este foi com o socialismo.
O debate levando em conta a ao do sindicalismo revolucionrio no
movimento operrio brasileiro, e que esteve praticamente ausente em grande parte dos
estudos sobre este movimento, afora algumas referncias esparsas, foi discutido
tambm por Jacy Alves de Seixas. No entanto, sobre a relao entre sindicalismo
revolucionrio e anarquismo no Brasil, asseverou:
ento do interior do grupo anarco-comunista de So
Paulo, no momento em que a organizao do movimento
operrio brasileiro est em pleno desenvolvimento, que uma
93
Resolues do 1 Congresso Operrio Brasileiro efetuado nos dias 15, 16, 17, 18, 19 e 20 de abril de
1906 na sede do Centro Galego, Rua da Constituio, 30 e 32, Rio de Janeiro, 1906 apud PINHEIRO,
Paulo Srgio e HALL, Michael M. A classe... op. cit. (Vol. I), p. 41-58.
94
HARDMAN, Francisco Foot e LEONARDI, Victor. Histria... op. cit., p. 338.
95
PINHEIRO, Paulo Srgio e HALL, Michael M. A classe... op. cit. (Vol. I), p. 41.
96
MAITRON, Jean. Le mouvement anarchiste en France Vol. I : Des origines 1914. Paris: Gallimard,
1975, p. 323-324.
65
corrente sindicalista revolucionria emerge. Esse momento de
diferenciao no implica, entretanto, uma ciso do
movimento anarquista em dois blocos rivais, como no caso da
Argentina. Ao contrrio, os sindicalistas revolucionrios, por
razes que dizem respeito especificidade das relaes de
fora que constituem o movimento operrio brasileiro deste
perodo, permaneceram mais ou menos fiis a suas razes.
Resultado: o movimento anarquista brasileiro, rico em
malatestianos, jamais teve seu Monatte.
97
A autora se refere ao grande embate que marcou o Congresso Anarquista de
Amsterd, de 1907, quando Malatesta interveio energicamente
98
contra as
propostas do jovem francs Pierre Monatte, cuja sntese se encontra na frmula o
sindicato basta em si mesmo. A seu ver, portanto, ainda que considere a existncia de
crticas ao sindicalismo entre os libertrios militantes no Brasil, tende a v-lo como o
principal mtodo que foi utilizado por anarquistas brasileiros para efetivar sua
militncia junto aos meios operrios, como se evidencia tambm em termos
internacionais, na medida em que o prprio debate proposto por Monatte foi feito em
um congresso anarquista.
Edilene Toledo, por sua vez, pretendeu demonstrar que So Paulo teve o seu
Monatte, que foi Giulio Sorelli
99
, militante anarquista e sindicalista revolucionrio,
cuja trajetria, acompanhada e comparada s do socialista Alceste De Ambrys e de um
futuro adepto do sindicalismo fascista em seu retorno Itlia, Edmondo Rossoni,
contribuiria para a sua tese de que o sindicalismo revolucionrio, adotado por
militantes de diversas correntes, no pode ser reduzido somente experincia
anarquista. A autora compartilhou da percepo de Hall e Pinheiro, e procurou
demonstrar que tticas e estratgias usualmente identificadas como anarquistas e
anarco-sindicalistas, na realidade so proposies do sindicalismo revolucionrio,
corrente autnoma com corpo terico e prticas de ao prprias, e que no pode ser
confundida com o anarco-sindicalismo, termo que na verdade s seria usado muito
mais tarde, [e que] tinha uma concepo diferente do sindicalismo revolucionrio.
Ao atentar para a presena do sindicalismo revolucionrio no Brasil, percebeu que o
movimento operrio [sobretudo em So Paulo, caso estudado], foi, em vrios
97
SEIXAS, Jacy Alves de. Mmoire op. cit., p. 107.
98
As citaes acerca do relatrio do Congresso de Amsterd que se seguem referem-se a MALATESTA,
Errico. O Congresso de Amsterd Prefcio do Congresso Anarquista. Les Temps Nouveaux, Paris, 5
out. 1907 In: MALATESTA, Errico. Escritos... op. cit.. Para fins de narrativa, em alguns momentos
foram adaptadas as conjugaes de tempos e pessoas.
99
TOLEDO, Edilene. Travessias... op. cit., p. 51.
66
momentos, muito mais sindicalista revolucionrio do que anarquista, e mais
sindicalista do que revolucionrio
100
.
As contribuies de seu trabalho do um novo contorno aos debates sugeridos
por outros autores
101
, e estimulam a abordagem acerca da militncia anarquista no
movimento operrio. De fato, elementos do sindicalismo revolucionrio so visveis no
processo de organizao sindical no Brasil, especialmente no Distrito Federal, em So
Paulo e no Rio Grande do Sul, mas reafirmo que, a meu ver, ele no constituiu
propriamente uma corrente autnoma: antes foi um mtodo de ao, cuja projeo
atingida foi alavancada principalmente pela intensa militncia anarquista, tornando
possvel ao observador confundir ambos. Nesse sentido, a prpria Edilene Toledo
fornece as pistas para afirmar que o sindicalismo revolucionrio em So Paulo no
significou mais do que a participao de anarquistas no sindicato
102
. E esta talvez
seja a chave para a compreenso do processo que nos interessa. Interessa aqui ver
como os princpios sindicalistas foram instrumentalizados pelos anarquistas no
combate a outras tendncias polticas nos meios sindicais e na construo de sua
imagem com fora hegemnica (imagem que nem sempre correspondeu aos fatos).
No se trata apenas de ver o sindicalismo como um mtodo de luta que garantisse
vitrias parciais ao operariado em um capitalismo sem regras precisas da relao
capital/trabalho, tendo ou no uma perspectiva revolucionria. Trata-se de perceber as
diretrizes do sindicalismo revolucionrio sob a perspectiva das lutas internas entre
tendncias do movimento operrio, das quais os anarco-sindicalistas foram os
principais agentes defensores e beneficiados no perodo aproximado entre 1906 a
1919. Neste processo, que resultaria na projeo da militncia anarquista e do
movimento sindical no contexto poltico da Primeira Repblica, as primeiras
resistncias se deram entre os prprios anarquistas.
100
TOLEDO, Edilene. Anarquismo e sindicalismo revolucionrio: trabalhadores e militantes em So
Paulo na Primeira Repblica. So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 2004, p. 11-12.
101
Idem, ibidem, p. 59. Dentre os autores que atentaram para as diferenas internas do movimento
anarquista, tomando o caso de So Paulo, separando-os entre anarquistas (ou anarco-comunistas) e
anarco-sindicalistas, alm dos j citados, encontram-se: AZEVEDO, Raquel de. A resistncia
anarquista: uma questo de identidade (1927-1937). So Paulo: Arquivo do Estado; Imprensa Oficial,
2002, p. 72-130; SFERRA, Giuseppina. Anarquismo... op. cit. e MAGNANI, Silvia Lang. O
movimento... op. cit..
102
TOLEDO, Edilene. Travessias... op. cit., p. 51.
67
A EMERGNCIA DO ANARCO-SINDICALISMO SINDICALISMO E
ANARQUISMO
A eleio do mtodo do sindicalismo revolucionrio (sindicatos autnomos,
mas interligados, de trabalhadores com diversas opinies polticas e religiosas, cuja
ao direta por conquistas pontuais e imediatas constituiria uma ginstica at sua
confluncia no grande momento da greve geral revolucionria) por parte dos
anarquistas no ocorreu sem resistncias dos seus prprios companheiros de
orientao. Considera-se que o j referido embate entre Errico Malatesta e Pierre
Monatte no Congresso de Amsterd de 1907, seja um de seus principais episdios das
divergncias internas do anarquismo acerca da validade dos sindicatos como
instrumentos de luta.
Entre os militantes libertrios no Brasil, como j apontou Seixas, no houve
essa ruptura de modo to brusco como, por exemplo, se deu na Argentina
103
.
Curiosamente, os escritos de Malatesta, como veremos, foram reivindicados no Brasil
tanto por anarquistas adeptos do sindicalismo quanto por seus crticos, de modo que
era, se no a principal, uma das mais constantes referncias nas publicaes
anarquistas brasileiras. Dada sua recorrncia na argumentao de anarquistas puros e
sindicalistas, vejamos em que termos o autor se posicionou frente ao sindicalismo
francs.
No prefcio do relatrio do Congresso Anarquista de Amsterd, publicado no
Les Temps Noveaux, Malatesta
104
expe o debate e os seus argumentos contrrios ao
sindicalismo da C.G.T. francesa e sua supervalorizao da funo do sindicato.
Lembrando que sempre defendeu a proximidade dos anarquistas com o movimento
operrio, no o engajamento apenas entre anarquistas, ponderou sobre os perigos da
luta por conquistas imediatas se reduzirem a um reformismo corporativista:
No peo que os sindicatos adotem um programa
anarquista e que sejam compostos s por anarquistas: neste
caso, eles seriam inteis, porque seriam a repetio dos
agrupamentos anarquistas, e no mais teriam a qualidade que
os torna caros aos anarquistas, ou seja, a de ser um campo de
103
Quanto ao caso argentino referido, a ciso estabelecida na dcada de 1900 entre anarquistas puros,
cuja principal referncia era o pensamento de Kropotkin, e os anarco-sindicalistas, ver SURIANO, Juan.
La interpelacin anarquista. Anarquistas: cultura y poltica libertaria en Buenos Aires (1890-1910).
Buenos Aires: Manantial, 2001, p. 75-106.
104
MALATESTA, Errico. O Congresso de Amsterd Prefcio do Congresso Anarquista. Les Temps
Nouveaux, Paris, 5 out. 1907 In: MALATESTA, Errico. Escritos.. op. cit...
68
propaganda hoje, e um meio, amanh; a de conduzir a massa
rua e faz-la assumir o controle da posse das riquezas e da
organizao da produo para a coletividade. Desejo
sindicatos amplamente abertos a todos os trabalhadores que
comecem a sentir a necessidade de se unirem com seus
camaradas para lutar contra os patres; todavia, tambm
conheo todos os perigos que representam para o futuro,
agrupamentos feitos com o objetivo de defender na sociedade
atual interesses particulares, e peo que os anarquistas, que
esto nos sindicatos, dem-se por misso salvaguardar o
futuro, lutando contra a tendncia natural desses
agrupamentos de se tornarem corporaes fechadas, em
antagonismo com outros proletrios, ainda mais do que com os
patres.
O principal problema do sindicalismo revolucionrio, segundo Malatesta, a
crena na mobilizao tendencionalmente natural das massas
105
. Ao contrrio da idia
costumeiramente conferida ao anarquismo, Malatesta no acredita em espontanesmo
sem um intenso trabalho de propaganda e mobilizao
106
. Seria preciso que o
movimento operrio definisse os fins que desejava alcanar para conduzir uma
mobilizao que no casse em corporativismos, cujas melhorias imediatas para
determinadas categorias mais dividiriam os trabalhadores do que estimulariam a
solidariedade entre eles, resultando na submisso dos sindicatos aos interesses de
grupos poltico-eleitorais, como se passava nos pases anglo-saxes:
A causa do mal-entendido [da defesa do sindicalismo
como mtodo auto-suficiente] talvez possa ser encontrada na
crena, segundo minha opinio, errnea, ainda que geralmente
aceita, segundo a qual os interesses dos operrios so
solidrios, e que, conseqentemente, basta que os operrios
ponham-se a defender seus interesses e a perseguir a melhoria
de suas condies para que sejam, naturalmente, levados a
defender os interesses de todo o proletariado contra o
patronato.
A verdade , segundo meu ponto de vista, bem
diferente. Os operrios suportam, como todo mundo, a lei de
antagonismo geral, que deriva do regime da propriedade
individual; eis porque os agrupamentos de interesses, sempre
revolucionrios, no incio, enquanto so fracos e necessitam
105
Neno Vasco, sobre quem voltaremos a tratar a seguir, militante portugus que desempenhou importante
funo em Portugal e no Brasil na difuso do anarquismo e do sindicalismo revolucionrio, creditava o
equvoco do automatismo revolucionrio, com conseqncias desastrosas aos ideais anarquistas, a
interpretaes respaldadas em alguns escritos de Bakunin na Associao Internacional dos
Trabalhadores. VASCO, Neno. Concepo anarquista do sindicalismo. Porto: Edies Afrontamento,
1984. (1 edio: Lisboa: Editorial de A Batalha, 1923).
106
TRAGTENBERG, Maurcio. Malatesta e sua concepo voluntarista de anarquismo. Verve, So Paulo,
PUC-SP, n. 4, p. 195-227, out. 2003.
69
da solidariedade dos outros, tornam-se conservadores e
exclusivistas quando adquirem fora, e, com a fora, a
conscincia de seus interesses particulares. A histria do
trade-unionismo ingls e americano est a para mostrar a
maneira como se produziu essa degenerescncia do movimento
operrio, quando ele se limita defesa dos interesses atuais.
somente com vistas a uma transformao completa
da sociedade que o operrio pode se sentir solidrio com o
operrio, o oprimido solidrio com o oprimido; e papel dos
anarquistas manter ardente, por muito tempo, o fogo do ideal,
procurando orientar, tanto quanto possvel, todo o movimento
para as conquistas do futuro, para a revoluo, inclusive, se
preciso for, em detrimento das pequenas vantagens que pode
hoje obter qualquer frao da classe operria, e que,
frequentemente, s so obtidas s expensas de outros
trabalhadores e do pblico consumidor.
107
A funo do anarquismo deveria, portanto, ser um elemento transformador do
carter tendencialmente reformista do movimento operrio para torn-lo
revolucionrio. Isso poderia levar at mesmo a confrontos entre os militantes
anarquistas e os demais associados em um sindicato, mas essa deveria ser a tarefa de
um verdadeiro revolucionrio. Deste modo, a posio fundamental de Malatesta em
relao ao sindicalismo : o sindicalismo um meio, importante, mas longe de ser um
fim em si mesmo. Depender da ao anarquista torn-lo um meio eficiente:
Numa palavra, o sindicato operrio , por natureza,
reformista, no revolucionrio. O esprito revolucionrio deve
ser-lhe levado, desenvolvido e mantido pelo trabalho constante
dos revolucionrios que agem fora e dentro do sindicato, mas
ele no pode provir de prtica natural e normal. Ao contrrio,
os interesses atuais e imediatos dos operrios associados, que
o sindicato tem por misso defender, esto, com muita
freqncia, em contradio com as aspiraes ideais e futuras.
O sindicato s pode fazer ao revolucionria se estiver
impregnado do esprito de sacrifcio, medida que o ideal
esteja situado acima dos interesses, quer dizer, somente na
medida em que cesse de ser sindicato econmico para se
tornar grupo poltico fundado sobre um ideal, o que
impossvel nas grandes organizaes que necessitam, para
agir, do consentimento das massas, sempre mais ou menos
egostas, medrosas e lentas.
108
Os escritos de Malatesta sero bem recebidos no Brasil pelos anarquistas
puros, que se mantinham cticos quanto prtica sindical. Ainda assim, procuravam
107
MALATESTA, Errico. O Congresso op. cit.
108
MALATESTA, Errico. Sindicalismo e anarquismo. Umanit Nuova. Milo, 6 abr. 1922 In:
MALATESTA, Errico. Escritos... op. cit.
70
estar prximos tambm aos trabalhadores e estimular uma ao insurgente e
revolucionria. Para tanto, iam s portas de fbricas, organizavam piquetes,
discursavam e distribuam suas publicaes a fim de conquistar adeptos para o
anarquismo, cuja propaganda se promovia, no nos sindicatos, mas em outras formas
de organizao, sobretudo as de carter cultural (centros de estudos e propaganda,
grupos de teatro, escolas, etc.). Em muitos momentos, contudo, apoiaram as greves
parciais, generalizadas e gerais, mas mantinham uma desconfiana na prtica sindical,
pois nela se reproduziriam hierarquias, aristocracias operrias e posies de mando
incompatveis com os ideais anarquistas
109
.
Contudo, muitos anarquistas no Brasil, impulsionados pela idia em prtica em
outros pontos do mundo a partir da Frana, entendiam que o sindicato assumia uma
funo cada vez mais central para se efetivar a mobilizao operria. Eles viam no
sindicalismo politicamente-neutro, mas auto-declarado revolucionrio, uma estratgia
fundamental para a pedagogia revolucionria na construo da coeso da classe
operria. A opo estratgica pela neutralidade poltica nos sindicatos objetivava
tambm tentar reconstruir os esforos de se retomar as tentativas de unio dos
trabalhadores, levando em conta a interpretao de que ela tinha sofrido um duro golpe
com as disputas entre os grupos de Marx e de Bakunin que levaram dissoluo da
Associao Internacional dos Trabalhadores.
Esse esforo seria vo e produziria efeitos contrrios, aos olhos de anarquistas
puros, crticos da estratgia sindicalista, do sindicato politicamente neutro a
estimular o exerccio revolucionrio atravs, tambm, das greves parciais. Exemplar
dessa oposio o artigo escrito por Acratibis no jornal paulista La Barricata, logo
aps a realizao no Rio de Janeiro do II Congresso Operrio Brasileiro, que ratificaria
em 1913 as resolues do primeiro. Endossando os temores de Malatesta sobre os
perigos de o sindicalismo (o ideal da gente prtica) produzir e reproduzir valores e
prticas autoritrias, reformistas, corporativistas e anti-revolucionrias contrrias s
aspiraes e princpios do anarquismo (o ideal dos utopistas):
Eu no hesito em afirmar (...) que o sindicalismo nada
tem de comum com o anarquismo, ou melhor, tem de mais: o
carter efetivo de ao do sindicalismo uma negao do
anarquismo.
109
ROMANI, Carlo. Oreste Ristori: uma aventura anrquica. So Paulo: Annablume/Fapesp, 2002, p.
172-176.
71
Ideologicamente o sindicalismo almeja a constituio,
no campo do trabalho, de uma casta predominante de
proletrios organizados. Isto , aspira constituio de uma
aristocracia de classe (...) dominao do sindicato (...).
O fato de haver se declarado partidrio da ao direta
e dos mtodos violentos de conquista, no implica de forma
alguma que o sindicalismo conceba a revoluo em um sentido
anarquista ou social. (...)
Na prtica, o sindicalismo luta para melhorar o regime
do trabalho assalariado. Como melhorar uma coisa significa
tambm conserv-la, sucede que, como conseqncia lgica, o
sindicalismo trabalha para a consolidao do regime burgus.
O sindicalismo no mais que uma vasta burocracia
fanfarrona e dominadora, bastante faminta de fama e de
comida. O dinheiro, a infame moeda que o anarquismo odeia,
o ideal das suas batalhas. Greves, greves, greves, para fazer
aumentar os salrios (...), para que se conserve at o fim dos
sculos o regime do trabalho assalariado que ns, os loucos da
anarquia, queremos destruir.
(...) Eu vejo o ideal do sindicalismo em todo o seu
esplendor como uma vasta armadilha onde foram colocados os
princpios fundamentais do socialismo e da anarquia para
enjaular o elemento proletrio e lan-lo em seguida
gloriosa conquista do sagrado aumento de dois vintns para o
dia de trabalho.
(...) O sindicalismo quer destruir o privilgio do patro
para estabelecer o prprio. A organizao de classe que deve
terminar ditando a lei. No se trata de demolir todos os
domnios, mas substituir o domnio burgus pelo proletrio. A
sua fora no deve servir para ajudar nenhuma causa
estranha, mas sim impor a sua ditadura, a sua lei. O
sindicalismo no quer libertar a humanidade, mas
simplesmente os sindicalistas.
110
Alm dos sindicalistas errarem ao adotar uma estratgia que serviria
conservao da dominao burguesa de classe e sua reproduo entre os operrios, as
agitaes operrias estimuladas apenas para melhorias salariais tambm seriam inteis
e sem sentido, pois que apenas fariam o operrio arrisca[r] a vida [no confronto com
a polcia] por dois vintns [que seriam,] (...) depois da vitria, (...) embolsados pelo
vendeiro (...) um ladro suave e um bom burgus, no rompendo a lgica da
produo e da circulao capitalista.
Em contrapartida, respondiam os sindicalistas, o importante, sobretudo no
Brasil, naquele momento de ampliao do setor urbano e industrial que o pas
110
ACRATIBIS. Sindacalismo e anarchismo. La Barricata, n. 389, 16 mar. 1913 apud PINHEIRO, Paulo
Srgio e HALL, Michael M. A classe... op. cit. (Vol. I), p. 129-130.
72
experimentava, era organizar os trabalhadores, reuni-los, para poder, inclusive,
introduzi-los no mundo da poltica e tornar mais eficaz a prpria propaganda
anarquista. neste sentido que Rozendo dos Santos parece responder, em 1909, s
crticas ao sindicalismo oriundas especialmente de anarco-comunistas paulistas, como
Oreste Ristori e Luigi (Gigi) Damiani:
A ao do operariado deve, no presente momento, ser
de arregimentao, isto , de preparar o ambiente para a luta,
que j somos obrigados a vir sustentando sem esperanas de
vitria.
A liberdade individual jamais poder ser um fato no
domnio da desigualdade econmica.
Qual o sistema de organizao operria que nos
poder levar conquista de uma situao econmica mais
compatvel com o produtor?
As bases sindicalistas, aconselhadas pelo Primeiro
Congresso Operrio, so as nicas, at aqui, que se afiguram
como promissoras de xito para o operariado. E provas da sua
eficcia j temos observado nos sindicatos existentes no Rio, S.
Paulo e Santos.
111
A resposta de Rozendo dos Santos, num perodo intermedirio entre o primeiro
e o segundo congressos, exemplar da existncia de dvidas e embates que se
seguiram entre os anarquistas durante a dcada que desembocaria nas greves de 1917 a
1920. Os enfrentamentos refletiam questes pertinentes ao melhor modo de propagar
os ideais anarquistas e torn-los hegemnicos nos meios operrios.
No entanto, os anarquistas sindicalistas no se debatiam somente com os
anarquistas puros, que combatiam os sindicatos. As experincias de ao sindical no
Brasil e nos pases influenciados pela CGT francesa comearam a despertar
questionamentos por parte de alguns anarquistas militantes em sindicatos sobre os
moldes das resolues do primeiro Congresso de 1906. A neutralidade poltica dos
sindicatos foi quebrada por uma declarao de princpios da Federao Operria
[Local] de Santos (FOLS)
112
, em junho de 1913, enquanto era organizado o II
Congresso Operrio Brasileiro, que se realizaria trs meses depois:
BASES
111
SANTOS, Rozendo dos. Sem ambages. A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, ano II, n. 19, 30 out.
1909, p. 1. (grifos meus).
112
Sobre a constituio e atuao desta federao, ver GITHAY, Maria Lucia Caira. Ventos do mar:
trabalhadores do porto, movimento operrio e cultura urbana em Santos, 1889-1914. So Paulo:
Editora da UNESP; Santos: Prefeitura Municipal de Santos, 1992, especialmente as pginas 65-74.
Embora apenas em uma das fontes citadas aqui, casualmente, se utilize o termo Local, preferi a sigla
adotada por Githay, para no confundi-la, eventualmente, com a FOSP.
73
A instituio do patronato, do sistema capitalista e as
suas novas organizaes, os trusts, assim como os impostos, as
tarifas, os privilgios de propriedade e de explorao,
constituem a extorso organizada do produto do Trabalho e
dos elementos de produo, privando a humanidade dos
elementos indispensveis subsistncia diria, dos gneros
criados pelas suas prprias energias e faculdades.
O progresso da maquinaria, a especulao, a
substituio do homem no trabalho pelas mulheres e crianas,
a assombrosa concorrncia e desocupao que aumenta por
uma forma alarmante, aboliram o salrio como meio de
subsistncia dos trabalhadores.
Estes fenmenos de desequilbrio econmico
determinam as classes laboriosas a resistir contra esses
fenmenos que as aniquilam pela fome e pela misria.
FINALIDADES
As aspiraes da Federao Operria de Santos tm
por fim a emancipao dos trabalhadores pela transformao
econmica e social, unindo-se ao proletariado universal para
tomar possesso da terra e dos instrumentos de trabalho,
organizar livremente a produo e o consumo, inaugurando a
sociedade dos produtores livres pela supresso do Estado e da
autoridade, e instaurar a nova vida segundo os mais elevados
e cientficos princpios de economia e de sociologia, inspirados
no Comunismo Anarquista.
Santos, junho, 1913.
O COMIT FEDERAL.
113
Na edio anterior de Germinal!, Joo Crispim assinava um artigo intitulado
Sindicalismo de Estado e Sindicalismo Anarquista
114
. Sem citar o caso da FOLS, o
autor defendeu a posio por ela assumida, alertando para os perigos do puro
sindicalismo aos moldes da CGT francesa, pois, tal qual a Internacional onde os
anarquistas tinham sido expulsos por Marx, seguia as pegadas das instituies
reacionrias impondo silncio aos seus componentes (...) resultando ser mais
conservadora do que os partidos democrticos ou liberais. Em contraposio ao
sindicalismo dito revolucionrio da CGT, Crispim relatava outras experincias mais
valiosas, mas menos famosas e repercutidas por no serem francesas, que eram, de
fato, verdadeiramente revolucionrias, como as investidas insurreicionais em Jerez
(Espanha), e as dos camponeses russos e mexicanos. O problema estava, segundo
Crispim, em, por um lado, no serem admitidos debates de idias dentro do sindicato,
por fora da burocracia dos regulamentos, e, por outro, permitirem a criao de uma
113
COMIT FEDERAL DA FEDERAO OPERRIA DE SANTOS. Declarao de princpios.
Germinal! Semanrio anarquista. So Paulo, ano I, n. 14, 22 jun. 1913, p. 2.
114
CRISPIM, Joo. Sindicalismo de Estado e Sindicalismo Anarquista. Germinal Semanrio
Anarquista, So Paulo, ano I, n. 13, 15 jun. 1913, p. 2.
74
aristocracia operria, como observa estar ocorrendo nos Estados Unidos. Por isso,
suspeitava da capacidade revolucionria desse tipo de sindicalismo. Demonstrava-se
completamente ctico, ao considerar que na hiptese de realmente conseguir derrubar
o capitalismo, como diziam seus defensores, tudo o que conseguiria fazer seria
estabelecer um novo governo, novos regulamentos ou leis (...), [um] novo
despotismo, seja ele burgus ou operrio, chame-se como se chame, ou seja, a
reproduo daquilo que os anarquistas combatiam por fomentar e garantir a explorao
humana. Ao contrrio de outros anarquistas que no acreditavam na eficincia da luta
sindical, Crispim defendia a adoo de um sindicalismo de novo tipo, o sindicalismo
anarquista, o nico verdadeiramente revolucionrio, [no qual] o operrio no tem
nada a temer, pois nele estariam garantidas todas as liberdades individuais, afinal
nestes sindicatos no h regulamentos, no h ordens que limitem a integridade
individual. diferena da burocracia do sindicalismo francesa, no se obriga a
estar associado o companheiro que, no se encontrando satisfeito, luta como melhor
entende pela emancipao humana. Aps consolidada a revoluo, no seriam os
sindicatos, interessados somente em defender autoritariamente os privilgios
corporativos dos seus associados, os responsveis pela produo e circulao, porque
estes se fragmentaro em grupos que desempenharo essas funes, constituindo,
para o melhor desempenho, quantas federaes julgarem necessrias, baseando a sua
completa autonomia no livre acordo.
Por outro lado, defendendo o modelo da COB e reivindicando como o melhor a
ser encaminhado pelos anarquistas, vemos que a declarao de princpios da FOLS
levou o anarquista Neno Vasco a reagir, desde Lisboa, tecendo duras crticas contra a
contradio por parte dos dirigentes da Federao de Santos em declararem-se
anarquistas e agirem autoritariamente, pois, a seu ver, tal atitude nada mais do que
um artifcio autoritrio de delegados ou representantes, no a expresso exata duma
convico sincera e refletida dos sindicatos
115
. A neutralidade poltica garantida pelo
I Congresso, ao contrrio, mais anarquista quando recruta os salariados
conscientes desse fim e decididos a essa ao, do que quando alista, sob a bandeira do
comunismo anarquista, os trabalhadores que desse ideal no tm um conhecimento
regular. Assim sendo, respondia sobre qual a atitude dos anarquistas dentro dos
sindicatos politicamente neutros:
115
VASCO, Neno. O anarquismo no Sindicato. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao
Operria Brasileira. Rio de Janeiro, ano VI, n. 38, 1 set. 1913, p. 1.
75
Em primeiro lugar, devem ali conservar quanto
possvel a sua liberdade de ao, evitar os compromissos e os
motivos de suspeita, o mais que possa, visto [no] convir dar
margem s contingncias e circunstncias especiais. Assim
colocados, o seu papel o de uma minoria atuante e
propulsora: favorecer com todas as suas foras a tendncia
socialista, anarquista e revolucionria do movimento
econmico operrio e as formas de ao e organizao que a
promovem; acompanhar ardentemente o operariado nas suas
reivindicaes, procurando alarg-las; apontar-lhe sempre o
nosso fim e mostrar-lhe infatigavelmente, a necessidade da
revoluo social. Procurar, em suma, que anarquistas sejam,
no os estatutos, mas os operrios, se no nas idias, ao menos
nos atos.
116
Depreende-se da leitura do texto de Neno Vasco que a opo pela neutralidade
poltica oficial do sindicato nada mais era do que uma estratgia para manter unidos os
trabalhadores e desenvolver nas associaes de classe a propaganda anarquista e no
repetir o que se passava no Prata, onde, com a F.O.R. Argentina, renova-se o erro
autoritrio que, conforme luminosamente o mostrou Malatesta, conduziu a velha
Internacional ao estaclo.
interessante notar que ambos os autores, que protagonizariam uma srie de
debates publicados nos jornais A Voz do Trabalhador, da Confederao Operria
Brasileira, e Aurora, da cidade portuguesa do Porto, recorriam em seus textos a
passagens dos escritos de Malatesta para reafirmar suas posies divergentes. Fica
evidente que ambos os grupos objetivavam o anarquismo, no um sindicalismo
fechado em si mesmo. A discusso se prolongaria logo depois no II Congresso
Operrio Brasileiro, realizado entre 8 e 13 de setembro de 1913, no Rio de Janeiro,
oportunidade onde se acirrariam essas posies concernentes apenas ao movimento
anarquista.
Estranhamente, no relatrio sobre o seu histrico enviado ao evento, a FOLS
no apenas no faz qualquer meno sua declarao de princpios como ainda afirma
ser uma Federao genuinamente sindicalista [que] faz propaganda internacional e
tem como prtica a ao direta
117
. difcil avaliar se o advrbio genuinamente e a
expresso propaganda internacional so ou no manifestaes tmidas, irnicas ou
provocativas sobre seu pretendido novo carter ou simplesmente eram aderentes ao
116
Idem, ibidem.
117
Relatrio histrico da Federao Operria Local de Santos ao Segundo Congresso Brasileiro. Santos,
1913 apud PINHEIRO, Paulo Srgio e HALL, Michael M. A classe... op. cit. (Vol. I), p. 141.
76
sindicalismo tal qual entendiam os anarquistas como Neno Vasco. Mas o fato que o
choque de posies entre a neutralidade sindicalista e a adeso declarada ao
anarquismo tomou parte no encontro, gerando uma grande polmica que durou mais de
um dia. Os delegados da FOLS
118
, Joo Crispim e Rafael Serrato Muoz, levantaram a
primeira questo, que daria incio s atividades do encontro, relativa ao tema do carter
poltico do sindicalismo.
Foram apresentadas no encontro, ento, as seguintes questes: A sociedade
operria deve aderir a uma poltica de partido ou conservar a sua neutralidade?
Dever exercer uma ao poltica?
119
; Sendo as aspiraes das organizaes
operrias tendentes transformao econmica e social, quais devem ser os
princpios da nova sociedade: os da propriedade privada e da autoridade ou os do
socialismo anarquista?
120
. A questo foi acompanhada da seguinte proposta de
orientao:
Considerando que a poltica a arte de governar os
povos e que o governo a anttese da liberdade econmica,
social e intelectual dos trabalhadores, este Congresso
aconselha a propaganda do anarquismo nas sociedades
operrias, como meio para alcanar a emancipao dos
trabalhadores. A delegao Operria de Santos.
121
Por outro lado, despertam ateno as explcitas referncias sobre o anarquismo,
feitas por parte de militantes anarquistas, compartilhando dos argumentos do artigo de
Neno Vasco, sobre a necessidade de os sindicatos no adotarem oficialmente nenhuma
corrente poltica, nem mesmo aquela que pblica e notoriamente professavam. A
presena dessas preocupaes se torna ainda mais evidente quando se toma para
anlise, alm da resoluo ratificada, algumas declaraes de voto que a
acompanharam, sob a forma de moo. Dentre as quais, destaca-se a do delegado da
Federao Operria do Rio de Janeiro (FORJ):
Considerando que os princpios anarquistas, como
quaisquer outros princpios polticos ou religiosos, adotados
oficialmente pelo Sindicato, constituem uma imposio aos
trabalhadores de outras idias, de cuja fora necessitamos
118
A proposio da FOLS no III Congresso e os antecedentes atravs de alguns nmeros de Germinal! e A
Voz do Trabalhador, aqui tratados, foram mencionados por GITHAY, Maria Lucia Caira. Ventos... op.
cit., p. 65-74.
119
As resolues do Segundo Congresso. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria
Brasileira, Rio de Janeiro, ano VI, n. 39-40, 1 out. 1913, p. 2.
120
Idem, ibidem.
121
Idem, ibidem.
77
para a conquista das nossas aspiraes, a Federao
Operria do Rio de Janeiro, alheia como a toda e qualquer
poltica especial de partido, pela orientao sindicalista.
Santos Barboza, delegado.
Reivindicando coerncia com os princpios anarquistas, Santos Barboza
122
via
que qualquer posio poltica assumida como oficial por algum sindicato no
passaria de uma imposio de uma direo ou mesmo de uma maioria sobre o conjunto
dos trabalhadores. O anarquismo deveria ser aceito, no imposto, pois do contrrio,
no seria anarquismo. A mesa dirigente que presidiu os trabalhos dessas sesses,
composta pelos anarquistas Edgard Leuenroth, Astrojildo Pereira, Jos Romero,
Ceclio Vilar (pseudnimo de Orlando Martins) e Myer Feldman, certamente
compartilhava a idia de ser o sindicato um instrumento para sua propaganda,
garantida atravs da ampla liberdade de ao individual aos seus associados, como
disse o delegado da Associao dos Empregados Barbeiros e Cabelereiros, do Rio de
Janeiro, Manuel Fernandes. Mas, para tanto, o sindicato no poderia assumir-se
declaradamente como anarquista, pois isto poderia ter efeito contrrio, e afastar os
trabalhadores das organizaes. Seguindo essa lgica, votou J. Arias de Castro,
delegado da Sociedade de Resistncia dos Trabalhadores em Trapiches e Cafs, do Rio
de Janeiro:
O Sindicato deve ser estranho a todos os credos
polticos, religiosos e filosficos, pois so os seus fins a
organizao de todos os proletrios, podendo, por isso, fazer
parte do mesmo os indivduos de todas as crenas,
encontrando no seu seio uma ampla liberdade de ao todos os
camaradas libertrios.
No segundo dia, enfim, a proposta dos santistas acabava sendo rejeitada e a
assemblia decidiu pela ratificao das resolues de 1906 com o objetivo de repelir
a influncia dissolvente da poltica sobre os trabalhadores. Fica clara a idia de que
o sindicalismo livre de uma posio poltica declarada foi considerado como a melhor
estratgia para fazer e manter os trabalhadores organizados, pois, do contrrio, pela
diversidade de opinies polticas, religiosas e sociais (entendo-se a tambm o
preconceito ao anarquismo), tendem unicamente a desviar os trabalhadores do seu
movimento de resistncia e de reivindicao social, desvio esse que pode ser
122
A partir de 1914, Santos Barboza se dirigiria cidade gacha de Pelotas. De l, continuaria a colaborar
com as publicaes do Rio de Janeiro, em A Voz do Trabalhador, noticiando as lutas operrias da cidade
e da regio, e na revista anarquista A Vida, preparando um histrico do movimento libertrio de Pelotas,
a ser apresentado pela delegao brasileira no Congresso Anarquista de Londres, que no se realizaria
em funo da ecloso da I Guerra Mundial.
78
interpretado como falta de interesse e abandono das lutas reivindicatrias e
organizao operria, afinal, a seu ver, era a garantia e conquista dos seus direitos
econmicos que ligam estreitamente os trabalhadores, divididos pelas suas opinies
polticas, religiosas ou sociais. Por isso, a deciso era a de que a Confederao
deveria aconselhar seus afiliados a se manter inteiramente no terreno da ao direta
de presso e resistncia contra o capitalismo.
A votao pela neutralidade poltica no implicaria a ausncia da propaganda
anarquista dentro dos sindicatos. Pelo menos no formalmente. E se isso no estava
claro nas resolues do I Congresso, a primeira resoluo do segundo veio
acompanhada de uma moo complementar apresentada por Jos Borobio, que parecia,
pelo menos em parte, conciliar as posies e amenizar as reclamaes dos delegados
da FOLS sobre o impedimento da propaganda poltica dentro dos sindicatos:Tendo
em conta que da discusso dentro da mais ampla liberdade surge, com mais
facilidade, o critrio lgico e exato, o Segundo Congresso Operrio Brasileiro
aconselha todas as sociedades operrias a permitirem em seu seio uma ampla
exposio e discusso de todas as idias
123
.
Cabia aos anarquistas ocupar o espao que em boa medida existia antes, mas
que agora era oficializado, ainda que a Confederao no tivesse poderes para
permitir ou impedir qualquer coisa.
Mas a confirmao das teses do II Congresso e o debate praticamente interno
dos anarquistas nos leva a pensar em um ascenso anarquista no interior da COB e em
parte de suas federaes filiadas. Apesar de considerarem que a institucionalizao de
uma corrente poltica em uma associao operria traria mais prejuzos do que
benefcios propaganda anarquista, o debate em torno dessa resoluo no Congresso
se deu quase que exclusivamente entre os anarquistas. Percebe-se na ratificao das
resolues sindicalistas do primeiro congresso dois aspectos de um mesmo fenmeno:
a forte presena anarquista em detrimento de outras correntes em entidades como a
COB; o acirramento das rivalidades entre anarquistas e outras tendncias,
principalmente aquelas que teriam vnculos com governos e classe dominante. As
resolues do II Congresso seriam, portanto, uma manifestao do processo de
123
As resolues do Segundo Congresso. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria
Brasileira, Rio de Janeiro, ano VI, n. 39-40, 1 out. 1913, p. 3. Em nenhum dos documentos consultados
h referncia sobre qual associao Borbio representava no II Congresso, no entanto, no ano seguinte
seria secretrio-geral da Federao Operria do Rio de Janeiro.
79
instrumentalizao da estratgia sindicalista por parte dos anarquistas, processo esse
iniciado em 1906 e que estava ainda em curso e se mantinha indefinido. Nos resta
pensar como se deu esse processo, e como os anarco-sindicalistas efetivaram essa
instrumentalizao do sindicalismo.
A INSTRUMENTALIZAO DO SINDICALISMO PELOS ANARQUISTAS
A confirmao da neutralidade poltica e religiosa oficial mostra ainda que os
anarco-sindicalistas tinham conscincia de que a simples revelao de seus princpios
no iria torn-los aceitos de uma hora para outra pelos trabalhadores
124
, acostumados,
pela dinmica da dominao, a compartilhar valores da classe dominante, ainda que
estes fossem, muitas vezes, redimensionados.
Abrir a possibilidade dos sindicatos assumirem uma orientao poltica
significaria, em 1913, um duplo perigo: alm da desagregao dos trabalhadores,
tambm correr o risco de alcanar apenas objetivos contrrios, como avaliava
Demtrio Minhana (Miana), delegado do Sindicato dos Operrios em Ladrilhos e
Mosaicos, do Rio de Janeiro: (...) a poltica, por um lado, a arte de enganar e, por
outro, leva a desagregar os operrios que devem lutar unidos pela sua emancipao,
de forma alguma deve aceitar-se no Sindicato uma qualquer poltica de partido. Seu
voto reflete a percepo dos anarquistas: entendendo aqui a poltica enquanto poltica-
eleitoral, a sentena a poltica a arte de enganar serve aos propsitos de
neutralizar as tentativas de avano dos adversrios eleitoreiros no movimento
operrio no incio da dcada de 1910 e positivar uma concepo que prime pela ao
direta.
124
Em relato prestado em 1983, a anarquista Elvira Boni avaliava as dificuldades impostas difuso do
anarquismo, por tornar o atesmo (ainda que, mais exatamente, fosse o anticlericalismo) uma de suas
bandeiras principais e pela falta de tato de muitos militantes em tratar com a religiosidade dos operrios,
especialmente entre as mulheres: [Pergunta] O atesmo dos anarquistas dificultava a propaganda do
movimento.[?] [Elvira Boni:] Dificultava. Muitas vezes, nos sindicatos, os operrios diziam que nem
em casa podiam fazer uma propaganda intensa, porque as mulheres no se conformavam com a falta de
religio. Eles diziam: Temos um grande inimigo que so as mulheres. Porque elas ouvem aquilo que a
gente fala, e depois vo se confessar e contam ao padre o que a gente diz, o que a gente faz. E eu tive
muita oportunidade de dizer: No so as mulheres que so inimigas de vocs. Vocs que no sabem
captar a simpatia das mulheres. Porque a religio a ltima coisa que se tira de uma mulher. Vocs
querem tirar em primeiro lugar, vocs que esto errados. O prprio Otvio Brando, quando via
uma procisso, gritava do bonde: Olha a carneirada!. Isso era uma ofensa, no se devia dizer isso.
Embora o padre diga: Venham a mim as minhas ovelhas, ningum quer ser chamado de carneiro.
(Depoimento de Elvira Boni em GOMES, ngela de Castro; FLAKSMAN, Dora Rocha e STOTZ,
Eduardo. Velhos militantes: depoimentos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1988, p. 38).
80
Portanto, a ratificao da neutralidade poltica e religiosa dos sindicatos, ao
mesmo tempo que servia de escudo, servia tambm de contra-ataque. Insurgiam-se
contra os sindicalistas que gostariam de institucionalizar as organizaes sindicais,
fazendo-as de apndices para os seus partidos polticos, apelando para os princpios
comuns, estabelecidos conjuntamente atravs da neutralidade. Isso tenderia a reverter
em benefcio prprio, ao diferenciar o verdadeiro sindicalismo das prticas
politiqueiras dos outros.
Os anarquistas sempre recusaram a idia de representao poltica, seja no
parlamento ou fora dele. Nos sindicatos procuravam organizar o comando de modo
que evitassem a sua burocratizao e a criao de uma casta de dirigentes
profissionais, atravs de medidas que garantissem uma rotatividade freqente dos
cargos de direo (sempre no remunerados) e a inexistncia da figura de um
presidente. Tudo isso em nome da autonomia e liberdade individual, para que no
sofressem com qualquer forma de autoritarismo, sobretudo obrigando qualquer
trabalhador a estar submetido s diretrizes de algum partido poltico.
Como vimos, entre os anarquistas havia a idia de que os trabalhadores
deveriam ser convencidos a aderir ao anarquismo, jamais obrigados, o que, alm de
afastar os trabalhadores das suas associaes de resistncia, era uma violncia
autoritria, contrria aos seus princpios. Claro estava que impossvel tornar todos os
trabalhadores do mundo anarquistas para se derrubar o capitalismo. O importante era
constituir um grupo que tomasse a frente em um movimento insurrecional que tivesse
uma base forte o suficiente para promover uma revoluo. Era preciso, contudo,
trabalho de intensa propaganda para constituir esse grupo e preparar suas bases de
sustentao no momento do confronto. Evidentemente, haveria resistncia e estratgias
precisavam ser definidas. A ao direta era o meio, e para muitos brasileiros, o
sindicato era a principal associao capaz de aglutinar trabalhadores e exercitar a
solidariedade revolucionria at o grande e decisivo momento.
Ao mesmo tempo, no entanto, apesar de eles considerarem que o confronto de
idias devesse sempre prevalecer, pois ningum detinha o monoplio da razo e da
verdade (como os padres presumiam ter, e por isso deviam ser combatidos), evidente
que os anarquistas consideravam que suas idias deveriam predominar. O seu
movimento estratgico, apresentado aqui esquematicamente, o seguinte: com
objetivos revolucionrios, deveriam desenvolver intensa militncia entre aqueles que
81
acreditavam ser o agente revolucionrio por excelncia, o operariado urbano, classe
social qual pertencia grande parte de seus militantes; para garantir no apenas a
circulao de suas idias entre os trabalhadores, mas tambm sua adeso, os
anarquistas brasileiros desenvolveram intensa militncia para organizar e adentrar nos
sindicatos existentes; uma vez dentro dos sindicatos, era preciso ter condies de
propagar suas idias e sobrep-las s outras; para tanto, elegeram a neutralidade
poltica como o meio para garantir no apenas sua liberdade de ao e de pensamento
dentro das associaes sindicais, mas para evitar que seus oponentes polticos
tomassem o controle das associaes e neutralizassem sua propaganda.
Deste modo, entende-se que a estratgia da neutralidade poltica em evidncia
com o sindicalismo revolucionrio internacional acabou por permitir a entrada dos
anarquistas nas associaes, a fim de que pudessem disputar e almejar conquistar o
monoplio simblico de legtimos porta-vozes da classe operria. Mesmo que os
adeptos do anarquismo formalmente no se assumissem dessa forma, todo grupo
poltico pretende ser legtimo e exclusivo porta-voz de um determinado grupo social,
qualquer que seja sua esfera (categoria de trabalho, nao, classe, raa, etc.). Mas,
queira-se ou no, h especificidades da poltica, sobre as quais o conceito de campo
poltico de Pierre Bourdieu nos ajuda a pensar, no caso, a ao dos anarquistas nos
sindicatos, em seus esforos propagandsticos de conquistar adeses sua utopia. Por
campo, entende-se o lcus onde se desenvolve um conjunto de prticas especficas que
possuem uma dinmica prpria. No campo so produzidas e reproduzidas relaes de
poder e dominao, sobretudo simblicas, mas que so produtos e efeitos tambm, e,
sobretudo, prticas, que determinam hierarquias, silncios, monoplios, exclusividade,
reconhecimento, legitimidade, etc., de ou em um conjunto social qualquer (partido
poltico, burocracia, cincia, arte, Estado, etc.). No caso especfico da poltica, a
seguinte dinmica o que torna o campo poltico um campo particular:
O campo poltico , pois, o lugar de uma concorrncia
pelo poder que se faz por intermdio de uma concorrncia
pelos profanos ou, melhor, pelo monoplio do direito de falar e
de agir em nome de uma parte ou da totalidade dos profanos.
O porta-voz apropria-se no s da palavra do grupo dos
profanos, quer dizer, na maioria dos casos, do seu silncio,
mas tambm da fora desse mesmo grupo, para cuja produo
ele contribui ao prestar-lhe uma palavra reconhecida como
legtima no campo poltico. A fora das idias que prope
mede-se, no como no terreno da cincia, pelo seu valor de
verdade (mesmo que elas devam uma parte de sua fora sua
82
capacidade para convencer que ele detm a verdade), mas sim
pela fora de mobilizao que elas encerram, quer dizer, pela
fora do grupo que as reconhece, nem que seja pelo silncio ou
pela ausncia de desmentido, e que ele pode manifestar
recolhendo as suas vozes ou reunindo-se no espao.
125
No campo poltico, Bourdieu pensa principalmente no partido poltico-eleitoral
como um grupo especializado de polticos profissionais, que procura adquirir e
acumular o capital simblico da representao dos profanos, isto , dos cidados
comuns que no so polticos profissionais e no dominam os mecanismos e
instrumentos, o habitus, do campo poltico. Utilizando a analogia do mistrio do
ministrio, interessa a Bourdieu identificar como se d o processo que faz com que
algumas pessoas possam identificar-se e serem identificadas com o conjunto de
homens, o Povo, os Trabalhadores, etc. ou com uma entidade social, a Nao, o
Estado, a Igreja, o Partido
126
.
A representatividade, portanto, no um dado automaticamente produzido. Um
trabalhador, por exemplo, somente por ser trabalhador, uma vez alado na poltica, no
necessariamente se constitui como um legtimo representante da sua classe de origem.
Sua origem pode ser instrumentalizada por partidos cuja viso de mundo e prticas
correspondem defesa dos interesses da classe dominante a fim de angariar apoio das
classes populares e evitar ou amenizar conflitos. Do mesmo modo, o combate
instrumentalizao ter impacto nulo ou restrito se os profanos, ou parte
considervel deles, acreditarem que o tal trabalhador , de fato, um representante de
sua prpria classe e o apoiarem. No entanto, isso pode mudar de acordo com a
dinmica poltica, na qual interagem mltiplos fatores em constante movimento, dentre
os quais a fora das denncias e dos ataques a ponto de ser revertido o capital
simblico (credibilidade nas denncias e na sua capacidade de fazer crer ser o
verdadeiro representante). Denncias e inverso de capital simblico dependem
tambm, mas no s, da capacidade de verbalizao para processar a identificao de
um mandatrio com o conjunto de mandantes.
Claro est, e isso importante reconhecer, que os anarquistas abominam
qualquer forma de representao, que expressamente repelem a idia de representao
como a almejam todos os partidrios da poltica-parlamentar. Nesse caso, a seu ver, os
chefes dos partidos teriam funo de mando e maior autonomia, contrastante
125
BOURDIEU, Pierre. A representao... op. cit., p. 185.
126
Idem, ibidem, p. 158.
83
disciplina que cabe aos demais filiados, dinmica que faz os partidos serem
considerados autoritrios por ferirem a liberdade individual dos seus integrantes.
certo que na poltica sindical dos anarquistas, especialmente nas federaes e
confederaes, havia representao por delegados. Mas nesse caso, diriam eles, pela
estrutura organizacional proposta (do indivduo para o sindicato, do sindicato para a
federao, da federao para a confederao), estava resguardada a liberdade
individual, princpio fundamental e inalienvel para os que tinham a funo de falar
em nome da sua associao. Mas, ao contrrio do que diziam acontecer com os
partidos, sua opinio era de que ali haveria democracia direta, onde todos os membros
da associao nuclear poderiam participar e eleger seus delegados nas outras
instncias, para defender as posies tiradas ali. E aos que tinham suas propostas
preteridas, de acordo com os princpios anarquistas, a liberdade individual deveria ser
assegurada, sem necessidade de sanes, como explica o anarquista comunista Joo
Crispim: Se no se podem abolir certas deficincias, como, por exemplo, a deciso
das maiorias, porque elas so inevitveis dentro de tal organizao, mas, assim
mesmo, quando a no observncia dessas decises prejudica gravemente as classes,
os componentes dos sindicatos que no as cumprem no sofrem nada por isso
127
.
Mas, ainda assim, os anarquistas trataram de imprimir nos sindicatos a marca
de suas posies, ainda que no pudessem fazer deles um ncleo propriamente
anarquista. A neutralidade poltica, antes de ser uma defesa contra todas as tendncias
polticas no interior do sindicato, era um mecanismo para manter afastada a
instrumentalizao poltico-eleitoral dos sindicatos, e isso, evidentemente, era obra e
interesse dos anarquistas. No seu caso, o sindicato deveria ser local e representante dos
trabalhadores, e seus delegados, os legtimos e nicos porta-vozes, que falariam em
nome dos associados. Se no eram propriamente os anarquistas os porta-vozes da
classe operria, eram os sindicatos, uma instituio permanente, um posto e
instrumento de mobilizao por onde se objetivava o capital poltico e a reproduo
de sua delegao
128
. A representao anarquista, portanto, ainda que abominasse a
representao parlamentar, era a forma encontrada para fazer do sindicato e das
associaes os legtimos porta-vozes, a materializao da classe operria. Para que
os anarquistas se legtimassem, os defensores de outras tendncias deveriam ter seu
127
CRISPIM, Joo. Sindicalismo de Estado e Sindicalismo Anarquista. Germinal! Semanrio
Anarquista, So Paulo, ano I, n. 13, 15 jun. 1913, p. 2.
128
BOURDIEU, Pierre. A representao... op. cit., p. 194.
84
papel reduzido, embora devessem estar muito atentos para no praticar violncias
contra as reais decises dos associados, da classe operria, ainda no consciente do seu
potencial verdadeiramente revolucionrio.
Ocupando papel destacado e militando intensamente dentro dos sindicatos, os
anarquistas deveriam ajudar os trabalhadores a perceber esse potencial. E claro, fazia-
se perceber de acordo com seus padres e em oposio a outros, especialmente os
politiqueiros. Ao dizer aquilo que a classe operria era ou deveria ser e quais os
meios mais adequados de ao, concernentes aos defendidos pelos anarquistas,
combatiam seus opositores e abriam espao para a identificao de seus princpios com
os que deveriam ser os da classe operria.
A representao dos anarquistas na realidade no era direta. Era uma
representao feita atravs do verdadeiro sindicalismo, politicamente neutro,
agregador, sincero e combativo. Todos esses atributos, para adquirir um simbolismo
que parece real, deviam ser dimensionados na comparao contra o falso, politiqueiro,
oportunista e colaboracionista dos outros, especialmente daqueles que davam provas
de estarem vinculados com as esferas do poder, como o grupo de Pinto Machado, no
Rio de Janeiro e o de Francisco Xavier da Costa, no Rio Grande do Sul. A partir da
insistente e implacvel crtica e denncia da falsidade dos atos dos seus oponentes,
procurava-se reforar os atributos do verdadeiro sindicalismo das associaes das
quais os trabalhadores deveriam participar, pois defendiam os seus verdadeiros
interesses, estabelecendo uma conexo quase intrnseca entre a associao e os seus
afiliados.
Embora procurassem diferenciar o movimento e associaes operrias do
movimento e associaes anarquistas, so incontveis e permanentes os exemplos em
que os anarquistas procuraram estabelecer a identificao dos seus ideais com os
interesses dos trabalhadores: o operariado sabe, o operariado organiza-se, o
proletariado organizado do Rio Grande do Sul reafirma seus propsitos libertrios
resolvendo combater todos os partido polticos
129
, etc.
possvel localizar o incio deste processo, em linhas gerais, na vitria das
teses contra as propostas iniciais dos colaboracionistas, no Congresso de 1906. O
carter estratgico do sindicalismo para a ampliao da propaganda anarquista no
129
3 Congresso Operrio. O Syndicalista, Porto Alegre, anoVII, n. 6, Out. 1925, p. 1-2.
85
movimento operrio naquele momento foi manifesto, segundo a avaliao do jornal
anarco-sindicalista A Terra Livre:
O Congresso no foi, de certo, uma vitria do
anarquismo. No o devia ser. A Internacional, desfeita por
causa das lutas de partido no seu seio, deve ser memorvel
lio para todos. Se o Congresso tivesse tomado um carter
libertrio, teria feito obra de partido, no de classe. O nosso
fim no constituir duplicatas dos nossos grupos polticos.
Mas se o Congresso no foi a vitria do anarquismo, foi,
porm, indiretamente til difuso das nossas idias.
130
No importava se as resolues no fossem propriamente anarquistas. Ao
contrrio, elas no s no fariam sentido como poderiam ter efeitos inversos se o
objetivo era contribuir para que a grande maioria constituda por trabalhadores, alheios
a qualquer corrente poltica, tomasse parte de lutas coletivas, e da, haver possibilidade
de se aproximar do anarquismo. De fato, o que se observa em A Voz do Trabalhador,
rgo da Confederao Operria Brasileira, apesar da roupagem da imparcialidade
sindicalista, so os esforos da militncia anarquista em difundir a sua concepo de
sindicalismo, visto como legtimo por ser verdadeiramente revolucionrio, em
contraposio a outras formas de sindicalismo.
Nota-se que apesar da aparente neutralidade, com exceo de alguns poucos
artigos, a redao do peridico ficou a encargo de anarquistas adeptos do sindicalismo.
Logo na apresentao do jornal, no primeiro artigo do primeiro nmero, afirma-se que
para seus fins de conquistar a emancipao dos trabalhadores da tirania e
explorao capitalista (...) como meio prtico, como mtodo de luta, adotar e usar
(...) o sindicalismo revolucionrio
131
. Mas ao lado de notas sobre a necessidade de
manter o respeito ao princpio da pluralidade poltica e religiosa dentro dos sindicatos,
predominam referncias diretas ao anarquismo e seus temas de interesse, com poucas
notas acerca de outras tendncias polticas, ao menos de forma explcita. Existiam, em
contrapartida, referncias de combate a grupos e posies que consideravam contrrias
aos seus fins. Para tanto, disparavam severas crticas a grupos ou indivduos que
procuravam ou detinham alguma influncia sobre o movimento operrio, em particular
aos socialistas e aos colaboracionistas.
130
A Terra Livre, 13 ago. 1906 apud RODRIGUES, Edgar. Socialismo.... op. cit., p. 131.
131
A Voz do Trabalhador. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira. Rio de
Janeiro, ano I, vol. 1, 1 jul. 1908, p. 1.
86
Podemos perceber, ao longo das edies de A Voz do Trabalhador, que a
direo do jornal tratava de assuntos de interesse e propaganda anarquista (inmeros
axiomas de pensadores e militantes libertrios internacionalmente reconhecidos,
chamadas e notcias sobre congressos anarquistas, acusaes contra seus
perseguidores, debates envolvendo a temtica do sindicalismo e do anarquismo), em
contraste com o que se passava com outras tendncias. Sendo apolticos, especialmente
no sentido contrrios poltica eleitoral como defendia o sindicalismo, podiam falar
de sua concepo de sindicalismo com muito mais liberdade do que os das outras
tendncias. Sindicalistas que no eram anarquistas, mas membros da COB, escreviam
a favor da partidarizao. Tinham espao para publicar, mas, quando o faziam,
deveriam esperar respostas na edio seguinte, quando no alguma nota imediatamente
aps seu texto, como o que aconteceu com um artigo de Antonio Cunha. Este
sindicalista, que fazia ressalvas ao direta e recusa em se aceitar representantes no
Parlamento, bem como em aceitar algumas benesses do governo, como casas para
operrios, teve o seguinte comentrio publicado logo aps o seu texto:
N. da R. Dando publicidade a este artigo do
camarada Cunha, no fazemos mais do que agir de acordo
com as deliberaes do Segundo Congresso Operrio
Brasileiro, que aconselham a mais franca exposio de idias
tanto dentro dos sindicatos como nas colunas dos jornais
operrios. Pela orientao a que sempre obedeceu A Voz, no
ser difcil verificar que estamos em completo desacordo com
os argumentos apresentados pelo companheiro Cunha, que
sero refutados no prximo nmero.
132
certo que seu texto foi publicado e que poderia contra-responder. Mas textos
como os seus no eram recorrentes, e no conjunto de textos em contrrio, mostra-se
que os anarquistas conseguiram conquistar uma certa hegemonia na COB daqueles
anos.
Em relao aos socialistas, por exemplo, criticaram, utilizando por vezes
linguajar chulo e spero, um artigo do jornal de italianos socialistas de So Paulo, o
Avanti!, onde constaria a opinio de que o bom senso do proletariado o teria afastado
das fileiras revolucionrias
133
. Ainda em relao aos socialistas, foram duros e
acusaram Evaristo de Moraes de tentar cingir o operariado, ao ter feito com que Errico
132
Nota da Redao ao artigo A poltica e o sindicalismo. A Voz do Trabalhador rgo da
Confederao Operria Brasileira, Rio de Janeiro, ano VII, n. 46, 1 jan. 1914, p. 3.
133
Notas de polmica. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira. Rio de
Janeiro, ano I, vol. 4, 15 ago. 1908, p. 1.
87
Ferri cometesse um grande equvoco em uma conferncia, lamentando que no Rio
houvesse apenas uma sociedade operria, sem mencionar a existncia da
Confederao Operria Brasileira e de todos os seus sindicatos afiliados
134
. E em nota
vinda do Rio Grande do Sul, congratulavam-se com a Federao Operria do Rio
Grande do Sul pela obra criteriosa que estava a desenvolver h mais de um ano,
aps ter sido arrancada das mos dos socialisteiros
135
.
De modo ainda mais cido, com ironia e ridicularizao, os redatores de A Voz
do Trabalhador teciam seus ataques aos colaboracionistas e outros reformistas, em
especial s prticas que tinham frente Mariano Garcia, Antonio Pinto Machado,
Melchior Pereira Cardoso e Hermes de Olinda. Em um deles, acusava-os de terem
impedido a participao de alguns membros da Confederao Operria Brasileira,
dentre os quais, Carlos Dias, em uma sesso de fundao de um partido socialista, sob
o pretexto de serem conhecidos agitadores anarquistas. No se contestava o fato de
Carlos Dias ser anarquista, mas reclamava-se a falta de tolerncia e o oportunismo
burloso de se formar mais um partido voltado para os operrios
136
.
O avano da publicao de textos que tinham a temtica anarquista em A Voz
do Trabalhador se d no momento em que se acirram as rivalidades com o grupo
colaboracionista no Rio de Janeiro no interior da COB, o mesmo se dando na FORGS
(os anarquistas avanando na medida em que Xavier da Costa ingressava no PRR). Os
grupos anarquistas avanam nas associaes plurais e politicamente neutras, e esse
avano se d em nome da neutralidade, no papel de fiscais que zelavam contra aqueles
que estavam a promover a institucionalizao das associaes de todos os
trabalhadores.
O 4 Congresso Operrio
137
de 1912 era um indicativo do acirramento das
disputas e do avano dos anarquistas em nome da liberdade poltica (garantida somente
134
Mais lealdade! A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira. Rio de Janeiro,
ano I, n. 7, 6 dez. 1908, p. 1.
135
Pelo mundo proletrio Brasil Rio Grande do Sul Porto Alegre. A Voz do Trabalhador rgo da
Confederao Operria Brasileira. Rio de Janeiro, ano VI, n. 24 , 1 fev. 1913, p. 3.
136
Posies definidas; Mais um partido socialista! A Voz do Trabalhador. Rio de Janeiro, ano I, n. 5, 22
nov. 1908, p. 1 e p. 3.
137
Seus organizadores provavelmente devem ter contado, alm do primeiro congresso de 1906, o
Congresso Socialista de 1902, que resultaria na formao do malfadado Partido Socialista Brasileiro,
e/ou um dos dois congressos socialistas realizados em mbito estadual em So Paulo (1907) e outro no
Rio Grande do Sul (1897). Esta contagem segue RODRIGUES, Edgar. Alvorada operria. Rio de
Janeiro: Mundo Livre, 1979, p. 189-190 (nota de p de pgina). (As datas divergem: o autor diz que o
Congresso Socialista teria ocorrido em 1901, o de So Paulo em 1907-1908 e o do Rio Grande do Sul
em 1898).
88
atravs da neutralidade). O evento foi organizado a pedido e patrocnio do 1 tenente e
deputado Mrio Hermes, filho do ento presidente, marechal Hermes da Fonseca,
tendo frente Antonio Pinto Machado, com a colaborao de Mariano Garcia, os
mesmos que, com outros, organizaram o I Congresso Operrio. Tendo lugar no Palcio
Monroe, sede do Senado Federal, com as despesas dos participantes pagas com verbas
governamentais, as intenes colaboracionistas eram claras. O tom bajulador em
relao a polticos, especialmente ao benemrito do evento, que recebeu papel
destacado na publicao das concluses do encontro
138
, revelador quanto tentativa
de controlar o movimento sindical. Logo na primeira tese aprovada (Organizao do
Proletariado), fica estabelecida a criao de uma nova Confederao, a Confederao
Brasileira do Trabalho (CBT). Embora constasse que era impossvel saber qual a
verdadeira teoria seria melhor para os interesses do proletariado, a tese era taxativa
quanto defesa da criao de um partido operrio nacional, que seria o nico meio
vivel para se efetivar apenas algumas melhorias das condies econmicas,
sociais, morais e intelectuais dos operrios. Quanto ao direta, bonita na teoria,
mas na prtica falha e aos anarquistas, o relato do congresso foi implacvel. Durante
todo o documento em que se relata o desenvolvimento das atividades, os congressistas
despejaram expresses enraivecidas e/ou irnicas contra os anarquistas, principalmente
contra os delegados da Federao Operria do Rio Grande do Sul (Djalma Fetterman,
Antnio Cariboni e Narciso Berlese), por protestarem e denunciarem desde o incio os
objetivos do encontro, criando um clima de tumulto e inconvenincia para os
organizadores.
Este Congresso receberia dos anarquistas o sintomtico nome de Congresso
Pelego ou Congresso Amarelo. Os anarquistas assim o chamavam, dada a sua
expressa vinculao com o governo federal. Quando atribuam o carter
colaboracionista do evento e do grupo, pretendiam capitalizar o simbolismo de serem
suas associaes e suas estratgias as legitimamente operrias e revolucionrias.
A organizao deste evento, os combates ali travados entre anarquistas e
colaboracionistas e a criao da CBT em contraposio COB so exemplares dos
conflitos polticos em torno da legitimidade da conduo do movimento operrio, que
tiveram nos anarquistas os protagonistas principais. O fracasso da CBT e a ratificao
138
CONFEDERAO BRASILEIRA DO TRABALHO (Partido Poltico). Concluses do 4 Congresso
Operrio Brasileiro, realizado no Palcio Monroe no Rio de Janeiro, de 7 a 15 de Novembro de 1913.
Rio de Janeiro: Tipographia Leuzinger, 1913.
89
das resolues da COB no ano seguinte demonstram no apenas a fragilidade dos
canais capazes de efetivar a relao entre Estado e movimento operrio na Primeira
Repblica, mas tambm demonstram a fora da presena anarquista no movimento
operrio brasileiro no perodo, com seus altos e baixos durante o perodo.
Esse processo que permitiu a presena da militncia anarquista nos meios
operrios no Brasil se deu, portanto, atravs de uma concepo de sindicalismo que
zelava pela neutralidade poltica. Foi em nome dessa neutralidade, identificada com
apartidarismo, que permitiu aos libertrios poder desempenhar a funo de liderana e
combater seus adversrios polticos no interior do movimento operrio, taxando-os de
impostores e oportunistas. O movimento operrio no era anarquista como o eram
muitas de suas lideranas. Mas estas lutaram para que ele no fosse desviado em
definitivo para longe das formas de organizao e mtodos de ao coincidentes com
os princpios libertrios. No entanto, cedo ou tarde, essa opo pelo sindicalismo
apresentaria limites nos intentos de se poder fazer eclodir uma revoluo que tivesse
como objetivos a construo de um novo mundo de acordo com os ideais anarquistas.
O prximo captulo tratar dessa questo: de como se deu a percepo de que o
momento decisivo estava prximo e como organizar e incitar uma mobilizao que
extrapolasse os limites das conquistas mais imediatas.
90
Captulo 2
Do Direito Revoluo
Como vimos no captulo anterior, o grupo anarco-sindicalista, dentre os
anarquistas, foi o grupo que mais aproximao teve com os trabalhadores dos
principais centros urbanos em industrializao do pas durante as duas primeiras
dcadas do sculo XX. Isso foi possvel graas estratgia do sindicalismo
revolucionrio de inspirao francesa, que, atravs da neutralidade poltica no interior
do sindicato, permitiu que os anarco-sindicalistas adentrassem nas associaes
operrias e combatessem, por dentro, outras tendncias polticas atuantes no
movimento operrio e zelassem para que, em nome da congregao de todas as
tendncias polticas, seus mtodos prevalecessem, evitando o aparelhamento eleitoral
de federaes sindicais importantes, como as de So Paulo, Rio de Janeiro e Rio
Grande do Sul, bem como da Confederao Operria Brasileira.
Como estratgia de ganho de posies no movimento operrio, o sindicalismo
revolucionrio francesa proporcionava, assim, uma tripla ao convergente aos
interesses da propaganda anarquista: permitia a presena de todos os trabalhadores,
independente de posio poltica e religiosa, o que inclua tambm os indesejveis,
perseguidos e malditos, no senso comum, militantes libertrios; reunia e estimulava a
solidariedade operria, em que os trabalhadores construssem formas de ao coletiva,
que apesar de sacrifcios individuais, produziam melhorias para a classe; mantinha e
difundia, ainda que muitas vezes reduzida apenas forma de discurso, uma perspectiva
de ao revolucionria.
Embora constitusse um corpo terico prprio, o sindicalismo revolucionrio
foi adotado pelos anarco-sindicalistas apenas como um mtodo de ao para atingir os
seus fins. Isso no quer dizer que no adotassem tambm algumas de suas
particularidades tericas, dentre elas, a mais importante seria o mito poltico da greve
geral revolucionria. Para Georges Sorel, terico do sindicalismo revolucionrio, a
idia de que as greves parciais constitussem uma ginstica revolucionria para o
grande momento de ecloso da revoluo social, funcionava como o elemento
91
propulsor da ao operria e do avano de sua conscientizao da luta de classes e da
superao deste antagonismo.
Contudo, a greve geral revolucionria era um momento final da luta operria
na resistncia contra a explorao capitalista. Antes, os trabalhadores, devido sua
condio de explorados, deveriam se organizar no sindicato e l desenvolver uma
crescente conscientizao que precisaria ser alastrada aos seus companheiros de
infortnio a ponto de crerem que a classe tinha uma funo histrica a cumprir, e que
ela era a Revoluo Social. As freqentes e contnuas greves econmicas, junto com o
boicote e a sabotagem, assumiam a forma de mtodo por excelncia do processo de
conscientizao, e contribuam tambm no exerccio da ao coletiva e tambm da
violncia, necessria para a ecloso da insurreio.
No entanto, se essa era a forma genrica do como seria vivel a Revoluo, a
transformao brusca da ordem social precisava ser, ainda que de modo implcito,
justificvel para e pelos trabalhadores. Era preciso, portanto, saber definir o seu
porqu. Por outra parte, cedo ou tarde, era preciso tambm se perguntar o quando
movimentos paredistas localizados ou mesmo gerais poderiam desembocar no grande
momento almejado.
Saber a razo pela qual se luta e quando o momento adequado para o
rompante insurrecional so duas questes fundamentais para qualquer movimento que
se pretenda revolucionrio e que tenha apoio popular. So questes que fazem parte de
uma definio estratgica, e as respostas que se d a elas so determinantes nas
avaliaes, prticas e condutas de cada grupo poltico.
Este captulo pretende apresentar a abordagem anarquista sobre esses pontos,
especialmente a da vertente anarco-sindicalista. Compreender como e para quem
justificavam a revoluo ajudar a pensar as avaliaes dos militantes sobre quando
inici-la. No so questes bvias. Encerravam debates internos que ajudaram a dar
contorno nas formas de organizao anarquista e nos condicionamentos de suas aes,
dentro e fora do movimento operrio.
REIVINDICAO OPERRIA E DIREITO
Um elemento constante nos textos anarco-sindicalistas o recurso retrico
noo de direito e justia, ligada a uma forte concepo da moral. No se trata da
92
concepo jurdica dos termos, mas de elementos cuja base moral e, em certo sentido
atemporal. De acordo com a tica anarquista, a explorao de uma classe sobre a outra
repousa em elementos econmicos e histricos, certo, mas a necessidade de sua
ruptura envolve tambm fortes condicionantes morais. Na moral anarquista, ou seja,
naquilo que em seu entendimento justo e injusto, direito e violao de direito, a
revoluo seria a redeno desse antagonismo que faz do homem o lobo do homem.
Pode-se localizar no anarquismo elementos que o tornam herdeiro da filosofia
jusnaturalista iluminista, e ao mesmo tempo os que permitem que contra ela se insurja,
ora variando alguns elementos, ora outros, de acordo com cada um dos autores
clssicos do pensamento libertrio. O anarquismo, em suas mais variadas correntes,
concebe a explorao como histrica, e, portanto, antinatural, no apenas porque a
explorao um produto de relaes histricas, que no capitalismo assume a forma da
explorao burguesa sobre o proletariado, mas porque priva o ser humano da sua
liberdade natural. O ser humano, enquanto indivduo cuja natureza o faz ser social,
naturalmente capaz de viver em sociedade sem Estado e governo, violncias criadas
pelo prprio homem, e que atentam contra a sua prpria natureza, a liberdade
individual. Assim, contestam a idia de contrato-social elaborada pelos jusnaturalistas.
Por outro lado, aceitam a idia de que o ser humano possui atributos inatos, dentre os
quais o senso de justia e da defesa da liberdade. Se uma sociedade no se baseia
nesses princpios inatos, porque ela foi desvirtuada, criaram-se instituies, dentre as
quais a principal o Estado, que so antinaturais exatamente por cercear o valor
absoluto liberdade e forjar um senso de justia que garante privilgios apenas a alguns
poucos
139
.
Kropotkin, uma das principais referncias do pensamento anarquista entre as
dcadas finais do sculo XIX e iniciais do XX, talvez seja um dos autores em que se
percebe de modo mais claro essa concepo sobre valores inatos ao ser humano. O
prncipe anarquista russo, em um pequeno texto intitulado A moral anarquista
140
, por
exemplo, considera falsa e absurda a oposio entre os interesses individuais
(egosmo) e os interesses coletivos (altrusmo). Influenciado por Darwin,
139
WOODCOCK, George. Histria das idias e movimentos anarquistas Vol. I, A idia. Porto Alegre:
L&PM, 2002, p. 23-24. Contudo, a idia dos atributos inatos do ser humano estar presente em todo
este volume, especialmente nos captulos em que tratar de Godwin, Proudhone e Kropotkin
(respectivamente, O homem racional, O homem dos paradoxos e O explorador).
140
KROPOTKIN, Pietr. A moral anarquista. In: LEUENROTH, Edgard. Anarquismo: roteiro da
libertao social. Rio de Janeiro: Editora Mundo Livre, 1963, p. 36.
93
explicava a seleo natural das espcies, no atravs da competio, como seria
difundido por alguns darwinianos. Ao contrrio, comparou a espcie humana com
outras espcies animais, e concebeu a idia de que a sobrevivncia e desenvolvimento
da espcie humana foi antes uma combinao dos interesses egosticos com os
altrusticos, na medida, por exemplo, em que todos os que almejavam proteo e
bem-estar para si prprios, viam na ao coletiva a realizao de sua sobrevivncia e
conforto. Se em alguns momentos houve homens que defendiam a idia de competio
e a predominncia do egosmo, porque havia uma falta de inteligncia, de
compreenso. Sempre houve homens limitados: houve sempre imbecis que no
compreendiam que, sendo o seu fim viver uma vida intensa, o indivduo acha a maior
intensidade da vida na maior identificao de si mesmo com todos os que o cercam.
A organizao jurdica, que garantia a inexistncia da igualdade e levava o homem
guerra contra seus pares, estava calcada em um cdigo de moral feito apenas em
proveito de determinada classe, que deveria ser derrubado, atravs de prticas que,
segundo esse cdigo decadente, eram imorais. Esse movimento, por sua vez, constitua
uma moral nova, que deveria ser formulada, como j se podia perceber que estava
sendo construda, a partir do estudo do homem e dos animais. Essa nova moral
coletiva construda a partir de critrios cientficos zelar pela liberdade total do
indivduo, que poder acat-la ou no, em conformidade com a natural comunho
entre o indivduo e a coletividade. As diretrizes da nova sociedade seriam as seguintes:
Se no sentes em ti uma aptido qualquer; se as tuas
foras so apenas suficientes para manteres uma existncia
montona e medocre, sem impresses fortes, sem grandes
gozos, mas tambm sem grandes sofrimentos, ento resigna-te
aos princpios da eqidade. Nas relaes com teus iguais,
encontrars facilmente a maior soma de felicidade a que
aspiras, dadas as tuas foras medocres. Mas, se em ti sentes a
fora da mocidade, se queres gozar a vida plena, exuberante
isto , sentir o maior gozo que um ser vivo pode desejar s
forte, s enrgico, s grande em tudo o que fizeres.
Semeia a vida em volta de ti. Repara que enganar,
mentir, fraudar, envilecer-te, rebaixar-te, reconhecer-te fraco
de antemo, fazer como a escrava do harm, que se sente
inferior ao seu senhor. Procede assim, se te agradar, mas
ento fica desde j sabendo que a Humanidade te considerar
pequeno, mesquinho, fraco e tratar-te- como mereces. No
vendo a tua fora, h de tratar-te como um ser digno de
compaixo, de compaixo somente. Nada esperes da
Humanidade, se tu prprio paralisas assim a tua fora de
ao.
94
S forte; e, quando vires uma iniqidade e a
compreenderes uma iniqidade na vida, uma mentira na
cincia ou um sofrimento imposto por algum ao teu
semelhante revolta-te contra a iniqidade, contra a mentira,
contra a injustia. Luta! A luta a vida, tanto mais intensa
quanto aquela for mais viva. E ento ters vivido, e por
algumas horas dessa vida no dars anos de vegetao e de
podrido no charco.
Luta para que todos vivam essa vida opulenta e
exuberante. E fica certo de que na luta encontrars prazeres
to fortes como em nenhuma outra atividade.
141
Assim, os anarquistas almejavam um novo mundo, assentado sobretudo sobre
uma nova tica, baseada na ampla e irrestrita liberdade individual, condio esta que s
poderia ser dada coletivamente. De acordo com a nova tica sobre a qual se assentaria
a nova sociedade, expressa nessas regras imaginadas por Kropotkin, congregando as
inseparveis liberdade individual e liberdade social, no se pode encontrar quaisquer
traos, nem nele nem em outros pensadores anarquistas, que indiquem que sua
concepo se fundava em uma crena de que o homem bom por natureza. Porm,
havia, a idia de que o destino do homem era recriar perpetuamente o seu ideal em si
mesmo
142
. Essa inevitvel condio humana de eternamente perseguir sua prpria
liberdade torna o ser humano naturalmente apto a viver sem autoridade que o governe,
a no ser o seu prprio interesse e o interesse coletivo. Alis, caberia liberdade
individual, decidir se lhe interessa viver de acordo com as regras da coletividade ou
no, ou seja, se est disposto ou no a oferecer seus mximos esforos para usufruir
dos benefcios advindos dos esforos de todos, colhendo, para tanto, os respectivos
frutos de cada escolha. Isso seria muito diferente da tica da sociedade atual, cuja
organizao consente com a usurpao feita por uma parcela, que no oferece nada, s
custas dos esforos dos demais.
Com variaes tericas mas naturais ou mais histricas de acordo com as
vertentes, essa idia geral sobre a capacidade do ser humano viver e viver,
necessariamente, na coletividade sem a necessidade da autoridade, est presente em
todos os tericos do anarquismo, como tambm compartilham a idia de que ela
precisa ser resgatada, reconstruda atravs de um movimento revolucionrio. Claro est
que a recuperao dessa caracterstica inata no se dava de um momento para o outro,
141
Idem, ibidem.
142
PROUDHON, Joseph Pierre. Systme ds contradictions conomiques, vol. I, p. 372 apud JOLL,
James. Anarquistas e anarquismo. Lisboa : Edies Dom Quixote, 1970, p. 77.
95
era preciso um movimento ao mesmo tempo criador e recuperador da solidariedade e
da liberdade humana. Da a necessidade da cincia, do aprimoramento da razo e da
propaganda libertria, que culminaria no necessrio romper de todas as amarras que
mantinham toda a humanidade presa e impediam o exerccio da grande liberdade
humana, que, destruindo todas as correntes dogmticas, metafsicas, polticas e
jurdicas pelas quais todo mundo se encontra hoje oprimido, devolver a todos,
coletividades tanto quanto indivduos, a plena autonomia de seus movimentos e de seu
desenvolvimento, libertos, de uma vez por todas, de todos os inspetores, diretores e
tutores
143
. Pelo menos entre os anarquistas do sculo XIX e da primeira metade do
sculo XX, praticamente entre todos eles, com pouqussimas excees,
144
existe a idia
de que essa revoluo pela liberdade deveria, necessariamente, ser desencadeada pela
violncia. E essa violncia deveria ser desencadeada por aqueles que nada tm a
perder
145
.
Segundo Bakunin, o potencial realmente revolucionrio, aquele capaz de
destruir o Estado e impor um regime da solidariedade, sem governo, sem sacerdotes e
sem patres, seria desempenhado por uma massa, que inclua no apenas os
trabalhadores do campo e da cidade, mas tambm o lumpemproletariado, to refutado
pelo marxismo. Nas divergncias entre Bakunin e Marx na Associao Internacional
dos Trabalhadores, o anarquista russo declarava sua desconfiana e temor em relao
teoria que conferia somente classe operria a funo de libertar toda a humanidade:
Existe nesse programa [marxista] uma outra
expresso que nos profundamente antiptica, a ns
anarquistas revolucionrios, que desejamos francamente a
completa emancipao popular: o proletariado, o mundo dos
trabalhadores apresentado como classe, no como massa.
Sabeis o que isso significa? Nem mais nem menos que uma
nova aristocracia, a dos operrios das fbricas e das cidades,
excluso dos milhes que constituem o proletariado dos
campos e que, nas previses dos Senhores social-democratas
da Alemanha, tornar-se-o propriamente os sditos em seu
grande Estado pretensamente popular. Classe, Poder, Estado
so trs termos inseparveis, cada um deles supondo
necessariamente os dois outros, e todos juntos se resumem
143
BAKUNIN, Mikhail. redao de La Libert, 5 out. 1872. La Libert, Bruxelas, 1-8 out. 1872
apud Escritos contra Marx : conflitos na Internacional. Braslia: Novos Tempos, 1989, p. 43-44.
144
Tambm Proudhon concebeu, em diversos momentos de sua vida, que haveria a necessidade do uso
da violncia para a revoluo. Sobre suas ressalvas e concordncias, ver WOODCOCK, George.
Histria... op. cit. (Vol. 1), p. 119-164; TRINDADE, Francisco. O essencial Proudhon. So Paulo:
Imaginrio; Nu-Sol; Soma, 2001, p. 61-63.
145
JOLL, James. Anarquistas... op. cit., p. 65.
96
definitivamente por essas palavras: subjugao poltica e
explorao econmica das massas.
146
certo que, em relao aos marxistas do sculo XIX, os anarquistas tinham em
maior considerao a capacidade revolucionria do campesinato, e muitos militantes,
como Malatesta, no s viam nas insurreies camponesas demonstraes dessa
aptido como procuraram organizar levantes em comunidades rurais. De todo o modo,
apesar das divergncias acerca das formas de luta do proletariado e, principalmente, da
crtica ditadura do proletariado, o anarquismo dialogou muito com o marxismo e
incorporou, se no em toda a plenitude, muito do conceito de luta de classes. Em
muitas lideranas, como o prprio Malatesta, por vezes no possvel captar a
diferena entre a massa proletria e a classe operria potencialmente
revolucionria. No proletariado urbano, especialmente entre os operrios fabris, os
anarquistas depositaram as principais esperanas de transformao radical da
humanidade e livr-la de todas as formas de opresso que infligia contra si prpria, at
mesmo ao homem rico, que no propriamente um homem mais livre que um pobre.
O rico, proprietrio, seria assim apenas um homem que vive com mais recursos,
privilgios e confortos, mas que continuaria preso lgica da usurpao, da qual no
era capaz de sair e contribuir para os benefcios da humanidade, a no ser que, sob o
ponto de vista de alguns anarquistas, ele se livrasse, ou melhor, coletivizasse a
propriedade pela qual mantinha a explorao que o supria de suas necessidades
materiais e imaginrias. Contudo, isso no passaria de uma suposio remotssima, e
os privilegiados jamais renunciariam de bom grado seus privilgios, assim como
tambm os governantes no abririam mo de seu poder. Nessa tica, dentre aqueles
que querem se libertar, e ter o direito de viver com o que lhes provm, essa opo
ainda mais reduzida, seno impossvel, dadas as urgncias impostas pela
sobrevivncia. Liberdade / Direito Natural / Trabalho formariam um conjunto
explicativo da realidade, pelo qual se justificaria a necessidade e os meios da
Revoluo que libertaria toda a humanidade, inclusive os proprietrios:
146
BAKUNIN, Mikhail. redao... op. cit., p. 38. Muitos escritos de Bakunin registram tambm sua
percepo sobre as tendncias inatas de alguns povos, no sentido nacional-racial, em especial os
eslavos, de rebelarem-se e possurem um maior potencial revolucionrio. Neste sentido, fazia ainda
uma relao entre seus mtodos revolucionrios com a unidade pan-eslava em contraposio ao
reacionarismo germnico, do qual o autoritarismo que atribua a Marx, agravado pelo fato de ser
judeu, era uma expresso. Ver por exemplo sua Carta aos internacionais de Bolonha, dez. 1871 apud
COELHO, Plnio Augusto (org.). Bakunin por Bakunin Cartas. Braslia: Novos Tempos Editora,
1987, p. 65-89.
97
Eles [os beneficirios dos privilgios atuais]
controlam todos os meios de produo: suprimem, assim, no
somente as possibilidades de aplicar novas formas de vida
social, o direito dos trabalhadores de viverem livremente de
seu trabalho, mas tambm o prprio direito existncia.
Obrigam os no-proprietrios a se deixarem explorar e
oprimir, se no quiserem morrer de fome.
(...) os governos e os burgueses procuram usar a fora
material para sua defesa, no somente contra a expropriao
total, mas contra as mnimas reivindicaes populares, e esto
sempre prontos a recorrer s perseguies mais atrozes e
sangrentos.
Ao povo que quer se emancipar, s resta uma sada:
opor violncia a violncia.
147
Sendo a propriedade um roubo, cabe ao revolucionria restituir o que foi
roubado a quem de direito. Logo, a expropriao da burguesia um ato de justia,
porque a riqueza que ela detm nas suas garras o resultado da explorao do esforo
cotidiano do trabalhador. A terra e os instrumentos de trabalho devem pertencer a
todos e a cada um dos membros da comunidade humana
148
.
Este forte apelo moralizador, do contedo terico/propagandstico anarquista,
tambm esteve, evidentemente, muito presente no material produzido pela militncia
anarquista no Brasil e constituiu o arsenal de vocbulos instigador da mobilizao
operria. So inmeras as referncias nos escritos libertrios dirigidos classe operria
em que a recompensa pelo esforo revolucionrio se apresenta na forma redentora da
terra da Justia, da Verdade e da Moral
149
. S na Anarquia o homem pode
realmente fazer uso de todas as suas habilidades humanas, exercer sua funo criadora,
inventar mquinas que liberem suas energias para que as utilizem em trabalho
verdadeiramente til e nobre, tornando vivel uma constante comunicao de
pensamentos
150
, em uma prova de superioridade da sociedade libertria sobre o
aparente progresso da sociedade burguesa.
dureza e acidez com que os anarquistas falavam da realidade da explorao,
contrapunham o seu ideal de prosperidade e, tanto um quanto outro, estariam
147
Programa anarquista [inicialmente Nosso programa, escrito por um grupo anarquista de italianos
nos Estados Unidos em 1903 e inteiramente aceito pelo congresso da Unione Anarchica Italiana em
1920] In: MALATESTA, Errico. Escritos Revolucionrios. Edio on-line de LCC Publicaes
Eletrnicas, p. 8. (Disponvel on-line em: http://www.culturabrasil.org/zip/malatesta.pdf).
148
Surgindo para o anarquismo. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, 29
jun. 1911, p. 1.
149
PERES, Joo Batista. A Revoluo. A Luta, Porto Alegre, ano, III, n. 44, 1 maio 1909, p. 2-3.
150
MELLA, Ricardo. Em defesa do anarquismo. A Plebe, So Paulo, ano IV, n. 76, 7 ago. 1920, p. 2.
98
fundamentados, segundo eles, na razo cientfica, ao contrrio dos dogmas que
condenavam.
Mas se os anarquistas compuseram sua lgica de ao transformadora e
justificativa revolucionria, por outro lado era preciso faz-las chegar ao proletariado
para que a verdade revelada fosse, pela experincia da explorao, assimilada e
apropriada. Como vimos no captulo anterior, no Brasil, os anarquistas que tiveram
maior xito em efetivar um contato nos meios operrios foram os que aderiram ao
mtodo do sindicalismo revolucionrio. Mas ainda havia muito a trilhar. Os
anarquistas precisavam convencer os trabalhadores de que as justas reivindicaes
imediatas (como o aumento salarial) e a luta por direitos que consideravam legtimos e
naturais (como o descanso semanal e a reduo da jornada de trabalho) deveriam ser
extrapoladas para a luta da verdadeira justia, a fim de fazer valer os seus verdadeiros,
inalienveis e inegociveis direitos que os faziam verdadeiramente livres. E este era
um dilema que, cedo ou tarde, se colocaria para os anarco-sindicalistas: como
desencadear um processo revolucionrio? Se o sindicalismo era um mtodo de luta que
favorecia o processo de conscientizao do potencial revolucionrio dos trabalhadores;
se se desempenhava propaganda permanente, dentro e fora dos sindicatos; e se j se
havia experimentado a possibilidade de no Brasil se difundir a solidariedade operria e
se generalizar greves inicialmente localizadas; quando e como se decidiria sobre o
momento revolucionrio? Quando uma greve geral poderia se tornar revolucionria?
Houve entusiasmo em 1917, e as greves que iniciaram nesse perodo e se
desdobraram at 1920 seriam o panorama para o desenvolvimento dessas questes.
AS GREVES DE 1917
A organizao sindical, expressa na forma em que o sindicalismo
revolucionrio apoiado por anarquistas tomou no Brasil, deve ser entendida tambm
como forma de organizao coletiva para conquista de direitos. Quer dizer, para os que
viam no sindicalismo uma possibilidade de engendrar a revoluo, o movimento
operrio deveria fazer mais do que isso. Contudo, a perspectiva da luta por direitos,
especialmente no que se refere s relaes capital/trabalho, era, na viso dos
sindicalistas, o elemento comum que poderia proporcionar uma primeira unio de
todos os trabalhadores em torno dos sindicatos.
99
Isso no significa, no entanto, que os anarquistas que tomaram parte das
organizaes sindicais lutassem propriamente pelo estabelecimento jurdico desses
direitos. De forma geral, portanto, havia uma dicotomia, por vezes confusa, quanto
concepo de direito entre os anarquistas. De um lado estava a idia combatida do
direito regulado pelo Estado, que s serviria para engendrar a dominao. De outro, o
real direito, o inalienvel, no passvel de codificao, por ser parte integral do ser
humano: em senso amplo, direito vida, dignidade, liberdade. A conquista desses
direitos s se daria atravs da revoluo e sua efetivao, em sua plenitude, s poderia
ser realizada na Anarquia.
Deste modo, colocavam-se intransigentemente contrrios a qualquer forma de
regulamentao jurdica das relaes de trabalho, e isso por pelo menos quatro motivos
conexos. Trs deles, por questo de princpio, antiautoritrios:
A lei sempre, absolutamente sempre, intil ou
tirnica. S se fazem leis em dois casos: para sancionar um
costume j existente ou criar um costume que j existe. No
primeiro caso intil e pode tornar-se violenta, tirnica.
Intil, porque o costume j existe. E pode tornar-se violenta,
tirnica, porque o costume se modifica, se transforma,
evoluciona, no tempo e no espao, e a lei tem um carter fixo e
generalizado.
E ainda tirnica, violenta, se entrava, se perturba, se
constrange a evoluo, no tempo e no espao, do costume que
pretende sancionar. No segundo caso, violenta, tirnica,
porque generalizando-o, um costume que s pode ser aceito
pela fora sempre, e, criado pela fora moral, mas fora
sempre, e, criado que seja o costume, ela, com o seu carter de
fixidez e de generalizao, ou se torna intil, visto a j
existncia do costume, ou outra vez violenta, tirnica, se
embaraa o evolucionar desse novo costume.
151
Alm do que, as leis seriam aplicadas de acordo com o julgamento daqueles
que ocupam cargos de mando nos trs poderes, o que continha um carter altamente
subjetivo, e, portanto, arbitrrio e autoritrio, pois quem tem capacidade de resolver
qualquer coisa favoravelmente tem-nos tambm para resolver contrariamente. Talvez
nesse tipo de raciocnio, se bem que isso no dizia respeito exclusivamente aos
anarquistas, se encontre a razo pela qual nas denncias feitas pelos libertrios era
recorrente a personificao da responsabilidade pela condio de penria do
151
PEREIRA, Astrojildo. O valor das leis e dos tribunais. A Vida Peridico Anarquista. Rio de
Janeiro, ano I, n. 3, 31 jan. 1915, p. 8-9.
100
proletariado e das violncias e arbitrariedades cometidas contra eles e contra o
movimento operrio.
Um quarto motivo pelo qual os anarquistas se portavam contra a instituio de
leis que regulamentassem as relaes de trabalho dizia respeito ao teor de desigualdade
de classe em sua aplicao. Para dar um exemplo, por ocasio do anncio do projeto de
regulamentao do servio domstico, apresentado pelo Chefe de Polcia do Distrito
Federal, segundo o qual os trabalhadores deveriam portar uma carteira de identificao
e uma ficha de bons antecedentes constatada pela polcia, Astrojildo Pereira,
indignado, perguntou: quem atestar o procedimento do patro? Porque tambm no
exigir dos patres uma carteira de identificao e a folha corrida escrita pelos
criados?
152
.
A averso s leis tambm tinha um carter estratgico. Ao perseguir o ideal de
emancipao, consideravam que somente a vigilncia constante e a ao direta dos
trabalhadores poderiam arbitrar aos patres o estabelecimento de indenizaes, salrios
e jornadas de trabalho, enquanto que as conquistas sob a forma de lei apenas
esvaziariam a crescente luta coletiva, posto que, ao conferir ao Estado a funo de
rbitro, se criaria a iluso de que os trabalhadores, por si s, so insuficientes para
defender seus prprios interesses. Deste modo, insurgiam-se contra socialistas e
colaboracionistas que instigavam a eleio de representantes para instituir sob a forma
de leis os direitos dos trabalhadores, denunciando o descalabro que isto representaria,
uma vez que insistir na instituio de leis era ceder instrumentos de luta para os
adversrios, pois que, se concordavam com elas, era para as utilizarem contra os
trabalhadores.
Entretanto, sabiam que garantias constitucionais poderiam ser utilizadas na
defesa dos interesses dos trabalhadores e dos militantes, e delas faziam constante uso.
Deste modo, obviamente, e como no poderia deixar de ser, quando presos recorriam
aos recursos jurdicos e defesa de advogados para livr-los da priso e impetrar
habeas-corpus. Alm disso, denunciavam o que chamavam de hipocrisia do Estado e
do patronato, que combatiam os anarquistas e os excessos violentos do movimento
operrio, sendo que eles prprios no prezavam pelo cumprimento da lei quando ela
garantia direitos aos trabalhadores. Deste modo, o jornal libertrio Guerra Sociale, ao
152
PEREIRA, Astrojildo. Uma monstruosidade que se prepara A regulamentao do servio
domstico. A Vida Peridico Anarquista. Rio de Janeiro, ano I, n. 3, 31 jan. 1915, p. 11.
101
transcrever o editorial de 20 de julho de 1917 do jornal O Combate, perguntou se o
governador de So Paulo e os industriais no eram cnicos ou mentirosos quando
disseram, em meio a negociaes com os grevistas, que no estavam lembrados se
havia realmente uma lei estadual (decreto n. 2141, de 14 de novembro de 1911, que
tinha antecedentes na lei 432, de 1896) que proibia o trabalho noturno de menores de
dezoito anos e para mulheres, alm de lembrar do direito de sindicalizao, lei federal
1637, decreto de 5 de janeiro de 1907
153
. Apesar do Congresso Operrio Brasileiro de
1906 aconselhar os sindicatos a lanar mo de qualquer meio, inclusive os
tribunais
154
, pelos dados que se tem, sabe-se que os anarquistas s recorriam ao
direito em termos jurdicos como reao legtima de defesa contra a ao repressiva
dos agentes do Estado. Isso porque as concepes de Direito e de Justia para os
anarquistas eram algo que no poderia estar circunscrito esfera jurdica e sociedade
capitalista, mas apenas realizvel na Anarquia. Apesar de no estar em sua plenitude,
pois a liberdade era cerceada e estrita e o prprio trabalho era usurpado pelo burgus e
no posto a servio total da humanidade, o operrio tinha o Direito, em um sentido no
apenas moral, mas absoluto, fundamental, tal qual a Justia, de viver condignamente,
de trabalhar oito horas dirias, ter tempo para desenvolver outras habilidades humanas
e receber o reconhecimento por seu trabalho (ainda que sob a forma imperfeita de
salrio como vigorava nesta sociedade), alm de se reunir e se associar. No haveria
instituio que pudesse garantir e efetivar esses valores supremos nesta sociedade.
Eram valores que deveriam ser exercitados e zelados pelos prprios trabalhadores at a
sua efetiva, completa e perfeita realizao. Se direitos menores, que o povo no
conquistou, que foram inventados pela classe dominante e doados s classes
populares, poderiam ser suprimidos, as verdadeiras conquistas populares que
existiam e ainda iriam existir no poderiam ser tocadas, pois o povo saber defend-
las e mant-las
155
.
Deste modo, jogando com o que era favorvel e condenando o que era contrrio
a seus princpios, os anarquistas tentaram disseminar seu ideal e suas concepes
153
Cnicos e mentirosos? Guerra Sociale Periodico libertario di propaganda rivoluzinaria. So Paulo,
ano III, n. 55, 26 jul. 1917, p. 2. (Transcrio do editorial de O Combate. So Paulo, 20 jul. 1917).
154
Tema 9 Que meios empregar para garantir o salrio dos trabalhadores e o pagamento em dia?.
Resolues do 1 Congresso Operrio Brasileiro efetuado nos dias 15, 16, 17, 18, 19 e 20 de abril de
1906 na sede do Centro Galego, Rua da Constituio, 30 e 32, Rio de Janeiro, 1906 apud
PINHEIRO, Paulo Srgio e HALL, Michael M. A classe operria no Brasil: Documentos (1889-
1930) Vol. I O movimento operrio. So Paulo: Alfa-mega, 1979, p. 54.
155
PEREIRA, Astrojildo. Uma monstruosidade que se prepara A regulamentao do servio
domstico. A Vida Peridico Anarquista. Rio de Janeiro, ano I, n. 3, 31 jan. 1915, p. 11.
102
estabelecendo um dilogo conflituoso com os valores institucionalizados na Repblica,
dentre os quais o de justia e direito. Tanto para se defender das acusaes que lhe
eram imputadas de desordeiros e de injustos (uma vez que, nas diversas concepes
conservadora, liberal e positivista, era justo que o patro fosse proprietrio e gozasse
de maior conforto e garantias materiais que seus subordinados), quanto para angariar
adeptos para a proposta de transformao radical da sociedade, eram constantes em
seus discursos polticos os apelos para a justia das reivindicaes, da mobilizao e
at mesmo do grau de violncia que ela poderia atingir. Afinal, era preciso dialogar
com os valores da classe operria, em grande medida partilhados da classe dominante,
e redimension-los para convenc-la, encontrar justificativa e motivao para a prtica
de atos que poderiam parecer, de acordo com a dominao ideolgica, injustos e
condenveis moral e juridicamente.
Se a todos os anarquistas estava dada a tarefa de instigar a populao a lutar
pela Justia e pela Liberdade, aos anarco-sindicalistas, no momento em que aceitaram
adotar a estratgia do sindicalismo revolucionrio, cabia a particular tarefa de fazer a
ponte entre direitos imediatos e os Direitos e Justia do ideal por que lutavam. Deste
modo, os apelos pela justia das reivindicaes por oito horas de trabalho e aumento de
salrio, ou ainda outras de carter mais particular, mas ainda assim freqentes, como
por exemplo contra maus tratos sofridos por mestres e contra-mestres, eram usuais
como fator de motivao dentre os operrios e tambm como defesa contra as
violncias. Procurava-se assim angariar, se possvel, as simpatias tambm de faixas da
populao externas ao operariado, mas o fundamental era fomentar a coeso entre os
trabalhadores, e, muitas vezes, governantes e outras autoridades pblicas chegaram a
reconhecer a legitimidade e justia de movimentos grevistas, evitando o uso da
violncia enquanto eles se mantivessem, ao seu juzo, em carter pacfico e ordeiro.
Evidentemente, apelos moralmente justificadores de aes polticas no eram
recursos utilizados apenas pelos anarquistas, nem mesmo circunscritos ao movimento
operrio. No que se refere aos anarco-sindicalistas, especificamente, fato que
estiveram submergidos nessa prtica sindicalista que reunia uma ampla gama de foras
polticas em nome do que havia de interesses comuns do proletariado, durante todo o
perodo de criao e fortalecimento das organizaes operrias. O problema adviria,
cedo ou tarde, em decidir quando e como se romperia com prticas circunscritas a
reivindicaes imediatas, a fim de eclodir na grande greve geral revolucionria,
103
evitando o desenvolvimento de um eterno corporativismo, como advertiam muitos
outros libertrios. Novas avaliaes nesse sentido seriam feitas a partir do ano de 1917,
tido pela historiografia e pelas memrias dos movimentos operrio e anarquista como
o ano das grandes mobilizaes operrias no Brasil da Primeira Repblica.
Ainda que tivessem se desenvolvido em anos anteriores uma srie de greves
localizadas e generalizadas, com certa amplitude, dentre as quais a greve pelas oito
horas de 1907 em So Paulo, que contaram com ativa participao da militncia
anarquista, a greve paulista de 1917 considerada na memria anarquista o grande
momento do proletariado brasileiro na Primeira Repblica, uma greve que no pode
de maneira alguma se equiparar, sob qualquer aspecto que seja examinado, com
outros movimentos que posteriormente se verificaram como sendo manifestaes do
proletariado
156
. Essa recusa de Edgard Leuenroth, quase cinqenta anos depois do
ocorrido, em compar-la com movimentos posteriores, calca-se na perspectiva
anarquista de fazer uma estreita vinculao entre os interesses da classe operria e a
teoria libertria, para quem o proletariado possua uma natural tendncia rebeldia
pela liberdade. Ao invs de ter sido dirigida, incitada por polticos e sindicalistas
profissionais, como Leuenroth avaliava acontecer com a organizao sindical desde,
sobretudo, a dcada de 1930, a greve geral de 1917 foi um movimento espontneo do
proletariado, sem interferncia, direta ou indireta, de quem quer que seja. Foi uma
manifestao explosiva, conseqente de um longo perodo de vida tormentosa que
ento levava a classe trabalhadora.
A posio anarquista quanto ao carter reivindicatrio e combativo do
proletariado, de modo geral, e, no caso especfico, do paulista de 1917,
independentemente de posio poltica, expressa na frmula do espontanesmo, sempre
recebeu crticas de seus adversrios polticos, especialmente dos marxistas, que viam a
necessidade de um partido para orientar e canalizar os esforos dos trabalhadores, para,
de fato, ser promovida uma revoluo. Essa crtica ecoou entre historiadores, como o
fez Boris Fausto, para quem a espontaneidade pura s existe nos livros de conto de
fadas acerca do movimento operrio e no em sua verdadeira histria, e, portanto,
era possvel localizar indcios de crescente tenso (...) nos meses que a antecedem,
156
LEUENROTH, Edgard. A greve geral de 1917. O Estado de So Paulo, 27 mar. 1966, p. 23 apud
PINHEIRO, Paulo Srgio e HALL, Michael M. A classe... op. cit., p. 226-231.
104
acompanhados de um visvel esforo organizatrio
157
. Redimensionando crticas
como a de Fausto e procurando desvincul-la do julgamento marxista, Cristina
Campos
158
e Christina Lopreato
159
defendem a tese de que a greve geral de So Paulo
de 1917 foi uma greve anarquista no sentido de que a militncia libertria em So
Paulo foi intensa desde, pelo menos, a dcada anterior, em contnuo exerccio, ainda
que com dificuldades e interrupes, de propagao de seus ideais em sindicatos,
centros culturais, escolas, ligas de bairro e muitos outros ambientes proletrios,
constituindo uma base fundamental para a disseminao da solidariedade operria e da
idia de reivindicao, cujo resultado se veria na coeso apresentada no conflito.
Independentemente dessa discusso, e concordando com a perspectiva de que,
no mnimo, as experincias de organizao anarquista contriburam para o
desenvolvimento da classe operria e das formas de organizao e mobilizao
assumidas em So Paulo, o fato que a greve de 1917 seria um marco da histria do
movimento operrio da Primeira Repblica. Tendo como pano de fundo o aumento da
carestia de vida intensificada pela crise gerada pela guerra, e sofrida pelo Brasil por
desempenhar uma funo subsidiria, a greve teve incio em finais de junho com
quatrocentos trabalhadores do Cotonifcio Crespi, sendo expressiva a participao das
operrias, que reclamavam a abolio da cobrana, pela direo da fbrica, de uma
contribuio compulsria a ser remetida para benefcio das vtimas italianas da guerra,
o aumento dos salrios entre 15 e 20% e a regulamentao do trabalho das mulheres e
dos menores. Aps a adeso de quase todos os dois mil empregados da empresa e as
notcias sobre o uso da violncia policial contra os grevistas, o movimento tomou fora
com o crescente apoio e adeso greve de trabalhadores de outras fbricas, alastrando-
se avassaladoramente aps a morte de Antonio Martinez em uma troca de tiros com a
polcia em frente fbrica de bebidas Antrtica. O nmero de grevistas, depois das
comoes do enterro do sapateiro espanhol, chegaria aos quarenta e cinco mil.
A cada investida da represso se seguiram manifestaes pblicas dos
grevistas, com atos violentos, que tentaram impedir o abastecimento de alimentos do
centro da cidade. E reao policial, se respondia com depredaes e saques a
157
FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). So Paulo/Rio de Janeiro: Difel,
1977, p. 203.
158
CAMPOS, Cristina Hebling. O sonhar libertrio: o movimento operrio nos anos de 1917 a 1921.
Campinas: Pontes/Editora da Unicamp, 1988.
159
LOPREATTO, Christina Roquette. O esprito da revolta: a greve geral anarquista de 1917. So
Paulo: Annablume/Fapesp, 2000.
105
armazns e at uma tentativa de atentado casa do Secretrio de Justia se desenrolou
durante a primeira metade de julho. Com o corte de energia, o transporte pblico
parado e a intensa perseguio policial, a situao chegou a um momento em que a
intransigncia de um dos lados teria que ceder. Pela primeira vez na histria de So
Paulo, o governador do estado, Altino Arantes, props uma negociao junto com os
empresrios. Calejado pelas experincias anteriores, o Comit de Defesa Proletria
(CDP), formado em 9 de julho substancialmente por anarquistas, mas com participao
tambm de socialistas, para agrupar as reivindicaes dos grevistas das diversas
categorias e organizar suas atividades e a negociao, recusou o convite at que uma
junta de jornalistas se ofereceu para fazer a intermediao na sede do jornal O Estado
de So Paulo.
A pauta do CDP aceita pelos empresrios e pelo Estado pode ser dividida sob
trs aspectos: a) medidas que dizem respeito especificamente aos grevistas: nenhum
seria preso ou demitido e todos os que haviam perdido seus empregos por ocasio da
greve seriam readmitidos em seus cargos, e os presos seriam soltos; b) medidas que
interessavam diretamente aos operrios em relao a trabalho e salrio:
reconhecimento do direito de associao dos trabalhadores; proibio do trabalho aos
menores de 14 anos e do trabalho noturno aos menores de 18 e s mulheres;
pontualidade no pagamento dos salrios, a ser efetuado quinzenalmente ou no mximo
em vinte dias; estabelecimento da jornada de oito horas dirias; aumento de 35% nos
salrios inferiores a 5$000 e de 25% para os mais elevados; e, por fim, aumento de
50% em todo o trabalho extraordinrio; c) medidas que interessavam a toda a
populao, no apenas operrios e grevistas, sob o ponto de vista das condies de
vida: que o Estado garantisse o barateamento dos gneros alimentcios, requerendo os
gneros indispensveis alimentao pblica, a fim de evitar a especulao, a
adulterao e a falsificao dos produtos alimentares; que os aluguis at 100$000
sofressem reduo de 30%, sendo garantida a permanncia dos inquilinos que no
pagarem o aluguel aos proprietrios que se recusarem a reduzir os preos
160
.
Deste modo, o Comit de Defesa Proletria negociou a pauta acreditando
representar as aspiraes no s da massa operria em greve como [tambm] as
aspiraes de toda a populao angustiada por prementes necessidades, considerando a
insuficincia do Estado no providenciar de outra forma que no seja pela represso
160
O que reclamam os operrios, A Plebe, n. 6, 21/7/1917, p. 3 apud PINHEIRO, Paulo Srgio e
HALL, Michael M. A classe... op. cit., p. 232-234.
106
violenta. E a prtica de se organizar uma pauta de reivindicaes que no fosse
adstrita somente classe operria, mas que tivesse alguma relao com interesses mais
gerais da populao em tempos de encarecimento do custo de vida, no se restringiu ao
caso paulista.
Em janeiro de 1917, na capital da Repblica, formou-se um Comit Central de
Agitao e Propaganda Contra a Carestia e o Aumento de Impostos a partir da
Federao Operria do Rio de Janeiro (FORJ) e do Centro Libertrio, promovendo
comcios e manifestaes, ao mesmo tempo que sindicatos por categorias eram criados
ou reorganizados. At o incio de julho, quando um acidente na construo de um hotel
matou trinta e oito operrios e causou grande comoo na cidade, houve choques com
a polcia envolvendo grevistas e membros do tal comit, que, de certo modo,
cultivaram a expectativa da ecloso de uma greve geral tambm por ali. Apesar de no
contar com adeso dos martimos, cujo sindicato estava sob direo de lderes
colaboracionistas, diversas categorias entraram em greve em seqncia, paralisando
quase por completo a capital da Repblica. No entanto, dali no se tirou um comando
nico e a resoluo dos conflitos ficou a cargo de cada setor localizado.
Em Porto Alegre, por sua vez, tambm se organizou uma frente de lideranas
que tinha por reivindicaes uma pauta que buscasse beneficiar setores mais amplos do
que os prprios grevistas, sendo que, neste caso, a frente conclamou a greve geral da
cidade. Sabe-se que as lideranas operrias de Porto Alegre tinham pelo menos um
acesso existncia da greve paulistana, e que continuava a existir uma razovel
freqncia de correspondncia entre os militantes anarquistas dos dois estados
161
.
Como assinala Miguel Bodea, na edio de 16 de julho, o jornal do partido do governo
gacho, A Federao, trazia informaes sobre a formao e as reivindicaes do
Comit de Defesa Popular Paulista, o que pode ter contribudo involuntariamente
para propagandear o movimento grevista que ento se alastrava pelo pas
162
, em
uma cidade que ainda estava de sobressalto com as agitaes, conflitos e depredaes
em torno da greve de maro dos calceteiros do porto. J na edio de 21 de julho de
1917, A Plebe publicou telegrama enviado pelo secretrio-geral da FORGS, Ezequiel
Oliveira, declarando esta entidade solidria com o movimento dos operrios
161
Logo no primeiro nmero de A Plebe, publicava-se notcia enviada por Ceclio Vilar acerca da
criao da Escola Racionalista de Porto Alegre e a sua condenao por um padre da parquia em um
sermo. VILAR, Cecilio. Pampeiro rebelde. A Plebe. So Paulo, ano I, n. 1, 9 jun. 1917, p. 3.
162
BODEA, Miguel. A greve de 1917 e as origens do trabalhismo gacho. Porto Alegre: L&PM, 1979,
p. 29.
107
paulistanos, embora no tenha informaes detalhadas que espera receber para sua
orientao
163
. Se a resposta veio por escrito, no se sabe, mas oito dias depois, em 29
de julho, um militante paulista participou pessoalmente de uma reunio da FORGS
164
.
Se a greve na capital gacha seguiu deliberadamente os padres similares aos
de So Paulo, algo que, creio, no se poder afirmar categoricamente. Por outro lado,
os contatos diretos com lideranas grevistas de So Paulo e as notcias difundidas pela
grande imprensa sobre movimentos semelhantes no Rio de Janeiro e no Paran
certamente motivaram os operrios porto-alegrenses a decidirem pela greve, apesar da
orientao da FORGS, organizada sob os princpios do sindicalismo e que congregava
tanto anarquistas quanto militantes de outras cores polticas, em se agir com prudncia.
Alis, ainda que a deciso tenha sido na sede da Federao, pode-se dizer que a greve
foi declarada apesar da FORGS, cuja diretoria temia que o fracasso de uma greve,
vigiada pela polcia antes mesmo de ser iniciada, redundasse em destruio das demais
associaes operrias e fechamento da Federao, uma entidade estvel se comparada
a outras equivalentes no restante do pas
165
. No entanto, os apelos prudncia no
foram suficientes para conter a disposio anarquista, que parecia canalizar a
insatisfao operria contra o alto custo de vida, o aumento do desemprego e a reduo
dos salrios.
Em 29 de julho, em reunio na sede da FORGS, 500 pessoas decidiram pela
greve e a formao de uma comisso representativa dos operrios para a sua conduo,
apesar da direo da FORGS. Logo depois, a Liga de Defesa Popular lana um
manifesto em que justificava a sua existncia:
A Liga de Defesa Popular, investida de poderes em
solene reunio dos trabalhadores de Porto Alegre,
interpretando e sentindo as condies aflitivas em que se
encontram as classes populares, a braos com a carestia
crescente dos gneros de primeira necessidade e aluguis de
casas, declara que vai agir no sentido de obter algumas
melhorias que lhes possam atenuar a misria em que se
debatem.
Povo! Trabalhadores! No possvel cruzarmos os
braos e deixar que a ganncia srdida que caracteriza a
poca nos reduza a farrapos humanos, inconscientes, rotos,
famlicos. A Liga de Defesa Popular espera o apoio do povo
163
Solidariedade por intermdio dA Plebe. A Plebe. So Paulo, ano I, n. 6, 21 jul. 1917, p. 3.
164
SILVA Jr., Adhemar Loureno da. A greve geral de 1917 em Porto Alegre. Anos 90. Porto Alegre,
UFRGS, n.5, julho de 1996, p. 186.
165
Idem, ibidem, p. 187.
108
de Porto Alegre para obter as seguintes melhorias, cuja justia
ressalta a enunci-las:
Diminuio dos preos dos gneros de primeira
necessidade em geral.
Providncia para evitar o aambarcamento do
acar.
Estabelecimento de um matadouro municipal para
fornecer carne populao a preo razovel.
Criao de mercados livres nos bairros operrios.
Obrigatoriedade da venda do po a peso e fixao
semanal do preo do quilo.
A Intendncia cobrar pelo fornecimento de gua
10% sobre os aluguis e reduzir para 5% as dcimas dos
prdios cujo valor locativo seja inferior a 40$000.
Compelir a Companhia Fora e Luz a estabelecer a
passagem de 100 ris, de acordo com o contrato feito com a
municipalidade.
Aumento de 25% sobre os salrios atuais.
Generalizao da jornada de 8 horas.
Estabelecimento da jornada de seis horas para
mulheres e crianas.
166
A greve praticamente no trouxe confronto. A Liga dirigiu-se aos executivos
municipal e estadual, que consideraram legtimas as aspiraes grevistas e trataram de
promover, a seu modo, o atendimento das reivindicaes. No quarto dia de greve,
Borges de Medeiros recebia os componentes da Liga em seu gabinete, enquanto uma
multido de cinco mil pessoas esperava na praa em frente ao palcio. Na reunio, o
governador se comprometeu a tomar medidas que restringissem as exportaes dos
produtos de primeira necessidade, alm da intendncia fixar o preo de venda desses
artigos e regulamentar sua venda no mercado pblico e em feiras livres nos bairros
operrios. Quanto ao aumento salarial dos demais trabalhadores, de acordo com o
entendimento positivista da pedagogia do exemplo, sem interferir nos contratos
privados entre iguais, o governador aumentou os salrios dos operrios a servio do
Estado e solicitou que o Chefe de Polcia tratasse de, pessoalmente, convencer os
patres de que fizessem o mesmo, pela justia das reivindicaes, com o que acabaram
se comprometendo os proprietrios de cento e oitenta e nove empresas. Fora uma ou
outra categoria e empresa, a greve praticamente estava esvaziada a partir de ento.
No possvel precisar se as semelhanas das greves de 1917 de So Paulo,
Rio de Janeiro e Porto Alegre seguiram mais ou menos alguma forma de deliberao
comum ou o exemplo uma da outra, mas difcil afirmar que o padro verificado, pelo
166
Correio do Povo, Porto Alegre, 31 jul. 1917, p. 6.
109
menos nesses trs casos, se deveu somente coincidncia. Nos trs casos,
organizaram-se comisses que assumiram a liderana das greves em seu curso, o que
no se realizou apenas no Rio de Janeiro, mas foi a exatamente que se criou a primeira
comisso, seis meses antes de iniciar a greve. De todo o modo, as greves de 1917
inauguraram a prtica de incluir entre as reivindicaes grevistas, no apenas questes
diretamente relacionadas ao mundo do trabalho ou a seus interesses especficos, mas
tambm populao em geral, que seria beneficiada com medidas de barateamento e
de combate falsificao de gneros alimentcios em poca de aambarcamento e
especulao, regulao dos preos e contratos de aluguis, como constavam em ambos
os manifestos de So Paulo e de Porto Alegre.
As propores assumidas e as vitrias dessas duas greves e de outras, cada qual
a seu modo, deram novo flego s correntes polticas revolucionrias, como o
anarquismo. Pouco depois do trmino da greve de So Paulo, que resultou na
concordncia do patronato e do Estado em atender imposio das reivindicaes
operrias, ela foi logo celebrada pelos libertrios do jornal paulista em lngua italiana
Guerra Sociale como a primeira grande batalha do proletariado brasileiro que de
repente elevou os trabalhadores desta terra dignidade de classe
167
. Parecia que a
estratgia do sindicalismo revolucionrio tinha comeado a dar resultados que
permitiam alimentar esperanas de uma revoluo em algum momento. Desde meados
daquele ano, em todo o pas, eclodiu uma quantidade grande de movimentos
semelhantes que repercutiu na imprensa operria, especialmente a anarquista, a fim de
fazer constatar que por toda a parte realiza[va]m-se numerosas e entusisticas
reunies, multiplica[ndo]-se os meios de organizao e de luta
168
. Havia assim, a
sensao de que algo novo estava a nascer, pois que o proletariado encontrava-se em
atividade animadora
169
, produzindo uma benfica efervescncia
170
, provando
estar ele em pleno despertar
171
. Era, enfim, o prenncio de uma nova era
172
.
167
Considerazioni postume. Guerra Sociale Periodico libertario di propaganda rivoluzinaria. So
Paulo, ano III, n. 56, 11 ago. 1917, p. 1; Non dimentichiamo! Guerra Sociale Periodico libertario
di propaganda rivoluzinaria. So Paulo, ano III, n. 56, 11 ago. 1917, p. 2.
168
Despertando para a luta. O operariado est em plena atividade. A Plebe. So Paulo, ano I, n. 11, 25
ago. 1917, p. 3.
169
Atividade animadora. Desenvolve-se o movimento do proletariado. A Plebe. So Paulo, ano I, n. 12,
1 set. 1917, p. 3.
170
Benfica efervescncia. Os trabalhadores continuam em atividade. A Plebe. So Paulo, ano I, n. 13,
8 set. 1917, p. 3.
171
Em pleno despertar. Prosseguem os trabalhos de organizao. A Plebe. So Paulo, ano I, n. 10, 18
ago. 1917, p. 3.
110
Os anarquistas, ao lado da louvao dos feitos de 1917, passaram a instigar,
com convico cada vez maior, a idia de que uma revoluo prxima estava por
surgir. O acompanhamento das notcias vindas da Rssia aumentava a esperana de
que uma onda revolucionria internacional tivesse seus desdobramentos tambm no
Brasil. Estaria na hora do rompimento da prtica sindicalista para conquista de
direitos imediatos e residuais? Por parte de muitos legisladores, as greves brasileiras
eram manifestaes de que movimentos similares aos ocorridos na Rssia, na Hungria,
e outras partes do leste europeu, poderiam ter seus desdobramentos tambm no Brasil.
Parlamentares conhecidos como trabalhistas por atuarem na Cmara em defesa de
uma legislao trabalhista, tentaram convencer seus colegas adversrios do projeto de
criao de um Cdigo do Trabalho
173
, no apenas pelo apelo de justia de garantias de
condies mnimas ao trabalhador, mas tambm com apelos prudncia de que se o
Estado no interviesse nas relaes capital/trabalho, feitos semelhantes ao da Rssia,
cedo ou tarde, aconteceriam no Brasil, como as greves, havia pouco tempo, tinham
demonstrado ser possvel. provvel que os congressistas no trabalhistas no
levassem muito em conta a possibilidade de que uma revoluo promovida pelo
operariado, tal qual na Europa Oriental, pudesse, de fato, ocorrer no Brasil no final dos
anos 1917, pois, pelo menos em suas falas no Parlamento, isso no aparecia com
freqncia, e at mesmo porque o projeto andaria a passos lentos e seria mais tarde
abandonado, com exceo de um ou outro artigo sobre acidentes de trabalho e trabalho
de menores. De todo o modo, causou algum impacto no Congresso, que, pela primeira
vez, debatia de modo sistemtico a questo social, ainda que praticamente restrita
forma de regulamentao da relao capital/trabalho.
Quanto ao movimento anarquista, iniciaram-se debates para fazer avanar as
conquistas de 1917.
172
Prenncio de uma nova era. O proletariado em revolta afirma o seu direito vida. A Plebe. So
Paulo, ano I, n. 6, 21 jul. 1917, p. 1.
173
Quanto aos debates da Cmara acerca da estruturao de um Cdigo do Trabalho em 1918, j foi
muito debatido na historiografia. A principal referncia, a meu ver, GOMES, ngela de Castro.
Burguesia e trabalho: poltica e legislao social no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: Campus,
1979; recentemente, esse tema foi novamente abordado por VARGAS, Joo Tristan. O trabalho na
ordem liberal: o movimento operrio e a construo do Estado na Primeira Repblica. Campinas:
Unicamp/CMU, 2005.
111
DA AO DIRETA POR DIREITOS PARA A REVOLUO
Enquanto os congressistas debatiam a pertinncia da elaborao de uma
legislao trabalhista, desde setembro de 1917 se abateu uma intensa represso contra
o movimento operrio e os militantes mais destacados, como Edgard Leuenroth, a
quem foi atribuda a responsabilidade pelos prejuzos causados por depredaes e
saques aos patrimnios privados, dentre os quais o Moinho Santista. Aos olhos da
imprensa operria e anarquista, a reao tomou contornos de vingana pela derrota
imposta pelos grevistas ao Estado e aos patres. Esta onda repressiva iria desarticular a
organizao operria em So Paulo at mais ou menos o final de 1918.
A militncia operria e anarquista j havia percebido sinais de que a represso
iria se abater em muito breve. Ainda em julho, poucos dias passados do final da greve
na capital paulista, a imprensa anarquista alertava os trabalhadores para no aceitarem
as provocaes da polcia e no permitirem que se iniciassem confrontos, pois o
momento no era propcio para uma nova mobilizao que atingisse grau de coeso
capaz de suportar um novo conflito, certamente mais duro. Afinal, as foras da
represso, desta vez, estariam preparadas, ao contrrio do que teria ocorrido na greve
de julho, na qual o desencadeamento dos acontecimentos e a proporo atingida
pegaram a todos, inclusive as lideranas operrias anarquistas e socialistas, segundo
eles prprios, desprevenidos. Por isso, o jornal anarquista Guerra Sociale, que tanto
louvou a greve como vencedora e prova da capacidade revolucionria das massas,
denunciava a estratgia do governo do estado e do patronato, em conluio com a
imprensa, de fazer os agentes secretos da polcia divulgarem um boato sobre os planos
de agitao e tentativa insurrecional que iria surgir em muito breve, o que, para parecer
verdade, era divulgado at mesmo com data e local marcados. Segundo o Comit de
Defesa Proletria, que tratou de circular um comunicado prevenindo os trabalhadores
sobre as conseqncias nefastas que adviriam caso aderissem ao infundado:
Para segunda-feira, 23 do corrente ms, em So
Paulo, todos estavam atentos porque todos foram informados
de acontecimentos extraordinrios e terrveis que viriam a
acontecer: mais que uma reprise da greve geral, uma
verdadeira e prpria insurreio. O movimento foi pr-
anunciado a todos os vendeiros com alguns dias de
precedncia. No fofocar das ruas e das barbearias, falava-se
como coisa segura, improrrogvel. Tambm os engraxates e
vendedores de bilhetes da loteria conheciam os planos da
revoluo. (...)
112
Comisses de desconhecidos circulavam livremente,
avisando, de porta em porta, sobre o fim do mundo. E
circulavam tranqilamente.
Os jornais da Capital Federal SUBVENCIONADOS
DO GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULO descrevem j
a fase do inevitvel movimento e pediam como medida
preventiva o estado de stio. (...)
OS PATRES CERTAMENTE SABIAM DE MAIS E J
INVOCAVAM AJUDA.
Ento o Comit [de Defesa Proletria] acredita ser seu
dever intervir com um comunicado imprensa e com
participao direta Liga [no est claro, mas, provavelmente,
refere-se Liga Operria do Brs] e aos operrios.
Ns gostaramos que esse comunicado tivesse sido mais
explcito, mais claro...
Mas de todo o modo esse reuniu igualmente o escopo:
impediu ao Estado e aos industriais obter uma sanguinolenta
revanche, salvou a cidade de So Paulo das delcias do estado
de stio.
No preciso aqui silenciar o procedimento do comit
dos jornalistas que tambm neste caso prestaram um servio
inestimvel populao de So Paulo, avisando, ainda que de
forma velada, a autoridade do Estado que o compl era
completamente vazio.
O proletariado deve, portanto, prevenir-se.
ele quem deve escolher a hora para suas batalhas,
no a polcia. (...)
Ns no somos solcitos a pedir calma, ns acreditamos
no valor dinmico da violncia, como fator de progresso; mas
no somos assim imbecis para empurrar as massas a uma luta
desigual, na hora e no terreno escolhido pela polcia com
prvio acordo com os industriais.
174
Ao contrrio da caricatura feita pelos crticos do anarquismo em relao ao
espontaneismo, ele tinha seus limites. A nfase na ao espontnea das massas
explicada pelo contraponto da ao legtima dessas massas contra os argumentos da
classe dominante, de que elas eram desvirtuadas por agitadores, e os argumentos dos
que viam a necessidade da construo de um partido poltico com organizao
centralizada, mas isso no significava cegueira diante dos riscos do enfrentamento. A
partir de muitas experincias desde a metade do sculo XIX em todo o mundo, os
anarquistas no Brasil sabiam que a ecloso de uma insurreio operria (com uma
classe ainda pouco numerosa no pas) no implicaria na adeso imediata de toda a
174
Cosa si preparava? Il Comitato di Defesa Proletaria aventa um tranello montato dalla autorit e dagli
industriali ed evita un massacro di popolo. Guerra Sociale Periodico libertario di propaganda
rivoluzinaria. So Paulo, ano III, n. 55, 26 jul. 1917, p. 1.
113
populao, nem mesmo em um momento como este de meados de 1917, quando a
mobilizao operria contou, em diversos pontos, com o apoio e simpatia de outros
setores da populao. Era preciso organizao e diretrizes definidas para a ao
revolucionria e para a prpria proteo contra a reao que estava a se preparar.
Deste modo, antes das aes repressivas, os anarquistas tratavam de articular a
construo de uma frente revolucionria, que pudesse reunir as foras polticas do
movimento operrio que pretendiam a transformao radical da sociedade para alm
do resultado materialmente duvidoso
175
que as greves tinham obtido. Desde pelo
menos o dia quatro de agosto, logo aps o final da greve de So Paulo, de Porto Alegre
e do Rio de Janeiro, e enquanto continuavam a se desenvolver greves por diversos
cantos do pas, nas capitais e em cidades do interior, comearam a surgir chamadas
recorrentes para a realizao de um Congresso Geral da Vanguarda Social do
Brasil, que seria, em breve, realizado no Rio de Janeiro. A justificativa assentava-se
na necessidade de serem estabelecidas, com a mxima urgncia (...), as bases de uma
ao conjunta
176
de todos os elementos avanados, anarquistas, socialistas,
sindicalistas, associaes de resistncia e outros de estudos sociais (...) contra os seus
comuns inimigos
177
. Por aqueles dias, parece que havia entusiasmo gerado pela
pronta correspondncia entre diversas organizaes polticas e sindicais do pas:
Por comunicaes recebidas de diferentes pontos do
pas, sabemos que tem produzido a melhor impresso a
iniciativa da realizao de um congresso da vanguarda social
de todo o Brasil.
Esse congresso, como dissemos j, vai reunir-se,
provavelmente em outubro, no Rio de Janeiro, a ele devendo
comparecer os representantes de todas as associaes
operrias existentes no Brasil, como todos os elementos
avanados socialistas, anarquistas, centros de estudos sociais,
etc.
Podemos acrescentar que inteno da Confederao
Operria Brasileira, que tem a sua sede no Rio, aproveitando
a oportunidade que lhe oferece o congresso, reunir num
convnio os representantes das associaes operrias e com
175
Na realidade, a expresso correta materialmente, o seu resultado duvidoso. Comentrios de um
plebeu Agitadores. A Plebe, So Paulo, ano I, n. 9, 11 ago. 1917, p. 1.
176
Para uma ao conjunta Congresso geral da vanguarda social do Brasil. A Plebe, So Paulo, ano I,
n. 8, 4 ago. 1917, p. 2.
177
O Congresso Geral da Vanguarda Social do Brasil A feliz iniciativa foi recebida com entusiasmo.
A Plebe, So Paulo, ano I, n. 11, 25 ago. 1917, p. 3.
114
eles estudar a melhor maneira de serem reativados os seus
trabalhos de propaganda e organizao.
178
Da leitura da chamada acima, que semelhante s demais, as informaes
sobre o congresso so um tanto restritas. Mas possvel depreender que os anarquistas
estavam dispostos a agir para a articulao de frentes distintas: em uma primeira,
apesar de no referida, obviamente, continuariam a agir em seus ncleos, centros de
estudos e propaganda libertrios; uma segunda, atravs do sindicalismo, cuja
oportunidade do crescimento da mobilizao operria trazia a perspectiva de retomar
os trabalhos da COB e de outras federaes, como a FOSP; e em uma terceira, a
articulao de aes conjuntas propriamente polticas, sem as limitaes impostas pelo
sindicalismo, com diversas correntes, especialmente com os socialistas ou ainda outros
avanados que desempenharam uma posio positiva no Comit de Defesa
Proletria.
No encontrei registros sobre a realizao do dito congresso. A ltima notcia
que obtive, datada de 1 de setembro, encontra-se em A Plebe e trata-se da transcrio
de uma nota do jornal carioca A Razo em que se relatava a reunio do comit
organizador do congresso na sede da Confederao Operria Brasileira, que redigiu
uma circular que seria remetida s associaes afiliadas de todos os estados do pas,
sobre o que se intencionava realizar
179
. Muito provavelmente no ocorreu, em parte ou
totalmente, pela violenta represso que se abateu contra os militantes de So Paulo, a
qual tomou as preocupaes de militantes anarquistas de todo o pas.
Contudo, a chamada de um congresso restrito s vanguardas revolucionrias,
por si s, demonstra que os anarquistas estavam dispostos a fazer avanar um projeto
revolucionrio, contando com a participao de outras correntes polticas, no restrito
ao seu crculo e ao sindicalismo.
Mas esse projeto, de fato, no foi adiante nos anos seguintes, pelo menos no
que tange unio entre anarquistas e socialistas, pois somente em So Paulo as
rivalidades no tinham se acentuado a ponto do rompimento. No Rio de Janeiro, os
socialistas eram cada vez mais reduzidos, por vezes confundindo-se aos
colaboracionistas, e muitos deles envolvidos com a luta pela implementao de uma
178
Congresso geral da vanguarda social do Brasil Um convnio da Confederao Operria Brasileira.
A Plebe. So Paulo, ano I, n. 10, 18 ago. 1917, p. 2.
179
O Congresso Geral de Vanguarda Social do Brasil Os militantes do Rio tratam com interesse da
feliz iniciativa. A Plebe. So Paulo, ano I, n. 12, 1 set. 1917, p. 3.
115
legislao trabalhista, estreitando seus laos com parlamentares como Maurcio de
Lacerda e Nicanor do Nascimento. No Rio Grande do Sul, por sua vez, as relaes
entre socialistas e anarquistas eram cada vez mais hostis, desde, pelo menos, 1912, e a
relutncia da diretoria da FORGS em declarar a greve geral de julho acirrou os
conflitos com os anarquistas.
Apesar da violenta represso em So Paulo, o tom do movimento anarquista em
sua imprensa, contudo, cada vez mais agressivo. Neste sentido, alm do impacto da
greve de 1917, preciso ter em vista a repercusso da revoluo russa sobre o
movimento operrio brasileiro. A imprensa operria fez grande alarde sobre os
avanos da revoluo russa, vista como uma revoluo libertria, ainda que utilizando-
se de mtodos tticos que empregassem os instrumentos disponibilizados pelo Estado,
dando especial destaque unio entre trabalhadores da cidade e do campo com os
soldados do exrcito e da marinha.
Ainda que breve, esta vinculao entre foras armadas e proletariado, jamais
foi feita anteriormente, pelo menos de modo to sistemtico, pelo movimento
anarquista. Ao contrrio, as foras armadas, assim como a polcia, sempre eram
atacadas como instrumentos a servio da represso, ces de guarda do capitalismo,
lacaios dos industriais, etc. Alm do que, a forte propaganda antimilitarista contra o
sorteio militar que levaria unicamente os filhos dos trabalhadores s fileiras do exrcito
(os filhos das classes mdia e dominante poderiam exibir certificado de inscrio em
clubes de tiros para se eximir do servio obrigatrio), cresceria sobremaneira medida
que se anunciava a inevitabilidade da guerra, criando um clima de antagonismo
irreconcilivel ainda maior com os militares. Mesmo assim, sempre havia um ou outro
artigo na imprensa operria e nos apelos contra a violncia dispensada aos operrios,
tentando captar a simpatia das patentes baixas, demonstrando que provinham da
mesma classe trabalhadora, da qual faziam parte seus parentes e amigos.
Mas, ser a partir das greves de 1917 e da revoluo russa que se tratar de
modo mais incisivo esses apelos s patentes baixas das foras armadas. Ainda em
julho, em meio greve de So Paulo, encontram-se referncias, na imprensa
influenciada por anarquistas do centro do pas, Rssia e ao Comit de Soldados e
Operrios que conduzia aquele pas, a um s tempo, sada da guerra e revoluo
180
.
180
A nota mais antiga encontrada at aqui : Ast. P. [PEREIRA, Astrojildo]. Os fatos do exterior. A
Revoluo russa. O Debate. Rio de Janeiro, ano I, n. 1, 12 jul. 1917, p. 12.
116
Naquele momento, para anarquistas e tambm para outros como o deputado federal
Nicanor do Nascimento em discurso na Cmara a 13 de julho, o modelo deste Comit
revolucionrio aparecia como sada a ser imitada no Brasil para pr fim ao
aambarcamento de alimentos que geravam a carestia que se abatia sobre os pobres e
levava justssima mobilizao dos operrios em greve
181
.
Durante a greve paulista de 1917, um grupo de mulheres grevistas enviou
um apelo aos soldados para que se recusassem a usar a violncia contra os
trabalhadores, seus irmos de misria:
AOS SOLDADOS!
Soldados! No deveis perseguir os vossos irmos de
misria. Vs tambm sois da grande massa popular, e, se hoje
vestis a farda, voltareis a ser amanh os camponeses que
cultivam a terra, ou os operrios explorados das fbricas e
oficinas.
A fome reina nos nossos lares e os nossos filhos nos
pedem po! Os perniciosos patres contam, para sufocar as
nossas reclamaes, com as armas de que vos armaram,
soldados!
Essas armas eles vo-las deram para garantir o seu
direito de esfomear o povo.
Mas, soldados, no faais o jogo dos grandes
industriais que no tm ptria.
Lembrai-vos que o soldado do Brasil sempre se ops
tirania e ao assassinato das liberdades.
O soldado brasileiro recusou-se no Rio, em 81, a atirar
sobre o povo quando protestava contra o imposto do vintm, e,
at o dia 13 de Maio de 1888, recusou-se a ir contra os
escravos que se rebelavam, fugindo ao cativeiro!
Que belo exemplo a imitar!
No vos presteis, soldados, a servir de instrumentos de
opresso dos Matarazzo, Crespi, Gamba, Hoffmann, etc., os
capitalistas que levam a fome ao lar dos pobres e gastam os
milhes mal adquiridos e que esbanjam com as cocottes.
Soldados!
Cumpri o vosso dever de homens! Os grevistas so
vossos irmos na misria e no sofrimento; os grevistas morrem
de fome, ao passo que os patres morrem de indigesto!
Soldados! Recusai-vos ao papel de carrasco!
S. Paulo, Julho de 1917.
181
F. G. O regime da fome. Imitemos a Rssia. A Plebe. So Paulo, ano I, n. 6, 21 jul. 1917, p. 3.; Um
Comit dos Operrios e Soldados do Brasil. A Plebe. So Paulo, ano I, n. 6, 21 jul. 1917, p. 3. ; O
exrcito e a greve. Houve soldados que se negaram a vir a S. Paulo. Interessante palestra. A Plebe.
So Paulo, ano I, n. 8, 4 ago. 1917, p. 2.; Graves revelaes de um soldado do exrcito. Teremos
tambm um Comit de Soldados e Operrios? O Debate. Rio de Janeiro, ano I, n. 3, 26 jul. 1917, p. 7-
8.
117
Um grupo de mulheres grevistas.
182
Na mesma notcia, cujo ttulo se perguntava se no Brasil teremos tambm um
Comit de Soldados e Operrios?, relatava-se uma conversa ouvida por um dos
jornalistas do hebdomadrio O Debate, que teria sido travada animadamente por um
soldado de sotaque nortista com um grupo dos muitos operrios que se
encontravam na Praa Tiradentes, em frente sede da Federao Operria do Rio de
Janeiro, devido ao clima de mobilizao daqueles meses. O militar teria dito que os
grevistas paulistanos chegaram a receber a ajuda de soldados militares para arrancar os
trilhos dos bondes do bairro do Braz, enquanto cerca de quarenta soldados da base
militar de Lorena desobedeceram s ordens de seus superiores e se recusaram a partir
para a capital do estado para reprimir a greve. Aqueles que no conseguiram desertar a
tempo, dentre os quais, ele prprio, ou foram transferidos para pontos distantes, para
o Rio Grande, para o Mato Grosso, para o Rio ou permaneciam presos na Ilha das
Cobras
183
. Para o articulista, o soldado exagerava em alguns momentos, mas suas
palavras continhamboa dose de verdade e instava que a censura do telgrafo
cessasse e permitisse que o pblico soubesse que o exrcito no quer responder com
chumbo a quem reclama po. E assim vamos a caminho seguro para a Constituio,
dentro em breve, do Comit de Operrios e Soldados do Brasil...
184
.
As simpatias aos movimentos grevistas teriam sido declaradas por oficiais de
baixa patente entrevistados por jornalistas da imprensa operria, os quais no
assumiam publicamente sua posio por temores de receber a punio estipulada pelo
regimento do exrcito. Neste sentido, por exemplo, um jornalista do carioca A
Lanterna teria conseguido entrevistar membros de baixa patente do exrcito e da
marinha, enquanto se dirigiam ao trabalho, para dar suas impresses sobre os ltimos
acontecimentos protagonizados pelo movimento operrio em todo o pas. Deles, teria
conseguido arrancar algumas declaraes que permitiriam ao operariado acreditar que
teriam nos soldados um suporte para movimentos mais agressivos, caso ousassem
faz-lo:
182
Graves revelaes de um soldado do exrcito. Teremos tambm um Comit de Soldados e
Operrios? O Debate. Rio de Janeiro, ano I, n. 3, 26 jul. 1917, p. 7-8. (Um resumo deste artigo est
em: O exrcito e a greve. Houve soldados que se negaram a vir a S. Paulo. Interessante palestra. A
Plebe. So Paulo, ano I, n. 8, 4 ago. 1917, p. 2.)
183
Idem, ibidem.
184
Idem, ibidem.
118
Se essa greve fosse geral e nela tomasse parte, de
uma vez, todo o operariado, acreditamos que o governo seria
impotente para resistir. Infelizmente, porm, ela est sendo
parcial e no h unio em todas as classes. Ningum tem mais
razes para fazer greve do que o soldado, que no v sequer
um aumento do seu soldo. Ns tambm somos humanos, temos
famlia e sabemos o que so as necessidades da famlia do
pobre em oposio ao bem estar e fidalguia do rico.
A minha carabina disse um cabo eu no a
descarregarei contra aqueles que vivem a protestar contra a
fome.
Nem a minha retorquiram todos.
- Os operrios que saibam fazer o movimento
concluiu o segundo sargento.
185
Se ambos os dilogos relatados ocorreram de fato, no se pode precisar. Mas a
divulgao desses relatos servia de propaganda que visava no apenas dar aos
operrios e militantes a sensao de que essa ponte poderia ser construda, mas
principalmente aos prprios membros do exrcito e da marinha, para que eles
revertessem a sua fora em um propsito comum e de justia, como por exemplo,
contra os flagelos que a carestia de vida infringia sobre toda a populao. E essa unio
no era nada utpica, como se fazia observar os sucessos dessa relao na revoluo
russa em curso naquele momento, ainda sem a dimenso que adquiriria aps as
jornadas de novembro.
Uma unio se esboaria, em 1918, no Rio de Janeiro. Enquanto em So Paulo a
represso ao movimento operrio permanecia, na Capital Federal cresceu o nmero de
entidades de propaganda anarquista, ainda que constitussem ncleos com um nmero
pequeno de participantes. Parte do crescimento da propaganda libertria no Distrito
Federal pode ser atribuda tambm represso, na medida em que muitos anarquistas
de So Paulo foram expulsos ou fugiram para o Rio assim que a onda de violncia
policial se abateu por l
186
. Por isso, em 1918, observa-se uma crescente mobilizao
operria, tendo frente lideranas anarquistas, que tomaria conta da cidade,
particularmente, a partir de maio.
185
O exemplo da Rssia. Teremos tambm um Comit de Soldados e Operrios. Ecos da greve. O que
pensam soldados do exrcito e marinheiros. Dois boletins. O Debate. Rio de Janeiro, ano I, n. 4, 2
ago. 1917, p. 7.; Os soldados e os operrios: A causa dos trabalhadores bem acatada no exrcito
Interessantes consideraes. A Plebe, So Paulo, ano I, n. 10, 18 ago. 1917, p. 4.
186
RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e cultura social (1913-1922). Rio de Janeiro: Laemmert, 1972,
p. 227.
119
A relao entre o crescente movimento operrio e a inspirao sovitica,
observada durante o ano de 1918, culminaria em dois episdios inditos no Brasil, no
que se refere ao esboo de unio entre movimento operrio e elementos das foras
armadas.
A 7 de agosto de 1918, ocorreria um episdio grave, que se revestiria de um
carter simblico da unio possvel entre soldados e operrios. Durante a greve da
Companhia Cantareira, os trabalhadores das barcas que faziam o translado entre o Rio
de Janeiro e Niteri viram-se cercados por soldados do Exrcito, designados para
apoiar a polcia de Niteri a reprimir o movimento. No entanto, alguns deles recusam-
se a cumprir a ordem e mudam de lado, apoiando os grevistas. O conflito agrava-se,
resultando na morte de trs pessoas: um operrio, Jos Sarmento, e dois dos soldados
que aderiram greve, Ilara Frana e Nestor Silva
187
.
Logo depois, em novembro, se tentaria fazer da espontaneidade das adeses
precedentes de soldados do Exrcito a movimentos grevistas, uma atividade
insurrecional planejada, conseqente e efetivamente revolucionria
188
. Um grupo de
militantes decidiu que era chegado o momento de fazer acontecer no Brasil o que
estava em processo na Rssia. Com aporte dos teceles do Rio, de Niteri, Petrpolis e
Mag, organizados ao redor da Unio Geral dos Trabalhadores, que se declarariam em
greve, o plano dos revolucionrios era tomar uma srie de pontos estratgicos (alm do
controle das respectivas fbricas, os revolucionrios tomariam pontos diversos como o
Palcio do Catete e paiis do Exrcito, da Marinha e da polcia). Para tomar os quartis
e contar com o apoio das foras armadas, estaria encarregado o tenente Jorge Elias,
que teria dissimulado interesse em tomar parte do movimento, depois de ter recebido
um dos panfletos sediciosos, distribudos na Vila Militar por um dos membros da
comisso insurgente, Ricardo Correia Perptuo.
187
Um ano depois, o Centro de Estudos Sociais de Niteri promoveu uma romaria vermelha desde
sua sede, no centro da capital fluminense, at o cemitrio do Maru, que contou com uma multido
empunhando estandartes de associaes operrias e entoando cantos libertrios a fim de homenagear
os dois bravos soldados do exrcito, em ato de mais profunda e cordial gratido do
proletariado de blusa a esses autnticos e gloriosos heris. A homenagem revestia-se de um
apelo para a unio dos proletrios de farda e da blusa, irmos escorraados, a quem pertence o
futuro. Ver: Romaria vermelha. Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 2, 9 ago. 1919, p. 3; Liga
Comunista Feminina. Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 2, 9 ago. 1919, p. 2; A romaria vermelha.
Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 3, 16 ago. 1919, p. 3.
188
Sobre este movimento insurrecional ver ADDOR, Carlos Augusto. A insurreio anarquista no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986.
120
A tentativa insurrecional, porm, s vsperas do seu desencadeamento, seria
desmontada a partir de denncias do tenente, tendo o movimento fracassado e quatorze
envolvidos presos. Como se pode observar no trecho abaixo, de autoria de Edgard
Leuenroth, a efervescente mobilizao operria daqueles anos fez crer aos anarquistas
que os ataques impetrados contra o direito de associao resultariam em sua extrema
defesa pelos trabalhadores, a ponto de promover a insurreio revolucionria. A
motivao era o direito de associao cada vez mais cerceado; os meios, uma
combinao entre a mobilizao grevista de operrios com uma vanguarda a tomar
pontos estratgicos:
Essa insustentvel situao de penrias e violncias
firmou no proletariado militante a convico de que era
preciso reagir decisivamente no sentido de assegurar o
legtimo direito de livremente manter sindicatos e, atravs
deles, sustentar reivindicaes. Mas tudo demonstrava que a
consecuo desse direito somente poderia ser efetivada por
meio de um movimento decisivo, capaz de fazer cessar a
reao que atormentava a vida dos trabalhadores. E foi o que
se procurou fazer com a organizao de uma greve geral de
carter revolucionrio. Como o movimento poderia tomar
propores transformadoras, foi preparado um programa
correspondente a esse objetivo, para ser apresentado ao exame
do povo rebelado, na perspectiva de se ter de enfrentar o
domnio da situao.
Partindo do Rio de Janeiro, deveria o movimento ter
seqncia em So Paulo, para se estender a todo o pas, tendo
como elemento animador o ambiente de rebeldia ento
generalizada. Esse episdio de relevncia no movimento
proletrio brasileiro ocorreu em 18 de outubro (sic.), com
ponto de partida na ento capital da Repblica, deixando bem
patente a deciso do proletariado nessa tentativa de conseguir
sua libertao da odiosa situao que o atormentava.
189
No se tratava apenas de garantir um direito (o direito de reunio, fundamental
para qualquer ao do proletariado), mas defender esse direito concomitantemente
imposio de uma nova ordem que superasse o capitalismo no Brasil. O desfecho
indesejado condenou os movimentos operrio e anarquista a um momentneo arrefecer
de suas atividades, que, contudo, seriam novamente retomadas no ano seguinte, sendo
que em abril de 1919, todos os acusados de levante que continuavam presos foram
soltos por falta de provas, segundo a avaliao do judicirio.
189
LEUENROTH, Edgard. Uma tentativa de greve geral revolucionria. In: Anarquismo... op. cit., p.
117-118.
121
Ainda que malfadado, o episdio revela uma tentativa de levar ao limite a ao
do movimento sindical e a busca por desenvolver outras formas de organizao sob
inspirao da revoluo dos sovietes em curso na Rssia.
E as tentativas de aproximao com os soldados do exrcito no se deu apenas
no Rio de Janeiro, se se considerar os esforos feitos, em Porto Alegre, por Ablio de
Nequete, que, embora no fosse propriamente um anarquista, estabelecia
correspondncia freqente com o movimento anarquista de Porto Alegre e do centro
do pas. Ele foi o autor de um panfleto, que receberia a falsa assinatura de um Grupo
de Operrios e Soldados Brasileiros, dirigido ao Povo Rio-Grandense!
190
, que lhe
rendeu inqurito militar por acusao de pregar a anarquia, ou pelo menos o
desequilbrio da ordem, aconselhando inquilinos a no pagarem o aluguel das casas
onde residem
191
. Na realidade, a proposta era de no serem pagos os aluguis a partir
de primeiro de janeiro de 1918, a fim de que essa medida suprisse as necessidades dos
operrios e soldados durante o perodo em que o Brasil estivesse em guerra contra a
Alemanha, e permitisse que eles, assim, melhor contribussem com a ptria durante
esse tempo difcil. 5 % do dinheiro economizado com o no pagamento do aluguel
deveria, entretanto, ser destinado Cruz Vermelha Brasileira, e outros 5% para a
aviao militar, provando assim, a disposio de esprito de disciplina e nunca
desmentido patriotismo. Logo se percebe que, apesar da acusao de anarquista,
Nequete pouca familiaridade tinha com essa corrente poltica, e movia-se mais por um
entusiasmo com os feitos revolucionrios russos, do que exatamente de acordo com
uma orientao programtica, como o fizeram os insurretos cariocas.
Aproximadamente um ano depois, porm, Nequete fundaria, ao lado apenas de
Francisco Merino e Otvio Hengist, a Unio Maximalista, cujo manifesto lanado de
Porto Alegre, em primeiro de novembro, pregava novamente a unio entre operrios e
soldados para a concretizao efetiva da Revoluo.
192
Apesar de no terem avanado
para alm do nvel do discurso, significativo quanto estratgia que grupos ou
militantes tentavam traar para realizar eventos revolucionrios nesse perodo:
190
GRUPO DE OPERRIOS E SOLDADOS BRASILEIROS. Ao povo rio-grandense! Porto Alegre,
dez. 1917 (Inqurito Militar contra Ablio de Nequete. Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do
Sul, Foro Justia Federal, Porto Alegre, Processo N. 1432, Mao 44, Estante 133, 1917).
191
Inqurito Militar contra Ablio de Nequete. Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul, Foro
Justia Federal, Porto Alegre, Processo N. 1432, Mao 44, Estante 133, 1917.
192
Manifesto da Unio Maximalista aos operrios. Porto Alegre, 1 nov. 1918. Processo Crime 1016,
Mao 66, Cartrio do Jri de Porto Alegre, 1919.
122
Nada de dios aos soldados! Porque so vtimas como
vs, so vossos iguais, pois quem diz soldado diz operrio e
vice-versa. Tende em cada um deles um camarada de luta. A
vossa fraqueza filha da vossa diviso uni-vos, pois! E no
haver fora alguma que possa vos enfrentar. Ponde um ponto
final nesta inaturvel situao de carnificina e misria em que
a burguesia vos mercadeja, como que fosseis um rebanho de
animais incontestes.
Ainda assim, apesar de nulo o efeito prtico dos apelos aos soldados e da pouca
vinculao com a orientao anarquista, possvel fazer um paralelo entre o manifesto
da Unio Maximalista e a insurreio carioca e outros episdios precedentes, que so
reveladores da tentativa de aproximao dos anarquistas com os baixa-patentes das
foras armadas, para se fazer uma revoluo nos moldes que se desenvolviam na
Rssia dos sovietes, que avanaria rumo ao Oeste, com uma orientao que
acreditavam ser compartilhada pelos anarquistas. Demonstram que se tratava de um
processo conjunto. Se no propriamente como facetas de um mesmo plano estratgico
definido conjuntamente, pelo menos como perspectiva de luta em novas frentes. Mas,
como se observa no texto de Edgard Leuenroth h pouco citado, o movimento do Rio
de Janeiro deveria iniciar na capital federal e avanar pelo pas. No possvel
estabelecer uma conexo direta, mas talvez por isso se possa aferir que a Unio
Maximalista estivesse tentando fazer preparativos para que os avanos do movimento
carioca se processassem tambm pelo extremo sul.
Aps a conjurao, novas ondas de greves ocorreriam em diversos pontos do
pas, desta vez com conflitos muito mais agudos do que os verificados em 1917,
sobretudo por parte da represso. No obstante o carter meramente reivindicativo que
as dominou, as greves foram acusadas pelas instituies conservadoras de tentativas
maximalistas
193
. Tanto para revolucionrios como para os defensores da ordem
estabelecida os tempos eram de turbulncia social.
Creio ser lcito considerar que os anarquistas vislumbravam a ruptura da ordem
atravs das greves gerais deflagradas na segunda metade de 1919. O material de
informao e propaganda produzido pelos anarquistas, particularmente durante o ano
de 1919, sugere que a Revoluo no era uma utopia a ser adiada, mas encontrava-se
193
Por exemplo: Tentativas maximalistas. A Federao, Porto Alegre, 9 set. 1919, p. 1 apud
PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. Que a Unio Operria seja a nossa ptria! Histria das lutas
dos operrios gachos para construir suas organizaes. Santa Maria: editoraufsm; Porto Alegre:
Editora da Universidade/UFRGS, 2001, p, 365-367.
123
num horizonte prximo, fruto de um trabalho intenso de mais de uma dcada, das boas
novas vindas do Oriente e de um momento de insatisfao generalizada do
proletariado, dada a carestia de vida provocada pela guerra.
Como foi visto anteriormente, a grande mobilizao operria que os principais
centros urbanos do pas viveram em 1917 representou para os anarquistas um
momento de inflexo da prtica militante exercida at ento. Ou seja, avaliou-se que
era chegado o momento revolucionrio, o momento de pressionar ao extremo os
limites da mobilizao operria de carter eminentemente sindicalista, ou seja, uma
prtica imediatista e corporativista, embora se apostasse na perspectiva do exerccio da
ginstica revolucionria. Da os riscos assumidos na insurreio de 1918, cujo
fracasso no impediu que os anarquistas brasileiros desistissem de fazer eclodir uma
revoluo naquela turbulenta conjuntura do final dos anos 1910.
Segundo Frederico Duarte Bartz
194
, baseado nos relatos do militante Everardo
Dias, escritos em 1961
195
, e nos cadernos de memria de Abilio de Nequete, escritos
em 1943
196
, uma segunda insurreio teria sido planejada para a segunda metade do
ano de 1919. A partir dos indcios apresentados por Bartz e suas fontes pressupe-se
que, desta vez, deveria haver uma maior articulao atravs da declarao simultnea
de greve geral em diversos pontos do pas So Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais,
Paran, Rio Grande do Sul e Pernambuco
197
. Caberia aos anarquistas transmutar em
revolucionria a insatisfao geral e insurgncia do proletariado sem conscincia
formada de seus direitos e sem qualquer esprito revolucionrio
198
. No entanto, essa
nova tentativa teria sido forosamente abortada, devido precipitao de uma
corporao dos transportes cujos lderes no dispunham da necessria confiana e
prestgio para esclarecer aquela massa de descontentes, no tinham convices nem
suficiente argumentao que os capacitasse a impedir que aquela coletividade mal
194
BARTZ, Frederico Duarte. O horizonte vermelho: o impacto da revoluo russa no movimento
operrio Rio Grande do Sul, 1917-1920. Porto Alegre: Dissertao de mestrado em Histria/UFRGS,
2007, p. 162-169.
195
DIAS, Everardo. Histria das lutas sociais no Brasil. So Paulo: 2.ed., Alfa-mega, 1977, p. 90-92.
196
Anotaes dos Cadernos de Ablio de Nequete feitas por Silvia Petersen. Datilografado. s/d apud
BARTZ, Frederico Duarte. O horizonte... op. cit. Silvia Petersen (Que a Unio Operria... op. cit.,
p. 371), com base em seus apontamentos dos cadernos de Ablio de Nequete, tambm faz breve
referncia visita de um emissrio de A Plebe ao militante de origem sria para levantar um
movimento grevista revolucionrio nas cidades de Pelotas e Rio Grande, que no aconteceria.
197
DIAS, Everardo. Histria... op. cit., p. 90-92.
198
Idem, ibidem, p. 91.
124
preparada se atirasse greve antes do tempo fixado
199
, permitindo a ao firme da
represso, que estava atenta aos movimentos subversivos desde o vulto alcanado em
1917.
Gigi Damiani, por sua vez, imputou o fracasso do dito movimento ao acidente
que redundou na exploso de uma bomba na casa de Jos Prol, no bairro do Brs, em
So Paulo, no dia 19 de outubro. A exploso matou quatro pessoas, todas elas
militantes, e feriu a esposa e os dois filhos do dono da casa. Diante das acusaes da
polcia de que os mortos preparavam bombas a ser utilizadas em uma insurreio
revolucionria, a reao dos anarquistas poca foi de neg-las e ainda levantar a
suspeita de que as bombas teriam sido plantadas pela prpria polcia, para justificar
uma ampla represso aos movimentos grevistas e uma violenta caa aos anarquistas.
Porm, em brevssimo relato feito posteriormente, Gigi Damiani admite que as
desconfianas da polcia estavam corretas:
O movimento deveria comear em So Paulo, mas
uma noite... um camarada que transportava uma bomba se
dirigiu a uma casa... que guardava outras armas e todo um
arsenal de que nos serviramos, quando, no se sabe como, a
bomba explodiu, matando quatro pessoas... Foi um verdadeiro
desastre para os companheiros que encontraram a morte e
para a organizao do movimento em curso. Aquela exploso
mostrou s autoridades onde e como ns estvamos nos
preparando. De fato, a polcia, alerta, iniciou uma campanha
de perseguio e priso que acabou com tudo.
200
Embora os registros acerca dos planos deste segundo levante sejam escassos
201
,
contraditrios e praticamente ignorados pela historiografia, plausvel considerar que
houvesse um plano de ao revolucionria, como o faz Bartz, apesar dos exageros
propalados pelos partidrios da reao. Havia uma percepo generalizada, tanto por
parte dos militantes anarquistas, assim como de outras correntes polticas, e at mesmo
199
Idem, ibidem, p. 91. A mim, permanece sendo um enigma o local e a data da precipitao que
teria redundado no fracasso de todo o movimento revolucionrio planejado. Por meros termos de
especulao, em outubro de 1919, ms em que teria ocorrido a visita do emissrio de A Plebe a
Nequete, deflagrou-se, no dia 16, a greve dos motorneiros dos bondes de Santos, empregados da City
Improvements Company, e, no dia 23, dos empregados motorneiros da Cia. Light and Power.
200
FEDELI, Ugo. Gigi Damiani: Note biografiche: Il suo posto nellanarchismo. Casena: Edizione
LAntistato, 1954, p. 27-28 apud DULLES, John W. F. Anarquistas e comunistas no Brasil, 1900-
1935. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977, p. 98.
201
curioso que, com exceo s fontes j referidas, todo o material que trata do perodo e da
insurreio de 1918 no traz nenhuma informao sobre os planos de 1919, nem mesmo as obras de
Edgar Rodrigues e de Edgard Leuenroth.
125
das foras conservadoras, de que um movimento revolucionrio, de carter popular,
impulsionado pelo movimento operrio, poderia eclodir no pas, a exemplo da Rssia.
Este temor se manifestou, por exemplo, nos discursos da Cmara dos
Deputados, e foi utilizado tanto pelas alas trabalhistas, como pelos membros do PRP,
que discutiam a necessidade de se implementar no Brasil uma legislao que
regulamentasse a relao capital/trabalho, a fim de fornecer melhorias condio
operria e amenizar os conflitos que poderiam ameaar a ordem estabelecida. Ao lado
desses debates, sobre a pertinncia e eficcia dos efeitos de uma legislao trabalhista,
instalaram-se instrumentos jurdicos para endurecer a represso, particularmente com a
reviso da lei Adolpho Gordo, proposta pelo prprio deputado para facilitar a expulso
de agitadores estrangeiros.
Alm das intentonas j referidas, o peso da influncia sovitica entre os
anarquistas do Brasil fez com que eles procurassem desenvolver outros modelos
organizativos que pudessem fortalecer e articular seus esforos comuns para alm da
experincia sindicalista, que continuaria a ser o principal instrumento de luta. Em 9 de
maro, foi fundado um Partido Comunista do Brasil (PCBA), e em junho eram
lanados os Princpios e fins do Partido Comunista-Anarquista
202
, apresentados por
Jos Oiticica na Conferncia Comunista, que ocorrera no Rio de Janeiro sob
interveno da polcia, que o dissolveu rapidamente
203
. Este plano, em que se
externavam a percepo dos anarquistas quanto s bases da sociedade futura pela qual
lutavam, considerava alguns direitos fundamentais que no poderiam ser usurpados por
ningum ou por nenhuma instituio. Por isso, entre seus princpios tericos e suas
previses prticas, estipulava-se os valores concernentes aos direitos absolutos de
cada indivduo, que s poderiam ser exercitados em sua plenitude no estgio
comunista, entendido como sinnimo de anarquia:
202
OITICICA, Jos. Princpios e fins do Partido Comunista-Anarquista - Apresentado pelo camarada
Jos Oiticica na conferncia comunista, reunida no Rio de Janeiro em Junho de 1919. Rio de Janeiro,
1919. Afora esta e outras pouqussimas referncias, a nomenclatura usual das fontes exclui o termo
anarquista. No entanto, daqui por diante, ser utilizada a sigla PCBA para evitar confuso com o
PCB surgido em 1922.
203
OITICICA, Jos. Princpios e fins do Partido Comunista-Anarquista - Apresentado pelo camarada
Jos Oiticica na conferncia comunista, reunida no Rio de Janeiro em Junho de 1919. Rio de Janeiro,
1919, p. 17; UNIO MAXIMALISTA. Boletim Protesto da Unio Maximalista perante a classe
trabalhadora do Estado, pela inqualificvel violncia praticada pelo chefe de polcia do Rio de Janeiro,
com tcita aprovao do governo da Repblica, contra o Partido Comunista Brasileiro. Porto
Alegre, jun. 1919 (panfleto).
126
XI Todo indivduo tem direito poro de energia
csmica suficiente para manter-se com o maior conforto
possvel, enquanto viver, sem prejuzo do conforto alheio. Para
isso deve concorrer com o mximo de trabalho til exigido
pela sociedade. (...)
XXVII Todo indivduo tem direito de expor seus
pensamentos e crenas, associar-se para fins recreativos,
cientficos, artsticos ou religiosos, desde que evite a
agiotagem. (...)
XLII S tem direito aos produtos sociais quem
trabalha, salvo os naturalmente incapazes. (...)
XXXI Todo trabalhador tem direito a frias, que ser
regulado conforme o permitirem as necessidades coletivas.
Para se concretizarem esses direitos, apenas a via da revoluo era possvel. A
funo do PCBA, diferentemente da perspectiva de dirigir centralizadamente o
processo revolucionrio, exemplificada pelos bolcheviques, era de propaganda do ideal
anarquista (entendido aqui como comunista, pela vinculao que faziam com o
anarco-comunismo), e, evidentemente, ser um elemento de articulao, de
organicidade entre os militantes que diziam-se revolucionrios no pas.
O que nos interessa aqui verificar como os anarquistas perceberam os limites
da estratgia sindical nesse contexto e a necessidade de se formar uma frente unificada
de ao em termos nacionais, tal qual propunha o PCBA. Este partido j era uma
tentativa de organizar para alm dos limites do sindicalismo, da luta por direitos
imediatos para a luta efetiva pelo direito vida. Por certo, era inspirado na Revoluo
Russa, mas a idia de partido entre os anarquistas no algo novo. Malatesta passou
praticamente toda a sua vida de militante esforando-se por formar um partido
anarquista na Itlia, sem nenhuma conotao eleitoral, ao contrrio, apenas para
congregar esforos em torno de uma organizao estvel mas foi amplamente
combatido pelas tendncias individualistas
204
. Para tanto, coloca-se novamente a
questo da validade de unio de foras, no entanto em termos diferentes do
sindicalismo assumido at ento, que, como vimos no primeiro captulo, possibilitou a
penetrao e controle dos anarquistas em muitas associaes e federaes sindicais,
mas, ao mesmo tempo, limitou a propaganda. O af revolucionrio necessitava que a
divulgao do ideal deixasse para trs sua forma difusa, concentrada em crculos de
estudos sociais e de propaganda anarquista, para assumir uma forma conjunta, um
plano de ao que no fosse residual, restrito a esta ou aquela localidade ou estado,
204
ARUFFO, Alessandro. Breve storia degli anarchici italiani: 1870-1970. Roma: Datanews, 2006.
127
para ultrapassar as fronteiras polticas do pas. Neste sentido, no era mais suficiente a
unio de foras apenas no sindicalismo, no processo de constituio dos laos de
solidariedade e coeso que permitissem que os operrios passassem a ver a si prprios
como integrantes de uma classe. Passava-se a avaliar que a unio de foras polticas
revolucionrias era importante tambm fora dos meios sindicais, como coordenadores
de um processo de transformao radical.
Contudo, a forte represso que se abateu no pas, especialmente aps a greve
geral de So Paulo de 1919, e a exploso de uma bomba durante a greve geral de Porto
Alegre no mesmo ano, trouxe novas dificuldades de articulao revolucionria e a
renovao de dvidas sobre os mtodos de ao. Em meio s turbulncias das greves
que pululavam em muitas cidades do pas, a questo acerca do sindicalismo como
usual instrumento de luta revolucionria, passa a ser novamente posta em pauta entre
os anarquistas, a fim de que conflussem em um movimento revolucionrio. Para
reunir esforos, realizaram-se congressos operrios estaduais em Pernambuco e no Rio
Grande do Sul, sendo que a Liga Operria de Campinas teve pelo menos a inteno de
fazer o mesmo para o estado de So Paulo e a Federao dos Trabalhadores do Rio de
Janeiro, como trabalho de coordenao geral desses esforos regionais, resolveu
convocar o 3 Congresso Operrio Brasileiro, para tratar, entre outros graves
problemas da hora, da reorganizao da COB
205
.
Antes de adentrar na anlise do significado do congresso, cabe apresentar
algumas discusses prvias acerca do impacto da Revoluo Russa entre os anarquistas
brasileiros e os limites em que se deram os debates internos.
PRIMEIRAS CRTICAS AO BOLCHEVISMO: DITADURA DO PROLETARIADO
OU ANARQUISMO?
Afirmar que a Revoluo Russa teve forte impacto no Brasil, ao estimular os
anarquistas brasileiros a avaliarem que a agitao operria daqueles anos poderia ser
convertida de uma luta por direitos e conquistas imediatas em uma luta efetivamente
revolucionria, no significa dizer que os anarquistas tenham apoiado acriticamente o
desenrolar do processo em curso sem fazer um exame de como eles estariam de acordo
com a concretizao de seu ideal.
205
Congressos Operrios. Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 11, 11 out. 1919, p. 3.
128
usual falar-se que os anarquistas brasileiros, tais quais em muitas outras
partes do mundo, viveram entre 1917 e 1920 um estado de certa confuso ideolgica
ao avaliarem que a Revoluo Russa seria uma revoluo libertria. verdade que a
veiculao de notcias de rebelio popular, greves e revolues logo sofria certa
apropriao por parte dos anarquistas para sua propaganda, reputando-lhes algum
carter poltico-ideolgico anarquista (muitas vezes propagado como instinto
comum a todos os homens) que muitas vezes no possuam. Fora assim com a
Revoluo Mexicana, por exemplo, alguns anos antes.
Num primeiro momento, portanto, ao saberem que na Rssia se efetivava uma
verdadeira revoluo que expropriava a propriedade privada dos meios de produo,
tornando-a coletiva, sob o controle dos soviets, os anarquistas do Brasil, como os de
todo o mundo, acreditaram se tratar de um importantssimo passo em direo
realizao de suas aspiraes, o incio da Revoluo Social que instituiria finalmente a
Anarquia em todo o mundo, e estava em processo de expanso, como se verificava nos
combates na Hungria, na Romnia, na Polnia e na Alemanha.
Porm, mesmo sendo influente o pensamento de vis automatista e natural-
evolucionista, como o de Kropotkine e de Elise Rclus, sobre a inevitabilidade da
revoluo anarquista, o movimento libertrio, de modo geral, assim como esse autores,
sabia que a convergncia de um movimento revolucionrio em relao ao ideal
dependia da ao voluntarista e consciente, pois as opes de rumos a serem seguidos
poderiam ser variadas e contrrias.
De maneira geral, no Brasil e no mundo, a posio dos anarquistas at o fim de
1921 foi efetivamente de defesa da Revoluo Russa. A concretizao de uma ptria
dos trabalhadores vinha finalmente provar, contra todo o ceticismo reinante, suas
convices sobre a possibilidade de destruio da ordem existente e construo de uma
nova por obra e controle dos operrios e camponeses. E, circunstancialmente, tal qual
propugnavam desde antes da ecloso da conflagrao de 1914, provava a todos os
cticos e adversrios que os trabalhadores poderiam se erguer diante de um quadro de
misria aprofundado pela guerra. Assim, o sentido do apoio revoluo em curso no
se limitava apenas solidariedade e aos melhores desejos aos habitantes da longnqua
Rssia e dos pases prximos. Era uma prova da viabilidade da revoluo
emancipadora de toda a humanidade, gerida e comandada pelos trabalhadores. Se o
anarquismo no era a corrente predominante, a anarquia nasceria com o passar do
129
tempo, fruto da insistente e incansvel militncia de seus partidrios, vencendo, pelo
convencimento e pela razo e no pela fora do autoritarismo, as correntes
revolucionrias adeptas do estatismo.
nesse sentido que os anarquistas vislumbravam, tal qual na Rssia, a
constituio de alianas com outras correntes polticas que se diziam propugnadoras de
uma sociedade nova. Deste modo, por exemplo, Gigi Damiani, motivado pela notcia
do ressurgimento do jornal do Partido Socialista de So Paulo, escrevia, em maro de
1919, sobre a necessidade de unio de foras e de que maneira isso seria conveniente
para os prprios anarquistas, na medida em que sua prpria propaganda teria mais
eficincia por estar menos difusa. O texto no claro sobre como concretizar essa
unio, contudo, significativo sobre as crticas que este militante fazia sobre o
isolamento e pureza do anarquismo, que pde se manter livre de acusaes de ter
falhado, muitas vezes, por no ter feito. Mas, o mais importante, exemplar quanto
avaliao de que a hora de uma sublevao revolucionria estava prxima e precisava
ser desencadeada conforme inspirao vinda da Rssia:
Ser possvel a concentrao de todas as foras
proletrias para um fim nico de imediato alcance?
Anarquistas, socialistas, sindicalistas podero
constituir um nico organismo revolucionrio sem que haja na
luta disperso de energias ou esforo contraditrio?
Ontem teramos respondido: no! Um no seco,
conciso, brutal. Divididos pelas divergncias doutrinrias e
diferenciados essencialmente pelos mtodos de luta, os
elementos da vanguarda, nas contendas sociais, neutralizavam
seus esforos, falando s multides linguagem diversa,
exagerando num ou noutro sentido.
Para os socialistas, apegados a uma paradoxal
interpretao do dogma marxista, no havia outro caminho de
redeno para a plebe seno o traado pelo evolucionismo ,
que, por uma curiosa ilao, no podia ser outra coisa seno o
parlamentarismo (...).
Os sindicalistas, por sua vez, tendo posto, no comeo, a
poltica fora da porta das associaes de classe, recusando-se
a servir de veculo aos manejos eleitorais, recusavam-se
tambm a firmar um programa poltico e econmico que
ultrapassasse o seu reformismo proletrio, que se conservava
simples reformismo, mesmo quando apelava para a ao
direta.
Enquanto isso, ns, os anarquistas, permanecemos bem
encerrados na nossa torre de marfim, e se algum de l saa,
o fazia para falar ao povo como falava Zaratrusta ou para
regressar ao mundo burgus valorizado como subversivo...
130
Eu no sei se a nossa intransigncia foi sempre
oportuna; sei, porm, que ela nos livrou de muitas desiluses.
Penso, entretanto, que uma mais exata viso da vida real nos
teria poupado um considervel dispndio de preciosas
energias empregadas em futilidades transcendentais. (...)
Os partidos de vanguarda, em todo o mundo, esto, por
isso, se aproximando, impelidos pela vontade proletria. As
tendncias reformistas tornam ao seio da grande me barreg
a democracia burguesa, porque as multides operrias
querem apressar-se conquista da histria e no prestam mais
ouvidos s sereias do pouco a pouco eterno e insubstancial.
Ser, pois, possvel, a concentrao de todas as foras
proletrias que professam um ideal de reivindicaes sociais?
Sim, possvel, desde que no haja equvocos.
Ontem era lcito discutir sobre parlamentarismo,
salrios mnimos, propaganda pelo fato, ao direta e
insurrecionalismo...
Hoje o problema bem diverso.
Passou-se a poca dos discursos e chegou a hora dos
fatos. (...)
Agora, o dilema que nos apresenta a dbcle da
sociedade burguesa este: pelo socialismo ou contra o
socialismo.
Anarquistas, socialistas, sindicalistas somos todos pela
socializao imediata da propriedade. (...)
Resta ver de que meios uns e outros teremos de nos
servir para estabelecer essa socializao da propriedade no
dia aps a revoluo triunfante.
Portanto, ser bom que a concentrao, possvel e til,
no chegue eliminao dos partidos.
O anarquismo, no movimento socialista e mesmo no
seio da sociedade atual, representou uma fora propulsora,
mesmo na sua parte negativa. O anarquismo dinamismo
social. Foi-o ontem, e s-lo- amanh, mesmo vigorando a
repblica dos soviets...
Isto no impede que hoje nos irmanemos, anarquistas,
socialistas e sindicalistas para fazer a revoluo e socializar a
propriedade... Depois... se o carro parar... ns continuaremos
a impeli-lo para a frente.
206
A diviso entre autoritrios e libertrios, cindidos desde o fim da I
Associao Internacional dos Trabalhadores, era, obviamente, conhecida entre os
anarquistas do Brasil, ao menos entre os mais conscientes de sua posio ideolgica.
Por outro lado, comum serem encontradas no material de propaganda anarquista
brasileiro at 1921, pelo menos, diversas referncias a Marx, transcries de textos de
206
DAMIANI, Gigi (Luigi). Problemas da atualidade Pela concentrao dos partidos proletrios. A
Plebe, ano II, n.6, 29 mar. 1919, p. 4.
131
Lnin e Trotsky e artigos sobre suas personalidades, tratados como verdadeiros
revolucionrios, aliados confiveis, embora no fossem anarquistas. Mas como
condenar os adeptos do marxismo se naquele momento eles mostravam-se verdadeiros
revolucionrios? Ambas as faces estavam aliadas contra os inimigos comuns, que
incluam no apenas os tradicionais adversrios, capitalistas, clero, Estado, mas
tambm os reformistas social-democratas que desviavam os trabalhadores de seu
destino revolucionrio. Naquelas circunstncias, ambas as correntes se redimiam e se
locupletavam na primeira revoluo socialista com reais chances de concretizao
207
,
especialmente num momento de imperiosa necessidade de defesa contra os ataques
contra-revolucionrios impetrados pelas potncias da Entente.
A ditadura do proletariado prevista e defendida pelos autoritrios foi
defendida por libertrios de todo o mundo diante das ameaas da reao. A
sobrevivncia da revoluo dependia inevitavelmente de um exrcito e de um controle
central para promover estratgias de defesa. Diante de tal quadro, nenhum anarquista
do mundo ousou questionar o uso de aparelhos de Estado enquanto a Revoluo se
expandia e resistia s investidas reacionrias. Contudo, pouco a pouco os anarquistas
tiveram que se defrontar com o dilema de apoiar uma ditadura, tema esse que
ocupou espao em diversas publicaes com grandes exerccios retricos para
construir coerncia entre suas antigas convices e a nova realidade imposta pelos
fatos.
De toda forma, o surgimento do debate nesses jornais paulistas em torno da
ditadura do proletariado em implantao na Rssia, ainda no incio do ano de 1919,
nos sugere que os anarquistas brasileiros acompanhavam os desdobramentos da
revoluo e as questes contraditrias que suscitavam. Outros textos do mesmo ano,
escritos por militantes do Brasil e veiculados na imprensa operria nacional, do sinais
da preocupao em apoiar um regime que se dizia ditatorial. Em um deles, por
exemplo, Isidoro Augusto testemunha a multiplicidade de posies a respeito do que
seja a ditadura do proletariado em vigor na Rssia e afirma ser ela mais anarquista
207
Apenas a ttulo de exemplo, uma breve passagem que sintetiza a idia presente entre os militantes
brasileiros, de que se vivia uma era de unio, ainda que no seria eterna, entre as duas tendncias
revolucionrias: Sou desordeiro e doido, porque leio Kropotkine, inspiro-me nas pginas
maravilhosas de Bakunine e de Carlos Marx e admiro a obra de Lenine na Rssia. GERAES,
Antonio. A essa boa gente brasileira. Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 5, 30 ago. 1919, p. 4.
132
do que marxista
208
. Para o autor, o teor pejorativo da expresso ditadura provinha
das foras reacionrias, dentre elas a grande imprensa brasileira
209
, com o objetivo
explcito de combater o significado da revoluo e embaar qualquer estmulo que
pudesse gerar em terras sul-americanas.
Porm, a preocupao acerca de se apoiar um regime estatal, pouco importando
o adjetivo ditadura, acabou por manifestar-se ainda no incio de 1919 na imprensa
controlada pelos anarquistas. Um dos primeiros registros crticos publicizados por
anarquistas brasileiros encontra-se no primeiro nmero para o ano de 1919 de A Plebe.
Na verdade, este exemplar no foi consultado, mas sabe-se desse registro pelo que se
depreende da leitura de uma carta de um leitor, datada de 8 de maro de 1919 e
enviada redao do hebdomadrio em lngua italiana Alba Rossa. O autor diz estar
confuso aps a leitura dos artigos de ambos os jornais, publicados no mesmo dia 22 de
fevereiro
210
. A sua carta expe um aspecto do contraditrio existente entre anarquistas
de So Paulo, e solicitava aos redatores de Alba Rossa, que se esclarecessem os pontos
de vista, pois o povo precisa afirmar-se em conceitos seguros. E vocs no devem
esquecer a responsabilidade moral que lhes incumbe como redatores de um jornal de
propaganda. Segundo o autor da carta, no peridico em lngua italiana se fazia uma
apologia ditadura do proletariado, sendo esta uma fora social executiva, mas no o
Estado conservador, uma vez que os comissariados so ofcios de direo, mas no
constituem ministrio. Mesmo tratando-se de um perodo especfico, que medida
que a vida social se normaliza tende a espoliar-se, o leitor aponta que em A Plebe
consta a notcia da recusa da maioria dos anarquistas italianos (...) a prestar seu
apoio a um movimento maximalista, uma vez que consideram que a ditadura
exclusivista e opressora. Por isso, defendem sua derrubada e, em seu lugar, a
constituio de Comunas Libertrias
211
.
208
AUGUSTO, Isidoro. Em torno das ditaduras. Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 20, 13 dez. 1919, p.
1.
209
PAVEL, Alex [pseudnimo de Astrojildo Pereira]. A Revoluo Russa e a imprensa. Rio de Janeiro:
s/e, 1918. Opsculos ASMOB 172, 01, 3. Trata-se de um folheto cujo contedo consistia em uma
reunio de cartas enviadas pelo autor a diversos jornais, escritas entre 25 de novembro de 1917 e 4 de
fevereiro de 1918, em resposta s notcias por eles divulgadas. No esquecer, por sua vez, que
Astrojildo abandonaria o anarquismo e fundaria o PCB em 1922.
210
Dittatura proletaria o Comune Libertaria? Appunti interessanti e doverosi. Alba Rossa Periodico
Settimanale Libertario. So Paulo, ano I, n. 7, 8 mar. 1919, p. 1. No consultei o referido artigo da
paulistana A Plebe, mas teria sido publicado em seu n. 1, tambm de 22 fev. 1919. J o do jornal em
lngua italiana, seria: La Rivoluzione Sociale inevitabile e... inevitabilmente anarchica! Alba Rossa
Periodico Settimanale Libertario. So Paulo, ano I, n. 5, 22 fev. 1919, p. 1.
211
Idem, ibidem.
133
Imediatamente a seguir, o grupo Alba Rossa responde inexistir confuso da
parte deles, seno de seus colegas de A Plebe, uma vez que a ditadura do proletariado
no era mais do que um meio para se garantir a efetivao das Comunas Libertrias.
Depois de explicar sua posio, a redao solicitava A Plebe, que redigissem seus
textos com mais cuidado e fossem mais reflexivos, antes de lanar os seus
mesquinhos antemas
212
.
Infelizmente, os nmeros de A Plebe que consultei para o ano de 1919 iniciam
somente a partir de seu sexto nmero, de 29 de maro, e no h mais qualquer
referncia ao que poderamos considerar uma provocao de Alba Rossa. De outra
parte, parece-me claro que este conflito entre os grupos editores e colaboradores destas
duas publicaes no se exacerbou em uma clivagem definitiva, apesar dos tons
speros. Tanto assim, que uma recomenda a leitura da outra, chegando ao ponto de
Alba Rossa cessar sua publicao peridica, que enfrentava algumas dificuldades para
sair semanalmente, para apoiar a publicao diria de A Plebe, solicitando apenas que
esta aumentasse o espao dedicado sua seo em italiano
213
. No peridico em italiano
as manifestaes de apoio ao desenrolar da revoluo so mais explcitas, pois , de
longe, o tema mais presente em suas pginas, enquanto em A Plebe as referncias
revoluo dos sovietes so igualmente elogiosas, embora em menor volume. De todo o
modo, para o ano de 1919 j possvel perceber no material de propaganda anarquista
as divergncias internas em relao aos encaminhamentos da Revoluo Russa.
Essa discusso seria retomada pouco mais tarde, em um primeiro esboo de
definio de posio poltica e de projeo de uma nova sociedade almejada pelos
anarquistas. Trata-se do texto de Edgard Leuenroth e Hlio Negro (pseudnimo do
grfico anarquista Antonio Duarte Candeias) O que o maximismo ou o
bolchevismo?
214
, escrito s pressas, em trs seres para que fosse distribudo a tempo
das manifestaes paulistas do 1 de Maio de 1919. O significado histrico deste
documento consiste no fato de seu contedo ser o esboo mais detalhado produzido no
Brasil sobre a sua concepo do funcionamento da sociedade futura, apesar das
ressalvas feitas pelos autores, de eventuais fragilidades e contradies do texto
ocasionadas pela falta de condies ideais para a produo de um texto com tais
212
Dittatura proletaria o Comune Libertaria? Appunti interessanti e doverosi. Alba Rossa Periodico
Settimanale Libertario. So Paulo, ano I, n. 7, 8 mar. 1919, p. 1.
213
Ai nostri lettori. Alba Rossa Periodico Libertario. So Paulo, ano I, n. 22, 13 out. 1919, p. 1.
214
LEUENROTH, Edgard e NEGRO, Hlio. O que o maxismo ou o bolchevismo: programa
comunista. So Paulo: Editora Semente, s./d. (Edio original de 1919).
134
pretenses. Amplamente recomendado pela imprensa anarquista e sindicalista da
poca, nele est estabelecida a projeo de uma organizao social sem Estado,
baseada no mais largo federalismo e nas liberdades individuais. Tratava-se de uma
Confederao de Comunas Livres, repudiando, como inimigo irreconcilvel do
comunismo libertrio, tanto o coletivismo quanto o socialismo de Estado, por criar
inevitavelmente os privilgios burocratas
215
. A base desta sociedade seriam os
sindicatos comunais de ofcios ou profisses, reunidos, a seguir, em uma
federao comunal desses sindicatos (para a diviso territorial das futuras Comunas
Livres poderiam ser aproveitados os limites territoriais dos municpios j existentes).
Para manter todas as federaes em permanente relao entre si, existiria uma
Confederao Geral do Trabalho sem poderes de ingerncia ou interveno. Os
interesses gerais seriam tratados em Congressos do Trabalho, que viriam a ser
assemblias temporrias, compostas dos delegados de todas as associaes da
Federao das Comunas Livres do Brasil
216
. Quanto s decises envolvendo
questes de interesse da populao comunal, formar-se-iam Conselhos Comunais e
Comissariados do Povo, cujas discusses ficariam a encargo dos representantes dos
centros de trabalho e agremiaes locais, e se criariam Comisses Executivas
especficas para executar as deliberaes coletivas
217
.
Apesar do ttulo sugerir uma resposta ao que seria o maxismo ou
bolchevismo, o texto no se detm propriamente anlise dos eventos na Rssia, mas
se preocupa em apresentar um programa para a construo de uma nova ordem,
tentando provar, na primeira parte, aos cticos e reao, que ele vivel. A nica
meno ao bolchevismo limita-se s duas primeiras pginas, para dizer que sinnimo
de maximismo, adeptos do programa mximo do partido socialista
218
. No mais,
baseado no art. 9 do captulo V da Constituio em vigor, aprovada em janeiro de
1918, diz que a Rssia vivia um perodo de transio social sob o controle dos
Conselhos (os Soviets), formados por trabalhadores (operrios e camponeses) e
soldados.
215
Idem, ibidem, p. 22-23.
216
Idem, ibidem, p. 33-34.
217
Para detalhes especficos das atribuies e das normas de funcionamento das Federaes
Corporativas, dos Conselhos Comunais e dos Comissariados do Povo, e suas respectivas Comisses
Executivas, ver Idem, ibidem, p. 52-56.
218
Idem, ibidem, p. 7. Dizem os autores que os termos bolcheviquismo e maximalismo, muito
freqentes poca, so anglicismos idiotas.
135
interessante que mesmo carregando uma evidente influncia da Revoluo
Russa, e admitindo vigorar um regime de transio, em virtude da necessidade de
defesa (executada, segundo os autores, pelos trabalhadores que receberam carabinas
para este fim), nota-se a ausncia da expresso ditadura do proletariado. Tal qual a
notcia veiculada em A Plebe, de 22 de fevereiro de 1919, sobre as ressalvas dos
anarquistas italianos, projeta o futuro em termos de um Federalismo sem Estado de
Comunas Livres, de acordo com o ideal do Socialismo ou Comunismo libertrio. Um
federalismo, alis, muito prximo ao que tentavam executar nas organizaes operrias
desde 1906.
Portanto, parece-me lcito considerar que j no ano de 1919, a despeito do
silncio e das declaraes de apoio incondicional ao avano da Revoluo Russa,
muitos anarquistas do Brasil conheciam as contradies entre o seu ideal e o processo
em curso. Entretanto, preferiram silenciar ou pelo menos no exacerbar as tenses a
ponto de chegar incompatibilidade, pois eram francamente favorveis revoluo em
curso, sabiam das dificuldades e acreditavam na reverso do quadro poltico aps a
vitria contra-blica.
Existem vestgios desse comportamento entre anarquistas de todo o mundo de
amenizar estrategicamente as crticas para no arriscarem contribuir em uma inferncia
negativa revoluo. Ainda que sejam declaraes posteriores, quando as posies j
estavam definidas pelo antagonismo irreconcilivel, e todo o passado pode ser revisto
luz do presente, as avaliaes do conta de que as desconfianas existiam, ainda que
no fossem divulgadas. assim que o conhecido anarquista alemo Rudolf Rocker, em
1921, lamentou a traio dos sovietes pelos bolcheviques:
A imprensa anarquista e sindicalista esforou-se
particularmente para observar uma grande conteno em sua
crtica s idias bolchevistas, para no levar gua aos
moinhos da contra-revoluo. Muitas notcias que nos
chegavam, muitas medidas do governo sovitico que
pensvamos ser fatais ao desenvolvimento da Revoluo,
foram silenciadas, pois dizamos a ns mesmos que no era o
momento de criticar. Cada um de ns ressentia toda a fora
das enormes dificuldades que se acumulavam na Rssia e
ameaavam o curso dos acontecimentos revolucionrios.
Tambm dizamos a ns mesmos que mais fcil formular
crticas do que melhorar as coisas, e foi esse sentimento
instintivo de responsabilidade que fez com que muitos de ns
se calassem em uma poca em que a Rssia, sangrando por mil
ferimentos, devia combater por seu destino. Mas foi justamente
136
essa posio difcil, a que a irresistvel presso das
circunstncias empurrou todas as tendncias no-bolcheviques
do movimento socialista em geral, que deu aos partidrios sem
escrpulos do bolchevismo a possibilidade de difamar como
contra-revolucionrios todos aqueles que seguiam uma outra
via e no queriam dobrar-se a seu diktat.
219
Do mesmo modo, no Brasil, em conferncia realizada na Liga Operria de
Construo Civil, de Niteri, Fbio Luz consente, enfim, em considerar propcio o
momento de responder s perguntas feitas pelo pblico em torno da dade
Maximalismo e Anarquismo. Isso seria somente a em 4 de dezembro de 1921,
quando Astrojildo Pereira anunciara, em novembro, sua deciso de formar o PCB:
A Repblica Maximalista, bolchevista, marxista ou
dos soviets prepara o terreno para o estabelecimento de um
regime social anrquico?...
Ouso afirmar que no. E aproveito a oportunidade
para responder de pblico as perguntas que me fizeram e que
no julguei propcio o momento de responder.
O anarquismo quer a abolio completa do Estado e o
Estado bolchevista a hipertrofia desta nefasta instituio. O
Estado maximalista absorvente; ditatorial, escravizador,
nico, centralizador e onipotente.
220
A relutncia em somente manifestar em pblico um veredicto negativo ao
julgar o carter da orientao conferida Revoluo Russa pelos bolcheviques
compreensvel. Os conflitos entre as correntes revolucionrias poderia pr em risco
toda a construo revolucionria alm do, visto teleologicamente, condenar
politicamente o anarquismo ao ostracismo. Por ambas as razes, mesmo depois que as
posies j estavam definidas, os anarquistas tentaram desenvolver atividades em que
tivesse espao para a discusso entre todas as tendncias quanto s estratgias do
movimento operrio revolucionrio internacional.
Portanto, em 1919, tal qual no ano anterior, predomina na imprensa operria a
defesa da Revoluo Russa, vista como a etapa inicial para a grande Revoluo Social
que libertaria a humanidade para a anarquia, embora j existam ressalvas. O que estava
em questo naquele momento no era discutir propriamente o carter da Revoluo
Russa, at mesmo porque muitos acreditavam que ela poderia desembocar em uma
219
ROCKER, Rudolf. Os sovites trados pelos bolcheviques. So Paulo: Hedra, 2007, p. 31-32.
(Edio original, 1921).
220
LUZ, Fabio. Maximalismo e anarquismo. O Libertrio Edio da Alliana Anarquista. So
Paulo, ano I, n. 1, 1 jan. 1922, p. 2-3.
137
revoluo anarquista de fato, o que implicava dizer a derrota de outras tendncias tidas
como autoritrias, por defenderem a conservao do Estado como meio de promover e
garantir a permanncia do movimento revolucionrio. A principal questo continuava a
ser como fazer com que no Brasil os trabalhadores tomassem parte deste movimento
considerado universal; como passar da promoo do discurso, da difuso de idias, das
palavras de ordem e partir para a ao prtica e eficaz, uma ao que contasse com o
apoio substancial dos trabalhadores, um movimento poltico e social slido que
transformasse radicalmente a ordem existente. E, para o que interessa especificamente
questo da revoluo no Brasil, os anarquistas voltaram a discutir a questo da
prtica sindicalista no 3 Congresso Operrio Brasileiro, realizado em 1920, no Rio de
Janeiro.
No entanto, para compreender melhor quais questes nortearam a necessidade
de se formular redes de organizaes operrias mais eficientes do que as que se
construram at ento, passa-se a ver o quadro dos debates prvios ao congresso
nacional, para compreender as tnicas dos debates e o tensionamento de posies
revolucionrias verificadas ali.
O CONGRESSO OPERRIO DO RIO GRANDE DO SUL, DE 1920
Cerca de um ms antes do 3 Congresso Operrio Brasileiro, reuniram-se em
congresso estadual realizado entre os dias 21 a 25 de maro de 1920, em Porto Alegre,
representantes de trinta associaes operrias de diversas cidades do Rio Grande do
Sul. Esta reunio, organizada pela FORGS, estava sendo planejada desde pelo menos o
ms de junho de 1919
221
, inicialmente prevista para ocorrer em 14 de julho do mesmo
ano. Mas as primeiras chamadas parecem no ter sensibilizado muitas associaes do
interior, pois a comisso organizadora do congresso lamentou a falta de resposta ao
chamado
222
, ao que parece causada por uma percepo das lideranas do interior de
que a chamada tinha sido feita em prazo muito curto, no sendo possvel mobilizar
suas associaes a tempo de participar do evento
223
. Por isso, ele foi adiado pelo
221
Congresso Operrio Regional - s associaes Operrias do Rio Grande do Sul. O Syndicalista
rgo da Federao Operria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano I, n. 4, 17 Jun. 1919, p. 2.
222
III Circular O Syndicalista rgo da Federao Operria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano
I, n. 5, 11 Jul. 1919, p. 2.
223
Congresso Operrio Regional - A adeso das principais associaes operrias do Estado. O
Syndicalista rgo da Federao Operria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano I, n. 6, 2 Ago.
1919, p. 2.
138
menos trs vezes at se chegar data de 5 de outubro, para, enfim, ser realizado em
maro do ano seguinte. Embora o silncio das fontes no permita precisar os motivos
para o novo adiamento de quase cinco meses, o atraso se deu, provavelmente, causa
da urgncia exigida pelos conflitos grevistas e represso instalada a partir de
setembro no estado.
Apesar do atraso, o chamado da FORGS permanecia estar diretamente
relacionado com a avaliao de que as circunstncias internacionais eram promissoras
para que os movimentos operrios gacho e brasileiro contribussem no processo de
emancipao dos trabalhadores e de toda a humanidade, como salienta trecho de
circular emitida pelo Comit Pr-Congresso:
Mormente no momento atual em que por todos os
recantos do globo as classes produtoras esto a caminho de
encontrar a nica e desejada soluo para o complexo
problema social, insolvel para as classes dirigentes, no
possvel sermos indiferentes ao que se vai desenrolando em
torno de ns.
224
Considerando que j estava programado o 3 Congresso Operrio Brasileiro, o
encontro estadual teve como primeiro tema de discusso a questo da Organizao
operria, tema presente e de destaque durante toda a histria do movimento anarquista
no Brasil, e que seria um tema central para a ruptura interna sofrida dois anos depois
no movimento anarquista brasileiro.
Embora os detalhes da discusso entre os gachos sejam sucintos, possvel
perceber que h divergncias acerca dos mtodos de ao entre os militantes, dentre
eles Ablio de Nequete, que no era anarquista, e insatisfao geral com os resultados
alcanados at aquele momento:
O presidente entrega discusso do Congresso a 1
tese [apresentada pela Federao Operria de Pelotas:
Organizao: atribuies do sindicato Federao, da
Federao Confederao e desta Internacional]. Faz uso da
palavra o seu relator, Alberto Lauro, esclarecendo o esprito
da mesma. Ablio de Nequete apresenta um projeto de
organizao, provocando longos debates. O delegado dos
grficos [o anarquista Orlando Martins, do Sindicato Grfico
Comunista] faz vrias consideraes e apresenta uma
proposta, retirando-a, em seguida, em virtude de explicaes
obtidas de Ablio de Nequete.
224
Congresso Operrio Regional - s associaes Operrias do Rio Grande do Sul. O Syndicalista
rgo da Federao Operria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano I, n. 4, 17 Jun. 1919, p. 2.
139
Fala o representante da Federao Pelotense [Alberto
Lauro] e alonga-se no estudo da organizao operria,
monstrando a necessidade de se seguir nova orientao.
O representante do Sindicato dos Sapateiros [Orlando
de Arajo e Silva], numa longa e fundamentada orao, faz
uma exposio do sindicalismo, dizendo aceit-lo e que, se ele
no tem dado melhores resultados, por culpa dos prprios
operrios.
Fazem ainda uso da palavra os representantes dos
alfaiates [Tacito Ferreira], dos pedreiros [Emlio Pereira], da
U.T. de Bag [Venncio Pastorini ou Ceclio F. dos Santos] e
do S.O.V. de Caxias [Ado Lucatelli].
A discusso dessa tese prolonga-se at as 19 horas,
sem se chegar a uma concluso, o que prova o interesse dos
congressistas em resolver com serenidade e conscincia as
questes suscitadas. Por fim, devido s opinies
desencontradas, o delegado de Pelotas prope que seja
nomeada uma comisso para dar parecer sobre o assunto, o
que foi aprovado.
225
Infelizmente, no foi possvel encontrar maiores informaes a respeito das
discusses em torno do tema da organizao operria, tampouco do sexto dos oito
temas previstos, a arma do sindicalismo
226
, e que deve ter sido discutido. De todo o
modo, do vago trecho acima possvel depreender a tenso em torno da questo da
organizao e a crescente radicalizao do discurso acerca da prtica sindicalista que
se observa desde 1917. Silvia Petersen, em seus apontamentos sobre os Cadernos de
Abilio de Nequete, tambm concorda que a reunio foi muito mais tensa do que se
pode depreender do vago e conciliatrio trecho da ata. O domnio anarquista no evento
lhe cassou a palavra no primeiro dia quando este propunha a adeso a Moscou (
III Internacional ou ao seu brao sindical, a Internacional Sindical Vermelha?) e os
225
Congresso Operrio Regional do Rio Grande do Sul realizado nos dias 21, 22, 23, 24 e 25 de maro
de 1920, em Porto Alegre. Relatrio tirado do boletim dirio publicado durante os seus trabalhos.
Boletim da Comisso Executiva do 3 Congresso Operrio. So Paulo, ano I, n. 1, ago. 1920, p. 21.
Grifo meu.
226
O relatrio constante no Boletim do 3 Congresso Operrio Brasileiro finaliza na segunda sesso e
diferencia-se brevemente transcrio feita por Edgar Rodrigues (Alvorada operria: os congressos
operrios no Brasil. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1979, p. 39-47), em fonte no indicada pelo autor.
De acordo com ele, estiveram em pauta os seguintes temas: 1 - Organizao; 2 - Os delegados que
devem representar o nosso operrio no 3 Congresso Operrio Brasileiro; 3 - Dirio (jornal de
classe para o Estado); 4 - Qual deve ser a atitude do operariado em caso de guerra?; 5 - A jornada
de 8 horas; 6 - A arma do sindicalismo; 7 - Os deportados; 8 - Diversos assuntos. Em nota de
rodap (p. 44), ele justifica a deciso de no reproduzir a discusso de todas as teses tal qual consta no
documento, devido inconstncia das resolues; reproduo da transcrio de Rodrigues
encontra-se tambm em PETERSEN, Silvia Regina Ferraz e LUCAS, Maria Elizabeth. Antologia do
movimento operrio gacho (1870-1937). Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS; Tch!,
1992, p. 225-233.
140
anarquistas Internacional Anarquista, retirando a proposta aps s-la duramente
refutada na sesso seguinte e rompendo com a FORGS
227
.
Afora essa observao, no se tem disposio da pesquisa o prometido
parecer sobre o tema da organizao. Contudo, a declarao de princpios aprovada
pelo congresso
228
indica uma concepo dos participantes do encontro que atribua
prtica sindicalista um radicalismo explcito, especialmente no combate ao Estado. Tal
qual na declarao de princpios dos outros congressos, refuta-se a intromisso de
partidos polticos nos assuntos operrios, mas, desta vez, de modo muito mais enftico
combate-se o Estado, toda forma de governo e proclama-se abertamente a defesa do
socialismo e do comunismo:
(...) o Estado se torna o empecilho mais poderoso de
todo o progresso e de todo o desenvolvimento cultural,
passando a ser o mais formidvel bastio das classes
proprietrias contra os esforos libertrios do povo operrio.
Os sindicalistas (...) so adversrios de qualquer
administrao monopolista. Eles aspiram socializao das
terras, dos instrumentos de trabalho, das matrias-primas e de
todas as riquezas sociais, reorganizao de toda a vida
econmica sobre a base de um comunismo livre, isto ,
desprovido do que se chama o Estado (...).
Partindo da convico de que o socialismo, em ltima
anlise, uma questo cultural e, como tal, s pode ser
analisada de baixo para cima, pela atividade criadora do
povo. Repelem os sindicalistas qualquer meio que conduza a
uma chamada secularizao, a qual s pode levar pior forma
de explorao, ao capitalismo administrativo, nunca, porm,
ao socialismo.
Os sindicalistas nutrem a convico de que a
organizao de uma ordem econmica socialista no pode ser
regulada por decises governamentais e decretos estaduais,
mas sim, e unicamente, pelo concurso de todos os que
trabalham, quer com a mente quer com os braos, em cada
ramo especial de produo, assumindo os prprios produtores
a administrao de cada estabelecimento; e ramos de
produo isolados se constituam em membros autnomos do
organismo administrativo geral, aos quais caber, no interesse
da generalidade, a organizao sistemtica da produo total
e de permuta geral, sobre a base de combinaes recprocas e
desafrontadas.
Os sindicalistas so de opinio que os partidos
polticos, seja qual for o crculo de idias a que pertenam,
227
PETERSEN, Slvia Regina Ferraz. Anotaes dos cadernos de Ablio de Nequete. Datilografado. s/d.
apud BARTZ, Frederico Duarte.
228
Transcrita em RODRIGUES, Edgar. Alvorada... op. cit., p. 44-47.
141
nunca sero capazes de realizar a reconstruo socialista. O
sindicato tem de ser a clula geradora da organizao
administrativa socialista do futuro.
Como inimigos de toda e qualquer organizao estatal,
os sindicalistas repelem a chamada conquista do poder
poltico, e vem na eliminao radical de todo o poder poltico
a primeira das condies preliminares para uma ordem social
verdadeiramente socialista. A explorao do homem pelo
homem se acha intimamente ligada dominao do homem
pelo homem, de maneira que o desaparecimento de uma dessas
condies fatalmente conduziria ao desaparecimento da outra.
(...)
Sua misso [a dos sindicalistas] educar
espiritualmente as massas e congreg-las nas organizaes
econmicas de combate, para conduz-las, por meio da ao
econmica direta, que tem sua expresso mais elevada na
greve geral social, para a luta que se h de travar pela
libertao da humanidade do jugo da servido e do moderno
Estado dividido em classes.
229
No se deve esquecer que a declarao de princpios deste congresso estadual
foi feita em um contexto em que, nos planos internacional, nacional e estadual
preparavam-se ingerncias do Estado para atenuar o conflito de classes em vistas de
desviar o operariado da influncia sovitica. No plano internacional, ocorreu a
Conferncia de Washington, que contou com a participao de representantes enviados
pelo governo brasileiro, para assinar um acordo da recm-formada Organizao
Internacional do Trabalho. No plano nacional, crescia a influncia de deputados
trabalhistas que, na Cmara dos Deputados, discutiam a pertinncia de se elaborar um
Cdigo do Trabalho, o que implicaria numa ingerncia direta do Estado na relao
capital/trabalho, algo absolutamente abominado pelos anarquistas e sindicalistas
revolucionrios, de modo geral. Alm disso, no ano anterior, a campanha presidencial
de Rui Barbosa tentou angariar a simpatia do proletariado brasileiro, com promessas de
resolver melhorar sua condio de vida e de trabalho
230
. E em termos regionais, mesmo
que a FORGS tenha retornado direo de lideranas anarquistas da dissidente Unio
Geral dos Trabalhadores desde julho de 1918, o PRR e a oposio continuavam a
tentar exercer alguma influncia de estirpe paternalista sobre o movimento operrio,
229
Declarao de princpios aprovada pelo Congresso, Porto Alegre, abr. 1920 apud RODRIGUES,
Edgar. Alvorada... op. cit., p. 44-47.
230
O discurso proferido pelo candidato Rui Barbosa no Rio de Janeiro, a 20 de maro de 1919, tratando
especificamente da questo social no Brasil encontra-se em BARBOSA, Rui. A questo social e
poltica no Brasil. Rio de Janeiro: 2.ed., Fundao Casa de Rui Barbosa, 1998. Ali se encontra o uso
da expresso Jeca Tatu para designar o comportamento do eleitor pobre brasileiro, que seria
combatida pelos anarquistas em sua imprensa.
142
enquanto em maro de 1919 surgia um Partido Operrio, que apoiou a candidatura de
Rui Barbosa
231
.
Se bem que no documento citado acima no existe referncia direta a qualquer
caso concreto, a no ser ao capitalismo e ao Estado, creio ser possvel enxergar
nesta declarao de princpios um esforo por no permitir a instrumentalizao do
sindicalismo nem pelas correntes reformistas nem pelos entusiastas do bolchevismo,
tal qual Ablio de Nequete, fundador da Unio Maximalista de Porto Alegre. difcil
precisar o momento, como ser visto a seguir, em que os movimentos anarquistas
comearam a guinar para uma posio crtica ao bolchevismo, e se a tal declarao de
princpios partilha da ciso. Porm, acentuam-se paulatinamente as crticas aos
desdobramentos da Revoluo Russa e os reflexos que poderia implicar na organizao
operria e revolucionria no Brasil. Nesse sentido, sabe-se, por exemplo, que a partir
de 7 de fevereiro de 1920, Jos Oiticica escreveria uma srie de artigos intitulados
Mau caminho em Voz do Povo, rgo da Federao dos Trabalhadores do Rio de
Janeiro
232
. E logo aps o trmino do Congresso gacho, na edio de 15 de abril de
1920 do rgo da FORGS, O Syndicalista reproduziria um artigo publicado
originalmente no jornal Rebelin, da cidade espanhola de Cdiz, sob a chamada
Definindo Princpios, por indicao de Alberto Lauro, o representante da Federao
Operria de Pelotas, que teria alertado no evento para a necessidade de se seguir uma
nova orientao (embora no fique claro o que isso queira dizer). Segundo o prprio,
sua sugesto visava dissipar a confuso lamentvel que de muitos sindicalistas e
anarquistas se tem apossado, diante da Revoluo Russa, e que os faz esquecerem-se
do comunismo-libertrio, to bem definido e defendido por M. Bakunine, na gloriosa
Internacional dos Trabalhadores
233
. O ttulo do artigo, Sindicalismo no
marxismo j apontava a contradio entre a prtica preferencial instrumentalizada
pelos anarquistas no Brasil e no mundo e a instaurao da nova ordem na Rssia:
A ditadura do proletariado, clusula capital do
marxismo, no a finalidade do sindicalismo. O alvorecer da
aurora nas rudes estepes do oriente da Europa, com o triunfo
da revoluo do povo moscovita, trouxe atualidade novos e
231
Sobre o Partido Operrio de 1919 ver PETERSEN, Silvia. Que a Unio Operria..., p. 357-358.
232
Por equvoco de minha parte, no consultei as edies do jornal Voz do Povo no ano de 1920. A
informao consta em RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e cultura social: 1913-1922. Rio de
Janeiro: Laemmert, 1972, p. 292 e em BANDEIRA, Moniz, MELO, Clovis e ANDRADE, A.T.. O
ano vermelho: a revoluo russa e seus reflexos no Brasil. So Paulo: 2.ed., Brasiliense, 1980, p. 256.
233
Definindo princpios. O Syndicalista. Porto Alegre, 15 abr. 1920 apud RODRIGUES, Edgar.
Nacionalismo... op. cit., p. 292-293.
143
importantes problemas que os militantes do sindicalismo no
podem deixar passar em silncio. O termo da moda,
bolchevismo, e cujo conceito neo-comunista no passa de ser
uma simples modalidade do socialismo marxista, empolgou,
qui com excesso de zelo, a atividade de no poucos amigos,
e preciso que constatemos bem a ndole e o alcance da
revoluo que prepara nossos entusiasmos para que os
suscetveis de equvocos no incorram em erros. indubitvel
que entre o despotismo dos favorecedores de Rasputin e o
regime dos soviets, implantado pelo marxismo atualmente na
Rssia, exista uma dualidade que arrebata todas as nossas
simpatias de um modo absoluto em favor do ltimo. No isso,
porm, bice para que, dada a natureza inequvoca das tticas
e doutrinas apostoladas por ns, que tende a se universalizar,
a se ampliar, a envolver a vida em todos os seus aspectos, no
sentido anarquista, no nos conformemos e menos faamos
bandeira em nossa propaganda da economia estabelecida na
Rssia pelo Centro Comunista dos Soviets. Cremos, e assim o
afirmamos, que a revoluo a vir em nosso pas, no pode
dirigir seus passos e menos reduzir sua misso aos eitos dos
partidrios de Lenine. A ditadura do proletariado, clusula
capital da carta doutrinal do marxismo, no , nem muito
menos exprime, a finalidade do Sindicalismo. Com ela, o
Estado, a autoridade, o poder, no perde seno na forma, a
existncia intrnseca de sua prepotncia. O domnio de casta
ou classe, ainda que seja uma transio acidental, transmite
sua hegemonia ao proselitismo triunfante dos vencedores que,
ainda que com o ttulo de ditadores administrativos e tutelares,
mais tarde, como sucede em todas as comoes em que a
estutura bsica das instituies da etnologia social e poltica
em essncia fica de p, transforma-se no maior obstculo para
o futuro e prosseguimento da prpria revoluo iniciada.
(...).
234
Cerca de um ms depois dos embates ocorridos no Congresso Operrio
Regional do Rio Grande do Sul, e uma semana aps a publicao do texto do espanhol
Arnaldo Daniel em O Syndicalista, reuniu-se no Rio de Janeiro o 3 Congresso
Operrio Brasileiro, que tinha por objetivo canalizar a solidariedade operria para a
revoluo. Quando da realizao dos debates, portanto, os militantes anarquistas j
tinham clareza das diferenas entre seu ideal e os postulados marxistas em vigor na
Rssia, mas no se colocavam como inimigos da Revoluo em curso.
234
DANIEL, Arnaldo. Sindicalismo no marxismo. O Syndicalista. Porto Alegre, 15 abr. 1920 apud
RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo... op. cit., p. 292-293. O artigo uma traduo de um original
publicado em Rebelin, de Cdiz, Espanha, s./d. A reproduo completa do artigo encontra-se em:
DANIEL, Arnaldo. Definindo princpios. O sindicalismo no marxista A ditadura do proletariado,
clusula capital do marxismo, no a finalidade do Sindicalismo. A Obra Semanrio de Cultura
Popular. So Paulo, ano I, n. 2, 13 maio 1920, p. [9].
144
O III CONGRESSO OPERRIO DE 1920 E O ENCAMINHAMENTO DA CISO
Como j foi dito, a idia de se chamar um 3 Congresso Operrio de
abrangncia nacional, no final de 1919, se deu como uma tentativa de articulao do
movimento operrio para instrumentaliz-lo com aes conjuntas com vias revoluo
e responder violenta represso instalada ento em vrios estados do pas.
Inicialmente previsto para ocorrer em dezembro de 1916, o evento foi abortado por
conta da represso que se abatia no Rio de Janeiro desde maro daquele ano, quando a
polcia destruiu a sede da Confederao Operria Brasileira e prendeu alguns de seus
dirigentes, chegando a matar Leal Junior, em 18 de julho
235
. Ressurgiria novamente a
idia em incio de 1919, para a sua realizao em dezembro, para finalmente julgar-se
adequado para abril de 1920, sem mais protelaes
236
. A nova iniciativa surgiu atravs
da Federao dos Trabalhadores do Rio de Janeiro, em outubro de 1919, aps noticiar
a realizao dos congressos estaduais de Pernambuco e do Rio Grande do Sul e a
inteno de se realizar um em So Paulo, por iniciativa da Liga Operria de
Campinas
237
.
Trata-se de um momento muito delicado. Havia a necessidade de articulao
contra a priso arbitrria de militantes operrios, a expulso de estrangeiros e o
degredo de militantes nascidos no pas, e, como foi sinalizado anteriormente, ao que
parece, concomitantemente frustrao de uma segunda insurreio revolucionria.
No h dvida de que o objetivo era conferir maior organicidade ao movimento
operrio de todo o pas, e, particularmente para os anarquistas, tornar essa organicidade
eficaz e dot-la de um sentido revolucionrio. O PCBA tinha dado pequenos passos
nessa mesma direo, com a fundao de ncleos e desenvolvimento de atividades de
propaganda, contudo no alcanou seus objetivos e vinha em processo de contnua
fragmentao e dissoluo. Era ento imprescindvel e urgente o desenvolvimento de
um movimento operrio que agisse com objetivos e estratgias comuns, para que no
desperdiasse a fora adquirida e demonstrada desde 1917 e formasse um bloco que
235
RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo... op. cit., p. 130.
236
LACERDA, Olgier, MONREAL, Pedro, CRUZ Jnior, A.S., PEREZ, Luiz e VAZ, Antonio
(Comisso Organizadora do 3 Congresso Operrio Brasileiro). Relatrio da Comisso Organizadora
do Terceiro Congresso Operrio Brasileiro apresentado Assemblia Preparatria. In: BARBOSA,
Santos. 3 Congresso Operrio Brasileiro. Histria em Revista, Pelotas, UFPel, v. 3, p. 161-199, dez.
1998. (p. 2-4 da verso eletrnica disponvel no endereo
http://ich.ufpel.edu.br/ndh/pdf/Instrumento_de_Trabalho_Volume_04.pdf . (Publicado originalmente
no jornal O Rebate, de Pelotas, em diversas edies dos meses de maio e junho de 1920).
237
Congressos Operrios. Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 11, 11 out. 1919, p. 3.
145
pudesse sustentar um processo revolucionrio quando este eclodisse. Caso contrrio,
permaneceriam as mesmas mazelas e fragilidades que permitiam o desmonte de tudo
aquilo que tinha se alcanado at ento. A partir da, antes mesmo da realizao do III
Congresso, reiniciam-se os debates acerca dos limites do sindicalismo, ou, pelo menos,
do alcance que o sindicalismo revolucionrio tomou no pas nos ltimos quatorze anos.
As circunstncias de 1920 eram bastante distintas das de 1906. Naquela
ocasio, a ao sindical era incipiente, o sindicato, tanto o patronal como o de
trabalhadores, enquanto entidade que se propunha a representar seus associados, s
seria legalmente reconhecido a partir de 1907. Em 1920, os anarquistas, tanto os
adeptos quanto os crticos do sindicalismo revolucionrio, tinham ao menos quatorze
anos de experincias para avaliar sobre os mtodos empregados at ento em seu
intento maior que visava a Revoluo.
As fontes que tratam das discusses travadas durante o III Congresso so
escassas se comparadas com as dos anteriores, especialmente em relao ao de 1913.
Contudo, de acordo com as discusses iniciadas na imprensa operria meses antes, sob
muitos aspectos, a discusso parecia permanecer a mesma, ou seja, quanto natureza
da luta sindical em si, revolucionria ou reformista.
Os debates que tomariam conta do congresso comeam ainda em fins de
outubro de 1919, quando Isidoro Augusto, o mesmo autor anteriormente citado
dizendo ser a ditadura do proletariado mais anarquista do que marxista, props retomar
a velha questo em torno da convergncia de interesses entre o sindicalismo e o ideal
libertrio. Embora sua inteno fosse estimular a discusso entre os anarquistas acerca
de suas atividades nos sindicatos brasileiros at ento, pelo menos em Sprtacus, o
jornal onde publicou seus dois artigos intitulados Os anarquistas nos sindicatos, no
h registro de resposta de outros militantes. De todo o modo, a leitura desses dois
artigos fornece algumas indicaes das preocupaes nos meios anarquistas naquele
momento.
Em seu primeiro artigo
238
, Isidoro combate o problema do funcionalismo
sindical, que produziria a burocratizao de tais entidades, contrariando, por si s, a
ao revolucionria que pudessem suscitar. Do que se pode interpretar deste artigo, o
238
AUGUSTO, Izidoro. Os anarquistas nos sindicatos. Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 13, 25 out.
1919, p. 3.
146
emprego de funcionrios no sindicato e, principalmente, a remunerao dos diretores
sindicais foram condenados pelos anarquistas da Europa desde o incio do sculo.
Porm seria algo tolervel, como um mal necessrio, afinal, se o funcionalismo uma
causa que produz efeitos indesejados, ele tambm, e sobretudo, o efeito de uma
causa: a falta de preparo tcnico dos trabalhadores. Ou seja, para o articulista, era
preciso reconhecer que faltava, de fato, entre os trabalhadores, a aptido para o trato
administrativo de suas associaes. O apoderamento dos cargos por alguns militantes
habilitados para as necessidades da manuteno das associaes era algo deplorvel,
mas tolervel, uma vez que era preciso pensar estrategicamente a funo do sindicato,
um mero instrumento de luta, cuja funo consistia apenas emtrazer sempre acesa a
luta de classes como convm aos revolucionrios. Exigir da prtica sindical mais do
que isso, e por causa desses limites, opor-se ao sindicalismo, seria o mesmo que pedir
(...) aquilo que ele no pode dar.
O texto de Isidoro Augusto, um dos mais freqentes articulistas de Sprtacus,
chama a ateno por dois aspectos. Primeiramente, ele trata de uma questo bastante
controversa aos anarquistas de todo o mundo, como foi visto no primeiro captulo,
porm o tratamento questo bastante pragmtico: o sindicalismo limitado, produz
efeitos contrrios aos objetivos anarquistas no que tange, sobretudo,
profissionalizao dos diretores, mas prefervel ter sindicatos mesmo com uma casta
administrativa do que no t-los. Em segundo lugar, ele parece indicar que esta
ainda uma questo latente entre os anarquistas do Brasil, que causaria ainda um
sensvel (...) ressentimento (...) na obra revolucionria, especialmente num perodo
em que o mundo vive o impacto de um processo revolucionrio em vigor. Ou seja, a
prtica sindicalista, de fato, obteve resultados aqum dos esperados at aquele
momento.
Em um segundo artigo
239
, Isidoro desloca para os prprios anarquistas a culpa
dos limitados resultados do sindicalismo, que alguns deles costumavam imputar ao
trabalhador inconsciente. Assim, o autor tece comentrios sobre o que considera ser
um equvoco por parte dos anarquistas do Brasil: reproduzir acriticamente modelos de
sindicalizao elaborados no exterior, em pases onde o capitalismo atingiu nveis de
industrializao muito superiores aos latino-americanos. O sindicato, em si, teria uma
importante funo a cumprir tanto no futuro, na construo de uma nova sociedade,
239
AUGUSTO, Isidoro. Os anarquistas no sindicato. Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 15, 8 nov.
1919, p. 3.
147
quanto no presente, para a construo da solidariedade operria. Contudo, era
desperdiado todo o potencial dos trabalhadores em sacrifcios inteis, pois, at
ento, eles no tm vivido na organizao, mas apenas vegetado, no podendo,
portanto, as energias despendidas corresponderem eficazmente, por girarem, as mais
das vezes, no em torno dos limites das questes de momento, mas ultrapassando-os,
desviando-se assim as lutas para um campo abstrato. Ou seja, para o autor, os
anarquistas estavam pecando por forar atitudes revolucionrias com as quais os
trabalhadores no tinham qualquer intimidade ou conhecimento de seu potencial. Tal
artifcio acabava por repelir os trabalhadores das organizaes e frustrar os anarquistas,
que, por conta disso, avaliavam erroneamente o potencial dos sindicatos. Para evitar a
perpetuao dos equvocos e a errnea avaliao de que a prtica sindical invlida
por si mesma, o autor interpela para que, no III Congresso, todos faam um estudo
consciencioso das condies, meios e circunstncias existentes, para que se munam do
indispensvel tino prtico que possa imprimir ao congresso um cunho de eficincia.
A fim de reconduzir o movimento operrio a um caminho eficiente, o autor sugere uma
forma de organizao que viabilize uma unificao completa dos trabalhadores,
sem pretenses declaradamente revolucionrias num primeiro momento, mas
fazendo-se interessar em redor de um objetivo imediato, despertando-se-lhes a
vontade espontnea. S assim e no forada por iniciativas j alcanadas e no
antecipadas, (...) ter-se-iam criado novas situaes, suscitando os fatos que importam
para despertar o esprito de classe e para eclipsar a obra dos elementos
conservadores que, verdade seja, ainda tm o controle de uma boa parte da
organizao.
Tem-se, ento, uma primeira proposta que visa um sindicalismo que, anti-
reformista, amadurea seu promissor revolucionarismo gradualmente, sem os riscos
advindos de uma precipitao que s levaria a retrocessos.
No fica claro o que Isidoro Augusto entende por unificao completa dos
trabalhadores. Porm, levando em conta que ele sugere que se unam esforos sinceros
para a busca de maior eficincia e condena a reproduo das formas de organizao
vigentes na Europa, pode-se supor que ele pensa que seja necessrio uma reformulao
da organizao geral dos trabalhadores. Essa, alis, parece ser a sensao geral
compartilhada pelos participantes do encontro. As solues apresentadas, no entanto,
seriam divergentes.
148
Infelizmente, no localizei registros oficiais das resolues do III Congresso,
prometidas para breve
240
, de acordo com boletim publicado em agosto de 1920 e que
traz informaes do evento, conjuntamente com material de propaganda acerca da
prtica sindical e das atividades desenvolvidas pelo Comit Executivo do Terceiro
Congresso (CETC), criado na ocasio para executar uma srie de medidas definidas no
encontro, que visavam o fortalecimento da mobilizao operria e sua articulao
nacional e internacional e a resistncia conjunta contra a represso.
Mas h, em contrapartida, o relatrio formulado por Santos Barbosa, publicado
em captulos nos meses de maio e junho de 1920 no jornal pelotense O Rebate
241
, e a
transcrio de Edgar Rodrigues do que parece ser uma verso resumida das resolues
publicadas em A Plebe, no ano de 1924
242
.
Tratando de temas especficos das circunstncias vividas naquele momento, o
Congresso traou estratgias para o comportamento de sindicatos, sobretudo do setor
de transporte, para agir contra as deportaes em massa, e a lei de acidentes de
trabalho, em discusso na Cmara dos Deputados, assim como tratou sobre a
necessidade de organizao dos trabalhadores do campo. Quanto orientao geral
assumida pelo III Congresso, praticamente repetiram-se os preceitos aprovados nos
encontros anteriores, que concebiam a realidade social composta por classes com
interesses antagnicos e diferenciadas por seu lugar na produo. A finalidade das
associaes seria a canalizao de foras coletivas da revolta consciente em combate
contra as injustias perpetradas pelo sistema de explorao econmica, tendo em vista
o estabelecimento de uma ordem de real justia, uma sociedade em que todo o
produto do trabalho til de todos seja de fato propriedade de todos os
trabalhadores
243
.
Para atingir tais objetivos, recomendou-se, como mtodo de organizao,
novamente a organizao dos trabalhadores em sindicatos de resistncia por ofcio ou
indstria (quando impossvel, por nmero insuficiente, que fossem constitudos
sindicatos de ofcios vrios), que, por sua vez, integrem uma federao local, e esta
240
Relatrio do 3 C.O.B. Boletim da Comisso Executiva do 3 Congresso Operrio. So Paulo, ano I,
n. 1, ago. 1920, p. 17 e 18. Intencionava-se publicar os relatrios e resolues dos trs congressos
conjuntamente.
241
BARBOSA, Santos. 3 Congresso Operrio... op. cit.
242
A Plebe. So Paulo, 7 maio 1924 apud RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo... op. cit., p. 307-320.
243
BARBOSA, Santos. 3 Congresso... op. cit.
149
uma regional, para, enfim, compor uma federao nacional
244
. A neutralidade poltica
continuava intocvel
245
.
A opo pelo federalismo foi justificada da seguinte forma:
a unio de sociedades por pacto federativo garante a
cada uma delas larga autonomia, e considerando mais, como
nico mtodo de organizao compatvel com o irreprimvel
espirito de liberdade e com as imperiosas necessidades de
ao e educao operria, o mtodo federativo - a mais larga
autonomia do indivduo no sindicato, na Federao e da
Federao na Confederao, e como unicamente admissvel
simples delegao de funes sem autoridade.
246
A reafirmao do federalismo como mtodo de organizao demonstra que a
maioria dos delegados presentes ao Congresso preocupou-se com propostas que, a seu
ver, pudessem coibir liberdades individuais e associativas.
Assim, ao mesmo tempo em que proclamava-se a reafirmao dos princpios
federalistas, avaliaram que era preciso uma atividade de coordenao e propaganda de
cima para que emergisse de baixo uma estrutura confederal forte. Da a Comisso
Executiva do Terceiro Congresso ser formada por dois elementos, um secretrio geral
e um secretrio excursionista, que seriam responsveis pela divulgao e organizao
de atividades, especialmente no interior, em cinco seces diferentes. Com atribuies
por um ano, at a realizao do 4 Congresso Operrio previsto para ocorrer no ano
seguinte, foram eleitos os seguintes membros, designados para as respectivas seces:
Seco Extremo-Norte, com sede em Belm, compreendendo os estados do
Amazonas, Par, Maranho, Cear, Piau e Acre Felippe Fagundes como secretrio
permanente e Jorge Adalberto de Jesus como excursionista; Seco Norte, com sede
em Recife, compreendendo os estados do Rio Grande do Norte, Paraba, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe e Bahia Silva Gama, secretrio permanente e Jos Elias da Silva,
provisoriamente como secretrio excursionista; Seco Centro, com sede no Rio de
Janeiro, compreendendo o Distrito Federal e os estados do Rio de Janeiro, Esprito
Santo e Minas Gerais (com exceo das duas zonas do Sul e do Tringulo Mineiro)
Edgard Leuenroth como secretrio permanente e Domingos Passos, excursionista
244
Idem, ibidem.
245
Tese apresentada ao 3 Congresso Operrio Brasileiro pelos Delegados da Associao Grfica do Rio
de Janeiro, 1920 apud CARONE, Edgard. Movimento operrio no Brasil (1877-1944). So Paulo:
2.ed., Difel, 1984, p. 421-424.
246
BARBOSA, Santos. 3 Congresso... op. cit.
150
(neste agrupamento se encontraria o Tesoureiro Geral do CETC, Antonio Guilherme
Lopes); Seco Sul, com sede em So Paulo, compreendendo os estados de So Paulo,
Gois, Mato Grosso e as zonas do Tringulo Mineiro e do Sul de Minas Manoel
Bueno, secretrio permanente e Thephilo Ferreira, excursionista; Seco Extremo-
Sul, com sede em Porto Alegre, compreendendo os estados do Paran, Santa Catarina e
Rio Grande do Sul Orlando Martins, secretrio permanente e Alberto Lauro,
excursionista.
Antes de se chegar a essa frmula final, que no vingaria at o ano seguinte,
sabe-se de uma proposta de Astrojildo Pereira, representante do jornal Voz do Povo,
que tambm previa uma estrutura confederal. Embora rechaada, sua principal derrota
foi a proposta de adeso do Congresso III Internacional Comunista, fundada no ano
anterior, e que se reuniria novamente em julho. Este militante, alis, no desistiria e
voltaria a se esforar por apresentar a organizao da associao Industrial Workers of
the World
247
, mais centralizada, em sua estrutura, como uma alternativa mais eficaz
forma tomada pela Confederao Operria Brasileira e sua vinculao Sindical
Internacional Vermelha
248
.
Embora no se declarassem inimigos da Revoluo Russa, os anarquistas j
tinham claras as discordncias com a conduo do processo por Lenin. Rumores de
que a III Internacional recomendaria a formao de um partido poltico de carter
parlamentar e submetido s decises de Moscou, no agradaram aos participantes do
congresso, que preferiram a cautela, resolvendo pela recusa da proposio. Do mesmo
modo do que se passou com Ablio de Nequete no III Congresso Operrio do Rio
Grande do Sul, a proposta de Astrojildo foi engolida pelos anarquistas e sindicalistas
puros do Congresso. Tudo o que os simpticos ao bolchevismo conseguiram, foi
uma nota em que o III Congresso declarava a sua expectativa simptica em face da 3
Internacional de Moscou, cujos princpios gerais correspondem verdadeiramente s
aspiraes de liberdade e igualdade dos trabalhadores de todo o mundo
249
. Sobre a
247
Por exemplo: Pela reorganizao operria. A Plebe, ano V, n. 119, 28 maio 1921, p. 1. Ver ainda DEL
ROIO, Marco. O impacto da Revoluo Russa e da Internacional Comunista no Brasil. In: MORAES,
Joo Quartim de e REIS Filho, Daniel Aaro. Histria do marxismo no Brasil Vol. I: o impacto das
revolues. Campinas: 2.ed., Editora da Unicamp, 2003, p. 83.
248
Por exemplo: PEREIRA, Astrojildo. A Internacional Sindical Vermelha. Voz do Povo rgo da
Federao dos Trabalhadores do Rio de Janeiro e do Proletariado em geral. Rio de Janeiro, edio
especial, 1 maio 1921, p. 2.
249
O operariado do Brasil e a situao internacional proletria. Boletim da Comisso Executiva do 3
Congresso Operrio. So Paulo, ano I, n. 1, ago. 1920, p. 15.
151
Revoluo Russa, ainda, o Boletim da CETC reproduziu texto do jornal portugus A
Batalha, de onde se lia praticamente uma definio de posio:
Defendemos com a maior energia, sem recear
perseguies nem violncias, a Revoluo Russa. Vemos no
movimento moscovita uma insurreio de carter
acentuadamente social que tem inmeros pontos de contato
conosco, seno a primeira revoluo que teve a coragem de
inscrever na sua bandeira a restituio da terra e dos
instrumentos de trabalho aos assalariados. (...)
Aceitando a designao de bolchevistas, porque a
burguesia engloba nela todos aqueles que aspiram
liquidao da sociedade burguesa, no desejamos, porm, que
se adote o padro russo, pois entendemos que a Revoluo no
pode ser duma uniformidade absoluta; os movimentos sociais
dos vrios pases tm caractersticas to acentuadas que isso
completamente impossvel. (...)
Esta a nossa atitude: defendemos a Revoluo Russa,
atravs de tudo e contra todos; quanto s suas teorias, no as
acatamos em absoluto, e, quanto aos seus mtodos de ao,
no os conhecemos to bem que acerca deles possamos
pronunciar-nos com segurana.
250
De todo o modo, no foi neste momento que a ruptura entre anarquistas e seus
pares mais simpticos com o bolchevismo se deu em definitivo. Nos meses seguintes,
sobretudo aps a realizao do II Congresso da Internacional Comunista, em julho,
que as cises se iam agravando.
Em agosto de 1920, Octvio Brando, que alguns meses depois da fundao do
PCB aceitaria a declarao de princpios da III IC, escreve um apelo intitulado Aos
trabalhadores do Brasil
251
, para reafirmar os princpios da ao direta contra a
partidarizao do movimento operrio, tal qual foi adotado pelo III Congresso
Operrio Brasileiro, que veio mostrar no seio do proletariado consciente uma nica
tendncia: a anarquista comunista. vila responde ao alagoano, justificando as
motivaes pelas quais optou pelo abandono do anarquismo. Aps longa e dolorosa
evoluo mental, em que dia a dia a lgica do sentimento era esmagada pela lgica
brutal dos fatos, em que a razo pura ia cedendo a passo razo prtica, vila viu-
se esmagado pela evidncia da necessidade de uma organizao transitria (que eu
desejara fosse uma democracia proletria a mais ampla e possvel, aberta a todos os
250
O proletariado e a Revoluo Russa. A Batalha, Lisboa?, s.d. apud Boletim da Comisso Executiva
do 3 Congresso Operrio. So Paulo, ano I, n. 1, ago. 1920, p. 16.
251
BRANDO, Octavio. Aos trabalhadores do Brasil. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 22 ago. 1920 apud
CARONE, Edgard. Movimento... op. cit., p. 364-366.
152
elementos aproveitveis, viessem de onde viessem). O momento era de apoiar a unio
de duas formas de idias a organizao por ofcios e outra por idias, de carter
multiforme, no apenas parlamentar. Do ponto de vista do autor, a neutralidade poltica
do sindicalismo no faria emergir a conscincia operria, uma vez que, por si s, em
nada concorreria ao despertar de uma conscincia, de um projeto de um mundo novo.
A neutralidade era um instrumento caduco, que atingiria apenas efeitos contrrios,
porque para excluir inmeros elementos adversos do anarquismo acaba por
desprezar uma ao poltica inteligente (...) pode trazer s lutas diretas
empreendidas pelos sindicatos contra os exploradores capitalistas e contribuir para a
conscientizao do proletariado, que j teria feito a revoluo anarquista comunista.
As resolues do II Congresso da IC e as articulaes para a formao de um
Partido Bolchevista Nacional agravariam os debates internos entre os anarquistas,
batendo-se at mesmo em ofensas de carter pessoal.
Conjuntamente com o crescimento da represso e recrudescimento da
mobilizao operria no Brasil, cujos resultados pareciam infinitamente limitados
frente consolidao da Repblica dos Sovietes, muitos anarquistas revisam suas
posies e fazem uma autocrtica dos limites do sindicalismo e do anarquismo, para
usar uma expresso de Astrojildo Pereira, para alinharem-se a Moscou.
em face dos dilemas estratgicos postos aos anarquistas pela conjuntura de
1917-1920, e diante do fim do ciclo de grandes mobilizaes sob as patas dos cavalos
da represso, que podemos entender a ciso ocorrida no incio dos anos 1920 no seio
da vanguarda anarquista, que acabaria por produzir a fundao do PCB. A ciso, os
rumos adotados e o declnio da influncia anarquista nas dcadas seguintes, so o
objeto do captulo seguinte.
153
Captulo 3
A Queda
As dcadas de 1920 e 1930 marcam a curva de descenso da influncia que o
anarquismo exerceu no Brasil, dentro e fora dos meios operrios. A represso que se
seguiu aps as ondas de grandes greves generalizadas entre 1917 e 1921 foi um
elemento eficazmente desarticulador. Diferentemente das investidas repressivas contra
a militncia anarquista que se efetivaram em momentos anteriores no pas, quando,
aps alguns perodos de retrocesso, a militncia voltava a se organizar. Mas, durante a
dcada de 1920, a fria repressiva procurou varrer todos aqueles considerados pelo
Estado como indesejveis e inimigos da ordem pblica, estrangeiros e nacionais,
remetendo-os a prises divididas com presos polticos de outros movimentos
adversrios dos governos estabelecidos, como no caso do tenentismo. A represso se
intensificava e abrangia outros setores sociais alm da usual perseguio ao
anarquismo, pois, naquele momento, o perigo da instabilidade poltica tornou-se mais
acentuado e surgiram outros grupos polticos interessados em promover mudanas,
cada qual a seu modo e com nveis de aprofundamento variados. A represso contra o
anarquismo acentuou-se, ao mesmo tempo em que se modificavam as bases das
relaes polticas, com a presena de novos movimentos.
De um lado encontravam-se os movimentos de setores mdios, que at ento
sempre se beneficiaram do jogo oligrquico e do apadrinhamento poltico. Mudanas
iniciadas ainda nos anos 1910, tais quais o crescimento urbano, o surgimento de um
movimento patritico pelo qual discutia-se uma noo incipiente de sentimento
nacional, a aproximao do Brasil com os Estados Unidos na I Guerra, alm do
histrico da influncia positivista, impulsionavam um sentimento por alteraes de
carter democrtico nas instituies pblicas, pelo menos na medida em que permitiam
maior mobilidade de ascenso poltica desses setores minimamente ilustrados pelos
padres de civilidade da poca. Isso implicava mudanas no regime de acesso
mquina administrativa e representao poltica por meios que fugiam ao controle
dos tradicionais meandros clientelsticos.
154
Os anos 1920 passam, ento, a se caracterizar por um processo de
remodelamento das instncias de participao poltica na Repblica. Em meio a este
processo, agravam-se ciznias de origem personalista nos partidos oligrquicos,
resultando em cises de graves conseqncias. Novas foras polticas se renem,
levando em conta agentes antes excludos ou preteridos pelas alianas e acordos feitos
nos restritos crculos dos chefes partidrios desde a proclamao da Repblica.
At aquele momento, desde o fim dos governos provisrios militares,
estabeleceu-se um pacto oligrquico que garantiu estabilidade poltica entre as
oligarquias regionais, cujas disputas eram arranjadas e rearranjadas em acordos
fechados entre chefes polticos. A nica vez que a tenso entre esses chefes polticos
extrapolou os limites dos gabinentes oligrquicos foi na eleio presidencial de 1909,
entre Rui Barbosa e o Marechal Hermes da Fonseca. Fora este episdio, durante cerca
de vinte anos, de modo geral, a poltica decidiu-se entre quadros oligrquicos, sem
grandes conflitos. Esse consenso poltico paulatinamente enfraquecido, em virtude de
movimentos de naturezas diversas, dentre os quais destacam-se: o episdio das cartas
bernardinas, que resultaria nas tentativas de golpes militares em 1922 e 1924, por um
grupo que acusava o presidente Arthur Bernardes de ofender as Foras Armadas; a
ecloso da guerra civil no Rio Grande do Sul, em 1923; a ruptura do Partido
Republicano Paulista, cuja dissidncia de 1926, ao contrrio do que acontecia
anteriormente, no podia mais ser ignorada e nem reincorporada ao partido; a Coluna
Prestes inicia um movimento, em 1924, por outras vias, de aproximao das camadas
mdias e baixas da hierarquia militar com as classes populares, pelo interior do pas.
Esse quadro de instabilidade poltica culminaria com o no reconhecimento da eleio
do candidato paulista Jlio Prestes pelas alianas oligrquicas gachas, mineiras e
nordestinas, levando Getlio Vargas presidncia da Repblica, atravs de um golpe
respaldado pelo Exrcito, em outubro de 1930.
Soma-se a essa conjuntura de movimentos de reformas poltico-institucionais a
ao do recm fundado Partido Comunista do Brasil (PCB), que almejava promover
transformaes efetivamente revolucionrias, alterando substancialmente as estruturas
sociais (e, conseqentemente, econmicas e polticas) do pas, em compasso com o que
se acreditava ser a tendncia da revoluo universal em marcha.
Portanto, como visto anteriormente, as duas dcadas que seguem as ondas
grevistas de 1917-1921 formam um perodo de profundas transformaes nas relaes
155
de foras polticas, oferecendo uma diversidade de tendncias a um pblico que passa
a perceber a presena cada vez mais forte da poltica como mediadora das relaes
sociais. Com exceo do anarquismo, que permanece com sua ogeriza ao Estado, todas
as outras correntes polticas elegem a conquista do Estado como condio essencial
para efetuar as mudanas almejadas. O fortalecimento dessas correntes no ocorre
apenas simultaneamente ao enfraquecimento do anarquismo
252
(enfraquecido no
apenas no Brasil, mas, de modo geral, em todos os pases onde exercia alguma
influncia, com exceo da Espanha), mas tambm em seu detrimento, uma vez que a
efervescente cultura poltica desses anos fortalece a noo da necessidade do Estado
253
.
Embora o contexto fosse bastante adverso e apesar do abandono de alguns
quadros importantes do anarquismo ligados ao movimento operrio, aos militantes que
se mantiveram fiis s suas convices seria preciso redimensionar concepes e
estratgias que pudessem tornar possvel a continuidade do exerccio de sua militncia
e a renovao da certeza da viabilidade de sua utopia.
Durante o perodo de ascenso do anarquismo at a fundao do Partido
Comunista, os militantes confrontaram-se com oscilaes de mobilizao interna e do
movimento operrio, que lhes garantia notoriedade e influncia ao tentarem tomar a
frente de organizaes dos trabalhadores. As adversidades provinham basicamente de
trs ordens: a represso impetrada pelo Estado; os preconceitos do senso comum,
presentes tambm entre os trabalhadores, contra as crticas radicais do anarquismo s
instituies e s relaes sociais existentes; as tendncias reformistas e
colaboracionistas presentes no movimento operrio. Essas adversidades permaneceram
e intensificaram-se nas dcadas seguintes. Mas os anarquistas conseguiram confront-
las com relativo sucesso, pelo menos at 1922, quando perderam o monoplio
poltico do radicalismo que pretendia-se porta-voz de todos os oprimidos, incluindo os
trabalhadores. Agrega-se, ento, como fator de adversidade o crescimento da
influncia do PCB como agente mobilizador das massas, incluindo, ainda que
minoritariamente, trabalhadores rurais. Sua estrutura organizacional cresce
paulatinamente, alavancada pela consolidao da Revoluo Russa e pela dimenso
252
Por outro lado, isso no implica uma avaliao pejorativa do anarquismo em si, seno reconhecer to
somente que o contexto scio-poltico que se impunha colocava novas questes estratgicas para se
debater com um Estado que se hipertrofiava. Nesse sentido, ver DE DECCA, Edgar. 1930: o silncio
dos vencidos. So Paulo: 4.ed., Brasiliense, 1988.
253
REIS, Elisa Pereira. Interesses agroexportadores e construo do Estado: Brasil de 1890 a 1930. In:
SORJ, Bernardo, CARDOSO, Fernando Henrique e FONT, Maurcio. Economia e movimentos
sociais na Amrica Latina. So Paulo: Brasiliense, 1985, p. 194-217.
156
que adquire no contexto internacional. Rapidamente o PCB passa a invadir e extrapolar
o espao de radicalidade poltica ocupado pelo anarquismo nos anos anteriores. Tal
qual se passou com o anarquismo, o temor das classes dominantes e dirigentes de todo
o mundo contribuiu de algum modo, naquela poca, para uma propaganda s inversas
dos movimentos considerados radicais. Ao eleger o inimigo e conferir notoriedade em
demasia, ainda que negativa, instigou o interesse de muitos. Mas, ao contrrio dos
anarquistas, os comunistas conseguiram construir uma organizao com ramificaes
em todo o pas, seguindo um programa e estratgias comuns, alm de ter o respaldo de
um movimento internacional e a certeza da viabilidade do seu projeto atestada pelo
regime em vigor no pas mais extenso do planeta.
Alm da trade Estado/Religio/Capitalismo, no que tange especificamente ao
movimento operrio o anarquismo enfrentou e continuaria a ter que enfrentar as
tendncias reformistas e colaboracionistas. O sindicalismo adquiriria facetas novas,
com a intensificao das tentativas de controle sindical promovidas pela Igreja, pelo
patronato, pelo Estado e por movimentos polticos de extrema direita, como o
integralismo. Essas tendncias alcanaram certo xito ao deslocar importantes ramos
do sindicalismo de tendncias revolucionrias. Naturalmente, constituam inimigos
fceis de serem detectados e combatidos, pelo menos em discurso. Com essas
orientaes polticas no havia outra forma de relao a no ser o combate direto e a
disputa aberta pelas suas reas de influncia. Artilharia franca contra o que se
considerava reacionrio. No que se refere disputa contra a influncia de correntes
polticas que se consideravam revolucionrias, os anarquistas oscilaram entre o
combate aberto e o forjar alianas contra os inimigos comuns.
A questo da construo de uma frente nica das esquerdas revolucionrias (ou
das vanguardas revolucionrias) voltaria a ser uma constante no debate do anarquismo
brasileiro. Um dilema que poderia colocar em xeque a existncia do anarquismo
enquanto movimento articulado, uma vez que poderia submeter a autonomia do grupo
e fortalecer a corrente rival. Por outro lado, no somar foras poderia resultar na vitria
dos inimigos da direita, na derrota das esquerdas e at mesmo no desaparecimento do
anarquismo como corrente com real capacidade revolucionria no presente ou num
futuro prximo. Um dilema que parecia um fantasma a acompanhar os militantes
durante cerca de dez anos, pelo menos.
157
A noo de sacrifcio por uma causa maior sempre esteve presente nos clculos
polticos dos anarquistas. Sacrificavam a tranqilidade que poderiam ter em suas vidas
privadas e pblicas, e jogavam-se aos perigos e desgostos provocados pela escolha da
militncia, por causa da convico da necessidade de construo de um mundo sem
iniqidades. A partir da diviso do campo revolucionrio com os comunistas
(stalinistas e trotskistas) colocavam-se novas questes em torno da possibilidade de
sacrifcios menores (a adeso frente nica) poderem resultar em sacrifcios maiores
(o risco da supresso da autonomia e conseqente desaparecimento do anarquismo) ou
em conquistas de posies (a derrota de inimigos comuns com a participao dos
anarquistas).
Os novos tempos cobravam dos anarquistas respostas mais precisas sobre a
viabilidade de sua utopia que, segundo seu iderio, consistia em uma convergncia
entre meios e fins. A crtica que faziam aos comunistas era justamente esta: os fins
jamais seriam atingidos pelo exerccio dos meios escolhidos. Para a efetivao de um
projeto verdadeiramente revolucionrio, era imprescindvel praticar todos os atos
cotidianos de acordo com o ideal a seguir. Na viso dos anarquistas, tudo aquilo que
deveria ser transformado para a libertao de toda a humanidade no futuro, deveria ser
combatido cotidianamente, em todas as esferas. No era possvel fazer concesses a
estratgias que lograssem para um futuro distante aquilo que deveria ser transformado
desde j, sob o risco de, em contrrio, comprometer toda a utopia e contribuir para
criar novas formas de opresso. Era isso o que, em sua avaliao, ocorria na Rssia.
Apresentava-se, desta maneira, mais do que nos decnios anteriores, um
inexorvel desafio aos anarquistas para garantirem a existncia do anarquismo: provar
a viabilidade prtica de seus desejos revolucionrios. Para tanto, deveriam fazer mais
do que o discurso, superando o purismo ideolgico prprio queles que no ousaram
implantar na realidade aquilo que propagavam.
Como foi visto at aqui, a importncia adquirida pelo anarquismo no Brasil
decorreu da aproximao de elementos libertrios junto a organizaes sindicais. O seu
enfraquecimento deu-se pelo distanciamento forado pela represso e pela conquista
de espao na poltica sindical por outras correntes polticas, seja pelos comunistas, seja
pelos trabalhistas, pelos integralistas ou pela Igreja. Como se deram as avaliaes em
torno do afastamento dos sindicatos? Qual o peso conferido ao sindicato? Quais as
estratgias traadas para recuperar a influncia em dissoluo? Como se dava a
158
dinmica entre classe operria e anarquismo nesse contexto? No seriam os anos 1920
e 1930 a confirmao das advertncias lanadas pelos anarquistas cticos ao
sindicalismo?
Manter a propaganda do ideal anarquista, sem dvida, era tambm uma questo
de identidade, de identidade social e de identidade poltica. Mas talvez tenha sido
muito mais do que isso. Era lutar pela sobrevivncia daquilo que consideravam ser a
nica sada para a humanidade: romper com as desigualdades, opresses e exploraes.
ANARQUISTAS E COMUNISTAS: A RUPTURA
Como foi visto anteriormente, o processo revolucionrio desencadeado na
Rssia em 1917 contou com o apoio dos anarquistas de vrias partes do mundo,
incluindo o Brasil. A expanso do movimento revolucionrio para pases do leste
europeu e, sobretudo, os desdobramentos da revoluo espartacista na Alemanha
alimentavam a convico no apenas da putrefao iminente do capitalismo que se
destruiu na autofagia da guerra imperialista. Carregavam consigo a convico de que
as vias reformistas dos partidos socialistas provavam-se equivocadas e enganosas. O
Partido Social-Democrata Alemo (SPD) teria decretado a sua morte ao sustentar os
planos blicos de um Estado que dedicava-se a conquistar territrios de povos sem
histria, para a satisfao dos grandes conglomerados industriais e financeiros de seu
pas. Aos olhos dos anarquistas, o malogro da ao do SPD, que tanto servia de
espelho a outros partidos socialistas do mundo, era a prova irrefutvel da falcia do
parlamentarismo e da poltica de alianas de classe, ainda que estrategicamente
momentneas. O controle exercido pelo SPD sobre os sindicatos alemes teria
anestesiado a ao espontnea direta dos trabalhadores, viabilizando uma poltica
reformista que, por sua vez, conduziu adeso de preceitos nacionalistas e s
conseqncias nefastas da guerra. No entanto, a equivocada poltica social-democrata
receberia a inevitvel contrapartida das massas trabalhadoras, que, em situao de crise
extrema e com o estmulo vindo do Oriente, resgatavam o seu potencial
revolucionrio. O combate viria de toda parte, mesmo de quadros da social-
democracia, tais quais Liebtknetch e Rosa Luxemburgo, historicamente crticos aos
rumos tomados pelo grupo majoritrio do partido. A revoluo espartacista trazia
consigo a revolta popular contra as amarras da burocratizao reformista, presa
poltica da classe dominante. Ainda que pudessem existir anarquistas que
159
consideravam a revoluo como um fenmeno natural da evoluo social, muitos
outros sabiam que ela poderia ou no ocorrer. De toda forma, a revoluo em curso era
uma reao ao contexto de sufocamento dos trabalhadores, a uma poltica hostil, que
alm de os oprimir econmica, social e moralmente, punha em risco as suas vidas e as
de seus familiares. Uma reao para enfim superar o estgio de dominao. A
imposio do revolucionarismo sobre o reformismo e seus intrnsecos efeitos s podia
contar com o apoio dos anarquistas
254
.
Mas os conflitos entre os revolucionrios russos, a consolidao dos
bolcheviques e a aniquilao fsica de grupos de oposio revolucionria, como o de
Nstor Makhno na Ucrnia, resultaram numa reviravolta global da posio dos
anarquistas frente revoluo dos sovietes. Malatesta, Kropotkine, Goldman, que no
incio da revoluo, diante das presses exercidas pelas ameaas de interveno das
potncias ocidentais para restaurao da ordem anterior, admitiram uma temporria
ditadura do proletariado, ou seja, a necessidade do Estado e da existncia de um
exrcito que garantisse as conquistas at aquele momento, passam a denunciar a
construo de uma nova ordem burocratizante, de uma nova classe a perpetuar a
explorao e a opresso j existentes. De outra parte, outros anarquistas passam a
reavaliar suas posies, e acreditam que a defesa da revoluo condio essencial e
nico caminho para se alcanar os objetivos almejados, que valeram tantos anos de
militncia. Isto , para os anarquistas que defendem a Revoluo Russa, fortalece-se a
idia de que para permanecerem anarquistas preciso revestir-se de bolcheviques.
Este antagonismo verificado no anarquismo internacional ocorre tambm no
Brasil. Os onze nmeros consultados da revista Movimento Communista
255
, cuja
publicao comea dois meses antes da fundao do PCB, deixam transparecer este
254
Sobre o acompanhamento dos desdobramentos da revoluo russa na Alemanha, e as referncias
elogiosas a Rosa Luxemburgo e Liebtknetch, ver, por exemplo: Os crimes da burguesia alem. O
Syndicalista rgo da Federao Operria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano I, n. 6, 2 ago.
1919, p. 2; A Revoluo Social no centro da Europa. - A onda vermelha que se avoluma e avana.
Proclama-se a Repblica dos Soviets na Hungria e na Baviera Esprtaco ressurge na Alemanha. A
Plebe. So Paulo, ano II, n. 8, 12 abr. 1919, p. 3. Ver ainda a publicao de fotos acompanhadas
somente de legendas: Jornadas de guerra social em Berlim. passagem do cortejo fnebre dos
insurrecionais mortos na luta, o marujo Tost, de p sobre a balaustrada do palcio real, pronunciando
violento discurso revolucionrio. A Plebe. So Paulo, ano II, n. 6, 29 mar. 1919, p. 1; Espartacistas em
luta numa rua de Berlim. A Plebe. So Paulo, ano II, n. 9, 19 abr. 1919, p. 1; Espartacistas batendo-se
em Berlim numa barricada feita de jornais e bobinas de papel. A Plebe. So Paulo, ano II, n. 17, 14
jun. 1919, p. 1.
255
Movimento Communista (Rio de Janeiro) foi publicado mensalmente em 1922 e quinzenalmente at
junho de 1923. Consultei apenas os nmeros do seu primeiro ano de publicao, com exceo do
nmero 1.
160
conflito. Em praticamente todas as edies, alm da inteno de propagar uma nova
forma de organizao poltica que integrasse o Brasil na mobilizao bolchevique
internacional, havia artigos que pareciam ser destinados diretamente aos militantes
anarquistas, antigos companheiros de luta daqueles que se bandearam para as fileiras
do PCB. Textos escritos ora em termos mais cordiais, ora em tons mais speros, que
tentavam dissuadir os anarquistas a abandonar a velha doutrina por outra que se
mostrava terica e empiricamente superior.
Esses escritos pareciam correspondncia velada, dirigida por vezes
nominalmente a algum militante ou agrupamento anarquista, ou, em termos genricos,
a todos eles, em que respondiam ao que os comunistas consideravam ataques de fria
desmedida, incompreenso ou hipocrisia de seus antigos companheiros.
A paulatina refutao do bolchevismo faz o movimento anarquista, sobretudo a
frao que considerava os sindicatos instrumentos, prioritrios ou secundrios, de
mobilizao revolucionria, tentar fazer frente aos avanos da Internacional Sindical
Vermelha (I.S.V.), brao sindicalista da III Internacional Comunista. No entanto,
tornava-se cada vez mais freqente a adeso de importantes organizaes sindicalistas
revolucionrias em todo o mundo I.S.V., enquanto na Rssia a oposio capitulava
pela fora da represso do governo revolucionrio.
Exemplar das dificuldades de articulao entre anarquistas e sindicalistas
antiestatistas contrrios aos desdobramentos da Revoluo Russa foi a Conferncia
Internacional dos Sindicalistas Revolucionrios, ocorrida em junho de 1922, em
Berlim. A chamada para o Congresso Internacional de Sindicalistas Revolucionrios,
assinada pelo secretrio do seu Bureau Internacional, o anarquista Rudolf Rocker,
significativa, por demonstrar como os anarquistas e outros sindicalistas revolucionrios
tiveram um rompimento gradual em relao Revoluo Russa:
Ns soubemos pela imprensa que o Comit Executivo
da I.S.V. [I.S.R. em francs] alterou a data do 2 Congresso da
I.S.V., que deveria ter lugar em 23 de outubro, a uma data
ulterior notadamente em 20 de novembro de 1922. Dado que
uma das razes pelas quais a Conferncia Internacional de
Berlim decidiu convocar o Congresso Internacional dos
Sindicalistas Revolucionrios data de 12 a 19 de novembro
foi seu desejo profundo e consciente de no forar a ruptura e
de dar a possibilidade ao Congresso de Moscou reconsiderar a
poltica de ciso exercida at aqui pela I.S.V., no seio do
movimento sindicalista revolucionrio mundial, o Bureau
Internacional dos Sindicalistas Revolucionrios, fiel ao
161
esprito do mandato conferido pela Conferncia de Berlim, e
ansioso de no fechar irrevogavelmente a porta a toda
possibilidade de ao comum, CONVOCA O CONGRESSO
MUNDIAL DOS SINDICALISTAS REVOLUCIONRIOS E
INDUSTRIAIS EM BERLIM PARA A DATA DE 25 DE
DEZEMBRO DE 1922 (NATAL) E DIAS SEGUINTES.
256
De acordo com o que foi visto no captulo anterior, no Brasil algum esboo de
crtica publicizada ao bolchevismo surge j em 1919, em materiais de propaganda que
admitiam entre seus colaboradores, partidrios de ambas as tendncias em processo de
ciso. Dentre eles, encontrava-se Renovao
257
, editado por um grupo de mesmo nome
entre dezembro de 1920 e janeiro de 1921, que viria a ressurgir em fevereiro de 1922
sob a direo dos anarquistas antibolcheviques.
Na carta de princpios, fins e meios do Grupo Social Renovao, elaborada
em sua constituio, a 4 de janeiro de 1921, eram adotados como meios legtimos de
luta, trs pontos, que indicam paulatinamente um rompimento interno entre prceres e
crticos ao bolchevismo:
1 A luta direta e implacvel das classes proletrias
organizadas em sindicatos contra a dominao da classe
capitalista burguesa, seus privilgios poltico-econmicos,
pugnando pela derrubada do Estado atual, como reflexo do
poder de uma classe.
2 A ditadura do proletariado, como poder transitrio,
para esmagamento radical do regime capitalista, defesa da
revoluo, supresso da explorao do homem pelo homem,
fazendo triunfar o comunismo pela expropriao, socializao
e abolio da diviso da sociedade em classes.
3 O Grupo Social Renovao manifesta-se contrrio
luta parlamentar, podendo, individualmente, qualquer dos
seus componentes manifestar a respeito a sua opinio, desde
que ela esteja de acordo com as resolues tomadas pelo
Segundo Congresso da Terceira Internacional de Moscou.
258
O Grupo Social Renovao, portanto, claro ao admitir a ditadura do
proletariado como mtodo legtimo de luta. E apesar de defender a priorizao da ao
direta dos trabalhadores, atravs dos sindicatos, libera aos seus membros,
individualmente, a deciso de lanarem-se luta parlamentar, com a ressalva de que
256
Bulletin International des Syndicalistes Rvolutionnaires et Industrialistes. Berlim, n. 2-3, ago. 1922
[p. 40].
257
Renovao Quinzenrio Syndicalista e Communista. Rio de Janeiro, ano I, n. 1, 16 dez. 1920; ano
II, n. 2, 1 jan. 1921; ano II, n. 3, 20 jan. 1921.
258
Renovao Quinzenrio Syndicalista e Communista. Rio de Janeiro, ano II, n. 3, 20 jan. 1921, p. 2.
162
fossem observadas as resolues do II Congresso da III Internacional. Isso fazia desse
grupo um grupo no anarquista? No exatamente. O subttulo do jornal dizia ser um
quinzenrio sindicalista e comunista, o que, naquele momento, podia indicar
anarquistas que se utilizaram dessa denominao para mostrar-se de acordo ao
movimento russo. Por outro lado, como foi visto anteriormente, foi estabelecida uma
tradio sindicalista de neutralidade poltica como estratgia de sobrevivncia dos
anarquistas nos sindicatos, ainda que ela viesse acompanhada com a recomendao da
negao da luta parlamentar. Ainda assim, percebe-se, j aqui, claros sinais de que os
membros desse grupo esto em processo de afastamento do anarquismo. Ou, como sua
carta de princpios estabeleceu, ao negar envolvimento com o grupo Coligao Social:
adotamos um programa definido, sem os exclusivismos que infestam a propaganda
libertria
259
.
No podemos precisar os nomes dos militantes que compunham o Renovao,
alm do redator-chefe Mancio Teixeira, o administrador J. Freitas e o redator principal
A. Correia. Mas constam como assinantes de artigos o Prof. C. C.
260
, Antonio
Canellas e Everardo Dias, que integrariam o PCB pouco mais de um ano depois, alm
de Antonio Trotte, que mantinha uma postura de ceticismo, preferindo que as mltiplas
informaes desencontradas vindas do exterior fossem confirmadas e desmentidas pelo
tempo, para, enfim, marcar posio.
A ciso definitiva veio logo a seguir, em novembro de 1921, e com ela claras
definies de posio. Neste sentido, do material consultado, as mais antigas
declaraes de explcita definio de posio francamente contrria aos bolcheviques
em material de propaganda escrita no Brasil datam do primeiro dia de 1922, quando o
grupo Aliana Anarquista lana seu jornal O Libertrio
261
, em So Paulo, coincidindo
com as vsperas da formao do PCB. Os quatro nmeros consultados, lanados
quinzenalmente nos meses de janeiro e fevereiro de 1922, so dedicados quase que
exclusivamente ao propsito de marcar posio (e, evidentemente, esperar a adeso
dos leitores) na defesa do ideal anarquista, o que implicava a reafirmao da rejeio a
todas as formas de opresso, incluindo as do Estado controlado pelos bolcheviques.
259
Renovao Quinzenrio Syndicalista e Communista. Rio de Janeiro, ano II, n. 2, 1 jan. 1921, p. 1.
260
Alex Buzeli Bonomo (O anarquismo em So Paulo: as razes do declnio (1920-1935). So Paulo:
Dissertao de mestrado em Histria/PUC-SP, 2007, p. 145) afirma que o Prof. C.C. seria Coelho
Cintra, mas no cita a fonte. Apenas para registro, Cristiano Cordeiro, era professor.
261
O Libertrio Edio da Alliana Anarquista. So Paulo, ano I, n. 1, 1 jan. 1922; 15 jan. 1922; 4
fev. 1922; 15 fev. 1922.
163
Antes disso, at pelo menos o dia 5 de novembro de 1921, data mais recente de uma
publicao com influncia anarquista consultada at a virada do ano, se j no se
dedicava mais muito espao nas publicaes acerca dos desdobramentos (e
estancamentos) da onda revolucionria no Leste Europeu, ainda se lia um apelo para
que se prestasse socorro aos flagelados do herico proletariado russo, que h quatro
anos vem sustentando uma luta sem precedentes na histria do capitalismo
mundial
262
.
De toda forma, a reproduo do apelo do Comit em um contexto em que
gradualmente se verificava a ausncia de referncias que acompanhassem a Revoluo
Russa, em franco processo de estagnao em suas investidas rumo ao Ocidente, pode
ser interpretada como se fosse de indefinio interna entre os militantes anarquistas
articuladores da relao entre anarquismo e movimento operrio no Brasil. Aps o
surto inicial de otimismo diante da ecloso da Revoluo, a defesa da continuidade da
ditadura do proletariado impunha-se como uma questo fundamental para os
anarquistas. Se diante das ameaas de interveno estrangeira e em um contexto de
guerra, muitos dos principais nomes do anarquismo internacional e do Brasil
reconheceram a necessidade de um Estado temporrio para garantir a existncia e
expanso da revoluo, a partir de 1921 iniciam-se as desconfianas de que o aparelho
estatal instalado permaneceria indefinidamente. Cedo ou tarde o impasse surgiria: o
que mais revolucionrio? A crtica ou a defesa nica revoluo conhecida at ento
com chances reais de instaurar um regime que negasse o direito propriedade privada
dos meios de produo? Os mtodos bolcheviques de implantao do socialismo eram
condizentes em relao aos fins almejados? Seria possvel abrir mo de certo
pragmatismo em nome de uma defesa intransigente da unio intrnseca entre meios e
fins (o que do contrrio seria, por si s, anti-revolucionrio)? Quaisquer que fossem as
respostas encontradas, existiria um clculo de custos e ganhos. Em qualquer hiptese
algo seria sacrificado. Houve um racha de posies, e cada qual encontrou respostas
pelas quais pudessem justificar a sua opo em nome do ideal pelo qual sempre
lutaram.
Alguns aderiam aos mtodos e teorias que se apresentavam como mais
eficazes, graas consolidao do Estado sovitico. Para estes, no haveria
262
Comit de Socorro aos Flagelados Russos Apelo aos trabalhadores do Brasil. A Plebe. So Paulo,
ano V, n. 126, 5 nov. 1921, p. 3. (O Comit tinha sede no Rio de Janeiro, e este apelo foi redigido em
setembro de 1921).
164
contradio em sua escolha com o ideal partilhado por anos a fio no passado. Ao
contrrio, era o nico meio vivel, uma vez que anos de dedicao de energias para a
luta, segundo os mtodos antigos, mostraram-se limitados e inoperantes. Outros
precisavam reformular publicamente sua antiga posio de defesa daquela revoluo,
de modo que no fosse afetada a coerncia de suas antigas convices, conservando-as
puras, no sentido de que deviam se demonstrar permanentemente vlidas e
verdadeiramente revolucionrias.
A ruptura definitiva se deu em algum momento em novembro de 1921. Sem
informar datas, Ferdinando Al relata o momento final dessa tenso interna. A ciso
definitiva se deu durante conferncias chamadas por Astrojildo Pereira no Rio de
Janeiro, que tinham por finalidade resolver, de uma vez por todas, exatamente a
questo da posio do grupo diante da Revoluo Russa:
A convite de Astrojildo Pereira, realizou-se nesta
capital uma srie de conferncias, para definir a atitude dos
anarquistas ante a Revoluo Russa.
Assistiram reunio todos os militantes, inclusos J.
Oiticica, Brando, Elias, etc.
Astrojildo comeou a ler uma poro de consideraes
do ex-camarada russo Clubaltik e de outros mais.
A seguir falou Ferdinando Al, que principiou por
afirmar que os maximalistas, depois de conquistarem o poder,
trataram de impor vrias reformas de carter poltico e
econmico, obstaculando, assim, o estabelecimento da
liberdade.
A poltica de Lnin, traioeira como a de Carlos Marx,
veio demonstrar ao mundo a falncia do socialismo e o perigo
da ditadura do proletariado.
Foi uma verdadeira desiluso para todos os
revolucionrios. E a prova que, tendo a revoluo abolido
todas as opresses e exploraes, os bolchevistas so
autoritrios e nada fizeram para libertar e emancipar a classe
operria, e, ao contrrio, os bolchevistas, consolidando-se no
poder, fizeram da Rssia o pas mais militarizado do mundo.
Len Trotsky um novo Napoleo: ameaa direita e
esquerda, com seu exrcito vermelho.
Ns libertrios repelimos a ditadura do proletariado,
porque os proletrios esto nos campos, nas oficinas, nas
fbricas, no mar e por toda a parte produzindo e a ditadura
exercida por burgueses disfarados de operrios.
Os Palmeiras, Maurcios e Nicanores, socialistas
comunistas, so polticos.
Ns, anarquistas, faremos em toda a parte onde nos
encontrarmos, propaganda libertria, ensinando ao
trabalhador os princpios bsicos da anarquia.
165
A frmula socialista sempre oposta Anarquista,
podendo-se resumir assim:
Vota por mim, que eu pensarei por ti. A frmula
anarquista diz: Trabalhador, tem confiana em ti, porque
nunca obters nada a no ser com o teu contnuo esforo e o
teu sacrifcio.
Assim foi a concluso dessas conferncias do camarada
Al.
Todos os camaradas, entre os quais Oiticica, Brando,
e outros, apoiaram as afirmaes do camarada.
Astrojildo, vendo-se em maus lenis, confessou que
estava de acordo com a ditadura proletria, divergindo de
todos os anarquistas, passando pela ala esquerda para a
direita, indo fundar nesta capital o partido comunista, de
carter poltico.
Assim houve a diviso entre os libertrios cariocas.
263
Porm, uma vez dada a ruptura interna de programa revolucionrio, a
interlocuo entre ex-companheiros, a partir de ento mais acalorada, continuou de
parte a parte. Pelo menos durante 1922, Movimento Communista reproduziria trs
artigos doanarquista russo bastante conhecido na Frana, Victor Serge
264
. Tratava-
se de uma clara tentativa de provar que a ciso dos militantes que fundaram o PCB
fazia parte de uma autocrtica que no era exclusiva, e, portanto, improcedente, alm
de persuadir seus antigos companheiros a fazerem o mesmo. O autor russo foi
apresentado como autntico revolucionrio, o que significaria dizer, ao contrrio
dos seus congneres brasileiros, algum queprefere colaborar efetivamente na
Revoluo ao invs de deblaterar distncia sobre a Revoluo.
Neste sentido, a diviso foi fruto de uma crise do anarquismo, como avaliou
Astrojildo Pereira, ao contextualizar a formao do PCB dentro de um processo
internacional de mudanas de organizao operria, o qual o autor qualificou de crise
internacional do proletariado. A ciso libertou os dois grupos para propagandear sua
263
F. A. [AL, Ferdinando]. Conferncias realizadas no Rio de Janeiro. O Libertrio Edio da
Alliana Anarquista. So Paulo, ano I, n. 4, 15 fev. 1922, p. 4. A confirmao de que o autor do
artigo F.A. corresponde a Ferdinando Al, encontra-se na reproduo do artigo na documentao
pessoal de Astrojildo Pereira (CEDEM). Nesse mesmo texto, Astrojildo faz uma nota referncia a
Clubaltik: (? Kibaltchitch = Victor Serge, ex-anarquista).
264
Cf. A revoluo e suas realidades. Movimento Comunista Mensrio de doutrina e informao
internacional. Rio de Janeiro, ano I, n. 3, mar. 1922, p. 89-95; O problema da ditadura. Rio de
Janeiro, ano I, n. 9-10, ago.-set. 1922, p. 269-274; Velhas rotinas. So Paulo, ano I, n. 13, dez. 1922,
p. 364-368. A qualificao de Serge como anarquista consta na apresentao de seu primeiro artigo,
de maro de 1922, quando se anuncia tambm, na contracapa, a publicao, para breve, de uma
brochura de sua autoria intitulada Os anarquistas e a Revoluo Russa.
166
posio de modo franco, sem constrangimentos e sem os riscos de se gerarem
confusionismos, para utilizar um termo usual dos escritos daqueles anos:
A celeuma atual nada mais que a expresso
inevitvel dessa crise. E por isso mesmo, saudvel,
revigoradora, fecundssima. S assim poderemos viver, uns e
outros. A confuso que perniciosa, por entorpecedora, pois,
com o debate. Mantenhamo-lo e sustentemo-lo, antes, com
energia e desassombro. E sobretudo com elevao de vistas,
com superioridade de nimo, com lealdade coisas que no
excluem, ao contrrio: dignificam a veemncia, o ardor, a
paixo. Deixemos, isso sim, os vis processos de intringuilhas e
difamaes aos eternos incapazes e impotentes, ontem como
hoje dignos apenas de desprezo e comiserao...
265
Do lado dos anarquistas, a ciso os estimulou a tecer francas crticas libertrias
aos bolchevistas
266
. Os bolchevistas encarnavam-se no Brasil atravs de alguns de seus
mais experientes e dedicados companheiros. No existia mais razes para
constrangimentos, afinal se configurava uma nova e intensa disputa entre correntes
polticas nos meios proletrios. Se as relaes entre anarquistas e movimento operrio
no foram de fato to fortes como queriam os militantes cratas, eles tinham agora
como adversrios polticos no apenas os tradicionais grupos reformistas e
colaboracionistas, contra os quais continuavam a se bater e at ali tinham relativo
sucesso. Agora encontravam-se na longa lista de rivais, por vezes, tratando-se como
inimigos, alguns de seus companheiros mais devotados e articulados, que constituam
algumas das mais slidas pontes entre os movimento anarquista e operrio.
Contudo, o surgimento do PCB seria apenas um dos novos obstculos que a
militncia anarquista teria que enfrentar na dcada de 1920. O monoplio da revoluo
no cabia mais apenas aos anarquistas, nem ficava restrito apenas ao movimento
operrio. Mesmo considerando os limites da revoluo defendida pelo tenentismo, eles
se autoproclamavam revolucionrios e como tais eram vistos, de modo geral. Esse
movimento contribuiria para uma mudana de rumos na vida poltica republicana
brasileira, do qual o anarquismo seria vtima e teria que se defrontar. Aos anarquistas
se colocavam novos dilemas frente a emergncia de novos agentes que deslocavam o
265
PEREIRA, Astrojildo. No nos assustemos com o debate. Movimento Comunista Mensrio de
doutrina e informao internacional. Rio de Janeiro, ano I, n. 3, mar. 1922, p. 69-70.
266
Ver LUZ, Fabio. Maximalismo e anarquismo. O Libertrio Edio da Aliana Anarquista. So
Paulo, ano I, n. 1, 1 jan. 1922, p. 2-3.
167
protagonismo da ao e redefiniam o prprio sentido de revoluo que os libertrios
se esforaram por construir e difundir at ento
267
.
O ANARQUISMO NA POCA DAS REVOLUES PEQUENO-BURGUESAS E
BURGUESAS
Quando da ecloso da rebelio tenentista no Forte de Copacabana, no Rio de
Janeiro, a 5 de Julho de 1922, os anarquistas no tomaram parte ativa de nenhuma
forma. A ao tomou o governo de surpresa, mais ainda os militantes anarquistas, que
no faziam a menor idia da possibilidade do levante, embora acompanhassem, como
todos que acompanhavam os noticirios polticos do pas, as tensas relaes que se
estabeleceram, desde a campanha eleitoral, entre o governo civil de Arthur Bernardes e
uma parcela do contigente militar ligada ao ex-presidente Hermes da Fonseca.
Mesmo sem qualquer envolvimento direto ou indireto com o movimento
militar, a reao governamental imediata, sob a forma de estado de stio, atingiu
tambm o movimento operrio, provocando o empastelamento da imprensa e a priso
de indivduos identificados como subversivos ordem. O mesmo aconteceria, com
maior vigor, dois anos depois, com o segundo levante tenentista, ento iniciado em So
Paulo, na mesma data.
Frisa-se que no havia qualquer relao direta entre os movimentos operrio e
anarquista com o tenentismo, a no ser breves indcios de tentativas de aproximao
anteriores, que no resultaram em atos concretos. Como foi ressaltado anteriormente,
no final da dcada de 1910, logo aps as greves de 1917 e estimulados com o exemplo
da unio entre soldados e trabalhadores, que desenvolveu o processo revolucionrio na
Rssia, os anarquistas tentaram persuadir, por intermdio de sua imprensa e
homenagens aos soldados mortos na greve da Cantareira, os militares para que dessem
suporte aos movimentos desencadeados pela classe operria. Chegou-se mesmo a
considerar que algum apoio havia sido conquistado, ao atribuirem ingenuamente
267
Sobre a contraposio de projetos que se diziam revolucionrios, e a memria e implicaes
construdas a partir do ponto de vista vencedor para legitimar sua vitria e desqualificar os projetos
considerados vencidos, atribuindo-lhes fragilidades inexorveis, ver DE DECCA, Edgar. 1930: o
silncio dos vencidos. So Paulo: Brasiliense, 4. ed., 1988.
168
funes estratgicas e mincias da insurreio malfadada de 1918 ao tenente infiltrado
Jorge Elias Ajus
268
.
Anos mais tarde, nos primeiros meses de 1923, a polcia obteve a informao
de que militares, por vezes com a cumplicidade do deputado Maurcio de Lacerda,
sondaram lideranas operrias cariocas de vrias tendncias, como Everardo Dias,
pelos comunistas, Evaristo de Moraes e Sarandi Raposo, da Confederao Sindicalista
Cooperativista Brasileira, e o prprio Oiticica, pelos anarquistas, a tomarem parte em
uma nova conspirao, convocando greves gerais quando eclodisse a revolta entre os
militares
269
. Dada a dificuldade de se obter fontes de uma operao clandestina,
estima-se, sem maiores informaes e sem saber os motivos, que tanto os anarquistas
quanto os cooperativistas rejeitaram a aliana. O que se sabe, a partir de depoimentos e
registro de memrias de militantes da poca, que algumas lideranas do PCB
comprometeram-se a apoiar o levante comandado pelo Cel. Isidoro Dias Lopes desde o
Rio de Janeiro e So Paulo, impedido de ser realizado pela ao da polcia e pela
priso de oficiais do Exrcito e da Marinha em abril
270
. Ao mesmo tempo, e depois da
exploso de uma dinamite em frente a uma padaria na capital federal, a polcia tambm
efetuou o fechamento de associaes como a Unio Geral dos Empregados em Hotis
e Restaurantes e a Unio dos Operrios em Construo Civil, e a priso de diversos
militantes considerados perigosos, dentre eles Florentino de Carvalho e Octavio
Brando
271
.
Se o episdio de 1918 e as supostas tentativas de aproximao de 1923
contriburam ou no para que o governo considerasse a existncia de uma real
articulao entre revolucionrios ligados ao movimento operrio e os rebelados
militares, difcil dizer. O que certo o fato do governo no fazer distino entre os
amotinados das Foras Armadas e outros adversrios polticos, identificados pelo
Estado como potenciais perigos revolucionrios, e, mesmo no existindo uma
vinculao efetiva, tornava essa possibilidade bastante plausvel. Simblica disso foi a
268
Em seu relato ao inqurito policial, o tenente Jorge Elias Ajus narra em pormenores a forma como
descobriu os planos sediciosos dos anarquistas e a facilidade com que fez-se aceitar pelo grupo. Este
depoimento, ao lado dos de outros acusados de conspirao, foi publicado no jornal carioca Correio
da Manh de 24 e 26 de dezembro de 1918 e encontra-se reproduzido em BANDEIRA, Moniz,
MELO, Clovis e ANDRADE, A.T. O ano vermelho: a Revoluo Russa e seus reflexos no Brasil. So
Paulo: 2.ed., Brasiliense, 1980, p. 307-312.
269
DULLES, John W. F. Anarquistas e comunistas no Brasil (1900-1935). Rio de Janeiro:
2.ed.rev.ampl., 1977, p. 194-195.
270
Idem, ibidem, p. 194.
271
Idem, ibidem, p. 195.
169
priso de Oiticica, que tambm era um dos participantes da conjurao de 1918, na
ocasio do segundo levante tenentista, em 1924. Ao chegar ao Rio de Janeiro a notcia
da revolta de parte dos batalhes paulistas, a polcia do Distrito Federal tomou suas
providncias para neutralizar a ao de indivduos suspeitos de poder organizar seus
desdobramentos na capital da Repblica. Dentre esses, foi preso o professor Jos
Oiticica, na porta do Colgio Pedro II, onde trabalhava. Sem saber o motivo pelo qual
estava sendo preso na frente dos seus alunos, o estado de stio lhe renderia 5 anos de
cadeia nas ilhas-priso da baa da Guanabara
272
.
Ao que tudo indica, os rebeldes do Exrcito e da fora pblica estadual de So
Paulo jamais procuraram lideranas do movimento operrio, seja qual fosse a corrente
poltica, para dar suporte na preparao dos seus planos insurrecionais, em 1924.
Entretanto, os anarquistas sabiam, por experincias nada remotas, que, caso as foras
legalistas vencessem, o governo agiria sobum dio terrvel de vingana e opresso
sobre o povo para aplacar qualquer manifestao contrria ordem estabelecida. A
nica tentativa de aproximao foi feita somente dez dias aps a deflagrao da revolta
e cerca de cinco dias do grande bombardeio legalista contra a cidade. Trata-se da
publicao, na mesma edio de A Plebe, de um relato dos combates que se travaram
na cidade, elogioso aos rebeldes
273
, um manifesto condenando os bombardeios
legalistas
274
e uma moo endereada ao Comit das Foras Revolucionrias
275
em
resposta ao Manifesto que os Chefes do Movimento Revolucionrio publicaram pelos
jornais da capital paulista, endereados populao. Esta moo foi assinada por um
272
SAMIS, Alexandre. Presenas indmitas: Jos Oiticica e Domingos Passos. In: FERREIRA, Jorge e
REIS, Daniel Aaro (orgs.). As esquerdas no Brasil: Vol. 1 A formao das tradies (1889-1945).
Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, p. 91.
273
Movimento revolucionrio. Foras do Exrcito e da Polcia estadual convulsionam-se Assaltos s
delegacias de polcia da 2, 7 e 8 circunscries e s estaes do Braz, Sorocabana e Luz A
situao da cidade e a atitude do povo O triunfo dos revolucionrios O saque O carter da
revoluo A nossa opinio A luta continua Infmias dos legalistas Dvidas justificveis Uma
Moo de militantes operrios Um manifesto ao proletariado. A Plebe Peridico Communista-
Libertrio. So Paulo, 25 jul. 1924, p. 1-2.
274
Ao proletariado paulista. A Plebe Peridico Communista-Libertrio. So Paulo, 25 jul. 1924, p. 2.
275
Uma moo de militantes operrios ao Comit das Foras Revolucionrias. A Plebe Peridico
Communista-Libertrio. So Paulo, 25 jul. 1924, p. 2. A moo, publicada em A Plebe apenas no dia
25 de julho, foi confeccionada no dia 15 do mesmo ms. Assinaram-na: Pedro A. Mota, grfico; Jos
Righetti, tecelo; Jos Ribeiro, carteiro; Arsnio Palcios, empregado no comrcio; Francisco de
Simoni, sapateiro; Paulo Menkitz, tecelo; Pasqual Martinez, engomador; Belmiro da Silva Jacintho,
vidreiro; Nino Martins, grfico; Antonino Domingues, sapateiro; Joo Peres, sapateiro; Fernando
Ganga, sapateiro; Fernando Donaire, metalrgico; Antonio Cordon Filho, carpinteiro; Joo
Castelani, tecelo; Mario Silva, marceneiro; Jos Sarmento, chapeleiro; Joo Badu, sapateiro;
Rodolpho Felippe; Francisco Pawlik, lustrador; Joo Matheus, pintor; Alberto Magagni; Marino
Spagnolo, alfaiate; Antonio Lucas, pintor; Jos Gomes, pedreiro; Jos Granero, pedreiro; Pedro
Zanela, pedreiro; Affonso Festa, sapateiro.
170
grupo de operrios composto por anarquistas, em sua maioria, que se apresentavam
como militantes das classes trabalhadoras de S. Paulo.
A moo diz reconhecer no tal manifesto a traduo das boas intenes dos
rebelados contra o aambarcamento de produtos de primeira necessidade. Alm disso,
e principalmente, dado que havia pouco tempo da revogao do estado de stio, e que
antes disso, o movimento operrio tambm tinha sido alvo de inmeras arbitrariedades
condenadas pela Constituio Federal, os signatrios viam com simpatia sua
disposio de realizar um trabalho de regenerao nos costumes polticos, sociais e
econmicos da Repblica brasileira, - republicanizando-a, - e readquirir ao povo os
direitos de liberdade e vida que at o presente no tm ido alm de uma utpica
promessa existente, apenas, nas pginas que enfeixam a Constituio brasileira. Por
isso, a disposio mnima em fazer valer a liberdade e a democracia registradas na
Carta Magna, e extirpar os vcios de corrupo e arbitrariedade instalados no Brasil
desde a Repblica, por si s, j era motivo mais do que suficiente para justificar a
rebelio.
Citando trechos do Manifesto que, segundo eles, explicitavam o interesse dos
rebeldes em enfrentar o problema da carestia de vida e em repor garantias de liberdade
mnima que interessavam diretamente organizao dos trabalhadores, quais fossem o
direito de associao e de livre opinio, na moo apresentaram os alvitres seguintes
ao Comit revolucionrio:
1 - A fixao do salrio mnimo para todas as classes
trabalhadoras do Estado, de conformidade com a tabela de
gneros de primeira necessidade, inclusive vesturio e
habitao.
2 - A fixao tambm de uma tabela de preos
mximos para os gneros de 1 necessidade, vesturio e
habitao, em equilbrio com a tabela a que se refere o
perodo acima;
3 - O direito de associao para todas as classes
trabalhadoras;
4 - A liberdade de imprensa operria e a manifestao
do pensamento em praa pblica, bem como a revogao na
lei de expulso da parte em que se refere s questes poltico-
sociais;
5 - O direito de fundar escolas de instruo e
educao, cingidas aos mtodos que lhe paream mais
prticos e venham ao encontro das suas aspiraes de
liberdade e justia;
171
6 - Finalmente, a generalizao do dia de 8 horas de
trabalho.
276
Chamam a ateno pelo menos dois aspectos. Primeiramente, nota-se que os
seis pontos foram alvitrados e no reivindicados, muito menos impostos como
condio inegocivel, tal qual freqentemente sugeria o arcabouo discursivo do
sindicalismo revolucionrio aos trabalhadores para que tomassem conscincia de seu
potencial revolucionrio. Alm dessa postura, que pode ser considerada muito mais
tmida do que se almejava, sugerem-se ao menos trs medidas (as duas primeiras e a
ltima), que, para tornar-se efetivas, deveriam ser impostas e garantidas por um Estado
ou um novo governo sob a gerncia do Comit de militares.
Tanto a demora em oferecer sua simpatia ao movimento, quanto a sua posio
de colocar-se como solicitantes de atendimento de medidas, indica, por um lado, a
fragilidade dos movimentos operrio e anarquista naquele momento, fruto da
seqncia de ondas repressivas que se instalou desde 1919, intensificada em 1922. Por
outro lado, atesta a completa falta de vnculo no desencadeamento da revoluo, o que
no os coloca numa posio de igualdade para a conduo do processo, pelo menos
naquele momento. De toda forma, se o momento no era propcio para aventurar-se na
conduo de um movimento devido falta de fora poltica, e se a rebelio em curso
no tinha os mesmos amplos objetivos da to sonhada Revoluo Social libertria,
ainda assim ela se mostrava uma grande oportunidade que no deveria ser
desperdiada, tanto para restabelecer liberdades suspensas ou meramente
descumpridas, como tambm para evitar o risco de se perder, em definitivo, o
reconhecimento pblico como vanguarda revolucionria:
J que no contamos com uma fora consciente e
moral no seio das classes trabalhadoras e populares para
fazermos uma revoluo genunamente nossa, entendemos
que, como diz Malatesta, devemos contentar-nos com fazer
uma revoluo o mais nossa que seja possvel, favorecendo e
participando moral e materialmente, a todo movimento direto
no sentido da justia e da liberdade.
O movimento presente, pela linguagem dos Manifestos
publicados, apresenta este carter. Portanto, como
revolucionrios, julgamos de nosso dever apoi-lo, ainda que
no materialmente, ao menos moralmente, pouco importando,
como ainda afirma Malatesta, de sermos abandonados,
atraioados, como nos tm sucedido outras vezes; mas
preciso correr o risco se no se quer ficar praticamente
276
Idem, ibidem.
172
inativos e renunciar a concorrer com a fora de nossas idias
e da nossa ao para o curso da histria. (...)
(...) no podemos deixar de simpatizar com os
objetivos dos revolucionrios, pois que vem trazer algo de
aproveitvel que, sem o risco do pouco de liberdade que goza,
sem o perigo da prpria vida, o povo tem reclamado para isso
como direitos inerentes ao gnero humano: liberdade, justia,
vida.
Todavia, se isto falhar, pouco ou nada perderemos; e,
como sempre, continuaremos na estacada, propagando os
nossos princpios, difundindo o nosso ideal pela implantao
na terra de uma sociedade puramente igualitria, onde o
homem seja livre sobre a terra livre.
Finalmente, conquiste ou no conquiste o povo os
direitos prometidos pelos revolucionrios, ns continuaremos
a ser o que somos hoje: anarquistas..
277
Por fim, existe ainda uma ltima justificativa para a simpatia dos anarquistas ao
movimento tenentista. De acordo com sua anlise, a maior parte das foras rebeldes
compunha-se das baixas patentes do Exrcito, o que significaria dizer que a maior
parte dos elementos rebelados provinham das classes populares, mesmo que
comandados por oficiais. Seguindo esse raciocnio, reconheciam ser um movimento
popular, apesar das feies militares e dos objetivos restritos em relao ao seu ideal
revolucionrio:
verdade que esse movimento revolucionrio no
uma obra levada a efeito pelo povo. Todavia, embora dirigida
e alimentada por oficiais do exrcito, a causa principal do seu
triunfo devida, sem desconhecer os servios da oficialidade,
aos soldados que a secundaram, soldados estes que
representam uma partcula desse todo que se chama POVO.
Portanto, o movimento, mesmo com as caractersticas
que apresenta, uma obra do povo (...)
278
.
Embora o apoio anarquista ao movimento tenentista tenha se restringido apenas
a um suporte, como diziam, moral, o episdio significativo do ponto de vista da
relao da historicidade das idias do movimento anarquista no Brasil daquele
momento. freqente a tentao de se pensar o anarquismo em alguns aspectos gerais
de suas proposies, e tomar ao p da letra as palavras de ordem pregadas em sua
277
Movimento revolucionrio. Foras do Exrcito e da Polcia estadual convulsionam-se Assaltos s
delegacias de polcia da 2, 7 e 8 circunscries e s estaes do Braz, Sorocabana e Luz A
situao da cidade e a atitude do povo O triunfo dos revolucionrios O saque O carter da
revoluo A nossa opinio A luta continua Infmias dos legalistas Dvidas justificveis Uma
Moo de militantes operrios Um manifesto ao proletariado. A Plebe Peridico Communista-
Libertrio. So Paulo, 25 jul. 1924, p. 1-2.
278
Idem, ibidem.
173
propaganda, de modo atemporal e universal. bem verdade que em seu material de
propaganda h uma carncia de anlises de conjuntura aprofundadas, atribuindo um
sentido mais denunciativo das mazelas gerais do capitalismo, do Estado e do clero em
sua imprensa do que uma anlise pormenorizada das contradies especficas de cada
momento poltico. No entanto, embora o movimento anarquista produzisse e repetisse
insistentemente a necessidade da intransigncia dos princpios, eles tambm sabiam ser
impossvel, a todo o tempo, desconhecer a fora e a capacidade revolucionria de
outros setores poltico-sociais. Da, por exemplo, ser compreensvel o apoio a uma
revoluo militar mesmo que uma parte significativa de sua propaganda fosse
destinada ao antimilitarismo e a denncia segundo a qual o Exrcito, a Marinha e as
polcias no eram nada alm de braos armados da burguesia capitalista. E, no tocante
ao antimilitarismo, vale lembrar que apesar das campanhas antibelicistas adotadas pela
maior parte do movimento anarquista internacional, cabe lembrar que uma parcela dos
anarquistas, dentre os quais Kropotkin, conclamou seus companheiros para que
tomassem armas ao lado da Frana contra o mal do militarismo alemo na I Guerra
Mundial. Este exemplo, cuja atitude foi amplamente questionada por Malatesta, um
dos tantos da diversidade de tomadas de posio da militncia anarquista frente a
situaes concretas, que nem sempre se resumem a posturas gerais caractersticas.
Do mesmo modo, a intensa propaganda destinada aos trabalhadores no
tornava o anarquismo uma ideologia apenas de trabalhadores para trabalhadores, como
era muito comum proclamar-se em seu material de propaganda
279
. Havia anarquistas
em diversas classes sociais e seu ideal deveria ser disseminado preferencialmente por
todos e para todos. Os mesmos Kropotkin e Malatesta, para citar apenas dois exemplos
de grandes referenciais internacionais, foram anarquistas que abnegadamente abriram
mo de confortos prprios da condio das classes nas quais nasceram em prol da
militncia e seus dissabores.
Alm deles, o anarquismo possuiu muitos adeptos da corrente anarco-
individualista tambm oriundos de outras classes que no do proletariado. Porm,
como foi visto no primeiro captulo, o individualismo foi amplamente combatido por
anarquistas de outras tendncias, em todo o mundo e tambm no Brasil. No por causa
da origem de classe de muitos deles, mas porque eram absolutamente contrrios a
279
Exemplar o subttulo adotado pelo hebdomadrio paulistano A Rebelio, de 1914, a partir de seu
segundo nmero: Semanrio de propaganda socialista-anarquista Escrito por trabalhadores e para
trabalhadores.
174
qualquer forma de organizao que submetesse a liberdade individual, o que os tornava
cticos e mesmo temerrios a revolues conduzidas por massas que quisessem impor
novas normas que, a seu ver, comprometessem as individualidades. Da a sua
insistncia em tentar impedir o desenvolvimento de propostas que visavam construir
formas mais coesas de organizao partidria, como sugeria Malatesta. Para eles, o
indviduo estava acima de tudo e, dentre todas as classes, poderiam encontrar
revolucionrios que se negassem a reproduzir formas de submisso. Sua insistncia em
rechaar qualquer forma de organizao e exaltar apenas a rebeldia individual,
contribuiu para que os adversrios revolucionrios do anarquismo se valessem da sua
intransigncia e da condio de classe de muitos deles para destratar toda a corrente
libertria, acusando a todos e s suas idias de pequeno-burgueses, traidores do
proletariado.
No obstante, a solidez que o anarquismo obteve em contexto internacional e
no Brasil se deu a partir de sua insero no movimento operrio. Essa insero
acabaria por provocar uma certa tendncia obreirista no anarquismo organizacionista,
reforada em circunstncias especficas, dentre as quais quando seus partidrios
sentiam-se ameaados por eventuais tentativas de organizao de associaes operrias
por elementos adeptos de outra ideologia (socialistas, reformistas, catlicos, etc.). Em
seus esforos pela necessidade de organizao dos trabalhadores em torno dos
sindicatos, ou nas campanhas contra cada investida de elementos estranhos ao
anarquismo, creditados tambm como estranhos classe operria, repetia-se exausto
a famosa frase do Manifesto Comunista, a emancipao da classe trabalhadora ser
obra dos prprios trabalhadores, que apesar de ser forjada por Marx e Engels, foi
muito comum em textos e epgrafes do material de propaganda anarquista de todo o
mundo e tambm no Brasil.
As investidas contra os aliengenas nas associaes operrias, por vezes,
acabaram por provocar reveses em que os prprios anarquistas no operrios tiveram
que justificar sua militncia e os motivos pelos quais poderiam ser considerados
confiveis, ao contrrio dos seus adversrios. assim, por exemplo, que em uma
acalorada discusso na sede da Federao Operria de So Paulo em torno da sucesso
dos eventos da Revoluo Constitucionalista, de 1932, a qual ser retomada mais
adiante, o sapateiro anarquista Pedro Catallo avaliou como prejudicial aos movimentos
das massas o intelectualismo repleto de cantigas de ninar que invadiu as
175
camadas populares. sua concluso de preferir que os proletrios fiquem sozinhos,
que mal acompanhados, um outro anarquista, Osvaldo (Cartucci) Brasil replicou, ao
declarar ser a convivncia com os intelectuais benfica, por estimular o proletariado
e o elevar com o seu convvio. Lembra Tosltoi, Bakounine, Kropotkine, Malatesta,
Faure e outros precursores do anarquismo, todos vindos da burguesia. Nem por isso
eram menos revolucionrios que o mais autntico dos revolucionrios do
proletariado
280
.
Por outro lado, devido a essa mesma preocupao de afastar adversrios
polticos nos meios operrios, tiveram que se esforar tambm por se distinguir do
bolchevismo, e explicitar aquilo que consideravam mais grave em sua revoluo na
Rssia, a instaurao da ditadura do proletariado. Sendo a ditadura do proletariado,
segundo o ponto de vista anarquista, um regime em que o Estado suprime as liberdades
individuais sob o controle ditatorial de uma classe, seu mpeto revolucionrio era
falacioso, uma vez que as classes no seriam suprimidas, seno apenas invertida a
estrutura de poder. Portanto, os defensores do bolchevismo teriam apenas uma viso
meramente classista em contraposio ao ideal universalista do anarquismo.
nesse sentido e nesse contexto que o escritor, mdico e inspetor escolar Fbio
Luz
281
justificou sua militncia como intelectual, colaborador na imprensa operria e
conferencista em sindicatos e centros culturais. Apresentando-se como um burgus
autntico, reclamava o direito de poder desejar o fim das injustias sociais e
contribuir para a criao de um mundo novo. Portanto, o regime de explorao e
opresso, segundo o autor, no abrangia apenas os trabalhadores, a classe que mais
sofre os males das injustias, mas acometia toda a sociedade, comprometendo mesmo
a felicidade de industriais, comerciantes e militares, que exploram, aambarcam e
fazem a guerra por culpa de um sistema que, apesar de aparentemente os beneficiar,
tambm os vitimiza. Por isso, o estmulo luta de classes empreendido pelos
anarquistas, diferentemente dos bolchevistas, seria feito por uma questo estratgica,
no por dio, possuindo mesmo uma conotao moral ao declarar que quando os
combatemos [os elementos das classes dominantes], temos pena deles, como nos
apiedamos de todas as aflies de nossos irmos.
280
[Atas de] Reunio de militantes [realizada na Federao Operria de So Paulo 2 parte].
Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP), Vol. 1, doc. 41, 11 out. 1932.
281
Uma biografia de Fbio Luz e anlise do conjunto de alguns de seus escritos foi feita por LIMA,
Josely Tostes de. A palavra e a pena: dimenses da militncia de Fbio Luz. (Rio, 1903/1938). So
Paulo: Dissertao de Mestrado em Histria/PUC-SP, 1995.
176
Sou um burgus autntico e me gabo de minhas
idias libertrias.
A anarquia no privilgio do operariado manual. Um
burgus autntico, que vive de seu trabalho mental, um
operrio intelectual, sujeito s mesmas exploraes e to
infeliz como o artfice que v o produto do seu labor servir
para acrescer os capitais alheios.
o anarquismo antes um conjunto de doutrinas
filosficas do que um partido poltico como pensam alguns;
no o anarquismo um privilgio das classes proletrias. A
aspirao justia mais perfeita, igualdade mais real,
felicidade mais garantida geral. Se os operrios sofrem mais,
falta de verdade, de solidariedade social, isso no quer dizer
que o burgus tambm no seja vtima desta desorganizao
social que se pavoneia com o nome de ordem.
Os propagandistas pregam a luta de classes para a
extino das classes. (...)
A luta de classes com a reforma social, como
desejamos, ser no futuro um anacronismo. A questo social
no uma questo das classes operrias, uma questo
humana, que tanto burgueses como libertrios tm o direito de
estudar e tanto se podem gabar de anarquistas os tolstoianos
como os bolchevistas, encarando-a sob o ponto de vista da
justia, sob o ponto de vista moral e felicidade geral, desde
que reconheam que, na sociedade vigente, no h lugar para
a felicidade, nem do burgus, nem do aristocrata, nem do
operrio, nem do proletrio. Todos sao igualmente infelizes,
nesta luta ferrenha e desumana de predomnio e explorao.
Por que razo negar ao burgus o direito de desejar
uma reforma social, que lhe d maior gozo e mais sossego
dentro de uma sociedade fraternal? (...)
A dor universal no magoa somente o operrio manual,
tambm o burgus sofre seus efeitos, e como ser humano,
merece nossa solidariedade. (...)
282
O problema, segundo Fbio Luz, no era a origem social dos revolucionrios.
Preferia chamar de companheiros os burgueses autnticos que se gabam e se honram
de suas idias anarquistas do que aqueles que, mesmo sendo operrios em origem,
tinham pretenses de serem guias de homens, orientadores dogmticos de
associaes, pequenos ditadores voluntariosos e manhosos, Lnines in firi, tirantes
em grmen. O obreirismo bolchevista redundaria na reproduo da opresso de classe
atravs da emergncia de uma nova classe no poder. Tal perspectiva nada mais seria do
que um burguesismo de nome trocado.
282
LUZ, Fabio. Um burgus autntico. Renovao Revista mensal, comunista-anarquista. Rio de
Janeiro, ano I, n. 4, fev. 1922, p. 55-57.
177
Ainda assim, o autor encontrava-se preso ao estreito vnculo que o anarquismo
tentou estabelecer com os trabalhadores, e acabou atenuando sua condio de
burgus autntico definindo-se como um operrio intelectual.
A essncia do texto foi endossada por seus companheiros, tal como se pode ver
na referncia que A Plebe faz ao dizer que o notvel romancista revolucionrio tem
carradas de razo em considerar o anarquismo campo aberto a todos os homens de
boa vontade
283
. Mas nem por isso, os anarquistas, principalmente os adeptos do
sindicalismo como mtodo de luta, abandonavam uma concepo segundo a qual a
centralidade da funo revolucionria cabia aos que tinham seu trabalho explorado
pelo capital. O que estava em questo para Fbio Luz e para os redatores de A Plebe
era a necessidade de diferenciao frente ao bolchevismo que dava seus primeiros
passos formais no Brasil. Importava apresentar o anarquismo como a redeno
universal de toda a humanidade, ao contrrio da ditadura do proletariado, que, segundo
eles, apenas fazia ascender a classe trabalhadora ao poder, e reproduzir antigas formas
de opresso sob novas formas. Ao questionar o exclusivismo da competncia
revolucionria que se pretendia atribuir aos trabalhadores, atacava-se o que
acreditavam ser o carter meramente classista dos marxistas. Na realidade, pouco se
diferenciavam nesse sentido. Para ambos, a revoluo objetivava o benefcio e a
libertao de toda a humanidade; aos trabalhadores competia uma fora propulsora
central mas no nica para tanto. o que atesta claramente o manifesto Os
anarquistas no momento presente definindo atitudes
284
, dirigido aos anarquistas,
aos simpatizantes do ideal libertrio, ao proletariado, e assinado por Edgard
Leuenroth, Rodolpho Felippe, Antonino Domingues, Ricardo Cipolla, Antonio Cordon
Filho, Emilio Martins, Joo Peres, Jos Rodrigues e Joo Penteado, publicado em 18
de maro de 1922, uma semana antes da fundao do PCB. Nesse manifesto,
recomenda-se expressamente, mais uma vez, a necessidade dos anarquistas agirem
junto aos trabalhadores em seus sindicatos, uma vez que eles constituem um
poderoso elemento de educao social dos trabalhadores (...) destinado a ser amanh
a base essencial da reconstruo econmica da sociedade.
283
A Plebe. So Paulo, 13 maio 1922 apud DULLES, John W. F. Anarquistas... op. cit., p. 187 (nota
38).
284
LEUENROTH, Edgard, FELIPPE, Rodolpho, DOMINGUES, Antonino, CIPOLLA, Ricardo,
CORDON Filho, Antonio, MARTINS, Emilio, PERES, Joo, RODRIGUES, Jos e PENTEADO,
Joo. Os anarquistas no momento presente Definindo atitudes Aos anarquistas, aos simpatizantes
do ideal libertrio, ao proletariado. A Plebe. So Paulo, ano V, n. 177, 18 mar. 1922, p. 1 e 4.
178
Por outra parte, ao privilegiar o sindicalismo como principal mtodo de luta, e
os trabalhadores como principais destinatrios de sua propaganda, alertava-se para a
necessidade de abranger a propaganda para outras esferas e pblicos. Assim, os
signatrios do manifesto recomendam estabelecer relaes com as outras correntes
polticas e dar ateno a questes importantes na vida do pas. Para evitar o risco de
isolamento atrofiante do anarquismo, os signatrios observavam a necessidade de
intervir sempre e ativamente diante de acontecimentos de interesse coletivo que se
desenvolverem no pas, nas questes pblicas em que os direitos do povo sejam
postos em jogo. Para tanto, defendia-se a necessidade de se estabelecerem tambm
ligaes, momentneas ou permanentes, com partidrios de outras tendncias
polticas, sem preocupao de hostilidade em conjuno de esforos nos
momentos de atividade contra os manejos reacionrios e em defesa dos direitos
populares. O essencial, nesses casos, era no ceder a objetivos que desviassem o
carter essencialmente libertrio que toda luta deveria assumir e aceitar apenas a
camaradagem de elementos que, embora ainda no se indentificassem com seu
movimento, demonstrem simpatia pela causa da renovao social e queiram prestar-
lhe o seu auxlio sem a pretenso de ingerncia, direta ou indireta, na vida ntima das
associaes obreiras ou de agrupaes sociais e no se escandalizem quando sejam
discutidos os seus pontos de vista particulares.. De outro lado, repeliam toda a
aliana ou entendimento com elementos politiqueiros de qualquer faco, assim
como as tentativas de centralizao e autoritarismo dentro dos sindicatos, alm da ao
parlamentar.
J foi visto anteriormente como os libertrios lutaram pela neutralidade poltica
para garantir sua prpria permanncia no interior das associaes operrias, o que
implicou em alianas mas tambm combates com partidrios de outras correntes
polticas. Assim como tambm, em outros momentos, viram-se na iminncia de
organizar ou participar de movimentos que no se limitavam apenas aos interesses dos
prprios trabalhadores, tais como as campanhas antimilitaristas e, sob certos aspectos,
reivindicaes das greves de 1917, em torno de melhorias contra o aumento da carestia
de vida. Porm, dentro e fora dos sindicatos, os anarquistas faziam questo de tomar
para si pelo menos a aparncia de vanguarda revolucionria.
Portanto, de forma geral, o manifesto repete os preceitos que guiaram a
militncia anarquista no Brasil, principalmente entre os adeptos do sindicalismo. Mas
179
importante salientar esses aspectos para compreender alguns dilemas e posies dos
anarquistas durante as dcadas de 1920 e 1930.
A partir de 1922, o anarquismo deixa de poder se atribuir como a nica
corrente revolucionria. Mesmo que seus militantes conservem a convico de que
apenas sob os princpios do anarquismo possvel se chegar a resultados efetivamente
revolucionrios, debateram-se com uma nova realidade que impunha no apenas o
comunismo como outra corrente que poderia desviar os rumos de concretizao de sua
utopia, mas tambm com movimentos que se autoproclamavam revolucionrios,
embora as mudanas almejadas fossem menos profundas na sua abrangncia.
Da o apoio ao movimento tenentista no ser nenhuma contradio dos
militantes com sua doutrina. Mas foi, sem dvida, um dos poucos episdios da
histrica poltica brasileira at ento em que os anarquistas se posicionaram favorveis
a um movimento poltico sem a participao de seus militantes em sua direo. Alm
disso, foi uma deciso absolutamente regional, restrita ao caso de So Paulo.
NO OIAPOQUE OU NO CHU
J os gachos, um ano antes, quando eclode no Rio Grande do Sul a guerra
civil de 1923, entre os partidrios do PRR e os da Aliana Libertadora (formada pelo
partido federalista e dissidentes republicanos), a opo dos anarquistas pela
neutralidade no conflito e pela denncia dos vnculos entre parlamentarismo,
capitalismo e guerra.
Sabe-se, como demonstra Beatriz Loner
285
, que, especialmente em Pelotas e
Rio Grande, no interior do estado, onde o movimento operrio era bastante forte e o
anarquismo exerceu histrica influncia em suas organizaes, havia, seno
exatamente uma aliana, uma cordial relao entre alguns partidrios da oposio ao
PRR e anarquistas. Mesmo repudiando explicitamente a via eleitoral, anarquistas se
valeram de espaos de domnio de alguns elementos federalistas para denunciar o que
ambos consideravam arbitrariedades do governo. assim, por exemplo, que Santos
Barboza freqentemente assinava a coluna proletria do jornal oposicionista O Rebate,
chegando mesmo a publicar integralmente as atas do 3 Congresso Operrio Brasileiro,
de 1920.
285
LONER, Beatriz Ana. O canto da sereia: os operrios gachos e a oposio na Repblica Velha.
Histria-Unisinos, So Leopoldo, Unisinos, v. 6, n. 6, p. 97-125, jul.-dez. 2002.
180
De toda forma, mesmo considerando haver alguma cordial relao com
elementos de oposio, somada ao desgaste de trinta anos de governo estadual, quando
a guerra civil eclodiu em 1923 a atitude dos anarquistas, em geral, foi a de no tomar
parte no conflito entre federalistas (ou libertadores) e republicanos. Sabe-se que houve
esparsas adeses individuais de militantes anarquistas s foras rebeldes, como a do
militante Pedro Caciano Ximenez, da cidade fronteiria de Quara, regio
tradicionalmente dominada pela oligarquia pecuarista ligada aos federalistas
286
. Ainda
que tomadas de posio como esta possam ser compreensveis, sobretudo em um
grupo de militantes como os anarquistas, que no criaram organizaes que os
obrigassem a disciplinar suas atitudes em torno da deciso coletiva, a regra geral entre
os anarquistas foi a de manterem-se alheios revoluo, tal qual consideravam ser
os objetivos do conflito, como atesta artigo assinado por Mario DAlbor (segundo Joo
Batista Maral
287
, pseudnimo de Polydoro dos Santos) na recm-fundada Revista
Liberal:
(...) Todas as classes sociais se acham mais ou menos
interessadas nesse movimento poltico.
A classe operria que no final quem pagar todas as
favas, conserva-se como que alheada revoluo. H quem
estranhe a atitude de neutralidade ou de indiferentismo ao
operariado diante de um fato que empolga todas as demais
classes sociais. Como? Os operrios que so revolucionrios
por excelncia grevistas, sindicalistas, anarquistas e no se
levantam tambm a tomar parte na revoluo?
Os que acham incoerncia na atitude do operariado
organizado diante da atual revoluo poltica desconhecem a
orientao operria, as suas aspiraes, as suas lutas, o seu
ideal, j sobejamente definidos nos debates dos seus
congressos e nos programas das suas associaes. (...)
As revolues polticas, porm, passam sem tocar o
mago da questo. Deixam intactos os privilgios do capital,
porque toc-los seria dar margem a que o povo a massa
trabalhadora compreendesse de onde partem todos os seus
males e quisesse prosseguir a revoluo para alm dos
horizontes estreitos dos polticos e politiqueiros.
Passado o temporal poltico, qualquer que seja o
triunfador este estar ao lado dos exploradores do povo, dos
286
MARAL, Joo Batista. Os anarquistas no Rio Grande do Sul Anotaes biogrficas, textos e
fotos de velhos militantes da classe operria gacha. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1995, p. 56.
Segundo Maral, Pedro Ximenez viveu em exlio no Uruguai (provavelmente por conta de sua adeso
s foras maragatas) e, em seu retorno a Quara, desempenharia a funo de secretrio da Liga
Operria local, entre 1926 e 1937, e editor do semanrio O Moderno Operrio, em 1927, sendo
responsvel pela promoo de protestos pblicos em defesa de Sacco e Vanzetti.
287
Idem, ibidem, p. 160.
181
capitalistas, dos aambarcadores, dos argentrios e contra os
trabalhadores, cujas aspiraes de justia social continuaro a
ser perigosas doutrinas passveis de represses ferozes.
Eis a o indiferentismo das organizaes operrias
diante da revoluo poltica. que os trabalhadores so
partidrios de uma revoluo com a qual no est de acordo
nenhum partido poltico, porque essa revoluo, que j se vem
operando atravs de conquistas operrias por toda parte, visa
o bem-estar e a liberdade de todos sem nenhum privilgio de
classe ou de partido.
288
A mesma deciso parece ter predominado na ocasio da sublevao tenentista
de 1924, em So Paulo, e seus desdobramentos no Rio Grande do Sul, em fins de
outubro do mesmo ano. Na verdade, nas fontes por mim consultadas, encontrei apenas
um nico registro produzido por um anarquista sobre a sublevao militar. Trata-se de
uma passagem das memrias do militante alemo radicado em Porto Alegre, Friedrich
(Frederico) Kniestedt, escritas e publicadas em jornais dirigidos pelo prprio entre os
anos de 1934 e 1937. Sendo o registro de suas memrias, o autor no teve exatamente
preocupao em checar datas e eventos dos quais se recordava, por isso a passagem
que se ver mais adiante no deixa claro se o episdio ao qual se refere a guerra civil
gacha de 1923 ou a revolta tenentista de So Paulo. Talvez o autor as tenha
confundido como um mesmo movimento, j que os tenentistas foram apoiados pelos
maragatos, depois de superar sua oposio inicial. Ou simplesmente invertido a autoria
da sublevao comandada pelo Cel. Isidoro Dias Lopes, pois ao invs de consider-la o
centro cuja iniciativa se difundiria por outras partes do Brasil, refere-se a um
deslocamento da rebelio poltico-militar iniciada no Rio Grande do Sul por Lus
Carlos Prestes para outros estados, sobretudo para So Paulo
289
.
De todo o modo, descontados os equvocos tpicos dos registros da memria, o
relato posterior de Kniested demonstra que o movimento tenentista, ao contrrio do
que se passou em So Paulo, no despertou qualquer simpatia dos anarquistas gachos,
ou, pelo menos, a dele prprio:
Na mesma poca rebentara no Estado do Rio Grande
do Sul uma revoluo poltica que se estendera a outros
288
DALBOR, Mrio. O operariado e a revoluo. Revista Liberal Estudo e crtica social, Livre
Pensamento, Racionalismo. Porto Alegre: ano III, n. 18, abr. 1923.
289
GERTZ, Ren E. (ed.). Memrias de um imigrante anarquista (Friedrich Kniestedt). Porto Alegre:
Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, 1989, p. 138. (Alarm. Porto Alegre, n. 3, 5
abr. 1937).
182
estados, sobretudo a So Paulo
290
. Foi declarado estado de
guerra, todas as reunies foram proibidas, com o que ns da
Federao Operria no concordamos. Uma comisso
composta por Orlando Martins e por mim foi enviada ao chefe
de polcia, com quem negociamos durante mais de uma hora,
conseguindo permisso para que todos os sindicatos pudessem
realizar suas reunies, sem que fossem tratados assuntos
polticos. Garantimos ao chefe de polcia que os trabalhadores
no tinham nenhum interesse em participar desta revoluo
puramente poltico-militar. No Der freie..., eu me posicionara
frente a esta revolta militar e conclamara os trabalhadores a
deixar que os militares, especialistas em matar, ficassem entre
si. A conseqncia deste posicionamento foi que a partir de 15
de novembro de 1924 Der freie... apareceu sob censura, isto ,
de cada nmero eu era obrigado a levar a primeira prova para
o censor da polcia; o nmero de 6 de dezembro apareceu
parcialmente em branco, o que depois se repetiu vrias
vezes.
291
Logo depois, ele lembra de ter publicado na edio de 25 de janeiro de 1925 de
seu referido jornal Der freie Arbeiter (O Trabalhador Livre)
292
uma crtica ao
manifesto prestista, por ser uma mistura braba de coisas ilgicas. Segundo o
militante alemo, Prestes copiava as teses de Mussolini para salvar ou melhorar a
democracia. Dado que, em sua viso, o capito do Exrcito pregava exatamente o
contrrio da democracia, Kniestedt se pronunciou naturalmente (...) contrrio sua
obra de libertao. Sem explicar os motivos, o militante ressaltou que um trecho
deste texto comparava Prestes aos carrascos da Espanha e da Itlia e foi censurado
pela polcia.
O trecho acima interessa no apenas por demonstrar o desprezo, seno
oposio, do anarquista alemo ao movimento tenentista, mas tambm por indicar que,
ao contrrio de So Paulo e do Rio de Janeiro, onde os anarquistas passariam a ser
vtimas da reao governamental quartelada, no Rio Grande do Sul a represso foi,
290
Aqui parece estar a possvel confuso citada anteriormente: ou ele avaliou, equivocadamente, que a
guerra civil que varreu o Rio Grande do Sul durante todo o ano de 1923 desdobrou-se no movimento
tenentista de 5 de julho de 1924, ou ele considerou, tambm erroneamente, que o incio da rebelio
militar contra Arthur Bernardes comeou com os militares gachos, quando, na realidade, eles se
sublevam apenas em 28 de outubro de 1924, ou seja quase 4 meses aps seu incio em So Paulo.
291
GERTZ, Ren E. (ed.). Memrias... op. cit., p. 138. Ao final desta compilao traduzida das
memrias de Kniestedt, na pgina 165, encontra-se a lista de fontes, que indica ter sido este trecho
publicado originalmente no jornal de lngua alem Alarm, Porto Alegre, n. 2, 10 mar. 1937. Daqui por
diante, sempre que for citado um trecho desta obra, se encontrar, entre parnteses, a referncia
original citada nessa lista.
292
Para uma apresentao deste jornal, publicado entre 1920 a 1930, e homnimo de outro tambm
anarquista de Berlim, ver GERTZ, Ren E. Um jornal anarquista em Porto Alegre: Der freie Arbeiter.
Veritas, Porto Alegre, PUCRS, v. 35, n. 140, p. 606-617, dez. 1990.
183
relativamente, mais tnue, o que permitiu certa margem de ao dos libertrios
gachos em um perodo subseqente.
Sabe-se que logo aps o tratado de Pedras Altas, que deu fim guerra civil e
firmou um acordo entre libertadores e republicanos, o governo do estado perseguiu
alguns inconformados com a forma com que se deu o acordo de paz
293
, e chegou
mesmo a faz-lo com mais vigor aps a deflagrao da revolta em So Paulo, quando
os federalistas passaram do apoio oposio a Arthur Bernardes. No sei dizer se os
anarquistas foram alvo de represlias na ocasio, mas o fato que, de modo geral, os
anarquistas gachos conseguiram desenvolver atividades interditadas em outros
estados brasileiros, sobretudo em So Paulo e no Distrito Federal.
Importa aqui o fato de se poder perceber que, finda a guerra, pelo menos em
Porto Alegre, o governo do estado parece ter retomado uma poltica de tolerncia com
o movimento operrio, o que favorecia tambm a ao dos anarquistas, a ponto de
concordar com a solicitao dos dirigentes da FORGS. Nesse sentido, embora o relato
de Kniestedt tivesse por intento ressaltar tanto a firmeza da associao e do
proletariado gacho como um todo atravs da iniciativa sua e de seu companheiro,
quanto a censura policial que interveio em seu escrito, ele confirma a disposio do
governo do PRR em tolerar a militncia operria, mesmo anarquista, naquele contexto.
Adhemar Loureno da Silva Jr. j assinalou a incidncia da bipolaridade
poltica sobre o movimento operrio gacho
294
. Desde o final do sculo XIX, aps a
consolidao do PRR no governo do estado, tanto o partido do governo quanto os
partidos de oposio, especialmente o Partido Federalista, procuraram canais de
aproximao com lideranas operrias que pudessem canalizar apoio do operariado s
suas legendas. Tais esforos acabaram por contribuir na ciso interna no movimento
operrio, especialmente entre socialistas e anarquistas em Porto Alegre, a partir do
incio da dcada de 1910. Na prpria disputa eleitoral de 1922, cujo resultado faria
eclodir a guerra civil do ano seguinte, verifica-se uma acentuao dos esforos
existentes anteriormente de aproximao dos partidos com a classe trabalhadora.
293
Beatriz Ana Loner (O canto... op. cit.) d como exemplo um caso de um eletricista que trabalhava no
Porto Novo de Rio Grande que teria perdido o emprego por conta de sua preferncia poltica aos
federalistas durante a guerra, alm de mencionar as prises, espancamentos e atentados armados que
se sucederam aps o acordo de paz, cuja forma com que foi estabelecido, gerou descontentamento
entre muitos aderentes. O caso foi denunciado pelo jornal pelotense O Libertador, de 21 de maio de
1924.
294
SILVA Jr., Adhemar Loureno da. A bipolaridade poltica rio-grandense e o movimento operrio
(188?-1925). Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, PUC/RS, vol.XXII, n. 2, p. 5-26, dez. 1996.
184
Pela parte do partido governista, sua posio situacionista de longa data
dificultava convergncias deste tipo com os que pregavam a acracia como ideal. Alm
disso, o governo gacho, como todos os outros governos do pas, condenava o
anarquismo com veemncia, atribuindo-lhe conotaes de intransigncia, violncia e
terror. Ainda assim, tal qual o seu rival nas disputas eleitorais, o PRR sempre tratou de
construir, pelo menos em aparncia, canais com o movimento operrio condizentes
com seu discurso positivista de incorporao do proletariado. Nesse sentido, o partido
governista convidou uma liderana importante da greve que se generalizou em Porto
Alegre em 1906, Francisco Xavier da Costa, para integrar seus quadros e ocupar o
cargo de conselheiro municipal, a partir de 1912. Na dcada seguinte, por sua vez,
registra-se a existncia de uma Liga de Operrios Republicanos, que, embora tenha
exercido quase nenhuma influncia no movimento operrio em sua breve existncia,
esteve notoriamente ligada ao PRR, a ponto de louvar a figura do governador na
ocasio de seu aniversrio, e de combater, atravs de moo apresentada Assemblia
estadual, a fala do deputado oposicionista Simes Lopes Filho, que naquele ano se
reportou ao passado para reputar ao governo os abusos policiais na greve porto-
alegrense de 1919. Segundo esses operrios republicanos, que se disseram
organizadores da greve, a responsabilidade da violncia exercida contra um comcio da
FORGS cabia to somente ao chefe de polcia, Eurico Lustosa, pois teria agido
revelia das ordens do governo do estado. Em sua exposio, tanto seria esta a
verdade fiel dos fatos, que Borges de Medeiros o exonerou de suas funes
295
.
A despeito do argumento utilizado pelos membros da Liga dos Operrios
Republicanos e dos demais esforos do PRR destinados a conquistar a simpatia do
operariado, o governo no se via efetivamente impedido de usar a fora policial contra
o movimento operrio quando julgava necessrio. Ao contrrio, registram-se vrios
episdios de abusos contra as manifestaes pblicas de trabalhadores e contra suas
associaes. A polcia sempre era acionada quando eclodia um movimento grevista, e
no raras as vezes tratou de dispersar piqueteiros fora da espada e da cavalaria, sob
o pretexto de resguardar a ordem, o direito de propriedade e a liberdade de trabalho
295
Comentrio. A Evoluo rgo da classe operria Doutrina, crtica, anlise. Porto Alegre, ano
I, n. 4, 30 nov. 1925, p. 2. Assinam a moo Orlando de Arajo e Silva e Joo Cndido Martins,
sapateiros, Joo Humbet, mecnico, Ayrton Fonseca, tipgrafo, Jos Maria Braga, comrcio,
Antonio Gonzaga, carpinteiro, Cassiano Lagrenha, ferreiro, e o barbeiro Ablio de Nequete. Registra-
se que Nequete j havia se desvinculado do PCB, que ajudou a fundar, e se ocupava em dar forma
sua doutrina tecnocrtica, como atestam o artigo publicado nesta mesma edio (p. 3) O georgismo
nada resolve, e seu opsculo Technocracia ou o V Estado (Porto Alegre: Livraria do Globo, 1926),
escrito em 27 de novembro de 1924.
185
dos operrios contrrios aos movimentos, chegando a produzir resultados graves como
nos casos das greves de 1917, em Pelotas, de 1918 e 1919, em Rio Grande e de 1919,
em Porto Alegre.
Uma explicao para essa relativa maior tolerncia do governo gacho se
sustentaria na hiptese de que a intensificao da represso aos militantes anarquistas
gachos acabaria por prejudicar as tnues relaes que o governo mantinha com o
movimento operrio regional, e abrir espao para a ao da oposio. Deve-se
considerar, ainda, a orientao positivista do PRR, que pregava a incorporao do
proletariado atravs da razo e do paternalismo, caminhos que se chocariam por si s
com a violncia injustificada.
O prprio Kinestedt atesta no ter ele sofrido grandes abusos por parte da
polcia e grandes conflitos com o governo estadual, apesar de sua ferrenha oposio a
qualquer governo e ao Estado em si. Apesar de ter estado, segundo ele prprio, mais
de 50 vezes como hspede involuntrio na chefatura de polcia
296
, em todas as suas
experincias relatadas, descontando sua narrativa triunfante e, por vezes, anedtica,
jamais se queixou de nenhum mau-trato sofrido durante sua priso. Embora pudesse
ser considerada arbitrria e abusiva em si, o militante a considerava algo recorrente e,
por isso mesmo, nada muito excepcional, como se percebe ao ler a descrio que fez
sobre a ocasio em que ficou preso por mais tempo e foi ameaado de expulso, por
conta da agitao da greve de 1919 em Porto Alegre:
Aps meu primeiro interrogatrio, os membros da
diretoria dos condutores de bonde foram soltos. Um aps outro
foram presos ainda Ablio de Nequete, Arajo da Silva, Franz
Guttmann e Orlando Martins, mas todos foram soltos um ou
dois dias depois, s Ablio [que era libans] e eu ficamos
presos; ambos deveramos ser expulsos do pas. Ablio ficou
doente, eu fui interrogado diariamente inclusive de noite
umas seis vezes, o que representava para mim umas horas de
conversa. Tive de explicar aos senhores a minha posio de
socialista antiautoritrio, de altrusta. O tratamento e a
alimentao eram bons. Depois que eu curtira 5 dias e 6
noites, o major Limeira me comunicou que tudo estava pronto
para minha expulso do pas, mas o ento presidente do
estado, Dr. Borges de Medeiros, negou sua assinatura e por
isso fui dispensado com alguns bons conselhos.
297
296
GERTZ, Ren E. (ed.). Memrias... op. cit., p. 126 (Aktion. Porto Alegre, n. 80, s/d [1936]).
297
GERTZ, Ren E. (ed.). Memrias... op. cit., p. 129 (Aktion. Porto Alegre, n. 82, s/d [1936]).
186
Mesmo que irnico, Kniestedt no foi o nico a reconhecer que nem sempre a
polcia agia com truculncia com os presos polticos, embora essa no fosse a regra
geral. Claro que isso no redime as vezes em que as garantias constitucionais no eram
respeitadas pela polcia contra os militantes operrios a comear pela priso
arbitrria em si, na maioria dos casos. Mas importante considerar esse elemento at
mesmo para melhor avaliar as diferenas de relaes estabelecidas entre o movimento
operrio e os respectivos governos estaduais. Nesse sentido, a ao do governo paulista
atravs de sua polcia, parece ter sido considerada a mais arbitrria e abusiva dos
principais centros urbano-industriais do pas, segundo avaliou Everardo Dias, ao
responder, entre diversas acusaes do anarquista Domingos Passos, a de ter tecido
elogios ao 3 delegado auxiliar do Distrito Federal:
O elogio! ao delegado Nascimento Silva para
quem sabe ler, resume-se nisto: as autoridades da polcia
carioca no queriam ser coniventes com as monstruosidades
dos crceres de So Paulo. uma infantilidade querer
confrontar S. Paulo e Rio no que toca ao regime carcerrio.
Dizer-se vtima, no Rio, em confronto com S. Paulo, chega a
ser vcio. Isto pode ser constatado por todos os camaradas e
em seguida no Rio. A polcia daqui est humanizada,
humanizada quanto pode estar uma corporao dessas. Mas,
vamos ao caso: as autoridades do Rio no queriam arcar com
os infamantes labus que recaam sobre So Paulo e da o
pediram-me isto: O sr. sofreu algum vexame aqui, no Rio?
Foi maltratado?. Respondi: No. Pode dizer isto
assinado?. Sim, porque verdade. E escrevi. Escrevi o qu?
Elogios? No. Disse apenas que as autoridades da capital no
nos maltrataram como as de S. Paulo e lastimei, censurando,
que tendo pedido um mdico no mo houvessem
proporcionado...
Se isso elogiar...
Salvo, se para D. Passo, dizer a verdade elogiar.
Se o delegado Nascimento Silva merece censuras, as
mais acres, eu no o pouparei, como nunca poupei quem mal
procede. Agora, certos moscardos, ao ser presos, andam na
cadeia, aos rapaps s autoridades e vm c para fora contar
as mais enfticas caraminholas aos papalvos e
basbaques...
298
evidente que esse relato no implica tomar o episdio como regra. Existem
muitos outros relatos diferentes desse de Everardo Dias narrando os horrores vividos
298
DIAS, Everardo. Ainda o extremismo vesgo. Renovao Quinzenrio Syndicalista e Communista.
Rio de Janeiro, ano II, n. 3, 20 jan. 1921, p. 4.
187
no crcere
299
. O que se quer salientar que existiram determinados momentos que
permitiram uma maior margem de ao por parte da militncia.
No caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, o que se pode dizer que,
considerando todos os abusos policiais (e governamentais) recorrentes tambm nesse
estado, ao contrrio do Distrito Federal e, principalmente, de So Paulo, o governo
estadual praticamente no utilizou do recurso legal do degredo ou expulso de
estrangeiros. E isso se repetiria em 1924, quando o movimento operrio do centro do
pas, j abalado pelas prises e expulses em represlia s greves de 1917-1920,
perdeu diversos companheiros enviados, ou para seus pases de origem, ou, no caso
dos brasileiros, enviados priso de Clevelndia, no Oiapoque, longe de tudo e de
todos, sem condies sanitrias mnimas, e sujeitos s doenas tipicamente tropicais do
local. Embora deva se reconhecer que o alvo preferencial da reao do governo fossem
os militares insubordinados, que constituam a maioria da priso amaznica, o envio de
anarquistas para l, juntamente com o estado de stio que no permitia a reorganizao
das associaes operrias e os direitos de reunio e de circulao de sua imprensa,
provocou profundo impacto para a militncia no perodo.
Mas, como foi dito, na segunda metade do governo Bernardes, uma brecha
manteve-se relativamente aberta no Rio Grande do Sul, como testemunha, novamente,
Kniestedt:
Em conseqncia da revoluo poltico-militar,
governava-se em todo o Brasil sob o estado de guerra. Em So
Paulo e no Rio a situao na poca era muito difcil, quase
todas as organizaes operrias foram dissolvidas e os
membros mais destacados enviados para a colnia penal do
Oiapoque. Aqui no Rio Grande do Sul no sentamos nada
disto, a Federao Operria do Rio Grande do Sul assumiu a
defesa e designou os advogados; naturalmente eu como
299
Duas descries do tratamento dispensado no Presdio Central do Rio de Janeiro, em 1924, so
fornecidas em cartas pelos militantes paulistas Pedro A. Mota e Jos Fernandes Varela, escritas antes
de serem remetidos ao Oiapoque: Flagrantes de um grande crime social As agruras chocantes de
nossos camaradas descritas por eles mesmos Cartas que constituem documentos escaldantes do
hediondo delito do capitalismo. A Plebe Peridico libertrio. So Paulo, ano XI, n. 245, 12 fev.
1927, p. 2. Uma terceira carta foi feita por PASSOS, Domingos. A Plebe Peridico libertrio. So
Paulo, ano XI, n. 249, 9 abr. 1927, p. 3. Segundo sua experincia anterior ao estado de stio, sempre
que um anarquista chegava priso, a polcia dizia aos demais presos que ele portava alguma quantia
em dinheiro, e o resultado era um natural espancamento. Em 1924, porm, as coisas foram ao
auge, e noite sim, noite no, alguns guardas espancavam e chicoteavam presos, brbaros
castigos aos quais, com rarssimas excees, ningum escapava. Ver ainda a principal referncia
de estudo dedicado ao tema da represso ao anarquismo e a deportao de militantes Clevelndia:
SAMIS, Alexandre. Anarquismo, sindicalismo e represso poltica no Brasil. So Paulo: Editora
Imaginrio; Rio de Janeiro: Achiam, 2002.
188
tesoureiro tive de juntar o dinheiro necessrio, o que no era
uma tarefa fcil.
300
No entanto, no se deve sobrevalorizar as atividades dos anarquistas gachos
nesses anos. Diante do quadro de retrocesso organizativo que se estabeleceu sobre os
meios operrios no centro do pas, Orlando Martins, editor do jornal O Syndicalista,
rgo da FORGS, verificava-se uma apatia reinante nos sindicatos, os quais
atualmente se estavam revigorando
301
. Para eles, a prpria falta de regularidade desta
publicao, em um contexto de inexistncia de congneres que defendessem os
princpios libertrios no restante do pas, indicava a condio de baixa organicidade do
movimento operrio gacho
302
.
Malgrado as dificuldades, organizaram o 3 Congresso Operrio Regional do
Rio Grande do Sul, realizado em Porto Alegre entre os dias 27 de setembro e 2 de
outubro de 1925, o que foi suficiente para que Domingos Passos, preso em
Clevelndia, escrevesse uma carta manifestando seu contentamento ao saber do
encontro, atravs de exemplar do jornal porto-alegrense que chegou em suas mos
enviado por algum militante paraense. Ao lado da descrio das penrias a que estava
submetido, juntamente com seus companheiros, o anarquista carioca enviou uma
saudao aos gachos em que os encorajava a conservar-se firmes em sua misso de
resistncia entrincheirada: Eia! camaradas!!! Avante! Sempre avante! Como muito
bem dissestes, 'os libertrios do Brasil esto entrincheirados no Rio Grande do Sul'.
Sois vs o ltimo reduto do Ideal no Brasil, neste momento; sois vs os que empunhaes
o facho da Liberdade enquanto as trevas da escravido dominam todo o resto da
regio
303
.
Nas palavras de um representante da Sociedade Unio Martima do Rio Grande
do Sul, da cidade de Rio Grande, os anarquistas gachos no se furtariam s
responsabilidades de auxiliar a libertao dos companheiros mais escravizados do
resto do Brasil, que vivia sob to ferrenho despotismo como nunca antes esteve
300
GERTZ, Ren E. (ed.). Memrias... op. cit., p. 129 (Alarm. Porto Alegre, n. 4, 29 abr. 1937).
301
3 Congresso Operrio - O proletariado organizado do Rio Grande do Sul reafirma seus propsitos
libertrios resolvendo combater todos os partido polticos. O Syndicalista rgo da Federao
Operria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano VII, n. 6, Out. 1925, p. 1-2.
302
3 Congresso Operrio - O proletariado organizado do Rio Grande do Sul reafirma seus propsitos
libertrios resolvendo combater todos os partido polticos. O Syndicalista rgo da Federao
Operria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano VII, n. 7, 24 Out. 1925, p. 2.
303
PASSOS, Domingos. Camaradas do Rio Grande do Sul. O Syndicalista rgo da Federao
Operria do Rio Grande do Sul , Porto Alegre, ano VIII, n. 2, 1 Maio 1926, p. 3.
189
submetido
304
. J estavam arrecadando donativos em dinheiro que deveriam ser
enviados aos presos e suas famlias, mas, no 3 Congresso deveriam ser definidas
outras estratgias de ao para o Comit Pr-Presos Sociais reverter a situao que
mantinha na priso, em todo o Brasil, mais ou menos 1300 trabalhadores por
questes sociais, sendo que uns 300 so nossos camaradas [anarquistas de todo o
pas], segundo os clculos de Maurcio Feldmann, delegado do Sindicato dos
Alfaiates, Costureiras e Anexos, de Porto Alegre. Para tanto, os participantes
resolveram que seria necessrio criar comits semelhantes ao j existente em Porto
Alegre em todo o estado, a fim de torn-lo uma clula regional. Decidiu-se tambm
apelar para a solidariedade dos trabalhadores do Brasil e do exterior, alm de acatar
uma proposta mais prtica feita por Reduzindo Colmenero, representante da Unio
Geral dos Trabalhadores de Bag, de se tentar o boicote da navegao martima do pas
at que sejam os camaradas postos em liberdade, apesar da advertncia de um dos
representantes dos martimos, segundo o qual no se deveria esperar grandes
resultados efetivos, dado o estado precrio das classes martimas do restante do
pas
305
.
Ressalta-se que iniciativas semelhantes, voltadas libertao dos companheiros
presos, foram tomadas em outros pontos do pas, como, por exemplo, em Belo
Horizonte
306
, Rio de Janeiro
307
e So Paulo, onde um grupo anarquista chegou a entrar
em contato com seus congneres de outros pases para solicitar sua solidariedade
308
.
304
3 Congresso Operrio - O proletariado organizado do Rio Grande do Sul reafirma seus propsitos
libertrios resolvendo combater todos os partido polticos. O Syndicalista rgo da Federao
Operria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano VII, n. 6, Out. 1925, p. 1-2. No sei precisar qual o
militante se pronunciou nessa ocasio, pois no fica claro se a Sociedade Unio Martima foi
representada por Manoel Porfrio e Augusto Igncio da Silva, ou apenas por um deles.
305
3 Congresso Operrio - O proletariado organizado do Rio Grande do Sul reafirma seus propsitos
libertrios resolvendo combater todos os partido polticos. O Syndicalista rgo da Federao
Operria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano VII, n. 8, 31 out. 1925, p. 2.
306
Os Grupos Anarquistas. A Classe Trabalhadora e a Situao - A todos os homens de conscincia
livre. O Syndicalista rgo da Federao Operria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano VIII,
n. 5, 25 Nov. 1926, p. 2.
307
O auxlio s vtimas. A Plebe Peridico Libertrio. So Paulo, A Plebe Peridico libertrio. So
Paulo, ano XI, n. 245, 12 fev. 1927, p. 3; Em defesa das vtimas da reao Um manifesto de ontem
que hoje ainda tem oportunidade. A Plebe Peridico Libertrio. So Paulo, ano XI, n. 248, 26 mar.
1927, p. 4.
308
Ver cpia de comunicado do Grupo Anarquista de So Paulo enviado ao jornal La Voz del Mar, da
cidade chilena de Valparaso, junto com correspondncia assinada por A. Bousas, a 26 de junho de
1926. Pronturio DEOPS-SP 1035 (Grupo Anarquista de So Paulo). A correspondncia manuscrita
encontra-se tambm no Pronturio DEOPS-SP 70757 (Comit de Relaes dos Grupos Anarquistas).
Um outro boletim tambm foi produzido em agosto do mesmo ano, cujo contedo foi reproduzido em
A classe trabalhadora e a situao A todos os homens de conscincia livre. A Plebe Peridico
libertrio. So Paulo, ano XI, n. 245, 12 fev. 1927, p. 1-2.
190
O fim do quatrinio de crimes contra o povo
309
do mandato de Arthur
Bernardes foi celebrado pelos anarquistas, uma vez que com ele acabou-se tambm a
famigerada seqncia de estados de stio que vigoraram em seu mandato. Contudo, a
influncia do movimento anarquista sobre o movimento operrio sofreu um impacto
muito grande, especialmente no Rio de Janeiro e em So Paulo. Um ltimo flego
organizativo anarquista se daria no incio da dcada de 1930, logo aps o golpe de 3 de
outubro, com a reorganizao da FOSP, em 1931, e do Centro de Cultura Social, em
1933.
SOB O GOVERNO VARGAS
Embora eu no tenha localizado fontes produzidas ao calor da hora que dessem
conta do envolvimento ou da simples percepo de militantes libertrios mobilizao
que alou Getlio Vargas ao poder, ao que parece os anarquistas mantiveram-se
alheios mudana de governo em um primeiro momento. Pouco depois, em fontes
produzidas nos anos de 1931 e 1932, no entanto, possvel apreender alguns
elementos que demonstram observaes de alguns militantes no de todo hostis em
relao ao novo governo.
Em folheto escrito em maro de 1931, por M. Palmer
310
, registra-se a
receptividade popular ao golpe getulista sob o ponto de vista de um operrio
sindicalista da construo civil de So Paulo. Ao se reportar histria recente da luta
sindical brasileira, para defender o sindicalismo revolucionrio, o autor faz
consideraes em torno do que chama a revoluo brasileira. A instalao da
Repblica Nova em 1930 seria um desfecho de um processo iniciado com a revolta dos
dezoito oficiais em Copacabana, que visava pr fim s oligarquias velhas e caducas
e promover uma radical mudana de governo. Se isso no traria a liberdade
integral, ao menos se iria respirar um novo ambiente, mais arejado do que o antigo,
sufocante, particularmente, pelos atentados contra as garantias constitucionais de
liberdade poltica, que tanto afligiram o movimento operrio. Isso justificaria a
empolgante alegria com que a gente do povo formava interminveis romarias,
309
CRATA. Um quatrinio de crimes contra o povo. A Plebe Peridico libertrio. So Paulo, ano
XI, n. 245, 12 fev. 1927, p. 1.
310
PALMER, M. Conceitos sobre o sindicalismo operrio. So Paulo: Liga Operria da Construo
Civil, 1933. (escrito em maro de 1931). Os trechos a seguir foram retirados das pginas 10 a 21. O
folheto localiza-se no Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP), vol. 4.
191
consagrando aos vencedores da herica jornada [de 3 de outubro de 1930] todas as
simpatias populares.
O autor afirmava que os militantes libertrios puderam retomar sua propaganda
e sua campanha de organizao sindical imediatamente aps o triunfo da revoluo
brasileira. Porm, logo a seguir, foram alvejados por medidas de carter regressivo
(...) impostas para amortecer o movimento sindical, que caracterizavam a quebra das
antigas promessas em torno das liberdades polticas da classe trabalhadora.
A fim de exortar a reorganizao sindical autnoma e de demonstrar o quanto a
experincia do sindicalismo revolucionrio oferecia instrumentos esclarecedores para
que os operrios no se deixassem enganar por promessas de qualquer espcie de
polticos, muito menos dos governos subordinados ao capitalismo, o autor afirmou
que essa traio do novo governo jamais colheu de supresa os militantes operrios
e libertrios.
Nota-se que a exposio de Palmer que finalizou com a proposta de retomada
das armas de combate, o sindicato, o livro, o jornal e todos os meios de propaganda
que estejam ao (...) alcance, foi feita de modo que identificava uma convergncia de
esperanas populares, sobretudo dos trabalhadores, com o movimento que deps
Washington Lus. No apenas no se questionava a deposio do presidente atravs do
golpe militar, como tambm lhe era atribuda uma legitimidade atravs do apoio
popular recebido em reao aos vcios oligrquicos da antiga Repblica, especialmente
no tocante ao tratamento da questo social. Se os revolucionrios outubristas no
corresponderam s aspiraes gerais, o fizeram porque era prprio de todos os
governos brecarem o avano das liberdades e da ao popular. Somente aos
trabalhadores, atravs de suas formas de ao coletiva e autnoma, competia a funo
de pr fim explorao econmica e melhorar a sua prpria sorte. Poderia se
considerar que a tnica do texto de Palmer, de crtica relativamente comedida do novo
governo se comparada condenao severa aos anteriores, integrava uma ttica de
argumentao para dirigir-se, especialmente, aos operrios simpticos ao novo
governo. A opo por condenar com intransigncia o novo governo, poderia resultar na
desaprovao desses operrios no apenas por considerarem tais crticas injustas, mas
tambm improcedentes, dado o esforo que o governo provisrio fazia para, ao menos
em aparncia, diferenciar suas prticas aos governos do perodo que a partir de ento
recebeu o nome de Repblica Velha.
192
Por outro lado, possvel acreditar que Palmer reconhecia, de fato, aspectos
positivos do governo provisrio. Uma anlise que procurasse ser o mais fiel
realidade, no teria relao apenas com um sentimento de justia, mas tambm tinha
implicaes na definio de estratgias de ao revolucionria.
Nesse sentido, uma fonte que trata dos bastidores das discusses entre
anarquistas em torno da Revoluo Constitucionalista de 1932, demonstra que a
posio de crtica intransigente a todas as formas de governo, geralmente atribuda
como constante entre os anarquistas, possua matizes em circunstncias especficas.
Na verdade, trata-se de um relato de duas reunies de militantes operrios,
anarquistas, anarco-sindicalistas e sindicalistas, e assistncia ainda de alguns
membros das minorias de oposio sindicais, que no tiveram direito ao uso da
palavra, realizadas na sede da Federao Operria de So Paulo nos dias 6 e 11 de
outubro de 1932
311
. O objetivo era discutir a situao poltico-militar e o desfecho
que sofreu a revoluo constitucionalista iniciada em 9 de Julho e vencida
definitivamente dia 2 de outubro.
No possvel precisar se o manuscrito, que integra o pronturio da FOSP na
Delegacia de Ordem Poltica e Social de So Paulo, foi produzido por algum espio da
polcia ou um relato de algum participante que secretariou os encontros para que se
tornasse um documento oficial da prpria associao. Considerando a extenso do
documento, os detalhes com que foram registrados os debates, a preocupao em tentar
ser mais fiel fala dos interventores do que a tentativa de resumir seu sentido geral,
alm da falta de adjetivos freqentemente utilizados em informes policiais deste tipo,
acredito que se trata de um documento interno da federao, que, de alguma forma,
chegou at polcia.
Independente de sua autoria, o texto valioso por captar a existncia de
algumas opinies dissonantes a respeito do governo de Getlio Vargas, uma vez que
todos so unnimes quanto ao carter da revoluo constitucionalista. Os
pronunciamentos dos participantes da reunio, de forma geral, se repetiam ao se
esforarem por demonstrar a falsa oposio que os rebeldes tentavam imprimir entre
ditadura e constitucionalistas. Para os militantes, era uma guerra civil de faces
polticas da mesma burguesia, entre os que mandavam, e os que queriam
mandar, como sintetizou o litgrafo italiano Francisco Cianci.
311
Reunio de militantes. Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP), vol. 1, docs. 41 e 42.
193
Logo aps a explanao de Cianci, Joo Perez fez uso da palavra, e ponderou
acerca das avaliaes que estavam sendo feitas no sentido de igualar ambos os lados
em conflito:
Joo Perez desvia o rumo das exposies para dizer
que, no momento presente, se inclinava, como garantia de mais
liberdade, para o outubrismo. No era partidrio da ditadura,
mas nutria simpatia pessoal, como muitos companheiros, para
a ao do outubrismo, que tinha sido confortadora para com o
proletariado. Ningum poderia desmenti-lo em sua afirmao.
Concluia por um manifesto que desmascarasse os polticos que
tinham provocado a guerra civil em benefcio dos
industriais.
312
Sua ressalva foi avalizada por outro companheiro, Joo Barbosa, mas recebeu
duras crticas de Jos Sarmento, signatrio da moo de 1924, iniciando um bate-boca
que ps fim discusso do dia. Sarmento acusou a ambos de polticos, dizendo que
anarquistas que assim falam no so nem anarquistas nem revolucionrios.
Note-se que Joo Perez no era um militante recm-chegado s fileiras
sindicalistas e libertrias. Sapateiro espanhol de longa data, exercia a profisso de
metalrgico na Metalgraphia Matarazzo em 1932, chegando a ser preso, em novembro
desse ano, ao lado de dois companheiros, acusados de provocarem perturbaes da
ordem pblica e impedir que operrios daquele estabelecimento entrassem no
servio. Foi descrito pela DEOPS-SP, em 1936, como velho militante anarquista,
pertencendo Unio dos Artfices em Calados, filiada organizao anrquica A
Federao Operria de S. Paulo. fomentador de greves as quais dirige
pessoalmente. Em reunies da sua classe, pronuncia discursos violentos, incitando a
massa reao e desobedinca s leis do pas.
313
. Muito antes disso, seu nome
tambm consta na lista de signatrios que endossaram apoio revolta tenentista de
1924.
De outra parte, a refutao da causa constitucionalista no permite afirmar que
os anarquistas apoiavam qualquer movimento que se dizia revolucionrio sem antes
fazer uma avaliao do carter de tal mobilizao. No era porque os oposicionistas ao
governo outubrista acusavam-no de ditatorial, o que, alis, convergia com a opinio
dos militantes libertrios, que eles deveriam tomar parte em suas fileiras. A no adeso
312
Idem, ibidem.
313
Joo Perez Anarquista. Pronturio DEOPS-SP 1374 (Joo Perez Aragn), doc. 6, 1 set. 1936. Os
demais dados anteriores foram retirados de documentos diferentes do mesmo pronturio.
194
ao movimento constitucionalista no implicava desconhecimento de que as oposies
preparavam algo contra o governo provisrio. Alm de todo o clima de desconforto
que se sabia existir por parte dos grandes partidos polticos de So Paulo, um
fragmento nos fornece indcios de que a direo da Federao Operria de So Paulo
estava ciente dos preparativos, segundo um vigilante do DEOPS-SP:
A FEDERAO OPERRIA E A FRENTE NICA
Na sede do Quartel General da 2 Regio Militar correu ontem
que a Federao Operria de S. Paulo estava de acordo com a
Frente nica Paulista. Um dos representantes interpelados
consentiu na propalao desse boato. O major Valle
solicitou um desmentido da Federao Operria para evitar
exploraes, o que no conseguiu. O referido militar
informou que a Frente nica estava usando do nome da
Federao Operria.
314
Por se tratar de um fragmento nico sobre um boato, sem maiores dados, nem
mesmo identificao de nomes, no se pode afirmar que ocorreu um encontro entre
representantes da FOSP e da FUP. Contudo, o pedido de desmentido por parte da
FOSP no foi atendido, por alguma razo impossvel de ser conhecida. De todo o
modo, demonstra que, se houvesse, de fato, interesse da FOSP em tomar parte do
movimento antes mesmo de sua ecloso, ela o teria feito. No o fez, por identificar na
FUP o velho perrepismo que por tantas vezes reprimiu impiedosamente as associaes
operrias.
Por outro lado, apesar de alguns militantes exporem algumas simpatias
pessoais, o governo de Getlio Vargas no contou com nenhum apoio concreto nem
moral dos anarquistas contra os ataques constitucionalistas. Reconheciam no novo
regime um ambiente de maior liberdade de reunio e da livre manifestao do
pensamento, que, embora certas ocasies, isso no se exprima uma realidade
concreta, permitiu a promoo de um movimento de reorganizao operria, pelo
menos no mbito de So Paulo, ao contrrio do que se passava no tempo de domnio
do PRP, quando, em sua opinio, s existia como nica classe, a patronal
315
. Mesmo
assim, movimento armado de outubro nada mais era do que a contra-revoluo
314
Cpia de um relatrio apresentado em 11-6-32. Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP), doc. 62, de 11
jun. 1932.
315
Como se acha organizado o proletariado paulista. Encontram-se devidamente arregimentados 13
sindicatos com aproximadamente 1.000 trabalhadores filiados. Folha da Manh. So Paulo, 7 ago.
1931. Pronturio DEOPS-SP 625 (Francisco Cianci), doc. 15. (Notcia de jornal copiada pela
funcionria extraquadro Aldaiza de Moura, em 23 ago. 1946, para o DEOPS-SP).
195
proletria, o que justificava a posio da FOSP de dizer-se alheia s partes, poucos
meses antes da deflagrao do conflito
316
.
Em relao ao governo Vargas, a tnica do discurso anarquista foi o de
combate, sobretudo, s suas regras de sindicalizao, impostas sob o comando de seu
ministro do Trabalho, Lindolfo Collor, e identificadas pelos militantes como
fascistas. Chegaram a expressar sua contrariedade diretamente ao interventor militar
de So Paulo, general Valdomiro Lima, em reunio no Palcio dos Campos Elseos
317
e ao prprio ministro, que viu-se impedido de falar, tamanha a contrariedade
demonstrada nos comentrios e apartes dos operrios presentes em sesso realizada
pela Unio dos Operrios da Fiao de Tecidos, que terminou em tumulto com a ao
da polcia
318
. Na avaliao dos anarquistas reunidos na FOSP em 10 de abril de 1931, a
lei de sindicalizao objetivava a fascistizao dos sindicatos, tal qual se verificava
na Itlia de Mussolini, e a conseqentemente centralizar ainda mais o poder de uma
classe privilegiada em detrimento de uma classe explorada. Da a necessidade de se
conclamar uma intensa campanha para que a derrogao da lei
319
e da obrigatoriedade
da caderneta profissional, smbolo de uma escravido mais oprobriosa que a do
antigo regime que teria sido implantada pelo governo da segunda Repblica
320
,
que se seguiriam nos anos seguintes.
De toda forma, tal qual se passou na ecloso dos movimentos tenentistas da
dcada de 1920, a avaliao das possibilidades trazidas pelo ambiente de guerra civil
de 1932 para seus intentos revolucionrios foi tardia, j em seu ocaso. J terminada a
guerra, Vicente Mandarano avaliava que o momento propcio para uma ao
perfeita e com muitas probabilidades de xito. O exrcito e a Fora Pblica esto
316
Com quem est a Federao Operria de So Paulo? Nem com uns, nem com outros. Correio da
Manh, So Paulo, 21 abr. 1932. (Recorte de jornal) Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP Vol. 1), doc.
51.
317
O governo militar e as reivindicaes operrias. (Recorte de jornal, s.d.). Pronturio DEOPS-SP 716
(FOSP Vol. 1), doc. 68; O entendimento entre o general Waldomiro Lima a respeito da Federao
Industrial com a Federao Operria de So Paulo. (4 nov. 1932, cpia datilografada e mimeografada)
Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP Vol. 1), doc. 67.
318
ARAJO, Angela. A construo do consentimento: corporativismo e trabalhadores nos anos trinta.
So Paulo: Edies Sociais, 1998, p. 169.
319
Resolues do plenrio da Federao Operria de So Paulo, realizado no dia 7 de abril, com a
assistncia das comisses executivas das organizaes da capital. So Paulo, 10 abr. 1931. Pronturio
DEOPS-SP 716 (FOSP Vol. II), doc. 9. Sobre as campanhas de anarquistas e outras correntes
contrrias lei de sindicalizao de 1931, ver MUNAKATA, Kazumi. A legislao trabalhista no
Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1981; ARAJO, Angela. A construo... op. cit., p. 161-249.
320
Federao Operria de So Paulo. Aos trabalhadores e ao povo em geral. Contra a caderneta
profissional e pela liberdade da imprensa proletria. Grande comcio de protesto. So Paulo, abr. 1933
(panfleto) Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP Vol. III), doc. 141.
196
divididos. Os polticos tambm. As classes conservadoras desconfiam da fora
armada. (...) A polcia um rgo impotente para conter os avanos da revoluo
proletria. O que faltava era uma organizao forte, slida, unificada dos
trabalhadores, sob uma base de ferro, unido e fortificado em um ideal s: derrubar o
capitalismo. (...) Comunistas, anarquistas, prestistas e mais tendncias
revolucionrias, devem ligar-se e iniciar uma vida nova de propaganda e ao
revolucionria
321
.
Esforos nesse sentido seriam feitos nos anos seguintes, assim que o governo
outubrista passasse a ser identificado, pelos militantes de esquerda, cada vez mais, com
o fascismo. No entanto, essa unio, to propalada desde o incio da insero do
anarquismo no movimento operrio, seria muito difcil de ser concretizada, pois cada
parte no abriria mo do comando de tal mobilizao. Nem mesmo os anarquistas.
A DECADNCIA E A POLTICA DE FRENTE NICA
De acordo com as atas do j citado 3 Congresso Operrio do Rio Grande do
Sul, publicadas no jornal O Syndicalista no dia 28 de setembro de 1925, em meio a
uma discusso sobre a pertinncia ou no de um carter ideolgico a orientar a ao
sindical no estado, Reduzindo Colmenero, que compunha a mesa de trabalhos daquele
dia, interveio, declarando que no aceita o tratamento de camarada da parte
daqueles que so partidrios do regime desptico imperante na Rssia
322
. Ele se
dirigia diretamente ao promotor do debate, que seria, segundo sugere a leitura das atas,
um militante comunista que tentava transferir o movimento sindical gacho da rbita
anarquismo para o aparelhamento do partido comunista.
A rivalidade do incio da dcada acentuava-se medida que o movimento
anarquista, aqui como em todo o mundo, entrava em retrocesso e gradualmente crescia
a rea de influncia do PCB, respaldado pela consolidao do regime sovitico.
A tentativa de insero de comunistas nos meios anarquistas no incio da
dcada de 1920 fazia parte, naquele momento, da ttica moscovita de formar Frentes
nicas a fim de retomar o flego diante do estancamento da expanso revolucionria
321
Reunio de militantes. Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP Vol. I), docs. 41 e 42.
322
3 Congresso Operrio - O proletariado organizado do Rio Grande do Sul reafirma seus propsitos
libertrios resolvendo combater todos os partido polticos. O Syndicalista rgo da Federao
Operria do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 24 out. 1925, p. 2.
197
sovitica
323
. No caso do Brasil, especificamente, tratava-se de construir no apenas a
prpria organizao do PCB como tambm de fornecer a fora necessria para sua
disseminao. No entendimento do PC, a aproximao com grupos polticos
heterogneos objetivava ao mesmo tempo neutralizar a fora das demais correntes
polticas e ainda torn-las base de apoio para sua projeo.
Mas a desconfiana dos anarquistas em relao s intenes dos elementos
estranhos ao seu iderio parece ter algum fundamento. Em correspondncia do Comit
Central do Partido Comunista dirigida ao Comit Regional de Porto Alegre, em
outubro de 1928, l-se em meio s suas observaes e resolues: Aprovamos a vossa
ttica provisria de entrar em um pacto com os anarquistas, no campo sindical, a fim
de reforar a nossa posio nos sindicatos dirigidos pelos mesmos
324
.
No intento de se fortalecer, os comunistas disputavam os mesmos espaos
freqentados pelos anarquistas. E os anarquistas, por sua vez, lanavam manifestos nas
pginas de suas publicaes a denunciar os abusos cometidos pelo governo sovitico
contra os trabalhadores daquele pas, onde a ferocidade da classe dirigente seria, na sua
avaliao, to violenta quanto a Rssia do Czar que substituiu em novembro de 1917.
Durante a dcada de 1920, portanto, apesar de manterem a militncia ativa, os
anarquistas vivem um perodo um tanto adverso, tanto pela represso de que so alvo
quanto pelas novas foras polticas que surgiam a disputar a influncia e o controle das
organizaes operrias. Dentre as novas foras, o PCB, cujos fundadores encontravam-
se alguns de seus antigos companheiros, sofria duras e explcitas crticas por parte dos
anarquistas. A posio era clara e firme: oposio aos comunistas. As publicaes
libertrias sempre estariam repletas de acusaes contra os comunistas, que, se no
tinham seus partidos e mtodos de ao comparados aos partidos oligrquicos e
burgueses do Brasil, equiparavam o governo sovitico ao governo do czar ou ao de
Mussolini, e mais tarde, ao de Hitler. As mesmas crticas recaam sobre os grupos
trotskistas.
Quando se deu o fim do estado de stio, em 1927, e os anarquistas se depararam
com a formao do Bloco Operrio e Campons, com o lanamento de candidaturas
Cmara de elementos que se diziam representantes dos trabalhadores, forjaram, com os
323
PINHEIRO, Paulo Srgio. Estratgias da iluso: a revoluo mundial e o Brasil, 1922-1935. So
Paulo: Cia. das Letras, 1991, p. 48-49.
324
Correspondncia do Comit Central do PCB ao Comit Regional de Porto Alegre. Rio de Janeiro, 4
de outubro de 1928. Fundo Astrojildo Pereira CEDEM.
198
poucos recursos que conseguiram reunir naquele momento, severas crticas tentativa
de fazer dos trabalhadores eleitores de seus quadros ligados a Moscou
325
. Contra os
salvadores de ltima hora, Manoel Soares repeliu a comum acusao que os
partidrios do PCB tentavam inflingir contra os anarquistas de serem agentes da
burguesia, insinuando o contrrio, ao afirmar que, enquanto seus companheiros
libertrios morriam no inferno verde do Oiapoque, s bolchevistas verdadeiros
defensores do proletariado gozaram a tolerncia da polcia
326
.
A oposio comunista aos anarquistas tambm no deixava por menos, e
iniciou-se uma campanha de difamao aos grupos anarquistas para desacredit-los e
arregimentar apoio s organizaes ligadas Rssia sovitica. Apenas para ilustrar, um
panfleto escrito em So Paulo, em abril de 1932, de um Comit de Resistncia da
Esquerda Comunista, acusava os anarquistas e os comunistas de direita (dentre os
quais, nominalmente, o trotskista Aristides Lobo e o anarquista Arsnio Palcios),
deparasitas de classe, de serem agentes policiais e patronais. Suas prises no
passavam de fingimento, para fazer de conta que so ativos militantes. Tinham
liberdade para criticar o governo com o objetivo de reunir em torno de si elementos
potencialmente revolucionrios para serem, estes sim, presos. Mas, haveria de chegar
o dia do ajuste de contas e todos os anarquistas de Arsnio e comunistas da direita
sero levados aos muros juntamente com nossos exploradores e opressores
327
.
Enfim, a hostilidade caracterizava a relao entre anarquistas e comunistas, mais
stalinistas do que trotskistas, e qualquer ao conjunta efetiva parecia ser bastante
difcil de ocorrer.
Mas, diante do crescimento do fascismo ao redor do mundo, da formao da
Ao Integralista Brasileira e de seu potencial perigo, cria-se, entretanto, um quadro
em que se esboa uma possvel unio pontual entre anarquistas e comunistas
(stalinistas e trotskistas) contra o inimigo comum.
325
A obra dos companheiros que se sacrificaram na luta deturpada pelos modernos politiqueiros pseudo-
operrios Os trabalhadores devem repelir esses salvadores de ltima hora. A Plebe Peridico
libertrio. So Paulo, ano XI, n. 247, 12 mar. 1927, p. 1.
326
SOARES, Manoel. Quem so os agentes da burguesia? (A propsito dos camaradas mortos no
Oiapoque). A Plebe Peridico Libertrio. So Paulo, ano XI, n. 249, 9 abr. 1927, p. 4.
327
Ao proletariado e ao povo em geral. So Paulo, abr. 1932. (panfleto). Pronturio DEOPS-SP 716
(FOSP Vol. I), doc. 53. No possvel afirmar, mas provvel que este Comit de Resistncia da
Esquerda Comunista tivesse ligaes com o PCB. Alm das crticas aos anarquistas e a Aristides
Lobo, cita tambm, entre os exploradores, Astrojildo Pereira, fora do partido desde o ano anterior,
depois de ser acusado de se opor ao obreirismo do Partido. (Sobre o obreirismo no PCB ver
PACHECO, Eliezer. O Partido Comunista Brasileiro (1922-1964). So Paulo: Alfa-mega, 1984, p.
132-143).
199
A partir das proposies de Trotsky na Europa, iniciava-se no Brasil uma
campanha dos trotskistas pela formao de uma Frente nica contra o Fascismo,
contando com um grupo heterogneo, incluindo os social-democratas considerados
pelos PCs, entre 1929 e 1934, social-fascistas. Essa equiparao entre social-
democratas e fascistas seguia as orientaes do X Pleno do Comit Executivo da
Internacional Comunista
328
, que determinava a recusa integrao a qualquer frente
nica que contivesse outras organizaes de esquerda. Apesar da oposio permanente
dos stalinistas, os grupos trotskistas da Liga Comunista e dos socialistas do PSB
paulista tentaram construir a sua Frente nica
329
. Quanto aos anarquistas, que viviam
uma fase de decadncia da sua influncia nos meios operrios, com o avano dos
novos rivais de esquerda e de direita no movimento sindical, rechaavam com vigor a
proposta. Diziam eles, como se l no Boletim da FOSP de 1931, que estavam dispostos
sempre unio,
mas no com fins polticos, nem para que seja maior o
nmero de votos. (...) Queremos uma unio consciente e livre e
por isso no aceitamos a frente nica feita base de
subterfgios com o propsito de criar um novo Estado, assim
como condenamos os que, a pretexto de arregimentar os
trabalhadores dentro dos sindicatos, fazem deles centros
esportivos aonde se vai jogar e no discutir os assuntos que
lhes dizem respeito.
330
Mas a partir da formao da Ao Integralista Brasileira, em 1932, essa posio
passaria a ser rediscutida. Entre 1933 e 1935, a discusso sobre a pertinncia ou no de
se aderir a uma Frente nica contra o Fascismo, que j estava presente antes, um dos
objetos mais constantes nas pginas das publicaes e panfletos libertrios. Em 1933,
esses peridicos comeam a debater de fato com os outros grupos a possibilidade de
organizar foras polticas contra o fascismo.
Inicia-se, ento, uma tentativa de aproximao entre a Frente nica Anti-
Fascista dos trotskistas e socialistas com os anarquistas. A proposta de sua formao
foi feita pelo trotskista Aristides Lobo, em solenidade em lembrana do assassinato do
socialista italiano Giacomo Matteotti, em 11 de junho de 1933
331
. Os comunistas, por
328
PINHEIRO, Paulo Srgio. Estratgias... op. cit., p. 59.
329
CASTRO, Ricardo. A Frente nica Antifascista (FUA) e o antifascismo no Brasil (1933-1934).
Topoi, Rio de Janeiro, UFRJ, n. 5, p. 354-388, 2002.
330
A finalidade das organizaes operrias. Boletim da Federao Operria de So Paulo, So Paulo, ano
I, n. 1, 1 ago. 1931, p. 1. Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP Vol. II), doc. 28.
331
CASTRO, Ricardo. A Frente... op. cit., p. 359.
200
sua vez, apesar de recusarem ingressar em qualquer proposta de frente nica, estavam
tambm presentes nos debates, nem que fosse para provocar aqueles que consideravam
seus oponentes.
Alguns anarquistas chegam a participar da solenidade de sua fundao em 25
de junho de 1933 no salo da Legio Cvica 5 de Julho, com socialistas, tenentes e
trotskistas. Mas 3 dias antes, em 22 de junho, haviam criado o seu prprio Comit
Antifascista. Em panfleto escrito pela Federao Operria de So Paulo, em julho de
1933, intitulado Contra a horda Fascista. Ao Povo do Brasil, em meio ao texto
sobre a Frente nica Anti-Fascista, os libertrios definiam sua posio,
coerentes com nossa conduta e cientes que a defesa da liberdade no patrimnio
exclusivo de determinados indivduos ou idias. Sobre a melhor forma de organizar a
oposio contra as to vivas (...) manifestaes fascistas [ocorridas] ultimamente,
dizia o panfleto:
[As correntes liberais] ainda que tarde, reconheceram
a necessidade de agir em defesa das liberdades populares e
trataram de recobrar o tempo perdido com uma aliana, uma
frente nica at com os que sempre condenaram, os
libertrios e as organizaes apolticas.
332
No entanto, havia uma divergncia fundamental que resultaria na recusa da
participao da Frente nica, sempre entre aspas, naquele momento. Enquanto as
demais faces defendiam apenas a entrada de organizaes sindicais e partidos anti-
fascistas, os libertrios defendiam a necessidade da ao conjunta de todos os
indivduos anti-fascistas, sob as bases da mais ampla autonomia de faces, princpios
e doutrinas
333
. Essa diferena manteve os anarquistas fora daquilo que chamaram de
Frente nica de fachada. Sua luta seria a de vanguarda das foras que combatem o
fascismo em todas as suas manifestaes, prestando incondicional apoio a toda
obra que vise realmente [grifo meu] defender as liberdades conquistadas e
conclamava todos os trabalhadores insurreio, a desrespeitar todos os instrumentos
de fascistizao, como o Ministrio e os Departamentos Estaduais do Trabalho. Por
fim, o escrito terminava com termos duros:
332
FEDERAO OPERRIA DE SO PAULO. Contra a horda fascista. Ao povo do Brasil!. So
Paulo, 5 jul. 1933. (panfleto). Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP Vol. II).
333
Idem, ibidem.
201
O combate ao fascismo no pode ser platnico, no
deve limitar-se a comcios ou publicaes. Se queremos obter
resultados, havemos de entrar na ao prtica.
A toda tentativa que viesse destruir uma mnima
parcela de progresso, liberdade ou direitos conquistados,
todos os que sinceramente amam a liberdade ho de aprestar-
se a impedi-lo, de armas na mo se tanto for necessrio.
A FEDERAO OPERRIA DE S. PAULO, avezada
luta contra os reacionrios de toda casta, estar sempre
disposta a ocupar seu posto, por mais perigoso que ele
seja.
334
Mas a recusa da adeso dos anarquistas Frente nica Anti-Fascista no
impediu que os militantes anarquistas estivessem sempre em contato com ela e com os
militantes do PCB, que faziam severa oposio organizao fundada por trotskistas e
socialistas. O jornal O Homem Livre
335
, por exemplo, contm escritos de todas as cores
polticas contra o fascismo, e na sede da Federao Operria de So Paulo foram
discutidas, em diversas ocasies, formas de luta anti-fascista, com a presena de
elementos estranhos aos seus filiados anarquistas. Alm disso, havia a divulgao das
atividades anti-fascistas nos jornais anarquistas ou dirigidos por anarquistas, como A
Lanterna, de Edgar Leuenroth. possvel ver ali a participao de outras correntes
polticas nas atividades anti-fascistas. Ou melhor dizendo, e sublinhando, os
anarquistas publicavam em seus jornais notas sobre a participao de elementos de
outras correntes polticas nas atividades anti-fascistas. Constam ali, como louvveis,
atitudes anti-fascistas do Partido Socialista de So Paulo, por exemplo. A tnica das
chamadas anti-fascistas sempre em torno da expresso todos os homens livres, no
de organizaes, conclamando, assim a todos, luta pelas conquistas de liberdade j
existentes, contra a horda fascista.
Ainda sobre o contato com a Frente nica Anti-Fascista, apesar da recusa em
aderir a ela formalmente, existem diversos registros, sobretudo fontes policiais, que
sublinham a participao de militantes anarquistas nas reunies, no s tomando a
palavra, mas at mesmo contendo os nimos entre stalinistas e trotskistas, intervindo
at mesmo para separar brigas corporais, como relata o agente policial Rubens [de
334
Idem, ibidem.
335
Contra o fascismo. O Homem Livre. So Paulo, ano I, n. 1, 27 maio 1933, p. 1.
202
Almeida] ao observar uma reunio do Comit Estudantil Anti-Guerreiro de So Paulo,
em novembro de 1933
336
.
A formao de um efetivo bloco anti-fascista das esquerdas, especialmente em
So Paulo, estava realmente difcil de acontecer. Foi a partir de 1934, que se fortaleceu
a proposta de construo dessa frente. Ao saberem que os integralistas anunciaram
fazer um ato pblico na Praa da S, em comemorao ao segundo aniversrio de sua
Aliana Integralista Brasileira, imediatamente os trotskistas da Unio dos
Trabalhadores Grficos comearam a preparar uma contramanifestao, que contaria
com a participao tambm do PCB, dos anarquistas e de outros anti-fascistas. Cerca
de 7.000 a 8.000 integralistas se dirigiram ao local, quando l chegaram, encontraram
j presentes diversos anti-fascistas. Logo aps, chegaram cerca de 400 homens da
polcia, com cavalos e metralhadora, que deram uma sensao de segurana aos
integralistas, que comearam seu ato, sob vaias e gritos de abaixo o fascismo e fora
galinhas-verdes. Tiros foram disparados, sem se saber de onde e por quem. Iniciou-se,
ento, uma batalha que tornou a praa em campo de guerra, terminada com a
debandada dos grupos integralistas. Neste episdio pela primeira vez, todas as foras
antifascistas participaram em conjunto, ainda que sem direo totalmente
centralizada, de uma manifestao pblica de grandes propores
337
.
Ainda assim, naquele momento em que se aproximava uma unio mais efetiva,
ainda havia grandes espaos para rixas. O Comit Pr-Presos Sociais denunciou
publicamente, aps o evento de 7 de outubro, a reao policial unicamente contra os
anarquistas, e a priso arbitrria de seus companheiros, enquanto pessoas e partidos
polticos disputavam para si os louros da vitria e dos feitos de abnegao e de
desprendimento em prol da causa da liberdade que inmeras pessoas de todas as
cores polticas deram provas no memorvel 7 de Outubro, (...) dia em que o
integralismo teve o seu atestado de bito moral. De todo o modo, o historiador
336
Segundo relato do agente reservado Rubens [de Almeida], em uma reunio promovida pelo Comit
Estudantil Anti-Guerreiro a 3 de novembro de 1933, um representante da Juventude Comunista teceu
crticas polcia e aos trotskistas, o que foi rebatido por Aristides Lobo. (...) Nesse momento os
stalinistas [que, segundo o relato, eram maioria], promoveram grande algazarra, atacando Aristides
Lobo, taxando-o de policial, etc. EDGARD LEUENROTH, intervindo, conseguiu acalmar os nimos
que se achavam bastante agitados, pois at troca de bofetadas se verificou. ([ALMEIDA], Rubens
[de]. Informe reservado. So Paulo, 4 nov. 1933. Pronturio DEOPS-SP 1656 (Comit Anti-Guerreiro),
doc. 69.). Anos mais tarde, em histrico no pronturio de Edgard Leuenroth, seu gesto recebeu da
polcia a adjetivao de anjo da paz entre trotskistas e stalinistas, que se esbofetearam.
(Informaes sobre Edgard Leuenroth. Do pronturio N. 122. So Paulo, 7 jan. 1935. Pronturio
DEOPS-SP 122 (Edgard Leuenroth Vol. I), doc. 18.
337
CASTRO, Ricardo. A Frente... op. cit., p. 376.
203
Ricardo Castro afirma que a Batalha da Praa da S foi como que um breve
renascimento para resolver uma contenda inadivel e realizar o confronto h muito
tempo previsto e esperado
338
.
A partir de 1935, ser em torno da Aliana Nacional Libertadora, ANL, que
iro se reunir foras para, entre outros objetivos, combater o fascismo. E novamente,
os anarquistas sero procurados para unir foras contra a guerra e o fascismo. O ano de
1935 ser de intenso debate entre os anarquistas sobre a participao nesse movimento,
embora, pelas fontes encontradas, principalmente de So Paulo, estejam sempre
presentes crticas e ressalvas em torno da unio contra o fascismo.
Em 29 de junho de 1935, em uma conferncia intitulada Os anarquistas e a
Aliana Nacional Libertadora, Gusmo Soler se pronuncia acerca da necessidade e
limites da unio entre ambos os grupos. Existiriam alguns pontos de contato que
justificam uma ao paralela com os aliancistas (...) Enquanto os aliancistas
estiverem na oposio, no combate ao fascismo, ao latifundismo e tirania
governamental, (...), cada qual em seu setor, no endeusando pessoas, mas batendo-se
por idias, discutindo e lutando ao redor de princpios, encontrar-se-iam
perfeitamente lado a lado, anarquistas e aliancistas
339
. Mas h um problema: os
aliancistas visam tomada do poder atravs do Estado e Quando a Aliana Nacional
constituir o Estado, isto , quando ela for governo e julgarem os aliancistas que no
h mais nada a fazer, os anarquistas continuaro a sua obra, objetivando a completa
emancipao do povo do jugo de todas as tiranias e exploraes, com a abolio do
instrumento compressivo do Estado e sua substituio por um regime baseado no livre
acordo, na organizao federalista de todos os ramos de atividade humana, onde haja
bem estar e liberdade para todos
340
.
Nesta mesma conferncia, Edgar Leuenroth pondera que os tempos difceis
exigiam que os anarquistas definissem claramente sua posio na constituio de uma
frente nica, tal como j o haviam feito os socialistas e os comunistas. Ou seja, alm
da dedicao, de fato, sincera dos militantes anarquistas, em especial na luta contra o
fascismo, estava em jogo tambm a permanncia de sua influncia nos meios operrios
em um contexto bastante adverso. Ao aderir a uma frente nica da qual no so os
338
CASTRO, Ricardo. A Frente... op. cit., p. 378.
339
Uma conferncia libertria. A Lanterna Jornal de combate ao clericalismo. So Paulo, n. 398, 13
jul. 1935, p. 2.
340
Idem, ibidem.
204
protagonistas corria-se o risco de terem seu iderio ofuscado por outras correntes
frente da aliana. Por outro lado, haveria a possibilidade de tornarem-se visveis ao
tomarem parte em um movimento que tendia a uma repercusso intensa e crescente.
No aderir, poderia ajudar a manter uma pureza militante, porm o isolamento
poderia tornar sua atuao praticamente invisvel, diante daquilo que reconhecia Edgar
Leuenroth como um dos maiores movimentos de opinio registrados nos ltimos
tempos. Era preciso escolher. Assim, a conferncia, ao contrrio de propor
propriamente um debate entre os participantes sobre a possibilidade ou no da adeso
dos anarquistas A.N.L., tratava antes de apresentar as razes da necessidade urgente
da aliana contra o inimigo comum (o fascismo) e, ao mesmo tempo, explicitar os
limites desta adeso: havia questes de princpios para os anarquistas das quais no
abririam mo. Alm da sinceridade da militncia anti-fascista por parte dos
anarquistas, a adeso A.N.L. aparecia tambm como uma ttica para manter acesa a
militncia anarquista, cada vez mais ofuscada por outras correntes polticas e sindicais,
notadamente o varguismo e o comunismo. Apoiar a A.N.L. era tambm reivindicar
direitos deliberativos no movimento, afinal, como ponderou Edgar Leuenroth,a
sinceridade com que sempre prestaram seu concurso os libertrios s grandes causas
populares lhes outorgava o direito de serem tambm ouvidos
341
.
De todo o modo, embora no existisse propriamente uma adeso, os anarquistas
paulistas efetivaram algum tipo de aproximao com outras correntes democratas,
como a A.N.L.. No entanto, essa aproximao rendeu algumas crticas internas por
parte de outros grupos anarquistas, como a do grupo Os Iguais, de Porto Alegre, que
em seu jornal Humanidade fez publicar um cido artigo de J. Ramon intitulado
Definir-se ou renunciar. Nele se lia a crtica dura da aproximao dos anarquistas
com a A.N.L., pois o seu parlamentarismo, expresso do colaboracionismo marxista
com a burguesia era, por si s, incompatvel com a luta pelo fim da tirania e da
escravido. Da no apenas no ser recomendvel a aliana com partidrios do
marxismo, como deve-se combater os meios de luta empregados pelos deturpadores
do verdadeiro comunismo-libertrio. Nem mesmo a luta contra o fascismo
justificaria, a seu ver, tal aliana ttica, defendida por alguns militantes das fileiras
anarquistas, que no tiveram uma viso clara dos truques moscovitas e que [foram]
levados por sua boa f.
341
Idem, ibidem.
205
Em sucessivos manifestos, a vanguarda anarquista do
movimento proletrio de Porto Alegre, embora sujeitando-se
crtica severa dos que entendiam as causas de outro modo,
procurou demonstrar aos trabalhadores e aos companheiros
que simpatizavam com o movimento aliancista, que no se
deixassem iludir pelos novos Messias da poltica, porque o
tempo, mais eloqente do que todos os discursos, se
encarregaria de demonstrar a todos as intenes malvolas
dos que s almejam apossar-se do poder para implantar uma
frrea ditadura de extermnio como mais um corolrio ao
sacrifcio dos trabalhadores. (...)
Dirigindo-nos aos nossos companheiros, afirmamos
que no temos porque nos desviar dos nossos princpios
filosficos, cujas tticas jamais foram superadas na
consecuo dos objetivos de emancipao humana. Mais vale,
sem dvida alguma, que aqueles que se sintam incapazes de
compreender a grandeza de nossos ideais se passem s fileiras
contrrias, do que continuarem a mistificar um Ideal que no
sentem. Mais vale para ns um indiferente que um indefinido;
prefervel sabermos que contamos com mais um inimigo do
que confiarmos num amigo medocre, mascarado de sincero.
(...)
342
Em lugar da adeso frente nica proposta pela A.N.L., Ramon se limita a
propor ensaiar novos meios de luta, que fortaleam e unifiquem os trabalhadores de
todas as tendncias, para assim estar em posio mais vantajosa para combater a
guerra, o capitalismo e as religies que visam o embrutecimento da humanidade e
tudo que seja prejudicial aos trabalhadores certo. Quais novos meios de luta
vislumbrava, Ramon no disse. Talvez pensasse apenas em revisitar velhas formas de
lutas, dentre as quais o sindicalismo revolucionrio. De toda forma, sua oposio ao
apoio anarquista luta contra o fascismo em torno da A.N.L. demonstra a existncia de
restries que visavam no s proteger o purismo revolucionrio da vanguarda
anarquista, como tambm no servir de suporte para alar fora aos adversrios que
disputavam o mesmo pblico.
De outro lado, em um sentido mais amplo, a dificuldade de formao de uma
efetiva Frente nica contra o Fascismo, contra um inimigo comum, demonstra, dentro
da esquerda e das correntes ditas revolucionrias (embora uma chamasse a outra de
pseudorevolucionria, reacionria e etc.), o difcil momento do movimento operrio
brasileiro da dcada de 1930, quando, alm das novas formas de interveno do Estado
342
RAMON, J. Definir-se ou renunciar. Humanidade rgo da Agrupao Anarquista Os Iguais,
Porto Alegre, Junho de 1936. Este exemplar integra o Pronturio DEOPS-SP 1262 (Benedito Romano
Vol. I).
206
e da burguesia nos meios sindicais e proletrios, as dificuldades aumentavam diante
das acirradas disputas internas das diversas correntes, que impediam uma efetiva ao
conjunta.
A polcia paulista observava de perto essas querelas desde o incio do perodo
varguista. Discorrendo sobre as correntes ditas revolucionrias no movimento operrio
paulista, o agente Antonio Ghioffi mostrava conhecer bem as diferenas de orientao
entre os diversos grupos, dos quais apresenta as diferenas entre 2 grandes blocos
(anarquistas e comunistas), divididos, cada um, em 2 correntes (anarquistas e anarco-
sindicalistas; stalinistas e leninistas-trotskistas). Avaliava que, para efeitos de
neutralizao de agitao operria e, sobretudo, da expanso das atividades daqueles
que eram considerados os principais perigos Partido Comunista, a Confederao
Geral do Trabalho e a Federao Sindical Regional (de SP) , aquela diviso era
absolutamente positiva.
Ao apresentar a FOSP, sublinha o agente que tem a entidade uma concepo
apoltica, isto , antipoltica. Em seu seio agrupam-se todas as tendncias e todos os
credos, no aceitando o predomnio de nenhuma tendncia e de nenhum credo. A sua
linha de ao essencialmente econmica
343
.
Mais adiante, quando fala da ttica inteligente desenvolvida pela Delegacia
de Ordem Social, explica que ela consiste no seguinte:
aproveitando a posio ideolgica das correntes
predominantes no seio do proletariado militante, fez com que
prevalecesse o critrio apoltico nas organizaes que, apesar
de discutido com os seus acendrados mentores, teoricamente
esto, quer queiram quer no, de acordo com o apoliticismo da
lei de sindicalizao do Ministrio do Trabalho. Esta ttica
produziu os melhores resultados, trazendo consequentemente
uma sensvel diviso de foras nas diversas faces sindicais.
Estabeleceu-se assim, abertamente, a guerra de tendncias, a
guerra de escolas dentro dos quadros do sindicalismo poltico
e antipoltico.
Ante o fracasso das tentativas de dominao comunista
nas organizaes, e como o predomnio resultou a favor do
pensamento apoltico, os partidrios da ditadura do
proletariado vm oferecendo diariamente a possibilidade da
realizao de uma frente nica entre todos os elementos.
343
GHIOFFI, Antonio. [Informe Reservado ao] Exmo. Snr. Dr. Igncio da Costa Ferreira, Md.
Delegado de Ordem Social. So Paulo, 10 jun. 1931. Pronturio DEOPS-SP 716 (FOSP Vol. II),
doc.18.
207
J relatamos em documentos anteriores essas
demarches, a comear por uma reunio em que tomaram parte
todos os militantes sindicalistas, anarquistas e comunistas,
convocada por estes, e onde descobriram o seu objetivo, que
teve a liderana de Paulo de Lacerda e que foi contestada por
Arsnio Palcios, de um pretenso movimento de massas, a
possibilidade de uma revoluo proletria. Os comunistas
queriam aproveitar a situao do momento, de certo modo
confusionista, para tirar partido. Os sindicalistas e anarco-
sindicalistas serviram indiretamente nesse momento causa
do novo governo [de Vargas] que se constitua. (...)
Portanto, a frente nica entre as diversas correntes em
jogo, por enquanto, no passa de tentativas de um lado e
recusas de outro. Vem isto precisamente do antagonismo de
idias que se vem sustentando com bastante eficincia.
344
.
O combate ao comunismo, pelo menos em So Paulo, na dcada de 1930,
passou pela observao e apoio ao anarquista, sem esta saber ou se dar conta, de
acordo com o que se depreende da leitura da polcia, que aplaudia e estimulava a
diviso. As disputas internas, a observao da polcia e a nova lei de sindicalizao
serviram aos interesses da conservao da ordem. No entanto, a vigilncia continuava
a temer possveis agitaes das massas proporcionadas pelas correntes de esquerda,
principalmente dos partidrios da ditadura do proletariado, mas tambm dos
enfraquecidos anarquistas.
Se estavam cada vez mais enfraquecidos e com poder reduzido de ao, por que
a preocupao com o anarquismo? Anarquismo e anti-fascismo, propriamente, no
eram preocupaes da polcia, segundo se depreende de outros relatos policiais. O
problema estava naquilo para o que poderiam contribuir em sua deflagrao. Em
informe reservado ao Delegado de Ordem Social, em 30 de junho de 1933, um agente
teceu crticas severas Federao Operria de So Paulo por criar inegavelmente um
ambiente de rebeldia e indisciplina nos meios trabalhistas com sua imprensa legal,
assim como ampla liberdade de reunio e propaganda. realmente interessante que
o agente faz uma ponderao sobre o carter subversivo de suas aes: a associao
perigosa,apesar de combater o bolchevismo
345
.
344
Idem, ibidem.
345
Informaes reservadas Federao Operria. So Paulo, 30 jun. 1933. Pronturio DEOPS-SP 1581
(Comit Anti-Fascista), doc. 6.
208
Neste mesmo relatrio, o agente reservado (que no assina, mas presumo seja
Guarany
346
), que atribui a atividade subversiva ampla liberdade de reunio e
propaganda com sua imprensa legal, estava preocupado com o Comit Anti-Fascista,
pelos mtodos escolhidos pela nova entidade para combater o fascismo: a agitao
das massas com base nas reivindicaes mais imediatas [contra o estado de coisas e
pela situao revolucionria de vrias questes] e incluindo entre elas, palavras de
ordem contra o fascismo. Ou seja, o problema era agitar as massas operrias, no o
combate ao fascismo em si, pois, observa o policial, o anti-fascismo ser uma
mscara sob a qual se escondem vrias agrupaes com o intuito de ligarem-se s
massas, tiraro proveito desta agitao, e a confuso e agitao dobrar. Portanto,
para este agente, o problema no era o anti-fascismo em si, e sim a agitao das massas
que elementos subversivos poderiam promover sob a proteo do rtulo anti-
fascista. Ctico quanto concepo revolucionria anarquista ou, pelo menos, quanto
fora dos anarquistas naquele momento, no final de seu informe reservado, quando faz
uma avaliao semelhante ao anti-fascismo: o problema no o anarquismo, mas o
ambiente que contribui para agitaes das massas. O parecer final do policial em seu
informe reservado dizia o seguinte: A ideologia anrquica em si no oferece perigo
algum, mas preciso observar o ambiente criado pela propaganda metodizada, ou
organizada que no se limita a fazer secamente a propaganda anarquista, mas agitar
as questes mais sentidas pelas massas
347
.
Essa avaliao do agente reservado indica que os anarquistas, mesmo cada vez
mais enfraquecidos e obscurecidos pela ao de outras correntes polticas,
continuavam a ser, aos olhos da polcia, agitadores com potencial de influir nas massas
trabalhadoras, pelo menos em So Paulo, reduto onde o anarquismo conseguiu exercer
alguma influncia na primeira metade da dcada de 1930. No importava se a
iniciativa de recriar a Confederao Operria Brasileira, em 1934
348
, no tenha
alcanado os resultados almejados, mais uma vez. Se no se temia mais o anarquismo
346
Embora no assinado, suspeito de que a autoria do relatrio seja de Guarany, pois era parte de seu
estilo, dentre outros elementos, no se limitar a relatar o que observava, mas tambm fazer avaliaes a
respeito do alcance das atividades dos grupos ou indivduos investigados. Essa caracterstica tambm foi
observada e analisada com muito mais propriedade por FLORINDO, Marcos Tarcsio. O servio
reservado da Delegacia de Ordem Poltica e Social de So Paulo na Era Vargas. So Paulo: UNESP,
2006, p. 144-166.
347
Idem, ibidem.
348
Confederao Operria Brasileira Manifesto aos trabalhadores do Brasil 1934. A Plebe Peridico
Libertrio. So Paulo, 12 maio 1934 apud RODRIGUES, Edgar. Um sculo de histria poltico-social
em documentos Vol. II. Rio de Janeiro: Achiam, 2007, p. 153-158.
209
em si, por outro lado, se temia a possibilidade de revoluo das massas, inspirada ou
no por qualquer vertente poltica. Era preciso agir sobre lideranas que pudessem
exercer alguma influncia e acender alguma fagulha mobilizatria perigosa ao
governo, ao Estado e ordem estabelecida. Por isso, a reao insurreio iniciada nos
quartis, sob o comando do PCB, em novembro de 1935, no poupou os anarquistas, e
o estado de stio recaiu novamente sobre eles. Suas duas principais publicaes A
Lanterna e A Plebe foram imediatamente interrompidas por fora da polcia. E os mais
destacados militantes anarquistas no deixaram de ser importunados e intimidados com
prises eventuais, para averiguao de sua participao no levante, durante todo o ano
de 1936, como foi o caso de Edgard Leuenroth e Rodolpho Felippe, enquanto outros,
como o espanhol Gusmo Soler, sofriam com a abertura de inqurito que visava sua
expulso do territrio nacional
349
.
Antes mesmo da implantao do Estado Novo, o anarquismo foi vtima da
represso do Estado, tornando sua influncia nos meios operrios irreversivelmente
decadente. Fechava-se, definitivamente uma parte da histria do movimento operrio
brasileiro e do movimento anarquista, que voltaria a tentar se reorganizar na segunda
metade da dcada de 1940, aps a queda de Vargas, sem conseguir recuperar jamais, a
fora que alcanou no passado.
349
Ver referncias s prises, inquritos e depoimentos instaurados ao longo do ano de 1936 para estes
trs exemplos nos pronturios destes militantes: Pronturio DEOPS-SP 122 (Edgard Leuenroth 2
vols.); Pronturio DEOPS-SP 400 (Rodolpho Felippe); Pronturio DEOPS-SP 4045 (Gusmo Soler).
210
Captulo 4
Internacionalismo, raa e
nacionalidade na propaganda
anarquista do Brasil
A existncia de divises identitrias de nacionalidades e de raas no interior da
classe trabalhadora era um problema contra o qual os anarquistas tiveram que se
debater no processo de construo da classe no Brasil. De acordo com seu ideal, os
militantes anarquistas se viram obrigados a combater identidades divisionistas que, se
no originadas propriamente no capitalismo, sofriam ressignificaes nas novas
relaes sociais que emergiam no Brasil a partir da abolio formal definitiva do
trabalho escravo, do crescimento urbano e do estmulo (mesmo que relativamente
efmero) industrializao verificada na virada do sculo XIX. Era preciso combater o
que dividia e obstaculizava aquilo que anunciavam como o novo agente poltico, que
daria origem ao novo mundo que estava prestes a surgir: a classe trabalhadora. Para
cri-la, era preciso formar uma identidade coesa entre trabalhadores, que deveria estar
acima de todas as outras formas de identidade.
O Brasil das primeiras dcadas republicanas, pelo menos nos estados do Sul e no
Distrito Federal, vivia sob forte impacto da imigrao, sobretudo de matiz europia. O
grande contingente de imigrantes europeus que chegavam por aqui somente era
superado pelos Estados Unidos e pela Argentina. Como natural, inicialmente os
recm-chegados procuravam estabelecer relaes de ajuda mtua entre seus
conterrneos. Como estrangeiros e pobres, tambm sofreram com a desconfiana dos
nascidos no Brasil. Diferentemente do tratamento dispensado aos estrangeiros ricos,
aos trabalhadores pobres tratava-se de lembr-los a todo instante, que no Brasil eram
estrangeiros e pertencentes a classes subalternas, o que no lhes dava direito de ser
insolentes e desrespeitar as leis e tradicionais hierarquias de autoridade pessoal. A
imposio destes limites em relao ao estrangeiro tambm foi compartilhada e
reproduzida por integrantes das classes populares nascidos no Brasil, que sentiam que,
por mais subalterna que fosse sua posio, poderia ainda ser pior se fossem preteridos
211
aos estrangeiros. Neste sentido, os versos dirigidos aos imigrantes pobres italianos,
Carcamano p-de-chumbo, calcanhar de frigideira, quem te deu a confiana de
casar com brasileira?
350
, so representativos dos preconceitos classistas com vis
racialistas a que foram submetidos os estrangeiros pobres no Brasil.
Reconhecer que imigrantes europeus foram vtimas de preconceito racial no
Brasil, alm do de classe, no significa escamotear o fato de que, apesar de todos os
estigmas, desconfianas e privaes a que foram submetidos, o emprego de sua fora
de trabalho e os seus valores culturais foram melhor recebidos do que os dos
trabalhadores nativos, principalmente os descendentes de escravizados. Antes,
significa ressaltar que as divises racialistas s se desenvolveram no Brasil, como em
outras partes do mundo, a partir dos conflitos gerados pela estrutura de classes.
No Brasil, portanto, especialmente durante as trs primeiras dcadas do sculo
XX, quando chegavam as grandes levas imigratrias e quando eram sentidas as
primeiras mudanas provocadas pela abolio formal da escravido, as segmentaes
identitrias marcadas por concepes racialistas se manifestavam por dois vieses
interligados: brancos X negros; imigrantes X brasileiros natos. De modo geral,
acreditava-se que brancos, estrangeiros ou nascidos no Brasil eram mais elevados,
intelectual e moralmente. Porm, em diversos momentos se reputou aos estrangeiros
(ou mais especificamente, a alguns grupos e indivduos estrangeiros) a
responsabilidade por distrbios sociais, ao instigarem os trabalhadores brasileiros, que
teriam uma ndole positiva e naturalmente amante da ordem, a revoltar-se. Entre todos
esses mitos, contudo, ao trabalhador negro sempre coube somente atributos
caricaturalmente negativos, como a ignorncia, o primitivismo, a preguia, a tendncia
natural ao roubo, ao alcoolismo, trapaa e violncia. Na viso da classe dominante,
o mximo de valorizao positiva que os negros, como nacionais, poderiam receber
era o atributo de pacatos, quando o objetivo dos discursos era perseguir os revoltosos
anarquistas-estrangeiros, ou ainda palavras em tons paternalistas que estabeleciam
vnculos distorcidos entre o passado e o presente sobre o paciente sofrimento por que
passaram seus antepassados durante tantos sculos.
As difceis condies de vida, o alto grau de explorao do trabalho, a grande
oferta de mo-de-obra, a falta de mediaes polticas e o desrespeito a direitos
350
MACHADO, Antnio de Alcntara. Brs, Bexiga e Barra Funda. So Paulo: Martin Claret, 2002, p.
18 (texto original de 1927).
212
fundamentais contriburam para que idias libertrias fossem disseminadas entre os
trabalhadores do pas, dentre os quais os imigrantes, vindos, principalmente, da Itlia,
Espanha e Portugal
351
. Sua condio de estrangeiros e de principal mo-de-obra
empregada nas indstrias, manufaturas e no trabalho artesanal
352
os colocavam em
evidncia nos movimentos reivindicatrios. Com objetivo de legitimar a represso e
desmobilizao das classes populares, agentes conservadores da ordem construram
um factide durante a Primeira Repblica que vinculava ao reivindicatria e agitao
subversiva profissional de estrangeiros
353
. Embora essa vinculao direta e artificial
fosse exagerada e combatida pelos prprios anarquistas
354
, isso de certa forma
contribuiu para dificultar o estabelecimento de laos de solidariedade de classe.
Para superar essas dificuldades, no que tange especificamente ao movimento
anarquista, os libertrios, em seu esforo contra-hegemnico, acabaram por ter que
tambm jogar com os elementos do arcabouo lingstico hegemnico. Ao combater
os mitos que a classe dominante e o Estado criavam para dissimular a luta de classe e
desestimular a organizao dos trabalhadores, os anarquistas do Brasil acabariam por
reproduzir signos da ideologia dominante, ainda que a eles conferissem novos
significados.
Era preciso fazer emergir a classe em meio a uma massa de trabalhadores
formada por imigrantes europeus e trabalhadores brasileiros, que viveram, at 1888,
livres ou cativos, a experincia da escravido. A heterogeneidade de nacionalidades
que aqui aportavam em meio ao processo de abolio do trabalho escravo assumiu,
desde os anncios da poltica imigrantista, contornos racialistas. As noes de
351
Contudo, como fazem notar Michael Hall e Paulo Srgio Pinheiro, as condies de vida e trabalho que
os imigrantes, em seu conjunto, encontraram no Brasil foram mais fundamentais do que uma prvia
experincia poltica. A maioria dos imigrantes provinham de reas rurais em seus pases de origem sem
terem desenvolvido atividades sindicais ou qualquer intimidade com doutrinas socialistas. HALL,
Michael e PINHEIRO, Paulo Srgio. Alargando a histria da classe operria: organizao, lutas e
controle. Remate de Males, Campinas, Unicamp, n. 5, 1985, p. 100.
352
Sheldon Leslie Maram indica os altos ndices de emprego de mo-de-obra estrangeira empregada nas
atividades urbanas de So Paulo e, em menor nmero, no Rio de Janeiro. MARAM, Sheldon Leslie.
Anarquistas, imigrantes e o movimento operrio brasileiro, 1890-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979, p. 13-27.
353
Sobre as prticas repressivas e o mito do agitador-estrangeiro, ver ALVES, Paulo. A verdade da
represso: prticas penas e outras estratgias na ordem republicana (1890-1920). So Paulo: Editora
Arte & Cincia, 1997.
354
Os anarquistas brasileiros. Ao povo. Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 9, 27 set. 1919, p. 1-2.
213
nacionalidade e raa
355
, geralmente tomadas como se fossem uma coisa s, tambm
estiveram presentes na propaganda contra-hegemnica dos libertrios, que partilhavam
alguns de seus aspectos, mesmo quando fosse para combat-las.
Atravs da anlise das fontes da propaganda anarquista produzidas no Rio de
Janeiro e em So Paulo entre os anos de 1908 e 1921, este captulo tem por objetivo
apresentar concepes de internacionalismo e raa de libertrios que esforavam-se
por construir uma solidariedade de classe no Brasil.
DIVULGAO DE NOTCIAS INTERNACIONAIS E O INTERNACIONALISMO
DA CLASSE TRABALHADORA
Tal como outras correntes polticas ligadas ao movimento operrio e como
sucedia entre os anarquistas de todo o mundo, as imprensas anarquista e sindicalista
sob influncia libertria no Brasil ocuparam-se de divulgar, com especial destaque,
notcias vindas do exterior. Eram notcias sobre o movimento operrio e sobre aes
governamentais que, aos olhos dos anarquistas, produziam efeitos sobre a classe
operria de seus pases.
A origem dos escritos que compunham a seo das notcias internacionais podia
ser variada: escritos vindos de militantes que se encontravam no exterior, reproduo,
parcial ou integral, comentada ou no, de notcias divulgadas na grande imprensa, nos
telgrafos ou na imprensa operria e anarquista do exterior, ou ainda textos produzidos
por militantes no Brasil a partir da leitura de jornais estrangeiros.
De modo geral, a divulgao de notcias vindas do exterior, mesmo quando
limitava-se a breves notas de telgrafo, cumpria uma funo estratgica na propaganda
anarquista. Atravs do que se passava no mundo todo, informava-se que todo ele
estava submetido lgica da produo e do mercado capitalista; que a sociedade
estava dividida em classes; que as classes possuam interesses antagnicos; que o
Estado garantia a explorao; que a identidade de classe estava acima das outras
formas de identidade; que havia necessidade da coeso dos trabalhadores e da ao
coletiva; que era preciso que os trabalhadores adquirissem conscincia de sua funo
revolucionria.
355
O emprego do termo raa neste texto mantido por ser aqui um objeto de estudo, um importante
elemento constitutivo da ideologia dominante no Brasil e no mundo no perodo estudado. Afinal, em
uma sociedade onde h racismo, h necessariamente a idia de raa.
214
No constante exerccio contra-hegemnico, era comum aludir-se a imagens que
no senso comum eram atribudas a um determinado pas e subvert-las. Durante as
duas primeiras dcadas do sculo XX possvel perceber que se recorria a uma espcie
de adjetivao para se referir a determinados pases, dentre os mais presentes no
noticirio internacional da imprensa libertria. Em comum a todas essas imagens, a
denunciada violncia do Estado a servio dos interesses da classe dominante. Porm,
se atribuam caractersticas especficas a cada um dos Estados. Desta maneira, a
Argentina, ao contrrio de ser o pas civilizado da Amrica do Sul, era onde se
encontrava um governo e uma polcia brbaros e cruis
356
. Quando se falava dos
Estados Unidos, o termo a ser subvertido era a democracia
357
, inexistente dada a
impossibilidade dos trabalhadores se manifestarem livremente sem sofrer as
conseqncias da represso e das artimanhas de uma polcia secreta que usava, em
conluio com a Justia, da violncia e incriminava falsamente algum trabalhador para
sacrific-lo como responsvel por alguma morte. Inglaterra cabia a denncia de
hipcrita por se fazer parecer como centro difusor de civilizao, fundado sob o regime
da lei e da igualdade, mas que, na realidade, utilizava-se de todos os meios para
alavancar os lucros, seja atravs da cooptao poltica das trade-unions
358
, seja por
meio de extrema violncia para civilizar os ditos selvagens
359
. O Estado russo czarista
era o grande imprio da violncia dspota. A Alemanha era o pas militarista cujos
trabalhadores foram vendidos pelos social-democratas ao Kaiser
360
. Na Frana
depositavam-se as maiores esperanas, tanto pela sua trajetria revolucionria como
356
P. ex.: ESPIRIDIO, Antonio. Mais uma vez, Viva a Repblica Argentina! A Guerra Social
Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 22, 1 maio 1912, p. 2; Aos homens livres de todo o
mundo. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 11, 3 fev. 1912, p. 4; n. 13,
17 fev. 1912, p. 4; n. 14, 28 fev. 1912, p. 4; n. 15, 06 mar. 1912, p. 4; n. 16, 13 mar. 1912, p. 4; n. 18,
27 mar. 1912, p. 4; n. 19, 3 abr. 1912, p. 4; n. 20, 10 abr. 1912, p. 4; n. 21, 24 abr. 1912, p. 4.
357
P. ex.: SCALARINI. Na terra de Wilson Feroz perseguio aos elementos avanados Na famosa
democracia so praticadas indescritveis crueldades. A Plebe, So Paulo, ano II, n. 7, 5 abr. 1919, p. 3;
V. Na democracia de Wilson O reverso da medalha Processos inquisitoriais. A Plebe, So Paulo,
ano II, n. 9, 19 abr. 1919, p. 3.
358
P. ex.: PORTO, Amaro. Era nova. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n.
23, 14 ago. 1912, p. 1; Movimento Internacional A Inglaterra revolucionria. A Guerra Social
Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 14, 28 fev. 1912, p 3; VASCO, Neno. Sindicalismo
revolucionrio. A Voz do Trabalhador, ano VI, n. 25, 15 fev. 1913, p. 2; Crnica Internacional. A
Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 27, 14 set. 1912, p. 3.
359
P. ex.: Crnica internacional. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 26,
4 set. 1912, p. 3.
360
P. ex: A. de P. Contra-revoluo alem Os magnos histries. A Plebe, So Paulo, ano IV, n. 57, 20
mar. 1920, p. 1.
215
pela agitao sindicalista da C.G.T.
361
, ao mesmo tempo que se denunciava a reao
contra-revolucionria chefiada por Clemenceau
362
. Portugal, que nas duas primeiras
dcadas vivia sob as idas e vindas entre monarquia e repblica, era um exemplo de
como as disputas polticas em nada beneficiavam os trabalhadores
363
. A Itlia era um
dos pases sobre os quais mais se noticiavam avanos (quando se tratava de aes
coletivas tidas por espontneas ou lideradas pelos anarquistas)
364
e retrocessos do
movimento operrio (ocasionados pela represso ou pelos descaminhos dos
socialistas)
365
. Mas o Estado italiano no recebeu propriamente nenhuma
caracterizao especfica, nem mesmo quanto ao seu catolicismo, talvez pelo
enfraquecimento poltico do Vaticano frente ao recente processo de unificao. Ao
contrrio, para a propaganda anarquista no Brasil, o maior exemplo da ntima
cumplicidade entre Estado e religio se encontrava na Espanha, e sua monarquia
jesutica, que dominava os trabalhadores e punia com violncia os que ousassem
questionar sua autoridade
366
.
Como foi dito, esta espcie de tipologia no se restringia apenas a adjetivar, por
si s, esses Estados. Ela cumpria tambm uma funo de propaganda contra-
hegemnica importante, uma vez que desmistificava a boa imagem que esses pases
gozavam junto classe dominante brasileira e se fazia difundir pelo senso comum de
serem pases em estgio avanado de civilizao, a serem imitados pelo prprio Brasil.
O objetivo era denunciar que, por trs das prticas e valores que se apresentavam como
positivos, escondiam-se prticas de violncia extrema contra os trabalhadores, o que,
portanto, ao invs de serem imitados, deveriam ser evitados e combatidos. Diante dos
adjetivos utilizados pelos anarquistas, que negavam o carter civilizado desses pases,
o que caberia imitar? A barbrie argentina? A hipocrisia inglesa? O jesuitismo
espanhol? A plutocracia estadunidense? O militarismo alemo?
361
P. ex: Contra a guerra. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira, Rio de
Janeiro, ano VI, n. 23, 15 jan. 1913, p. 1; VASCO, Neno. Sindicalismo..., op. cit.
362
P. ex: CADETE, Andrade. Ecos do 1 de Maio. A Plebe, So Paulo, ano II, n. 14, 24 maio 1919, p. 3.
363
P. ex: O banditismo republicano em Portugal. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao
Operria Brasileira, Rio de Janeiro, ano VI , n. 35 , 15 jul. 1913, p. 2; O terror em Portugal. A Voz do
Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira, Rio de Janeiro, ano VI , n. 36, 1 ago.
1913, p. 2
364
P.ex: A Itlia em convulso Comeou a luta decisiva entre o proletariado e a burguesia. A Plebe,
So Paulo, ano II, n. 9, 19 abr. 1919, p. 4.
365
P. Ex: H. G. [Herme Gildo]. A Itlia em convulso social. A Plebe, So Paulo, ano V, n. 115, 30 abr.
1921, p. 1.
366
P. ex: O momento internacional. A Plebe, So Paulo, ano V, n. 119, 28 maio 1921, p. 3.
216
Esses elementos, alis, embora mais caractersticos em alguns pases do que em
outros, estavam presentes em todo o mundo capitalista, inclusive e principalmente no
prprio Brasil. Alm de procurar demonstrar que o mundo capitalista era muito menos
civilizado do que se dizia ser, os anarquistas brasileiros tomavam a Rssia czarista, to
desprezada pelo mundo civilizado e onde se praticavam os mais intensos atos
repressivos contra os trabalhadores, como o exemplo supremo de absolutismo e
barbrie estatal. Na realidade, os outros pases, incluindo o Brasil, estavam muito mais
prximos do despotismo atrasado que l vigorava do que fazia crer a auto-imagem
de civilizados que construam. Assim, quando no faziam uso de acusaes
asperamente diretas em repdio violncia e perseguio do Estado aos trabalhadores,
os anarquistas freqentemente procuravam destruir a auto-imagem positivada que a
classe dominante e o Estado faziam de si prprios, por meio de ironias e deboches.
Como num espelho, o tratamento dado s notcias sobre eventos relacionados
luta de classes no exterior dizia respeito luta de classes no Brasil. Elas conclamavam
a coeso da classe operria em todos os nveis, que extrapolassem os limites do local
do trabalho, dos interesses de um nico setor ou das fronteiras administrativas.
Deste modo, por exemplo, quando publicaram uma srie de artigos sobre a greve
dos mineiros da Inglaterra, de 1912, que teve repercusso entre os mineiros da
Alemanha e da Frana e entre outras categorias de trabalho, os anarquistas do Brasil
vibravam com o que se passava por l. Segundo sua leitura, o corporativismo das
trade-unions e a mediao do Partido Trabalhista tinham entrado em colapso diante
dos feitos atingidos unicamente pela ao direta pregada pelo sindicalismo
revolucionrio
367
. O que se passava no exterior era, portanto, a reafirmao dos
princpios defendidos no I Congresso Operrio Brasileiro.
O crescimento do militarismo na Alemanha, por sua vez, e as ameaas de
ecloso de uma guerra na Europa eram atribudos politicagem a que havia se
submetido o Partido Social-Democrata Alemo, que manipulava a estrutura sindical
germnica para fins contrrios aos interesses dos operrios, tal qual se corria o risco de
367
Por exemplo: Movimento Internacional A Inglaterra revolucionria. A Guerra Social Peridico
Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 14, 28 fev. 1912, p 3; JUREMA, Paulo. Inglaterra: Imponente
afirmao de fora do operariado ingls Solidrios, os operrios franceses e alemes entram na luta.
Cuidado com os polticos. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 17, 20
mar. 1912, p. 2.
217
ocorrer no Brasil se os operrios se deixassem ludibriar pelas promessas de chefes-
polticos e seus capatazes
368
.
A publicao de notcias internacionais, ento, fazia parte de uma nova
pedagogia revolucionria, que deveria ensinar a ver a realidade para alm dos
aparentes vernizes divisionistas do patriotismo, das divises raciais e do militarismo,
que dissimulavam a luta de classes e no permitiam que os trabalhadores vissem a si
prprios como integrantes de uma histria comum, em movimento, em todo o mundo.
Desta maneira, divulgar acontecimentos contemporneos do exterior deveria cumprir
uma funo muito maior do que meramente informativa, que era fazer o trabalhador
tomar parte ativa de um movimento universal que era essencialmente seu:
A convulso em que se debate, no momento, o proletariado universal
toma um carter iniludvel de luta decisiva. A agitao crescente das
classes trabalhadoras preocupa a ateno do mundo, alarmando
profundamente os usurpadores da riqueza comum, os quais j no sabem e
no podem ocultar a apreenso que o movimento reivindicador lhes causa.
Ainda agora, a formidvel greve dos mineiros ingleses empolga
completamente a opinio mundial, abalando, numa colossal demonstrao
de fora, toda a engrenagem capitalista. O governo britnico no
procurou, sequer, disfarar o terror desse abalo: foi o primeiro embora
a isso levado pelas circunstncias a envidar todos os esforos para que
se chegasse a um acordo amigvel. E, como ltimo recurso, depois de
ver fracassadas as negociaes, fabrica s pressas uma lei especial para o
caso, lei essa que legalmente vem dar ganho de causa aos grevistas.
Por outro lado, c na Amrica, estamos assistindo a esse grande
movimento no Mxico, de orientao francamente expropriadora e
libertria.
E na Frana, na Alemanha, na Espanha, em Portugal, como nos Estados
Unidos e na Argentina, h todo um fervilhar contnuo e progressivo, e de
cuja significao revolucionria ningum de boa f poder duvidar. A
poca caracteriza perfeitamente as vsperas duma grande revoluo.
Ora, o trabalhador do Brasil no pode conservar-se indiferente a esse
estado de coisas. Efetivamente, sente-se a necessidade de agir.
369
Claro est que a divulgao dessas notcias, alm de cumprir uma funo
importante na construo da identidade de classe e na divulgao das estratgias e
valores anarquistas, tambm pode ser interpretada, por si s, como solidariedade
moral, mas os libertrios do Brasil tinham conscincia de que s isso no bastava. Era
preciso estabelecer vnculos estreitos com o movimento internacional de trabalhadores
368
Por exemplo: TORRESO, Baslio. Pela desordem! A Plebe, So Paulo, ano I, n. 1, 9 jun. 1917, p. 2;
A. de P. Contra-revoluo alem..., op. cit.
369
O momento operrio O que se tem feito, o que se faz e o que h a fazer Uma enqute da
Guerra. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 19, 3 abr. 1912, p 1.
218
para inserir os movimentos anarquistas e sindicalistas brasileiros em uma rede de
solidariedade internacional.
E, de fato, os anarquistas trataram de procurar executar atos em solidariedade
internacional. Mas obter o respaldo do conjunto dos trabalhadores no era uma tarefa
fcil e por isso as iniciativas concretas no so muitas. Dentre as fontes consultadas,
restritas s publicaes do centro do pas (Rio de Janeiro e So Paulo), foram
encontradas prticas de solidariedade voltadas para os seguintes pases: Argentina,
Portugal, Espanha, Itlia e Estados Unidos. Exortaes vagas solidariedade
internacional e denncias contra os abusos praticados pelos aparelhos repressivos de
Estado ou ameaas estrangeiras tiveram uma considervel recorrncia e
acompanhamento pelos anarquistas para a Inglaterra, Frana, Alemanha, Rssia e
Hungria, sendo que estes dois ltimos passaram a ganhar especial ateno quando da
situao revolucionria pela qual passaram aps o trmino da I Guerra Mundial. Por
fim, existe uma srie de registros isolados ou pouco freqentes de notcias de situaes
de diversos pases, tais como Chile, Paraguai, Cuba, Panam, Noruega, Bsnia, frica
do Sul, Holanda, Sua, entre outros. Sobre o Uruguai escassa a publicao de
notcias sobre greves e outras formas de mobilizao operria, mas h indcios de uma
constante correspondncia entre militantes brasileiros e uruguaios, dentre as quais
sobre a necessidade da integrao operria sul-americana, muito por conta da
proximidade geogrfica e da circulao de militantes entre o Brasil e os pases do
Prata
370
.
Porm, uma srie de dificuldades se colocava para tais realizaes. Como fazer o
proletariado urbano brasileiro agir em solidariedade com o proletariado de outros
pases se a estrutura econmica e de poder j dificultava a coeso dos trabalhadores do
Brasil na luta dos seus prprios interesses imediatos?
Para que o proletariado brasileiro agisse de acordo com o movimento universal,
as notcias deveriam produzir a sensao de que todos os trabalhadores do mundo,
todos os que viviam sob o jugo de qualquer forma de opresso eram companheiros de
sofrimento e deveriam, necessariamente, solidarizar-se para promover uma ao
revolucionariamente redentora de toda a humanidade.
370
P. ex.: SUAREZ, J. M. Para a Federao Anarquista. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio
de Janeiro, ano II, n. 27, 14 set. 1912, p. 1.
219
Portanto, como exerccio permanente desta pedagogia, os anarquistas passaram
a fomentar aes prticas de solidariedade internacional que rompessem os limites do
discurso. Manifestar solidariedade internacional e divulgar as aes da solidariedade
de trabalhadores de outros pases serviam de estmulo e lio aos trabalhadores do
Brasil quanto necessidade de serem solidrios entre si, ao mesmo tempo em que
alertava para os limites da ao coletiva de cunho corporativo e imediatista.
AES DE SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL
Em um contexto perifrico da economia mundial, cuja base econmica era
eminentemente agrria, assentada no latifndio e na monocultura de exportao, os
militantes anarquistas enfrentaram enormes dificuldades para difundir seu ideal entre
os trabalhadores do Brasil e para fazer os movimentos sindical e anarquista de todo o
mundo (ou mais especificamente do hemisfrio Norte Ocidental) reconhecerem os
esforos empreendidos neste pas.
As tentativas de criao de vnculos mais estreitos por parte da militncia
brasileira se deram com o movimento anarquista sindicalista argentino. Em uma das
suas primeiras iniciativas, quando comeou a funcionar de fato, dois anos depois de
sua fundao, a Confederao Operria Brasileira (C.O.B.) dirigiu uma circular a
diversos agrupamentos da Argentina e de diversas repblicas americanas para que se
preparassem mobilizaes antimilitaristas para o prximo dia 1 de dezembro
371
.
Segundo rumores que circulavam naqueles anos, ocasionados pela compra de
encouraados de guerra pela Marinha brasileira, estaria para eclodir, a qualquer
momento, um conflito entre o Brasil e a Argentina, que se alastraria por outros pases
da Amrica
372
. A proposta de combate da C.O.B. era que fosse declarada uma greve
geral em todos os ofcios e profisses manuais e intelectuais, pblicos ou privados, no
somente nos pases beligerantes como tambm nas outras naes do continente. A
circular teria sido bem recebida e acatada por associaes dos pases do Prata, como a
Federacin Regional Obrera Argentina (F.O.R.A.), a Unin General de los
Trabajadores da Argentina (U.G.T.A.), a Federacin Obrera del Uruguay (F.O.U.) e
371
Pela paz dos povos Guerra guerra! Projeto da Confederao Ao proletariado brasileiro. A Voz
do Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, 1 jul.
1908, p. 1.
372
Na verdade, os rumores de eventuais guerras no passavam de especulaes nos argumentos
utilizados pelos que defendiam a modernizao das foras armadas brasileiras.
220
pelo jornal portenho antimilitarista Luz al Soldado, que enviaram comunicaes
entidade brasileira.
No entanto, no h registro na imprensa operria brasileira de que manifestaes
tenham ocorrido fora do territrio brasileiro, a no ser uma moo de apoio enviada de
Buenos Aires pela U.G.T.A. No Brasil, os organizadores avaliaram que a manifestao
atingiu um sucesso relativo. Apesar da adeso de doze sindicatos do Rio de Janeiro,
no h indcios de que os trabalhadores tenham paralisado suas atividades de trabalho
durante esse dia de tera-feira. De acordo com os organizadores, compareceram ao
apelo 5.000 pessoas, um nmero no desprezvel de participantes em atos pblicos
polticos no Brasil daqueles anos. A posio oficial da C.O.B. foi que, apesar da
indiferena da imprensa e do povo em geral
373
e da falta de recursos pecunirios,
para uma primeira iniciativa, o ato foi uma demonstrao de que o futuro da
mobilizao operria era promissor, e atestava o triunfo da Confederao.
Este evento, como experincia inicial, revela alguns elementos interessantes para
se pensar a mobilizao operria e a propaganda anarquista naqueles anos.
Primeiramente, no que diz respeito s dificuldades de mobilizao da classe
trabalhadora. Se, por um lado, havia manifestaes populares espontneas, contrrias
ao sorteio militar que selecionaria os que deveriam servir s foras armadas, que eram
recebidas com nimo pelos sindicalistas
374
, a guerra no era uma preocupao latente,
uma vez que no se apresentava como um problema concreto para os trabalhadores do
Brasil, que, mesmo sendo os mais diretamente atingidos caso eclodisse uma guerra
375
,
373
Pela paz dos povos Guerra guerra! A manifestao do dia 1 de Dezembro 5.000
manifestantes O triunfo da Confederao. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao
Operria Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 7, 6 dez. 1908, p. 1. A manifestao contou ainda com
algum apoio de outros grupos e indivduos no ligados diretamente ao movimento operrio (tais como
o Apostolado Positivista do Rio de Janeiro, o Centro Republicano Conservador de Niteri, a Loja
Manica Fratellanza Universale de So Paulo) Sobre a indiferena da imprensa, da recusa de outros
antimilitaristas em tomar parte na manifestao da C.O.B., ver ainda a nota IVAN. Ecos. A Voz do
Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 7, 6 dez. 1908,
p. 1.
374
Por exemplo, a invaso de escritrios e a destruio de documentos, praticadas por mulheres para
evitar o sorteio militar de seus filhos e maridos, no interior do estado da Bahia, e outras manifestaes
pelo pas. Bravo! Bravo! Reao contra o sorteio. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao
Operria Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 5, 22 nov. 1908, p. 1; O Sorteio Militar. Mulheres
revoltadas Assassinatos Cidade abandonada Suicdios Famlias que emigram Ataques s
juntas Comcios Protestos, etc. etc. No Matars! rgo da Liga Antimilitarista Brasileira. Rio
de Janeiro, ano I, n. 3, dez. 1908, p. 3-4; A morte do sorteio. No matars.., op. cit., p. 3; JAGUNO.
No caminho da vitria. No Matars..., op. cit. p. 1-2.
375
Alm dos efeitos da Guerra recarem com maior ferocidade sobre as classes trabalhadoras, a
modernizao das foras armadas brasileiras previa o servio militar obrigatrio. Os submetidos ao
sorteio militar, no entanto, seriam quase que exclusivamente provenientes das classes trabalhadoras,
221
no dizia respeito promoo de melhorias imediatas, como aumento salarial ou
reduo da jornada de trabalho.
Para os anarquistas sindicalistas, era preciso atuar em duas frentes,
simultaneamente, para poder fazer da luta sindical um instrumento revolucionrio. A
luta atravs dos sindicatos poltica e religiosamente neutros precisava vir acompanhada
da solidariedade internacional. Desta maneira, esperava-se fazer um trabalho de
educao revolucionria que rompesse tanto com as amarras do corporativismo
sindical, como com os valores dominantes que se difundiam pelo proletariado, tais
como o esboo de um sentimento nacional nascente. Enquanto, por exemplo, alguns
grupos, como a Liga Nacionalista, promoviam campanhas pela valorizao do
sentimento de nacionalidade, que passava pela valorizao de instituies como as
foras armadas, os libertrios, para contrapor-se e estabelecer uma conscincia
revolucionria, se debatiam pela valorizao das prticas internacionalistas,
procurando estabelecer laos de solidariedade exatamente com trabalhadores de pases
que eram vistos pelos nacionalistas como potenciais inimigos naturais.
O antimilitarismo seria alvo de novas manifestaes, com campanhas que
poderiam abranger um maior pblico nos anos prximos guerra. Desde 1913, a
C.O.B. tratou de fazer novos apelos dentro e fora do pas para aes conjuntas contra a
guerra que se anunciava na Europa. Alm do combate ao militarismo ser um elemento
fundamental do iderio anarquista, era tambm uma oportunidade de se propagar uma
campanha com um potencial apelo popular, que poderia atingir propores
considerveis. Ainda que no se tenha encontrado indcios da explorao de algum
senso patritico dos trabalhadores imigrantes, de se considerar que uma campanha
antimilitarista pudesse sensibiliz-los para o fato da guerra produzir efeitos desastrosos
em seus pases de origem. De todo modo, em seu material de propaganda
responsabilizava-se sempre o capitalismo e a burguesia vida por lucros pelo conflito.
Denunciando o imperialismo yankee sobre o continente americano, anunciavam a
submisso do governo brasileiro s presses dos Estados Unidos para que entrasse na
conflagrao contra a Alemanha. No entanto, essas campanhas lhes valeram a
acusao de serem germanfilos, o que os obrigou, por diversas vezes, a esclarecer que
uma vez que os filhos dos setores mdios e altos podiam ser dispensados desta obrigatoriedade se
comprovassem terem tido algum vnculo com clubes de tiro. Sobre o carter classista do servio
militar obrigatrio no incio do sculo XX, ver HAHNER, June Edith. Pobreza e poltica: os pobres
urbanos no Brasil 1870-1920. Braslia: Editora da UnB, 1993, p. 298-301.
222
combatiam a guerra em si (fruto do capitalismo e seu carter expansionista) e os
princpios de nacionalidade que separavam e vitimizavam os trabalhadores de todo o
mundo (incluindo os alemes)
376
. Em sua defesa, declararam que aceitariam pegar em
armas em defesa de uma ptria dos trabalhadores, se ela existisse, no as ptrias de
burgueses, clrigos e militares que estavam em conflito:
No podemos levantar-nos em defesa de uma ptria
que no temos. Mas no dia em que, num recanto qualquer do
globo, aqui ou alm, existir uma ptria que seja de todos, e de
todos as riquezas l existentes, uma ptria regida pela
solidariedade e pela justia, onde no seja possvel a
coexistncia dos que trabalham e morrem mngua e dos que
se locupletam sem nada fazer, nesse dia e nesse lugar do globo
ns, os anarquistas, teremos tambm a nossa ptria pela qual
saberemos lutar e saberemos morrer. E se a fortuna quiser que
esse ponto da terra, esse rinco precioso seja o Brasil, ser
nesse dia o Brasil a nossa ptria e por ele ardentemente nos
bateremos.
377
Mas a campanha contra a guerra no se reduziu apenas a aes entre os
brasileiros, e os anarquistas tentaram realizar no Brasil uma srie de iniciativas para
uma ao conjunta antimilitarista de organizaes de todo o mundo. Diante dos
impedimentos gerados pelo conflito e das presses internacionais que resultaram na
no realizao do Congresso Anarquista de Londres e do Congresso Internacional pela
Paz, de Ferrol, na Espanha, programados, respectivamente, para agosto de 1914 e abril
de 1915, os libertrios brasileiros lanaram uma convocatria para um Congresso
Anarquista Sul-Americano
378
e, atravs da C.O.B
379
., para um Congresso Internacional
da Paz. Ambos os Congressos se realizaram no Rio de Janeiro, em outubro de 1915,
recebendo a resposta de associaes de diversos pases e contando com a presena de
representantes da Argentina, Uruguai e Portugal
380
. Neles se debateu novamente a
necessidade de serem estabelecidas estratgias comuns, dentre as quais a criao de
uma Confederao Operria Sul-Americana, que no se concretizaria.
376
A Aliana Anarquista ao Povo. A interveno do Brasil na guerra. A Plebe, So Paulo, ano I, n. 3,
23 jun. 1917, p. 4.
377
Idem, ibidem.
378
Congresso Anarquista Sul-Americano. A Vida Publicao mensal anarquista. Rio de Janeiro, ano I,
n. 7, 31 maio 1915, p. 97 e 111.
379
VIEYTES, Antonio e PEREIRA, Astrojildo. Pela Paz! Aos socialistas, sindicalistas, anarquistas e
organizaes operrias de todo o mundo. Na Barricada Jornal de combate e de crtica social. Rio
de Janeiro, ano I, n. 12, 26 ago. 1915, p. 3; Idem, A Luz, New Bedford, ano II, n. 33, 18 set. 1915, p.
1-2.
380
Para relatos sobre os dois congressos, ver a seqncia de notcias publicadas no jornal carioca Na
Barricada, a partir do seu nmero 19, de 14 de outubro de 1915.
223
Antes disso, desde 1908, pelo menos, os militantes do Brasil e dos pases do
Prata sentiam uma necessidade premente de que se estabelecessem relaes efetivas de
solidariedade e de ao
381
, a fim de estimular a revoluo e se contrapor
arregimentao de krumiros
382
e s relaes existentes entre as polcias dos pases
vizinhos
383
. Alm de estabelecer estratgias nicas de ao nas mobilizaes operrias,
a criao de associaes comuns poderia tambm facilitar o envio de delegados nicos
a eventos no hemisfrio norte, o que, por sua vez, poderia gerar novas formas de
integrao da militncia desses pases na militncia internacional
384
. Mas na maioria
dos casos, as intenes foram frustradas pela represso que se abateu em alguns dos
pases envolvidos, ou por outros fatores operacionais, como momentos de baixa
mobilizao ou dificuldades de obter recursos pecunirios.
Porm, se a to esperada Confederao Operria Sul-Americana no se efetuou,
por outro lado concretizaram-se uma srie de atividades de solidariedade, pelo menos
por parte do Brasil em relao Argentina, como aponta a anlise da documentao
brasileira produzida no centro do pas.
Manifestaes de protesto, tais como comcios e moes de solidariedade aos
militantes e de desagravo s autoridades argentinas, foram freqentes durante o
perodo, principalmente entre os anos de 1911 a 1914, quando uma onda de reao
repressiva do governo argentino perseguiu militantes, empastelou La Protesta e fechou
a F.O.R.A. Realizaram-se comcios de protesto, subscries para arrecadar fundos e
ainda campanhas para evitar a ida de imigrantes europeus que pretendiam se dirigir
para a Argentina
385
. J indcios de realizao de atividades comuns ou de
solidariedade, como greves alm-fronteiras e boicotes a empresas dos pases vizinhos,
no foram encontrados
386
.
381
O Congresso Operrio Sul-Americano. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria
Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 4, 15 ago. 1908, p. 1.
382
Por exemplo: Argentina. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira, Rio
de Janeiro, ano I, n. 9, 17 abr. 1909, p. 3; Crnica operria Uma greve. A Guerra Social Peridico
Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 30, 5 out. 1912, p. 3.
383
REINOSO, E. Ces que visitam o Brasil. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro,
ano I, n. 17, 20 mar. 1912, p 1.
384
Uma enqute da G.S. O Momento Operrio O que se tem feito, o que se faz e o que h a fazer.
A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 26, 4 set. 1912, p. 1-2.
385
Aos homens livres de todo o mundo..., op. cit..
386
Pelo menos para este perodo das duas primeiras dcadas do sculo XX e envolvendo o movimento
operrio do centro do Brasil. J para outros perodos e outras regies, principalmente no sul, sim. Ver,
por exemplo, Boicote Firma Padilla. O Syndicalista, Porto Alegre, ano VI, n. 1, 1 Fev. 1924, p. 5.
224
Mas mesmo com as dificuldades, os militantes brasileiros no se limitaram a
tentar estabelecer laos de solidariedade apenas com os trabalhadores dos pases
vizinhos do sul. Os movimentos operrios da Europa e dos Estados Unidos receberam
o apoio dos anarquistas do Brasil.
Entre os casos de manifestaes de solidariedade encabeadas pelos anarquistas
do Brasil, encontram-se os atos de solidariedade contra a priso dos militantes da
Industrial Workers of the World (I.W.W.), Ettor e Giovannitti nos Estados Unidos.
Fizeram-se moes de protesto e repdio encaminhadas ao presidente estadunidense e
ao seu embaixador no Brasil
387
. Os dois acusados de assassinar uma operria durante
um conflito entre grevistas e a polcia receberam atencioso acompanhamento da
imprensa anarquista, sendo um importante antecedente para as manifestaes em favor
de Sacco e Vanzetti, que tambm tiveram grande repercusso no Brasil nos anos 1920.
H ainda moes encaminhadas aos governos da Espanha, de Portugal e da
Itlia, contra as arbitrariedades cometidas contra o movimento operrio desses pases.
Alm disso, organizaram-se listas de subscrio para arrecadar fundos para o
pagamento dos custos da defesa de militantes, como foi na ocasio da priso de
Malatesta na Inglaterra, quando 20 pessoas e grupos contriburam num montante de
140$200 ris
388
. Com a militncia desses pases peninsulares, principalmente Portugal,
estabeleceram-se estreitas relaes devido circulao de militantes originrios dali
que emigraram para o Brasil.
E houve momentos em que se imps a necessidade de receber a solidariedade
dos trabalhadores de outros pases. No final de 1912, foi revista a lei de expulso de
estrangeiros. A partir de ento, tornavam-se mais duras as regras para permanncia dos
estrangeiros no Brasil e mais fceis os procedimentos para expuls-los. Os anarquistas
e sindicalistas trataram de promover uma intensa campanha na Europa contra a
imigrao para o Brasil, a fim de fazer presso pela revogao da lei. Um representante
387
O caso Ettor-Giovannitti Comcios para domingo. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de
Janeiro, ano II, n. 23, 14 ago. 1912, p. 2; MYER. Crnica Internacional. A Guerra Social Peridico
Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 23, 14 ago. 1912, p. 3; O caso Ettor-Giovannitti Abaixo a pena
de morte! Os protestos O comcio na Federao Operria Manifesto dos Jovens Libertrios. A
Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 24, 21 ago. 1912, p. 2; O caso Ettor-
Giovannitti Contra a pena de morte! A agitao em S. Paulo e em Santos. A Guerra Social
Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 25, 28 ago. 1912, p. 1-2; O caso Ettor-Giovannitti
Ecos da agitao. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 26, 4 set. 1912,
p. 2; Crnica operria. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira, Rio de
Janeiro, ano VI, n. 23, 15 jan. 1913, p. 1.
388
Subscrio pr-Malatesta. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 29, 28
set. 1912, p. 3.
225
da Confederao Operria Brasileira tratou de percorrer Portugal e Espanha a
denunciar os abusos do Estado brasileiro, e, ao que tudo indica, obteve entusistico
apoio dos companheiros militantes desses e de outros pases, como a Frana e a Itlia,
que iniciaram campanha de difamao da imagem do Brasil como pas livre e bem
receptivo imigrao
389
.
importante notar que, mesmo nos escritos em lngua estrangeira destinados a
determinada comunidade de emigrados, no se exortava solidariedade dos
trabalhadores de outros pases com apelos patriticos ou nacionalistas. Por exemplo,
nunca houve um nico apelo dirigido aos espanhis para solidarizar-se contra os
abusos que seus conterrneos sofriam nas mos da monarquia jesutica, nem aos
portugueses diante da reao monrquica ou republicana, nem aos italianos pelas
prises arbitrrias seja na Itlia, na Argentina ou nos Estados Unidos. Ao contrrio, os
jornais libertrios condenavam os outros jornais destinados s colnias imigrantes por
fazerem isso, pois sempre se frisou a necessidade de superar as fronteiras e os
preconceitos gerados pelas noes de nao e de raa. E por isso, na imprensa
libertria, em todos os casos, sem exceo, o apelo era dirigido classe trabalhadora,
sem se dirigir a nenhuma nacionalidade especfica contra os abusos praticados pela
classe dominante e pelo Estado, seja qual fosse o pas.
ETNOCENTRISMO E DARWINISMO SOCIAL NA FORMAO DA CLASSE
OPERRIA DO BRASIL
Observe-se que quase todas as manifestaes de solidariedade relatadas at aqui
se reportavam solidariedade com pases cuja cultura dominante era de matriz
eurocntrica (mesmo nos casos dos EUA e da Argentina). E, como cultura imperialista,
entendia que o controle da natureza atravs do desenvolvimento de maquinrios
industriais, das cincias e das artes de moldes europeus eram superiores aos
tradicionais mtodos de outras culturas, dividindo, assim, o mundo entre civilizados
e brbaros a serem civilizados. Como se sabe, a justificativa para a hierarquizao de
culturas e de grau de desenvolvimento tecnolgico possua um forte vis racialista.
389
Ver a srie intitulada No pas da liberdade... Em torno de uma monstruosidade, publicada nas
seguintes edies de A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira, Rio de
Janeiro, ano I, n. 8, 13 jan. 1909, p. 4; ano VI, n. 22, 1 jan. 1913, p. 1; n. 23, 15 jan. 1913, p. 1; n. 24,
2 fev. 1913, p. 1; n. 25, 15 fev. 1913, p. 1-2; n. 26, 1 mar. 1913, p. 1; n. 27, 15 mar. 1913, p. 3; n. 28,
1 abr. 1913, p. 2; n. 31, 15 maio 1913, p. 3; n. 32, 1 jun. 1913, p. 2.
226
Esta nova cosmogonia imperialista construiu seu respaldo sob um cientificismo
que naturalizava a histria das sociedades humanas, projetando-a a partir das
descobertas de Darwin sobre as transformaes das espcies animais e vegetais,
sofridas ao longo do tempo. Era a cincia moderna, expresso mxima da capacidade
racional do homem, e, portanto, prova de sua superioridade sobre as demais espcies, a
explicar tambm as diferenas biolgicas e culturais entre seres humanos, e a
hierarquizao social entre indivduos, classes, raas e naes
390
. A seleo natural no
poupava as espcies que no desenvolviam habilidades para superar os obstculos
impostos implacavelmente pela natureza. O mundo tornava-se o habitat dos
considerados mais aptos e fortes. O estgio de desenvolvimento tecnolgico alcanado
aps a Revoluo Industrial era o pice deste processo, e, ao contrrio das outras
espcies animais, as outras raas de seres humanos, cultural e biologicamente
inferiores, poderiam ser salvas da extino, desde que fossem submetidas a um
processo civilizatrio dirigido por aqueles que haviam desenvolvido as mais
aprimoradas capacidades intelectuais, como demonstrava sua complexa tecnologia em
constante e acelerada mutao progressiva.
Essa ideologia racialista, tal qual em outros pases da Amrica Latina, teve forte
impacto tambm no Brasil, desde pelo menos a dcada de 1870, e serviu como
justificativa legitimadora para a poltica de imigrao subsidiada no processo de
transio definitiva do trabalho escravizado para o dito trabalho livre, especialmente
nas reas de produo para exportao de caf, o que aumentou consideravelmente o
contingente de reserva de trabalhadores, permitindo que a acumulao de capital se
mantivesse por demais concentrada. Argumentava-se que a populao brasileira seria
beneficiada atravs da miscigenao com o elemento branco dos europeus que
aportariam por aqui
391
. Segundo este ponto de vista, atravs da gentica e da
transmisso de tradies que valorizavam o trabalho ao invs do cio, a populao
brasileira, composta por forte presena de elementos de raas primitivas
acostumadas ao cio e a supersties tolas, passaria por um processo de elevao
390
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital (1848-1875). So Paulo: 5.ed., Paz e Terra, 1997, p. 349-382.
391
Entre os muitos trabalhos que tratam da ideologia da imigrao/miscigenao, destacam-se:
SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1976; SCHWARCZ, Lilia M. O espetculo das raas: cientistas, instituies e
questo racial no Brasil (1870-1930). So Paulo: Cia. das Letras, 1993; NAXARA, Mrcia R. C.
Estrangeiro em sua prpria terra: representaes do brasileiro (1870-1920). So Paulo: Annablume;
Fapesp, 1998.
227
moral, que integraria, enfim, o Brasil ao ritmo do progresso e da civilizao, fim
natural de toda a humanidade.
Com variaes mais ou menos importantes, o cientificismo e o darwinismo
social, em voga no mundo dito civilizado, tiveram ressonncia na classe dominante
brasileira nesse perodo de incertezas gerado pelas mudanas cruciais em torno do
emprego da mo-de-obra e da substituio do regime poltico. Positivistas, liberais e
conservadores procuravam suporte na cincia para manter subalternas as massas de
trabalhadores que antes eram controladas pela violncia do chicote e pela reificao do
homem. Este cientificismo racialista procurava justificar a conservao das hierarquias
sociais e polticas agora sem as carapuas dos ttulos nobilirquicos e dos ttulos de
propriedade de gente. Ao mesmo tempo em que se branquearia a populao, tornando-
a mais apta para cumprir o natural destino humano de civilizar-se, conservar-se-ia a
hierarquia baseada na propriedade como prmio legtimo dos mais fortes.
importante assinalar que essa ideologia imperialista desenvolveu-se em um
perodo conturbado de definio de fronteiras polticas e acabou por servir tambm de
justificativa de identidades nacionais e luta por independncias polticas e formao de
Estados-Nao. Os Estados-Nao nada mais seriam do que expresses polticas que
garantiam a existncia de comunidades formadas por seres humanos que no apenas
compartilhavam tradies culturais, mas que tambm possuam uma ancestralidade
gentica comum. Da as noes de raa e nacionalidade ou ptria serem tomadas
freqentemente como sinnimos.
Diante desse quadro ideolgico, os anarquistas, em seu material de propaganda,
debatiam-se por denunciar que as clivagens de raa/origem nacional entre os
trabalhadores serviam apenas para mant-los desunidos e explorados. Como foi visto
at aqui, fez-se grande esforo para produzir a sensao de que a classe trabalhadora
era internacional, e era urgente e necessrio que se estabelecessem laos de
solidariedade supranacionais para combater o capitalismo e o mal comum. Isto seria de
suma importncia no apenas para criar laos entre os movimentos operrio e
anarquista brasileiros, mas para estabelecer a coeso entre os trabalhadores de diversas
origens nacionais/raciais que existiam no Brasil, ou seja, criar a prpria identidade de
classe no Brasil. Mas o discurso e os esforos para criar a identidade internacionalista
podem escamotear a percepo dos conflitos raciais entre negros e brancos, numa
sociedade diversificada e racista como a brasileira.
228
Passemos agora a observar mais de perto a percepo que os anarquistas tinham
da existncia da linha da cor, que dividia a populao brasileira entre negros e brancos.
A FRICA NA IMPRENSA ANARQUISTA BRASILEIRA
Durante a expanso colonialista das potncias imperialistas, de todos os
territrios, frica cabia a reputao de ser a mais primitiva e selvagem das regies de
todo o mundo. Era, enfim, o maior smbolo do atraso a ser resgatado pela
civilizao, e, conseqentemente, o maior smbolo de anticivilizao.
Os anarquistas, por sua vez, condenavam veementemente a expanso
imperialista. Diferentemente das formas de solidariedade que tentavam estabelecer
com o proletariado da Europa, dos Estados Unidos e da Amrica do Sul, os militantes
anarquistas tinham bvias dificuldades em estabelecer laos de solidariedade concreta
com o que se passava nas regies colonizadas. Em diversas oportunidades, em meio a
textos de carter variado (doutrinrios, noticiosos, literrios, etc.), remetia-se a
denncias de acontecimentos recentes que se passaram na frica, na sia e no Oriente
Mdio, relacionadas aos abusos militares das potncias europias. Mas, dadas as
dificuldades de acesso informao, seu carter era fragmentado e genrico, via de
regra intermediado pelas notas da imprensa internacional, em total contraste com o
maior detalhismo que compunha as notcias internacionais referentes ao Norte
Ocidental.
Ainda assim, em alguns casos se encontrava alguma notcia especfica em torno
de acontecimentos dessas regies. Por exemplo, encontrou-se um artigo de 1921
tratando especificamente do Oriente Mdio, escrito da cidade paulista de Rio Preto ao
jornal A Plebe
392
por M. Hidaib, provavelmente um srio-lbans ou descendente dos
muitos que aqui chegaram na virada do sculo XIX. O texto baseava-se na reproduo
de um manifesto do recm fundado Partido Operrio Comunista da Palestina,
publicado no jornal Al-Afcar, destinado comunidade sria em So Paulo. Neste texto
se conclamava a unio dos trabalhadores de todas as religies contra o capitalismo e se
relatava os conflitos verificados entre comunistas e nacionalistas na primeira
comemorao do 1 de Maio na cidade de Jaffa. O otimismo de que um movimento
392
HIDAIB, M. O comunismo na Palestina. A Plebe, So Paulo, ano V, n. 124, 30 jul. 1921, p. 3.
229
revolucionrio nascia no Oriente Mdio para contribuir com o grande levante universal
tornou-se a tnica do artigo:
Estes acontecimentos desenrolados na Palestina
enchem-nos de esperanas, porquanto por eles percebemos
que os povos do oriente vo marchando para a conquista da
sociedade futura.
Tanto na Palestina, como na Sria, tanto na
Mesopotmia, como na Arbia, j se no contentam com a
independncia nacional, cheios que esto das embusteirices
filantrpicas do papa, por isso que j viram claramente que de
nada lhes valem as ligas das naes e os discursos
bestialgicos de Lloyd George.
Esto convencidos de que to somente o povo, por si s,
que pode conquistar o bem-estar geral.
E o povo da Palestina, pela primeira vez, comemora o
1 de Maio e canta A Internacional.
Pela primeira vez o povo da Palestina se encontra
unido, coeso e forte, lutando pela redeno da
humanidade.
393
Das poucas notas frica, baseadas em notcias e telegramas publicados na
grande imprensa, existem algumas sobre um movimento grevista de trabalhadores
hindus empregados na construo de estradas de ferro na frica do Sul
394
. Fora isso,
como foi dito, tudo o que os anarquistas tinham eram referncias genricas sobre as
barbries cometidas contra as populaes indgenas africanas e asiticas, na violenta
partilha colonialista. As notas sobre frica e sia assumiam ento um carter de
denncias contra o capitalismo e a hipocrisia do que seriam os falsos valores de
civilizao que eles carregavam. Diante das dificuldades de informaes, de
comunicao e de atuao para com as populaes africanas e asiticas submetidas ao
controle imperialista, pode-se pensar que a forma de solidariedade encontrada foi a
inverso do discurso civilizatrio dos europeus. Contudo, a construo de um discurso
contra-hegemnico se deu a partir dos elementos hegemnicos.
A edio especial de uma pgina de A Plebe, datada de 15 de setembro de 1917,
trazia como manchete principal No Reino da Senegambia. Por ter tido sua sede
invadida e seu equipamento empastelado pela polcia de So Paulo, a folha s pde ser
393
Ibidem, idem.
394
Pela frica do Sul. A Voz do Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira, Rio de
Janeiro, ano VI, n. 35, 15 jul. 1913, p. 3; Movimento Internacional Unio Sul Africana. A Voz do
Trabalhador rgo da Confederao Operria Brasileira, Rio de Janeiro, ano VI, n. 44, 1 dez.
1913, p. 3 (na nota seguinte ndia, relata-se sobre os protestos realizados na ndia em solidariedade
aos sul-africanos)
230
impressa graas solidariedade dos redatores do peridico O Combate. Para denunciar
a abusiva perseguio revanchista da polcia paulista aos militantes e operrios por
causa da greve de julho, os redatores se valeram de ironia agressiva e procuraram
desconstruir a idia de que o Brasil era um pas civilizado, como afirmava o discurso
oficial. A ao da polcia brasileira era a ao da polcia de um pas selvagem,
primitivo, violento, de mtodos rudimentares. Um pas de escuros e de escuras
leis, como a Libria e a Senegambia:
Engana-se quem supuser que este suplemento dA
PLEBE est sendo escrito em S. Paulo, capital do Estado do
mesmo nome, Repblica dos Estados Unidos do Brasil.
Engana-se redondamente, deploravelmente. No. A PLEBE
est sendo escrita na Senegambia, vasta regio de pretos no
continente preto. No poderamos escrever este suplemento em
So Paulo, nem noutra qualquer cidade brasileira, porque S.
Paulo um rico e poderoso centro de civilizao e o Brasil
inteiro um pas de nobres e antigas tradies de liberalismo.
S na Senegambia era possvel escrevermos o suplemento do
nosso jornal, porque s neste pas escuro de escuras leis,
poderiam ocorrer os fatos que acabam de se produzir e que
determinam a publicao dA PLEBE suplemento e no dA
PLEBE jornal. A PLEBE jornal no existe desde ontem. No
existe porque a polcia da Senegambia invadiu a tipografia
onde era impressa, substituindo dali todos os originais.
Eis porque afirmamos que o nosso suplemento no
escrito em So Paulo, nem em nenhum outro ponto do Brasil.
Esta repblica no a da Libria, no uma repblica de
negros, de selvagens de tanga e de usos e leis rudimentares.
um vasto pas de muitos milhes de habitantes, seres
civilizados, generosos e livres, com uma constituio liberal,
com um corpo de leis escritas, com tribunais, com
parlamentos.
Todas estas instituies traduzem a civilizao dos
sculos, representam um estdio na evoluo, uma fase na vida
social dos homens. Por isto o Brasil se chama um povo culto,
por isto ele reclama essa prerrogativa, por isto ele se equipara
s demais naes que o so. Numa coisa, porm, o Brasil no
o que so os outros pases, e esta coisa a polcia. A polcia
no , nunca foi brasileira, a polcia da Senegambia, usa os
processos sinegambeses e so sinegambeses os seus
funcionrios. (...)
395
395
No Reino da Senegambia A Constituio republicana uma burla: - est em cena a herica polcia
de S. Paulo. Numerosas prises de operrios Assalto tipografia onde se imprime A Plebe e s
Ligas operrias Subtrao dos originais A priso do nosso diretor Edgard Leuenroth O Centro
Libertrio violentamente assaltado e todos os mveis e arquivo removidos para a Polcia Central
Espancamentos Outras proezas. O intuito da polcia e do governo. A Plebe, So Paulo, ano I,
suplemento, 15 set. 1917.
231
Cerca de um ms antes, as crticas polcia paulista, R. F. (que poderia ser,
provavelmente, ou Rodolfo Felipe, ou Roberto Feij), tomou a forma do deboche e da
ironia. E para xingar os policiais brasileiros de clowns, comparou-os s polcias de trs
considerveis pases:
De fato, a polcia do Brasil, entre as polcias do
mundo, , talvez, a mais irresistivelmente picaresca.
Picaresca nos tipos, picaresca nos processos, picaresca
nas idias. No conhecemos o instituto policial na Libria
(repblica de pretos na costa africana), nem do Haiti, nem do
Sio, mas acreditamos que a polcia destes considerveis
pases se parea, em muitos pontos, com a polcia do
Brasil.
396
A idia de que a polcia brasileira agiria como se fosse uma polcia de
sinegambeses, haitianos, sioneses e liberianos no implica dizer, contudo, que os
anarquistas fossem propriamente racistas. Textos como este tinham por objetivo atingir
diretamente os mais prezados valores da classe dominante brasileira e de suas
instituies, para mostrar como eles no eram naturais, tampouco os mais elevados. A
classe dominante brasileira reclama a prerrogativa de poder se equiparar s demais
naes civilizadas, mas, na verdade, o orgulho de suas instituies no correspondia
barbrie de seus atos. Neste sentido, a argumentao anarquista citada, apesar da
retrica agressiva e aparentemente racista, tinha por funo denunciar a falta de
liberdades fundamentais que garantiam o mnimo de civilidade. Ao contrrio, a
civilizao burguesa era mais selvagem, mais hipcrita e mais contraditria quando
contrastada com as culturas oprimidas ditas inferiores. Neste embate, a moral dos
civilizados era inferior dos selvagens, pois estes, apesar dos limites das
supersties, no eram arrogantes nem hipcritas, mas sim muito mais sinceros e
puros, como demonstra a reproduo comum de textos e comentrios como o abaixo,
de um bispo da ndia:
Veio a guerra e fez-nos retroceder, no j anos, mas
dezenas de anos. Grandes so os prejuzos morais causados
pela guerra. A converso dos pagos efetuava-se geralmente
em virtude de atos de caridade praticados por eles. Quando,
por exemplo, em tempo de peste viam os pagos que s os
missionrios catlicos deles cuidavam, ao passo que toda a
396
R. F. Comentrios de um plebeu. A Plebe, So Paulo, ano I, n. 9, 11 ago. 1917, p. 1. Apesar de no
dar maiores detalhes, o Sio citado provavelmente no deve ter relao com o Monte Sio e seu
templo salomnico, mas ao asitico Reino de Sio, que, em 1939, passaria a se chamar Tailndia.
232
gente os abandonava, ento, perante essa conduta dos
missionrios, abraavam a religio catlica.
Agora vem na guerra o contrrio do amor: vem como
as potncias europias, esses povos civilizados, se aniquilam
mutuamente e inventam continuamente novos e cruis artefatos
de guerra. Isto deve forosamente impressionar os pagos.
Quando, depois da guerra, retomarmos a tarefa, os
missionrios, certamente ouviremos: comeai por reformar-
vos a vs prprios, cristos; ns, pagos, somos melhores do
que vs sois.
DOERING, bispo de Poona (ndia).
397
Percebe-se que o recurso retrico a imagens negativas do senso comum sobre os
pases selvagens tinha por nica funo atingir o orgulho da classe dominante
brasileira de dizer-se pertencente raa branca, e para denunciar os abusos do
capitalismo global que, ao contrrio de civilizar, fundava-se na violncia extremada
para a subjugao de outros povos.
De outra parte, mesmo com as denncias contra o imperialismo e sua ideologia
racialista, outras fontes nos levam a questionar como o negro era visto pela militncia
anarquista brasileira.
RAAS E REVOLUO SOCIAL
A ecloso da Revoluo Mexicana chamou a ateno de todo o mundo,
especialmente dos libertrios, suscitando questes acerca da composio racial e do
potencial revolucionrio das massas. Entre 1911-1913, os anarquistas do Brasil
acompanhavam e divulgavam as seqncias de eventos que se desenrolavam no
Mxico, prestando solidariedade contra as perseguies sofridas pelos revolucionrios,
como na ocasio da priso de Figueroa, Rivera e dos irmos Magn, redatores de
Regeneracin, e das ameaas de interveno dos Estados Unidos
398
.
397
A Obra Semanrio de Cultura Popular, So Paulo, ano I, n. 7, 23 jun. 1920, p. [8]. Sobre o
confronto moral de culturas, tendo a religio como mote, ver tambm o texto literrio, sob forma de
dilogo entre um missionrio e um preto em: DESHUMBERT, M. Em um pas longnquo. A Plebe,
So Paulo, ano I, n. 10, 18 ago. 1917, p. 4.
398
Entre outras iniciativas, ver, por exemplo, o relato de Primitivo Raimundo Soares (Florentino de
Carvalho) sobre o comcio contra a represso na Argentina e em apoio Revoluo Mexicana,
realizado em 3 de maro de 1912 na cidade de Santos em: De Santos Grande protesto contra a
tirania do governo argentino e pr-revoluo social no Mxico Greve das classes da construo civil
Operrios feridos Lock-out Atitude do Centro Espanhol. A Guerra Social Peridico
Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 16, 13 mar. 1912, p 3; e arrecadao de fundos em Piracicaba
para o jornal Regeneracin: Revoluo mexicana. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de
Janeiro, ano II, n. 30, 5 out. 1912, p. 4.
233
A Revoluo Mexicana despertou, alm de admirao, certa surpresa nos
militantes libertrios do Brasil e do mundo. Isto porque a revoluo que acreditavam
ser expropriadora, ao contrrio do que se esperava, no ocorria em um pas
industrializado e no era encabeada por um grupo de uma guarda avanada
399
,
como acreditavam serem os prprios anarquistas, mas por primitivos, estes seres
rudes, incultos
400
. De toda forma, os libertrios do Brasil tinham a convico,
compartilhada por militantes de outras partes do mundo, de que se tratava de uma
Revoluo Comunista Anarquista
401
orquestrada pelos indgenas.
Em um texto traduzido por Paulo Jurema, de autoria do anarquista francs
Aristides Pratelle, originalmente publicado no semanrio parisiense Les Temps
Nouveaux, como resposta ao ceticismo dos redatores de El Socialista, procurava-se
apresentar as causas e origens da Revoluo Mexicana, considerada pelo autor como o
prlogo da revoluo social internacional que se anuncia. Para tanto, o autor
utilizou-se daquilo que chamou de psicologia tnica. Reportando-se histria de
resistncia dos toltecas e astecas ao domnio espanhol mesmo depois da conquista,
buscava-se fundamentos na antropologia fsica (o anglo facial do Asteca avizinha-se
muito ao do Europeu) e social. Parte das causas e origens da revoluo no Mxico
estava, ento, no instinto de liberdade da populao mexicana, da qual grande parte era
formada por ndios puro-sangue, herdeiros de uma tradio comunitarista de apoio
mtuo. E isto era to ou mais importante do que a iniciao na filosofia anarquista,
como se passava com os militantes civilizados
402
.
A solidariedade dos militantes anarquistas brasileiros Revoluo Mexicana foi
impulsionada no apenas por ser um levante popular, e como tal digno de
solidariedade, mas tambm pela convico de que se tratava de um movimento
expropriador conduzido por indgenas, que construa uma sociedade comunista-
anarquista. E o fato de parte desta convico se basear em argumentos de ordem
racialista, ainda que seja na reproduo de um nico artigo, nos instiga a pensar como
399
Aos anarquistas no Brasil. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 18, 27
mar. 1912, p 3.
400
A Revoluo Mexicana Escritores afirmam, como ns, que a Revoluo Mexicana constitui o mais
belo movimento expropriador conhecido at aqui. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de
Janeiro, ano I, n. 21, 24 abr. 1912, p. 1.
401
JUREMA, Paulo. A revoluo mexicana. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro,
ano II, n. 25, 28 ago. 1912, p. 2.
402
Causas e origens da Revoluo Mexicana O instinto da raa. A Guerra Social Peridico
Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 28, 21 set. 1912, p. 2.
234
os anarquistas percebiam a heterogeneidade racial do Brasil em relao ao seu projeto
revolucionrio.
A partir de 1912, quando j havia dois anos se acompanhava os avanos da
Revoluo Mexicana, foi formulada uma enqute no jornal A Guerra Social, do Rio de
Janeiro, para que os militantes pudessem dar sua opinio acerca de diversos assuntos
relacionados prtica e desafios a serem enfrentados pelos militantes. Uma das quatro
questes dizia respeito diretamente s causas da apatia que se nota, no momento
atual, no seio das classes trabalhadoras do Brasil para poder discutir como fazer
para o trabalhador brasileiro sair da indiferena em que se encontrava frente
efervescente agitao social que os anarquistas julgavam haver naquele momento na
Frana, Alemanha, Espanha, Portugal, Argentina, Estados Unidos e Mxico. Alguns,
como Edgard Leuenroth, se recusaram a admitir que o movimento operrio brasileiro
era ou estava aptico, contra-argumentando que a mobilizao, pouco a pouco, estava
crescendo. Mas, entre os que aceitavam falar em apatia, pelo menos sete dos treze
militantes que responderam enqute se referiram de algum modo s divises tnicas
ou raciais no Brasil como um dos fatores que dificultavam a organizao da ao
coletiva. Entre os dois extremos havia os que acreditavam que as divises de raa e de
classe eram entraves devido adeso dos trabalhadores a essas identidades, como no
caso de Ernesto Ferrari, de So Paulo, que atribua ao nacionalismo de cada um, ao
apego bandeira de raa, o obstculo que no permitia ao trabalhador ver que
deveria defender exclusivamente a bandeira da Internacional
403
. Em outro extremo,
havia os que julgavam haver caractersticas de carter dos trabalhadores do Brasil,
como, por exemplo, Jos Rodrigues, do Rio de Janeiro, que considerava a maior parte
dos imigrantes que se dirigiam ao Brasil como pertencentes massa mais ignorante e
retrgrada de toda a Europa. O argumento mais recorrente, entretanto era: os
trabalhadores nascidos no Brasil ainda estariam arraigados experincia da escravido,
acostumados ao conformismo e s benesses de benfeitores, no tinham muitas
tradies de luta, menos ainda de luta coletiva; os imigrantes europeus s pensam em
enriquecer e voltar para seus pases de origem, mesmo entre os que tinham participado
das fileiras de luta na Europa. Para piorar, a integrao entre os nascidos no Brasil e os
imigrantes no era completa.
403
Uma enqute da Guerra O Momento Operrio O que se tem feito, o que se faz e o que h a
fazer. A Guerra Social Peridico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 22, 1 maio 1912, p. 2.
235
Havia no Brasil, portanto, na viso de vrios entre os entrevistados, uma diviso
entre duas ordens de trabalhadores com caractersticas diferentes e comuns: de um
lado, os trabalhadores nacionais, de outro, os imigrantes. A interseco destes dois
seria o desinteresse completo pela ao coletiva.
Chama a ateno a viso de que os trabalhadores brasileiros nativos eram, por
terem experimentado a escravido, os mais propcios ao conformismo. Fora os que
tinham uma trajetria de luta em seus pases de origem, mas logo a abandonavam no
Brasil, os imigrantes que vieram para c eram os mais ignorantes e retrgrados, ao
contrrio dos que na Europa ficaram ou dos que se dirigiam aos Estados Unidos e
Argentina, onde participavam ativamente da mobilizao social. interessante notar
que, apesar de todos se encontrarem apticos no Brasil, os entrevistados, de forma
geral, fizeram a distino entre imigrantes e nativos, sendo que a impresso que se tem
da leitura que destes pouco se esperava, dada a condio de escravos a que estavam
submetidos por muito tempo, enquanto daqueles, esperava-se um potencial que, por
azar do destino ou por abandono da luta, no se concretizou no Brasil. De todo o
modo, a questo da origem nacional, qual se associava a questo racial (portanto, no
a cor da pele), parecia ser um forte entrave na constituio da classe trabalhadora.
Nas imprensas anarquista e sindicalista dirigidas por libertrios de So Paulo,
Santos e Rio de Janeiro, foram encontrados, poucos artigos que tratavam direta e
especificamente do 13 de Maio, apesar da relativa proximidade temporal de um fato
que transformaria em definitivo, pelo menos formalmente, o carter do trabalho no
Brasil.
Seria relativamente fcil de compreender a menor ateno dispensada ao 13 de
Maio do que ao 1 de Maio e, em muito menor medida, ao 13 de outubro, data da
execuo do pedagogo anarquista Francisco Ferrer y Guardia na masmorra de
Montjuich, na Espanha, no ano de 1909. Enquanto a data da abolio da escravido
havia sido formalmente proclamada pela princesa brasileira, nas outras duas datas
rememoravam-se militantes mortos por terem lutado pela liberdade de todos os
trabalhadores do mundo e da prpria humanidade.
A fora da imagem do martrio e a idia de que muito ainda deveria ser feito, de
certa forma, ofuscaram as remisses ao 13 de Maio, ao contrrio do que se passou, por
exemplo, com a Comuna de Paris. Pelo menos no material analisado, no se encontrou
nenhuma referncia a um ato simblico em comemorao abolio da escravido, ao
236
contrrio, por exemplo, das homenagens aos grandiosos feitos (vencidos pela reao)
nas ruas parisienses. Em 18 de maro de 1920, por exemplo, ocorreu no salo do
Centro Republicano Portugus, em sesso organizada pela Federao Operria de So
Paulo, uma boa noitada de propaganda em que se professou que seu sacrifcio
herico ser dentro em breve recompensado pela vitria da causa do holocausto na
qual sucumbiram aos milhares
404
.
Para efeitos de propaganda, essas datas teriam apelo simblico talvez mais direto
do que a rememorao do 13 de Maio. Ao contrrio desta data, os significados do 1
de Maio, do 18 de Maro e do 13 de Outubro no podiam ser apropriados pela classe
dominante, pelo menos at aquele momento. Eram datas de feitos de protagonistas
trabalhadores lutando em classe para toda a classe trabalhadora universal. A prpria
tarefa de divulgao dessas datas no Brasil foi obra dos trabalhadores militantes contra
a vontade do Estado, que, por diversas vezes, teria impedido manifestaes pblicas
em sua comemorao.
O 13 de Maio, por sua vez, ocorrido no Brasil antes do anarquismo ter chegado e
se difundido, desde 1888 adquiriu um carter simblico que conferia generosidade da
princesa a responsabilidade do canetao que alforriou tanta gente da condio de
mercadoria e propriedade. Desta maneira, para fins de propaganda, os anarquistas se
viram obrigados a subverter o seu simbolismo tal qual se apresentava
hegemonicamente, que livrava da classe dominante do presente o peso da culpa dos
seus antepassados.
No processo de subverso dos smbolos (ou, a seu ver, restituio da verdade
histrica), travaram uma disputa simblica em duas frentes: em torno da autoria da
abolio da escravido e sobre os seus limites. Eram duas questes fundamentais na
difuso de uma nova mentalidade que pudesse servir ao e aos propsitos da luta de
classes atravs dos mtodos libertrios.
Deste modo, por exemplo, atravs de uma anedota, Helto Mortio descreve a
reao de um ouvinte ao discurso de um orador que desfazia-se em elogios
magnanimidade da princesa em praa pblica. Para espanto de toda a platia, que
inicialmente o chamou de bbado, atribuiu a abolio da escravido ao direta dos
cocheiros e mais algum como eles:
404
18 de Maro A comemorao da Comuna. A Plebe, So Paulo, ano IV, n. 57, 20 mar. 1920, p. 2.
237
As sinhs chegavam estao acompanhadas das
suas mucamas e moleques; enquanto um cocheiro a distraa no
trato do aluguel do carro, outro raptava-lhe os escravos e
dava-lhes fuga.
Isto chegou a fazer-se em larga escala em todas as
estaes ferrovirias mais importantes.
Entretanto, iam-se pondo em prtica outros meios, no
menos eficazes do que esse, sendo tais atos denominados pela
Imprensa de ento roubos de escravos, e os seus autores
ladres de escravos e Caifazes.
O tal decreto da abolio no fez mais do que
reconhecer os fatos consumados e em via de consumao.
405
Como texto de propaganda, o militante tratou de inverter completamente a
autoria da abolio, passando-a da princesa para simples e annimos cocheiros que,
sorrateiramente, criaram um sistema de fuga de escravos que se disseminou a tal ponto
que no havia alternativa ao Estado que no reconhecer sua derrota. Tal como no
passado, era preciso que os trabalhadores agissem e comeassem, mesmo que fossem
inicialmente poucos, a promover, atravs da ao direta, as expropriaes em massa
a fim de extinguir definitivamente o cativeiro dos pretos e dos brancos, que
permanecia existindo, apesar do decreto imperial.
A transferncia da ao protagonista da princesa para os trabalhadores
escravizados esteve presente em outros textos que trataram especificamente da
abolio do 13 de Maio, especialmente na virada da dcada de 1910, quando a figura
de Zumbi dos Palmares, o admirvel Spartacus negro da Histria
406
, parece, enfim,
ter sido descoberta. A primeira referncia ao mrtir que encontrei diz respeito a um
Grupo Comunista Brasileiro Zumbi
407
, fundado em 1919. Uma outro possibilidade de
enfoque propaganda havia surgido? Neste sentido, em 13 de maio de 1921, j em
meio s tenses e o incio da definio de posies dos miliantes frente Revoluo
Russa, o jornal Voz do Povo
408
, rgo da Federao dos Trabalhadores do Rio de
405
MORTIO, Helto. Comentrios: O 13 de Maio e a Ao Direta. A Rebelio Semanrio de
propaganda socialista-anarquista Escrito por trabalhadores e para trabalhadores, So Paulo, ano
I, n. 3, 17 maio 1914, p. 1.
406
Grupo Comunista Brasileiro Zumbi (1919) apud CARONE, Edgard. Movimento operrio no Brasil
(1877-1944). So Paulo: 2.ed., Difel, 1984, p. 333-334; Grupo Comunista Brasileiro Zumbi.
Sprtacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 23, 3 jan. 1920, p. 3.
407
Este Partido de 1919, de carter anarquista, no deve ser confundido com o PCB marxista fundado em
1922. Em meio ao entusiasmo gerado pela Revoluo Russa, sua criao foi uma tentativa de melhor
articulao da ao e da propaganda revolucionria de grupos anarquistas do pas, sem dedicar-se
estratgia eleitoral, repelida pelos militantes.
408
Voz do Povo rgo da Federao dos Trabalhadores do Rio de Janeiro e do Proletariado em geral.
Rio de Janeiro, edio especial, 13 maio 1921.
238
Janeiro, lanaria uma edio cujo contedo exaltava a resistncia secular de heris,
como o quilombola e outros annimos, pela libertao dos negros escravizados e
exortava os trabalhadores a fazerem o mesmo para o fim de toda forma de escravido.
A transferncia da ao protagonista da princesa para os trabalhadores
escravizados esteve presente em outros textos que trataram especificamente da
abolio do 13 de Maio. Em um deles, assinado por Isabel Silva
409
, no hebdomadrio
A Obra, cuja capa trazia o desenho de um homem de costas, olhando para a frente na
direo de um ponto luminoso, com os braos abertos e os grilhes partidos, repetia-se
novamente o argumento de que a decretao da abolio no foi mais do que o
inevitvel reconhecimento de que a resistncia dos escravizados havia tornado a
conservao da escravido impossvel. Nesse texto, fazia-se um apanhado histrico da
trajetria de resistncia dos escravizados, desde Palmares, e das artimanhas da classe
dominante e suas leis em conduzir um processo de abolio que no pusesse em risco a
sua posio social nem o regime de propriedade privada.
Ou seja, ao contrrio do mito que se difundiu, a grande verdade que o feito
grandioso da extino da escravido no Brasil foi meramente obra dos
revolucionrios, para o que concorreu unicamente a ao direta dos interessados.
Porm, a ao direta dos oprimidos, para ser revolucionria, precisa contar tambm
com o apoio de idias:
Em face do horror que essas crueldades inspiravam
aos coraes bem formados, aventou-se a idia do
abolicionismo. A princpio chamava-se-lhe simplesmente
emancipao porque receava-se a reao dos senhores donos
de escravos, que tinham a seu dispor tribunais e parlamentos.
Contudo, a sublime idia foi tomando vulto.
Em 1831, votava-se uma lei, proibindo o trfico de
africanos. Em 1871, votava-se outra lei declarando livres os
filhos de mulher escrava.
Ento, a malvadez escravagista chegou ao auge: as
inocentes criancinhas que nasciam protegidas pela lei do
ventre livre, morriam mngua por falta de cuidados
maternos, as mes, por imposio dos algozes, existiam s
para o eito e no para cuidar dos filhos.
409
De acordo com Edgar Rodrigues (Os companheiros. Florianpolis: Insular, 1999.), a ativa militante
Isabel Cerruti utilizava os pseudnimos de Isabel Silva, Ruti e Isa em seus escritos polticos. Ainda
que o autor no tenha certeza, indica que provvel que ela tenha nascido na Itlia, ou, se no, seja
filha de italianos. Dada essa informao, continuaremos a nos referir autora como Isabel Silva, nome
com que ela assina os textos aqui citados.
239
Foi ento que os precursores do abolicionismo
resolveram intensificar a campanha para pr termo
escravido.
O maior vulto da nobre causa foi Luiz Gama, o
Esprtaco baiano. Morreu ele sem poder ver a concluso de
sua obra.
Substituiu-o na estacada, Antonio Bento de Sousa e
Castro, que foi um digno sucessor.
Durante algum tempo a ao abolicionista
desenvolveu-se dentro do foro, indenizando-se a carta de
alforria. Mas a ativa propaganda dos abolicionistas, entre os
quais Rui Barbosa e Jos do Patrocnio, deslocou a peleja
libertadora, da esfera restrita dos tribunais para a das
agitaes revolucionrias. A onda avassaladora avolumava-se
e avanava, atraindo novos e numerosos contingentes para as
fileiras revolucionrias.
So dignos de meno os relevantes servios prestados
pela imprensa defensora da liberdade dos escravos.
410
Deste modo, Isabel Silva reconheceu que o movimento abolicionista deveu
muito de sua fora e formulao de suas idias a homens que no compactuavam com
idias socialistas, muito menos anarquistas. Nem por isso deixaria de atribuir-lhes, um
pouco moda da histria dos grandes homens, como era usual fazer naquela poca, o
reconhecimento de sua colaborao quela causa. No entanto, pelo menos os editores
da revista no deixaram passar desapercebido que a adeso a um movimento legtimo
do passado no tornava Rui Barbosa um companheiro e defensor dos trabalhadores no
presente, como tentava fazer acreditar a sua propaganda eleitoral presidncia da
Repblica naqueles anos
411
.
Como anarquista, escolhia-se a ao direta como o nico meio para atingir fins
revolucionrios. Mas a ao deveria vir acompanhada tambm de idias, de reflexo,
para que o curso dos esforos no desviasse de seu caminho rumo Revoluo. O
movimento abolicionista foi um movimento de ao direta e parcialmente libertador.
Parcialmente porque apesar de a ao direta ter posto fim ao regime de escravido
negra, a obra no foi completa, no sentido de que no colocou fim ao regime de
propriedade privada, que mantm escravos no apenas uma raa infeliz, mas todos
os trabalhadores, negros e brancos, atravs do salariato. A ao direta orientada por
410
SILVA, Isabel. Treze de Maio A Abolio. A Obra Semanrio de Cultura Popular, So Paulo,
ano I, n. 2, 13 maio 1920, p. [4].
411
A propsito da participao de Rui Barbosa no movimento abolicionista, l-se, ao final do texto, uma
breve nota da redao com a seguinte ressalva: de estranhar que o Dr. Rui Barbosa, grande vulto
da campanha abolicionista, seja, hoje, um dos principais defensores da escravatura vigente..
Ibidem, idem.
240
idias sinceras, mas no propriamente revolucionrias, logrou a conquista fundamental
da abolio da escravatura, porm de modo limitado. Entretanto, mais do que lamentar
o fato de o abolicionismo no ter completado a revoluo, a mensagem final era de
esperana de que a luta dos mrtires do passado deveria ser continuada pelos escravos
do presente, apesar de todas as dificuldades impostas pela reao, tal como sucedeu
com os primeiros abolicionistas:
Como naqueles tempos, os arautos da liberdade
sofrem toda a sorte de afrontas, de torturas e de vexames. Mas,
como naqueles tempos, a onda revolucionria se avoluma e
avana, e a justia h de vencer.
Neste Maio, para ns de fulgurantes esperanas, das
colunas da nossa Obra, para a redeno dos escravos
modernos, reinvocamos num preito de gratido os mrtires de
Chicago, e saudamos num preito de homenagem os mrtires
negros do Brasil.
Salve, Maio de grandiosas recordaes!
Glria, glria, aos mrtires da Liberdade!
412
De outra parte, neste mesmo texto de Isabel Silva nota-se alguns elementos que
sero constantes em toda a propaganda libertria do Brasil, quando tratava, direta ou
indiretamente, do tema da escravido negra. Apesar de o argumento central do texto
ser a demonstrao de um vnculo de continuidade entre a dinmica das lutas dos
escravos pela liberdade e as lutas dos trabalhadores livres de todas as raas na
atualidade, h, por diversas ocasies, o uso de expresses que parecem demarcar uma
diferena no apenas entre a condio de trabalhadores escravizados e livres
(diferena, alis, praticamente mnima no regime de escravido hodierna, (...)
salariata, que se quer abolir), mas tambm entre negros e brancos. E isso se
verifica mesmo nas passagens que tm por objetivo combater o racismo. Esta distino
est presente, por exemplo, quando a autora diz que ao recordar esses ominosos
tempos, o rubor queima-nos as faces por sentimento de culpa pelos maus tratos a que
eram submetidos os escravos, aquela infeliz gente, em tudo igual a ns, diferindo s
na cor.
Possivelmente, Isabel (Cerruti) Silva, pelos padres raciais da poca no Brasil,
era vista e sentia-se como branca, para poder pr-se em igualdade (biolgica e
moralmente) com os negros, apesar da cor. Poderamos considerar apenas um breve
rasgo de percepo individual desta militante a respeito da linha da cor. Mas, a
412
Ibidem, idem.
241
existncia de outros fragmentos de teor semelhante, espalhados na imprensa
anarquista, nos leva a crer que outros anarquistas compartilhavam a mesma auto-
imagem. Joo Crispim
413
, por exemplo, um dos mais ativos militantes anarquistas de
Santos, condenou o racismo e a aura de legitimao, primeiro religiosa, e depois
cientificista, que essa ideologia recebeu, nos seguintes termos:
Para encontrar argumentos que satisfizessem o desejo
de justificar este princpio, e, ainda, a brbara escravatura, h
pouco nominalmente abolida, estudou-se o homem de cor e
observou-se e propagou-se que tem muito pronunciados os
caracteres de bestialidade, tanto sob o ponto de vista fsico
como intelectual.
A sua conformao craniana, cuja fronte , como a do
smio, pouco elevada, os pmulos salientes e as mandbulas
formidveis, o nariz achatado, so caracteres prprios do tipo
que vive em vida vegetativa, que no tem outras funes que as
da nutrio.
Para justificar a caa e a escravido dos negros, os
cientistas definiam-nos como bestas ferozes, s quais era
preciso no domar, mas amansar.
Os padres diziam que os negros no tinham alma e,
portanto, no era pecado trat-los como aos outros
animais.
414
A essncia do texto de Crispim, assim como o de Isabel Silva e todas as outras
referncias sobre o 13 de Maio e a escravido negra no Brasil, condena as barbries
cometidas contra os negros no passado e contra todos os trabalhadores, negros,
brancos, amarelos ou cobrios, no presente, suscitando, como nica soluo possvel
e necessria, a unio de todos em torno da ao direta da classe trabalhadora. Mesmo
assim, ainda que para esses militantes ningum devesse sofrer discriminao por causa
da cor da pele, o fato que a sua viso, ainda que combativamente contra-hegemnica,
estava permeada pelos preconceitos dominantes, dentre eles o racialismo. De outra
forma, e se no se considerasse branco, dificilmente Crispim repetiria que a formao
craniana dos negros se assemelhava dos smios, com caractersticas prprias de
quem tinha uma vida vegetativa.
413
Joo Crispim militava na Federao Operria Local de Santos (FOLS), associao que esteve frente
de diversas iniciativas do movimento operrio dessa cidade porturia. Em junho de 1913, a associao
declarou-se abertamente anarquista, atitude que, neste mesmo ano no II Congresso Operrio
Brasileiro, recebeu crticas de outros militantes anarquistas, que defendiam a neutralidade poltica e
religiosa nos sindicatos. Sobre isso h um interessante debate entre Crispim e Neno Vasco no jornal
da C.O.B., A Voz do Trabalhador, que precedeu o evento.
414
CRISPIM, Joo. 13 de Maio. A Rebelio Semanrio de propaganda socialista-anarquista Escrito
por trabalhadores e para trabalhadores, So Paulo, ano I, n. 2, 9 maio 1914, p. 1.
242
Alm de utilizar argumentos cientificistas quanto s caractersticas fsicas dos
negros para criticar o cientificismo, defendeu a igualdade de capacidade intelectual
entre as raas, mesclando fatores histricos e uma certa dose de preconceito de quem
analisa as diferenas de fora e de cima:
Mas o certo que nunca se procurou educar essa raa
para saber se realmente era suscetvel de uma evoluo e
aperfeioamento mais rpido, como o a raa branca.
No se procurou educ-la porque havia muito em que
ocupar os cativos, submetidos a trabalhos prolongados e
extenuantes, que poucos senhores seriam capazes de realizar, e
porque a instruo ou a educao seria um srio perigo para
essa instituio pseudocientfica e divina.
No entanto, os escravos tinham rasgos de inteligncia e
compreendiam bem a tremenda injustia do regime a que eram
submetidos. Tal assim que se mantiveram em constante
rebeldia, castigada com a morte, e infinidade de revoltas se
produziram, sendo presos e massacrados pela milcia do
imprio, vale dizer, do Estado cientfico e da divina
Providncia.
415
possvel depreender do trecho acima que a raa branca, ao invs de ter
estigmatizado o negro, deveria ter utilizado os mtodos disposio, desenvolvidos
devido ao estgio evolutivo atingido, para educar a raa negra e saber se realmente
[ela] era suscetvel de uma evoluo e aperfeioamento mais rpido (...), como seria
o caso verificado entre os brancos. Contudo, mesmo sem terem sido educados (pelos
brancos), os escravos (negros) tinham rasgos de inteligncia, como provavam
seus atos de rebeldia e suas rebelies. Ainda assim, note-se bem, eram apenas
rasgos.
Era compreensvel, segundo Crispim, a existncia da linha da cor na populao
brasileira, no apenas por causa da viso preconceituosa dos brancos em relao raa
negra, mas tambm dos negros em relao aos brancos. Afinal, haveria motivos
histricos para que os negros desconfiassem dos brancos: a injustia [da escravido],
que no escapava s luzes da sua [dos negros escravizados] conscincia a causa do
dio que mantiveram e mantm contra a raa branca. Para eles a raa branca a
raa dos escravistas
416
.
No entanto, apesar de existente, e at do legtimo sentimento de desconfiana
dos negros, deveriam ser empregados todos os esforos para que a linha da cor fosse
415
Ibidem, idem.
416
Ibidem, idem.
243
superada e se pudesse pr fim escravido comum do presente, que, retoricamente,
subjugava-os com mais perigo para a sua vida e a sua liberdade, do que nos tristes
tempos do seu [do negro] especial cativeiro
417
.
Creio que os elementos analisados na propaganda libertria permitem afirmar
que diversos anarquistas no pas (ou mais particularmente em So Paulo, a tomar pelos
exemplos aqui citados), viam-se como brancos, e, apesar do discurso em defesa de
todas as raas e de que o elemento revolucionrio da classe trabalhadora deveria ser
formado por todas elas, tinham por pblico prioritrio a atingir, os trabalhadores
brancos. Era nos trabalhadores brancos, sobretudo os estrangeiros, que esses militantes
depositavam a f de poder arregimentar com mais facilidade foras para a cotidiana
batalha revolucionria, para libertar todas as raas do jugo da escravido capitalista.
Seria entre eles que se encontrariam os principais agentes a divulgar o iderio
anarquista.
Em um artigo de A Plebe, l-se a seguinte legenda logo abaixo de uma
ilustrao (a mesma da capa de A Obra, acima citada): Quando brilhar para a
multido oprimida dos escravos brancos, o sol de um 13 de maio de fato?
418
. Seria
muito exagero querer ver nesta passagem a afirmao de que a liberdade havia j
chegado aos negros, faltava agora somente aos brancos, uma vez que os alforriados em
13 de Maio tornaram-se juridicamente to livres quanto os brancos. Contudo, creio ser
legtimo pensar que a idia de nova escravatura branca mais uma indicao de que
os esforos dos militantes estavam voltados prioritariamente para arregimentar a
simpatia dos trabalhadores brancos, e, dentre estes, especialmente entre os imigrantes e
seus descendentes, frao importante da populao total de So Paulo:
Como as condies econmicas, as formas da
propriedade no mudaram, tambm no mudou, a no ser no
apelativo e na cor da pele, o escravo antigo. Na essncia, tudo
ficou como estava.
No quer isso dizer que o escravo se fez proletrio,
valendo este, no fundo, o mesmo que aquele.
No. Surge-nos, a cada passo, o escravo, do mesmo
modo, com as mesmas formas, as mesmas servides. Temos,
literalmente, a escravatura pessoal. Dantes havia a empresa
privada, o negreiro, que se encarregava de ir comprar ou
caar o negro, em regra pela astcia, e o vendia depois aqui
ao agricultor. Hoje, o empresrio desse negcio o Estado.
417
Ibidem, idem.
418
13 de Maio. A Plebe, So Paulo, ano V, n. 117, 14 maio 1921, p. 1-2.
244
Este no compra o escravo, mas paga-lhe a passagem: no
caa o negro a lao ou mostrando-lhe barretes e mianga, mas
engana-o com falsas promessas de bem-estar.
O escravo chama-se colono e branco, e o Estado no
negreiro, mas agente de imigrao, representante dos
fazendeiros. Temos aqui um exemplo tpico de governo de
classe.
Mas, pondo o p em terra brasileira, o colono no
livre? Perdo, deve ir para a Hospedaria dos Imigrantes... E
ali a liberdade de dispor da sua prpria pessoa bem
mesquinha: se for preciso, a mesma polcia lho far sentir
Mas, na fazenda, o colono pago, e livre: pode
mudar de patro, sair... Devagar. Fugir, ainda s vezes lhe
possvel, de noite, por causa dos capangas. No faltam na
fazenda os aparelhos de escravido: o administrador, o
capanga, o chicote, o tronco, a tortura, a seqestrao das
pessoas, o direito de pernada, o calote, e a multa ou a cantina
obrigatria, que fazem voltar para o bolso do senhor ou do
feitor o salrio que porventura foi dado. (...)
419
Enfim, a escravido continuava, agora com os navios chegando com escravos
brancos da Europa, ao invs da frica. E equiparar a condio do trabalhador
assalariado condio de escravizado cumpria duas funes de propaganda: de
denncia do capitalismo, que, apesar da aparncia, pouco ou nada teria de avanos
para o trabalhador; e de coeso da classe trabalhadora, tambm entre brancos e negros,
pois todos estavam submetidos mesma condio aviltante anterior a 1888. Porm,
seguindo os argumentos desses artigos publicados na imprensa anarquista paulista
sobre o potencial revolucionrio da classe, dentre os seus integrantes, acreditava-se que
estariam entre os brancos os que poderiam assumir a funo de uma vanguarda
revolucionria. Afinal, apesar de terem sido os brancos os escravizadores do passado e
do presente, existia a atenuante de que da mesma raa que sai maior contingente
de rebeldes e de revolucionrios
420
, como se deduzia ao constatar que as mais
importantes e avanadas lutas dos trabalhadores ocorriam nos pases de populao
branca.
* * *
O internacionalismo propagado pelos anarquistas constitui um dos mais
importantes e fundamentais aspectos de diversas correntes operrias que se pretendem
revolucionrias. Dentre estas, o anarquismo, por no aceitar negociar com o Estado,
419
Ibidem, idem.
420
CRISPIM, Joo. 13 de Maio..., op. cit.
245
talvez seja uma das correntes mais intransigentes no combate dos sentimentos
nacionais, uma vez que eles ofuscariam a percepo do internacionalismo do capital e
das relaes de poder, ao mesmo tempo em que impediriam que os trabalhadores
identificassem seus interesses comuns atravs das artificiais fronteiras nacionais.
Diante de um contexto marcado pelo fortalecimento dos Estados nacionais em
disputa por monoplios de mercado, a construo hegemnica do discurso nacionalista
foi um entrave difcil de ser transposto pelos anarquistas de todo o mundo. Por outro
lado, para os anarquistas do Brasil, havia ainda o problema de existirem mltiplos
sentimentos nacionais em um mesmo territrio, o que, por preconceitos de raa
vigentes dificultava por vezes o estabelecimento de laos de solidariedade mtua. Pelo
menos diversidade de nacionalidades, os anarquistas atriburam algumas das
dificuldades de sua propaganda no Brasil.
Apesar de todo o discurso internacionalista, de combate s divergncias
provocadas por sentimentos nacionais e pelo racismo, os militantes anarquistas viviam
neste mundo, e, como tal, sofriam as influncias da viso de mundo hegemnica. De
certa forma, as teorias racialistas poderiam ser incorporadas na sua percepo ao
avaliarem os movimentos revolucionrios do exterior. Dos civilizados esperava-se a
conduo de um processo revolucionrio que pusesse fim sociedade industrial
capitalista. Contudo, na avaliao de movimentos de rebelies populares de grandes
propores como a que ocorreu no Mxico, embora tambm se tenha recorrido a
argumentos racialistas, a raa no parecia ser entrave para a revolta.
Mas, apesar das anlises sobre o Mxico, muitos anarquistas no Brasil no
pareciam acreditar no potencial instintivo dos negros, que ainda sofriam os efeitos da
subjugao escravocrata. Pode ser encarada como uma desculpa, ou um recurso
retrico para justificar a baixa penetrao do seu iderio entre os trabalhadores
brasileiros, o que, de certa forma, seria o mesmo que reconhecer os limites no de sua
propaganda, mas de sua convico poltica. De todo o modo, se no havia instinto,
havia mais um motivo para intensificar a propaganda, uma vez que, apesar das
dificuldades, mantinham a certeza da revoluo.
No entanto, cabe ressaltar, o uso de argumentos racialistas para avaliar os
limites de sua propaganda e de perceber a organizao social, no faziam os militantes
anarquistas racistas. Ao contrrio, deve-se, antes, reconhecer que, a partir dos seus
esforos na construo de laos de solidariedade internacional e de sua batalha para a
246
unificao do conjunto da classe, por cima das diferenas de cor, constituram uma
pedagogia pela qual se procurou enfrentar e superar essas divises sociais, junto com a
superao do capitalismo pela classe trabalhadora.
247
Consideraes finais
A trajetria do anarquismo no Brasil, entre 1906 e 1936, esteve intrinsecamente
relacionada com a trajetria do movimento operrio em alguns poucos centros urbanos
do pas. verdade que existiram militantes e iniciativas espalhados em muitas cidades
do interior e tambm nas regies norte e nordeste, mas sua presena ali se deu de modo
esparso e isolado. Concentrao e organizao orgnica que permitem qualificar suas
atividades como movimento, ocorreram propriamente no centro-sul, notadamente,
embora com muitas irregularidades e com incidncias desiguais, nas cidades de So
Paulo, Santos, Sorocaba, Rio de Janeiro, Niteri, Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande.
Deve-se ressaltar que o desenvolvimento do anarquismo no Brasil fruto do
processo de luta de classes no pas. A ressonncia de um ideal, cujas linhas gerais
foram forjadas em outros pases, s foi possvel porque os conflitos sociais existentes
no Brasil permitiram que a classe trabalhadora o reconhecessem como um projeto seu,
adaptando-o e adequando-o s suas contingncias. Nesse sentido, o anarquismo nasce
no interior da luta de classes e foi uma das respostas polticas da prpria classe
trabalhadora contra a sua explorao.
Uma parcela da classe trabalhadora brasileira constitui-se de idelogos de
valores libertrios. A eles competia a funo auto-atribuda de instigar a adeso da
classe s prticas revolucionrias apregoadas.
Contudo, o Brasil era pas predominantemente agrrio, cuja concentrao de
mo-de-obra urbana era relativamente baixa em comparao a outros pases, sobretudo
aos do Atlntico Norte. Ainda assim, os anarquistas concentraram suas atividades de
propaganda nos centros urbanos e tiveram como pblico preferencial de sua
propaganda os trabalhadores manuais urbanos, a quem identificavam como classe
operria. E nas tentativas de aproximao com essa classe, constituiu-se a fora e a
fragilidade do movimento anarquista brasileiro.
Fora porque foi entre os trabalhadores urbanos, em suas formas de
organizao coletiva e nas suas manifestaes de resistncia, que o anarquismo
adquiriu notoriedade. No importa o quanto a ao coletiva dos trabalhadores
248
dependeu, de fato, da ao militante anarquista. Importa que existiram prticas de
resistncia e combate dos trabalhadores contra o domnio do capital, que fizeram
emergir prticas militantes identificadas como anarquismo. No contexto da luta de
classes, os trabalhadores desenvolveram formas de associao e prticas independentes
do anarquismo. E continuaram a faz-lo, muitas vezes at em oposio ao aconselhado
pelos seus adeptos. Contudo, tanto essas formas quanto o prprio anarquismo foram
manifestaes de um complexo processo de construo da classe e de sua conscincia.
Processo, este, em permanente reestruturao, definido tambm pelas clivagens e
disputas das manifestaes polticas desenvolvidas pela prpria classe.
Por outro lado, pode-se falar em fragilidade porque, em um pas onde a
populao urbana era proporcionalmente muito reduzida, implicou limites graves
propaganda anarquista a falta de uma propaganda incisiva entre os trabalhadores do
campo, feita nos moldes da direcionada aos trabalhadores das cidades. Claro que muito
contribuiu para essa fragilidade o reduzido nmero de militantes e as dificuldades
inerentes propaganda em reas rurais, agravadas pela extenso do territrio brasileiro
e pelas precrias vias de comunicao. No h dvida que a falta de aproximao com
os trabalhadores do campo limitou a divulgao do seu ideal.
Ideal este, alis, que sofria com a estigmatizao pesada imposta por seus
adversrios, que identificavam os seus apelos destruio da ordem capitalista ao
terrorismo praticado por assassinos e detonadores de bombas, e as crticas opresso
do Estado, da Igreja e do patriarcalismo imoralidade inconseqente. E, de fato, o
discurso intransigente e agressivo do anarquismo contra instituies que dominavam
corpos, coraes e mentes da populao em geral, foi freqentemente mal-recebido,
seno repelido, pelo senso comum, que as julgava naturais e imprescindveis. Da a
opo, em um primeiro momento, por uma aproximao gradual com os trabalhadores,
atravs da defesa dos princpios de neutralidade poltica e religiosa nos sindicatos.
A estratgia consistia em avanar na medida em que se impunha limites ao
exerccio de prticas de correntes polticas adversrias. Para no ver as associaes de
trabalhadores submetidas ao controle de adversrios, o preo a pagar foi um freio sua
prpria propaganda no interior dos sindicatos. Mas existia uma convico, sustentada
por uma concepo algo autonomista, de que a prtica sindicalista, por si s,
conduziria os trabalhadores percepo de que eles eram capazes de se organizar e
agir coletivamente, e desenvolver prticas que pudessem construir um novo mundo a
249
partir de suas prprias mos, sem a necessidade de patres, pastores e agentes
administrativos externos, que s os submetiam condio de explorao e
conseqentes misrias, material e moral.
Mas esse autonomismo, expresso tantas e tantas vezes pelos militantes
anarquistas defensores da prtica sindicalista, continha, em contrapartida, uma noo
bastante clara e precisa da necessidade de ao concreta voluntarista. Caso contrrio,
se os trabalhadores, por si s, fariam a revoluo almejada, por que pensar em
estratgias, combater adversrios e se submeter ao risco de sofrer com os ataques
violentos da represso?
O que estava em jogo, internamente, entre os anarquistas, era ter clareza at
quando seria preciso adotar uma postura de prudncia para o melhor aproveitamento
de sua propaganda em relao aos eventuais riscos. Intrinsecamente, suscitava a
discusso se tal postura que privilegiava a propaganda gradual no oferecia limites a
uma ao efetivamente revolucionria. Precipitao/prudncia,
autonomismo/voluntarismo, no eram termos necessariamente opostos. Ao contrrio,
integravam as concepes e avaliaes de todos os militantes anarquistas do Brasil,
como em outras partes do mundo, e as divergncias entre eles, no caso brasileiro, se
davam estritamente nesse mbito, sem, no entanto, chegar a uma ruptura de posies, a
no ser aps a confirmao de que a Revoluo Russa no era uma revoluo
anarquista.
A avaliao estratgica de que a parcela da populao que tinha um potencial
de fazer eclodir um processo revolucionrio de carter libertrio era a classe operria,
trouxe ainda implicaes de outra ordem no carter assumido por sua propaganda. O
investimento na classe operria, por mais larga que fosse a conotao atribuda,
procurava repetir no Brasil padres de ao e concepes desenvolvidas em outras
partes do mundo, sobretudo na Europa. Seu combate contra a naturalizao do Estado
e das fronteiras nacionais fundava-se em uma concepo que atribua s classes sociais
um carter essencialmente internacional. No existia, pelo menos na propaganda
desenvolvida no Brasil, uma avaliao de conjuntura e das estruturas especficas da
formao histrica brasileira. Ao contrrio, as suas avaliaes sobre os problemas e os
inimigos de todos os trabalhadores e demais oprimidos do mundo eram essencialmente
iguais, guardadas algumas peculiaridades de forma. Portanto, os mtodos de ao e de
lutas deveriam ser nicos e, principalmente, articulados em conjunto. Os anarquistas,
250
nesse sentido, procuraram instigar a classe operria brasileira a integrar um movimento
universal pela construo do socialismo anarquista, que, a seu ver, estava em
andamento e era irreversvel. Assim, a identidade da classe trabalhadora, e a
conscincia de sua funo revolucionria, era o principal desafio da militncia
anarquista. E se fazia isso atravs da divulgao de feitos de seus irmos de classe de
outros pases. Eram exemplos a serem seguidos.
Em nome da supremacia da classe trabalhadora, combateram os sentimentos
nacionais da heterognea classe trabalhadora brasileira, formada por estrangeiros e
nacionais, mas no deram especial ateno s clivagens raciais existentes no Brasil.
Em parte, por coerncia, afinal, os trabalhadores constituam um corpo s. Chegaram a
se esforar por construir laos entre negros e brancos, procurando demonstrar as
permanncias da condio de explorao do perodo anterior abolio formal da
escravido, e as experincias comuns entre aqueles que foram escravizados e aqueles
considerados livres pela lei. Mas, especialmente os anarquistas de So Paulo, cuja
capital contava com uma populao formada, em sua grande maioria, por imigrantes
europeus e seus descentens, essa associao era feita com uma preocupao voltada
aos trabalhadores considerados brancos, como quem apostava que era entre eles que se
encontravam os elementos que poderiam compor a vanguarda revolucionria que daria
fim a todas as formas de opresso, inclusive o racismo. Nisso, deixaram aberta uma
lacuna que os comunistas iriam preencher j a partir da dcada de 1920, com uma
propaganda especfica voltada para negros e indgenas, tal qual a Internacional
Comunista orientava a ao nos pases dominados pelo imperialismo branco e
ocidental.
Do ponto de vista poltico, a partir da dcada de 1920 se verifica outras
cobranas ao movimento anarquista. O cenrio poltico brasileiro se transformava com
a ascenso de novos movimentos polticos de diferentes naturezas, que se diziam
revolucionrios e retiravam do movimento anarquista o monoplio do apelo
revoluo. Nos poucos vestgios dos conturbados anos de estado de stio, fica patente
que impuseram-se impasses sobre os quais os militantes anarquistas no conseguiram
reagir de modo que resguardassem a notoriedade conquistada at ento. Na hesitao
em apoiar movimentos que pudessem ter pontos em comum, foram superados
politicamente por outros atores polticos, que demonstraram ter sido mais capazes de
se adaptar s novas realidades.
251
Arquivos
Arquivo da Memria Operria do Rio de Janeiro (AMORJ) / UFRJ Rio de Janeiro
Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) / Unicamp Campinas
Arquivo Nacional (AN) Rio de Janeiro
Arquivo Pblico do Estado de So Paulo (APESP) So Paulo
Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) Rio de Janeiro
Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul (APERGS) Porto Alegre
Biblioteca Nacional (BN) Rio de Janeiro
Centro de Documentao e Memria (CEDEM) / UNESP So Paulo
Ncleo de Pesquisa Histrica (NPH) / UFRGS Porto Alegre
252
Fontes consultadas
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do Sul, Foro Justia Federal, Porto Alegre, Processo N. 1432, Mao 44, Estante
133, 1917.
Processo Crime 1016, Mao 66, Cartrio do Jri de Porto Alegre, 1919.
2.2. CORRESPONDNCIA DE ASTROJILDO PEREIRA (CEDEM)
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MORES, Jack. Talisman. Rio de Janeiro, 1933. Notao: F 206 Folheto DESPS;
OITICICA, Jos. Princpios e fins do programa comunista-anarquista. Rio de
Janeiro, 1919. Notao: F 215 Folheto DESPS.
2.4. JORNAIS E REVISTAS (AEL, CEDEM, AMORJ, NPH, BN, APERGS
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A Dor Humana - RS 1919
A Evoluo - RS 1925
A Guerra Social - RJ - 1911-12
A Lanterna - SP - 1911-35
A Liberdade - RJ 1919
A Luta - RS - 1908-18, 1930
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A Luz - EEUU 1915
A Obra - SP 1920
A Plebe - SP - 1917-49
A Rebelio - SP 1914
A Revolta - SP - 1913-14
A Unio - 1919-20
A Vida - RJ - 1914-15
253
A Vida - RJ 1926
A Voz da Unio - SP - 1922-23
A Voz do Padeiro - RJ 1919
A Voz do Sapateiro RJ
A Voz do Sapateiro - SP 1927
A Voz do Trabalhador - RJ - 1908-15
A Voz do Trabalhador - SP 1919
A Voz do Trabalhador, RS 1934
Alba Rossa - SP - 1919-21
Aliana Anarquista - RJ 1918
Boletim do 3o Congresso Operario - SP 1920
Cronica Subversiva - RJ 1918
Democracia Social, RS
Despertar - RJ 1918
Germinal! - SP 1919
Germinal-La Barricata - SP 1913
Guerra Sociale - SP - 1916-17
Hammer und Sichel - RS 1924
Kultur RJ - 1904
Liberdade - RJ - 1917-19
Movimento Communista - RJ 1922
Na Barricada - RJ - 1915-16
No Mataras - RJ 1908
O Alfaiate - RJ - 1923-28
O Cosmopolita - RJ - 1916-18
O Debate - RJ 1917
O Grito Operario - SP - 1919-20
O Homem do Povo - SP 1931
O Homem Livre - SP - 1933-34
O Libertador - RJ 1936
O Libertario - SP 1922
O Livre Pensador - SP 1912
O Marmorista - RJ 1927
O Metallurgico - SP 1920
O Nosso Verbo - RS - 1919-21
O Povo - RJ 1937
254
O Syndicalista - RS 1919-26
O Trabalhador - SP 1931
Renovao - RJ - 1920-21
Renovao - RJ 1922
Revista Liberal - RS - 1921-24
Sprtacus - RJ - 1919-20
Voz Cosmopolita - RJ - 1922-28,33
Voz do Graphico - RJ - 1926-32
Voz do Operrio - SE 1920
Voz do Povo - RJ 1921
2.5. PRONTURIOS DA DELEGACIA DE ORDEM POLTICA E SOCIAL DE
SO PAULO (DEOPS-SP)
Nome do prontuariado, Nmero do Pronturio, Perodo de abrangncia dos
documentos:
A. Felippe, 3856, 1936;
A Plebe, 2303, 1933-1935;
Ablio Jos Neves, 02, 1931-1964;
Adelino Tavares de Pinho, 04, 1931-1933;
Adolpho Sanchez, 2000, 1933-1947;
Affonso Festa, 08, 1923-1931;
Agapito Saes, 12, 1922-1931;
Agostinho Farina, 848, 1927-1946;
Alexandre Cerchiai, 1319, 1931-1933;
Alfio Aurlio Tomasini, 2100, 1932-1952;
Alfredo Stelluto, 1932-1947;
Alonso Alfredo Chaves, 1932-1933;
Amor Salgueiro, 3047, 1935-1948;
ngelo Charotti, 29, 1916-1937;
ngelo Lasheras ou Las Heras, 1020, 1933-1940;
ngelo Tossi, 3121, 1935-1947;
Aguillar, 2394, 1933-1974;
Benedito Romano, 1262, 1931-1968;
Carlos Gili, 19932, 1935;
Carmine Farina, 96, 1926-1931;
Centro de Cultura Social, 1914; 1934-1955;
255
Comit Anti-fascista, 1581, 1933;
Comti Antiguerreiro, 1656, 1933-1953;
Comit Pr Sacco e Vanzetti, 70320, 1927-1946;
Comit das Relaes de Grupos, 70757, 1926;
Confederao Operria de So Paulo, 2945, 1934-1947;
Crescentino de La Modesta, 908, 1933;
Domingos Nieto Garcia, 2630, 1935;
Domingos Panzarino, 2985, 1934;
Domingos Passos, 1927-1946;
Donato de Vitis, 1931-1947;
Edgard Leuenroth, 122, 1933-1948;
Eleutrio do Nascimento, 1899, 1932-1936;
Elias Valente, 2629, 1933-1947;
Ernesto Lopes, 1202, 1926;
Federao Comunista Libertria, 127, s./d.;
Federao Operria de So Paulo, 716, 1931-1937;
Flix Zirolia, 1685, 1932;
Fernando Navarro, 1933;
Florentino de Carvalho, 144, 1931-1947;
Francisco Arouca, 147, 1927-1934;
Francisco Cianci, 625, 1937-1946;
Francisco de Simoni, 1039, 1931-1932;
Francisco Jardim, 1916, s./d.;
Francisco Quesada, 497, 1931;
Francisco Rodrigues, 3637, 1933;
Grupo Anarquista de So Paulo, 1035, 1926;
Grupo Libertrio Prometeu, 1291, 1931;
Guilherme Milane, 179, 1929;
Gusmo Soller, 4045, 1933-1949;
Hermnio Marcos Hernandez, 188, 1931-1934;
Hugo Biocatti, 189, 1931-1945;
Hugo Vittori, 2061, 1935-1936;
Humberto Infante, 190, 1931-1937;
Isabel Cerruti, 2599, 1933;
talo Besassi, 198, 1926-1946;
talo Felcio dos Santos, 86256, 1947;
256
Joo Baccheto Filho, 211;
Joo Miniero, 774, 1919-1932;
Joo Navarro, 498, 1931;
Joo Perdigo, 452, s./d.;
Jos Albar Alcntara, 2476, 1933;
Jos Bullara, 261; 1926-1931;
Jos Cabrera, 2635, 1933;
Jos Carlos Boscolo, 263, 1931-1980;
Jos Gonalves Moreno Filho, 2043, 1932;
Jos Jarejo Martinez, 2625, 1933;
Jos Perez Aragon, 1374, 1932-1951;
Jos Righetti, 282, 1931-1947;
Jos Rocca Orozco, 2393, 1937;
Jos Rodrigues, 283, 1920-1949;
Jos Romero, 284, 1931-1947;
Jlio Tancrdo Baroni, 2176, 1934-1936;
Justiniano da Silva, 907, 1933-1947;
Liga Antifascista, 826, 1931-1946;
Liga Operria da Construo Civil, 927, 1931-1934;
Lorenzo Pironcelli, 301, 1930-1931;
Luiz Antnio, 472, 1931-1936;
Luiz Nieto Tortosa, 356, 1926-1931;
Luiz Papa, 1640, 1932;
Luis Papero, 906, 193-1960;
Manoel Esteves, 313, 1927-1946;
Manoel Sanches, 2150, 1932-1936;
Marcellino Ruiz ou Rodrigues, 325, 1931;
Maria Alles, 327, 1922-1931;
Maria Lacerda de Moura, 857, 1933;
Mrio Grilli, 760, 1931;
Mrio Silva, 335, 1926-1975;
Marques da Costa, 3472, 1934;
Nathalino Rodrigues, 1931-1947;
Oreste Ristori, 364, 1931-1948;
Paulino Aguillond, 1946, 1932;
Pedro Burba, 59, 1935;
257
Pedro Catallo, 377, 1932-1947;
Pedro Zanella, 384, 1931-1935;
Rodesindo Colmenero, 399, 1919-1931;
Rodolpho Felippe, 400, 1931-1948;
Romulo Pardini, 3630, 1930-1938;
Salvador de Matteo, 1283, 1931-1947;
Sebastio Vieira Carvalho, 5195, 1931-1952;
Sindicato dos Operrios em Ofcios Vrios, 2257, 1934;
Sindicato dos Operrios Metalrgicos, 1123, 1931-1965;
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