Dom Quixote provavelmente o primeiro romance moderno, se entendermos por modernidade o movimento de uma literatura que, perpetuamente em busca

a de si mesma, se interroga, se questiona, fazendo de suas dvidas e sua f a respeito da prpria mensagem o tema de seus relatos. (Marthe ROBERT, 2007, p.11). ROBERT, Marthe. Romance das origens, origens do romance. Trad. Andr Telles. So Paulo: Cosac Naify, 2007. CALMON, Jean. O Dom Quixote de Foucault. Rio de Janeiro: E-Papers, 2003. Foucault excluiu do prefcio 1 edio da Histria da Loucura as aluses a uma experincia originria da loucura, resqucio de fenomenologia. O primeiro captulo da Dissertao de Jean Calmon remete relao entre o Dom Quixote e a Histria da loucura, inserido que est no limiar entre o Renascimento e o Classicismo. A anlise de Foucault em HL se limita questo da loucura no Dom Quixote, obra vista como inserida na problemtica da loucura no Renascimento, que viria a ser modificada na Idade Clssica, quando a loucura passou a ser internada no Hospital Geral. Foucault ainda no fala, o que far em As palavras e as coisas, da questo lingstica ou propriamente literria da obra de Cervantes. (no gostei muito do primeiro captulo por questes tipogrficas; mal escrito, estilo ruim etc.; no mais, porm, revela estudo coerente que ser melhor desenvolvido nos dois captulos consecutivos). O segundo trata do Dom Quixote e a dobra da linguagem, tendo como vis os textos publicados no incio dos anos 1960, compilados sob o ttulo Ditos e escritos. Para Calmon, Dom Quixote assume em Foucault o carter de personagem conceitual, em sentido guattari-deleuziano. Trata-se da insero daquele num contexto estruturalista: O Dom Quixote introduzido num espao de tipo estruturalista porque, tal como expus no primeiro captulo, a partir da obra de Dumzil, Foucault concebe a histria no em termos de tempo, mas de espao, uma espacialidade na qual as estruturas de excluso da loucura repetem-se, como que numa reprise infinita, desde a chamada diviso originria. As estruturas de excluso, todavia, pressupem uma relao de equivocidade, visto que no pode haver separao sem o pressuposto da unio entre a Loucura e a Razo a Inter-In-dependncia. Tal unio, como condio de

possibilidade da separao, ainda que no haja sido dissipada, foi obnubilada pela Razo ao longo da histria do Ocidente. (CALMON, 2003, pp. 63-64). Foucault servira-se de Dom Quixote em HL para demonstrar, ou exemplificar, a experincia trgica da loucura (Renascimento). Tal experincia foi obscurecida pela conscincia crtica da loucura: no mais uma certa admirao pelo lirismo da Desrazo, mas a dominao pela Razo da loucura, colocando-a sob seu jugo e sob o seu olhar: a conscincia crtica da loucura viu-se cada vez mais posta sob uma luz mais forte, enquanto penetravam progressivamente na penumbra suas figuras trgicas (FOUCAULT, HL, p. 28, apud CALMON, 2003, p. 64). Mas Foucault mostra que no houve um total desaparecimento da figura trgica da loucura, que continuou agindo subterraneamente, pelo menos o que testemunham as obras de Sade e Goya (obscuramente, essa experincia trgica subsiste nas noites do pensamento e dos sonhos, e aquilo que se teve no sculo XVI foi no uma destruio radical, mas apenas uma ocultao ibid). Pois sob essa conscincia crtica da loucura (mdica, moral, filosfica), aquela experincia trgica permaneceu em viglia, prestes a despertar, como nas ltimas palavras de Nietzsche e nas ltimas vises de Van Gogh: Portanto, torna-se claro que, na anlise operada por Foucault, a figura de Dom Quixote desloca-se dentro de um espao delimitado pelo estruturalismo, onde o conceito experincia trgica, ao qual est associada a personagem, se no representa uma estrutura de incluso que se contrape excluso estrutural da loucura, ao menos participa desta como um elemento de resistncia a favor da ltima (CALMON, 2003, p. 64). Para o autor, Foucault retoma de Heidegger a noo de duplo, para mostrar como pde surgir uma experincia da Loucura como o duplo da Razo (diviso originria). Mas Foucault no se limita a esse modelo meramente ontolgico. A HL um livro que busca a gnese histrica da experincia da loucura: Fazer a histria da loucura querer dizer: fazer um estudo estrutural do conjunto histrico noes, instituies, medidas jurdicas e policiais, conceitos cientficos que mantm cativa uma loucura cujo estado selvagem jamais poder ser restitudo nele prprio (FOUCAULT, HL, p. 145, apud CALMON, 2003, p. 67). Mutatis mutandis, em Histria da loucura, podemos perceber os dois movimentos constituintes da fenomenologia. Primeiro, o movimento que, partindo de uma pesquisa de arquivo, na qual se determinara as diferentes manifestaes da loucura e da razo no transcorrer da histria ocidental, chegou ao que Foucault ento acreditava

ser as figuras essenciais, os fenmenos puros, os dados imanentes da Loucura e da Razo sempre no mbito da existncia histrica (CALMON, 2003, p. 68). Loucura, ausncia de obra: A grande obra da histria do mundo indelevelmente acompanhada de uma ausncia de obra, que se renova a cada instante mas que corre inalterada em seu inevitvel vazio ao longo da histria [...] O que ento a loucura, em sua forma a mais geral, porm a mais concreta, para quem recusa, desde o incio, todas as possibilidades de ao do saber sobre ela? Nada mais, sem dvida, do que a ausncia de obra (CALMON, 2003, p. 69). Mas eis que, ao servir-se da fenomenologia para expor o problema da Loucura como duplo originrio da Razo, Foucault a ps em xeque: o manejo do conceito de ausncia de obra no se deu sem conseqncias. Ao utiliz-lo, Foucault acabou por problematizar a prpria fenomenologia. Afinal, por meio do mtodo de reduo, como seria possvel apreender a essncia, determinar a identidade, capturar a presena daquilo que uma pura ausncia? Como se sabe, o conceito de ausncia de obra prprio do pensamento de Blanchot, de quem Foucault, numa entrevista, lembrou como um dos autores que mais o influenciaram ao escrever Histria da loucura (CALMON, 2003, p. 70). O que me interessou e guiou uma certa forma de presena da loucura na literatura (FOUCAULT apud CALMON, 2003, p. 70). O comeo (da obra, do ser) , antes, o recomeo, o retorno, a repetio: Mas de que modo poderamos compreender o recomeo antes do comeo seno como o nada, o vazio, a ausncia que, em virtude do movimento de repetio, seria alada condio de presena. Tal presena, por sua vez, caracterizaria o prprio ser que, dissimulado em todas as formas identitrias do possvel o mundo, a histria, a razo, a verdade, o homem, o trabalho, enfim, tudo aquilo que Blanchot reconheceu sob o grande e luminoso halo do dia , poderia assomar ao modo da dissimulao. Com isso, o aparecer do desaparecer, a revelao em que nada se revela, a imagem destituda de forma e determinao evidencia-se como o que pode haver de mais ntimo e essencial ao ser (CALMON, 2003, p. 71). A seguir citao de Blanchot (autor a princpio heideggeriano), com a seguinte concluso do autor: Trata-se, portanto, no da presena de alguma coisa, mas da presena enquanto tal, uma vez que se revela como a prpria presena da ausncia: o ser que se manifesta atravs do no-ser. [...] A obra revela o ser enquanto presena da ausncia porquanto, ainda que enuncie a palavra comeo, encetando todas as formas identitrias do possvel, ela mesma jamais comea (CALMON, 2003, p. 71).

Foucault provoca uma mudana em seu inventrio conceitual: a experincia originria da loucura, ainda um resqucio fenomenolgico, passa a ser a experincia trgica da loucura. Mas o autor marca uma diferena terica entre Blanchot e Foucault, que no exclui, no entanto, um posterior reencontro entre os dois: Blanchot pensa a obra como aquilo que se encontra entre a deciso que o ser do comeo e a indeciso que o ser do recomeo [BLANCHOT, O espao literrio, p. 198], entremeio pelo qual a origem, a profundidade vazia e indecisa da origem, comunica-se atravs dela para formar a deciso plena, a firmeza do comeo [ibid, p. 203]. J Foucault [...] supe um gesto de de-ciso originrio a partir do qual surge a obra sob a forma de mundo, histria, sentido e razo, ao mesmo tempo em que aparece seu correlato antittico, a ausncia de obra, com a qual se identificam o no-sentido, a desrazo e a loucura. Contudo, dentre as obras com as quais se confunde a razo, somente a obra de arte, pelo menos aquela constituda dentro dos limites estabelecidos pela experincia trgica, onde prevalece uma razo no-cartesiana, uma forma de pensamento no dogmtica, pode revelar a Inter-In-dependncia que caracteriza a relao entre a razo e a loucura como duplos histricos da de-ciso originria. Aqui, Foucault reencontra Blanchot, pois descobre no olhar que Orfeu lana sobre Eurdice uma nova perspectiva atravs da qual a razo pode olhar a loucura (CALMON, 2003, p. 72). Sobre Blanchot e a morte: ... o canto, tornado possvel e necessrio atravs da morte, no pode jamais olhar a morte face a face nem torn-la visvel: de tal modo que ele lhe fala e fala dela em uma impossibilidade que o condena ao perptuo murmrio (FOUCAULT apud CALMON, 2003, p. 72). Acompanhando o devir da obra de Foucault, o Dom Quixote igualmente sofre uma transformao radical. De personagem simptico, que acompanha a formulao do conceito de experincia trgica da loucura, passa a ser, ao longo dos primeiros anos da dcada de 1960, e at As palavras e as coisas, personagem conceitual antiptico, aliado idia de transgresso: Segundo Deleuze e Guattari, o personagem conceitual antiptico aquele que, ao contrrio de contribuir para a criao de conceitos atraentes, tal como faz o personagem conceitual simptico, cria conceitos repulsivos, isto , conceitos que imprimem movimentos reativos ou simplesmente tentam frear os movimentos dos conceitos atraentes. [...] Tal converso est relacionada ao fato de que ele aparece como um dos criadores de um conceito claramente repulsivo, a saber, o conceito de linguagem representativa (Retrica), conceito antagnico ao de transgresso sob a forma de redobramento da linguagem (literatura) (CALMON, 2003, p. 76).

 bem verdade que, em Histria da loucura, Foucault j havia esboado tais concluses [de que h diferena entre obra e loucura, mas h identidade entre loucura e linguagem], ao reconhecer a loucura como uma linguagem diante da qual o mundo de hoje se v obrigado a reordenar-se, ou ainda ao dizer que a loucura no a nica linguagem comum obra e ao mundo moderno. Mas neste texto dedicado a Rousseau que tais esboos ganham traos mais ntidos. Aqui, torna-se claro que, conquanto a linguagem seja aquilo a partir do qual a obra fala, assim como aquilo para o qual ela se encaminha, o que ela diz, a linguagem e a obra no podem ser a mesma coisa. que, enquanto a obra compreende os interditos da linguagem, o cdigo e a lngua convencional, a linguagem, tal como a prpria loucura, ultrapassagem primeira, pura transgresso (CALMON, 2003, p. 77). Problema: se a linguagem transgresso, qual seria seu modus operandi, como ela operaria essa ultrapassagem. Tal pergunta ser respondida por Foucault em O no do pai, texto dedicado obra de Hlderlin, cuja importncia para a Modernidade est em que sua obra potica no apenas pde representar este Limite [entre a obra e o que no obra], sob a forma lrica da ausncia dos deuses, mas tambm porque, num movimento de aproximao, experimentou este Limite atravs da abolio de si mesma na loucura (CALMON, 2003, pp. 77-78). O livro passa a ficar interessante e eu comeo a gostar. Ele mostra o processo de constituio de conceitos em Foucault, tendo Dom Quixote como linha. Primeiramente, em Histria da loucura, vemos um personagem-exemplo da experincia trgica da loucura (resqucio estruturalista). Aps, com a publicao dos artigos compilados na coletnea Ditos e Escritos, vemos uma radical transformao do Dom Quixote foucaultiano, que passa a desempenhar o papel de transgressor, remetido dobra da linguagem (resqucio heidegger-blanchotiano). Por fim, o autor anuncia uma nova transformao na viso foucaultiana de Dom Quixote, apresentada em As palavras e as coisas. A importncia da poesia de Hlderlin reside na representao e na experincia do Limite, que constituem dois planos nos quais Foucault descobriu, respectivamente, a forma e a dinmica da operao de transgresso da linguagem (p. 78). A experincia do Limite aquela na qual a linguagem realiza o movimento transgressivo por meio do qual a obra levada aos seus confins. Tal transgresso no

possvel seno atravs da operao de esgotamento da prpria lngua, onde o ato de dizer e de escrever tudo conduz a obra ao Limite que a separa da morte, Limite a partir do qual ela nasce e para o qual ela corre o constante risco de perecer, algo que Foucault expressou numa frase lapidar: O que a fundava, a arruna. Mas na representao do Limite que se revela a forma que confere identidade operao de transgresso. Atento curva desenhada pelo vo dos deuses, Foucault vislumbra a transgresso na figura geomtrica do crculo, figura cujo princpio de repetio antecipa o que ele, em trabalhos futuros, vai designar como a primeira dobra da linguagem (CALMON, 2003, p. 78). Aps o texto sobre Hlderlin, onde j aparece as figuras da transgresso e do Limite, Foucault publica um texto sobre G. Bataille, Prefcio transgresso, agora mais explcito quanto linguagem como transgresso: Para Foucault, o erotismo no seno a experincia na qual a sexualidade adentra a linguagem, produzindo um discurso transgressivo pelo qual se realiza o movimento de ultrapassagem dos limites estabelecidos (CALMON, 2003, p. 79). Para Foucault, o Olho de Bataille constitui a prpria linguagem, figura cuja circularidade revela o princpio de repetio, o poder de auto-implicao, a dobra atravs da qual a linguagem funda a si prpria (autofundante), ao mesmo tempo em que funda todas as formas de identidade (fundamento do fundado), tais como mundo, sujeito, Deus. [...] Para desvel-lo [o ser da linguagem], no entanto, faz-se necessrio arrancar e revirar o globo ocular ao redor do eixo de sua prpria rbita, isto , fazer com que a linguagem, que j se caracterizava pela repetio de si mesma num movimento circular, absorva a potncia violenta da sexualidade, produzindo discursos transgressivos, a saber, discursos nos quais a linguagem realiza uma repetio crtica, uma pardia, um pastiche de tidas as formas identitrias das quais o fundamento originrio. Ainda que se trata de uma segunda repetio, um re-dobramento, uma reduplicao da linguagem, tal movimento apresenta-se como a primeira repetio, visto que a anterior ainda permanece oculta enquanto palavra do mundo, do homem ou de Deus (CALMON, 2003, pp. 80-81). Mas o momento em que o Olho projeta seu olhar ao fundo negro do crnio o mesmo no qual a linguagem (o fundamento) lana todas as formas de identidade (o fundado) em direo ao Limite que a separa da morte. quando se d o apagamento do olhar, o fim do mundo, a dissoluo do sujeito, a fuga ou a morte de Deus, instante supremo no qual, em virtude do xtase do sacrifcio, a ausncia do fundado desvela o

que estava obnubilado por ele: o trao autofundante ou o ser da linguagem (CALMON, 2003, p. 81). Para Foucault, Bataille concebe a primeira dobra da linguagem, no momento em que nela insere a sexualidade: Foucault inspira-se em Bataille a fim de pensar a transgresso como a primeira dobra da linguagem, a saber, o momento em que a linguagem, ao ser investida pela sexualidade, realiza um movimento transgressivo pelo qual repete criticamente todas as formas de identidade, incluindo a prpria lngua e o cdigo, levando-os ao Limite no qual so como que subsumidos pela morte (CALMON, 2003, p. 81). Ao chegar ao Limite, diante da mote que a ameaa e a faz tremer, a linguagem forada a falar de si mesma, visto que no h mais sobre o que falar, realizando outro movimento de repetio, movimento atravs do qual procura escapar ao perigo iminente. o instante em que a linguagem, ao dobrar-se sobre si prpria na espessura ontolgica do Limite que, ambiguamente, a ata e a desata morte, desvela seu prprio ser (CALMON, 2003, p. 82). [...] o olho de Bataille define o espao de vinculao da linguagem e da morte, l onde a linguagem descobre seu ser na transposio de seus limites: a forma de uma linguagem no dialtica da filosofia (FOUCAULT, apud CALMON, 2003, p. 82). O autor distingue duas dobras da linguagem em Foucault, embora este no as tenha ainda nomeado no texto sobre Bataille, o que s faria, segundo CALMON, em textos futuros. A primeira dobra seria aquela pela qual a linguagem, potencializada pela sexualidade, repete criticamente todas as formas de identidade, escatologia que configura o primeiro movimento de transgresso; depois, a segunda dobra, o redobramento, a reduplicao onde a linguagem passa a repetir a si mesma com a finalidade de ultrapassar o Limite da morte, o que, de certa forma, j fazia desde o primeiro momento de sua constituio como linguagem, caracterizando o segundo movimento transgressivo (CALMON, 2003, p. 82). A experincia da transgresso consiste num redobramento da linguagem (cf. CALMON, 2003, p. 83). Os limites da razo colocados por Kant iniciam, segundo Foucault, embora de maneira ainda um tanto enigmtica, o momento da filosofia ocidental em que os limites so postos em evidncia, abrindo espao transgresso. Porm, Kant reduziu toda a crtica a uma questo antropolgica: Aps Kant, porm, aparece Nietzsche cujo pensamento rearticula uma Crtica e uma Ontologia, ao religar as questes da finitude e do ser (CALMON, 2003, p. 83). Antes dele, porm, autores

como Sade, Hlderlin, j haviam realizado a experincia inaugurada por Kant (CALMON, 2003, p. 83). Hlderlin e a fuga dos deuses (ausncia fundamental), a partir da qual a linguagem se pode redobrar sobre si mesma, em direo ao prprio ser (antecipao da idia de morte de Deus nietzscheana). Em Sade, a sexualidade atravessa a linguagem, produzindo discursos transgressivos que dissolvem o estado de soberania do sujeito absoluto. Trata-se, por conseguinte, da transgresso como a primeira dobra, movimento sem o qual a linguagem no poderia operar o re-dobramento, a re-duplicao, a segunda dobra j sobre a linha da morte. (CALMON, 2003, pp. 83-84). Embora tenha aparecido na curva do final da Idade Clssica, a experincia da transgresso como re-dobramento da linguagem pertence Modernidade. No Classicismo, a linguagem ainda se contenta em representar o mundo, Deus, a verdade, a natureza, ainda no se vergou sobre si mesmo, ao encontrar o limite da morte e se repetir a si mesma ao infinito. A partir do momento em que nossa sexualidade comeou a falar e a ser falada, a linguagem deixou de ser o momento do desvelamento do infinito; em sua densidade que fazemos da em diante a experincia da finitude e do ser. em sua obscura morada que encontramos a ausncia de Deus e nossa morte, os limites e sua transgresso. [...] Aqui, o olho reconduzido sua noite o globo da arena se revira e oscila; mas justamente o momento em que o ser a aparece e em que o gesto que transpe os limites toca a ausncia mesma (FOUCAULT, apud CALMON, 2003, pp. 84-85). O prximo texto analisado Linguagem ao infinito (1963), onde Foucault, segundo o autor, desenvolve os temas que teriam aparecido embrionariamente em Prefcio transgresso: a repetio como meio pelo qual a linguagem foge ameaa da morte, a diferena complementar entre a dobra e o redobramento da linguagem enquanto movimentos transgressivos e a descontinuidade histrica da linguagem redobrada da Modernidade em relao linguagem representativa do classicismo. Mas tambm introduz duas novas questes: o recente nascimento da literatura no limiar do classicismo para a modernidade e o aparecimento da obra literria como o espao virtual da linguagem. (CALMON, 2003, p. 85). Foucault volta a falar de Cervantes. A linguagem tem como antiga questo o esforo para escapar morte (Blanchot, As mil e uma noites etc.). Mas para isso, preciso que ela efetue uma dobra sobre si mesma, descrevendo um movimento de repetio ao infinito, do qual se irradia o brilho

fosco de seu ser (autofundao) (CALMON, 2003, p. 85). Para explicitar isso, Foucault se serve da imagem do jogo de espelhos: Sobre a linha da morte, a linguagem se reflete, encontrando nela um espelho; e para deter essa morte que vai det-la no h seno um poder, o de fazer nascer em si mesma a sua prpria imagem em um jogo de espelhos que no tem limites (FOUCAULT, apud CALMON, 2003, p. 86). Para Foucault, este movimento, pelo qual a linguagem repete a si mesma ao infinito, escapando ao perigo da morte, produz um espao especular e virtual que a prpria obra literria da Modernidade (CALMON, 2003, p. 86). Mas embora somente a obra literria moderna revele a dobra da linguagem, talvez esta constitua o ser da obra de linguagem desde sua origem mais remota (CALMON, 2003, p. 86). Ele o comprova analisando Sherazade, Diderot, mas tambm Homero: Ou melhor, um pouco na retaguarda da escrita, abrindo o espao onde ela pde se expandir e at se fixar, abertura para e contra a morte, da qual Homero apresenta a figura mais originria e mais simblica, e que constitui um dos grandes acontecimentos ontolgicos da linguagem: sua reflexo em espelho sobre a morte (FOUCAULT, apud CALMON, 2003, p. 87). O episdio de Ulisses em que ele chora ao ouvir sua histria contada por outro representa seu encontro com a morte, momento em que ele depara-se com a linguagem dobrada sobre si mesma, uma linguagem que traz consigo a ameaa da morte, sim, mas tambm a suprema possibilidade de criao da obra a partir do movimento de repetio que lhe prprio (CALMON, 2003, p. 87). O canto do aedo contando a prpria histria de Ulisses ser cantado ainda aps a sua morte e infinitamente, pois para ele Ulisses j est morto (FOUCAULT, apud CALMON, 2003, p. 88). O autor cita uma passagem do Dom Quixote similar. Foucault nesse texto mostra que, malgrado seja a condio de possibilidade da linguagem de todos os tempos a sua dobra (espelho que reflete a morte e se estende ao infinito), somente a Modernidade o revelou (cf. CALMON, 2003, p. 89): Nesta revelao, todavia, a dobra originria vai aparecer como o re-dobramento, a reduplicao, a segundo dobra, visto que a linguagem, antes de revelar a dobra em espelho sobre a linha da morte, que originariamente a constitui, precisa efetuar uma outra dobra sem a qual no haveria revelao alguma: a repetio crtica de todo o que foi dito e escrito at ento tal como j colocamos, movimento transgressivo pelo qual a linguagem, ao lanar tudo aquilo que ela prpria fundou em direo morte, pe-se ela mesma em perigo (CALMON, 2003, p. 89, grifo nosso). Primeira dobra: auto-espelhamento. Segunda dobra: a repetio crtica.

A obra de Sade o fez. Dom Quixote tambm realizou a primeira dobra, porm no chega a contemplar a segunda. Aquilo que diferencia a obra literria, nascida na passagem do classicismo para a modernidade, de toda obra de linguagem anterior a revelao da segunda dobra da linguagem que propriamente a dobra originria , aquele movimento em que a linguagem, aps chegar ao limite da morte atravs da primeira dobra crtica, produz o duplo, constri o sistema vertical dos espelhos, opera a auto-reflexo por meio da qual descobre o infinito dentro de si mesma, vez que exerce o poder de multiplicar sua imagem ao infinito (CALMON, 2003, pp. 91-92). Talvez o que seja preciso chamar com todo rigor de literatura tenha seu limiar de existncia precisamente ali, nesse fim do sculo XVIII, quando aparece uma linguagem que retoma e consome em sua fulgurao outra linguagem diferente, fazendo nascer uma figura obscura mas dominadora na qual atuam a morte, o espelho e o duplo, o ondeado infinito das palavras (FOUCAULT, apud CALMON, 2003, p. 92). Antes do advento da literatura no final do sculo XVIII, porm, ainda que a linguagem pudesse realizar a primeira dobra, indo de encontro ao limite da morte, tal como se evidencia em Dom Quixote, esta se protegia da ameaa da finitude procurando refletir o infinito fora dela mesma (CALMON, 2003, p. 92). A Retrica exercia a primeira dobra, mas tambm no chegava a operar a segunda, limitando-se a representar o infinito exterior a ela, da natureza, do absoluto, de Deus. Foucault elege a Biblioteca de Borges como substituto da Retrica: Hoje, o espao da linguagem no definido pela Retrica, mas pela Biblioteca: pela sustentao ao infinito das linguagens fragmentares, substituindo dupla cadeia da retrica a linha simples, montona de uma linguagem entregue a si mesma, devotada a ser infinita porque no pode mais se apoiar na palavra do infinito. Mas ela encontra em si a possibilidade de se desdobrar, de se repetir, de fazer nascer o sistema vertical dos espelhos, imagens de si mesma, das analogias. Uma linguagem que no repete nenhuma Palavra, nenhuma Promessa, mas recua infinitamente a morte abrindo incessantemente um espao onde ela sempre o anlogo de si mesma (FOUCAULT, apud CALMON, 2003, pp. 93-94). Dom Quixote, da mesma forma que a Odissia, j prefigura a necessidade da segunda dobra. Mas vai alm, e permite uma crtica direcionada literatura de cavalaria de sua poca. Da a importncia desse romance para a constituio do conceito de

linguagem transgressiva, donde podemos concluir que ainda se trata de um personagem conceitual simptico (CALMON, 2003, p. 94). Mas haver uma transformao, na qual ele deixar de ser simptico e se transformar num personagem conceitual antiptico, como se v na conferncia Linguagem e literatura (1964), o prximo texto analisado por Calmon. H j, contudo, indcios dessa alterao em Linguagem ao infinito, pois Dom Quixote, o personagem, constitui no o sujeito dessa segunda dobra que permitir a crtica aos romances de cavalaria, mas o seu prprio objeto. E ao final do livro, quando se recobra a sanidade e se afirma como o fidalgo Alonso Quijano, h um reforamento ainda maior da Retrica, no havendo um afundamento no infinito interno da linguagem, mas um fechamento dela frente ao infinito exterior. Retrica, conceito repulsivo: linguagem onde a dobra originria, a autofundao, o ser enquanto tal ainda se encontra velado (CALMON, 2003, pp. 9596).

Dom Quixote um personagem que exerce em As palavras e as coisas o papel de transpassar o limiar do Renascimento para a Idade Clssica. Caracteriza, a primeira parte do livro, uma unio indissolvel entre o texto e o mundo, em que os signos, as palavras, lhe so anlogos, se emaranham, guardam entre eles um os segredos do outro. Nesse espao de associao perptua, Dom Quixote heroiciza a busca pela assinalao que permitir comprovar que de fato ele quem ele : E cada episdio, cada deciso, cada faanha [ exploit] sero signos de que Dom Quixote de fato semelhante a todos esses signos que ele decalcou (FOUCAULT, 1971, p. 60 / 1999, p. 64). Isso o colocaria como simptico ordenao dos saberes tal como configurada no sculo XVI. Porm, a segunda parte do livro, aquela que faz rir, em que Dom Quixote se torna uma figura burlesca e alucinada, buscando com desmedida obstinao assemelhar-se aos signos do texto e do mundo, revela justamente que esses signos no so semelhantes aos seres, pois se fossem Dom Quixote no necessitaria comprov-lo. Nasce e perdura, qui ao infinito, uma linguagem que no mais se assemelha a nada, que no encontra correspondncia, assimilao, semelhana nas coisas do mundo: sua linguagem infinita fica em suspenso, sem que nenhuma similitude venha jamais preench-la (FOUCAULT, 1971, p. 60 / 1999, p. 64). Aquele que busca desvendar a veracidade nos signos para assim decifrar o mundo, ou simplesmente transformar a realidade em signo de fato um louco (FOUCAULT, 1971, p. 60 / 1999, p. 64). A cada descoberta de disjuno entre os signos e a realidade introduz, por ardil, a diferena no indubitvel da similitude (FOUCAULT, 1971, p. 61 / 1999, p. 65). Efeito de magia. Contudo, ainda um signo, pois igualmente contido nos livros. Eis por que Dom Quixote estranho ordem dos saberes renascentista. No revela mais a perfeita harmonia entre as palavras e as coisas, tal como experimentada naquele perodo. Agora, os signos decepcionam, pois nem sempre so encontram similitude no real. o momento em que o efeito mgico dos livros e dos signos se esvai, e que a linguagem no pode mais ser instada a dizer algo acerca das coisas do mundo, pois s poder faz-lo de modo delirante, porque as analogias so sempre frustradas (FOUCAULT, 1971, p. 62 / 1999, p. 65). Dom Quixote marca a passagem para a Idade Clssica, em que a linguagem, malgrado no mais repetir o mundo, possui um novo poder. Liberado do interstcio entre a primeira e a segunda partes do livro, toma corpo o personagem Dom Quixote de La Mancha em sua existncia parcialmente autnoma, pois a deve linguagem, da qual permanece prisioneiro. Linguagem que o

representa fielmente, a ele e a todas as suas aes e mesmo pensamentos. A verdade de Dom Quixote no est na relao das palavras com o mundo, mas nessa tnue e constante relao que as marcas verbais tecem de si para si mesmas. A fico frustrada das epopias tornou-se no poder representativo da linguagem. As palavras acabam de se fechar na sua natureza de dignos (FOUCAULT, 1971, p. 62 / 1999, pp. 66-67). A seguir Foucault diz ser o Dom Quixote a primeira das obras modernas, empregando o termo moderno que reservar para designar a configurao dos saberes somente a partir da segunda metade do sculo XIX. Se seguirmos a orientao de Marthe Robert, crtica literria a quem Foucault se referiu algumas vezes, inclusive citando seu livro em que faz analogias entre Dom Quixote e O Castelo de Kafka, a mostrar a modernidade das duas obras, bem como se voltarmos a outros ensaios em que Foucault menciona o carter moderno do romance de Cervantes, poderemos esclarecer a aparente contradio do que disse o autor. Tal autora diz o seguinte: Dom Quixote provavelmente o primeiro romance moderno, se entendermos por modernidade o movimento de uma literatura que, perpetuamente em busca de si mesma, se interroga, se questiona, fazendo de suas dvidas e sua f a respeito da prpria mensagem o tema de seus relatos. (ROBERT, 2007, p.11). No ensaio Linguagem ao infinito, datado de 1964, Foucault concebia a obras literrias bem anteriores s que ele chamou modernas, remetendo a Homero, Sherazade, alm de Diderot e do Marqus de Sade, a um trecho de Dom Quixote, para mostrar que em todos esses casos a linguagem haveria logrado uma redobra sobre si, espelhando-se a si mesma, no momento em que se visa uma superao da morte. De Homero, a passagem da Odissia em que um aedo conta a histria de Ulisses sua prpria histria, e ele chora, como chora a mulher ao ver o corpo de seu esposo morto em batalha. Tal choro de Ulisses revela que a relao da linguagem com a morte, pois para Ulisses, ao poder ouvir de outro sua prpria histria regressa, encara a morte e a superao do que acaba de ouvir. Da mesma forma As mil e uma noites o relato do momento em que a linguagem supera a morte e a sustenta no espelhamento infinito no face-a-face da linguagem com a morte ou consigo mesma, abrindo assim em sua prpria espessura. O canto do aedo contando a prpria histria de Ulisses ser cantado ainda aps a sua morte e infinitamente, pois para ele Ulisses j est morto (FOUCAULT, apud CALMON, 2003, p. 88). Jean Calmon, em estudo sobre as diferentes acepes do romance de Cervantes encontradas nas obras de Foucault, de Histria da loucura a As

palavras e as coisas, descreve uma passagem de Dom Quixote muito similar quela da Odissia. Em todo caso, malgrado ser inerente linguagem desde Homero espelhar-se a si mesma frente morte, mantendo-a em suspenso, foi somente com o advento da Modernidade que tal condio da linguagem se tornou inteira e necessariamente revelada. Algumas obras, porm, j guardam consigo essa revelao, e Dom Quixote constitui disso um exemplo: Dom Quixote a primeira das obras modernas, pois que a se v a razo cruel das identidades e das diferenas desdenhar infinitamente [se jouer linfini] dos signos e das similitudes: pois que a a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar nessa soberania solitria donde s reaparecer, em seu ser absoluto, tornada literatura; pois que a a semelhana entra numa idade que , para ela, a da desrazo e da imaginao (FOUCAULT, 1971, p. 62 / 1999, pp. 67). A linguagem tornada literatura revela, no bero da Idade Clssica, o que ser sua condio de existncia na Idade Moderna, aquela em que ainda estamos. Dom Quixote, o heri louco que busca, forosamente, assemelhar os signos realidade e assimilar diferenas para sempre isoladas, ser uma figura prefiguradora da experincia cintilante da linguagem tal como se delinear na Modernidade. Uma linguagem que no corresponde realidade do mundo, que s busca em si seu prprio ser. Com uma diferena, no entanto, pois Dom Quixote ainda se fecha frente exterioridade das coisas, admitindo um infinito fora dele e, ainda que tenha ido longe ao empreender uma crtica representativa contra os romances de cavalaria da poca, retevese na sanidade do discurso, resguardado em sua espessura que, por no poder dizer nada sobre o mundo, resigna-se em sua solido inapreensvel. E ao final do livro, quando Dom Quixote se afirma como o fidalgo Alonso Quijano, h um reforamento ainda maior da Retrica, ao contrrio do afundamento no infinito interno da linguagem, que se fecha isolada frente ao exterior infinito. Como diz Jean Calmon, trata-se de uma maneira encontrada pela literatura para proteger-se da ameaa finitude, procurando refletir o infinito fora dela mesma (CALMON, 2003, p. 92). A Retrica, linguagem onde a dobra originria, a autofundao, o ser enquanto tal ainda se encontra velado (CALMON, 2003, pp. 95-96), caracteriza o Classicismo. Dom Quixote guarda certos elementos da Retrica, que na sua exuberncia, limitava-se a representar o infinito exterior a ela, da natureza, do absoluto, de Deus. Diversamente, Foucault elege a Biblioteca de Borges como substituto da Retrica, fazendo referncia a Borges, no texto Linguagem ao infinito: Hoje, o espao

da linguagem no definido pela Retrica, mas pela Biblioteca: pela sustentao ao infinito das linguagens fragmentares, substituindo dupla cadeia da retrica a linha simples, montona de uma linguagem entregue a si mesma, devotada a ser infinita porque no pode mais se apoiar na palavra do infinito. Mas ela encontra em si a possibilidade de se desdobrar, de se repetir, de fazer nascer o sistema vertical dos espelhos, imagens de si mesma, das analogias. Uma linguagem que no repete nenhuma Palavra, nenhuma Promessa, mas recua infinitamente a morte abrindo incessantemente um espao onde ela sempre o anlogo de si mesma (FOUCAULT, apud CALMON, 2003, pp. 93-94).

CALMON, Jean. O Dom Quixote de Foucault. Rio de Janeiro: E-Papers, 2003. FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Paris : Gallimard, 1971. ______. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. So Paulo, Martins Fontes, 1999, 8 ed. ROBERT, Marthe. Romance das origens, origens do romance. Trad. Andr Telles. So Paulo: Cosac Naify, 2007.