Fios de Tradição
Fios de Tradição
Fios de Tradição
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2013
Presidncia da Repblica Presidenta: Dilma Vana Rousseff Ministrio da Cultura Ministra: Marta Suplicy Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional Presidente: Jurema de Sousa Machado Departamento de Patrimnio Imaterial Diretora: Clia Corsino Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Diretora: Claudia Marcia Ferreira
Setor de Pesquisa
Programa Sala do Artista Popular
Produo de trilha sonora Alexandre Coelho EQUIPE DE PROMOO E COMERCIALIZAO Marylia Dias, Magnum Moreira e Sandra Pires
COORDENADORA Maria Elisabeth Costa PESQUISA E TEXTO Marina Zacchi Fotografias Marina Zacchi Francisaco Moreira da Costa Edio e reviso de textos Lucila Silva Telles Ana Clara das Vestes DIAGRAMAO Patrcia Costalonga Leandro Gonalo (estagirio) APOIO DE PRODUO Dirlene Regina Santos da Silva projeto de montagem e Produo da Mostra Luiz Carlos Ferreira
R397 Renda de bilro e bordados em ponto de cruz e rendend em Poo Redondo / pesquisa e texto de Marina Zacchi. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2013. 36p. : il. -- (Sala do Artista Popular ; n. 181). ISSN 1414-3755 Catlogo etnogrfico lanado por ocasio da exposio
realizada no perodo de 29 de agosto de 2013 a 29 de setembro de 2013. 1. Renda de bilro. 2. Bordado. 3. Rendend Poo Redondo,
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A Sala do Artista Popular, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/CNFCP, criada em maio de 1983, tem por objetivo constituir-se como espao para a difuso da arte popular, trazendo ao pblico objetos que, por seu significado simblico, tecnologia de confeco ou matria-prima empregada, so testemunho do viver e fazer das camadas populares. Nela, os artistas expem seus trabalhos, estipulando livremente o preo e explicando as tcnicas envolvidas na confeco. Toda exposio precedida de pesquisa que situa o arteso em seu meio sociocultural, mostrando as relaes de sua produo com o grupo no qual se insere. Os artistas apresentam temticas diversas, trabalhando matrias-primas e tcnicas distintas. A exposio propicia ao pblico no apenas a oportunidade de adquirir objetos, mas, principalmente, a de entrar em contato com realidades muitas vezes pouco familiares ou desconhecidas. Em decorrncia dessa divulgao e do contato direto com o pblico, criam-se oportunidades de expanso de mercado para os artistas, participando estes mais efetivamente do processo de valorizao e comercializao de sua produo.
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O CNFCP, alm da realizao da pesquisa etnogrfica e de documentao fotogrfica, coloca disposio dos interessados o espao da exposio e produz convites e catlogos, providenciando, ainda, divulgao na imprensa e pr-labore aos artistas no caso de demonstrao de tcnicas e atendimento ao pblico. So realizadas entre oito e dez exposies por ano, cabendo a cada mostra um perodo de cerca de um ms de durao. A SAP procura tambm alcanar abrangncia nacional, recebendo artistas das vrias unidades da Federao. Nesse sentido, ciente do importante papel das entidades culturais estaduais, municipais e particulares, o CNFCP busca com elas maior integrao, partilhando, em cada mostra, as tarefas necessrias a sua realizao. Uma comisso de tcnicos, responsvel pelo projeto, recebe e seleciona as solicitaes encaminhadas Sala do Artista Popular, por parte dos artesos ou instituies interessadas em participar das mostras.
O municpio de Poo Redondo fica em uma regio do oeste do Estado de Sergipe conhecida como o Serto do So Francisco. Distante 185 quilmetros da capital, Aracaju, a regio frequentada por visitantes que chegam pela SE230, conhecida como a Rota do Serto, para passeios nos cnions do lago da Usina de Xing, no municpio vizinho Canind, um dos destinos tursticos mais procurados do estado. Em Poo Redondo, est o segundo ponto a que os visitantes costumam se dirigir, a grota de Angico, local em que o rei do cangao, Lampio, e integrantes de seu bando foram capturados pelas foras volantes nos idos de 1938. A Praa de Lampio marca a entrada da cidade em que muitos dos moradores tm, em suas famlias, memrias marcadas pela passagem de cangaceiros e volantes. O rio So Francisco, margem do qual Poo Redondo est situado, marca a divisa com o vizinho Estado de Alagoas. No obstante a proximidade com o grande rio que
tantas alcunhas possui, o serto do So Francisco regio de estiagens peridicas e prolongadas, de uma caatingona medonha, como por ali se usa dizer. Maior municpio do Estado de Sergipe, com uma rea de 1.232,123 km, responde tambm pelo mais baixo IDH. De sua populao de 30.877 habitantes, 38% vivem em rea urbana, estando os demais moradores distribudos pelos inmeros povoados que se espalham por sua extenso. O municpio j foi cenrio de filmes e novelas, e um pouco de sua histria dever ser contado no filme Aos ventos que viro, do cineasta Hermano Penna, cujas gravaes agitaram o cotidiano do lugar. Desde muito, os trabalhos com linhas integram a vida das mulheres do serto do baixo So Francisco sergipano. Um antigo manuscrito que descreve a vida da populao da Freguesia Misso de So Pedro de Porto da Folha na primeira metade do sculo 19 documenta, entre as atividades femininas, a renda de bilro, alm das atividades de fiandeira, tecedeira, costureira e louceira (Dantas, 2006). Os bordados em ponto cruz e o rendend vieram depois, difcil precisar o momento, mas na primeira metade do sculo 20 j estavam presentes, sendo comum ouvir relatos de lenos bordados por encomenda para cangaceiros de renome. Quando acabavam os demais afazeres dentre os tantos que lhes cabiam,
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as mulheres sentavam-se luz dos candeeiros para produzir as delicadas composies; no s como distrao, mas um ofcio tambm.
Histria quase cantada
A ocupao do baixo So Francisco, ainda no sculo 16, esteve marcada pelas criaes de gado bovino, introduzidas no litoral e posteriormente interiorizadas para os sertes. Em meados do 17, no contexto das incurses holandesas, pequenas povoaes surgiram s margens do Velho Chico. Com o passar do tempo, alguns aventureiros passaram a adentrar as caatingas em busca de terras cultivveis, e assim surgiram as pequenas propriedades, que, em meados do sculo 19, passariam a conviver com os criadores de gado que chegavam atrados pela grande quantidade de terras devolutas existentes. O povoado que recebeu o nome de Poo Redondo, por ser parcialmente circundado pelo riacho Jacar, surgiu na imensido de terras que conformavam a Freguesia de Porto da Folha, de que fora emancipado por lei datada de 1953. A cidade de Poo Redondo teria surgido a partir de 1902, quando Manoel Pereira decidiu transferir do arraial de Poo
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de Cima pra l sua fbrica de descaroar algodo, tendo sido seguido por outros moradores que mudaram tambm suas casas para o novo lugar (Cinform, 2002). comum ouvir entre os moradores mais velhos de Poo Redondo que a maior parte das terras que hoje conformam o municpio pertenceu ao Coronel Lus da Silva Tavares, ou coronel Lulu, como conhecido por todos do lugar. O coronel Lulu vivia em um casaro imponente que cons-
trura para si em Bonsucesso, ainda existente no antigo povoado na beira do So Francisco. Da Lagoa Grande at aquele trilho, at o Poo Redondo, descendo o rio, tudo de um homem s, explica seu Man Matias. O av de seu Man Matias chegara regio h muito tempo, para ser vaqueiro do coronel Lulu na fazenda que deu origem ao povoado de Stios Novos. As povoaes derivadas dos antigos currais, bem como as fazendas de gado, marcam a estrutura de ocupao do municpio, com grande nmero de povoados dispersos no territrio. Em um sistema conhecido como quarteado, o vaqueiro cuidava da fazenda e, a cada inverno, era feita a partilha dos bezerros, a ele cabendo um de cada quatro dos que houvessem nascido. Vivendo na fazenda com a famlia, tinha o leite e, aos poucos, ia fazendo tambm seu rebanho. O trabalho era tanger o gado, derrubar facheiro no mato, todo dia porque naquele tempo no chovia no. Nos perodos de estiagem era preciso recorrer ao mandacaru, ao facheiro, assar a polpa e o miolo do xique-xique para se esquivar da fome e da sede. Mas quando caam as chuvas, o verde voltava a cobrir a caatinga e j no faltava comida, que no mato havia muita veado, ema, tatu, peba, tamandu, caititu. Conforme diz seu Man Matias, veado tinha por grandeza; caititu,
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a gente tirava at uma cantiga: Veado corre saltando Caititu corre na trilha Mulher parida no come Farinha do mesmo dia Se comer, se desmantela E a criana no se cria A caa era abundante para o caador que conhecia os encantos do mato. Os bons caadores eram conhecidos e admirados. A carne de caa era a base da alimentao sertaneja, complementada pela de bode e a da chamada miuna, cabras, ovelhas e porcos criados soltos na caatinga. Cultivavase o milho e o feijo, o arroz e a mandioca, a melancia e a abbora. Poo Redondo no era, ento, mais do que poucas casas dispersas no largo da pracinha da igreja, e os excedentes produzidos pelos moradores eram comercializados em um barraco que ali ficava mas tambm em feiras de outras localidades e adquiria-se o de que se precisasse. Na mesa sertaneja no faltava o leite, a manteiga feita em casa e o queijo bem curado; o cuscuz, o feijo, a farinha. As cantigas estavam presentes em muitas situaes do
cotidiano, marcando os acontecimentos da vida. Cantavam as rimas nos sambas de roda ou de coco, nos brinquedos de roda, nos versos que tiravam uns com os outros. No preparo da farinha de mandioca, em tempo de farinhar, vinham os vizinhos e, at que estivesse acabado, por todo o ms havia
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gente ajudando. Quando chegava a vez dos vizinhos trabalharem a mandioca, a ajuda era ento retribuda. Dona Maria Baia, bordadeira antiga de Stios Novos, conta que trabalhavam at de noite cantando, rapando a ma nd ioc a e t ira ndo versos u ns com os out ros. Em uma ocasio um rapaz enxerido tirou verso com ela, que logo devolveu para o rapaz, e ele murchou: Atirei meu leno branco em cima de um tabuado tu pensa que eu fao conta? cara de sapo pintado Seu Man Matias conta de uma ocasio em que "apareceu o trabalho de tirar no mato sulipa para vender" para a construo da linha frrea, quando a rodovia que corta o povoado de Stios Novos no era ainda mais que estreitas veredas por que se moviam os carros de boi. Vinham s vezes dez, doze carros de boi e neles os homens cantando: L vem um carro cantando L no arto do piio Lagartixa carreando
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Calango chamando boi Guaxinim cortando cana Raposa juntando io (...) No dia que eu amanheo Dentro de Itabaianinha Nem homem monta cavalo Nem mui deita galinha (...) No ano de 1929 se deu a chegada de Lampio ao lugarejo, o que por toda a dcada seguinte marcou a vida dos moradores. Muitos cangaceiros famosos andaram por ali Amoroso, Bom de Vela, Cruzeiro, Juriti, Cobra Verde, Jararaca, Velocpede. Muitos nascidos na regio aderiram ao movimento, tomando um caminho que no mais teria volta. Quando Correnteza decidiu ir viver no meio dos cangaceiros, desceu a ladeirona grande do lugar em que morava e se ia tambm cantando Adeus casa do arco, Terreiro da virao Esse nosso apartamento
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com dor no corao Adeus pia da veneza E adeus da Veneza pia Adeus Poo Redondo Monte Alegre at um dia A chegada do sculo 20 trouxe para a regio algumas mudanas, um impulso de modernizao com a instalao de curtumes e indstria txtil. A fbrica de linhas Estrela foi inaugurada em 1914, e promoveu muitos cursos de trabalhos manuais antes de ter suas atividades encerradas e o maquinrio inutilizado, aps ter sido adquirida pela Machine Cottons, em 1930 (Dantas, 2006). A construo da linha frrea no incio do sculo 20 e de rodovias a partir da dcada de 1950 ampliaram a ligao com outros centros mais distantes. Existiam em Poo Redondo e em seus povoados e ainda existem os bailes, animados pelo som do fole, do ganz e do pandeiro; as vaquejadas, pegas de boi bravo, em que os garrotes so soltos na caatinga para serem derrubados pelos cavaleiros; os torneios de cavalhada; as festas do ms de junho, Santo Antnio, So Joo e So Pedro, as novenas, o casamento do Matuto; as festas da padroeira do munic17
pio, Nossa Senhora da Conceio, protetora dos vaqueiros, ou dos tantos povoados, como a Festa de Nossa Senhora de Aparecida em Stios Novos. E, complementando o trabalho masculino com a gadaria e mais, as rendas de bilro e os bordados, conduzidos pelas mos firmes das mulheres sertanejas.
Mulher sertaneja
sergipana, chegando at a capital Aracaju; a do So Francisco, seguindo at Propri, de onde alcanavam outros destinos; e a rota do serto, perfazendo Simo Dias, Lagarto, Estncia, Boquim, Itabaianinha, e seguindo para a Bahia at o municpio de Alagoinhas. A partir da dcada de 40 novos mercados se abriram, beneficiando-se dos fluxos migratrios para o sul, motivados pelas notcias que chegavam via rdio, pelo aumento da comunicao e por polticas fundirias de ento.
Os delicados trabalhos com bilros e almofadas ou com agulhas e bastidores possibilitavam s mulheres do serto do mdio So Francisco sergipano o custeio de pequenas despesas consigo e com os filhos, como as vestes e os sapatos, pequenos mimos e regalos. Conhecedoras dos altos e baixos dos mercados, se a procura rareava, algumas deixavam a renda de bilro para se dedicar a outras atividades que estivessem rendendo melhor, como os bordados ou o croch. s vezes voltavam renda, outras seguiam com os bordados a que preferiam por conta da facilidade de transporte, permitindo-lhes sentar com outras mulheres, conversar durante a costura. Os bordados e rendas que produziam eram, em geral, levados a vender por mercadores, seguindo trs diferentes rotas: a do Cotinguiba, importante e rica zona aucareira
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Muita renda e bordado foram levados para ser vendidos em So Paulo e Rio de Janeiro, e as mulheres se orgulhavam com o fato de que no retornavam. Iam os homens, ficavam as mulheres com as crianas e a lida do dia a dia. Elas recebiam as encomendas e se ocupavam em realiz-las com a percia e esmero que tanto. Muitas vezes as encomendas vinham de moradoras do prprio municpio ou de municpios vizinhos, com mais recursos e acesso a compradoras e mercados, como as esposas de polticos ou fazendeiros locais. No sistema estabelecido, quem encomendava deixava as linhas e os cortes de pano, alm de fornecer as amostras, pagando depois pelo trabalho. Quando podiam, algumas bordadeiras bordavam para si, enviando seus trabalhos para serem vendidos, mas no eram muitas, pois nem sempre se podia investir na aquisio da matria-prima e esperar pelo retorno da pea. "Pondo o nome" para a renda ou o bordado, tinham a garantia do ganho, ainda que este estivesse muito aqum da beleza das peas que faziam. As rendas e bordados eram para as mulheres um refgio e uma garantia. Quando se viam ss, desprovidas de pai ou marido, restava-lhes remediar com as linhas a situao em que ficavam.
dona Cruz
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Dona Cruz comeou a bordar aos 16 anos. Fazia muita renda de bilro, mas, tendo perdido o pai, sem saber bem o que iria viver, ganhou de uma amiga um corte para uma colcha e duas caixas de linha. Para ter o que comer, trabalhava em uma roa que o irmo botou para ela. Levava consigo o pano naquele tempo era bramante e, entre o cavar das covas, espaadas para o milho e midas para o feijo, pegava um pouco o bordado, at que acertou o jeito. Conta que tinha tanta sorte que s vezes a formiga tuiuca feria o tecido, mas era bem onde o bordado ia passar, de modo que ela no perdia o trabalho. Como fosse cuidadosa, ficou o pano sem nenhuma ndoa, o trabalho pronto foi vendido e ela no deixou de fazer mais. Outra antiga bordadeira, dona Maria Baia aprendeu a bordar com a me, dona Eutmia. Lembra com orgulho os grandes bordados que fizera, as toalhas de banquete, uma para o altar da igreja da cidade. Conta que os bordados mais difceis e elaborados, que as outras bordadeiras no queriam fazer, vinham sempre para ela. Tinha 12 anos quando comeou a pegar as encomendas, dividindo o trabalho com os cuidados com a casa, o preparo dos alimentos, a roa de algodo do pai, o rapar mandioca e o farinhar. Com uma professora contratada para lhe ensinar as letras,
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aprendeu bordado mquina, a costura, o ponto labirinto, o richeli. Com a me, aprendeu ainda a fazer loua de barro, que ela e as tias todas faziam bem. Parteira, cortou o umbigo de duzentos e um meninos. E entre as atribuies tantas, dia e noite eram passados com os complicados bordados que lhe cabiam. Dona Eutmia, me de Maria Baia, era bordadeira muito querida em Stios Novos. Contam que bordou at os ltimos dias de sua vida e, na enfermaria em que estava, quando
o juzo j lhe faltava, enrolava em seu colo o lenol que cobria o leito e, segurando uma agulha imaginria, quem sabe que lindos bordados a outra mo conduzia. Quando de seu falecimento, as companheiras cobriram o caixo com um leno bordado em branco e azul, as cores de que tanto gostava. Mais que um ofcio a que dedicam o tempo, no entrecruzar dos fios dos panos, os sentidos dos pontos e os da vida se entremeiam nas composies que vo surgindo.
Renda de bilro de Poo Redondo
No ano de 1994, aps viver muitos anos em So Paulo, Maria Dominga chegou para residir em Poo Redondo, acompanhando o marido, que queria viver mais perto de seus pais, que estavam com idade avanada. Sem alternativa para obteno de renda, passou a produzir peas de croch, que comercializava no prprio municpio. Conta que, sempre que saa rua, parava para olhar as rendeiras tranando bilros em suas almofadas e recordava suas avs, rendeiras tambm em Alagoas. Naquele tempo havia muita rendeira produzindo em Poo Redondo. Sentadas prximo s janelas para aproveitar a luminosidade, chamavam a ateno de quem ia passando,
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marcando, assim, a paisagem local. Todavia, um estudo realizado por Dantas (2002) apontava tratarem-se de senhoras entre 60 e 80 anos de idade que, por uma srie de fatores, no haviam logrado transmitir seus saberes s geraes mais novas. Ao que tudo indicava, no tardaria a deixar de existir a renda de bilro no municpio. Nessa mesma poca, Maria Dominga encontrou a oportunidade de aprender a fazer renda por que tanto ansiava. Uma amiga lhe informou que a Ao Social estava oferecendo cursos, dentre os quais, um de renda de bilro. Sua inscrio
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no teria sido aceita, uma vez que eram destinados a beneficirios do programa Bolsa Famlia, mas sobrou uma vaga e, percebendo seu interesse, o responsvel pelas inscries decidiu lhe dar uma chance. O curso durou trs meses e ela no faltou nem se atrasou um nico dia. Pouco tempo depois, novo curso de renda de bilro foi oferecido no povoado de Stios Novos. Sabendo que Maria Dominga j havia repassado filha o que aprendera, os organizadores a convidaram para ministr-lo acompanhando dona Cenira, rendeira antiga do municpio. Dentre as mulheres que, como Dominga, frequentaram os cursos de renda de bilro, poucas dera m continuidade produo de renda. Quando, no incio de 2010, o Promoart props realizar novos cursos de transmisso de saberes, no se via Maria Dominga
quase renda de bilro em Poo Redondo. Muitos na cidade duvidaram que haveria inscries suficientes para que os cursos pudessem ser realizados, mas Dominga, agente local do programa, tomou para si o desafio e em pouco tempo conseguiu organizar uma turma de quatorze garotas, a maior parte entre 12 e 16 anos de idade. Rendeiras antigas, Cenira, Leopoldina, Conceio e Maria Feitosa assumiram como instrutoras. Ao longo de quase um ano reuniram-se na sede do Ateli do Cangao, espao que Vera Ferreira cedeu muito gentilmente para que as atividades pudessem se realizar. Concludo o curso, as novas e antigas rendeiras por ele reunidas estavam estabelecidas como grupo de produo. No contexto do Promoart, Dominga integrou a Caravana Brasil, que levou um grupo de artesos de todo o pas para conhecer lojas e centros de comercializao de artesanato em Minas Gerais, So Paulo e Rio de Janeiro; participou do Mercado Brasil de Rendas e Bordados, em Braslia, e do Mercado Brasil, no Rio de Janeiro. Nesses eventos, conheceu rendeiras de diferentes regies do Brasil e, com as quais trocou experincias, modelos de renda e ideias. De volta a Poo Redondo, alm dos bicos e entremeios, o grupo de renda de bilro passou a produzir tambm presilhas, aplicaes, diademas, bolsas, saias e coletes, desenhados por
sua filha Alane e outras rendeiras mais jovens. Com o apoio de outros parceiros regionais, buscaram novos pontos de comercializao. Atualmente, a renda de bilro que produzem comercializada no municpio de Piranhas, em Alagoas; no Centro de Cultura e Arte J. Incio, na orla turstica de Aracaju; e na loja de Mnica Schneider no Museu da Gente Sergipana. A Associao de Artesos de Poo Redondo, criada em 2008 com o apoio do Sebrae e a que a renda de bilro est integrada, ainda em 2010 elaborou para o Mais Cultura um projeto visando a se tornar ponto de cultura. Como a associao no possusse ainda o tempo necessrio de existncia, o projeto acabou sendo encaminhado pela Fundao Dom Jos Brando de Castro, j bem estabelecida. Novos cursos foram realizados, uma marca foi criada, uma designer foi contratada e vem desenvolvendo produtos que apostam na aplicao de renda em peas de tecido, incluindo peas de vesturio. A fundao repassa para as rendeiras as peas a serem produzidas, fornece a matria-prima e remunera pelo trabalho. O desafio ser, agora, compatibilizar mais essas conquistas com o caminho de autonomia e protagonismo que as rendeiras de bilro de Poo Redondo vm h alguns anos trilhando.
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Fazendo renda
Para fazer a renda de bilro, o primeiro passo a almofada. Feita com capim seco forrado com tecido de algodo de modo a adquirir um formato cilndrico, apoiada sobre um cavalete de madeira. A rendeira ir precisar tambm de um bom punhado de espinhos de mandacaru, que, se no encontrados, podem ser substitudos por alfinetes, embora haja a queixa de que escorregam, fazendo perder os pontos, e de que se dobram muito facilmente. Sero necessrios linha, que pode ser de diferentes tipos e espessuras; um papelo com a matriz do modelo que se deseja produzir; e, para comear, cerca de duas dzias de bilros, suficientes para os bicos e entremeios de at cinco ou dez centmetros de largura.
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As rendas mais largas e os motivos mais elaborados so feitos apenas por rendeiras j experientes, que podem chegar a fazer tilintar, tranando de um para outro lado, 300 bilros em uma nica pea. Mesmo nas mos de rendeira j muito experiente, um metro de renda de 30 centmetros pode chegar a levar um ms para ser produzida, com muitas horas de trabalho todos os dias. O n mero de bi lros empregados em u ma pe a c omo u m d iplom a p a r a a re nd e i r a , a s si m como o a arte de pinicar os papeles que opera m como matrizes, procurados e guardados com estima pelas rendeiras e cujos mistrios nem todas dominam.
Sr. Jos Lemos
O povoado Stios Novos, no muito distante da sede do municpio de Poo Redondo, chama a ateno pelo grande nmero de mulheres que, uma aps outra gerao, vm se dedicando a ornar os cortes de pano com fios que se entrecruzam e entremeiam ao tecido em composies graciosas. Contando os fios de dois por dois, de dois por trs, fazem os pontinhos midos que cobrem, s vezes, toda a extenso do tecido. Os pontos mais frequentes so o ponto cruz e o rendend, que na dcada de 1970 ganhou visibilidade, chegando a ser conhecido como a renda sergipana. Era uma tarde quente de dezembro quando as mulheres bordadeiras de Stios Novos se reuniram para conversar sobre o ofcio que possuam, estimuladas por tcnicos do programa Artesanato Solidrio, nos idos de 2001. No clube da cidade, apoiadas no desenho de um umbuzeiro, foram provocadas a pensar juntas sobre os problemas que enfrentavam e como fariam para super-los. Ldia conta que no foi s primeiras reunies, at que cedeu persistncia de uma vizinha, dona Eutmia, bordadeira das mais antigas, por quem todas demonstram grande carinho. Quando chegou, queriam que ela escrevesse em
Ldia
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um pequeno quadro um sonho que possusse, para juntar aos das demais, mas, em suas palavras, ela no tinha sonho. Seguiram a reunio, ela ficou participando e, quando foi no terceiro dia, olha eu ali parada sonhando. Veio da o nome escolhido pelas bordadeiras para a cooperativa que ento formaram Um sonho a mais.
O sbito interesse pela atividade que por ali h tanto se fazia alou-as de uma vida que pouco tinha a oferecer s mulheres. Geanne conta que elas pouco se conheciam, no
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tinham qualquer distrao; quando algum de fora chegava, se escondiam, no cumprimentavam nem encaravam as pessoas. Hoje todas conversam, viajam, no tm mais timidez. As bordadeiras de repente se viram envolvidas com novos aprendizados, integrantes de um movimento mais amplo. Aprenderam o avesso perfeito; aperfeioaram a bainha aberta, o perflio e os cantinhos; padronizaram cores, produtos e tamanhos. Aprenderam sobre cooperativismo e gesto, e passaram a assumir todas as etapas, da produo comercializao. Embora a tcnica do bordado possa ser aplicada a quaisquer esquemas grficos, as bordadeiras de Stios Novos optaram pelo estabelecimento de alguns padres, o que foi feito com base em antigas peas encontradas nos bas de suas mes, tias e avs por uma designer ligada ao Programa Artesanato Solidrio. H
muito produzidos e reproduzidos, esses padres acabaram por conformar uma identidade visual, com nomes que as bordadeiras lhes foram dando por associao com elementos por elas conhecidos: linha do trem, olho de pombo, teia de aranha, escadinha, tijolinho, centro oval, boa noite. Os padres estabelecidos se renovam por intermdio de variaes, ao que do o nome de guarnio.
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O estabelecimento de padres fixos visava, justamente, a criar uma identidade para a nova marca Stio dos Bordados, bem como reduzir o tempo de trabalho empregado em cada pea, viabilizando a comercializao e melhorando a remunerao ao trabalho das bordadeiras. De modo a ajustar as peas produzidas ao gosto dos clientes em potencial, as cores vibrantes de que as bordadeiras gostavam passaram recepo da cooperativa, em um mostrurio decorativo de
pontos, para dar vida ao espao, dando lugar a tons mais suaves e aos bordados em branco. Com a assessoria do Artesanato Solidrio, estabeleceram o sistema de trabalho que ainda hoje vigora, rompendo com o antigo sistema de encomendas em que as intermedirias lhes repassavam os esquemas grficos e os materiais e centralizavam as encomendas. As bordadeiras passaram, assim, a contar o tempo que dedicam a cada pea produzida e a remunerar o prprio trabalho. Atualmente, com o apoio de programas variados que elas prprias se encarregam de administrar, controlam os estoques de matria-prima, adquirem embalagens e folheterias, participam de eventos e feiras para a comercializao da produo. Na sede da cooperativa, se encontram para bordar enquanto conversam, riem, trocam confidncias. Entre os desafios enfrentados na busca pela valorizao dessa prtica artesanal, seguem com o contnuo movimento de encontrar em cada tempo o ajuste entre as formas dos bordados e o gosto dos compradores, inventando novas peas, adequando as medidas, caprichando no asseio e apresentao de cada uma delas.
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entremeando os fios
Para a confeco da pea, as bordadeiras cortam o tecido no tamanho estabelecido e chuleiam a borda para que no desfie. Costuram a bainha mo, observando a medida. Com especial cuidado, fazem a dobra dos cantinhos sem que haja sobreposio. Para a bainha aberta, puxam os fios na altura da bainha e costuram, de seis em seis, os f ios opostos na trama. Quando o ac aba mento d ado o perflio primeiro feita a costura, depois a pea lavada, engomada e passada, e s ento o tecido cortado, para no ficar com fiapos na ponta.
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O cuidado seg u inte com a distribuio do motivo no corte de tecido, ra zo pela qu a l mu ito s b ordados so iniciados a partir do meio da pea. Ma s o ma is importante para um trabalho bem acabado, aspecto que para as bordadeiras tem o efeito de um marco, o feitio do avesso perfeito, obtido quando todos os pontos so feitos em uma mesma direo. pelo avesso que se conhece a bordadeira, e as bordadeiras de Stios Novos muito se orgulham do avesso das peas que executam, sem ns ou linhas transpassadas. Aps a realizao do bordado, lavam e alvejam, engomam e passam a pea, finalizao que exige habilidade e percia. O excesso de goma tira a maleabilidade da pea e pode acarretar sua deformao.
Avesso
Bibliografia
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RIO DE JANEIRO | 29 de agosto a 29 de Setembro de 2013 MINISTRIO DA CULTURA | IPHAN | CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E CULTURA POPULAR MUSEU DE FOLCLORE EDISON CARNEIRO