Alguns Poemas de Vinicius de Moraes
Alguns Poemas de Vinicius de Moraes
Alguns Poemas de Vinicius de Moraes
Viglia
Rio de Janeiro Eu s vezes acordo e olho a noite estrelada E sofro doidamente. A lgrima que brilha nos meus olhos Possui por um segundo a estrela que brilha no cu. Eu sofro no silncio Olhando a noite que dorme iluminada Pavorosamente acordado dor e ao silncio Pavorosamente acordado! Tudo em mim sofre. Ao peito opresso no basta o ar embalsamado da noite Ao corao esmagado no basta a lgrima triste que desce, E ao esprito aturdido no basta a consolao do sofrimento. H qualquer coisa fora de mim, no sei, no vago Como que uma presena indefinida Que eu sinto mas no tenho. Meu sofrimento o maior de todos os sentimentos Porque ele no precisou a viso que flutua E no a precisar jamais. A dor estar em mim e eu estarei na dor Em todas as minhas viglias... Eu sofrerei at o ltimo dia Porque ser meu ltimo dia o ltimo dia da minha mocidade.
D ao meu verso, mar, a ligeireza, a graa de teu ritmo renovado. 3 Eu sou, mar, tu bem sabes, teu discpulo. Que nunca digas, mar, que no foste meu mestre 4 Cantam em mim, mestre mar, metendo-se pelos largos canais que h nos meus ossos, das tuas que so como ondas mestras, que a ti voltam de novo num unido, s e mesclado mar de minha boca Gil Vicente, Machado, [ ... ] Baudelaire, Juan Ramon, Rubn Daro, Pedro Espinosa, Gngora... e as fontes que em minha aldeia cantam pelas praas. 5 Sento-me, mar, a ouvir-te Te sentarias tu, mar, para escutar-me? 6 Tens a vaidade, o desmedido orgulho de saber que meus versos so sempre em teu louvor. 7 Vais largando, praia, terra que te susteve. 8 Nada em teu corao, nada em teu ventre.
9 Equivocado, o mar solta uma andorinha. 10 Rompe o mar tamarindos pela espuma. 11 Guano marinheiro: "venta" de humilde mar "varado". "Venta" de pobres ventos, de modestos crepsculos, de albas arruinadas. 12 Preamar silencioso de meus mortos. Ellos, quizs, los que os estn limando, Eles, talvez, os que vos vo limando ruivas rochas distantes. 13 Se te escutasses, mar, se tua linguagem pudesse, mar, ser outra, que palavras dirias? 14 De qualquer modo, mar, soas o mesmo e continuas parecendo com teu velho retrato. 15 Mar; s vezes, sentado no se sabe em que assento. 16
V-se que, mesmo querendo, mar forudo, no podes. 17 Aqui jaz o mar. Nem ele mesmo soube jamais o nmero de ondas que desfez o seu sonho. 18 Aqui jaz o mar. Gostaria de ter sido marinheiro, desde menino. 19 Aqui jaz o mar. Ningum teve, como ele, um caixo pregado com estrelas. 20 Aqui jaz o mar. A morte sentada ereta, na praia, a contempl-lo. 21 Aqui jaz o mar. Devesse jazer tambm o cu sobre seu tmulo. 22 O mar morreu. No tinha para o amor mais fora que a de um menino. 23
Quem seria, mar, capaz de escrever-te o epitfio? 24 Quero, mar, que em meu dia, que resta, hoje mesmo morras tu tambm. 25 Cada manh e o mar fecha os dentes. 26 Hoje, mar, amanheceste com mais meninos que ondas. 27 Sim, mar, eu sei, tu s para mim a outra margem. 28 Mas me disseste, mar, mar mar do colgio, mar dos telhados que outras praias tuas, to distantes, ia eu chorar, sedado, mar, por ti, mar do colgio, mar dos telhados. 29 Decerto te botei, mar guri, em minha frente e ali foste crescendo em ondulagem at que te fizeste mulher e homem ao mesmo tempo. 30 Menino, eu queria patinar em tuas ondas,
mar do Sul, impossvel ao corao de gelo. 31 Menino mar, no sabes? ele te pintava sempre a aquarela. 32 Sbado o mar solta um cavalo branco... e deixaste dormindo. 33 s de sbito, igual a uma criada velha, gruona e doce, que tinha minha me 34 A areia, quente Geladas as ondas. Os que morreram Maruja, vo te chamar. 35 Ferozes lees. Furiosos cavalos. Mas se so de espuma Quem pode dom-los? 36 Inclinei-me para ver o mar. E vi apenas uma mulher chorando contra o quarto minguante de uma lua crescente. 37
Mar, andei tua procura esse imortal sorriso... porm no o encontrei. 38 Rico, at mesmo sem ver, de suspiros mortos. 39 Saste de ti mesmo, levando contigo a praia... mas te horrorizaste de ti mesmo, e voltaste. 40 Que ests pensando, mar dos veranistas? 41 Tu gostarias, mar, de andar de bicicleta, dar um grande passeio pelas namblas alugar uma barraca verde e "cumbar-te" na praia como um mar qualquer descansando do banho?
Tu n'est jamais la soeur de charit, jamais! Rimbaud Sim, vs sois (eu deveria ajoelhar dizendo os vossos nomes!) E sem vs quem se mataria no pressgio de alguma madrugada? vossa mesa irei murchando para que o vosso vinho v bebendo De minha poesia farei msica para que no mais vos firam os seus acentos dolorosos Livres as mos e serei Tntalo - mas o suplcio da sede vs o vereis apenas nos meus olhos Que adormeceram nas vises das auroras geladas onde o sol de sangue n o caminha E vs!... (Oh, o fervor de dizer os vossos nomes angustiados!) Deixai correr o vosso sangue eterno sobre as minhas lgrimas de ouro! Vs sois o esprito, a alma, a inteligncia das coisas criadas E a vs eu no rirei - rir atormentar a tragdia interior que ama o silncio Convosco e contra vs eu vagarei em todos os desertos E a mesma guia se alimentar das nossas entranhas tormentosas. E vs, serenos anjos... (eu deveria morrer dizendo os vossos nomesl) Vs cujos pequenos seios se iluminavam misteriosamente minha presena silenciosa! Vossa lembrana como a vida que no abandona o esprito no sono Vs fostes para mim o grande encontro E vs tambm, rvores de desejo! Vs, a jetatura de Deus enlouquecido Vs sereis o demnio em todas as idades.
Trecho
Quem foi, perguntou o Celo Que me desobedeceu? Quem foi que entrou no meu reino E em meu ouro remexeu? Quem foi que pulou meu muro E minhas rosas colheu? Quem foi, perguntou o Celo E a Flauta falou: Fui eu. Mas quem foi, a Flauta disse
Que no meu quarto surgiu? Quem foi que me deu um beijo E em minha cama dormiu? Quem foi que me fez perdida E que me desiludiu? Quem foi, perguntou a Flauta E o velho Celo sorriu.
Transfigurao da montanha
E uma vez Ele subiu com os apstolos numa montanha alta E l se transfigurou diante deles. Uma aurola de luz rodeava-lhe a cabea Ele tinha nos olhos o paroxismo das coisas doces Sua tnica tinha a alvura da neve E nos seus braos abertos havia um grande abrao a toda a humanidade A natureza parou esttica S os pssaros cantavam melodias Melodias doces como os olhos Dele E veio uma nuvem grande e cobriu os apstolos E se ouviu uma voz: "Este meu filho bem-amado, em quem tenho posto todas as minhas complacncias; escutai-o!" E os apstolos escutaram a grande voz da nuvem, e se prostraram E quando eles ergueram os olhos no havia mais nuvem A natureza j no estava mais parada Tudo continuava Como os olhos Dele continuavam doces E Ele lhes disse: "No faleis desta viso at que o filho do homem ressuscite dos mortos" E lanando os olhos em torno Ele viu a terra embaixo Viu a terra do alto da montanha E viu a outra montanha do outro lado da terra Era uma pedra imensa Dominava tudo De baixo, a terra olhava para a montanha Admirada!
Ela tinha sido precipitada para cima Pelas grandes foras da natureza Na sua base, onde a floresta escorre em seiva Onde pelos grandes troncos descem leos vermelhos E onde as folhas berram um cheiro enorme de mato bravo, Os pssaros viviam na felicidade profunda de seus cantos Grandes cobras dormiam nos desenhos de sol E as borboletas eram fecundadas em pleno vo. s vezes vinha o vento Entrava na selva E levava at em cima um cheiro enorme de mato bravo. A montanha tinha em si toda a natureza Tinha um rio que dormia nos desenhos de sol E que de repente acordava e pulava nas cascatas. Ele viu tudo Viu a montanha e viu a floresta Viu principalmente a floresta E amou muito a montanha A montanha que possua toda a natureza Menos Ele Seus divinos lbios entreabriram-se num sorriso E ele falou para Deus: "Dia vir em que hei de ter aquela pedra por trono e l de novo eu me transfigurarei!" Depois tudo mudou O mundo girou sempre, andou sempre O mundo judeu errante. No parava na catstrofe As guerras se sucediam Os flagelos se sucediam Andavam, sempre para a frente, sempre para a frente Flagelos judeus errantes O grande sentimento era o dio dio de tudo dio grande De coraes pequenos Os homens s tratavam de si As mulheres tratavam de todos
No mais a beleza da vida No mais o amor. O tigre desperta e mata tudo Mata os pequeninos que choram de medo Mata as mes que tm os olhos despertos nas grandes noites da vida E os pais que tm a fronte enrugada pelas preocupaes. Mata tudo. Quer matar at Deus Porque sabe que Ele v todas as coisas V os pequeninos que morrem V os pais e as mes que morrem E porque tem medo da Sua justia. Nas grandes sociedades havia muitas festas Havia muitas festas e muitos vcios Os homens bebiam para esquecer o dia de amanh E bebiam no dia de amanh para esquecer o dia que passou As mulheres bebiam para imitar os homens E fumavam tambm No mais a arte No mais a poesia A arte est na alma dos homens que bebem A poesia canta a arte dessas almas bbadas Que da poesia profunda da natureza? Que da arte da natureza? Morreu. Morreu com a alma do homem. A alma do homem como o amor morto Onde todas as coisas biam superfcie Ai! O tempo em que a alma do homem era o oceano O grande oceano que guarda prolas e possui vegetaes esquisitas E onde a luz bia superfcie! Mas o mundo mudou. Ele foi esquecido A transfigurao foi esquecida Os homens s se lembraram Dele Ou para ofend-lo enquanto viviam Ou para tem-lo covardemente na hora da morte.
Mas uns houve que no perderam o sentido da vida Que guardaram na alma a grande simplicidade das coisas boas Uns, que perdoavam Uns, que socorriam e sorriam para a morte gloriosa Eles tinham dentro da roupa preta que os vestia A alma branca dos que so os bem-aventurados de Deus Eles eram poucos Foram aumentando Pregaram aos outros o sentido da vida que eles possuam O mundo no escutava Tinha a surdez profunda da inteligncia A vontade perseverante contudo fez efeito E um dia, alto, formidvel A bela cabea nas nuvens E os ps na rocha bruta Ele surgiu num esplendor de divindade Transfigurado Os braos abertos como num abrao E os olhos suaves olhando a terra embaixo Apareceu Branco e enorme Sobre a rocha escura e enorme A rocha e Ele Se unificaram na mesma beleza O grupo formidvel Vivia a impresso Da grande cena bblica A pedra que guardava a floresta E o grande gigante meigo Era como a cena bblica Da fundao da Igreja A pedra enorme Era a prpria fora espiritual de so Pedro Posta na matria A base A pedra da Igreja E em cima, Ele, Senhor de todas as coisas Belo e agigantado
Olhando as coisas embaixo Com o olhar bom do que foi Homem Com o amor do que [] o nico Deus. Senhor! Tu ests l E tu ests em todos os lugares E ouo a tua voz na msica do mundo E sinto a tua mo na plstica das coisas Tu s o ponto de partida Tu s o caminho E s o fim do caminho s o cardo que fere os ps E a grama macia que os repousa E a grande tempestade de vento E o ar parado que sereniza. s o pranto dos olhos E o riso da boca s o sofrimento do mundo Numa promessa de eterna felicidade s Deus Deus que v todas as coisas e a todas d remdio E que o nico perdo: Amm.
Tarde
Rio de Janeiro Na hora dolorosa e roxa das emoes silenciosas Meu esprito te sentiu. Ele te sentiu imensamente triste Imensamente sem Deus Na tragdia da carne desfeita. Ele te quis, hora sem tempo Porque tu eras a sua imagem, sem Deus e sem tempo. Ele te amou
E te plasmou na viso da manh e do dia Na viso de todas as horas hora dolorosa e roxa das emoes silenciosas.
Sonoridade
Rio de Janeiro Meus ouvidos pousam na noite dormente como aves calmas H iluminaes no cu se desfazendo... O grilo um corao pulsando no sono do espao E as folhas farfalham um murmrio de coisas passadas Devagarinho Em rvores longnquas pssaros sonmbulos pipilam E guas desconhecidas escorrem sussurros brancos na treva. Na escuta meus olhos se fecham, meus lbios se oprimem Tudo em mim o instante de percepo de todas as vibraes. Pela reta invisvel os galos so vigilantes que gritam sossego Mais forte, mais fraco, mais brando, mais longe, sumindo Voltando, mais longe, mais brando, mais fraco, mais forte. Batidos distantes de passos caminham no escuro sem almas Amantes que voltam... Pouco a pouco todos os rudos se vo penetrando como dedos E a noite ora. Eu ouo a estranha ladainha E ponho os olhos no alto, sonolento. Um vento leve comea a descer como um sopro de bno Ora pro nobis... Os primeiros perfumes ascendem da terra Como emanaes de calor de um corpo jovem. Na treva os lrios tremem, as rosas se desfolham... O silncio sopra sono pelo vento Tudo se dilata um momento e se enlanguesce E dorme. Eu vou me desprendendo de mansinho... A noite dorme.
Soneto do s
Rio de Janeiro (Parbola de Malte Laurids Brigge) Depois foi s. O amor era mais nada Sentiu-se pobre e triste como J Um co veio lamber-lhe a mo na estrada Espantado, parou. Depois foi s. Depois veio a poesia ensimesmada Em espelhos. Sofreu de fazer d Viu a face do Cristo ensangentada Da sua, imagem - e orou. Depois foi s. Depois veio o vero e veio o medo Desceu de seu castelo at o rochedo Sobre a noite e do mar lhe veio a voz A anunciar os anjos sanguinrios... Depois cerrou os olhos solitrios E s ento foi totalmente a ss.
O amado corao, e que se agrada Mais da eterna aventura em que persiste Que de uma vida mal-aventurada. Louco amor meu, que quando toca, fere E quando fere vibra, mas prefere Ferir a fenecer - e vive a esmo Fiel sua lei de cada instante Desassombrado, doido, delirante Numa paixo de tudo e de si mesmo.
Este amor que real, e que, contudo Eu j no cria que existisse mais. Este amor que surgiu insuspeitado E que dentro do drama fez-se em paz Este amor que o tmulo onde jaz Meu corpo para sempre sepultado. Este amor meu como um rio; um rio Noturno interminvel e tardio A deslizar macio pelo ermo E que em seu curso sideral me leva Iluminado de paixo na treva Para o espao sem fim de um mar sem termo.
Soneto do amigo
Los Angeles Enfim, depois de tanto erro passado Tantas retaliaes, tanto perigo Eis que ressurge noutro o velho amigo Nunca perdido, sempre reencontrado. bom sent-lo novamente ao lado Com olhos que contm o olhar antigo Sempre comigo um pouco atribulado E como sempre singular comigo. Um bicho igual a mim, simples e humano Sabendo se mover e comover E a disfarar com o meu prprio engano. O amigo: um ser que a vida no explica Que s se vai ao ver outro nascer E o espelho de minha alma multiplica... Los Angeles, 1946.
Soneto de vspera
Oxford Quando chegares e eu te vir chorando De tanto te esperar, que te direi? E da angstia de amar-te, te esperando Reencontrada, como te amarei? Que beijo teu de lgrimas terei Para esquecer o que vivi lembrando E que farei da antiga mgoa quando No puder te dizer por que chorei? Como ocultar a sombra em mim suspensa Pelo martrio da memria imensa Que a distncia criou - fria de vida Imagem tua que eu compus serena Atenta ao meu apelo e minha pena E que quisera nunca mais perdida...
Oxford, 1939.
Soneto de um domingo
Rio de Janeiro Em casa h muita paz por um domingo assim. A mulher dorme, os filhos brincam, a chuva cai... Esqueo de quem sou para sentir-me pai E ouo na sala, num silncio ermo e sem fim, Um relgio bater, e outro dentro de mim... Olho o jardim mido e agreste: isso distrai V-lo, feroz, florir mesmo onde o sol no vai A despeito do vento e da terra que ruim.
Na verdade o infinito essa casa pequena Que me amortalha o sonho e abriga a desventura E a mo de uma mulher fez simples, pura e amena. Deus que s pai como eu e a estimas, porventura: Quando for minha vez, d-me que eu v sem pena Levando apenas esse pouco que no dura.
Soneto de separao
Oceano Atlntico, a bordo do Highland Patriot, a caminho da Inglaterra De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mos espalmadas fez-se o espanto. De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a ltima chama E da paixo fez-se o pressentimento E do momento imvel fez-se o drama. De repente, no mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente. Fez-se do amigo prximo o distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, no mais que de repente.
Soneto de inspirao
Rio de Janeiro
No te amo como uma criana, nem Como um homem e nem como um mendigo Amo-te como se ama todo o bem Que o grande mal da vida traz consigo. No nem pela calma que me vem De amar, nem pela glria do perigo Que me vem de te amar, que te amo; digo Antes que por te amar no sou ningum. Amo-te pelo que s, pequena e doce Pela infinita inrcia que me trouxe A culpa de te amar - soubesse eu ver Atravs da tua carne defendida Que sou triste demais para esta vida E que s pura demais para sofrer.
Soneto de carnaval
Oxford Distante o meu amor, se me afigura O amor como um pattico tormento Pensar nele morrer de desventura No pensar matar meu pensamento. Seu mais doce desejo se amargura Todo o instante perdido um sofrimento Cada beijo lembrado uma tortura Um cime do prprio ciumento. E vivemos partindo, ela de mim E eu dela, enquanto breves vo-se os anos Para a grande partida que h no fim De toda a vida e todo o amor humanos: Mas tranqila ela sabe, e eu sei tranqilo Que se um fica o outro parte a redimi-lo.
Soneto de aniversrio
Rio de Janeiro Passem-se dias, horas, meses, anos Amaduream as iluses da vida Prossiga ela sempre dividida Entre compensaes e desenganos. Faa-se a carne mais envilecida Diminuam os bens, cresam os danos Vena o ideal de andar caminhos planos Melhor que levar tudo de vencida. Queira-se antes ventura que aventura medida que a tmpora embranquece E fica tenra a fibra que era dura. E eu te direi: amiga minha, esquece.... Que grande este amor meu de criatura Que v envelhecer e no envelhece.
Soneto ao inverno
Londres Inverno, doce inverno das manhs Translcidas, tardias e distantes Propcio ao sentimento das irms E ao mistrio da carne das amantes: Quem s, que transfiguras as mas Em iluminaes dessemelhantes E enlouqueces as rosas tempors Rosa-dos-ventos, rosa dos instantes? Por que ruflaste as tremulantes asas Alma do cu? o amor das coisas vrias Fez-te migrar - inverno sobre casas!
Anjo tutelar das luminrias Preservador de santas e de estrelas... Que importa a noite lgubre escond-las?
Sombra e luz
I
Dana Deus! Sacudindo o mundo Desfigurando estrelas Afogando o mundo Na cinza dos cus
Sapateia, Deus Negro na noite Semeando brasas No tmulo de Orfeu. Dana, Deus! dana Dana de horror Que a faca que corta D talho sem dor. A dama Negra A Rainha Euterpe A Torre de Magdalen E o Rio Jordo Quebraram muros Beberam absinto Vomitaram bile No meu corao. E um gato e um soneto No tmulo preto E uma espada nua No meio da rua E um bezerro de ouro Na boca do lobo E um bruto alifante No baile da Corte Naquele cantinho Coc de ratinho Naquele canto Coc de rato. Violino moo fino - Quem se rir h de apanhar. Violo moo vadio - No sei quem apanhar. II
Munevada glimou vestassudente. Desfazendo-se em lgrimas azuis Em mistrios nascia a madrugada E o vampiro Nosferatu Descia o rio Fazendo poemas Dizendo blasfmias Soltando morcegos Bebendo hidromel E se desencantava, minha me! Ficava a rua Ficava a praia No fim da praia Ficava Maria No meio de Maria Ficava uma rosa Cobrindo a rosa Uma bandeira Com duas tbias E uma caveira. Mas no era o que queria Que era mesmo o que eu queria? "Eu queria uma casinha Com varanda para o mar Onde brincasse a andorinha E onde chegasse o luar Com vinhas nessa varanda E vacas na vacaria Com vinho verde e vianda Que nem Carlito queria." Nunca mais, nunca mais! As luzes j se apagavam
Os mortos mortos de frio Se enrolavam nos sudrios Fechavam a tampa da cova Batendo cinco pancadas. Que fazer seno morrer? III
Pela estrada plana, toc-toc-toc As lgrimas corriam. As primeiras mulheres Saam toc-toc na manh O mundo despertava! em cada porta Uma esposa batia toc-toc E os homens caminhavam na manh. Logo se acendero as forjas Fumaro as chamins Se caldear o ao da carne Em breve os ferreiros toc-toc Martelaro o prprio sexo E os santos marceneiros roc-roc Mandaro beros para Belm. Ouve a cantiga dos navios Convergindo dos temporais para os portos Ouve o mar Rugindo em cleras de espuma Have mercy on me O Lord Send me Isaias I need a poet To sing me ashore. Minha luz ficou aberta Minha cama ficou feita Minha alma ficou deserta Minha carne insatisfeita.