Luiz Gonzaga de Carvalho Neto - O Gênesis

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Curso Leitura dos Clssicos Luiz Gonzaga de Carvalho Neto O Gnesis A primeira ligao geral entre o Gnesis e o Otelo

que o Gnesis o primeiro livro da Bblia. A Bblia, enquanto escritura sagrada, tem uma diferena em relao a uma obra de literatura: as escrituras sagradas servem como instrumento de fundao da mentalidade de um povo inteiro, s vezes de civilizaes inteiras que abrangem vrios povos. A Bblia, por exemplo, fundou uma civilizao que abrangeu algumas dezenas de povos. Toda a obra do Shakespeare nada mais do que uma expresso literria dessa mentalidade formada pela Bblia. A obra do Shakespeare tem um efeito no mundo ocidental, especialmente na Inglaterra, de renovao da mentalidade bblica. O enredo do Otelo est contido inteirinho na histria da serpente no dem. Na pea Otelo temos um sujeito que tem algo de bom e um outro que chega em seu ouvido e diz: No bem assim. Faz tal outra coisa que a sua vida melhorar ainda mais. Pergunta de uma aluna: Ento o Otelo a Eva e o Iago a serpente? Prof. Luiz: Exatamente. Dando prosseguimento, o Gnesis no tem como ser lido letra. No que ns no devemos, que ns jamais conseguiremos ler o Gnesis letra. Os fatos narrados no Gnesis esto to distanciados historicamene de ns que no possumos nenhum instrumento de comparao para a verificao da literalidade de seu contedo. No houve nenhuma testemunha origem do universo. Tambm no houve nenhuma testemunha origem da espcie humana. Os primeiros seres humanos j morreram h muito tempo e no deixaram nada para ns alm de nossa carga gentica. Para lermos uma narrao de fatos e verificarmos a literalidade dos mesmos fatos precisamos de instrumentos de comparao. Esses instrumentos podem ser outros relatos acerca dos mesmos fatos ou provas e objetos fsicos que ainda restam daquele momento. Esses so os nicos meios para averiguar a veracidade dos fatos. Uma outra alternativa compreendermos a expresso sentido literal de uma forma mais ampla. Essa alternativa foi levada cabo pela tradio da Igreja atravs dos Santos

Padres e pela Escolstica. O sentido literal tambm pode ser expresso de modo simblico. Sentido literal, para os escolsticos, significava simplesmente o sentido de um texto que se refere aos fatos. Por exemplo, h no Gnesis os seis dias da criao. Qual o sentido literal dos seis dias da criao? No d para saber se os dias possuiam 24h e o ano 365 dias. Para afirmarmos tais dados com total certeza, seria preciso que as leis naturais e fsicas tais como as conhecemos hoje, tivessem permanecidas sempre as mesmas no decorrer do tempo. Suponhamos que h vinte milhes de anos atrs as leis fsicas fossem diferentes. No h nenhuma razo para levantarmos esta hiptese seriamente, no entanto isto uma possibilidade csmica. O que so as leis da fsica ou as leis naturais? So simplesmente as normas regulares que ns observamos nas coisas naturais. H quanto tempo ns as observamos sistematicamente para sabermos como o universo funciona? Mais ou menos h 200 anos. Ento, podemos facilmente supor que h trinta mil anos essas leis operassem de modo diferente. S iremos chegar a alguma concluso se observamos o universo sistematicamente por exatos trinta mil anos. Posteriormente os cientistas dos prximos trinta mil anos podero dizer: Olha s, a regularidade da natureza de trinta mil anos atrs era diferente da regularidade de hoje. Neste ponto eles podero comear a estudar as leis fsicas que causam as mudanas na regularidade das leis fsicas. Recentemente, na histria da fsica, a mudana da fsica clssica/newtoniana para a fsica relativista aconteceu deste modo. Para verificarmos a literalidade dos fatos narrados no Gnesis, devemos compar-los com o estado atual do mundo. Quando Santo Toms de Aquino faz uma interpretao literal do Gnesis, ele diz: O Gnesis o relato da origem do mundo e da humanidade. Ento ele abre um parntesis: O que o mundo? O que existe no mundo? No mundo existem coisas assim, assim e assim. Ele faz uma lista das coisas que existem. Pois se o relato verdadeiro, o mesmo deve relatar a criao de cada uma dessas coisas. Ento, Santo Toms de Aquino fala: No mundo existem as naturezas espirituais e imortais, isto , existe a inteligncia que de natureza abstrata e imortal. Quando Deus disse no primeiro dia: 'Faa-se a luz', esta luz a natureza intelectual e imortal. A primeira coisa que listamos do mundo, Deus j criou no primeiro dia. No segundo dia, Deus disse: 'Faa-se o firmamento no meio das guas, que separe as guas superiores das guas inferiores'. Essa

criao especfica se refere alma. O firmamento simboliza a alma, pois esta pode se voltar tanto para baixo quanto para cima. A alma pode seguir tanto a sua natureza espiritual, a inteligncia, quanto a natureza corporal. As guas superiores e inferiores so as possibilidades de desenvolvimento da alma. No terceiro dia, Deus disse: 'Reunam-se as guas que esto debaixo do cu numa s massa e surja o elemento seco'. O 'elemento seco' significa a criao da natureza corprea, pois existem corpos. O que chamamos de mundo hoje, ou seja, o mundo fsico, segundo Santo Toms, s foi criado no terceiro dia. Isso uma interpretao do sentido literal. A metodologia empregada para a interpretao do sentido literal foi a seguinte: no h ningum que possa voltar no tempo e depois relatar como de fato as coisas realmente aconteceram. Portanto, devemos listar as coisas existentes nos dias atuais e conceb-las como contingentes, isto , como dependentes de um princpio que as colocou na ordem do Ser. Esse princpio foi chamado por Santo Toms de Deus. As coisas existentes so de trs ordens: espiritual, psquica e corprea. Um relato da criao tem que mostrar esse princpio do qual dependem todas as coisas e mostrar tambm a existncias dessas trs naturezas. Notem que a interpretao de Santo Toms no de cunho espiritual ou mstica. A interpretao que ele faz sempre se refere aos fatos concretos do mundo. Quando no h outras notcias dos fatos alm dos textos, devemos verificar a veracidade da narrativa mediante a anlise da coerncia instrnseca do texto, e comparar esta coerncia intrnseca com a coerncia intrnseca dos fatos. Isso o mesmo que tentar averiguar a veracidade de uma biografia de um homem que viveu na pr-Histria. Para tanto, devemos comparar os fatos narrados no texto com as questes permanentes que atravessam toda e qualquer vida humana, imaginar as condies da vida humana e concluir se a narrativa ou no plausvel. exatamente deste modo que podemos analisar a veracidade de Otelo. Devemos nos perguntar: possvel que um ser humano reaja em algumas circunstncias do mesmo modo que o Otelo? Se a resposta for afirmativa, isto quer dizer que o texto verdadeiro. Porm, a pea no uma descrio de como os fatos aconteceram. Ns apenas podemos averiguar a coerncia da histria. O primeiro problema com a Bblia que mesmo o sentido literal envolve uma certa sutileza de interpretao. A mesma metodologia empregada para averiguarmos a veracidade da narrativa de criao

do mundo, deve ser empregada na anlise da narrativa que descreve a criao do ser humano. Deus fez Ado, Eva, eles estavam no Paraso e depois foram expulsos. Mas esta histria nos inverificvel hoje em dia. Diante desta dificuldade, ns devemos nos perguntar: O que o ser humano? O que ser um ser humano?. Aps o levantamento destas questes, devemos compar-las com a descrio do homem tal como foi feita na Bblia. Ns no podemos verificar o texto bblico como uma descrio cronotpica, isto , como algo que aconteceu num tempo e lugar especficos, pois no possumos nenhuma outra referncia deste tempo e lugar. Em Ado e Eva est a primeira descrio do que a natureza humana. Ado e Eva significam dois princpios que esto presentes em cada ser humano. Ns no sabemos quando extamente apareceu o primeiro ser humano, mas quando o mesmo apareceu ele j era como a descrio de Ado e Eva. Em caso contrrio, no era ser humano. Todos os relatos sobre a origem da humanidade ou sobre a origem do mundo no vo descrever o processo tal como o mesmo aconteceu, pois ningum testemunhou esse processo. H povos cujos mitos de criao afirmam que o mundo e a humanidade sempre existiram. No h uma origem temporal. Isso tambm uma hiptese. Pergunta de um aluno: E onde entra a evoluo? Prof. Luiz: A evoluo no entra em lugar algum. Mas suponhamos a admisso de uma teoria evolutiva que afirma que de uma srie de mutaes genticas em espcies de primatas, surgiu um ser que trazia em sua estrutura os princpios tal como so descritos em Ado e Eva. Apenas neste momento surge o ser humano, e no antes. Existem uma srie de objees que ns podemos fazer teoria da evoluo: a) objees metafsicas; b) objees probabilsticas; c) objees bioqumicas. Mas voltando para o relato de Ado e Eva na Bblia. Este relato no necessariamente um relato histrico. Um relato no histrico simplesmente pela sua forma intrnseca. Um relato torna-se histrico na medida em que h meios de compar-lo com os fatos que aconteceram. Se escrevermos a Histria das Guerras Napolenicas, por exemplo. Considerado em si mesmo o livro jamais poderia ser considerado como um relato histrico. Tanto no histrico que ns encontraremos nesse livro vrias referncias a outros textos, objetos e lugares que ainda existem, que vo consolidar no livro o seu

carter histrico. A simples narrao dos fatos faz referncias a coisas que so externas ao texto e que conferem historicidade ao mesmo. Se retirarmos todas as referncias bibliogrficas, temporais e espaciais de uma narrativa histrica, ao final ns no teremos condies de afirmar se o relato verdadeiro ou ficcional. Na mitologia hindu h o relato da vida do rei Rama. Essa narrativa era considerada histria apenas pelo povo. Os estudiosos, cientistas e at mesmo os sacerdotes acreditavam que o relato era apenas um mito que no tinha nada a ver com fatos histricos. Ocorre que um dia, acidentalmente, um sujeito descobriu na India uma cidade submersa. Atravs de pesquisas geolgicas, descobriu-se que a cidade poderia no est submersa h alguns milhares de anos. Aps a coleta de objetos e projees da planta da cidade realizada por uma equipe de mergulhadores e cientistas, verificou-se que a planta era muito semelhante descrio mitolgica da capital do rei Rama. Inclusive o smbolo dos selos reais coletados eram semelhantes ao smbolo do reino do rei Rama. A partir deste momento aquele texto pode ser considerado um relato histrico. Existem fatos cruciais na biografia de Napoelo Bonaparte que hoje em dia no h meios de verificao de sua veracidade. Houve um sujeito que decicidiu provar que Napoleo nunca existiu. E ele provou que do ponto de vista da cincia histrica to possvel que Napoleo tenha existido quanto que ele no tenha existido. Um texto s pode se tornar histrico atravs da comparao com elementos externos ao texto. Nas obras de hitria essa comparao j realizada no prprio volume no qual impresso o texto. essa comparao que d garantia de historicidade. Ocorre que a origem do mundo e da humanidade so fatos to remotos no tempo que esse tipo de comparao direta impossvel. Ento, uma narrativa que no tem uma funo histrica, ainda que os fatos tenham ocorrido exatamente como so narrados no texto do Gnesis. O que se pode fazer comparar o texto com elementos permanentes do mundo e da humanidade. Mas mesmo comparando o texto com tais elementos permanentes, ns devemos ter os devidos cuidados, pois alguns elementos que ns achamos que so permanentes, na verdade no o so. Um exemplo disso a questo da durabilidade da vida humana. De fato, ns temos alguma ideia mais ou menos clara acerca da mdia de durao da vida humana de algumas centenas de anos, mas no temos a mesma certeza no que diz respeito a alguns milhares ou at mesmo milhes de anos.

A interpretao do texto bblico fica mais complexa porque existem certas passagens que no tem como serem entedidas literalmente, como um relato histrico. H algumas passagens que de imediato devem ser interpretadas de modo simblico. Ns no sabemos se a primeira coisa criada foi o luz ou a natureza espiritual. Mas ns sabemos que aps a criao da luz no passou um dia, pois Deus ainda no tinha criado o sol. No havia nem sol e nem Terra. A palavra dia significa uma relao entre o sol e a Terra. Ento, dia nesta passagem tem que significar outra coisa, pois Deus mesmo falou que no havia feito nem a Terra e nem o sol ainda. A Terra foi feita no terceiro dia e o sol no quarto. Mas nestas passagens h um dado importantssimo, pois foi a partir delas que os hebreus comearam a contar os dias a partir do pr-do-sol, porque no Gnesis Deus diz que houve uma tarde e uma manh, e foi o primeiro dia. Essa interpretao de ordem moral. A interpretao de ordem moral no apela para um fato, mas para um comportamento que o texto prope para os homens. Para os judeus quando Deus fala que houve uma tarde e uma manh, e foi o primeiro dia, Deus est mandando que as pessoas comecem a contar os dias a partir do pr-do-sol. Os prprios judeus tambm afirmam que h ainda um outro sentido neste tarde e manh, que o seguinte: a tarde signinfica quando o povo de Israel inda estava sendo oprimido e a manh quando o povo de Israel foi libertado e glorificado. A tarde, ento, o perodo da promessa e a manh o perodo messinico. Essa interpretao no mais de cunho moral, mas doutrinal. Ela existe para explicar um elemento da doutrina judaica. O Gnesis para o povo hebreu tem um significado especial justamente porque ele um relato de uma srie de promessas que Deus fez para algumas pessoas. Ento, para os judeus, o perodo da histria humana divido em dois perodos: o perodo das promessas divinas e o perodo do cumprimento de tais promessas em diante. Recaptulando: a Bblia pode ser interpretada mediante um sentido literal, ou seja, em comparao traos permanentes do mundo e da humanidade; por um sentido moral, ou seja, como uma instruo quanto ao que fazer; por um sentido doutrinal, i. e., algo que ns devemos entender ou crer; por um sentido anaggico ou mstico. Este ltimo sentido refere-se a nveis de realidade que trascendem a percepo comum humana e que s so testemunhados pelos msticos e profetas. Qualquer passagem bblica pode possuir um desses quatro sentidos, e muitas delas contm os quatro. Por exemplo: Santo Toms

interpreta a criao da luz no sentido moral, mas Hugo de So Victor interpreta no sentido mstico e moral. Hugo de So Victor fala que toda vez que temos uma dvida a nossa mente est nas trevas, vaga e vazia, e ns temos que procurar algo que nos d um critrio de discernimento. Ns temos que procurar uma luz, ou seja, devemos procurar o que ns j sabemos. Para decidirmos acerca do que ns no sabemos, ns temos que ligar o que ns no sabemos com algo que ns j sabemos. A luz significa algo que ns j sabemos e com ela ns entendemos o que no sabemos. Essa uma interpretao de cunho moral. A interpretao mstica de Hugo de So Victor afirma que os seis dias da criao mais o stimo dia so os processos de santificao da alma na via mstica. O estado de vazio do primeiro dia se refere ao estado de total perdio inicial de todas as almas. O primeiro fenmeno que ocorre na alma a vinda da luz, a qual consiste na percepo da vaidade de nossas prprias vidas. Essa percepo da vaidade ocorre aps a percepo de nossas prprias limitaes, como, por exemplo, a percepo repentina da mortalidade humana. Quando isso acontece surge em ns a conscincia clara da nossa ignorncia. Essa conscincia clara da nossa ignorncia a luz do primeiro dia. A primeira pergunta sobre a Queda : por que Deus colocou uma rvore da qual o ser humano no podia comer no Paraso? Para responder a esta pergunta ns temos que interpretar o relato da Queda como um dado permanente da vida humana. O ser humano foi criado macho e fmea, Ado e Eva. Ocorre que Ado veio de Deus e Eva veio de Ado. Ento, nessa passagem, h a impresso que a mulher um ser humano de segunda categoria. Ocorre que anteriormente criao de Ado e Eva, Deus falou que j havia criado macho e fmea. Esse tipo de contradio aponta para a concluso que esses dois relatos referem-se a coisas diferentes. O macho e a fmea foram criados apenas no sexto dia no Gnesis. Segundo a interpretao literal de Santo Toms de Aquino, os trs primeiros dias referem-se criao dos trs principios cosmolgicos, isto , a inteligncia, a psique e os corpos. Do quarto ao sexto dia h a criao dos modelos de perfeio de cada um desses principios. No quarto dia Deus criou o Sol e a Luz que, por sua vez, so os modelos de perfeio espiritual. O Sol significa a contemplao das coisas eternas, e a Lua significa o entendimento das coisas temporais luz das coisas eternas. O primeiro tipo de

inteligncia, que o Sol, pertence aos anjos e aos grandes msticos. Creio que ningum aqui teve qualquer espcie de contemplao mstica ainda, mas ns podemos ler a biografia e escritos dos grandes santos e tentar guiar a nossa vida pelos mesmos. um tipo de conhecimento indireto, assim como indireta a luminosidade da lua. s vezes ns podemos ler os escritos dos santos e entender tudo errado, significando que a lua est nova. Em outras vezes ns podemos ler e entender tudo perfeitamente, significando a fase cheia da lua. No quinto dia Deus criou as aves do cu e os peixes nas guas. Ambas as criaes representam as perfeies psquicas, ou das almas. As aves do cu significam os conhecimentos adquiridos, e os peixes significam as virtudes, ou seja, os bons hbitos em nossa natureza passional. Neste dia h a proposio que toda alma humana deve buscar conhecimentos e virtudes. No sexto dia Deus criou as perfeies do mundo corpreo. As perfeies do mundo corpreo so representadas pelos seres vivos, dentre os quais o ser humano se destaca como o mximo de perfeio. Nesta passagem Deus est falando do ser humano enquanto ser vivo terrestre. Assim desde o comeo o ser humano homem e mulher. Posteriormente, quando Deus fala da criao de Ado e Eva, Ele no est mais se referindo ao ser humano enquanto espcie biolgica terrestre, mas dos elementos intrnsecos da natureza humana. Deus diz que criou Ado do barro. O barro feito de gua e terra. A caracterstica principal da gua e da terra que ambas possuem uma natural inclinao descentende. O ar circulatrio, o fogo ascendente, as criaturas se erguem e se movem, mas a terra e a gua descem e respousam. Foi exatamente no barro que Deus insuflou o seu esprito. O barro, ento, significa o modo com a inteligncia humana opera. A inteligncia humana feita de substncia descendente porque, em primiero lugar, ns nascemos sem saber nada e por vezes morremos sem saber nada tambm e, em segundo lugar, porque s aprendemos algo se formos humildes o bastante. Quando o ser humano torna-se cnscio de sua ignorncia acerca de algum dado da realidade, ele preparado para receber alguma compreenso da mesma realidade. Isso justamente o insuflo do esprito divino. Ado no o modelo dos seres humanos do sexo masculino, mas o modelo de operao da inteligncia humana. Por que a serpente no vai falar com Ado diretamente? Porque o

diabo no pode falar com a inteligncia humana diretamente. Apenas ns e Deus temos acesso inteligncia. Aps a criao de Ado, Deus diz que o mesmo estava s. Dizer que Ado estava s significa dizer que um ser feito apenas de inteligncia no pode existir no mundo fsico. Com isso Deus diz que far um semelhante a Ado para auxili-lo. Com o termo semelhante, Deus est dizendo que o auxiliar no participa da mesma natureza. O ser humano foi feito imagem e semelhana de Deus, mas ele no Deus. Eva, ento, no significa uma segunda inteligncia, mas um temperamento ou carter, imaginao e sentimentos. Todos esses elementos servem para auxiliar o trabalho da inteligncia. Notem que essa interpretao serve tanto para homens quanto para mulheres. No entanto, Santo Toms no interpreta a passagem deste modo. Essa interpretao de Santo Agostinho. Eva significa a alma passional. Nenhum conjunto de sentimentos humanos por si mesmo inteligente. O simples fato de gostarmos de uma coisa no quer dizer que a mesma seja algo bom, pois ns podemos gostar de coisas ruins. O diabo, ento, no vai tentar argumentar com a nossa inteligncia, mas com os nossos gostos, sentimentos e imaginaes. H trs personagens na Queda que, para Santo Agostinho, podem ser interpretados o seguinte modo: a serpente representa a tentao das coisas exteriores. Representa considerar as coisas exteriores a ns como possuidoras de valores permanentes. Posteriormente s coisas agradveis h o deleite da alma. Apenas por ltimo e tendo como causa esta apreciao que a inteligncia faz uma concesso. por isso que o diabo fala com Eva, a responsvel por levar o fruto at Ado. Ns cedemos em um ato errado no apenas por causa do objeto, mas quando esse objeto gera uma certa reverberao na nossa alma. Quando ns, ento, olhamos apenas para o que estamos sentindo, ns perdemos a medida objetiva e passamos para uma medida subjetiva. por isso que alguns comentadores da Bblia afirma que Eva foi criada da costela de Ado porque a costela um osso curvo, isto , no aponta para nada diretamente. Os nossos sentimentos tambm no apontam para nada diretamente. Eles so apenas indicadores subjetivos e indiretos do verdadeiro valor do objeto. Os nossos sentimentos fazem-nos comer o fruto da rvore do conhecimento do bem e do mal. Ocorre que se Ado e Eva no sabiam anteriormente o que era o bem e o mal no

poderia haver nenhuma proibio a respeito. Mas, por outro lado, Deus havia alertado para ambos que o fruto da rvore do conhecimento era mau. A concluso dessa passagem que o conhecimento do bem e do mal no significa nenhuma modalidade de conhecimento, mas uma modalidade de percepo. Consiste no estado habitual de atribuir s coisas um valor intrnseco e permanente. Por exemplo: ns costumamos dizer que dinheiro bom. Em geral, voc preferem ter ou no ter dinheiro? Ter! H algo em ns que atribuem s coisas um valor permanente, seja este positivo ou negativo. O fruto da rvore representa o efeito ltimo de alguma coisa. Se ns agirmos em nossa vida com base nos valores permanentes que atribumos aos objetos, a nossa inteligncia ir apagar, morrer, pois foi exatamente isto que Deus falou para Ado. Ns devemos modular as nossas percepes dos objetos atravs do uso da inteligncia. As coisas exteriores possuem um valor relativo. Nenhuma delas possui um valor intrnseco para o ser humano. No fim das contas, Deus deu apenas um mandamento para o ser humano: No atribuam um valor intrnseco s coisas. A nica coisa que possui um valor intrnseco e absoluto o prprio Deus. Essa a nica e suficiente lio de Deus para o ser humano. O nico problema na vida do ser humano a atribuio de valores permanentes coisas relativas. O mito da Queda, ento, trata-se de uma lio permanente para a vida humana. Para que ns existamos enquanto seres humanos dever haver um mundo de coisas exteriores a ns. Devemos ter cuidado com este mundo, porque as suas coisas s vezes nos fazem bem e s vezes nos fazem mal. E isso ser assim em qualquer mundo que vivamos. Deus, no mito da Queda, est descrevendo uma situao permanente em toda e qualquer vida humana e ofertando a sugesto para que o ser humano saiba lidar do melhor modo possvel com aquela situao. A proibio divina no mito da Queda no um teste de obedincia e muito menos um mandamento arbitrrio, mas uma descrio antropolgica da condio e dos problemas da vida humana, que consistem em criar o hbito de esquecer que as coisas so meros instrumentos e smbolos. A soluo para isso seria lembrar continuamente que h algo na natureza humana que completamente estranho ao mundo meramente corpreo. E mais: lembrar que as coisas desse mundo no so por elas mesmas capazes de satisfazer quela parte. Se o ser humano buscar a satisfao nas coisas do mundo enquanto meras coisas do mundo, essa parte intelectiva ficar frustrada inevitavelmente. Por que Deus fala que se

Ado proceder deste modo ele ir morrer? Porque a inteligncia a nica parte do ser humano que pode garantir a imortalidade o ser humano. por isso que os comentadores da Bblia consideram essa primeira lio divina como a primeira religio da humanidade. Essa lio revelou as necessidades espirituais fundamentais do ser humano. O relato da Queda um processo que volta e meia acontece com cada um de ns. Eu no conheo pessoalmente nenhuma pessoa em quem este processo jamais aconteceu. Pelo contrrio, para a maioria das pessoas esse processo ocorre cotidianamente. Eu todo dia fao algo guiado pelos meus sentimentos e emoes. E, por mais que eu ganhe algo com isso, em geral ficarei mais burro, pois a parte imortal em mim perdeu algo de si mesma. O nome que Ado dava para as demais criaturas significa o ato intelectivo de identificar uma coisa com outra. A inteligncia humana intuio. A capacidade expressiva da intuio se d pela razo, e a razo apenas uma modalidade de inteligncia. A partir de agora ns podemos colocar uma questo: se Deus disse que criaria uma auxiliar para Ado, por que a primeira coisa que ela fez foi atrapalh-lo? Os sentimentos existem para auxiliar a inteligncia, mas no diretamente. Os sentimentos no existem para nos dizer o que bom ou mau a cada instante, mas na sucesso do tempo. Voc hoje gosta de um objeto. Observe: ser que amanh voc continuar gostando do mesmo objeto? apenas na sucesso do tempo que se revela algo sobre o objeto. exatamente a este processo que ns damos o nome de experincia de vida. Dizemos que os velhos so mais sensatos porque eles j passaram por uma ampla gama de sentimentos pelas mesmas coisas. Nesta sucesso os velhos chegaram a um estado de imparcialidade objetiva em relao a um determinado objeto. Os sentimentos s ensinam quando a gama completa. No so as experincias intensas que nos permitem avaliar as coisas, so as experincias extensas. As experincias intensas de modo geral distorcem a nossa percepo do objeto. isso tambm que nos leva a comparar a inteligncia com o sol e os sentimentos com a lua. Ns s saberemos como a lua se ns a observarmos ao longo de um ms inteiro. No h um nico objeto ao qual iremos amar e desprezar com a mesma intensidade por todo o tempo. Nem ns mesmos. So Boaventura dizia que todos os pecados so cometidos com pressa. A pressa inimiga da perfeio. O profeta do islam dizia: A lentido vem de Deus e a pressa vem do diabo. A pressa no nos permite que em pouco tempo ns avaliemos a coisa tal como ela realmente . A compreenso que

deriva da lentido um dado permanente da vida humana. Ficou claro a que dados acerca da origem do mundo e da humanidade se refere os relatos no Gnesis? A prpria palavra origem deriva de oriente, significando o senso que ns temos das direes. Da que vem tambm a palavra orientar-se. A origem aqui no necessariamente um fato histrico, mas uma orientao permanente da humanidade. At o relato da Queda o Gnesis tem muito pouco tem histria. Apenas a partir de No em diante que o Gnesis adquire um carter histrico no sentido de referncia de identidade para um povo. O Gnesis passa a ser histrico enquanto modalidade de pensamento, pois podemos saber que tal povo em tal poca agiu de determinadas maneiras porque as mesmas estavam descritas em livro. Antes disso, o Gnesis servia apenas como orientao individual. No entanto, ainda que o Gnesis tenha um carter histrico, hoje em dia este carter no tem muita utilidade para ns. Atualmente, ns devemos encarar o Gnesis como um conjunto de orientaes fundamentais para cada vida humana em particular. Uma dessas orientaes fundamentais refere-se vida intelectiva. Sabemos que a inteligncia humana tem como funo principal a busca pela compreenso do real. O real possui dois planos: o primeiro da ordem do Infinito ou do Absoluto; e o segundo da ordem do finito ou do relativo, isto , o plano deste mundo, o plano ao qual o prprio homem pertence. A inteligncia humana foi feita para investigar e entender esses dois planos. Ocorre que como a inteligncia humana sempre opera inicialmente com base nos sentidos, a mesma est em desvantagem em relao ao plano do Infinito. Pois tudo o que percebemos com os sentidos necessariamente pertence ao plano do limitado. Como um modo de compensar essa desvantagem inicial em relao ao plano do Infinito, Deus dota o homem de afetividade, a qual est ausente nos anjos. Os anjos, segundo as descries teolgicas, percebem o valor das coisas objetivamente. Os objetos no possuem nenhuma reverberao subjetiva nos anjos. J o ser humano extremamente suscetvel a reverberaes sentimentais por vezes desproporcionais provocadas pelos objetos. Uma experincia que pode ser utilizada para exemplificar este processo quando levantamos da cada numa manh fria de inverno e batemos dedo no p da cama. Neste exato momento a sensao de dor completamente estranha e desproporcional natureza do p da cama, mas proporcional ao nosso sentimento. Ocorre que ao bater o nosso

dedo no p na cama a nossa inteligncia tocou a ideia de obstculo intransponvel. o contato com tal ideia que gera o sentimento de dor. A inteligncia capta a sensao do p da cama num outro plano. Objetos que so capazes de gerar significativas mudanas sentimentais ou afetivas, so objetos os quais a inteligncia capta num outro plano. neste sentido que a psique (Eva) auxiliar da inteligncia humana, pois aquela sinalizar para a inteligncia humana quais so os objetos dignos de ateno. A psique torna-se um obstculo inteligncia quando h a confuso entre os dois planos. Imaginemos se a cada vez que ns batssemos o p na cama, ns, aps vislumbrar a ideia no plano do Infinito de obstculo intransponvel, pegssemos um machado e destrussemos a cama. Quantas camas ns teramos que comprar ao longo da vida? Se procedssemos sempre desta forma a nossa psique mudaria de plano e, ao invs de sinalizar para a inteligncia que esta deveria prestar ateno no objeto, aquela operaria como uma determinante de nossos atos. Anteriormente, a nossa psique iria nos levar a vislumbrar uma ideia que no tem nenhuma aplicao concreta em nossas vidas, pois a mesma pertenceria apenas ao plano do Ilimitado. O objetivo inicial, o de ententer algo acerca do plano do Ilimitado, sobrepujado por uma vontade de modificar algo no plano do limitado. por isso que o fruto que faz o ser humano cair no Gnesis, o fruto da rvore do conhecimento do bem e do mal, pois, embora os nossos sentimentos nos indique algo acerca do real, ele no nos indica nada acerca da bondade ou maldade dos objetos concretos. Se em algum momento ns sentimos raiva do p da cama, isto no quer dizer que o p da cama mau. Na verdade, os nossos sentimentos acerca do p da cama no nos explica nada acerca da natureza do p da cama. Do mesmo modo que os nossos sentimentos em relao s pessoas no explicam nada acerca delas. Todos esses sentimentos servem apenas para nos levar a prestar ateno numa outra coisa, que no o prprio objeto concreto, mas uma nota dele no plano do Ilimitado. Os objetos concretos so ndices do plano do Ilimitado. No entanto, restringir-se ao ndice nos faz entender quase nada. Ler o indice sempre bom antes de lermos qualquer livro, mas restringir-se ao ndice no substitui a leitura do prprio livro. Os sentimentos no existem como um plano de orientao da ao. Como a ao ocorre sempre no plano do limitado, ela depende de um mximo de conhecimento

acerca do prprio plano do limitado. Esse mximo conhecimento acerca do plano do limitado justamente o que os sentimentos no podem ofertar. Os sentimentos, pelo contrrio, em determinados momentos so capazes de nublar a nossa percepo do plano concreto e limitado para nos indicar algo acerca do plano do Infinito. Se, a cada momento em que batssemos o dedo no p da cama, parssemos para pensar se os nossos sentimentos de dor e raiva so proporcionais natureza do p da cama, concluiramos que essa correlao inexistente. Chegaramos at a esquecer a existncia de um p da cama e nos ateramos apenas ao objeto no qual a nossa inteligncia esbarrou. Neste momento, surge para o ser humanos duas alternativas fundamentais, pois na prtica existem trs: 1) o ser humano pode prestar ateno na prpria noo que gerou o sentimento especfico, no caso, uma noo advinda do plano do Ilimitado e, nessa alternativa, o ser humano progride intelectualmente; 2) ou o ser humano pode, por exemplo, destruir o p da cama e com isso sair perdendo tanto no plano material quanto no plano intelectual; 3) o ser humano pode ficar indiferente ao processo de investigao da ideia, mas continuar a preservar a integridade fsica do p da cama. O que o ser humano no deve fazer de forma alguma deixar que a afetividade se torne de um indicador do plano do Infinito para um orientador no plano do finito. Os nossos sentimentos no devem ser determinantes da nossa vontade. Existem dois erros fundamentais na vida humana: o primeiro deles consiste em dizermos que os nossos sentimentos no servem para nada, exceto como nossos obstculos. Os sentimentos so causas de frustraes e sofrimentos apenas quando ns os elegemos como guias absolutos das nossas aes. Tornar-se um homem frio, que julga as coisas apenas atravs da razo, um grande erro, pois os sentimentos continuaro a existir independentemente do uso ou no da razo. O julgamento pela razo muito til para a obteno de resultados concretos neste mundo. Contudo, obter resultados concretos neste mundo no tudo para o ser humano, pois a sua inteligncia tem acesso ao outro mundo. O erro tambm consiste em considerar os nossos sentimentos como ilusrios que nada dizem de relevante acerca da realidade. Com o passar do tempo, se o sujeito perseverar nesta atitude, ele comear a achar que ele mesmo uma iluso. A inclinao ao materialismo a partir desse momento quase que inevitvel, pois o sujeito capta a sua existncia no mesmo nvel em que capta a existncia de seus sentimentos. A nica nota

que o sujeito sabe acerca de si mesmo restringe-se completamente esfera dos sentimentos. Ento, quando este sujeito afirma que os seus sentimentos no passam de mera iluso, est afirmando que ele mesmo uma iluso. O segundo tipo de erro fundamental exagerar na importncia dos sentimentos como guias absolutos de nossas aes. O sujeito que comete esse tipo de erro sistematicamente, ao contrrio do primeiro, de inclinao materialista, adquirir uma inclinao para a idolatria, pois o mesmo faz de seus sentimentos os seus prprios deuses. Os objetos que esse tipo de sujeito gosta so os deuses bons e os demais so os deuses maus. E, como os deuses transcendem qualquer criatura, os sentimentos do sujeito transcendem a ele mesmo. Ocorre que como os sentimentos desse sujeito iro frustr-lo na grande maioria das vezes, o mesmo ter a impresso de que o mundo governado por uma infinidade de foras misteriosas que no tm nenhum sentido. Ento, se para o primeiro sujeito, o mundo movido por uma relao mecnica entre foras que devem ser conhecidas e controladas atravs do uso da razo, para o segundo sujeito o mundo aparece como que governado por foras de ordem psquica ou mstica que escapam completamente a toda e qualquer pretenso de controle humano. Nenhuma dessas duas atitudes conduz o sujeito a uma percepo adequada da realidade circundante, assim como tambm no favorecem o processo integrativo de sua prpria pessoa, pois a primeira das atitudes inicia-se afirmando que a esfera da afetividade do sujeito inexistente, e a segunda, por sua vez, afirma que o que inexistente a esfera da racionalidade. A inteligncia humana embora possa investigar os dois planos do real, ela precisa de um estmulo para investigar um dos dois planos. O estmulo para a investigao do plano do limitado dado pela prpria percepo sensorial. J o estmulo para a investigao do plano do Ilimitado decorre da tomada de conscincia que os sentimentos na grande maioria das vezes no correspondem natureza intrnseca dos objetos percebidos. Os sentimentos sempre apontam para algo muito alm do objeto concreto. Tanto assim que chega uma hora na qual o objeto concreto tende a agir de modo contrrio sua imagem idealizada pelo sentimento. por isso que por tantas vezes ns tentamos encaixar forosamente o objeto concreto em sua imagem idealizada por ns. O simples fato de que isso acontece com uma frequncia admirvel uma evidncia de que os sentimentos no

correspondem perfeitamente aos objetos concretos. No episdio da Queda a Serpente a prpria natureza do plano limitado. Quando um objeto indice de um outro, o primeiro um misto de semelhana e dessemelhana em relao ao objeto que ele indica. O retrato de uma pessoa, por exemplo, um misto de semelhana e dessemelhana em relao prpria pessoa retratada. O retrato possui apenas duas dimenses e uma pessoa real possui trs. No entanto, h tambm alguma semelhana entre ambos. Ento, o objeto pode tanto indicar a coisa da qual ele smbolo, como tambm pode nos confundir at o ponto de acharmos que ele mesmo a coisa simbolizada. O retrato em um dado momento pode ser to semelhante coisa retratada que nos podemos achar que ele a prpria coisa retratada. Qual a diferena, ento, entre os retratos, isto , os objetos do plano limitado, e as coisas retratadas, isto , os objetos do plano do Ilimitado? A diferena que os objetos do plano do Ilimitado no esto sob o domnio humano. A nossa tendncia ativa de modificar as coisas no plano do limitado contrabalanada por uma tendncia contemplativa de, antes de modificar o plano do limitado, buscar compreender os objetos dos quais ele ndice no plano do Ilimitado. s vezes, algumas coisas que ns consideramos ruins e passveis de modificao no plano do limitado na verdade so boas, e a sua modificao resulta apenas em piora no prprio plano do limitado. A tentao humana consiste em o ser humano, por um lado, observar que h alguns objetos passveis de modificao e, por outro lado, esses mesmos objetos so ndices de qualidades divinas no plano do Ilimitado e, como os objetos passveis de modificao humana situam-se no plano do limitado, o ser humano naturalmente tende a achar que ele est exercendo um domnio sobre um deus objetificado. Esta experincia narrada no Gnesis no momento exato em que a Serpente disse para Eva que se esta comsse do fruto a mesma se tornaria como Deus. Neste momento a Serpente mostrou para Eva alguma qualidade do objeto que indicava a existncia de um outro plano, o plano do Ilimitado. O fruto, ento, tornou-se imensamento desejvel. Mais ainda: como o fruto estava sob o domnio de Eva e o mesmo indicava uma qualidade de natureza divina, Eva julgou-se a si mesma como aquela que capaz de, estando em posse do fruto, dominar o prprio Deus.

Essa ampliao da dimenso ativa e a consequente diminuio da dimenso contemplativa, a total inverso do projeto inicial do ser humano sobre a Terra. Isso o mesmo que afirmar que o mundo seria mais legal se ns pudssemos mandar em Deus. No entanto, o nico lugar em que podemos fazer tudo o que desejarmos o inferno. Em todos os demais planos do universo o real mais poderoso do que ns, apenas no inferno somos mais poderosos que o real. O projeto inicial do ser humano sobre a Terra sempre foi duplo: por um lado, o ser humano deveria modificar o plano do limitado para o seu prprio conforto; e, por outro lado, o ser humano deveria utilizar as coisas do plano do limitado para entender as coisas do plano do Ilimitado. Esse um projeto que contempla tanto a vida exterior quanto a vida interior do ser humano. Nos dias atuais, o projeto foi invertido e a proposta agora a de esquecer a vida contemplativa e exacerbar ao mximo a vida ativa ou exterior. No projeto inicial, o domnio das coisas do plano do limitado era de cunho racional, pois razovel que o ser humano busque o mximo de conforto para as suas necessidades corporais. Contudo, no estado atual do projeto antropolgico sobre a Terra, o ser humano deve dominar as coisas do plano do limitado tomando como base os seus prprios sentimentos. O ser humano atual deve, simplesmente, eliminar o que ele odeia e tomar posse do que ele ama, porque apenas assim o ser humano se sentir como um deus. Isso o prprio estado infernal. No h sujeito que sofra mais do que aquele que acha que o mundo deveria estar de acordo com os seus sentimentos. O que conduz o ser humano do primeiro projeto para o segundo a no captao de que os valores atribuidos pelos sentimentos s coisas no pertencem a estas ltimas, mas a algo alm delas. O valor que ns atribumos s coisas que amamos, no pertence s coisas que amamos. O valor est alm de ns e das coisas, pois o mesmo est localizado no plano do Infinito. Isso quer dizer que nada pode ser amado por si mesmo completamente. Tudo o que amamos deve ser amado em funo de uma outra coisa. Ns podemos amar as coisas desde que as amemos com o finalidade de entender algo que est num outro plano. O mesmo processo vlido para todos os demais sentimentos. Nenhum objeto pode servir como receptculo ltimo dos nossos sentimentos. Deus o nico que pode avaliar o valor das coisas por si mesmas e decretar se as mesmas so boas ou ms intrinsecamente. Apenas para Deus as coisas possuem um valor unvoco, imitvel e

invariavel. Para todos os demais entes relativos os valores dos objetos do plano do limitado so ambguos e relativos. O conhecimento do valor unvoco das coisas impossvel para o ser humano. Mas isso no quer dizer que ningum possa ter alguma ideia do valor real dos objetos relativos. Na medida em que ns obtemos uma compreenso do plano do Ilimitado, atravs da utilizao dos objetos limitados para a compreenso do Ilimitado, ns iremos nos aproximando do ponto de vista do prprio Deus em relao aos objetos limitados. Mas, no fim das contas, ser apenas uma aproximao. So por essas razes que Deus, mais adiante na Bblia, instaurar como primeiro mandamento o Amars a Deus sobre todas as coisas. Do ponto de vista moral esse mandamento uma ordem. Do ponto de vista doutrinal Deus est explicando para ns algo sobre a realidade. O mandamento do ponto de vista doutrinal est afirmando que toda vez que amamos algum objeto, o que na verdade estamos amando a Deus. Sempre que nos depararmos com essa situao, ns deveremos ter a conscincia de que estamos captando dois objetos: um no plano do Ilimitado e outro que mero veculo desse objeto pertencente ao plano do Ilimitado. Isso no quer dizer que ns no devemos cuidar do veculo, pois este a nica coisa que efetivamente possumos para obter a percepo do Ilimitado. Ns apenas nunca deveremos confundir o veculo com o objeto do plano do Ilimitado. Devemos ser como o esposo que tem um retrato da esposa que est viajando, mas que apesar de contemplar o retrato, ele jamais o beija como se estivesse beijando a esposa. Do mesmo modo, quando amamos algum, no devemos fazer da pessoa um deus que os nossos sentimentos esto sugerindo que ela . Amar uma pessoa no torn-la um deus infalvel. Amar cuidar de algum at o ponto em que este algum possa mostrar nitidamente para ns realidades pertencentes ao plano do Ilimitado. O primeiro passo para um fim de um possvel bom relacionamento ocorre quando a nossa afetividade atribui para algum valores supra-humanos, isto , quando o consideramos como um deus; ao mesmo tempo a nossa inteligncia atribui para o mesmo algum um valor infra-humano, j que ns podemos domin-lo, do mesmo modo que podemos dominar relativamente qualquer ente limitado. A Queda no um relato de algo que ocorreu em tempos imemoriais. um processo que ocorre continuamente na vida de cada indivduo humano. Todos os demais problemas da

vida humana so irrisrios quando comparados ao processo que leva Queda. Todo mundo deveria ouvir esta aula por volta dos 17 anos de idade, pois esta a idade em que este processo comea a acontecer com mais frequncia. Essas so lies fundamentais sobre a vida humana. Apenas neste ponto que comeamos a entender a razo dos hebreus chamarem a Bblia de Torat, isto , aquilo que acerta o alvo. A Queda foi relatada miticamente porque se Deus fosse fazer um tratado sobre a inteligncia e a afetividade humana pouqussimas pessoas iriam memoriz-lo e, menos ainda, compreend-lo. A forma mtica favorece extraordinariamente memria humana. Uma escritura sagrada no seno um meio de renovao humana permanente, ou seja, um meio para que as pessoas possam retornar aos problemas fundamentais da vida humana continuamente. A escritura sagrada simblica porque a prpria estrutura do real simblica. Assim, a escritura sagrada ensina-nos algo acerca do real com a sua prpria estrutura interna, atravs do modo como a mesma foi escrita.

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