Nome Coisa

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 26

O NOME E A COISA: O POPULISMO NA POLTICA BRASILEIRA Jorge Ferreira

(Do livro O populismo e sua histria: debate e crtica, organizao Jorge Ferreira, Editora Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro, ano 2010, p. 61-124) "No h povo amorfo. No h massa bruta e indiferente. A massa formada de homens e a natureza de todos os homens a mesma: dela a paixo, a gratido, a clera, o instinto de luta e o instinto de defesa." Rachel de Queiroz

Herdeiro do "clientelismo" da Primeira Repblica, o "populismo", aps 1930, teria dado continuidade a uma relao desigual entre Estado e sociedade e, em particular, entre Estado e classe trabalhadora. Sobretudo com a ditadura de Getlio Vargas, os trabalhadores, com a violncia policial, teriam perdido suas lideranas mais combativas e, com a eficcia da mquina do DIP, sido iludidos pela propaganda poltica estatal. Destitudos de tradies de luta, organizao e conscincia, os trabalhadores, fossem os mais "antigos", fossem os mais "novos", aqueles recm-chegados do mundo rural, sucumbiram aos agrados do ditador. Satisfeitos com alguns benefcios materiais, a legislao social em particular, eles, em troca, dedicaram a Vargas submisso e obedincia poltica. 61 Cooptados, manipulados, iludidos e amedrontados com as perseguies da Polcia Especial, os assalariados, aps 1945, no teriam conseguido livrar-se das amarras ideolgicas tecidas na poca anterior: cerceados em suas lutas pela manuteno da legislao corporativista e a tutela estatal dos sindicatos, trados com a atuao dos pelegos sindicais e confundidos politicamente com as lideranas populistas, as mais antigas como Vargas, as mais recicladas como Goulart. Os comunistas, igualmente iludidos com o nacionalismo, reforaram os laos, j apertados, da teia populista. A histria dos trabalhadores, como contada, no nova e, independentemente de suas diversas verses, retoma uma longa tradio intelectual. Liberais e autoritrios, de direita ou esquerda, diagnosticaram que os males do pas provm de uma relao desigual, destituda de reciprocidade e interlocuo: a uma sociedade civil incapaz de auto-organizao, "gelatinosa" em algumas leituras, e a uma classe trabalhadora "dbil", impe-se um Estado que, armado de eficientes mecanismos repressivos e persuasivos, seria capaz de manipular, cooptar e corromper. A interpretao ainda foi reforada por um certo tipo de marxismo que defendia um modelo de classe trabalhadora, uma determinada conscincia que lhe corresponderia e um caminho, nico e portanto verdadeiro, a ser seguido. Nesse caso, se a classe no surgiu como se imaginava, se a conscincia no se desenvolveu como se previa e se os caminhos trilhados foram outros, a explicao poderia ser encontrada no poder repressivo de Estado, nos mecanismos sutis de manipulao ideolgica e, ainda, nas prticas demaggicas dos polticos populistas. A teoria do "desvio", assim, reforou a interpretao que polarizava Es62 tado e sociedade. Como lembra Jos Murilo de Carvalho, a postura antiestatal, maniquesta em sua definio, inviabiliza qualquer noo de cidadania e, na prtica, "acaba por revelar uma atitude paternalista em relao ao povo, ao consider-lo vtima impotente diante das maquinaes do Estado ou de grupos dominantes. Acaba por bestializar o povo.1 Culpabilizar o Estado e vitimizar a sociedade, eis alguns dos fundamentos da noo de populismo. No so poucos, verdade, os trabalhos que romperam com esta espcie de relao patolgica

Jos Murilo de Carvalho. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a repblica que no foi. So Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 10-11.

entre um Estado que surge pleno de poderes e uma sociedade incapaz de reagir e se manifestar.2 No entanto, se o populismo, como categoria explicativa da poltica brasileira entre 1930 e 1964, e como uma maneira de enfocar o movimento operrio e sindical, vem, desde a dcada de 70, sendo posto em dvida em um ou outro aspecto, em uma ou outra afirmao, o conjunto da teoria ainda continua a dar as cartas para explicar o passado recente do pas. Nas pginas que se seguem, procuro reconstituir a histria do populismo. No entanto, importante frisar, no compreendo a expresso como um fenmeno que tenha regido as relaes entre Estado e sociedade durante o perodo de 1930 a 1964 ou como uma caracterstica peculiar da poltica brasileira na naquela temporalidade, pois sequer creio que o perodo tenha sido 63 "populista", mas, sim, como uma categoria que, ao longo do tempo, foi imaginada, e portanto construda, para explicar essa mesma poltica. O POPULISMO DE PRIMEIRA GERAO Nos anos 50/60, a teoria da modernizao repercutiu nos meios acadmicos do pas com grande impacto, sobretudo para a configurao da noo de populismo. Para Gino Germani, 3 o mais conhecido desses tericos, a insero da Amrica Latina no mundo moderno no seguiu os padres clssicos da democracia liberal europia. A passagem de uma sociedade tradicional para uma moderna ocorreu em um rpido processo de urbanizao e industrializao, mobilizando, desta maneira, as "massas populares". Impacientes, elas exigiram participao poltica e social, atropelando, com suas presses, os canais institucionais clssicos. A resoluo dos problemas ocorreu com golpes militares ou com "revolues nacionais-populares", sendo que as ltimas, sobretudo seus resultados, foram nomeadas de populismo. Torcuato di Tella, 4 por sua vez, foi alm. A exploso demogrfica e as aspiraes participativas das "massas populares" foraram alteraes no sistema poltico. Em certo ponto, de muita tenso, as "massas", com suas expectativas, se 64 aliaram s camadas mdias, setores ressentidos por no se tornarem classes dominantes. Assim, diante de um quadro em que as classes fundamentais no deram respostas adequadas exigidas pelo "momento histrico" as dominantes, por sua inoperncia, a operria, por sua inexpressividade , surgiram lderes oriundos das classes mdias prontos para manipularem as "massas". Desse modo, no contexto da transio de uma "economia tradicional", de "participao poltica restrita", para uma "economia de mercado", de "participao ampliada", a teoria da modernizao elegeu um ator coletivo central para o surgimento do populismo na Amrica Latina: os camponeses. Mesmo que eles no sejam nomeados com todas as letras, o eixo fundamental dos argumentos de Germani e di Tella gira em torno da questo do mundo rural, definido como tradicional. O populismo surgiu em um momento de transio dessa sociedade para a moderna, implicando o deslocamento de populaes do campo para a cidade o mundo agrrio invadindo o urbano-industrial. Como a mescla de valores tradicionais e modernos, os lderes populistas se projetaram em sociedades que no consolidaram instituies e ideologias autnomas, mas necessariamente seriam substitudos por outras lideranas portadoras de idias classistas quando o capitalismo alcanasse maturidade na regio. Os crticos de Germani e di Tella, de variadas maneiras, denunciaram a suposta vinculao entre camponeses que vieram para as cidades e lderes populistas. Octavio Ianni, por exemplo, denunciou a imagem, sugerida pelos tericos da modernizao, de docilidade das "massas s manipulaes populistas,
2

Veja Angela de Castro Gomes. "Poltica: histria, cincia, cultura etc.". In Estudos Histricos, n 17. Rio de Janeiro, Editora da Fundao Getlio Vargas, 1996. 3 Gino Germani. Poltica e sociedade em uma poca de transio: da sociedade tradicional sociedade de massas. So Paulo, Mestre Jou, 1973. 4 Torcuato di Tella. Para uma poltica latino-americana. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.

65 demaggicas e carismticas". 5 Por um aspecto, diz Ianni, h o surgimento de populaes recmchegadas do mundo rural que "no dispem ainda das condies psicossociais, ou horizonte cultural", para um adequado comportamento urbano e democrtico. Por outro, a sociedade carece de instituies polticas slidas, a exemplo de um sistema partidrio. "Da o sucesso da arregimentao das massas marginais, ou classes populares, pelo populismo." Trata-se de um descompasso, retrocesso ou desvio de curso no sentido que se queria ideal: o modelo europeu de democracia representativa. "No mundo urbano-industrial", continua Ianni em sua crtica, "onde imperam as relaes de mercado, sobrevivem ou predominam as massas e o lder, cujos vnculos so a demagogia e o carisma." Com o tempo, as inconsistncias da teoria da modernizao foram percebidas e as crticas tornaram-se mais agudas. A distino entre pases "atrasados" e "desenvolvidos", indicando, segundo Maria Helena Capelato, uma relao de exterioridade entre eles, o mundo capitalista "moderno" como modelo a ser seguido, a perspectiva etapista, progressista, que levaria consolidao do regime democrtico nos pases "atrasados" concepo desmentida pelas ditaduras militares nos anos 60 , entre outras questes, abalaram a credibilidade do enfoque.6 No entanto, mesmo dcadas depois, quando as crticas tornaram as idias de Germani e di Tella desacreditadas, as ima66 gens de "atraso", "desvio" e "manipulao" perdurariam. As representaes imaginrias, sabemos, so capazes de resistir a crticas, mesmo aquelas formais, eruditas e com base na investigao emprica. Assim, perdurou, ao longo do tempo, a idia de que, com o processo de urbanizao, os indivduos recm-chegados do mundo rural teriam contaminado os antigos operrios com suas idias tradicionais e individualistas. Sociedade atrasada, camponeses que vieram para as cidades, igualmente um atraso, e, logo, uma poltica novamente atrasada, eis o ambiente em que teriam proliferado os lderes populistas. A teoria da modernizao foi decisiva para as primeiras formulaes sobre o populismo no Brasil. Segundo Angela de Castro Gomes,7 em meados da dcada de 50 um grupo de intelectuais, sob o patrocnio do Ministrio da Agricultura, passou a se reunir periodicamente com o objetivo de debater os problemas polticos do pas. Como uma vanguarda esclarecida, o Grupo de Itatiaia, como ficou conhecido,8 esforou-se para formular projetos polticos e estabelecer uma nova viso de mundo. Um dos problemas identificados foi o surgimento do "populismo na poltica brasileira". Embora se constate ausncia de esforos para conceituar o fenmeno nas condies do pas, explicava67 se a expresso por variveis histrico-sociolgicas, influenciando, mais tarde, as inmeras formulaes que se seguiram. Para os intelectuais do Grupo, em primeiro lugar, o populismo era uma poltica de massas. 9 Trata-se de um fenmeno vinculado modernizao da sociedade, sobretudo no tocante ao processo de
5
6

Octavio Ianni. O populismo na Amrica Latina. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1975, pp. 25-28. Maria Helena Rolim Capelato. "Estado Novo: novas histrias". In Marcos Cezar de Freitas. Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo, Contexto, 1998, p. 186 7 Angela de Castro Gomes. "O populismo e as cincias sociais no Brasil: notas sobre a trajetria de um conceito ". Nesta coletnea. 8 Segundo a autora, o grupo fundou, em 1953, o Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Poltica (IBESP) e comeou a publicar os Cadernos de nosso tempo. Participaram da revista intelectuais como Alberto Guerreiro Ramos, Cndido Mendes de Almeida, Hermes Lima, Igncio Rangel, Joo Paulo de Almeida Magalhes e Hlio Jaguaribe. O ncleo bsico do IBESP, mais adiante, organizaria o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Idem. 9 Na anlise que se segue, Angela de Castro Gomes explora o ensaio Que o ademarismo?, publicado no primeiro semestre de 1954, sem autor identificado. Idem.

proletarizao de trabalhadores que no adquiriram conscincia de classe. Interpelados como massa, eles somente se libertariam dos lderes populistas quando alcanassem a verdadeira conscincia de seus interesses. No difcil, portanto, perceber as influncias da teoria da modernizao. Mas, em segundo lugar, o populismo igualmente estava associado a uma classe dirigente que perdera a sua representatividade, que carecia de exemplos e valores que orientassem toda a coletividade. Em crise e sem condies de dirigir o Estado, as classes dominantes necessitariam conquistar o apoio poltico das massas emergentes. Por fim, diante da "inconsistncia" das classes fundamentais da sociedade, o terceiro elemento completaria o fenmeno: o lder populista, homem carregado de carisma, com capacidade incomum para mobilizar e empolgar as massas. Nessa linha de abordagem, em 1961, o socilogo Alberto Guerreiro Ramos, integrante do Grupo de Itatiaia, publicou A crise do poder no Brasil. O livro estabeleceria, de maneira mais sistematizada, a imagem do populismo na poltica brasileira e influenciaria estudos acadmicos que, naquela poca, ainda estavam em curso. Tambm em uma perspectiva histrico-sociolgica, Ramos defende que o estabelecimento do populismo no Brasil ocorreu sobretudo a partir de 1945. Com o fim do Estado Novo, o pas conheceu, no plano poltico, um mnimo de probidade nas eleies e, no plano econmico, uma industrializao mais consistente. Assim, em uma conjuntura de expanso industrial, urbanizao e de participao poltico-eleitoral, que se manifestaram as primeiras geraes de assalariados das cidades. Para o autor, o populismo, como uma ideologia pequeno-burguesa, procurou mobilizar politicamente "as massas obreiras nos perodos iniciais da industrializao".10 Contudo, os assalariados no apresentavam "aquela mentalidade classista que costuma caracterizar as geraes de trabalhadores providos de longas tradies de lutas", uma vez que as classes sociais ainda no tinham se configurado, despontando no cenrio poltico do pas de "maneira rudimentar", como um "agregado sincrtico". Em uma palavra, a classe trabalhadora se apresentava como "povo em estado embrionrio". Assim, novamente associando os camponeses ao populismo, os lderes de massa, diz Ramos, encontraram sustentao em "componentes recm-egressos dos campos [que] ainda no dominam o idioma ideolgico". So trabalhadores com escasso "treino partidrio" e "tmida conscincia de direitos", o que os "torna incapazes" de exercer influncia sobre os polticos populistas. Recuperando as teorias em voga na poca, sobretudo as de Gino Germani, Guerreiro Ramos, a seguir, formula crticas ao 69 trabalhismo brasileiro, classificando, no sem alguma ironia, as suas "doenas infantis". A primeira o varguismo. Trata-se, em suas palavras, de um "resduo emocional baseado em impresses e crenas populares na bondade intrnseca de Vargas". A segunda o janguismo, definido como uma forma de seguidismo que se fundamenta no "reconhecimento de amplas camadas populares de que o Sr. Joo Goulart o continuador da obra do Presidente Getlio Vargas". A terceira, o peleguismo, na verdade um subproduto do varguismo e irmo siams do janguismo. Para Ramos, o peleguismo impede a formao de um "movimento obreiro na exata expresso da fora poltica que tm j os trabalhadores brasileiros". Por fim, o expertismo, ou seja, a prtica do partido em recorrer a um "doutor, encomendando-lhe uma teoria sob medida".11 No difcil perceber que as "doenas infantis do trabalhismo", formuladas por Guerreiro Ramos, sobretudo as trs primeiras, firmaram-se como imagens fortemente introjetadas na imaginao poltica das geraes que o sucederam. Ironias que foram tomadas a srio. Seja como for, os socilogos do Grupo de Itatiaia, sobretudo Hlio Jaguaribe e Guerreiro Ramos em particular, influenciados pela teoria da modernizao, foram aqueles que formularam as primeiras reflexes sobre o populismo na poltica brasileira. Assim, dando continuidade a uma linha interpretativa que se constitua desde meados dos anos 50, um outro grupo de socilogos, agora nas universidades, desenvolveu reflexes sobre o papel dos camponeses no processo de formao da classe 70
10 11

Guerreiro Ramos. A crise do poder no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1961, p. 56 Idem, pp. 90-93.

operria e do movimento sindical. Nomeada por Luiz Werneck Vianna de a "interpretao sociolgica", o primeiro desses trabalhos veio ao conhecimento do pblico em 1964, com Juarez Brando Lopes. 12 A partir do auxlio de algumas categorias weberianas, Brando procurou compreender as motivaes de operrios de uma empresa de porte mdio em um momento de transito de uma "economia tradicional" para uma "economia de mercado". A concluso, segundo Werneck Vianna, foi a determinao estrutural entre a origem social e a conscincia de classe. Desse modo, os trabalhadores originrios do campo e das pequenas comunidades do interior, quando instalados nas cidades, no se identificariam completamente como operrios industriais, tendendo a se comportar de acordo com seus "interesses pessoais". No conseguiriam, dessa maneira, explicitar a conscincia de sua identidade coletiva devido falta de experincias cooperativas, prprias do mundo urbano e industrial. Os outros operrios, qualificados e mais antigos nas cidades, por tiara vez, demonstrariam satisfao com suas profisses, mas, por sara situao vantajosa no mercado de trabalho e pela "falta de tradio industrial", tornaram-se pouco sensveis para aes coletivas atravs do sindicato.13 Segundo Luiz Werneck Vianna, os estudos sobre o movimento operrio e sindical no Brasil se iniciaram com os trabalhos de Juarez Brando Lopes e Lencio Martins Rodrigues, 71 como tambm com os de Azis Simo e Jos Albertino Rodrigues. 14 Embora com suas diferenas e especificidades, a "interpretao sociolgica" compartilha perspectivas semelhantes em suas anlises. Partindo dos "gloriosos anos 10", com a atuao dos anarquistas, a reflexo procura tornar evidente a transio, completada na dcada de 30, para um sindicalismo burocrtico e acomodado, permitindo o surgimento de uma classe operria que teria perdido sua autonomia, espontaneidade e mpeto revolucionrio. As matrizes tericas da "interpretao sociolgica", diz Werneck Vianna, provm da hegemonia do pensamento cepalino nas universidades brasileiras, dos trabalhos de Gino Germani e da leitura de textos de Weber e Marx. Tais concepes foram entendidas como convergentes para explicar a realidade latino-americana.15 Assim, o enfoque sobre o "comportamento operrio", determinado pela origem da fora de trabalho em um contexto de transio de uma "economia tradicional", de "participao poltica restrita", para uma "economia de mercado", de "participao poltica ampliada", teria resultado em uma classe operria que, marcada pelo individualismo, por suas origens rurais, tradicionais e patrimoniais, se tornou passiva e dependente do Estado. O resultado, portanto, foi o surgimento do populismo. As crticas, na verdade, tardaram a chegar. Para Maria Helena Capelato, um dos elementos constitutivos da noo de 72 populismo nesse perodo a compreenso dos movimentos sociais como reflexos, das varireis scioeconmicas. Assim, "explica-se o comportamento poltico das classes a partir de determinantes estruturais (processo de industrializao, origem rural da classe trabalhadora). A adeso ao populismo entendida ento a partir da estrutura social, sem se levar em conta qualquer elemento de ordem poltica ou cultural". 16 O "novo proletariado" da dcada de 30, muito distante do velho e revolucionrio anarquismo dos anos 10, teria surgido, no dizer de Werneck Vianna, com uma "concepo individualista que traz do mundo do tradicionalismo agrrio se tornaria na massa de manobra do populismo (...) assinalando o toque de recolher para o marxismo no movimento operrio substitudo pelo nacionalismo".17
12 13

Juarez Brando Lopes. Sociedade industrial no Brasil. So Paulo, Difel, 1964. Luiz Werneck Vianna. "Estudos sobre sindicalismo e movimento operrio: resenha de algumas tendncias". Rio de Janeiro, Revista Dados, BIB, 1978, pp. 74-75. 14 Lencio Martins Rodrigues. Conflito industrial e sindicalismo no Brasil. So Paulo, Difel, 1966; Azis Simo. Sindicato e Estado. So Paulo, Atica, 1981; Jos Albertino Rodrigues. Sindicato e desenvolvimento no Brasil. So Paulo, Difel, 1966. 15 Luiz Werneck Vianna. Op. cit., p. 71. 16 Maria Helena Rolim Capelato. Op. Cit., pp. 185-186. 17 Luiz Werneck Vianna. Op. Cit. , p. 78.

No entrecruzamento da teoria da modernizao com uma certa interpretao do marxismo, eis que surgem os camponeses no cenrio poltico, representando o ator coletivo chave para a formulao e disseminao da primeira verso do populismo. Seria na passagem da "sociedade tradicional" para a "moderna" que atuariam os camponeses, seres incapazes de aes coletivas porque imbudos de uma percepo individualista da sociedade e, exatamente por isso, refratrios as mudanas sociais em particular as revolucionrias. Portanto, entre meados dos anos 50 e incio dos anos 60, algumas imagens sobre os "desvios" da poltica brasileira e da prpria classe trabalhadora, determinados pelo papel dissolvente exercido pelos camponeses que vieram para as cidades, come73 aram a circular em alguns crculos intelectuais no Brasil. Tendo como matriz a teoria da modernizao, tais idias inicialmente foram apropriadas pelos socilogos do Grupo de Itatiaia e, da, comearam a ganhar espaos nas universidades. O golpe militar, em 1964, no entanto, veio acelerar o processo, permitindo que a noo de populismo surgisse como fator explicativo para a fraqueza do movimento operrio e sindical diante da investida, verdadeiramente fulminante, da direita civil-militar. Foi nesse contexto poltico e intelectual que, em meados dos anos 60, veio a pblico uma srie de artigos, reunidos, mais tarde, sob o ttulo de O populismo na poltica brasileira. A coletnea resgatou o conjunto de idias que, desde a dcada anterior, vinha afirmando a noo de populismo e, sintetizando-o de maneira original, abriu caminhos para pesquisas e reflexes posteriores.18 Embora apresente reflexes avanadas para a primeira metade dos anos 60, o prprio contexto intelectual daquela poca imps limitaes tericas aos textos. Assim, duas tradies interpretativas percorrem as pginas do livro. A primeira a adoo da tipologia de Gino Germani, que alude passagem de uma "democracia com participao limitada" para uma "ampliada". 19 Trata-se de um processo de "massificao prematura" ou "antecipada" de massas rurais na vida urbana e no processo poltico. 20 Weffort recupera a tese que afirma o 74 sucesso da poltica varguista entre os trabalhadores porque o xodo rural trouxe para as cidades uma mo-de-obra com tradies patrimoniais, individualistas e sem experincias de lutas sindicais. Desencadearam-se, desse modo, a "revoluo individual" dos migrantes oriundos do campo que chegaram ao mundo urbano e a conseqente presso para o acesso ao consumo e ao emprego. Portanto, "trata-se, sempre, de formas individuais de presso, as quais se apresentavam aos populistas como um problema a resolver".21 Ou seja, como j afirmara Guerreiro Ramos, existia a classe, mas faltava a sua conscincia, mascarada ou deformada no processo que transformou camponeses em assalariados urbanos, permitindo a Weffort sugerir que a reflexo sobre o populismo deva basear-se a partir de "relaes individuais".22 A teoria da modernizao, portanto, central nas anlises de Weffort. A segunda tradio intelectual presente na coletnea provm de uma poca em que se acreditava que os atores sociais tinham "vontade prpria". Assim, diz o autor: "a burguesia e o proletariado, em especial este ltimo, tendem a organizar racionalmente sua ao poltica e a colocar, de maneira clara, seus interesses de classe luz do dia do debate poltico". 23 Muitas vezes, noes oriundas da ortodoxia aparecem de maneira peremptria: "Na impotncia histrica da pequena burguesia est a raiz da demagogia populista (...). Deste modo, por limitar-se s formas pequeno-burguesas de ao, o populismo traz em si a

18

Francisco Weffort. O populismo na poltica brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p. 22. Minha anlise limita-se aos trs primeiros artigos da coletnea: "Poltica de massas", escrito originalmente em 1963; "Estado e massas no Brasil", de 1965; e "O populismo na poltica brasileira", de 1967. 19 Idem, p. 45. 20 Idem, p. 54. 21 Idem, p. 75. 22 Idem, p. 72. 23 Idem, p. 28.

75 inconsistncia que conduz inevitavelmente traio."24 Se o populismo foi traio, a grande pergunta, nunca respondida, lembra com razo John French, : por que os operrios sucumbiram aos agrados dos lderes populistas, aceitando a dominao, e, no mesmo movimento, se dispuseram a confiar em traidores?25 Portanto, ler O populismo na poltica brasileira conhecer um autor afinado com o contexto intelectual de seu tempo, mas igualmente limitado por ele. Algumas vezes, personagens com tradies e prticas polticas distintas so tratados de maneira indiferenciada, perdendo-se, assim, especificidades e a prpria historicidade dos projetos: "entre o populismo dos demagogos e o reformismo nacionalista de 1964 sempre existiram afinidades profundas de contedo". 26 Em um Estado como esse, alega, "no h lugar de destaque para as ideologias. Os aspectos decisivos da luta poltica as formas de aquisio e preservao do poder esto vinculados a uma luta entre personalidades". 27 Ao mesmo tempo que personaliza o passado histrico da sociedade brasileira, o autor dilui e, conseqentemente, perde a especificidade dos projetos polticos em que estes lderes polticos se manifestaram. Assim, Joo Goulart, Leonel Brizola, Roberto da Silveira, Alberto Pasqualini, Fernando Ferrari, Lcio Bittencout, entre outros, todos filiados a um partido poltico, o PTB, bem como a uma 76 tradio poltica, o trabalhismo, surgem no mesmo patamar que Jnio Quadros e Adhemar de Brros, polticos que o prprio Weffort caracteriza como fenmenos de So Paulo. 28 Eles, por sua vez, so igualados ala direitista-golpista da UDN, como Carlos Lacerda, ao general Eurico Dutra e a Juscelino Kubitschek. Todos, segundo indicaes de Weffort, surgem na mesma dimenso porque se dirigem ao povo, sem distinguir as contradies de classe contidas nesta concepo. Enfim, vrios so os temas a serem explorados na coletnea. No entanto, vale observar uma certa tenso ao longo dos argumentos do autor. Em alguns momentos do livro, um grupo de afirmaes revela uma interlocuo, uma interao, nas relaes entre Estado e classe trabalhadora, vistas como um processo legtimo:
o populismo foi, sem dvida, manipulao de massas, mas a manipulao nunca foi absoluta. Se o fosse, estaramos obrigados a aceitar a viso liberal elitista, que, em ltima instncia, v no populismo uma espcie de aberrao da histria alimentada pela emocionalidade das massas e pela falta de princpios dos lderes. Se o populismo foi manipulao, alega, "tambm foi um modo de expresso de suas insatisfaes".29

Outra indicao importante, que relativiza o poder de Estado e resgata o papel e a atuao dos prprios trabalhadores nas relaes polticas daquela poca, igualmente dada por Weffort: 77 "Grupo burgus algum capaz, por si prprio, de inventar um poltico de massas. As condies de existncia das massas tm tambm seu papel nesta inveno."30 As afirmaes, importantes, sugerem que o populismo no foi mera manipulao de massa, de cima para baixo, mas que houve interlocuo entre Estado e classe trabalhadora. No entanto, muitas leituras no observaram com maior cautela uma linha de reflexo que se abria. Talvez pela prpria ambigidade das idias contidas em seus textos, as atenes voltaram-se para outro conjunto de afirmaes. Weffort critica a verso liberal do populismo, cuja explicao seria a manipulao e a demagogia dos lderes conjugadas ignorncia e ao atraso das massas. Contudo, em outros momentos,
24 25

Idem, p. 28. John French. O ABC dos operrios. Conflitos e Alianas de classe em So Paulo, 1900-1950. So Caetano do Sul. Hucitec/Prefeitura de So Caetano do Sul, 1995, p. 9 26 Idem, p. 37. 27 Idem, p. 54. 28 Idem, p. 28. 29 Idem, p. 62 30 Idem, p. 34.

contrariando suas prprias crticas concepo liberal, o texto permite leituras bem diferentes. Assim, para o autor, em 1930 aparece "o fantasma do povo na histria poltica brasileira, que ser manipulado soberanamente por Getlio Vargas durante 15 anos".31 Ou ento as massas populares constituram a raiz do poder dos lderes populistas, "mas, nesta mesma condio, no passam de `massa de manobra'."32 Ao dar ao Estado um poder que ele, teoricamente, no alcanou, mesmo nas ditaduras mais intolerantes, surgem afirmaes bastante questionveis: "nas formas espontneas do populismo, a massa v na pessoa do lder o projeto do Estado; abandona-se a ele, entrega-se sua direo e, em grande medida, ao seu arbtrio".33 78 Assim, as anlises das relaes mantidas entre Estado e classe trabalhadora so conduzidas sob certa tenso, sob certa ambigidade: ora interlocuo, ora manipulao. No entanto, esta ltima maneira, de cima para baixo, foi a que se firmou nos estudos posteriores, ressaltando-se as passagens em que Weffort analisa de maneira mais caricatural as relaes entre as "massas" e os lderes "populistas": manipulao, emocionalidade, relaes individuais, traio etc. Seja como for, com a teoria da modernizao, as idias do Grupo de Itatiaia, a interpretao sociolgica do movimento operrio e os trabalhos de Weffort, o populismo, na segunda metade dos anos 60, come ou a firmar-se nas Cincias Humanas no Brasil. Era necessrio, no entanto, situ-lo em um contexto histrico internacional para estabelecer a noo com maior preciso metodolgica. Assim, nos compndios e manuais sobre o populismo na Amrica Latina e no Brasil, invariavelmente a introduo ou o captulo inicial tratavam dos "antecedentes" histricos: o leitor, desse modo, conhecia o populismo na Rssia tzarista e nos Estados Unidos no sculo XIX. Novamente, portanto, h a presena do mundo rural. Embora os contextos econmico, poltico, social, agrrio, cultural, ideolgico e religioso do Brasil tenham sido diversos da Rssia tzarista, e, ambos, distintos dos Estados Unidos, o que une histrias to diferentes o campesinato. E onde ele est, de se prever, tambm aparecem os populistas. Estaria a primeira verso do populismo superada? Creio que no. No primeiro semestre de 1998, em uma prestigiada escola catlica na cidade de Niteri, uma aluna da segunda srie do 79 segundo grau recebeu de seu professor de histria uma apostila resumindo a trajetria da poltica brasileira aps 1945. Logo no incio, a menina leu: "O perodo que se estende de 1945 a 1964 tradicionalmente conhecido como o perodo do ` Populismo'." Entre aspas e em negrito, para chamar a ateno dos jovens leitores, o conceito teria algumas "caractersticas bsicas":
Como j se observou, o populismo na Amrica Latina teve como caracterstica bsica uma intensa manipulao das massas, num momento de transio entre a economia agroexportadora e a economia mais moderna, que comea a se instalar apos a case de 1929. Lideranas mais ou menos carismticas disputaram o poder junto a essa massa, ora fazendo concesses (as leis trabalhistas de Vargas so um bom exemplo), ora utilizando o povo como elemento de ataque s antigas oligarquias.

Os trabalhadores, cuja conscincia social estaria a meio-termo entre os padres rurais e os vigentes na indstria, deixaram-se envolver por lderes burgueses, que, habilmente, os usaram como massa de manobra. Aps aprender as dimenses tericas do conceito, a aluna, um tanto confusa, tambm aprendeu com o professor o que se seguiu na poltica brasileira: a democratizao de 1945, o surgimento dos partidos polticos nacionais e o governo Dutra. No entanto, em 1950, surpreendentemente, o populismo teria ressurgido. No sem alguma ironia, os autores da apostila escreveram:
Nas
31 32

eleies

de

1950,

Vargas

voltou

ao

poder

(...).

Sua

vitria

Idem, p. 51. Idem, p. 58. 33 Idem, p. 41.

traduzia claramente o poder de manipulao da poltica

80 populista: afinal, Vargas era o pai dos trabalhadores brasileiros... Mas, entre 1963 e 1964, as lutas sociais se acirraram, continua a apostila. A concluso resume-se a um jargo, comum na literatura sobre o assunto: com o golpe militar de 1964, dizem n autores do texto em tom peremptrio, "era colapso da poca populista no Brasil". Seria uma injustia, grave a meu ver, desmerecer o trabalho desses professores. No esse o meu objetivo. So profissionais mal pagos, trabalhando muitas vezes em condies difceis, sem chances de atualizao ou recursos para comprar livros. Com honestidade e seriedade, fazem o melhor que podem, mas isso o melhor que fazem. Para os professores que formam os nossos filhos, a poltica brasileira e as relaes entre Estado e classe trabalhadora durante o perodo de 1930 a 1964 encerram um "senso comum", no sentido gramsciano do termo, nomeado de populismo e em sua primeira verso, a dos anos 50 e 60. Mas seria correto afirmar que esse "senso comum" circula somente entre os professores de nvel mdio? Estariam eles to desatualizados assim? Com ressalvas, creio que no. Os resultados desta primeira verso do populismo so conhecidos e aceitos at hoje, tanto nas apostilas de nvel mdio quanto na bibliografia especializada. No primeiro governo de Vargas, os trabalhadores tiveram acesso aos direitos sociais, mas no aos polticos, e, a partir de clculos sobre suas perdas e ganhos, trocaram os benefcios da legislao por submisso poltica. Assim, incapazes de pensar por si mesmos, fracos diante 81 das investidas ideolgicas das classes dominantes, recebendo passivamente e sem crticas a doutrinao poltica, os trabalhadores brasileiros oriundos do mundo rural, destitudos de tradies de luta, organizao e conscincia, passaram a idolatrar Vargas e, desde 1945, a eleger outros lderes populistas e a votar no PTB. O POPULISMO DE SEGUNDA GERAO Na virada dos anos 70 para a dcada de 80, a primeira verso do populismo comeou a dar mostra de esgotamento em suas hipteses centrais. A teoria da modernizao, o papel do Estado como elemento que organizaria as classes, o comportamento poltico da classe trabalhadora determinado por estruturas scio-econmicas como sua origem rural ou devido s peculiaridades da industrializao brasileira , entre outros fatores, no mais satisfaziam os estudiosos. Os grandes ensaios sobre o "populismo na Amrica Latina" tornaram-se cada vez mais raros. Socilogos e cientistas polticos, pioneiros nos estudos, passaram a debater com historiadores, os quais, com seus mtodos de pesquisa, enfrentaram a questo. Assim, os estudos voltaram-se principalmente para as relaes entre Estado e sociedade na poca do primeiro governo de Vargas. De alguma maneira, o problema que preocupou a primeira verso do populismo foi reiterado pelos novos estudos: em 1930, instituiu-se no Brasil um Estado de vertente autoritria que se acentuou em 1935 e se imps como uma ditadura em 1937, influenciada pela experincia do fascismo euro82 peu. As liberdades democrticas foram suprimidas, e o movimento operrio duramente reprimido. Anarquistas, socialistas, comunistas e liberais perderam os espaos de atuao poltica, e muitos deles, a prpria vida. A represso policial, a censura aos meios de comunicao, entre outros dispositivos arbitrrios e discricionrios, impediram qualquer movimento para as oposies. No entanto, diante de um contexto poltico to sufocante, os trabalhadores apoiaram a ditadura de Vargas. O apoio, admitem diversas tendncias historiogrficas, no era apenas formal, mas sincero, e o reconhecimento, a gratido e as manifestaes elogiosas dos assalariados ao ditador dificilmente so refutados pelos estudiosos)

Esse, portanto, foi o problema que o populismo de segunda gerao herdou da primeira e procurou novamente enfrentar, centrando os estudos nas relaes entre Estado e sociedade/classe trabalhadora entre 1930 e 1945. Para enfrentar a questo, houve, inicialmente, a recusa, pelo menos formalmente, das hipteses centrais da primeira verso do populismo. Contudo, a recusa no foi total, tanto assim que o textosntese daquela primeira verso, O populismo na poltica brasileira, de Weffort, continuou a ser citado nos textos algo que no casual. H uma premissa formulada por Weffort nos anos 60 que persistiu entre os historiadores da dcada de 80. Interrogando ao extremo a coletnea O populismo na poltica brasileira procura das razes que teriam levado os trabalhadores a apoiarem "lderes populistas", encontramos um argumento central: o populismo imps-se pela conjugao da represso estatal com a manipulao poltica, embora a chave de seu sucesso tenha sido a satisfao de algumas demandas dos assalariados. Assim, mes83 mo que a segunda verso tenha rejeitado as premissas anteriores teoria da modernizao, determinaes scio-estruturais nas organizaes da classe trabalhadora, a influncia negativa dos camponeses no meio operrio, entre outras questes , a premissa central, sugerida por Weffort, represso, manipulao e satisfao, continuou presente, embora no exatamente da mesma maneira. Ela continuou nas anlises, mas enfatizando o poder repressivo e manipulatrio do governo e, no mesmo movimento, minimizando os espaos para a atuao e interveno dos trabalhadores e sua interlocuo com o Estado. A segunda verso do fenmeno apropriou-se das idias de Weffort, ressaltando as variveis represso e manipulao, mas subestimando, e muitas vezes desconhecendo, o vis da satisfao. Surgiu, assim, o populismo na sua interpretao mais repressiva e demaggica. Neste aspecto, importante citar uma poderosa tradio que influenciou, direta ou indiretamente, toda uma gerao de intelectuais: o marxismo. O marxismo apresentou uma questo importante ao estudioso: uma ordem social no imutvel, e a sua prpria reproduo propicia a sua transformao. Para um historiador, marxista ou no, a assertiva foi muito bem recebida. As divergncias, porm, surgiram sobre a maneira e os caminhos que permitiriam a transformao, suscitando acalorados debates entre autores e militantes marxistas. Assim, a verso mais disseminada defendeu que a possibilidade da mudana provm da capacidade dos trabalhadores de alcanarem a "verdadeira" conscincia de classe, de "desvendarem" as contradies sociais, de perceberem quais seriam os seus "reais" interesses. No casual, desse modo, que muitas pesquisas produzidas nos 84 programas de ps-graduao em Histria Social, a partir de fins dos anos 70, discutissem, na parte terica dos trabalhos, a questo da ideologia. Marx, Lenin, Lukcs, Goldman, Althusser ou Gramsci, para citar os mais conhecidos, eram convocados em busca de uma definio mais apropriada para o fenmeno. Afinal, o conceito de ideologia, compreendido na maioria das vezes como "falsa conscincia", poderia desvendar as razes que teriam levado os operrios ano se revoltarem contra ordens sociais opressoras. No campo do marxismo, um dos clssicos que marcaram uma gerao foi Antonio Gramsci. Como um dos mais refinados pensadores marxistas, em fins dos anos 70 suas idias entraram nas universidades brasileiras perodo, tambm, em que os historiadores comearam a estudar a poltica brasileira aps 1930, em particular o "primeiro governo" de Vargas. Foi a proposta terica de hegemonia em Gramsci que mais fascinou os estudiosos na poca. No quero discutir o conceito, sabemos que ele permitiu diversas interpretaes. O que importa, aqui, a sugesto de que a dominao de uma classe social sobre outra no se impe apenas pela fora, pelo poder repressivo de Estado, como era comum pensar, mas que sua eficcia ocorre ao se conjugar com as instncias "persuasivas" da sociedade. Com o pensador italiano, no foi difcil para muitos historiadores reavaliarem a teoria do primeiro populismo. Assim entre a trade represso, manipulao e satisfao em Weffort e a dicotomia represso e_persuaso em Gramsci,,a ltima tornou-se mais atraente. Com a alterao no enfoque, pode-se dizer mesmo que houve uma regresso na maneira de se pensarem as relaes entre Estado e classe trabalhadora na poca de Vargas.

85 Na primeira verso, ainda havia a varivel satisfao, aceitando que os assalariados se beneficiaram com as polticas pblicas do Estado varguista, como a legislao social, por exemplo. Na segunda verso, no entanto, sequer isto foi considerado. Represso e persuaso, ou, como comum dizer, represso policial e propaganda poltica, tornaram-se os elementos centrais para se compreender os mistrios do sucesso de Vargas entre os trabalhadores. Surgiram, assim, diversos trabalhos a partir do incio dos anos 80 sobre o Estado Novo, contribuindo, sem dvida, para a compreenso daquela temporalidade. Muitos textos enfatizaram a represso policial, outros acentuaram a propaganda poltica estatal, e alguns, de maior flego, ressaltaram os dois aspectos. Mas a maioria das interpretaes concordavam que o populismo floresceria com sucesso em um certo tipo de Estado, autoritrio, que recorreria a duas prticas distintas, embora complementares: a primeira, voltada para o movimento operrio e sindical, utilizou a represso policial mais truculenta, invadindo os sindicatos de trabalhadores, prendendo os seus lderes, espancando os seus militantes, cerceando as suas prticas de luta e de organizao, enquadrando os sindicatos por meio de uma legislao controladora e restritiva e suprimindo, s vezes fisicamente, as esquerdas. O aparato repressivo, assim, ter-se-ia dedicado a eliminar os setores mais combativos da classe, aniquilando as veleidades autonomistas do movimento operrio e solapando as bases do sindicalismo mais avanado. A polcia, a legislao autoritria e os tribunais de exceo teriam impedido que os trabalhadores mais organizados seguissem os caminhos "naturais" que os conduziriam a uma autntica identidade poltica. 86 Assim, derrotando os grupos organizados, o Estado, concomitantemente, teria recorrido a uma segunda prtica, voltando as suas baterias para o "povo", ou seja, os assalariados que no conheciam as experincias do movimento sindical, os pobres e as pessoas comuns para utilizar a linguagem dos anos 60 e 70, os "novos" operrios de origem rural. Para o melhor sucesso de seus objetivos, o Estado utilizou os recursos oferecidos pelas modernas tcnicas de propaganda e de doutrinao polticas. Com extrema habilidade, o governo de Vargas teria "inculcado" nas mentes das pessoas idias, crenas e valores baseados na mentira, na iluso e na deformao ou inverso da realidade Com o auxlio de seus "intelectuais orgnicos", o Estado teria inundado a sociedade com imagens e smbolos de exaltao ao governo, utilizando como veculos rdios, cinemas, livros, jornais, biografias, cartilhas escolares, msicas, festas, comemoraes cvicas etc. Assim, eliminando os operrios mais combativos, com a polcia, e manipulando o restante da populao, a partir dos meios de comunicao, o Estado populista teria alcanado amplo sucesso, sendo, dessa maneira, aceito como legtimo pelos trabalhadores. No h muitas dvidas sobre a represso policial que se abriu a partir de 1930, se acentuou em 1935 e tornou, a partir de 1937, invivel qualquer resistncia ao regime. As pesquisas demonstram, s vezes de maneira irrefutvel, o processo repressivo. Igualmente ficou comprovada a montagem de um complexo sistema de propaganda poltica estatal coordenado, sistemtico e, dentro dos recursos da poca, sofisticado. O que se questiona abordar as relaes entre Estado e classe trabalhadora a partir de paradigmas explicativos, ao mesmo tempo opostos e 87 complementares, centrados na represso e na manipulao, ambos surgindo como formas de violncia estatal sobre os assalariados, fsica em uma dimenso, ideolgica na outra. Como diz Angela de Castro Gomes, "elas so reconhecidas como fundamentais e como pano de fundo sem o qual uma reflexo mais refinada sobre seus impactos seria impraticvel. Trata-se, portanto, de consider-las terica e empiricamente insuficientes e equivocadas para dar conta do fenmeno que est sendo examinado, considerando-se sobretudo seus desdobramentos atravs do tempo".34
34

Angela de Castro Gomes. "Apresentao". In Jorge Ferreira. Trabalhadores do Brasil. O imaginrio popular. Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas, 1997, p. 10.

Como defendi em trabalho anterior, o "mito" Vargas no foi criado simplesmente na esteira da vasta propaganda poltica, ideolgica e doutrinria veiculada pelo Estado. No h propaganda, por mais elaborada, sofisticada e massificante, que sustente uma personalidade pblica por tantas dcadas sem realizaes que beneficiem, em termos materiais e simblico, o cotidiano da sociedade. O "mito" Vargas expressava um conjunto de experincias que, longe de se basear em promessas irrealizveis, fundamentadas to-somente em imagens e discursos vazios, alterou a vida dos trabalhadores.35 As matrizes tericas do segundo populismo, nos anos 80, portanto, distanciaram-se dos pressupostos defendidos nas d88 cadas de 60 e 70 em diversos aspectos, mas, igualmente, resgataram muitos de seus elementos. A noo permaneceu, contudo recebeu um tratamento mais sofisticado, atualizando-se com as tendncias historiogrficas do momento. No entanto, ainda na dcada de 80, houve tentativas de se abandonar a noo de populismo. Diversos autores, evitando utilizar a expresso, passaram a ressaltar as polticas pblicas de controle social implementadas pelo Estado varguista, sobretudo no tocante ao "controle operrio". Diante do avano da mobilizao dos trabalhadores desde a dcada de 1910, em particular do movimento anarquista, e do conseqente perigo de revolues anticapitalistas, novas formas de dominao poltica foram implementadas. O poder, interpretado em um sentido mais amplo, certamente sob a influncia das leituras de Michel Foucault, no se limitou a agir pelas instncias repressivas de Estado e por seus "aparelhos ideolgicos". Imiscuindo-se em diversos campos do social, surgiram especialistas que formularam discursos "racionais", no sentido sugerido pela chamada Escola de Frankfurt, Habermas em_particular, sobre sade, educao, sexualidade, habitao, pedagogia, educao fsica, medicina, direito, entre diversos outros. O objetivo dos especialistas era "conhecer" o operrio. E, conhecendo-o, "control-lo". Desqualificados em seu prprio saber, destitudos de legitimidade para falarem por si mesmos e pela sociedade, os trabalhadores deixar-se-iam dominar por um saber racional, porque cientfico, e, logo, apresentado como verdadeiro. A ordem social, assim, no ficaria mais sob os auspcios da poltica, pois um saber tcnico e cientfico, portanto neutro, deveria tomar o seu lugar. Os discursos racionais e cientficos, revestidos de toda 89 uma eficcia tcnica, teriam elaborado variadas formas de conhecimento especializado. Fundamentados na competncia tcnica, eles comearam a tomar corpo e forma nos anos 20 para invadirem todas as dimenses da sociedade nos anos 30. O enfoque do "controle operrio" surgiu como alternativa ao binmio represso propaganda, centrando a anlise na eficcia do poder baseado no argumento da racionalidade e da tcnica. Contudo, a abordagem, sabemos hoje, no foi to alternativa como se pensava. Afinal, a represso policial e a propaganda poltica tinham por objetivo a adeso dos trabalhadores e, portanto, o prprio controle. Sobretudo com a recepo da Histria Cultural no Brasil, percebeu-se que no h por que acreditar em uma relao sem mediaes entre as idias eruditas e populares, que h um lapso entre a inteno de controlar e o efeitov controle, que o poder dos poderosos no to poderoso assim. Sem negar os recursos utilizados pelo Estado aps 1930, ou ainda nos anos 20, para controlar a classe trabalhadora e racionalizar a sua prpria existncia a partir de critrios tcnicos e "cientficos", tornou-se necessrio relativizar o enfoque a fim de se evitar uma abordagem totalizadora, sugerindo estruturas capazes de diluir a existncia de sujeitos polticos e sociais incapazes de super-las. Os mecanismos de "controle operrio" foram implementados, mas sua atuao e eficcia eram limitadas pela prpria cultura da classe trabalhadora. Seja como for, as insatisfaes permaneceram. Os enfoques baseados no binmio represso35

"Jorge Ferreira. Idem. Alis, vale repetir uma citao do prprio Weffort, que, dcadas atrs, j observara que "grupo burgus algum capaz, por si prprio, de inventar um poltico de massas. As condies de existncia das massas tm seu papel nesta inveno". Op. cit., p. 34.

propaganda ou no controle, que necessariamente no se opunham, pareciam insuficientes. Era preciso explicar, de maneira mais incisiva e contundente, o sucesso de Getlio Vargas entre os trabalhadores. Para alguns au90 tores, poucos na verdade, as explicaes que ressaltavam a propaganda poltica, a represso policial e o controle social no estariam necessariamente equivocadas, apenas no foram as ltimas conseqncias. A represso estatal e a propaganda poltica no governo Vargas, portanto, sofreram uma leitura radical. Assim, ainda nos anos 80, e mesmo no incio da dcada seguinte, as alternativas ao populismo no tardaram a chegar. Afinados com os esquemas sociolgicos dos tericos do totalitarismo, historiadores aproximaram o governo Vargas dos regimes de Hitler e Stalin. Multiplicando em muitas vezes a capacidade da represso policial, at elev-la categoria de terror generalizado, e ampliando ao mximo a eficcia da propaganda poltica, comparando-a s prticas nazistas e stalinistas, Vargas passou a ser definido como um lder totalitrio. A inovao aparente e equivocada: novamente a represso e a propaganda, como pressupostos centrais da anlise, permanecem inalteradas. 36 curioso observar, neste aspecto, como a teoria sociolgica do totalitarismo seduziu muitos historiadores brasileiros. Embora os especialistas da histria do socialismo, no Brasil e no exterior, recusem a expresso,37 os debates sobre o carter tota 91 litrio ou no do Estado Novo, como lembra Maria Helena Capelato, geraram algumas polmicas.38 Para Marc Ferro, 39 inquietante, na verdade, o processo de banalizao do nazismo com a vulgarizao da teoria do totalitarismo, particularmente se considerarmos a contribuio dos prprios estudiosos do assunto. Se antes da Segunda Guerra somente os regimes de Hitler e Mussolini se definiam dessa maneira, aps 1945 o conceito se estendeu tambm para a Unio Sovitica. 40 Com Carl Friedrich, Zbigniew Brzezinski e, sobretudo, Erns Nolte, 41 diz Ferro, a equiparao dos campos de extermnio nazistas com os gulags soviticos encobriu o racismo, um dos pontos bsicos da poltica hitlerista. Em vrios estudos, a concluso, surpreendente, a de que o nazismo, como uma 92 forma extremada do fascismo, surgiu em reao ao "totalitarismo" sovitico e, para se defender, foi obrigado a imit-lo nos genocdios. Contradio flagrante, diz Ferro. Na impossibilidade de negar a existncia das cmaras de gs, embora tivessem a ousadia, as interpretaes "revisionistas" e
36 37

Jorge Ferreira, Op. Cit., p. 15 Na coleo Histria do marxismo, organizada por Eric Hobsbawm, bem como na coletnea Histria do marxismo no Brasil, no h um nico especialista que adote a teoria do totalitarismo. Na avaliao de Martin Malia, a teoria do totalitarismo baseia-se em classificaes estticas, com forte tendncia a abstraes atemporais. La tragdie sovitique. Histoire du socialisme em Russie. 1917-1991. Paris, ditions du Seuil, 1995, p. 24. Ao dar excessivo poder s tcnicas de propaganda e ao terror poltico, a teoria do totalitarismo desvia a ateno do estudioso para a colaborao da prpria sociedade ao regime, da cumplicidade que se estabeleceu entre Estado e sociedade. 38 Veja Maria Helena Rolim Capelato, Op. Cit. , pp. 197 e seguintes. 39 Marc Ferro. Histria da segunda guerra mundial. So Paulo, tica, 1995 40 No caso sovitico na poca de Stalin, diz Eric Hobsbawm, apesar de brutal, burocrtico e terrorista, o sistema sovitico no foi totalitrio. O romance 1984, de George Orwell, sugeriu a imagem de uma sociedade totalitria, vtima de lavagens cerebrais, onde ningum escapava do olho vigilante do poder. "Isso sem dvida o que Stalin teria querido alcanar", diz o autor. A maioria dos soviticos, continua o autor, no se importava com as declaraes sobre poltica e ideologia marxistaleninista vindas do lder e do partido, desde que elas no atingissem seu cotidiano e sua vida comum. Somente os intelectuais e, certamente, os militantes filiados ao PCUS levavam a srio a teoria "cientfica" do socialismo sovitico. O sistema, afirma Hobsbawm, "no exercia efetivo `controle da mente', e muito menos conseguia 'converso do pensamento' (...)", embora despolitizasse e aterrorizasse a sociedade. Era dos extremos. O breve sculo XX. 1914-1991. So Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 383-384. 41 Carl Friedrich e Zbigniew Brzezinski. Totalitarian dictatorship and autocracy. Cambridge, Harvard University Press, 1956; Ernst Nolte. Nazionalismo e e bolscevismo: la guerra civile europea 1917-1945. Florena, Sansoni Editora, 1988.

"negacionistas" do nazismo responsabilizaram a URSS pelos grandes massacres e, por essa brecha, desculpabilizaram a poltica nazi, apresentando exemplos variados de genocdios: nas colnias europias, no faroeste norte-americano ou nas ditaduras dos pases pobres, entre outros exemplos, os extermnios de populaes inteiras tambm aconteceram. Chega-se, portanto, ao estgio avanado de normalizao do nazismo no Brasil, por exemplo, teria sido o caso do Estado Novo, um regime supostamente "totalitrio". Para o autor, definir o III Reich como "fascista" ou por generalizaes como "totalitrio" encobrir a caracterstica central do regime: o dio racial e o projeto de dizimao em massa no somente de judeus, mas tambm de eslavos, ciganos, deficientes fsicos, cardacos, entre outros.42 Assim, insiste com razo o autor, "identificar o terror hitlerista ao terror da URSS corresponde a fazer tbula rasa da especificidade do racismo, que constituiu um dos pontos bsicos da poltica nazista de extermnio". Tal equiparao, segundo Ferro, contribui para o processo de banalizao do nazismo no mundo atual. 43 A excessiva vulgarizao do termo, portanto, minimiza o nazismo e, no mesmo movimento, dilui os horrores perpetrados pelo III Reich.44 Trata-se, portanto, de uma falsa questo discutir se o gover93 no Vargas foi, ou no, "totalitrio" deve ser questionado, como vem ocorrendo entre os especialistas da histria do socialismo, a prpria teoria sociolgica do totalitarismo. As vertentes do populismo de segunda gerao a abordagem que privilegia o binmio represso-propaganda, a teoria do controle social e o enfoque totalitrio tm em comum uma maneira de abordar as relaes entre Estado e sociedade/ classe trabalhadora. Como em uma via de mo nica, de cima para baixo, luz do enfoque opressor e oprimido, o Estado, todo-poderoso, pela violncia fsica e ideolgica, domina e subjuga a sociedade, os trabalhadores em particular, surgindo, desse modo, uma relao destituda de interao e interlocuo entre as partes. O Estado, com um poder desmedido, "total" em algumas verses, transforma a sociedade em elemento passivo, inerte e vitimizado. Assim, no Brasil, em 1930, 1935 ou certamente em 1937, os governantes, armados com variados dispositivos "simblicos" de dominao ideolgica, em alguns casos psicolgica, teriam tido a capacidade de manipular, por meio de imagens e representaes, as emoes e a sensibilidade das pessoas, dominando, inclusive, as suas mentes. As delaes que ocorreram na poca do Estado Novo, por exemplo, comprovariam a capacidade do poder estatal de pressionar os indivduos, deixando-os tensos, apreensivos e inseguros. Muitos teriam escrito cartas a Vargas, ao Dops ou polcia denunciando os opositores do regime porque se encontravam atemorizados, ou aterrorizados, com as supostas ameaas dos inimigos, reais ou fictcios, ao governo e, portanto, ordem social. Na poca do "primeiro governo" Vargas, muitas foram as denncias deste tipo, e, hoje, facilmente as encontramos no 94 Arquivo Nacional ou nos arquivos, do Dops. So delaes de que o vizinho era integralista ou comunista; as famlias alems no falavam portugus; o comerciante da esquina estocava alimentos; o fulano era um conhecido agiota. Todas as denncias eram seguidas de nomes e endereos. Supor que as pessoas delatavam as outras por presses "simblicas" do Estado ter como premissa que a sociedade, em seu estado "normal", seria "boa", mas, ao ser corrompida moralmente pelos governantes do Estado Novo, ter-se-ia transformado em um bando de delatores. Mais difcil, repito, compreender que a sociedade, em si mesma, no era to "boa" e isenta de culpas, e que nela circulavam preconceitos contra judeus; manifestavam-se rancores contra alemes e japoneses, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial; existiam pessoas com horror dos comunistas ou dos integralistas; encontravam-se alguns que queriam punir o comerciante da esquina desmedido em seus lucros; havia outras que desejavam livrar-se
42 43

Marc Ferro. Op. cit. "Marc Ferro. Idem, p. 175. 44 "Marc Ferro. Idem.

das dvidas com o agiota e, em alguns casos, mais raros, do prprio marido. Se havia uma ditadura que se mostrava disposta a ajud-las, o caminho ficava mais fcil. Em outras palavras, as relaes entre Estado e sociedade no eram de mo nica, de cima para baixo, mas, sim, de interlocuo, de cumplicidade. Sobre as vertentes que insistem em vitimizar a sociedade, retomo, aqui, as idias de Jos Murilo de Carvalho, que nos adverte sobre os perigos de se tratar uma relao de maneira maniquesta, "segundo a qual o Estado apresentado como vilo e a sociedade como vtima indefesa" e que, portanto, "a inexistncia da cidadania simplesmente atribuda ao Estado". Insatisfatria, como todas as que trabalham com dicotomias para 95 explicar fenmenos sociais, essa perspectiva, em termos tericos, separa partes de um mesmo todo. Mais ainda, diz o autor, "o maniquesmo inviabiliza mesmo qualquer noo de cidadania, pois, ou se aceita o Estado como um mal necessrio, maneira agostiniana, ou se o nega totalmente, moda anarquista. Na prtica, ele acaba por revelar uma atitude paternalista em relao ao povo, ao consider-lo vtima impotente diante das maquinaes do poder do Estado ou de grupos dominantes. Acaba por bestializar o povo". Para o autor, " mais fecundo ver as relaes entre o cidado e o Estado como uma via de mo dupla, embora no necessariamente equilibrada". 45 As abordagens que privilegiam o poder estatal nas relaes entre Estado e classe trabalhadora a partir de 1930 no se afastaram, no fundamental, das mesmas preocupaes polticas que intrigaram lderes, tericos e militantes de esquerda desde o sculo XIX: se a classe operria tem um caminho a seguir e um destino a cumprir, se sua vocao elaborar uma identidade poltica autnoma, como, ento, ela se submete politicamente e segue lderes "populistas" ou "totalitrios"? A resposta, garantia o marxismo mais vulgarizado, no era difcil: por meio da represso aberta e dos efeitos mistificadores da ideologia, as classes dominantes garantiam e reproduziam o seu poder. Algumas, mais tarde, levando ao extremo o conceito gramsciano de hegemonia, acreditaram mesmo que somente os intelectuais marxistas teriam a capacidade de superar as iluses fabricadas pela ideologia burguesa. 46 96 A histria da classe trabalhadora no Brasil, sobretudo com a ascenso de Vargas ao poder, reduzse, assim, a uma espcie de "conspirao" das classes dominantes, sempre criadoras de dispositivos ideolgicos, mecanismos eficientes de controle social, meios habilssimos de propaganda poltica, instrumentos sutis de doutrinao das mentes, entre outros meios para manipular, dominar e desvirtuar os assalariados de seus "reais" e "verdadeiros" interesses. Estranha classe operria, no Brasil e nos pases de capitalismo avanado. Forte o suficiente para revolucionar o planeta, mas "enganada" por qualquer lder "populista", "totalitrio" ou "traidor" que aparea no seu caminho. Como diz Barrington Moore Jr., no importa de onde venham as interpretaes, moderadas ou revolucionrias, a histria da luta dos trabalhadores por suas conquistas confunde-se com "a histria da domesticao do proletariado".47 DE GRAMSCI A GINZBURG, DE FOUCAULT A THOMPSON Em meados dos anos 80, muitos historiadores brasileiros adotaram, em ritmos e graus variados, a literatura de autores identificados com a histria cultural. Muito resumidamente, as anlises negam que as classes dominantes tenham o monoplio exclusivo da produo de idias. Os trabalhadores, os camponeses e as pessoas comuns tambm produzem suas prprias crenas, valores e cdigos comportamentais, o que, no conjunto, convencio97

45 46

Jos Murilo de Carvalho. Op. cit., pp. 10-11. Jorge Ferreira. Op. cit., p. 15 47 Barrington Moore Jr. Injustia. As bases sociais da obedincia e da revolta. So Paulo, Brasiliense, 1987, p. 245.

nou-se chamar de cultura popular. Carlo Ginzburg, por exemplo, sugeriu o conceito de circularidade cultural e demonstrou, em um estudo de caso, que as idias no so produzidas apenas pelas impostas, pelas classes dominantes e impostas, sem mediaes de cima para baixo.48 As pesquisas em histria cultural concordam que as idias, longe de serem institudas por um grupo e disseminadas por toda a sociedade, circulam e, como defende Roger Chartier, as camadas populares se apropriam das mensagens dominantes, dando-lhes novos e diferentes significados.49 Peter Burke, por sua vez, critica o que chama de "teoria do rebaixamento", qualificada por ele de tosca e mecnica. Para o autor, as imagens e as histrias no so passivamente aceitas pelos expectadores e ouvintes: "as mentes das pessoas comuns no so como uma folha de papel em branco, mas esto abastecidas de idias e imagens; as novas idias, se forem incompatveis com as antigas, sero rejeitadas". 50 A noo de resistncia cultural, assim, tornou-se parte integrante de muitos estudos. Enfim, diversos outros autores, a exemplo de Robert Darnton, Natalie Zemon Davis, Giovani Levi, para citar os conhecidos, afirmam que a "ideologia dominante" de uma sociedade no to dominante quanto se pensava. No Brasil, muitos historiadores, sem abandonarem seus prprios mtodos de trabalho, passaram a utilizar o conceito de 98 cultura categoria at ento restrita s anlises antropolgicas. Atravs de uma "narrativa densa", os pesquisadores passaram a reconstituir aspectos do passado colonial brasileiro, a sociedade escravista e, na Primeira Repblica, a vida social e os movimentos populares. Em suas pesquisas, eles avaliaram que estas "pessoas comuns", embora oprimidas por um poder que, muitas vezes, escapava sua compreenso, necessariamente no se deixaram iludir ou manipular. Particularmente na Primeira Repblica, seja em Canudos, nas reformas de Pereira Passos, na Revolta da Vacina ou com os anarquistas, embora haja um Estado repressivo e excludente, ele no surge como todo-poderoso a ponto de moldar as mentes e os comportamentos de trabalhadores e populares. Estes, de maneira diversa, so tratados como pessoas portadoras de idias, crenas e tradies que atuaram e, muitas vezes, se revoltaram contra a ordem vigente. Assim, os pesquisadores que voltam suas preocupaes para perodos anteriores a 1930 no encontraram tantas dificuldades para interpretar as prticas e representaes de trabalhadores e populares, bem como as suas relaes com o poder estatal o que no casual. Afinal, nos perodos colonial, imperial e na Primeira Repblica, os pesquisadores no transformaram as classes dominadas em objetos de regulamentao e manipulao do Estado, e nem responsabilizaram escravos, brancos pobres, camponeses ou assalariados urbanos por se "iludirem" com as ideologias dominantes. No entanto, ainda so poucos aqueles que incorporaram o enfoque cultural nas suas reflexes sobre a histria poltica brasileira aps 1930, particularmente nas relaes entre Estado e 99 classe trabalhadora. Parece-me que as indicaes tericas da Histria Cultural perdem a valida de especialmente quando se trata de estudar trabalhadores e populares aps aquela data, particularmente durante o "primeiro governo" de Getlio Vargas, e mesmo aps 1945. Poucos so os historiadores que aplicam os conceitos de cultura, tradio, circularidade, apropriao, resistncia, entre diversos outros, para o tratamento do tema. As dificuldades existem, por mais que os historiadores etnogrficos h bastante tempo nos ensinem que, se a cultura erudita tem o objetivo de subjugar os povos, no h por que acreditar, como afirma Roger Chartier, que "estes foram real, total e universalmente submetidos". Para o autor, " preciso, ao contrrio, postular que existe um espao entre a norma e o vivido, entre a injuno e a prtica, entre o sentido visado e o sentido produzido, um espao onde podem insinuar-se reformulaes
48

Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela Inquisio. So Paulo, Companhia das Letras, 1987. 49 Roger Chartier. A histria cultural; entre prticas e representaes. Lisboa, Dfel, 1990, pp. 136-137. 50 Peter Burke. A cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. So Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 86.

e deturpaes".51 Contudo, a impresso que tais indicaes so levadas a srio para antes de 1930. Para depois, no. A histria da classe trabalhadora a partir de 1930, assim, torna-se um grande ardil das classes dominantes, que, pela propaganda poltica e a doutrinao das mentes, entre outros dispositivos ideolgicos, desviam os trabalhadores de seus "verdadeiros" objetivos. Se a Histria Cultural no foi suficiente para a superao das dificuldades, tambm parece ser o caso de um autor que h 100 mais de uma dcada vem influenciando a produo historio-grfica brasileira: E.P. Thompson. Suas idias e sugestes metodolgicas tm sido apropriadas no Brasil nos mais diversos estudos, dos motins populares s festas, das organizaes culturais dos operrios aos rituais, entre outras temticas. No entanto, a questo central de sua obra, o processo de formao da classe trabalhadora, surge prioritariamente nos estudos sobre a Primeira Repblica, particularmente com os anarquistas e, como no caso da Histria Cultural, no para perodos posteriores. No Brasil, Thompson, ao lado dos historiadores da cultura, em poucas ocasies ultrapassa a data tabu: 1930. 52 Novamente no estamos diante de uma casualidade. Lembremos que a concepo que o historiador ingls tem de classe social e de conscincia de classe incompatvel com a noo de populismo e de suas inevitveis conseqncias, como manipulao, das,massas, mistificao ideolgica e conscincias desviadas dos seus interesses "reais". Refletindo junto a Thompson, pode-se mesmo dizer que expresses como populismo, getulista, janguista ou trabalhista, no importa o complemento, surgem como uma tentativa de 101 fabricar explicaes apresentadas como racionais para comportamentos interpretados como noracionais. A categoria de "irracionalidade", inclusive, uma das pilastras que sustenta a noo de populismo. Por exemplo, para Weffort, o populismo nunca teria sido, em suas prprias palavras, "bastante conseqente em seu irracionalismo para colocar-se diretamente sob a tutela de um chefe", enquanto o nacionalismo, por sua vez, definido como "irracionalismo sob a forma racional" (grifos meus).53 Assim, as experincias vividas pelos indivduos, suas tradies, crenas e valores, so definidos como uma racionalidade deslocada, um desvio, uma ideologia, portanto.54 As dificuldades para compreender o trabalhismo como um "fenmeno histrico" surgem diante das intervenes, repressivas e persuasivas, patrocinadas pelo Estado aps 1930, as quais, em vrias anlises, teriam alterado os caminhos "naturais" da classe na constituio de sua identidade poltica. No entanto, a experincia do movimento operrio e sindical entre 1930 e 1964 e as relaes entre Estado e classe trabalhadora, ao serem definidas como "populistas", devido atuao do poder estatal, podem, e certamente devem, ser criticadas pelo que Thompson chama de recurso da "interpelao" ou "chamamento". A coisa ocorreria da seguinte maneira: o Estado, por meio de seus aparelhos polticos, legais, ideolgicos, entre outros, grita para os indivduos: ", voc a!" Sem demora, eles so "recrutados" para as relaes "imaginrias" no pior sentido do termo que o Es102

51

Roger Chartier. Cultura Popular: revisitando um conceito historiogrfico. In Estudos Histricos, n 16. Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas, 1995, p. 182. 52 As "ocasies", na verdade, esto deixando de ser to raras. Cito, como exemplo, um grupo de historiadores que, a partir da leitura de Thompson, vm produzindo trabalhos inovadores sobre a histria da classe trabalhadora brasileira, entre eles Fernando Teixeira da Silva. A carga e a culpa. Os operrios das docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade. 19371968. Santos. Hucitec/Prefeitura Municipal de Santos, 1995; Hlio da Costa. Em busca da memria. Comisso de fbrica, partido e sindicato no ps-guerra. So Paulo, Scritta, 1995; Paulo Fontes. Trabalhadores e cidados. Nitro Qumica: a fbrica e as lutas operrias nos anos 50. So Paulo, Annablume/Sindicato Qumicos e plsticos-SP, 1997. 53 Francisco Weffort. Op. cit., pp. 42-32. 54 E.P. Thompson. A misria da teoria ou um planetrio de erros. Uma crtica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, p. 193.

tado exige. Como ele diz em seu estilo irnico, tais concepes surgem como "um roteiro comovente", prprio de filmes infantis: (...) "a malvada bruxa do Estado aparece! A varinha mgica da ideologia agitada! E, pronto". Surge, assim, o movimento sindical reformista. Embora o ato de "chamar" ocorra em qualquer sociedade, alega o autor, no h por que acreditar que os trabalhadores necessariamente atendam, exceto se eles forem transformados em seres passivos e sem iniciativa prpria. Houve, decerto, a interveno estatal, insisto. Sobretudo a partir de 1942, a formulao do projeto trabalhista pelo Estado contribuiu, de maneira decisiva, para configurar uma identidade coletiva da classe trabalhadora. Mas, em qualquer experincia histrica, os assalariados sofrem influncias dos contextos sociais, polticos e ideolgicos em que vivem. No caso brasileiro, como em outros, tratou-se de uma relao, em que as partes, Estado e classe trabalhadora, identificaram interesses comuns. No trabalhismo, estavam presentes idias, crenas, valores e cdigos comportamentais que circulavam entre os prprios trabalhadores muito antes de 1930. Compreendido como um conjunto de experincias polticas, econmicas, sociais, ideolgicas e culturais, o trabalhismo expressou uma conscincia de classe, legtima porque histrica. Por este enfoque, os trabalhadores, "ao viverem sua prpria histria", deixam de ser considerados simples objeto de regulamentao estatal! O prprio projeto trabalhista, para ser compreendido e aceito, no pode ignorar o patrimnio simblico presente na cultura poltica popular. O sucesso do trabalhismo, portanto, no foi arbitrrio, e muito menos imposto pela propaganda poltica e pela mquina policial. Igualmente, no foi 103 casual que o PTB, a institucionalizao do projeto, tenha sido a organizao mais popular durante a experincia democrtica ps-45, tornando-se, em 1964, a maior agremiao no espectro poltico do pas. Por fim, uma advertncia bastante contundente do historiador ingls. Trata-se dos perigos de enfocar as relaes entre Estado e classe trabalhadora a partir de cima, dando ao aparato estatal, ou s classes dominantes, um poder desmedido. Trata-se, para o autor, de uma maneira elitista de tratar uma relao:
Mais uma vez os intelectuais um grupo escolhido entre eles receberam a tarefa de iluminar o povo. No h trao mais caracterstico dos marxismos ocidentais, nem mais revelador de suas premissas profundamente antidemocrticas. Seja a Escola de Frankfurt ou Althusser, esto marcados pela sua acentuada nfase no peso inelutvel dos modos ideolgicos de dominao dominao que destri qualquer espao para a iniciativa ou criatividade da massa do povo , uma dominao da qual s uma minoria esclarecida de intelectuais pode se libertar. Sem dvida, essa predisposio ideolgica foi alimentada pelas experincias terrveis do fascismo, da doutrinao da massa pelos meios de comunicao e do prprio stalinismo. , porm, uma triste premissa para a teoria socialista (todos os homens e mulheres, exceto ns, so originalmente estpidos) e destinada a levar a concluses pessimistas ou autoritrias.55

104 O "COLAPSO" DO POPULISMO Como poltica de massas, estilo de governo e tendo por idias bsicas o controle, a manipulao e a tutela do Estado, a noo de populismo, no dizer de Angela de Castro Gomes, tornou-se, em fins dos anos 70, quase uma imposio, "pelo compartilhamento j alcanado e pela falta de verses de maior trnsito". 56 No entanto, no eram incomuns, mesmo no incio dessa dcada, insatisfaes e inconformismos com a expresso. Em trabalho ainda muito atual, Celso Frederico, j em 1970, questionava:
Seja nessas interpretaes convencionais [teorias da modernizao], seja em ensaios mais refinados como os de F. C. Weffort, o populismo sempre visto como um desvio, uma simples deformao ideolgica, uma falsificao da conscincia de classe.57

55 56

ldem, p. 205. Angela de Castro Gomes. Op. cit., p. 50. 57 Celso Frederico. Conscincia operria no Brasil. So Paulo, tica, 1979, p. 121.

Embora com as limitaes impostas pelas teorias vigentes naquela poca, o autor expressou suas dvidas certamente por entrevistar operrios de carne e osso, conhecendo-os de perto. Frederico no encontrou, e demonstrou isso com muito talento, trabalhadores manipulados, iludidos e desviados dos seus "reais" interesses. Somente em fins daquela dcada, surgiram as primeiras ver105 ses alternativas, sobretudo anlises que apontavam para as interaes entre o projeto varguista e as demandas dos prprios trabalhadores antes de 1930. Recusando as concepes que sugeriam os "desvios ideolgicos" da classe trabalhadora, categoria que implicitamente apontava para um caminho "verdadeiro", um grupo de cientistas polticos interpretou a conscincia de classe como algo que se define por uma complexa interao com o Estado e os empresrios. Maria Hermnia Tavares de Almeida, Luiz Werneck Vianna e Wanderley Guilherme dos Santos ofereceram, assim, importantes contribuies.58 Em compasso com o ambiente intelectual propcio para verses alternativas, outros pesquisadores, em diferentes regies do pas, e no apenas no eixo Rio-So Paulo, passaram a criticar o "populismo na poltica brasileira" alguns deles sob a influncia das interpretaes gramscianas de Ernesto Laclau sobre o fenmeno na Argentina. 59 Flvio Henrique Albert Brayner, 60 por exemplo, criticou os que, tomando como texto-base o discurso de posse de Miguel Arraes no governo de Pernambuco, no incio dos anos 60, classificaram sua proposta poltica como "populismo de esquerda" fenmeno que se caracterizaria pela mistificao das relaes de classe, pela presena da mstica Povo106 Comunidade. Questionando a indefinio conceitual de "populismo de esquerda", o que implicaria um de "centro" e outro de "direita", Brayner afirma que os autores gostariam de ver
um discurso que trouxesse um corte de classe preciso, um pertencimento de classe facilmente observvel a olho nu. Pensam as classes, e suas ideologias, sob a forma da reduo. Vem a utilizao da categoria POVO no discurso de Arraes como a prpria negao do conflito de classes. 61

Miguel Bodea, por sua vez, com base em extensa pesquisa, questionou em Weffort a tipologia da relao "lder populista-massas populares" e a idia de que o populismo teria sido um pouco mais que uma "forma pequeno-burguesa de consagrao do Estado",62 uma vez que desestimularia a organizao partidria. Bodea, igualmente influenciado pelas reflexes de Laclau, demonstrou como Getlio Vargas, Alberto Pasqualini, Joo Goulart e Leonel Brizola primeiro firmaram suas lideranas em uma estrutura partidria regional e somente depois se projetaram na poltica nacional. A ascenso ocorreu dentro do partido poltico, e no, "como muitos parecem supor, a partir de uma relao carismtica direta entre o lder e as massas populares". Para o autor, "o carisma, quando houve, desenvoIveu-se a posteriori". Assim, a liderana de Pasqualini impensvel fora do PTB gacho. Sem a organizao partidria, certamente ele seria um personagem desconhecido. Goulart 107 e Brizola, por sua vez, no alcanariam a projeo nacional sem um PTB forte a nvel regional. Mesmo
58

Maria Hermnia Tavares de Almeida. Estado e classe trabalhadora no Brasil (1930-1945). Tese de doutoramento. So Paulo, USP, 1978 (mimeo); Luiz Werneck Vianna. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978; Wanderley Guilherme dos Santos. Cidadania e justia: a poltica social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Campus, 1979. 59 Ernesto Laclau. Poltica e ideologia na teoria marxista. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. 60 Flvio Henrique A. Brayner. Partido Comunista em Pernambuco. Recife, Massangana, 1989 61 Idem, p. 114 62 Francisco Weffort, Op. cit., p. 73

Vargas, at chegar categoria de mito poltico, lutou por quase trs dcadas para se impor no Partido Republicano Rio-Grandense. Com base em farta documentao, o autor rejeita as indicaes sugeridas por Weffort de que "o lder ser sempre algum que j se encontra no controle de alguma funo pblica um presidente, um governador, um deputado etc."63 Em sua pesquisa, contrape Bodea:
Na avaliao de todas estas carreiras polticas [...] torna-se patente que nenhum destes lderes teria desenvolvido seu prestgio junto s massas ao menos no mbito regional sem passar pl.o_.cxro.,do partido, com suas disputas internas e a luta constante pelo voto dos delegados s crvenoes partida-rias. Evidentemente, depois de verem sacramentadas suas lideranas e candidaturas no nvel partidrio, todos estes lderes criaram uma projeo prpria de liderana de massa para fora e at acima do partido.64

nesse contexto de insatisfaes e de procura de alternativas que vem a pblico, em 1988, A inveno do trabalhismo, de Angela de Castro Gomes. Inicialmente, importante ressaltar, o trabalho foi recebido com certa inquietao. Afinal, no se rompe com todas as premissas da noo de populismo e, portanto, com uma tradio longamente aceita e compar-

108 tilhada sem custos. Assim, foi preciso esperar que uma gerao de historiadores, influenciados pelas abordagens culturais, pelas leituras antropolgicas, pela recepo da assim chamada Histria Poltica renovada e, particularmente, pelas idias de Thompson, estivesse receptiva para compreender a poltica brasileira entre 1930 e 1964 sob novos enfoques. Dez anos aps sua primeira edio, A inveno do trabalhismo passou a sofrer uma nova leitura, menos inquietante e mais reflexiva. Seja como for, em fins dos anos 90, aqueles que recusaram as abordagens que privilegiam a manipulao e a tutela estatal dos trabalhadores aps 1930 deixaram de ser vozes isoladas. Diversos autores vm contribuindo para desacreditar, uma a uma, as premissas do "populismo na poltica brasileira". Assim, Luclia de Almeida Neves e Maria Celina D'Arajo, cada uma sua maneira, demonstraram que o trabalhismo no se reduziu mera manipulao poltica, e que o PTB, igualmente, no se resumiu a um "partido de pelegos". 65 Argelina Cheibub Figueiredo, em trabalho inovador, comprovou a insustentabilidade da tese clssica que explicaria o "colapso do populismo" pelas mudanas nos padres de acumulao capitalista vale dizer, pelo determinismo econmico.66 Maria Helena Rolim Capelato, em sua pesquisa comparativa so109 bre o Estado Novo e o peronismo, relativiza o poder da propaganda poltica de massas. Para a autora, "a eficcia das mensagens depende dos cdigos de afetividade, costumes e elementos histrico-culturais dos receptores". Sem a presena desses elementos, uma mquina propagandstica, mesmo poderosa e sofisticada, cai no vazio. Em teses e dissertaes que orientou, surgem contrariedades com as premissas "que insistem na capacidade de manipulao estatal das conscincias pelos meios de comunicao". 67 No meu prprio livro, Trabalhadores do Brasil. O imaginrio popular, procurei reconstituir, ainda que parcialmente, idias, experincias e estratgias polticas de trabalhadores e populares, demonstrando que eles no estavam manipulados ou iludidos na poca do "primeiro governo" de Vargas.68 Mais ainda, em programas de ps-graduao em Histria, grupos de pesquisadores, instituindo "escolas" historiogrficas, atualmente formam jovens historiadores crticos da noo de populismo.
63 64

Idem. Miguel Bodea. Trabalhismo e populismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 1992, p. 197. 65 Luclia de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964). So Paulo, Marco Zero, 1989 veja tambm artigo da mesma autora nesta coletnea; Maria Celina D'Arajo. Sindicatos, carisma e poder. O PTB de 1945-65. Rio de Janeiro, Ed. da Fundao Getlio Vargas, 1996. 66 Argelina Cheibub Figueiredo . Democracia ou reformas? Alternativas democrticas crise poltica: 1961-1964. So Paulo, Paz e Terra, 1993. 67 Maria Helena Rolim Capelato. Op. cit., pp. 203 e 205. Veja, da mesma autora. Multides em cena. Propaganda poltica no varguismo e no peronismo. Campinas, Papirus, 1998. 68 Jorge Ferreira. Op. cit.

O populismo, portanto, parece entrar em colapso. Evidentemente que no no sentido dado por Octavio Ianni, mas, sim, em sua prpria lgica explicativa. Embora, por uma questo de cautela, no se deva subestimar a fora das tradies. 110 A "INVENO" DO POPULISMO As palavras "populismo" e "populista" no estavam disponveis no vocabulrio poltico e na linguagem cotidiana do pas na poca do "primeiro governo" de Vargas. No existiam, simplesmente. Ento, afinal, quem "inventou" o populismo? No Brasil, o primeiro historiador a defender que a propaganda poltica estatal se mostrou eficaz na manipulao dos trabalhadores, e da o apoio deles a Vargas, foi Karl Loewenstein, em livro publicado ainda em 1942. A interpretao liberal daquele fenmeno percorre a sua anlise.69 No entanto, o ano de 1945 foi crucial para a formulao e o estabelecimento da crena de que o prestgio do ditador entre os assalariados urbanos constituiu obra da mquina propagandstica do DIP. Nesse ano, em pleno processo de democratizao, o pas conheceu uma grande mobilizao em favor da continuidade de Vargas no poder. O "queremismo", movimento de propores grandiosas, somente comparado Aliana Nacional Libertadora e campanha das Diretas J, irritou profundamente os grupos liberais de oposio ao Estado Novo. Para as foras liberais e antigetulistas, havia uma grande dificuldade para compreender e assimilar manifestaes populares de defesa do ditador. Nos jornais, os violentos ataques a Vargas tornavam-se, ao mesmo tempo, argumentos 111 explicativos. Em editorial, o Dirio da Noite, de So Paulo, concordou que Vargas, de fato, "desfruta de alguma popularidade" entre certas categorias de trabalhadores. Mas o prestgio do ditador explica-se fundamentalmente pela propaganda demaggica do Estado Novo. Hitler e Mussolini tambm, por fora mstica que souberam difundir, [...] desfrutaram de popularidade [...] de milhes de homens fanatizados, atiizados, i 1, ,actos (...), excitando sua imaginao.70 Em O Jornal, no Rio de Janeiro, um jornalista igualmente tentou enfrentar a questo. 71 A participao de trabalhadores, qualificados por ele de "arruaceiros", que tentam impedir manifestaes pela democracia, tem origem, fundamentalmente, na presena, no Brasil, de uma "atitude mental obscurantista" oriunda da importao da ideologia nazista. Tais idias, perniciosas, mas ainda vivas na sociedade brasileira, perturbam a ordem e repelem a marcha para as liberdades democrticas. Portanto, conclui o autor, preciso eliminar estas "foras do mal que, esmagadas na Alemanha nazista, ainda procuram defender posies que no podem defender pelas armas". Em 1945, as correntes liberais e antigetulistas demonstraram incapacidade para assimilar manifestaes populares a fa113 vor de Vargas. Assim, entre a influncia do nazismo e a atuao de idias perniciosas, entre a mentalidade obscurantista e o comportamento prprio de arruaceiros, a oposio liberal esforava-se para dar conta dos conflitos que surgiam. Portanto, a explicao liberal, em seu limite, denunciava a aplicao, nos anos do Estado Novo, das tcnicas de propaganda poltica de massa pelo DIP, importadas da Alemanha nazista, sobre uma populao pobre, analfabeta e ignorante, ensejando que, no ocaso da ditadura, surgissem tais constrangimentos. Reprimir as manifestaes a favor de Getlio, desse modo, era a sada legtima para o problema. Assim, na conjuntura da democratizao, entre 1942 e I 945, houve a aproximao entre o
69

Karl Loewenstein. Brazil under Vargas. Nova York, Macmillan Company, 1944 (1' edio de 1942). Agradeo a Andr Moyss Gaio, professor do Departamento de Histria da Universidade Federal de Juiz de Fora, pela indicao do livro. 70 Citado em O Jornal. Rio de Janeiro, 18 de agosto de 1945, 2a seo, 1a pgina. 71 ldem. Rio de Janeiro, 11 de maio de 1945, p. 2.

historiador e o jornalista. Ambos, partindo dos horizontes oferecidos pelo liberalismo, passaram a explicar as relaes entre Estado e classe trabalhadora a partir da manipulao, da propaganda estatal e do "atraso" da cultura poltica popular brasileira. As palavras "populismo" e "populista" ainda no se encontravam disponveis no vocabulrio da poca, mas os fundamentos explicativos do fenmeno estavam lanados. A partir de 1945 at 1964, as palavras foram surgindo muito lentamente atravs dos anos. No entanto, raramente eram utilizadas, e quando surgiam nas pginas dos jornais, no tinham o objetivo de desmerecer ou insultar o adversrio. Mesmo na linguagem virulenta do lacerdismo, esses termos estavam ausentes. Getlio Vargas, por exemplo, em um nico texto datado de 1954, foi acusado de criminoso, materialista, imoral, desonesto, conivente com ladres e comparado a uma grande 113 peste.72 Joo Goulart, por sua vez, era descrito pela imprensa oposicionista como um homem primrio nas letras, de limitados horizontes intelectuais, demagogo, corrupto e manipulador dos sindicatos. 73 De criminosos a demagogos, de corruptos a golpistas, de ladres a ignorantes, as oposies formulavam e 114 disseminavam imagens extremamente negativas acerca dos dois lderes trabalhistas. No entanto, as palavras "populismo" ou "populista" no estavam no rol de acusaes a Vargas e a Goulart. Os termos "populista" e "populismo" existiam no vocabulrio poltico entre 1945 e 1964, mas muito raramente eram utilizados. Contudo, quando eram pronunciados, tinham um significado bastante diferente deste que conhecemos hoje.74 Lendo os noticirios polticos de diversos jornais daquela poca, curioso perceber que, nas poucas situaes, quando Getlio Vargas e Joo Goulart eram chamados de "populistas" nada havia de ofensivo. Ao contrrio, a expresso surgia como elogiosa. Por exemplo, Joo Duarte Filho, nas pginas da Tribuna da Imprensa, escreveu: "Desde que Getlio mascarou Jango de lder populista comeou uma poca de agitao dos trabalhadores" (grifos meus).75 O sentido, aqui, no o da transferncia da demagogia e da manipulao de um para o outro, mas, sim, que Goulart teria herdado de Vargas a legitimidade poltica para atuar entre os trabalhadores, respondendo, assim, s suas demandas. ltima Hora, por sua vez, jornal que apoiava Vargas, publicou um editorial (possivelmente escrito por Samuel Wainer, diz Maria Victria Benevides) defendendo, com veemncia, o

72

"(...) Sobretudo preciso alijar Getlio. Em primeiro lugar preciso alijar Getlio. Erradic-lo, extirp-lo da vida pblica nacional, como se faz, pela cirurgia, com as infeces e com os cancros. Ele pesteia, deteriora tudo em que toda. Ele o fim (...). Ele um viciado do crime poltico. S como criminoso sabe agir. Realista, materialista como os animais e como os primrios, (...) tudo se acaba em torno dele. Caem as foras morais, decai o esprito pblico, deturpa-se o patriotismo, transmudam-se os valores (...). E tudo vai poluindo pelo exemplo. A imoralidade j recebe, no seio das famlias, epincios e elogios, pelo seu exemplo. A honestidade pessoal muda o seu conceito, j no sendo roubo a apropriao dos dinheiros pblicos pelo seu exemplo. O seu exemplo o pior dos exemplos que j teve o Brasil. Contemporizando com os ladres pblicos, deixando-os imunes sua sombra, ele investe, pelo exemplo, contra a moral brasileira, do homem brasileiro que sempre preferiu passar fome a tocar no dinheiro alheio. O exemplo de Getlio contra este tradicional padro de honestidade. Getlio o fim, como uma grande peste (...). Getlio o fim. Mas o Brasil no quer parar, no quer chegar ao fim. preciso, portanto, erradicar Getlio." Joo Duarte Filho. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1954, p. 3. 73 Comentando sobre os perigos das prximas eleies legislativas, Carlos Lacerda acusava: "E desde agora se preparam os jangos para as prximas eleies. Ao Jango-mor est afeta a tarefa de conquistar, demagogicamente, a massa trabalhista. Com seu primarismo de homem sem letras, com o seu nublado horizonte espiritual, outra coisa no faz ele, desde que ministro, seno comprar (...) eleitores para as prximas eleies (...). E est comprando com a honestidade de um bom pagador, comprando e pagando com o dinheiro da previdncia (...). A Repblica Sindicalista, a esdrxula repblica jangueira, ter ganho a contento, elegendo a sua gente para a maioria governamental que far do sr. Getlio Vargas, amorfo e dcil homem de quase oitenta anos mal vividos, um ditador que cochila, enquanto Jango age". Idem, Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1953, p. 4. 74 Para a dcada de 1950, Francisco Weffort alega que "a paixo nacionalista pelos esquemas ideolgicos generalizou-se a tal ponto, que a expresso `populismo' chegou praticamente a desaparecer do vocabulrio poltico desta fase, dando a impresso de haver tambm desaparecido o fato que pretendia designar". A afirmao carece de comprovao emprica. Insisto que a expresso no "chegou praticamente a desaparecer do vocabulrio poltico", como defende Weffort, porque ela sequer existia antes de 1945. Op. cit., p. 24. 75 Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1953, p. 3.

115 papel histrico do trabalhismo e do PTB. O partido, diz o texto, sendo "instrumento poltico do Sr. Getlio Vargas, segue as pegadas populistas do seu fundador. Para as massas obreiras, o aval que Getlio d ao partido basta a lhe conferir um largo crdito de confiana" (grifos meus). 76 Assim, tanto Joo Duarte Filho, que detestava Goulart, como Samuel Wainer, que defendia Vargas, usavam a palavra "populista" em um sentido elogioso. Portanto, naquela poca, ser um lder "populista", tanto para os trabalhistas como para seus adversrios, no descrevia um poltico _que utilizava como recursos a manipulao, a demagogia e a mentira,, A palavra tinha um outro significado do atar talvez o oposto. A expresso, embora pouco utilizada, pode ser traduzida, na linguagem de nossos dias, no que chamamos de "lder popular", de algum que representa, autenticamente, os anseios polticos "populares" ou dos "movimentos populares". Se hoje, pelo menos na sensibilidade poltica das esquerdas, ser um "lder popular" algo elogioso, nos anos 50 e incio dos 60, de maneira similar, surgia com meritrio definir algum como "lder populista". Igualmente, curioso investigar o significado da palavra "pelego". Na linguagem da militncia de esquerda, sobretudo com as greves no ABC paulista em fins dos anos 70, tornou-se comum qualificar o movimento sindical no perodo anterior a 1964, e sobretudo suas ligaes com o Estado e o PTB, como "pelego". As lideranas dos trabalhadores, exatamente por se aproximarem de lderes polticos como Vargas e Goulart e for116 mularem uma identidade com base no trabalhismo e no nacionalismo, passaram a merecer aquele ttulo desqualificador. Mesmo que pesquisas mais recentes demonstrem que as coisas no eram to simples assim, a estampa de "partido dos pelegos" marcou o PTB como uma "tatuagem de marcas profundas", no dizer de Luclia de Almeida Neves Delgado. 77 Os "pelegos", sindicalistas dispostos a negociao com o governo, sem dvida, existiram. Mesmo antes de 1930, eles concorriam com anarquistas, comunistas e outras correntes. Mas foi sobretudo aps 1935, com a violenta represso ao movimento operrio e sindical, que o "pelego", dito clssico, adentrou o cenrio poltico brasileiro. A tal ponto o movimento sindical foi desmobilizado, que, em 1942, tcnicos do Ministrio do Trabalho se esforaram para formar, por meio de cursos, lideranas autnticas, visando a criar uma base de apoio a Vargas com a democratizao que se vislumbrava. Mas o que interessa aqui perceber que o estigma de "pelego" continuou aps 1945. Mesmo que o movimento sindical tivesse se modificado, principalmente em meados dos anos 50, com o surgimento de lderes que procuravam representar legitimamente sua categoria, realizando greves, formando intersindicais, politizando suas lutas e assumindo um programa de reformas, como a agrria, e a nacionalizao de empresas, a marca de "pelego" continuaria. Era sobretudo a oposio liberalconservadora, em particular a UDN, que denunciava o perigo dos sindicalistas "pelegos" para as instituies democrticas. 117 Na sensibilidade poltica dos grupos conservadores, qualquer lder sindical, autntico ou fisiolgico, trabalhista ou comunista, autnomo ou subserviente ao Estado, era qualificado, indistintamente, de "pelego". Assim, j em 1945, diante do amplo apoio dos trabalhadores e de lderes sindicais ao movimento "queremista", o Dirio da Noite, de So Paulo, argumentou: "Est provado que o Ministrio do Trabalho, atravs de seus agentes e por intermdio de alguns falsos lderes sindicais, manobra os cordis dessa mistificao ignbil de gordas verbas" (grifos meus). 78 Em 1953, criticando a gesto de Goulart no Ministrio do Trabalho, Carlos Lacerda afirmou:
76

Citado in Maria Victria Benevides. O PTB e o trabalhismo. Partido e sindicato em So Paulo (1945-1964). So Paulo, CEDEC/Brasiliense, 1989, p. 55. 77 Luclia de Almeida Neves, Op. cit., p. 291 78 Citado em O Jornal. Rio de Janeiro, 18 de agosto de 1945, 1 pg., 2 seo.

Joo Goulart tenta criar no Brasil uma nova CGT, do tipo Peron. Ele prepara um golpe peronista, no estilo boliviano. No se trata do fechamento do Congresso como foi feito em 1937, e, sim, da sua dominao pela massa de manobra de um sindicalismo dirigido por "pelegos", visando reformar a Constituio e estabelecer uma ditadura no pas (grifos meus).79

Nessa poca, os jornais, quase que diariamente, apresentavam imagens bastante negativas do governo e da ameaadora situao poltica do pas:
Desde que o Sr. Joo Goulart assumiu o Ministrio do Trabalho, afirmou o Dirio de Notcias, se tem acentuado o clima de

118
de agitao e exacerbao do conflito de classes, que o Sr. Getlio Vargas diz condenar."80

As violentas crticas a Vargas e a Goulart, veiculadas pela imprensa, escamoteavam os verdadeiros personagens que se queriam atingir: os trabalhadores e o movimento sindical. No foi casual, assim, que em episdios dramticos na vida poltica do pas, como o suicdio de Vargas, em 1954, na assim conhecida Campanha da Legalidade, em 1961, ou nos primeiros dias de abril de 1964, a primeira medida tomada pelos governos estaduais conservadores tenha sido prender lderes e dirigentes sindicais, sempre com o pretexto de resguardar a "ordem pblica".81 Para as oposies, o perigo no era necessariamente o "pelego", mas o movimento sindical em processo de mobilizao e politizao crescentes. No projeto poltico conservador dos liberais brasileiros, no haveria espaos para a cidadania plena dos trabalhadores. No entanto, a palavra "pelego" pegou. Mesmo nos primeiros meses de 1964, quando o movimento dos trabalhadores radicalizou, a imagem do sindicalista subserviente ao Estado e corrompido pelo imposto sindical, ilegtimo e merecedor de punies, portanto, ainda surgia nas pginas da imprensa conservadora. 119 Trata-se, como observou Fernando Lattman-Weltman com acuidade, de uma poltica de excluso dos trabalhadores veiculada pela grande imprensa do Rio de Janeiro e de So Paulo, particularmente no tocante questo da cidadania. Os assalariados, que aprenderam a creditar os seus direitos sociais ao regime de Vargas, em 1945 passaram igualmente a se beneficiar dos direitos polticos. A imprensa, que rejeitava o governo instaurado em 1930 por negar os primados bsicos do liberalismo, como o laissezfaire econmico, o individualismo e as liberdades polticas fundamentais, com a democratizao passou a identificar os direitos sociais dos trabalhadores, bem como os perigos de sua extenso e ampliao, como uma ameaa ordem liberal. Segundo Lattman Welteman, "o exerccio dos direitos polticos particularmente o voto era, nesta verso tupiniquim do liberalismo, conspurcada pela outorga ilegtima dos direitos sociais, mercadoria privilegiada do trfico demaggico/populista dos falsos democratas (o ex-ditador e sua `camarilha de golpistas, apaniguados e pelegos'). Toda uma tradio retrica se construiu atravs da manipulao de tais palavras verdadeiros antemas da poca: `demagogo', `caudilhismo', `populismo', `pelegos' etc." A poltica de excluso, patrocinada pelos liberais e veiculada pela imprensa, delineou a imagem de uma "democracia impura", 82 ou melhor, de uma "democracia populista". Assim, se nos anos 40 houve a aproximao entre o histori79 80

Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 8 de julho de 1953, 1 pgina, 2 seo. Dirio de Notcias. Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1953, p. 4. 81 Veja Jorge Ferreira. "O carnaval da tristeza: os motins urbanos do 24 de agosto". In Angela de Castro Gomes (org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro, Relume-Dumar, 1994, e "A legalidade trada: os dias sombrios de agosto e setembro de 1971". In Tempo. Revista do Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense, n 3. Rio de Janeiro, Relume-Dumar, 1997. 82 Fernando Lattman-Weltman. Cidadania e razo na imprensa escrita: retrica e prtica excludente em perodos democrticos (Os anos 50 e 90). Belo Horizonte, Anais do XIX Simpsio Nacional de Histria da ANPUH, 1997, pp. 577578.

120 ador e o jornalista para a configurao do populismo, na dcada de 50 ocorreu a segunda aproximao, agora a do socilogo com o mesmo jornalista. Com o anteparo da teoria da modernizao, o Grupo de Itatiaia, como vimos, formulou as primeiras indicaes sobre o "populismo na poltica brasileira". Mas foi nos anos 60, sobretudo a partir de 1963, que a aliana se ampliou enormemente. Alm da imprensa e de novos socilogos, agora das universidades, agregaram-se os militares golpistas, a direita civil, a Igreja, os capitalistas, as classes mdias conservadoras e os crentes na ortodoxia marxistaleninista. Todos, no dizer de Daniel Aaro Reis Filho, tinham contas a ajustar com o grande inimigo: o trabalhismo. E to liquidado o queriam, que o defunto sequer teve o direito de levar seu prprio nome ao tmulo: "batizado pela sociologia paulista, foi como populismo que desceu os sete palmos de terra. E, assim, seria ensinado s novas geraes, nas escolas, nos quartis e nas organizaes polticas". E, como diz o autor, "temos as contas ajustadas". 83 PALAVRAS FINAIS Aps tantas trajetrias e interpretaes, a noo de "populismo", cm fins dos anos 90, passou, para usar uma expresso de ngela de Castro Gomes, "de pedra a vidraa", embora, de acordo com 121 a mesma autora, ainda seja "um gato de sete vidas". 84 Apesar das crticas crescentes e carecendo de contedo terico mais consistente, a expresso passou a fazer parte da linguagem corrente da populao, sedimentando-se na cultura poltica brasileira, seja ela popular ou erudita. Assim, entrevistado em 1997 por um reprter, Jacob Gorender ouviu uma pergunta que, igualmente, era uma explicao para o populismo, agora em sua terceira verso:
Alguns estudiosos sugerem que estamos vivendo um perodo que poderia ser denominado "neopopulismo", onde o poder executivo toma para si a idia e a prtica de uma acentuada personalizao e autonomia, alm de tentar, tal como os moldes tradicionais do populismo, harmonizar as diferentes classes sociais e capital e trabalho em torno de um compndio comum. Nao, por exemplo."85

Personalizao e autonomia do poder executivo, conciliao de classes e ideal da Nao, eis os ingredientes do populismo de terceira gerao, agora rebatizado de "neopopulismo". Seja ele na poca de Vargas ou de Fernando Henrique Cardoso, no importa, trata-se de uma verdadeira maldio na poltica brasileira, qual, ao que parece, fomos condenados. Talvez a explicao para o "populismo na poltica brasileira" seja bem mais simples. Em agosto de 1998, durante a campanha eleitoral para a presidncia da Repblica, Fernando 122 Henrique Cardoso, disputando a reeleio, promoveu um comcio no Parque Royal, uma favela no Rio de Janeiro. Acompanhado do candidato a governador do estado pelo Partido da Frente Liberal, o presidente, aps lembrar que conhecia as dificuldades dos favelados atravs de seus estudos sociolgicos sobre a situao dos negros no sul do pas, disse para aproximadamente 1.500 pessoas que assistiam ao comcio: "No adianta prometer o que no vamos fazer. No d para transformar todo mundo em rico, nem sei se vale a pena, porque a vida de rico em geral muito chata." 86
83

Daniel Aaro Reis Filho. "Orelha" do meu livro Trabalhadores do Brasil. O imaginrio popular. Op. cit. Veja tambm artigo do mesmo autor nesta coletnea 84 Angela de Castro Gomes:. O populismo... , Op. cit., pp. 43 -49. 85 Folha da Histria. Porto Alegre, novembro de 1997, n 11, p. 8. 86 "Os moradores do Parque Royal no gostaram do que ouviram, sobretudo porque a renda mdia mensal na comunidade de 335,90 reais. Entrevistado por um reprter, o jornaleiro Samuel Almeida afirmou: "Fernando Henrique fala porque no est no nosso lugar, mas, com certeza, ele no ia querer ser pobre." O desempregado Mrcio da Silva, por sua vez, alegou: "Ser que ele acha chato ser rico? Eu gostaria de ser atendido rapidinho no hospital, que nem acontece com os ricos." A jovem Maria Jos Xavier, balconista em uma lanchonete da favela, argumentou, com certa indignao: "Se fosse rica, no

Ao final do comcio, acompanhado de polticos conservadores, foi almoar no Iate Clube. Entre coquetel de camaro e lil mignon, os cerca de 450 candidatos da coligao conservadora que o apoiou ouviram do presidente referncias negativas a seus concorrentes, em particular a Lus Incio Lula da Silva: "Se por alguma catstrofe, que no vai ocorrer, se elegesse um populista, nem ele seria capaz de fazer o que diz que vai fazer, porque o povo repudiaria imediatamente." Mais ainda, criticou os que pregam solues "facilitrias, mirabolantes, de populismo barato". Para o presidente, "o Brasil amadureceu: no h mais 123 caminho do passado" (grifos meus). No dia seguinte, reavaliando suas declaraes na favela, Fernando Henrique declarou: "Eu sou professor, sou pobre."87 Mas, afinal, quem so os populistas? Difcil saber, pois depende do lugar poltico em que o personagem que acusa se encontra. Para os conservadores, populismo o passado poltico brasileiro, so polticas pblicas que garantam os direitos sociais dos trabalhadores, so modelos de economia e de sociedade que, na Europa Ocidental, ficaram conhecidos como Estado de Bem-Estar Social; outros, talvez, diriam que populista aquele que, diante dos pobres, diz que ser rico chato. O populista, portanto, o adversrio, o concorrente, o desafeto. O populista o Outro. Trata-se de uma questo eminentemente poltica e, muito possivelmente, poltico-partidria, que poderia ser enunciada da seguinte maneira: o meu candidato, o meu partido, a minha proposta poltica no so populistas, mas o teu candidato, o teu partido e a tua proposta poltica, estes, sim, so populistas. Populista sempre o Outro, nunca o Mesmo. 124

estaria trabalhando aqui, mas vendo um filme ou comendo em um restaurante." Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1998, p. 3. 87 Idem, 1 de setembro de 1998, p. 9.

Você também pode gostar