Filosofia e Etica
Filosofia e Etica
Filosofia e Etica
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
1 A Antropologia Filosófica
2 Dimensão Social e Dimensão Simbólica
Atividades de Aprendizagem
1 O conhecimento
1.1 A origem do conhecimento
2 Sujeito e objeto
3 Tipos de conhecimento
Leitura Complementar : Texto 3 – As verdades primeiras
1 Ética e moral
1.1 Ética atemporal e Ética temporal
1.2 Vida moral e vida intelectual
2 A Existência Ética
3 O Agente Moral
3.1 Os valores éticos e os meios morais
4 A Filosofia Moral
4.1 Natureza humana e dever
3 A Moralidade
4 Os atos humanos
5 As Faculdades superiores: Inteligência, vontade e amorosidade
Leitura Complementar : Texto 4 – Bens e Deveres
Leitura Complementar : Texto 5 – A Natureza Humana
Atividades de Aprendizagem
1 A Filosofia Política
2 O poder, a política e o cotidiano
REFERÊNCIAS
3
Apresentação
Bons estudos!
MÓDULO I –
A HISTÓRIA DA
FILOSOFIA
Objetivos
Neste módulo você terá a oportunidade de iniciar no
processo do conhecimento filosófico a partir da compreensão
contemporânea, resgatando o pensamento humano em seus diferentes
aspectos e épocas.
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Corresponde ao período entre 1200 e 800 a.C., narrada por Homero na Ilíada e
na Odisséia), quando os aqueus, os jônios e os dórios conquistaram e
Período dominaram Micenas, Tróia e Creta, trazendo para as costas do mar Egeu um
homérico regime patriarcal e pastoril, passando no decorrer de quatrocentos anos à
economia doméstica e agrícola e em seguida, à economia urbana e comercial,
quando começaram a visitar países distantes.
Também conhecida por período dos Sete Sábios. Corresponde aos finais do
século VIII a.C. e ao início do século V a.C. Nesse período os agrupamentos
constroem cidadelas ou fortalezas para sua defesa e à sua volta, começam a
surgir as cidades como sedes dos governos das comunidades (surgem Atenas,
Período da Tebas, Megara, no continente; Esparta e Corinto no Peloponeso; Mileto e
Grécia Éfeso na Ásia Menor; Mitilene, Samos e Cálcis nas ilhas do mar Egeu).
arcaica Passando da monarquia agrária à oligarquia urbana, economicamente
predominam o artesanato e o comércio (portanto, a economia monetária), os
artífices e comerciantes se sobrepõem aos aristocratas fundiários e os gregos
se espalham por toda a orla do Mediterrâneo.
Para ilustrar esse problema – sem pretensão de esgotá-lo – sugere-se uma análise
a partir de três pares de oposições que têm dividido as opiniões dos historiadores da filosofia:
Na origem da Filosofia identifica-se duas teses contrárias que são: Milagre Grego x
Orientalismo e Harmonia Luminosa x Dilaceramento Desmedido.
Diógenes registra, portanto, a opinião dos que escreveram, antes dele e que
consideraram a filosofia uma criação oriental ou, pelo menos, uma retomada de idéias
nascidas “no estrangeiro”, pois, como escreveu Heródoto, os gregos “viajam para
comercializar e para conhecer”. Todavia, Diógenes de Laércio logo se insurge contra isso e
afirma a absoluta originalidade grega da Filosofia, indo mais longe ao atribuir aos gregos a
origem de toda a humanidade. Para um grego, os homens se dividiam em dois grandes
gêneros: os estrangeiros, de língua e costumes rudes, isto é, os bárbaros, e os gregos, de língua
e costumes polidos e cultivados, isto é, os homens propriamente ditos. Por isso Diógenes
atribui aos gregos não só a origem da Filosofia, mas também a da humanidade.
Mais importante do que esse exagero etnocêntrico é o fato de Diógenes expor as
duas opiniões contrárias sobre a origem da Filosofia. Na verdade, a opinião “orientalista”
desenvolveu-se em dois momentos diferentes. No primeiro, durante a Grécia clássica,
historiadores, como Heródoto, e filósofos, como Platão e Aristóteles, reconheceram a dívida
intelectual dos gregos para com os “bárbaros” (isto é, o Oriente). No segundo, durante o
helenismo (quando as cidades gregas perderam a liberdade e a independência sob os impérios
de Alexandre, primeiro, e de Roma, depois), a idéia de uma diferença entre os gregos e os
“outros” tendeu a diminuir.
A predominância da tese orientalista aumentou significativamente com os
contatos entre a filosofia helenista e os pensadores judaicos - como Filo de Alexandria - e os
primeiros padres cristãos intelectualizados - como Eusébio de Cesaréia e Clemente de
Alexandria. A idéia de continuidade entre Oriente e Ocidente (entre Moisés e Platão, para os
pensadores judaicos; entre os filósofos estóicos e Jesus, para os pensadores cristãos) era fonte
de legitimação e de prestigío para seu próprio pensamento.
A tese orientalista ganha força durante a Renascença, quando filósofos ligados à
correntes místicas e ocultistas afirmam a origem egípcia de todos os saberes e práticas,
baseando tal afirmação no fato de Platão ter considerado os gregos como crianças, se
comparada a sabedoria deles com a dos antigos sacerdotes egípcios.
A tese orientalista não é absurda. Como observa o historiador da filosofia Rodolfo
Mondolfo, as grandes civilizações orientais mantiveram relações com as civilizações pré-
helênicas (egéia, cretense, minóica), e estas, embora derrotadas pelos aqueus e pelos dórios,
determinaram formas e conteúdos da vida social, da religião, dos mitos, das artes e técnicas
dos gregos homéricos e arcaicos. Heródoto, Aristóteles, Eudemo e Estrabão afirmaram que a
geometria e a astronomia eram cultivadas pelos caldeus, egípcios e fenícios; Platão acreditava
que o mais antigo e elevado saber encontrava-se com o velho sacerdote do Egito.
A tese orientalista não é descabida. Mas não pelo motivo que seus defensores
apresentam - isto é, a plena continuidade entre as formulações orientais e a filosofia grega - e
sim por causa de alguns fatos relevantes. Por um lado, porque havia um começo de ciência no
Egito e na Babilônia - matemática e medicina no primeiro, astrologia na segunda - e foram
inegáveis os contatos econômicos e políticos entre ambos e a Grécia. Por outro, como observa
o historiador da Filosofia Abel Rey, ao analisar o porquê dos poetas e sábios gregos antigos
exaltarem a sabedoria oriental.
Abel Rey, destaca dois motivos principais:
1) Porque o mito da Idade de Ouro (narrado pelo poeta romano) Ovídio, pela boca
do filósofo Pitágoras de Samos), tempo de felicidade e de comunhão entre os homens e os
deuses, de plenitude de conhecimento e de imortalidade, localizava no Oriente esse momento
feliz (basta ler, na Bíblia, o livro da Gênese para ver que os hebreus localizavam o jardim do
Éden no Oriente, e os navegadores cristãos do período das descobertas marítimas, como
Colombo, julgaram ter chegado o Paraíso, ao imaginar que a América era o “Oriente”), de
forma que seria natural a Filosofia ali ter nascido;
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MÓDULO II –
O MITO E A RAZÃO
Objetivos
Neste módulo você estudará as relações entre o mito e a razão
a partir da análise e reflexão dos principais autores e teorias
filosóficas.
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Os olhos foram feitos para ver; a alma, para conhecer. Os primeiros estão
destinados à luz solar; a segunda, à fulguração da idéia. A dialética é a técnica liberadora dos
olhos do espírito.
O relato da subida e da descida expõe a paidéia como dupla violência necessária:
a ascensão é difícil, dolorosa, quase insuportável; o retorno à caverna, uma imposição terrível
à alma libertada, agora forçada a abandonar a luz e a felicidade. A dialética, como toda
técnica, é uma atividade exercida contra uma passividade, um esforço (pónos) para
concretizar seu fim forçando um ser à realizar sua própria natureza. No Mito, a dialética faz a
alma ver sua própria essência (eîdos) - conhecer - vendo as essências (idéia) - o objeto do
conhecimento -, descobrindo seu parentesco com elas. A violência é libertadora porque
desliga a alma do corpo, forçando-a à abandonar o sensível pelo inteligível.
O Mito da Caverna ensina algo mais, afirma o filósofo alemão Martin Heidegger,
num ensaio intitulado “A doutrina de Platão sobre a verdade”, que interpreta o Mito como
exposição platônica do conceito da verdade. Deste ensaio, destaca-se alguns aspectos:
contemplada, sem sombras. A verdade se transfere do Ser para o conhecimento total e pleno
da idéia do Bem. Com isto, escreve Heidegger, a verdade dependerá, de agora em diante, do
olhar correto, isto é, do olhar que olha na direção certa, do olhar exato e rigoroso. Exatidão,
rigor, correção são as qualidades e propriedades da razão, no Ocidente. A verdade e a razão
são theorías, contemplação das idéias quando aprendemos a dirigir o intelecto na direção
certa, isto é, para o conhecimento das essências das coisas.
No entanto, considera-se que, contrariamente ao que diz Heidegger, o antigo
sentido da alétheia não desapareceu inteiramente.
É preciso explicar como, vivendo no mundo sensível, alguns homens sentem
atração pelo mundo inteligível. Como, nunca tendo tido contato com o mundo das idéias e
jamais tendo contemplado as idéias, algumas almas as procuram? De onde vem o desejo de
sair da caverna? Mais do que isto, como os que sempre viveram na caverna podem supor que
exista um mundo fora dela, se os grilhões e os altos muros não deixam ver nada externo? Para
decifrar este enigma, Platão narra o Mito de Er, também conhecido como o Mito da
Reminiscência, da anamnese, e que por sua vez, é inseparável da antiga idéia da alétheia (o
não-esquecido).
O pastor Er, da Panfília, é conduzido pela deusa até o Reino dos Mortos, para
onde, segundo a tradição grega, sempre foram conduzidos os poetas e adivinhos. Ele encontra
as almas dos mortos serenamente contemplando as idéias. Devendo reencarnar-se, as almas
serão levadas para escolher a nova vida que terão na Terra. São livres para escolher a nova
vida terrena que desejam viver. Após a escolha, são conduzidas por uma planície onde correm
as águas do rio Léthe (esquecimento). As almas que escolheram uma vida de poder, riqueza,
glória, fama ou vida de prazeres, bebem água em grande quantidade, o que as faz esquecer as
idéias que contemplaram. As almas dos que escolhem a sabedoria quase não bebem das águas
e por isso, na vida terrena, poderão lembrar-se das idéias que contemplaram e alcançar, nesta
vida, o conhecimento verdadeiro. Desejarão a verdade, serão atraídas por ela, sentirão amor
pelo conhecimento, porque, vagamente, lembram-se de que já a viram e já a tiveram. Por isso,
no Mênon, quando o jovem escravo analfabeto se torna capaz, orientado pelas perguntas de
Sócrates, de demonstrar o Teorema de Pitágoras, Platão faz Sócrates dizer que conhecer é
lembrar, e o filósofo dialético, como o médico que faz o paciente lembrar-se, suscita nos
outros a lembrança do verdadeiro. Se já não tivéssemos estado diante da verdade, não só não
poderíamos desejá-la como, chegando diante dela, não saberíamos identificá-la e reconhecê-
la.
Os intérpretes se dividem muito acerca do Mito de Er. Seria o mito uma alegoria
para dizer que os homens nascem dotados de razão? Que as idéias são inatas ao seu espírito?
Que a verdade não pode vir da sensação, mas apenas do pensamento? Ou seria o Mito de Er
uma primeira apresentação da teoria platônica da imortalidade da alma que será exposta no
Fédon?
Para uma maior compreensão dessas questões, deve-se considerar dois pontos:
que narrou, considera-se que possuem a função de afirmar que o homem nasce
do verdadeiro e é destinado à ele.
mitos, considerando que a consciência mítica, persiste em todos os tempos e culturas como
componente indissociável da maneira humana de compreender a realidade.
Foi importante a contribuição dos antropófogos que, a partir do início do século
XX, estabeleceram contatos diretos com comunidades das ilhas do Pacífico, da África e do
interior do Brasil. Suas pesquisas de campo mostram que o mito vivo é muito mais expressivo
e que não se restringe à meras lendas, desligadas do ambiente que as fez surgir.
Como processo de compreensão da realidade, o mito não é lenda, e sim verdade.
Quando se pensa em verdade, é comum fazer referência à coerência lógica, garantida pelo
rigor da argumentação e pela apresentação de provas. A verdade do mito, porém, é intuída, e,
como tal, não necessita de comprovações, porque o critério de adesão do mito é a crença, a fé.
O mito é portanto uma intuição compreensiva da realidade, cujas raízes se fundam nas
emoções e na afetividade.
Nas comunidades tribais em que predominaria a consciência mítica, a experiência
individual não se separa da experiência da comunidade, mas se faz por meio dela, o que não
significa a ausência de qualquer princípio de individuação, mas sim que o equilíbrio pessoal
depende da preponderância do coletivo. Como diz Gusdorf, “a primeira consciência pessoal
está, portanto, presa na massa comunitária e nela submergida. Mas esta consciência
dependente e relativa não é uma ausência de consciência e sim uma consciência em situação,
extrínseca e não intrínseca, onde a individualidade aparece como um nó no tecido complexo
das relações sociais. E o eu se afirma pelos outros, isto é, ele não é pessoa, mas personagem.
Essa forma de coletivismo determina a adaptação sem crítica do indivíduo às
normas da tradição. A consciência mítica é ingênua (no sentido de não-crítica), desprovida de
problematização e supõe a aceitação tácita dos mitos e das prescrições dos rituais. A adesão
ao mito é feita pela fé, pela crença. No universo cuja consciência é coletiva, a transgressão da
norma ultrapassa quem a violou. Por isso a trangressão do tabu – proibição sempre envolta em
clima de temor e sobrenaturalidade – estigmatiza a família, os amigos e, às vezes, toda a tribo.
Daí os “ritos de purificação” e os rituais do “bode expiatório”, nos quais o pecado é
transferido para um animal.
2 Mito e Religião
Dernméter preside o ritmo das estações e das colheitas; Afrodite regula o amor; e assim por
diante.
Ao mesmo tempo, o caráter existencial do mito conduz à prática de rituais
mágicos, e a fé na magia constitui o despertar da confiança em si mesmo. O ser humano não
se sente mais à mercê das forças naturais e sobrenaturais e desempenha o seu papel, convicto
de que no mundo natural tudo depende, em parte, dos seus atos. Como exemplo, cita-se os
ritos mágicos da fertilidade, sem os quais se acreditava que nem a terra frutificaria nem a
mulher conceberia. Convém lembrar que a magia tanto pode ser usada para o bem como para
o mal, uma vez que não se encontra ainda ligada à princípios éticos.
A terceira fase caracteriza-se pelo aparecimento do deus pessoal, fruto do
processo histórico que inclui o desenvolvimento lingüístico. Surge quando o nome do deus
funcional, derivado do círculo de atividade especial que lhe deu origem, perde a ligação com
essa atividade e torna-se um nome próprio, constituindo um novo ser que continua a se
desenvolver segundo suas próprias leis. O deus pessoal caracteriza-se por ser capaz de sofrer e
agir como as pessoas. Atua de maneiras diversas e seus múltiplos nomes expressam diferentes
aspectos de sua natureza, seu poder e sua eficiência. Como exemplo, a deusa grega Palas
Atena, filha de Zeus, surge inicialmente como deusa guerreira, protetora dos exércitos. Aos
poucos, sua proteção se amplia para o trabalho em geral e, mais tarde, especificamente para a
atividade intelectual e as artes. Ao mesmo tempo, é a deusa da sabedoria, a protetora da
cidade de Atenas.
Como desenvolvimento da terceira fase surgem as religiões monoteístas, que
privilegiam as forças morais do indivíduo e se concentram no problema do bem e do mal. A
interpretação da natureza adquire um caráter mais racional, e não predominantemente
emocional, como acontecia nas fases anteriores. O divino deixa também de ser concebido
pelos poderes mágicos e passa a ser enfocado pelo poder de justiça. Diz Cassirer: “O sentido
ético substituiu e suplantou o sentido mágico. A vida inteira do homem se converte numa luta
constante pelo amor da justiça”.
A partir de então, o indivíduo entra em contato com o sagrado, como árbitro do
seu próprio destino. Ao dar a sua livre adesão ao bem, torna-se aliado da divindade,
praticando o dever religioso.
Embora o mito também seja uma forma de compreensão da realidade, sua função
é, primordialmente, de acomodar e tranqüilizar o ser humano em um mundo assustador.
Entre as comunidades “primitivas”, o mito se constitui um discurso de tal força
que se estende por todas as dependências da realidade vivida, não se restringe apenas ao
âmbito do sagrado (ou seja, da relação entre a pessoa e o divino), mas permeia todos os
campos da atividade humana. Por isso, os modelos de construção mítica do real são de
natureza sobrenatural, isto é, recorre-se aos deuses para compreender a origem e natureza dos
fatos, como indicam os exemplos a seguir:
Segundo Mircea Eliade, filósofo romeno estudioso das religiões, uma das funções
do mito é fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas
significativas. Dessa forma, o “primitivo” imita os gestos exemplares dos deuses, repetindo
nos rituais as ações deles. Quando o missionário e etriólogo Strehlow perguntava aos arunta
por que celebravam determinadas cerimônias, obtinha invariavelmente a mesma resposta:
“Porque os ancestrais assim o prescreveram”. Essa é também a justificativa invocada pelos
teólogos e ritualistas hindus: “Devemos fazer o que os deuses fizeram no princípio”; “Assim
fizeram os deuses, assim fazem os homens”.
Nos rituais, os arunta não se limitam a representar ou imitar a vida, os feitos e as
aventuras dos ancestrais: tudo se passa como se eles aparecessem de fato nas cerimônias.
Nesse sentido, o tempo sagrado é reversível, ou seja, a festa religiosa não é simples
comemoração, mas a ocasião em que o sagrado acontece novamente corno reatualização do
evento divino que teve lugar no passado mítico, “no começo”. Na sua ação, o “primitivo”
imita os deuses nos ritos que atualizam os mitos primordiais. Caso contrário, a semente não
brotará da terra, a mulher não será fecundada, a árvore não dará frutos e o dia não sucederá à
noite.
A forma sobrenatural de descrever a realidade é coerente com a maneira mágica
pela qual o “primitivo” age sobre o mundo, como, por exemplo, nos inúmeros ritos de
passagem do nascimento, da infância para a idade adulta, do casamento, da morte. Sem os
ritos, é como se os fatos naturais descritos não pudessem se concretizar, Segundo Mircea
Eliade, “quando acaba de nascer, a criança só dispõe de uma existência física, não é ainda
reconhecida pela família nem recebida pela comunidade. São os ritos que se efetuam
imediatamente após o parto que conferem ao recém-nascido o estatuto de “vivo”
propriamente dito; é somente graças à estes ritos que ele fica integrado na comunidade dos
vivos. [...] No que diz respeito à morte, os ritos são mais complexos quando se trata não-
somente de um “fenômeno natural” (a vida – ou a alma – abandonando o corpo), mas também
de uma mudança de regime ao mesmo tempo ontológico e social: o defunto deve afrontar
certas provas que interessam ao seu próprio destino post-mortem, mas deve também ser
reconhecido pela comunidade dos mortos e aceito entre eles”.
Considera-se que a consciência humana, antes do advento da escrita, permanece
ingênua, não-crítica. A nova forma de compreensão do mundo dessacraliza o pensamento e, a
ação, isto é, retira dele o caráter de sobrenaturalidade, fazendo surgir a filosofia, a ciência, a
técnica.
Augusto Comte, filósofo francês do século XIX e fundador do positivismo, ao
explicar a evolução da humanidade, define a maturidade do espírito humano pelo abandono
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de todas as formas míticas e religiosas. Dessa maneira, opõe radicalmente mito e razão, ao
mesmo tempo que inferioriza o mito como tentativa fracassada de explicação da realidade.
Ao criticar o mito e exaltar a Ciência, contraditoriamente o positivisino faz nascer
o mito do cientificismo, ou seja, a crença na ciência como única forma de saber possível, de
onde surgem os mitos do progresso, da objetividade e da neutralidade científicas.
Além disso, o positivismo mostra-se reducionista, empobrecendo as
possibilidades de abordagens do mundo, porque a ciência não é a única interpretação válida
do real nem é suficiente, já que o mito é uma forma fundamental do viver humano. O mito é o
ponto de partida para a compreensão do ser. Em outras palavras, tudo o que pensamos e
queremos se situa inicialmente no horizonte da imaginação, nos pressupostos míticos, cujo
sentido existencial serve de base para todo trabalho posterior da razão.
Como o mito é a primeira leitura do mundo, o advento de outras interpretações da
realidade não exclui o fato de ele ser raíz da inteligibilidade. A função fabuladora persiste não
só nos contos populares, no folclore, como também, na vida diária, quando proferimos certas
palavras ricas de ressonâncias míticas: casa, lar, amor, pai, mãe, paz, liberdade, morte, cuja
definição objetiva não esgota os significados que ultrapassam os limites da própria
subjetividade. Essas palavras remetem à valores arquetípicos, modelos universais existentes
na natureza inconsciente e primitiva do homem. Não por acaso, os psicanalistas aproveitam a
riqueza do mito e descobrem nele as raízes do desejo humano. Por exemplo, a pedra angular
na psicanálise se encontra na interpretação feita por Freud do mito de Édipo.
O mesmo sucede com personalidades como artistas, políticos e esportistas, que os
meios de comunicação se incumbem de transformar em imagens exemplares, e que, no
imaginário das pessoas, representam todo tipo de anseios: sucesso, poder, liderança, atração
sexual etc. Por exemplo, na década de 1950, o ator James Dean expressa o mito da “juventude
transviada" e Marilyn Monroe, um mito sexual. Posteriormente outros modelos surgem e
desaparecem, conforme as expectativas que predominam em cada período. Hoje em dia, com
a rapidez dos meios de comunicação, essas influências tornam-se múltiplas e também mais
fugazes.
Nas histórias em quadrinhos, o maniqueísmo exprime o arquétipo da luta entre o
bem e o mal, enquanto a dupla personalidade do super-herói atinge em cheio o desejo da
pessoa comum de superar a própria inexpressividade e impotência, tornando-se excepcional e
poderosa. Também os contos de fada remetem as crianças aos mitos universais do herói em
luta contra as forças do mal, apaziguando os temores infantis.
No campo da política, quando alguém diz que o socialismo é um mito, pode estar
dizendo que se trata de algo inatingível, de uma mentira, de uma ilusão que não leva a lugar
algum. Porém, outros verão positivamente o mito do socialismo como utopia, o lugar do
“ainda-não”, cuja força mobiliza a construção daquilo que um dia poderá “vir-a-ser”. Até as
mais racionais adesões a partidos políticos e a correntes de pensamento supõem esse pano de
fundo, não-justificado e injustificável, em que nos movemos em direção à um valor que
apaixona e que só posteriormente buscamos explicitar pela razão.
O nosso comportamento também é permeado de “rituais”, mesmo que
secularizados: as comemorações de nascimentos, casamentos, aniversários, os festejos de ano-
novo, as festas de formatura, de debutantes, trote de calouros lembram verdadeiros ritos de
passagem. Examinando as manifestações coletivas no cotidiano da vida urbana do brasileiro,
descobrimos componentes míticos no carnaval e no futebol, ambos como manifestações
delirantes do imaginário nacional e da expansão de forças inconscientes.
O mito se expressa ainda sob formas negativas, como por exemplo quando Hitler
fez viver o mito da raça ariana, por ele considerada a raça pura, e desencadeou movimentos
apaixonados de perseguição e genocídio de judeus e ciganos.
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O mito não resulta, portanto, de delírio e nem se reduz à simples mentira, mas faz
parte da vida cotidiana, como uma das formas indispensáveis do existir humano. Mito e razão
se complementam mutuamente. No entanto, recuperado no cotidiano da vida contemporânea,
o mito não se apresenta com a abrangência que se faz sentir entre as sociedades tribais. O
aprimoramento da reflexão, que propicia o exercício da crítica racional, permite a rejeição dos
mitos prejudiciais quando há a capacidade de diferenciá-los, legitimando alguns e negando
aqueles que podem levar à desumanização.
Para Cusdorf, “o mito propõe todos os valores, puros e impuros. Não é da sua
atribuição autorizar tudo o que sugere. Nossa época conheceu o horror do desencadeamento
dos mitos do poder e da raça, quando seu fascínio se exercia sem controle. A sabedoria é um
equilíbrio. O mito propõe, mas cabe à consciência dispor. E foi talvez porque um
racionalismo estreito demais fazia profissão de desprezar os numitos, que estes, deixados sem
controle, tornaram-se loucos”.
4 Mito e Filosofia
Costuma-se dizer que os primeiros filósofos foram gregos. Isso significa que
embora se reconheça a importância de sábios que viveram no século VI a.C. na China
(Confúcio e Lao Tsé), na índia (Buda) e na Pérsia (Zaratustra), considera-se que essas
doutrinas estão vinculadas à religião.
Nesse sentido, é fundamental compreender o processo pelo qual se dá a passagem
da consciência mítica para a consciência filosófica na civilização grega, em um período
histórico em que a Grécia ainda se chamava Hélade e era constituída por diversas regiões
politicamente autônomas.
Os mitos gregos surgiram quando ainda não havia escrita, portanto eram
preservados pela tradição e transmitidos oralmente pelos aedos e rapsodos, cantores
ambulantes que davam forma poética aos relatos populares e os recitavam de cor em praça
pública. Era difícil conhecer os autores desses trabalhos de formalização porque não havia
preocupação com a autoria das histórias, que eram engendradas de forma coletiva e anônima.
Homero, um desses poetas, teria sido o provável autor de dois poemas épicos, as
epopéias Ilíada e Odisséia. A Ilíada trata da guerra de Tróia (Tróia em grego é Ílion) e a
Odisséia relata o retorno de Ulisses a Ítaca, após a guerra de Tróia (Odisseus é o nome grego
de Ulisses). Existe, no entanto, uma controvérsia a respeito da época em que Homero teria
vivido (séc. IX ou VIII a.C.?) e até se ele realmente teria existido. Alguns intérpretes acham
que essas obras foram elaboradas por diversos autores, em razão inclusive da diversidade do
estilo dos dois poemas e de passagens indicativas de períodos históricos diferentes.
Considera-se que foi importante a função didática das epopéias na vida dos
gregos, por descreverem o período da civilização micênica e transmitirem os valores da
cultura por meio das histórias dos deuses e antepassados, expressando uma determinada
concepção de vida. Por isso, desde cedo as crianças decoravam passagens dos poemas de
Homero.
As ações heróicas relatadas nas epopéias mostram a constante intervenção dos
deuses, ora para auxiliar o protegido, ora para perseguir o inimigo. No período da civilização
micênica, o indivíduo é presa do Destino (Moira), que é fixo, imutável, e não pode ser
alterado. Até distúrbios psíquicos, como, por exemplo, o desvario momentâneo de
Agamemnon, são atribuídos à ação divina. No mesmo sentido é a fala de Heitor: “Ninguém
me lançará ao Hades contra as ordens do destino! Garanto-te que nunca homem algum, bom
ou mau, escapou ao seu destino, desde que nasceu!”.
O herói vive, portanto, na dependência dos deuses e do destino, faltando a ele a
noção de vontade pessoal, de liberdade. Mas isso não o diminui diante das pessoas comuns,
ao contrário, ter sido escolhido pelos deuses é de grande valor e em nada essa ajuda
desmerece a sua virtude. A virtude do herói se manifesta pela coragem e pela força, sobretudo
no campo de batalha. Mas também se destaca na assembléia dos guerreiros, pelo poder de
persuasão do discurso. O preceptor de Aquiles diz: “Para isso me enviou, a fim de eu te
ensinar tudo isto, a saber fazer discursos e praticar nobres feitos”.
Nessa perspectiva, a noção de virtude não é a mesma que se tem hoje, mas
significa excelência, superioridade. Trata-se da virtude do guerreiro belo e bom, objetivo
supremo do herói.
Hesíodo, outro poeta que teria vivido por volta do final do século VIII e princípios
do VII a.C., produz uma obra com particularidades que tendem a superar a poesia impessoal e
coletiva das epopéias. Essas características novas são indicativas do período arcaico, que
então, se inicia. Por exemplo, Hesíodo valoriza o trabalho e a justiça, destacando a
importância das regras que balizam o comportamento humano.
Mesmo assim, sua obra Teogonia (teo: deus; gonia: origem) reflete ainda o
interesse pela crença nos mitos. Nela, Hesíodo relata as origens do mundo e dos deuses, em
que as forças emergentes da natureza vão se divinizando, tranformando-se nas próprias
divindades: a Terra é Gaia, o Céu é Urano, o Tempo é Cronos. Esses seres nascem ora por
segregação, ora pela intervenção de Eros (o Amor), princípio divino que aproxima os opostos.
No período arcaico, surgem os primeiros filósofos gregos, por volta de fins do
século VII a.C. e durante o século VI a.C.
Alguns autores chamam de “milagre grego” a passagem da mentalidade mítica
para o pensamento crítico racional e filosófico, por destacarem o caráter repentino e único
desse processo. No entanto, outros estudiosos atenuam a ênfase dada à essa imitação e
superam essa visão simplista, realçando o fato de que a racionalidade crítica resultou de
processo muito lento, preparado pelo passado mítico, cujas características não desaparecem
como por encanto na nova abordagem filosófica do mundo. Ou seja, a filosofia na Grécia não
é fruto de um salto, do “milagre” realizado por um povo privilegiado, mas é a culminação do
processo gestado através dos tempos e que, portanto, tem sua dívida com o passado mítico.
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A Escrita
A Moeda
marcadas pela posição social de pessoas consideradas superiores devido à origem divina de
seus ancestrais.
A moeda, inventada na Lídia, aparece na Grécia por volta do século VII a.C., o
que facilita os negócios e impulsiona o comércio. Com o recurso da moeda, os produtos que
antes se restringiam ao seu valor de uso passam a ter valor de troca, isto é, transformam-se em
mercadoria. Daí a exigência de algo que funcionasse como valor equivalente universal das
mercadorias.
Emitida e garantida pela pólis, a moeda faz reverter seus benefícios para a própria
comunidade. Além desse efeito político de democratização de um valor, a moeda sobrepõe
aos símbolos sagrados e afetivos, o caráter racional de sua concepção: muito mais do que um
metal precioso que se troca por qualquer mercadoria, a moeda é artifício racional, convenção
humana, noção abstrata de valor que estabelece a medida comum entre valores diferentes.
Nesse sentido, a invenção da moeda desempenha um papel revolucionário, pois
está vinculada ao nascimento do pensamento racional crítico.
Para Jean-Pierre Vernant, helenista e pensador francês, o nascimento da pólis (por
volta dos séculos VIII e VII a,C.) é um acontecimento decisivo que “marca um começo, uma
verdadeira invenção”, por provocar grandes alterações na vida social e nas relações humanas.
A transformação da pólis muito se deve aos legisladores Drácon (séc. VII a.C.), Sólon e
Clístenes (séc. VI a.C.) que sinalizam uma nova era: a justiça, até então dependente da interpretação
da vontade divina ou da arbitrariedade dos reis, passa a ser codificada em uma legislação escrita.
Regra comum à todos, norma racional sujeita à discussão e modificação, a lei escrita passa a
encarnar uma dimensão propriamente humana.
As reformas da legislação de Clístenes fundam a pólis sobre uma base: a antiga
organização tribal é abolida e estabelecem-se relações não mais resultantes da
consangüinidade, mas determinadas por outra organização administrativa. Essas modificações
expressam o ideal igualitário que prepara a democracia nascente, já que a unificação do corpo
social abole a hierarquia fundada no poder aristocrático das famílias e assentada nas formas
de submissão e domínio. Ou seja, “os que compõem a cidade, por mais diferentes que sejam
por sua origem, sua classe, sua função, aparecem de uma certa maneira “semelhantes” uns aos
outros”. Inicialmente, a igualdade existe apenas entre os guerreiros, mas essa imagem do
mundo humano encontra no século VI sua expressão rigorosa no conceito de isomomia, ou
seja, “a igual participação de todos os cidadãos no exercício do poder”.
A originalidade da cidade grega é que ela está centralizada na ágora (praça
pública), espaço onde se debatem os problemas de interesse comum. Separam-se na pólis o
domínio público e o privado: isso significa que ao ideal de valor de sangue, restrito à grupos
privilegiados em função do nascimento ou fortuna, se sobrepõe a justa distribuição dos
direitos dos cidadãos como representantes dos interesses da cidade. Nesse contexto, há a
elaboração de um novo ideal de justiça, onde todo cidadão tem direito ao poder. A nação de
justiça assume, caráter político, e não apenas moral, ou seja, não diz respeito apenas ao
indivíduo e aos interesses da tradição familiar, mas a sua atuação na comunidade.
A pólis se faz pela autonomia da palavra, não mais a palavra mágica dos mitos,
palavra dada pelos deuses e portanto, comum à todos, mas a palavra humana do conflito, da
discussão, da argumentação. O saber deixa de ser sagrado e passa a ser objeto de discussão. A
expressão da individualidade por meio do debate faz nascer a política, que liberta o indivíduo
dos exclusivos desígnios divinos e lhe permite tecer seu destino na praça pública. A
instauração da ordem humana dá origem ao cidadão da pólis, figura inexistente no mundo da
comunidade tribal.
O apogeu da democracia ateniense ocorre no século V a.C., já no período clássico.
É bem verdade que Atenas possuía meio milhão de habitantes, dos quais trezentos mil eram
escravos e cinquenta mil matecos (estrangeiros); foram excluídas mulheres e crianças,
28
restando apenas 10% considerados cidadãos propriamente ditos, capacitados para decidir por
todos.
Nesse sentido, considera-se que quanto mais se desenvolve na Grécia a idéia de
cidadania com a consolidação da democracia, mais a escravidão surge como contraponto
indispensável, na medida em que ao escravo são reservadas as tarefas consideradas menores dos
trabalhos manuais e das atividades diárias de sobrevivência. No entanto, o que enfatiza-se nesse
processo é a mutação do ideal político e uma concepção inovadora de poder, a democracia.
O ideal teórico da classe dos comerciantes, é elaborado pelos sofistas, filósofos do
século V a.c.
Em relação aos primeiros filósofos, vale considerar que inicialmente a grande
aventura intelectual dos gregos não começa propriamente na Grécia continental, mas nas colônias
da Jônia e da Magna Grécia onde florescia o comércio. Os primeiros filósofos viveram por volta dos
séculos V e VI a.C. e mais tarde, foram classificados como pré-socráticos, quando a divisão da
filosofia grega se centralizou na figura de Sócrates. Entre os mais importantes pré-socráticos,
destacam-se: Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito (das cidades da Jônia); Pitágoras de
Samos, que fundou uma escola em Crotona, sul da Magna Grêcia: Xenófanes, Parmênides e Zenão
(de Eléia, também na Magna Grécia); Leucipo e Demócrito de Abdera; Anaxágoras de Clazomenas;
Empédocles (de Agrigento, na Sicília).
Os escritos dos filósofos pré-socráticos desapareceram com o tempo, restando
apenas alguns fragmentos ou referências que filósofos posteriores lhes fizeram. Sabe-se que
geralmente escreviam em prosa, abandonando a forma poética característica das epopéias, dos
relatos míticos.
Os primeiros pensadores centram sua atenção na natureza e elaboram diversas
concepções de cosmologia, procurando a racionalidade constitutiva do Universo. Ao
perguntarem como seria possível emergir o cosmo do caos – ou seja, como da confusão inicial
surge o mundo ordenado –, os pré-socráticos buscam o princípio (a arché) de todas as coisas,
entendido não como aquilo que antecede no tempo, mas como fundamento do ser. Buscar a
arché explica qual é o elemento constitutivo de todas as coisas.
As respostas dos filósofos à questão do fundamento das coisas, da arché, a
unidade que pode explicar a multiplicidade, são as mais variadas possíveis. Para Tales, é a
água; para Anaxímenes, é o ar; para Demócrito, é o átomo; para Empédocles, os quatro
elementos - terra, água, ar e fogo -, a teoria mais conhecida e aceita é a do cientista Lavoisier,
no século XVIII.
Observa-se uma diferença entre pensamento mítico e filosofia nascente: os
filósofos divergem entre si e a filosofia se distingue da tradição mítica oferecendo uma
pluralidade de explicações possíveis, uma atitude característica do filósofo. Além disso, a
física Jônica é a expressão do pensamento filosófico racional e abstrato, ao recorrer à
argumentos e não à explicações sobrenaturais. Por exemplo, Hesíodo, relata o princípio do
mundo (cosmogonia) e o nascimento dos deuses (teogonia) a partir da sua gênese ou origem
no tempo, enquanto as cosmologias dos pré-socráticos são baseadas em explicação racionais.
Assim justifica-se a perspectiva comumente aceita da ruptura entre mythos e logos (razão).
No entanto, para estudiosos como o inglês Conford, apesar das diferenças, o
pensamento filosófico nascente ainda apresenta vinculações com o mito. Por exemplo,
Hesíodo relata na Teogonia como Gaia (Terra) gera sozinha, por segregação, o Céu e o Mar;
depois, a união da Terra com o Céu, presidida por Eros (princípio de coesão do Universo),
resulta na geração dos deuses. Ora, examinando os textos dos filósofos jônicos, Cornford
descobre neles a mesma estrutura de pensamento existente no relato mítico: os jônios afirmam
que de um estado inicial de indistinção, separam-se pares opostos (quente e frio, seco e
úmido) que vão gerar os seres naturais (o céu de fogo, o ar frio, a terra seca, o mar úmido).
Para os filósofos, a ordem do mundo deriva de forças opostas que se equilibram
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Mito e Literatura
VIDAL-NAQUET, Pierre. O mundo de Homero. São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 66-
32
MÓDULO III –
CULTURA E
HUMANIZAÇAO
Objetivos
1 A Antropologia Filosófica
Prezado estudante, você pode estar se questionando: Mas qual a relação disso com a
pergunta filosófica sobre o que é o homem?
O ser humano é um ser que tem alma e espírito, que é livre e que por isso é
alguém capaz de vivenciar valores; tem inteligência e sentimentos; vive em grupo, em
sociedade, situado historicamente, portanto, um ser de cultura de linguagem, etc.
Com a diferenciação entre animal e homem, pretende-se destacar o ser humano
em sua essência. Isto é, naquilo que lhe é próprio, fundamental, em sua natureza que é,
significativamente, diferente do animal.
O que torna o homem, em sua essência, diferente do animal é a forma como este
está inserido no mundo, no meio ambiente, em sua interação com a natureza e com os outros
seres que o rodeiam. O ser humano não se difere do animal somente biologicamente, difere-
se, essencialmente, pela sua forma de inserção, ou seja, de presença na natureza.
Quanto a atividade animal considera-se dois níveis: aqueles animais que estão
situados nos níveis mais baixos da escala zoológica e aqueles que pertencem aos níveis mais
altos de tal escala, como é o caso dos mamíferos.
No primeiro nível, a atividade animal se dá a partir de reflexos e instintos, são
atividades idênticas e invariáveis, como é o caso da produção da teia de aranha, da colméia,
da casa do João-de-barro etc.
Contudo, no segundo nível, no caso dos mamíferos, estes têm demonstrado atos
inteligentes. Como é o caso de animais que uma vez adestrados respondem, ao adestramento
e, de tantas outras comprovações, através de pesquisas. As diversas experiências realizadas
com animais de várias espécies tem demonstrado que estes são capazes de realizar atos
inteligentes.
Por mais que o animal em sua atividade demonstre atos inteligentes, tal nível de
inteligência é concreto, ou seja, depende da experiência vivida, de atos associativos que se
realizam a partir de algo concreto.
pluralidade de culturas e não um único modelo, ou uma cultura ideal. Assim, afirma-se
que não existe cultura superior ou cultura inferior, o homem manifesta-se de maneiras
diferentes e nessas diferenças revelam-se modos diferentes de compreensão de si
mesmo e do mundo, caracterizando assim múltiplas culturas, ou seja, um rico
universo cultural do ser humano, que não é uno, mas plural.
Atividades de Aprendizagem
03) O que faz com que o homem seja essencialmente diferente do animal?
05) Qual é o único ser da criação capaz de fazer cultura? Por que?
07) Por que não se pode dizer que o animal trabalha, apesar do burro puxar carroça e a abelha
fazer mel?
09) O homem prescindindo da sociedade poderia realizar-se como homem? Por que?
12) Um velho eremita morando sozinho numa caverna nos confins de uma floresta, negando
todos os valores da sociedade da qual fazia parte antes desse exílio voluntário, ainda é
influenciado por ela? Explique o por quê.
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Objetivos
Nesse módulo você estudará o conhecimento, desde a sua
origem, identificando conceitos e conhecendo os diversos tipos de
conhecimento, visando compreender o processo de apreensão da
realidade pelo homem.
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1. O Conhecimento
1) O que é conhecimento?
3) É possível conhecer?
Racionalismo
Empirismo
2 Sujeito e Objeto
O conhecimento é uma tentativa com a qual o ser humano está envolvido desde a
antiguidade, porém não é possível falar do conhecimento no sentido de uma Teoria do
Conhecimento desde esse período, mas somente na idade moderna.
O filósofo Jonh Locke é considerado por alguns como fundador dessa teoria, e em sua
obra “Ensaio sobre o Entendimento Humano”, faz questionamentos de cunho gnosiológico sobre a
essência e racionalização do conhecimento.
Mas é Imanuel Kant quem se destaca também como fundador da teoria do
conhecimento (Erkenntnistheorie). Ele investiga a validade do conhecimento.
É preciso cautela quanto à este assunto porque a problematização do
conhecimento não pode nem deve resumir-se à ciência propriamente dita. A questão do
conhecimento vai muito além de sua dimensão epistemológica, a teoria do conhecimento,
indaga: possibilidade, origem, essência, limites e condições de se conhecer.
Apenas o ser humano questiona, fazendo perguntas que incluem a si e ao mundo
que o rodeia. Quando pergunta, o homem inclina-se para as repostas que neutralizaram as
dúvidas que brotam, fruto de sua interação com o mundo. E o mais interessante é que quem
pergunta, o faz não por não saber nada, mas por estar em relação com o conhecimento.
Há dois elementos básicos do conhecimento: o sujeito e o objeto, que formam
uma qualidade, porém são conhecidos diferente e separadamente. O sujeito é sujeito para o
objeto e, este, é o que é para o sujeito. É uma relação interdependente. Nesta relação as
funções diferem, pois o sujeito apreende e o objeto é apreendido.
A apreensão do objeto pelo sujeito evidencia um deslocamento deste para aquele,
porém o sujeito não fica no objeto, nem o objeto fica no sujeito, esta apreensão é
transcendental, pois o que fica no sujeito não é o objeto apreendido mas a sua imagem.
O homem é o sujeito cognoscente e o objeto é cognoscível. A consciência-de-
conhecer manifesta o conhecimento. O único ser consciente de ser possuidor dessa
consciência é o ser humano.
Embora os animais tenham conhecimento sensitivo, não pode-se chamar de
verdadeiro conhecimento pois falta a consciência-do-conhecimento possuído.
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3 Tipos de Conhecimento
Senso Comum
Conhecimento Mítico
O mito ao tentar explicar algo o faz de forma metafórica. Como símbolos que
falam da dimensão sagrada da natureza e do homem e por se expressarem na linguagem dos
símbolos, a sua interpretação se dá nas vivências dos rituais cuja consciência está aberta para
o mundo das emoções e da intuição. É assim que os mitos possibilitam uma fusão entre a
consciência e a realidade fundamental a ser conhecida, isto é, ao mundo dos mistérios e dos
sentidos.
Um mito muito conhecido é o mito de Narciso.
Desde que Narciso nasceu todos ficaram encantados com sua beleza excepcional. Seus
pais consultaram o oráculo para saber que destino lhe estava reservado. O sacerdote respondeu que
ele teria uma vida longa e tranquila, desde que nunca olhasse para sua própria imagem. Seguindo
essa instrução o jovem cresceu, provocando a paixão de todas as moças da sua cidade, Téspios.
Porém, ele era completamente indiferente aos seus sentimentos e jamais se enamorava de ninguém.
Uma de suas pretendentes era a ninfa Eco, que, desprezada, encerrou-se em solidão; sem mais se
alimentar, emagreceu até o ponto de se transformar apenas em uma voz que repetia sempre as
mesmas palavras. Frustradas, as moças de Téspios pediram a vingança de Vênus, a deusa do amor.
Assim, quando um dia Narciso se debruçou em um lago para saciar a sede, a deusa fez com que ele
45
se visse e se apaixonasse pela própria imagem refletida nas águas. Desde então, ele se fixou de tal
forma no seu reflexo que acabou morrendo no lago, sendo transformado numa flor aquática, o
Narciso, que quando desabrocha, se debruça e reflete sobre as águas." (A escada dos Fundos do
Filosofia, Angra - São Paulo: 2000. p, 11).
O Conhecimento Filosófico
A filosofia tem como berço as colônias gregas da Ásia Menor e Itália do Sul, mais
precisamente as ilhas Jônicas, na cidade de Mileto, onde Thales de Mileto fundou a primeira
escola de filosofia que se tem notícia no ocidente, determinando assim, o nascimento desse
novo saber.
A filosofia nasce como uma cosmologia, pois seu interesse primeiro era descobrir
a origem e diversidade do universo, buscava a substância material capaz de ter originado
todas as coisas. O arché dos gregos.
Com os pré-socráficos começaram as indagações de caráter filosófico e coube à
filosofia explicar a realidade em sua totalidade até a Idade Moderna,quando as Ciências, suas
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filhas legítimas, começaram a se tornar independentes e tentar estudar o real de acordo com
sua área de interesse.
A filosofia, no entanto, não se esvaziou, ao contrário, redobrou sua área de
atuação, possibilitando assim soluções. Pois além de lidar com os assuntos que lhe dizem
respeito diretamente, ainda preocupa-se em analisar os problemas criados pelas ciências. Para
coroar seu mister, ainda realiza o difícil trabalho de costurar os vários recortes da realidade,
para evitar a fragmentação do saber patrocinado pela ação isolada de cada ciência em
particular.
O Conhecimento Teológico
O Conhecimento Científico
As Verdades Primeiras
Descartes afirma que devemos rejeitar como falso tudo aquilo do qual não podemos
duvidar. Só devemos aceitar as coisas indubitáveis. Mas não devemos duvidar por duvidar,
como céticos, que não acreditam na possibilidade do conhecimento humano atingir a
verdade. O objetivo da dúvida cartesiana é encontrar uma primeira verdade impondo-se
com absoluta certeza. Trata-se de uma dúvida metódica, voluntária, provisória e
sistemática. Não atingiremos a verdade se antes, não pusermos todas as coisas em dúvida.
São falsas todas as coisas das quais não podemos duvidar. Por isso, Descartes rejeita os
dados dos sentidos: por vezes eles nos enganam; rejeita também os raciocínios: por vezes
nos induzem à erros. Assim, após duvidar de tudo, descobre a primeira certeza: o “Cogito,
ergo sumo” – “Penso, logo existo”.
Logo em seguida, adverte que enquanto eu queria pensar que tudo era falso, cumpria
necessariamente que eu que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade, eu
penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as demais extravagantes suposições
dos céticos não seriam capazes de abalá-la, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo,
como o primeiro conceito da Filosofia que procurava. (Discurso sobre o método, IV Parte).
Depois de esclarecer que ele existe, Descartes, se pergunta: quem sou eu? Identifica
o eu à alma e a alma ao pensamento. Estabelece o primado do espírito, fazendo dele algo
inteiramente distinto do corpo. É a tese do dualismo: a alma é uma substância
completamente distinta do corpo.
Depois, examinando com atenção o que eu era, e vendo que podia supor que não
tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse,
mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de
eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas compreendi que eu era uma substância
cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que para ser, não necessita de
nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a
alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinto do corpo e mesmo que é mais
simples de conhecer do que ele; e ainda que ele nada fosse, deixaria de ser tudo o que é.
(Discurso sobre o método, IV. Parte)
Mas o que sou? Uma substância que pensa. O que é uma substância que pensa? É
uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que
imagina e que sente. (Meditações, 2).
A segunda verdade descoberta por Descartes é a existência de Deus. A primeira
verdade dizia: eu penso. Mas eu não sou só. O exame de minhas idéias leva-me a afirmar a
existência de Deus. É Deus quem garante as verdades matemáticas, permitindo-nos, por
suas aplicações práticas, agir sobre o mundo: fica assegurada, também a existência do
mundo, campo da atividade do homem. Descartes prova a existência de Deus com um
argumento ontológico (ontos: ser): por definição, o ser perfeito é aquele que possui todas
as perfeições; ora, a existência é uma perfeicão; logo, o ser perfeito existe.
Renê Descartes
50
Objetivos
1 Ética e Moral
Se, apesar do tempo transcorrido, ainda nota-se que as virtudes que os gregos e
romanos propiciavam, continuam em vigor no mundo atual, é evidente que tratam-se de
conceitos que excedem totalmente os limites temporais. Quando fala-se em dotar o mundo de
uma nova moral que o obrigue à sair do abismo para o qual se dirige, trata-se de uma Moral
nova por que é eterna e não nova pela sua transformação.
A principal característica da ética atemporal é sua capacidade de viver em todas as
épocas da história, sendo, não absolutamente, sempre nova, sempre viva, sempre “uma”. Não
é necessário ter estudado, nem lido muito, para que qualquer homem possa reconhecer no
fundo do seu coração esta ética que não é nem sua nem de ninguém, mas de todos.
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Quais são os valores aos quais o homem finalmente se agarra? Aqueles que
passam com tanta velocidade que não se consegue compreender, ou aqueles que permanecem
inalterados através do tempo? É evidente que por Instinto de eternidade, o homem busca
precisamente o eterno, o duradouro. É assim que termina por trilhar o caminho da ética
atemporal, pela qual caminharam e caminharão todos aqueles que buscam a essência autêntica
das coisas.
A moral temporal é filha do tempo, e como tal, mutável e perecível. O que
hoje é bom, amanhã estará fora de moda. A lei que nos rege hoje se transforma em uma
aberração tão logo se imponha outra idéia, também destinada ao esquecimento perante o
avanço das incessantes inovações e renovações.
2 A Existência Ética
quando tudo isso lhe custa sacrifícios. Constata-se que há um sentimento de grandeza e
dignidade nessa pessoa e isso desperta a admiração por ela.
Tais emoções e sentimentos também exprimem o senso moral, ou seja, a maneira
como avalia-se a conduta e a ação de outras pessoas segundo idéias como as de mérito e
grandeza de alma.
São inúmeras as situações, por exemplo, se uma pessoa querida adquire uma doença
terminal e mantêm-se viva apenas porque seu corpo está ligado à máquinas. Suas dores são
intoleráveis. Inconsciente, geme no sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não
seria preferível deixá-la morrer? Os aparelhos podem ser desligados? Os aparelhos devem ser
desligados? Ou não temos o direito de fazê-lo? O que fazer? Qual a ação correta?
Uma jovem descobre que está grávida. Sente que seu corpo e seu espírito ainda
não estão preparados para a gravidez. Sabe que seu parceiro, mesmo que deseje apoiá-la, é tão
jovem e despreparado quanto ela e que ambos não terão como responsabilizar-se plenamente
pela gestação, pelo parto e pela criação de um filho. Ambos estão desorientados. Não sabem
se poderão contar com o auxílio de suas famílias (se as tiverem). Se ela for apenas estudante,
terá de deixar a escola para trabalhar, a fim de pagar o parto e arcar com as despesas da
criança. Sua vida e seu futuro mudarão para sempre. Se trabalha, sabe que perderá o emprego,
porque vive numa sociedade na qual os patrões discriminam as mulheres grávidas, sobretudo
as solteiras. Receia não contar com a ajuda e o apoio dos amigos. Ao mesmo tempo, porém,
deseja a criança, sonha com ela, mas teme dar-lhe uma vida de miséria e ser injusta com quem
não pediu para nascer. Pode fazer um aborto? Deve fazê-lo?
Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente,
recebe uma oferta de emprego que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que
beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o
tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou
deve recusá-lo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo?
Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela
correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido. Ama duas
mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos, ou estará traindo a ambos e a si
mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo com uma para ficar com a outra? O
amor exige uma única pessoa amada ou pode ser múltiplo? O que sentirão as duas mulheres
se ele lhes contar o que se passa? Ou deverá mentir para ambas? O que fazer? Se, enquanto
está atormentado pela indecisão, um conhecido o vê ora com uma das mulheres, ora com a
outra e, conhecendo uma delas, contar o que viu? Em nome da amizade, deve falar ou calar?
Uma mulher vê um furto. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada pegar frutas e
pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e
que o furto fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve
denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário
da mercearia não terá prejuízo de fato? Ou deverá silenciar, pois a criança corre o risco de
receber punição excessiva, ser levada pela polícia, ser jogada novamente às ruas e agora,
revoltada, passar do furto ao homicídio? O que fazer?
Uma pessoa vê, nas portas de uma escola, um jovem vendendo droga à um outro.
Essa pessoa sabe que tanto o jovem traficante quanto o jovem consumidor estão realizando
ações de crime organizado, contra o qual as forças policiais parecem impotentes. Deve
denunciar o jovem traficante, mesmo sabendo que com isso não atingirá as poderosas forças
que sustentam o tráfico, mas apenas um fraco anel de uma corrente criminosa que
permanecerá impune e que poderá voltar-se contra quem fez a denúncia? Ou deve falar com
as autoridades escolares para que tomem alguma providência com relação ao jovem
consumidor? Mas de que adiantará voltar-se contra o consumo, se nada pode fazer contra a
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venda propriamente dita? No entanto, como poderá sentir-se em paz sabendo que há um
jovem que talvez possa ser salvo de um vício que irá destruí-lo? O que fazer?
Situações como essas, são comuns e constantes no dia-a-dia. As dúvidas quanto à
decisão a tomar não manifestam o senso moral (isto é, os sentimentos quanto ao certo e
errado, justo e injusto), mas põem à prova a consciência moral, pois exigem que, sem
pressão, o sujeito decida o que fazer e que justifique para si mesmo e para os outros, as razões
das decisões, assumindo todas as conseqüências das mesmas. Em outras palavras, a
consciência moral não se limita aos sentimentos morais mas se refere também à avaliações de
conduta.
Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência
moral referem-se à valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade,
generosidade), sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso,
contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e decisões que conduzem às ações com
conseqüências para si e para os outros. Embora os conteúdos dos valores variem, nota-se que
referem-se à um valor mais profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom ou o bem. Os
sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal,
também referem-se à algo mais profundo e subentendido: o desejo de afastar a dor e o
sofrimento e de alcançar a felicidade. Além disso, os sentimentos e as ações morais são
aqueles que dependem de cada sujeito, que nascem da própria capacidade de avaliar e decidir.
3 O Agente Moral
Considera-se que o agente moral, sujeito moral ou pessoa moral só pode existir se
preencher as seguintes condições:
ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus
sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido à poderes externos que o
forcem e o constranjam à sentir, querer e fazer alguma coisa. A liberdade não é
tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para
autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta.
pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade e
responsabilidade.
Ao contrário, é ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos,
suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores
e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por
outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as
regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos
outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente à eles, responde pelo que faz, julga
suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Isto é, um sujeito
autônomo e como tal, verdadeiramente livre.
No caso da ética, portanto, nem todos os meios são justificáveis, mas apenas
aqueles que estão de acordo com os fins da própria ação. Em outras palavras, fins éticos
exigem meios éticos.
A relação entre meios e fins pressupõe a idéia de discernimento, ou seja, é preciso
saber distinguir entre meios morais e imorais, tais como a sociedade os definem. Isso significa
também, que esse discernimento não nasce com o sujeito, mas precisa ser adquirido e
portanto, a pessoa moral não existe como um fato dado, mas é criada pela vida intersubjetiva
e social, precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes de sua sociedade.
Entretanto, pode-se indagar se a educação ética não seria uma violência. Em
primeiro lugar, porque se tal educação visa transformar o sujeito de passivo (ou submetidos à
força das paixões) em ativos (ou senhores da razão e liberdade), pode-se perguntar se a
natureza do sujeito não é essencialmente passional e, portanto, se for forçado à racionalidade
ativa não seria um ato de violência contra a natureza espontânea, já que violência é forçar
alguém a sentir e agir de maneira contrária à sua natureza. Em segundo lugar, porque se essa
educação visa colocar o sujeito em harmonia e em acordo com os valores da sociedade, pode-
se indagar se isso não acaba submetendo esse sujeito à um poder externo à sua consciência, o
poder da moral social e, nesse caso, em vez de torná-los sujeitos autônomos ou livres,
acabarão sendo escravos das normas, regras e valores impostos pela sociedade. Para
responder à essas questões é preciso examinar o desenvolvimento das idéias éticas na
Filosofia.
4 A Filosofia Moral
Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao
bem e ao mal, ao permitido e ao proibido e à conduta correta e à incorreta, válidos para todos
os seus membros. Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças de castas
ou de classes muito profundas podem até mesmo possuir várias morais, cada uma delas
referida aos valores de uma casta ou de uma classe social.
No entanto, a simples existência da moral não significa a presença explícita de
uma ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexão que discuta, problematize e
interprete o significado dos valores morais. Ao contrário, toda sociedade tende a naturalizar a
moral, de maneira a assegurar sua perpetuação através dos tempos. De fato, os costumes são
anteriores ao nascimento do homem e formam o tecido da sociedade, de modo que acabam
sendo considerados inquestionáveis e as sociedades tendem a naturalizá-los (isto é, a tomá-los
como fatos naturais existentes por si mesmos). Não só isso. Para assegurar seu aspecto
obrigatório que não pode ser transgredido, muitas sociedades tendem à sacralizá-los, ou seja,
as religiões os concebem ordenados pelos deuses, na origem dos tempos. Como as próprias
palavras indicam, ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma
sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus
membros.
A filosofia moral ou a disciplina denominada de ética, nasce quando se passa a
indagar o que são, de onde vêm e o que valem os costumes.
Na língua grega existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal: uma
vogal breve, chamada epsílon, e uma vogal longa, chamada eta. Éthos, escrita com a vogal
longa, significa costume; porém, se escrita com a vogal breve, éthos, significa caráter, índole
natural, temperamento, conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa. Nesse
segundo sentido, éthos se refere às características pessoais de cada um, as quais determinam
que virtudes e que vícios cada indivíduo é capaz de praticar.
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A filosofia moral ou a ética nasce quando, além das questões sobre os costumes,
também se busca compreender o caráter de cada pessoa, isto é, o senso moral e a consciência
moral individuais.
A razão pura teórica e a razão pura prática são universais, isto é, são as mesmas para
todos os homens em todos os tempos e lugares - os conteúdos dos conhecimentos e das ações
podem variar no tempo e no espaço, mas as formas da atividade racional de conhecimento e da
atividade racional prática ou ação moral são universais. Em outras palavras, os conteúdos do
conhecimento e da ação dependem da variação histórica ou da experiência, mas suas formas
independem da experiência e da história, pois dependem do sujeito transcendental. A diferença entre
razão teórica e razão prática encontra-se em seus objetos. Conservando a distinção que Aristóteles
estabeleceu entre teoria e práxis, Kant considera que a razão teórica ou especulativa tem como
matéria ou conteúdo, a realidade exterior ao homem, um sistema de objetos que operam segundo
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MÓDULO VI – A
NATUREZA HUMANA
Objetivos
Nesse módulo você conhecerá o desenvolvimento da relação
entre natureza e natureza humana, a partir da conceituação e análise
dos atos humanos, liberdade e moralidade e das faculdades superiores
do homem.
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2 A Liberdade
A liberdade permite, porém, que o ser humano possa realizar atos à margem das
leis rígidas da natureza, atos livres, voluntários. Estes são ditos atos humanos; também são
atos humanos os pensamentos e as intenções. O homem os tem porque quer.
A liberdade desvincula o agir humano das leis do cosmo que regem todos os
outros seres; ela faz com que o comportamento de cada pessoa seja, em princípio,
imprevisível. O ser humano aparece na Terra como um ser distinto que vaga errante, que faz e
desfaz a seu bel-prazer, acerta, erra. São expressivas certas palavras como vagabundo
(vagamundo), criativo, erradio, que se utilizam para enfatizar a conduta imprevisível e
inopinada do homem.
Liberdade implica autodeterminação. Ela abre ao ser humano a perspectiva de agir
e de fazer-se agindo. O agir não é inócuo para a própria pessoa, ao contrário, é determinante e
qualificativo. Quando um homem rouba ou tem um comportamento heróico, tais ações
tornam-o ladrão, no primeiro caso, e herói, no segundo. A pessoa livremente faz a si própria,
ou seja, se autodetermina.
Liberdade implica responsabilidade. “Ser livre não é responder vitorioso “eu fiz”,
na hora da distribuição de prêmios, mas é também admitir “fui eu”, quando se procura o
culpado por um mal feito. O sujeito é livre para fazer embora não para desprender-se das
conseqüências” (SAVATER, 2002, p. 115 e 117).
A ética é a arte de administrar a própria liberdade, de administrar os chamados atos
humanos. Tem enorme interesse prático, pois trata de responder à certas perguntas cruciais, tais
como: como ser mais eu? Como desenvolver minha personalidade? Como ser feliz? Como fazer
felizes meus filhos e meus amigos? E mais: como devo usar a minha liberdade? Para que serve a
liberdade? Por que sou livre?
Uma primeira afirmação da ética consiste em que a liberdade não está para fazer
qualquer coisa, ou a serviço do agir sem rumo ou irresponsável, mas deve estar a serviço do
bem. A liberdade, quando converte o bem em conduta, constrói o homem, o homem pleno e
feliz.
3 A Moralidade
Falar da natureza humana significa abordar o vasto campo dos atos humanos. O
ser humano, de forma inteligente e livre, realiza basicamente duas classes de atividades, umas
internas (pensa, especula) e outras externas (faz artefatos, produtos, armas, instrumentos,
diverte-se, auxilia o amigo, leva o filho ao colégio, entre outras). Mas toda atividade humana,
tanto interna quanto externa, por ser inteligente e livre, é de caráter moral, é boa ou má.
Antes de realizar qualquer ato humano, abre-se perante a pessoa um espectro de
possibilidades. Por exemplo: uma mãe deve escolher entre ir apanhar o filho na hora em que
ele sai do colégio, ou deixá-lo aguardando enquanto vai à cabeleireira. Um pesquisador deve
escolher entre extrair células-tronco de embriões ou de placentas. Um médico, solicitado por
autoridades para estudar a maneira de atormentar um indiciado criminoso, tem uma decisão
difícil a tomar. É nas escolhas do dia-a-dia que o homem se depara com a qualificação moral,
com a opção entre o bem e o mal.
Todo agir tem uma conotação moral, por assim ser a natureza humana. Por
exemplo, tomar banho de chuveiro pode parecer algo indiferente, neutro, à margem da ética;
entretanto, existem intenções: toma-se chuveiro como medida de higiene corporal ou
demoradamente, como desperdício de água? No primeiro caso a ação seria boa e, no segundo,
má. Não há atos humanos moralmente indiferentes. Do ser humano somente brotam ações ou
atos com coloração ética.
A visão clássica entende o bem como aquilo que é natural às coisas. Uma flor é
vistosa, colorida e exala perfume. A palmeira deve ter um tronco e, no alto, um penacho de
62
4 Os Atos Humanos
erro, encontra-se sob uma circunstância atenuante. Mas, se estiver bem acordado e por
desleixo errar, então a circunstância é agravante.
Finalmente considera-se que o amor une as pessoas. Quem ama doa-se ao amado
porque ele, por si, atrai, cativa, fascina... e a doação chega até o sacrifício - que é custoso e
gostoso. E o amado reciprocamente doa-se à quem o ama. Aqueles que se amam tendem a se
identificar, sem se anular. A amorosidade é enfim essa faculdade suprema do ser humano que
lhe permite amar: ao esposo ou esposa, aos pais, aos filhos, aos amigos, a qualquer pessoa, a
Deus.
Nesse sentido, a amorosidade humana funciona como: estímulo, impulso e força
na realização de cada ato humano e sobretudo, na qualidade do ato humano. A amorosidade é
base para o pleno desenvolvimento ético pessoal. O amor tem primordial importância no
desenvolvimento ético das pessoas; o amor é a “música de fundo” de toda a vida ética do homem. E,
reciprocamente, o amor potencializa a ética. Pode-se afirmar então que as capacidades de amar e de
agir eticamente progridem juntas, levando a pessoa aos mais altos níveis de felicidade. Pode-se
afirmar ainda que: se queres ser bom, ama; se queres ser melhor, ama mais; se queres ser muito
bom, ama muito... até a doação total de ti.
São poucos os autores que abordam o amor como elemento da Ética. No
pensamento clássico, o amor aparece como uma meta, uma luz ao fundo, um presságio.
Nestas linhas, porém, o amor é colocado sem rodeios como a faculdade superior por
excelência.
O ato humano traz consigo a moralidade da sua elaboração pela inteligência
prática, a qual concebe o seu objeto e o fim.
A construção própria da Ética pressupõe que o objeto do ato humano seja o
principal fator determinante da sua moralidade. Caso o objeto seja bom, ou indiferente, segue-
se em importância à intenção do agente.
O ato humano bom exige que todos os seus elementos (objeto, intenção e
circunstâncias) também sejam bons.
A ética clássica cunhou a expressão “Bonum ex integra causa, malum ex
quoqumque defectu”, ou seja, o ato humano é bom quando o são todos os seus elementos
(objeto, intenção e circunstâncias) e mau quando falha qualquer um deles. Por exemplo: um
pai quer corrigir o filho, porque este cometeu alguma falha nos seus deveres, e com este
propósito agride-o com violência; a despeito da boa finalidade e de possíveis circunstâncias
atenuadoras, a violência incluída no objeto faz com que todo o ato se torne mau.
Os obstáculos ao ato humano ético procedem ou da inteligência ou da vontade e
na medida em que essas faculdades são insuficientes ou inadequadas, o ato humano perde a
necessária integridade e liberdade, e sua qualidade ética fica comprometida e prejudicada.
O principal obstáculo da inteligência é a ignorância, o desconhecer ou não saber.
A ignorância pode ser vencível ou invencível. A primeira é aquela que se pode superar,
tomando medidas oportunas (estudando, perguntando, deduzindo). A invencível, entretanto, é
praticamente insuperável, por ser algo muito além do alcance da pessoa; por exemplo, o
desconhecimento do índice pluviométrico esperado ou da doença que advirá por defeito
genético. A diferenciação entre ignorância vencível e invencível tem conseqüências práticas.
A primeira é culpável; é a ignorância, por exemplo, do médico, do contador ou de qualquer
outro profissional que faz mal o seu serviço por desconhecer algo que deveria saber. Estes são
os casos denominados de imperícia, quer dizer, não saber algo da profissão que se deveria
conhecer.
Dentre os obstáculos que afetam a vontade e consequentemente prejudicam o ato
humano, destaca-se o medo, a violência, as paixões e os hábitos.
O medo é a trepidação do ânimo perante o perigo presente ou futuro e quando
muito intenso compromete a vontade. Quando o ser humano consegue superar o medo, o
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agente até ganha mérito e admiração: são os atos de coragem, de força, de valor, de presença
de espírito.
A violência pode ser de caráter físico (agressão, força) ou moral (ameaça,
chantagem sentimental), e pode de fato levar o homem a agir contra sua consciência. A
violência fraca ou relativa deve ser repelida, assim como a violência moral, pois não chegam a
destruir a vontade; a vontade subsiste, embora, sob pressão. Já a violência absoluta, como por
exemplo a ameaça armada ou a tortura, é capaz de desativar a vontade.
A existência de obstáculos superáveis (medo, violência relativa, violência moral)
mostra que a estrutura ética do ser humano exige esforço. É uma estrutura que se deve
construir com empenho, superando dificuldades e ganhando virtudes.
As paixões são próprias da vida sensorial e existem em pares de opostos: atração-
rejeição, desejo-aversão, deleite-tristeza. As paixões são movimentos da sensibilidade humana
que se podem desencadear à margem das faculdades superiores. Por exemplo, porque seu
filho não foi à escola, o pai de gênio forte é arrebatado pela ira e o agride; a ira compromete
seriamente a vontade do pai, que talvez se arrependa depois.
Os hábitos são outro fator que podem influenciar na vontade, pois deles decorrem
tendências ou disposições, firmes e constantes, para agir de uma certa forma. Os hábitos bons
são as virtudes e os maus são os vícios. Suponhamos o caso de um garçom, atraído pela
bebida e já enveredando pelo alcoolismo; trata-se de um vício adquirido devido ao ambiente e
aos repetidos goles, uma dependência química e psicológica que lhe compromete a vontade.
Os vícios podem ser imputáveis, se a pessoa neles se envolve voluntariamente e
podem ser meritórios se a pessoa fizer tentativas para superá-los.
As faculdades superiores são aquelas que o homem dispõe e que estão a serviço
da interação que se estabelece entre o ser humano e tudo quanto está à sua volta. O homem,
em primeiro lugar, toma conhecimento do alimento, do vaso de flores, do cachorro, do irmão.
Depois, toma decisões voluntárias acerca desses seres: preferirá certos alimentos em lugar de
outros? cuidará das flores? estimará o cachorro? comunicar-se-á com as pessoas?. Finalmente,
pela amorosidade, estabelece conexões íntimas com as pessoas; é uma relação única e
exclusiva do ser humano. Obviamente não se trata da afetividade sensível nem do apetite
sexual, mas de uma relação interpessoal mais profunda, do amor superior. Ainda que se fale,
na linguagem comum, de amor às flores ou ao cachorro, na realidade não se trata da
amorosidade – que somente se dá entre pessoas –, mas de uma afetividade em sentido amplo,
da estima. As Faculdades superiores são: Inteligência, vontade e amorosidade.
Inteligência
Mediante a inteligência, o ser humano conhece os outros seres e a si próprio. O
homem é um ser ávido de conhecimento, continuamente ativo no seu ardente anseio de
verdade. Em suas aspirações mais elevadas, como na filosofia, a inteligência exibe duas de
suas faces, a da intuição de princípios e a da lógica.
A inteligência não se satisfaz com um conhecimento pobre, insatisfatório e muito
menos, com a falsidade. A inteligência, ainda que saiba de suas limitações e de que não chega
nunca à alcançar a realidade mais profunda, estuda-a, continuamente. É a sede de saber e a
inquietação intelectual do ser humano que explicam o progresso das ciências.
A chamada inteligência prática consiste no uso da razão para agir e por isso tem
especial importância no campo da ética. Em primeiro lugar, com ela todos intuem o princípio
básico: faça o bem, evite o mal. Em segundo lugar, mediante exercícios lógicos, analisa os
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dados da situação e aplica aquele princípio para decidir. Ainda, a inteligência intervém de
forma determinante no amadurecimento da personalidade ética.
Vontade
A vontade é a faculdade que permite ao ser humano determinar-se, decidir-se,
optar por isto ou aquilo, por agir bem ou agir mal. Pode-se ficar durante certo tempo hesitante
entre ler um livro, por exemplo, e ouvir música; há a possibilidade de se ponderar vários
argumentos a favor e contra o livro e a música. Entretanto, vale ressaltar que é a vontade que
decide entre uma coisa e outra. O ato da vontade desencadeia o ato humano.
Dessa forma, a vontade está presente em toda a atividade do homem. No pensar,
no planejar, no exercício apenas mental, e também, obviamente, na atuação externa. A rigor, a
vontade é parceira inseparável da inteligência e da amorosidade no ato humano.
Amorosidade
Esta é uma faculdade importantíssima, presente em todo o processo ético e
consiste na aproximação envolvente do ser humano com as outras pessoas. A afetividade
interpessoal, a amorosidade, atinge uns patamares únicos, surpreendentes, muito além da
estima ou da simples aprovação que se pode dedicar aos seres não pessoais que nos rodeiam.
Alguns pensadores dizem que o amor é a aprovação das pessoas queridas; é exclamar perante
elas: é bom que tu existas! A tua existência me faz bem! Quero o teu bem!
Acontece que a amorosidade é, em primeiro lugar, tendente à reciprocidade, em
segundo lugar geradora de intimidade compartilhada e, por fim, tendente à união ou
compersonação. Nada disto ocorre em se tratando da estima às coisas ou animais.
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Pode-se dizer que a conduta humana se vê afetada por duas chamadas distintas, da
natureza: uma que vem principalmente de dentro e outra que lhe chega de fora. Como a moral
é a arte de viver bem, a arte de ter uma conduta digna do homem, considera-se a necessidade
de analisar duas chamadas da natureza.
A primeira é a que lhe faz o próprio ser [...] Não pode deixar de ter fome e sede; por
isso, não pode deixar de desejar a comida e a bebida e de buscá-las ao seu redor.
A segunda é a que lhe dirigem os seres que o rodeiam. Logo que chega a conhecê-los,
coloca-se no lugar deles e percebe que também têm necessidades e, nessa mesma medida, direitos.
Percebe que é mais um ser entre outros; que não pode guiar-se só por aquilo que deseja ou lhe
convém; que outros seres lhe impõem obrigações.
Considera-se que há muitos séculos, Aristóteles definiu como bem “aquilo que
todos apetecem ou desejam” [...] Esses impulsos são reforçados pela satisfação que causa
alcançar os bens (prazer) ou pelo mal que causa ser privado deles (dor). As sucessivas
experiências de prazer e de dor dão forma e educam o comportamento. É por aí que se podem
adestrar os animais.
O desenvolvimento da inteligência amplia enormemente a possibilidade de
descobrir bens, muitas coisas são úteis para conseguir ou preservar a comodidade, a segurança
ou a saúde.
Conforme a educação que receba, a pessoa aprende a apreciar os bens que têm a
ver com a realização individual: as habilidades e os conhecimentos; as relações de amizade e
amor; os bens estéticos; as virtudes morais, que tornam um homem honrado e honesto.
[...] Quanto aos bens estéticos, religiosos e morais, porém, é necessária uma
educação muito cuidadosa, que ensine a sua beleza. Chegar a apreciar como bens os
verdadeiros bens, os que realmente nos convém, é a parte mais importante da educação. E não
é fácil.
A voz dos deveres é outra voz que a natureza dirige ao homem [...] “deduzimos
que o que é bom para nós deve ser bom para os outros, e ao contrário, o que é mau para nós
deve ser mau para os outros”.
Os animais só sentem a voz dos seus instintos, mas o homem, também ouve as vozes
dos seres que os rodeiam. É o que distingue a conduta humana:
Um homem normal não pode comer sossegado se tem ao seu lado alguém faminto.
Talvez não lhe apeteça ajudá-lo, nem tire qualquer proveito em fazê-lo, mas sente-se
obrigado a compartilhar com ele sua comida. Assim chegamos a perceber, por
exemplo, que os homens que nos rodeiam precisam, além de comida, de uma
palavra de alento, de um sorriso ou de um pouco de companhia. [...] Os bens atraem-
nos; os deveres obrigam-nos. A atração sente-se sobretudo na sensibilidade; a
obrigação percebe-se sobretudo na inteligência. ... é preciso saber conjugá-los. A
moral [...] é também a arte de conjugar bens e deveres, de pôr cada coisa no seu
lugar, de pôr ordem nos amores. (LORDA, J. L. Moral: a arte de viver bem. São
Paulo: Quadrante, 2001, p. 31 ss.)
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O meio natural do Homo sapiens é um mundo feito com tudo o que existe e
também com o que já não existe e com o que ainda não existe. Um mundo que, além do mais,
muda a cada momento.
O modo de vida, não só dos morcegos e dos linguarudos mas também dos
chimpanzés, é essencialmente o mesmo ainda que vivam separados por milhares de
quilômetros.
Em contrapartida, algumas centenas de metros bastam para mudar notoriamente
os comportamentos dos grupos humanos. Por quê? Sobretudo pela existência da linguagem.
A linguagem humana é mais profundamente diferente das chamadas linguagens
animais do que a própria fisiologia humana, da dos outros primatas. Graças à linguagem, para
os humanos, entram em conta coisas que já não existem ou que ainda não existem e até as que
não podem existir!
As linguagens animais referem-se sempre às finalidades biológicas da espécie: a
gazela adverte seus semelhantes da aproximação do leão [...] “Mas a linguagem humana não
tem conteúdo pré-definido, serve para falar de qualquer tema, assim como inventar coisas. Os
significados da linguagem humana são abstrações, não sempre objetos materiais.”
(SAVATER, F. As perguntas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 76)
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Atividades de Aprendizagem
3) A que qualidade dos seres em geral se associa o bem? E a que qualidade dos seres
humanos se associa o bem ético?
9) Quais são as interferências que mais afetam a inteligência, com relação ao ato
humano?
MÓDULO VII -
FILOSOFIA POLÍTICA
E TRABALHO
Objetivos
Nesse último módulo você terá a oportunidade de refletir e
compreender a filosofia política através do estudo de sua origem,
conceitos, possibilidades, entraves e ainda das relações entre poder,
política e cotidiano.
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1 A Filosofia Política
A introdução à uma ciência não é ainda a mesma ciência, mas diz o que ela é.
Dessa forma, uma introdução à filosofia política não é ainda a filosofia política, a qual
entretanto define. Importa entender, o que é a ciência, fazendo uma meta-ciência.
Assim, a introdução à uma ciência, ou seja, à toda e qualquer ciência, consiste na
apresentação meramente formal dos procedimentos de que ela se ocupa, sem todavia, decidir
sobre conteúdo posto em discussão.
A introdução poderá mesmo antecipar as teses que, no curso do texto, serão
defendidas, e quais as teses que serão abandonadas como falsas. Entretanto, não fará este
trabalho crítico de defesa ou de refutação, durante a introdução, porque esta não tem ainda o
objetivo de decidir sobre os temas anunciados.
A leitura prévia dos índices dos textos é importante porque permite saber sobre o
que o texto vai tratar. Assim, de imediato, distingue a ciência proposta para ser abordada,
como distinta de outras, não apenas pelos seus aspectos acidentais, mas pelo que apresenta de
essencial. Não obstante, os aspectos acidentais oferecem também alguma importância. Por
isso, uma introdução passa logo à advertir adicionalmente para estes outros aspectos. Dessa
forma, costuma abordar ainda sua importância, sua história, sua terminologia habitual (ou
linguagem).
Estes outros aspectos da definição, constituem os elementos acidentais. Uma vez
atentos somente ao essencial, este admite ser considerado, ora como um todo simplesmente,
ora como tendo partes essenciais. Em consequência, ocupa-se uma introdução à uma ciência,
do que lhe é essencial como um todo. Mas este todo também se divide em partes essenciais.
Nesse contexto, considera-se que uma ciência pode dividir-se em partes (por
exemplo em capítulos), continuando a tratar somente do essencial. Uma introdução essencial
à uma ciência se desenvolve em dois tempos, em um primeiro tempo a define e em outro a
divide em partes.
Uma introdução à Filosofia Política deverá, pois, dizer sobre o que trata esta
disciplina. Será uma meta-política. O que se disse da introdução à qualquer ciência, se passa
agora a dizer da filosofia política particularizadamente. Seguem os aspectos não essenciais à
filosofia política, meramente eventuais, que assumem interesse para o bom desenvolvimento
deste saber. Tais aspectos são a importância, a história e a linguagem da filosofia política.
Sendo aspectos eventuais, eles diferem muito de ciência para ciência, e tomam um colorido
especial na filosofia política.
A importância da filosofia política se fundamenta justamente no quanto ela
prepara o ser humano para a convivência. Efetivamente cada sujeito é um cidadão e deve
viver conscientemente sua condição política. No estudo da filosofia política há ainda a
conveniência de apontar para a história desta ciência, bem como para as dificuldades
terminológicas de sua linguagem.
A história da filosofia política ajuda a desvincular do conceito de política aquela
confusa imagem que a envolve, em virtude de contingências que variam muito de nação para
nação, de época para época. Em consequência todo o assunto se enreda em contingências
históricas diferenciadas. Por isso também importa considerar a linguagem, que não costuma
soar de igual modo para todos.
Assim, uma introdução deve contornar estas dificuldades de questionamento,
afastando previamente uma linguagem de conotações culturais variadas.
Diante do exposto, destaca-se os seguintes itens em uma Introdução à filosofia
política, ou seja, em uma meta-política:
Iniciando por uma definição essencial, a filosofia política é explicada pelos seus
elementos principais. Não se trata de uma definição pelas propriedades e pelos acidentes mais
estáveis, que entretanto conduzem também à ela, ainda que não exaustivamente. Os elementos
essenciais podem ser vários e então admitem ser enunciados variadamente.
Considera-se as seguintes definições de filosofia política:
Filosofia política é a parte da filosofia moral (ou ética), que trata do dever dos
homens, em função do qual estes unem as suas vontades em uma sociedade
(por isso denominada sociedade política), com vistas a mutuamente se
defenderem e se desenvolverem;
Dessa forma, a ética social enfoca o aspecto moral. A ciência política e a filosofia
política, embora confiram no objeto material (a união das vontades), se diferenciam no ponto
de vista formal, porque a primeira cuida dos aspectos decididos racionalmente, enquanto a
segunda, dos aspectos alcançados e decididos empiricamente.
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Entretanto, vale considerar que tanto a ética quanto a filosofia política, são
filosóficas e se ocupam da sociedade política, sob o mesmo ponto de vista, - o “dever ser” do
associamento dos homens.
A filosofia política ensina o que fazer e o que evitar na vida pública. É
incontestável e de fácil percepção que a filosofia política é importante, porque diz respeito aos
homens, sob aqueles aspectos que os unem entre si. Na sociedade, o acerto ou o erro se torna
de alcance mais geral, por causa da magnitude dos atingidos. O que acontece no plano
familiar atinge sempre um número menor de pessoas. Finalmente o que acontece com o
indivíduo, poderá atingir talvez somente a este. Por isso, a importância do estudo da sociedade
dos homens.
O estudo da política é uma advertência constante contra a desordem pública. A
vida quotidiana mostra como as coisas políticas acontecem. A frequência com que se utiliza a
desordem pública, mesmo por ocasião de greves legítimas, como instrumento de solução dos
problemas sociais, somente é possível em sociedades politicamente despreparadas.
A desordem pública é gerada com mais frequência pelos jovens, sobretudo
quando ainda adolescentes. Isto acontece, ou porque não tiveram tempo para atingir a
maturidade política, ou ainda porque as sociedades em que vivem os mais velhos não
conseguiu formá-los, nem pelo ensino, nem pelo bom exemplo.
Apesar das atenuantes alegadas, nenhuma greve legítima pode permitir-se a
desordem pública. Entretanto, os jovens não devem ser afastados da política. Cedo, já como
estudantes, os jovens deveriam envolver-se com a política, aprendendo pois, na prática, a se
ocupar com as coisas públicas e com procedimentos legítimos.
Nesse contexto, considera-se que na vida diária, as pessoas se referem à política
como a ação do Estado e da organização institucional. Assim, o termo é utilizado para
descrever a atividade parlamentar de um determinado político eleito, a ação dos partidos
políticos por ocasião de campanhas eleitorais ou ainda, para se referir ao ato de votar e
escolher representantes que exercerão o mandato e decidirão em nome dos eleitores. A
política apresenta-se como a arte de governar.
Vale ressaltar que o termo também expressa a multiplicidade de situações em que
a política se manifesta: política econômica, política sindical, política ecológica, política das
igrejas. Nesse sentido, entende-se a política como a atuação de instituições ou de segmentos
da sociedade civil com a finalidade de alcançar determinados objetivos. Trata-se de uma
política reduzida aos espaços institucionais, dos quais os indivíduos participam
ocasionalmente.
No entanto, ao contrário do que possa parecer, a política não diz respeito apenas
aos políticos, mas à todos os cidadãos. A palavra política origina-se do grego pólis, que
significa “cidade”, que caracterizava-se como uma unidade de vida social e política
autônoma, da qual os cidadãos gregos participavam ativamente.
A política apresenta-se hoje como a arte de governar, de atuar na vida pública e
gerir os assuntos de interesse comum. Não se restringe à atividade desenvolvida no âmbito do
Estado, mas permeia todas as formas de relacionamento social: no trabalho, na escola, nas
ruas, no lazer e até nas relações afetivas. Dessa forma, a política consiste no conjunto das
relações de poder vividas na sociedade.
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REFERÊNCIAS
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2003