A Boa Forma Do Estruturalismo (Grupo de Bourbaki) BENECERRAF 17563 - 5
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Responsabilizar a teoria pela determinao do objeto uma concepo comum ao pensamento dos autores trabalhados at o presente momento. De modo que, aps investigar a pedra angular das pesquisas estruturalistas, identificada com o artigo de Benacerraf, e investigar o desenvolvimento de um estruturalismo em suas bases conceituais, exemplificado pelo trabalho ante rem de Shapiro, procurarei tatear um breve histrico desta discusso. A questo histrica, com
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efeito, surge como pea de investigao em algum momento do trabalho filosfico, e este captulo seguir semelhante abordagem com o objetivo de destacar a figura de dois matemticos que comporiam, junto de muitos outros, o conjunto de precursores da abordagem estruturalista. Esses matemticos so o alemo Richard Dedekind e o grupo francs de Nicholas Bourbaki. A razo para se destac-los decorre da estrita enunciao por parte de Shapiro, como se eles fossem os antecedentes tericos de seu desenvolvimento conceitual (as ltimas sees de seu captulo histrico intitulam-se respectivamente Dedekind e as estruturas ante rem e Nicholas Bourbaki), bem como da possibilidade de se aproximar as teses defendidas por estes autores (ou os problemas que eles indicam) com aquelas teses defendidas ou sugeridas por Benacerraf em seu importante artigo. Observarei, assim, a breve considerao de Shapiro de alguns debates paralelos a estas duas figuras para, por fim, introduzi-las na discusso aqui empreendida. Para um pensamento histrico sobre a filosofia da matemtica, faz-se fundamental uma considerao sobre o sculo XIX. O terico Howard Stein, inclusive, pensa que a matemtica sofreu transformaes to profundas neste momento que no constituiria exagero imagin-lo como seu segundo nascimento (o primeiro teria se dado entre os gregos clssicos). J Shapiro pensa que tudo o
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que se considera contemporaneamente como matemtica clssica o resultado de batalhas tericas estabelecidas neste momento. Assim, o primeiro confronto teria ocorrido no campo da geometria, para posteriormente avanar em direo a outros domnios da matemtica. Alguns confrontos intelectuais, como o debate entre Russell e Poincar ou o debate entre Frege e Hilbert, ocorreram na esteira destas discusses sobre o domnio geomtrico, de maneira que procurarei brevemente apresent-los para fundamentar o destaque oferecido s figuras de Dedekind e Bourbaki. Deve-se ressaltar de imediato que o cenrio no qual a discusso do sculo XIX se travou foi o cenrio constitudo pelo legado da filosofia kantiana, dentro do qual toda a matemtica, seja a geometria, seja a aritmtica, possua sua fundamentao, e, por decorrncia, seu estatuto epistemolgico, em juzos sintticos a priori. Antecedendo a esta configurao terica observa-se ainda o desenvolvimento da geometria analtica e da geometria
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projetiva, as quais possibilitaram a introduo de elementos ideais no domnio geomtrico (tal como ocorrera no domnio aritmtico com a introduo dos nmeros negativos e imaginrios). A possibilidade de se trabalhar com elementos ideais na geometria implicou em uma progressiva sofisticao na maneira pela qual se poderia introduzir tais objetos. Esta sofisticao foi conceitualizada por Shapiro de trs formas diferentes. Em um primeiro momento ele a especifica como postulao; em um segundo momento como definio implcita (a fim de lanar mo de seu conceito epistmico, trabalhado no captulo anterior); para, por fim, trabalhar semelhante introduo sob o prisma da construo. Com a postulao, o matemtico asseverava a existncia de determinados entes que obedeceriam a algumas leis, as quais valeriam para a maior parte dos objetos j existentes. Com o auxlio da definio implcita, por outro lado, o matemtico pde oferecer a descrio de um sistema de entes com um conjunto de leis devidamente estipuladas, bem como concluir que esta descrio se aplicaria a qualquer coleo que obedea a tais leis. Por fim, observando-se o mtodo de construo, Shapiro considera que este foi o mtodo que melhor se adequou prtica matemtica, em funo de a introduo de novos objetos encontrar-se atrelada a transformaes (muitas vezes por combinao) de entes j estabelecidos, satisfazendo a pergunta
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pela sua existncia de antemo. Afirma-se ento que uma perspectiva frutfera tomaria a definio implcita e a construo como em linha. A construo de um sistema de objetos estabelece que h um sistema de objetos definidos de tal forma, de modo que a definio implcita no seria vazia. Alm do mais, a construo tambm mostra como os novos entes podem ser relacionados com os j estabelecidos, e poderia sugerir novas direes para a pesquisa218. De posse destes conceitos, apresentam-se alguns momentos que poderiam ilustrar a sua clara utilizao, como, por exemplo, no distanciamento que se comea a estabelecer entre a geometria e o prprio conceito de visualizao. De fato, com o desenvolvimento da geometria analtica e projetiva, e a progressiva introduo de elementos ideais, a argumentao geomtrica no mais utilizaria diagramas como outrora, e, em funo disso, no poder se caracterizar unicamente como a cincia que estuda o espao (compreendido como o espao
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visvel ou ainda, visualizvel). Isto significa que ao mesmo tempo em que a introduo dos elementos ideais auxilia na ampliao terica da geometria, ela a afasta de sua clssica definio no momento em que preconiza uma distncia em relao aos conceitos de matria e extenso. A geometria passar a se desenvolver ento, nos dizeres de Grassmann, como a cincia geral das puras formas, abstraindo-se de qualquer interpretao que a linguagem possa ter219, isto , os seus termos sero caracterizados apenas em virtude das relaes que estabelecem entre si. Outra distino presente nas consideraes de Grassmann aquela entre uma cincia formal e uma cincia real (com a qual se traa o paralelo da clssica distino entre matemtica pura e aplicada). Neste sentido, a geometria clssica seria uma cincia real e, por conseguinte, no seria um ramo matemtico da mesma maneira que a aritmtica 220. Para ele, do ponto de vista matemtico, a geometria no deveria apresentar uma intuio espacial, mas a estrutura do espao, e como bem ponderou o filsofo Ernst Nagel, Grassmann foi o primeiro matemtico que explicitamente reconheceu que a matemtica versa sobre estruturas formais221. Esta concepo iniciou um processo que culminaria na ideia de que no estudo da geometria, no tem importncia a maneira pela qual os
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Ibidem. Idem, p. 147. 220 GRASSMANN apud SHAPIRO 1997, p. 147. 221 NAGEL apud SHAPIRO 1997, p. 148.
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seus elementos so observados222, mas as relaes que os mesmos estabelecem entre si. Tal tese tambm teria conduzido a geometria a um sucessivo abandono da noo de intuio e construo das mais diversas interpretaes no-euclidianas, fato que estar no centro do debate estabelecido entre as figuras de Frege, Russell, Poincar e Hilbert. Pode-se iniciar a apresentao deste par de debates com aquele travado entre Henri Poincar e Bertrand Russell. Norteado pela pergunta sobre a natureza metafsica dos elementos bsicos da geometria e pela questo acerca de nosso acesso epistmico aos mesmos, enquanto Poincar concordava com as tendncias observadas no desenvolvimento matemtico que lhe era contemporneo, as quais desenvolviam uma formalizao da geometria, Russell apresentava sua contraposio terica a partir de uma sofisticao da natureza da noo de definio. De maneira que, para Poincar, em funo de o nosso acesso
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epistmico ao espao fsico ser mediado e limitado por objetos fsicos, no haveria um fato conclusivo que obrigasse o matemtico a recusar a plausibilidade de geometrias no-euclidianas, fato que o permitiria concluir que uma determinada geometria no poderia ser mais verdadeira do que qualquer outra. Para sustentar tal tese, Poincar tambm expressa sua posio em relao aos objetos matemticos, questionando inicialmente a possibilidade de se conceber um objeto de maneira isolada, isto , independentemente de suas relaes, fora dos domnios matemticos. Afinal, para os objetos da matemtica, isto impossvel [].Se algum quiser isolar um termo [matemtico] e abstra-lo de suas relaes com os outros, no sobra nada [para ser concebido]223. Esta tese poderia implicar uma precedncia da relao entre os termos sobre a definio dos prprios termos, constituindo-se tal definio por alguma espcie de conveno. De modo que Russell considerar que no apenas os matemticos sempre ignoraram o papel da definio em sua disciplina, como tambm considerar que este pensamento foi devidamente veiculado por Poincar na crtica endereada ao seu ensaio sobre os fundamentos da geometria, fato que o obrigou a delinear de maneira satisfatria os contornos de semelhante noo.
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Assim, para ele, existiriam dois usos diferentes para a noo de definio utilizada por um terico qualquer um uso matemtico e um uso filosfico. Logo, uma definio matemtica identificaria um objeto como o nico que sustenta certas relaes com outros itens, presumivelmente j conhecidos224; j a definio filosfica seria aquela que realmente define uma palavra algum oferece o sentido da palavra e, ao menos em alguns casos, este sentido no pode consistir em relaes com outros termos225. Apesar de a definio filosfica ser legitimada pela noo de familiaridade (acquaintance) apresentada pela teoria de Russell, o desenvolvimento interno da matemtica favorecia a argumentao de Poincar, e ainda mais o desenvolvimento terico construdo pelo matemtico alemo David Hilbert em sua obra Fundamentos da Geometria (Grundlagen der Geometrie), de 1899. Nesta obra, Hilbert executa um programa intelectual que marcou, por um
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lado, o fim do papel especial reservado intuio no desenvolvimento da geometria, e, por outro lado, o incio para a importante rea da metamatemtica (Shapiro considera inclusive que o estruturalismo no nada mais do que um corolrio a estes desenvolvimentos226). Para excluir a intuio do pensamento geomtrico, pensa Hilbert que seria suficiente a formulao de um conjunto de axiomas adequado, e, para iniciar os estudos metamatemticos, a demonstrao de sua consistncia. Afirma Hilbert que a geometria, como a aritmtica, requer para o seu desenvolvimento lgico apenas um pequeno nmero de princpios fundamentais. Estes princpios fundamentais so chamados de axiomas da geometria. A escolha dos axiomas, e a investigao de suas relaes com os outros [...] equivalente anlise lgica de nossa intuio espacial227. Ao se privilegiar a anlise lgica frente intuio espacial, se privilegiaria o carter estrutural (e autnomo) dos axiomas frente definio dos termos primitivos, de modo que qualquer coisa poder desempenhar o papel dos termos primitivos (indefinidos), desde que mantenham semelhantes relaes (axiomatizadas). Desta maneira, interessa ao pensamento de Hilbert apresentar um modelo para o conjunto de axiomas geomtricos destacados, ou seja, descobrir se este conjunto
224 225
SHAPIRO 1997, p. 155. Ibidem. 226 Idem, p. 157. 227 HILBERT apud SHAPIRO 1997, p. 157.
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de axiomas satisfazvel em alguma medida. A afirmao de que nesta perspectiva a noo de verdade em um modelo desempenha um papel central no incorreria em exagero, o que aproxima semelhante ponto de vista da teoria dos modelos e dos estruturalismos posteriormente desenvolvidos. Afinal, uma conseqncia da abordagem axiomtica, metamatemtica, que modelos isomrficos so equivalentes. Se h uma funo 1-1 do domnio de um modelo para o domnio de outro, a qual preserva as relaes do primeiro, ento qualquer sentena de linguagem formal que for verdadeira em um, ser verdadeira no outro228. Pois bem, uma pequena divergncia surge neste momento em relao ao que se est considerando como a definio de um primitivo geomtrico e como um axioma e o debate estabelecido entre as figuras de Frege e de Hilbert ocorrer em torno desta divergncia. Para Frege, os axiomas deveriam expressar
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verdades e as definies deveriam oferecer os sentidos e fixar a denotao de certos termos229, isto , ele procura advertir Hilbert de que as definies deveriam fixar o sentido de determinados termos com o auxlio de outros j conhecidos, e de que, em contraste, os axiomas e os teoremas no devem conter uma palavra ou signo cuja [...] contribuio para a expresso do pensamento no esteja completamente estabelecida, pois somente deste modo no haver dvida sobre o sentido da proposio e sobre o pensamento que ela expressa. [...] Assim, os axiomas e os teoremas podem nunca tentar estabelecer o sentido de um signo ou palavra que neles ocorrem, mas este j deve estar estabelecido230. E isto porque, para ele, se os termos utilizados na formulao de um axioma no possuem um significado anteriormente fixado, os axiomas no podero ser verdadeiros ou falsos e, por conseguinte, no podero ser axiomas. Esta argumentao foi veiculada em uma carta enviada para Hilbert ao final do ano de 1899, foi e devidamente respondida por este apenas dois dias depois. Em sua resposta, Hilbert transmitia a Frege a sua compreenso das relaes lgicas, a qual desprezava a definio dos conceitos bsicos e que Frege, pioneiro dos estudos em lgica-matemtica, deveria apreciar. Afirmava-se assim que era
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SHAPIRO 1997, p. 159. Idem, p. 161. 230 FREGE apud SHAPIRO 1997, p. 161.
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claramente bvio que toda teoria apenas uma disposio ou um esquema de conceitos unidos por suas relaes necessrias entre si, e que os elementos bsicos podem ser pensados de qualquer modo, ou seja, independentemente das especficas definies que um conceito pode receber, o que os axiomas de uma teoria precisam garantir a permanncia das relaes lgicas que se estabelecem entre eles. E Hilbert prossegue afirmando que se os axiomas arbitrariamente dados no contradizem um ao outro em todas as suas conseqncias, ento eles so verdadeiros e existiro as coisas definidas por eles231. Este seria o seu critrio para verdade e existncia. A resposta de Frege, com a apreciao esperada por Hilbert, no tardou. Ela manifestava a compreenso do projeto de Hilbert na carta subseqente, bem como louvava o fato de que Hilbert procura separar a geometria da intuio espacial e desenvolv-la como uma pura cincia lgica tal como a aritmtica232.
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Para ele, no entanto, a determinao da identidade de um objeto pelos axiomas (um eco do problema de Jlio Csar) ainda permanece em aberto, pois o sistema axiomtico de Hilbert seria anlogo a um sistema de equaes, permeado por diversas variveis inter-relacionadas. Isto significa que a axiomatizao de Hilbert no ofereceria as condies necessrias e suficientes para a consolidao de um nico elemento, mas sim as condies necessrias e suficientes para a consolidao de um sistema de elementos (o qual, no caso, bem poderia ser a geometria euclidiana), relacionados de uma determinada maneira. Ou seja, o tratamento axiomtico de Hilbert conteria, para Frege, uma descrio satisfatria de certas relaes de segunda ordem, fato que o fez transformar a noo de definio implcita utilizada por Hilbert na noo de definio explcita (aplicada a conceitos de segunda ordem) nos trabalhos que dedica geometria aps esta discusso. Shapiro considera que Frege e Hilbert, mais do que permanecerem em suas posies originais, travaram uma discusso na qual se tentava chegar a uma posio comum a ambos, diferentemente do que ocorrera no debate entre Poincar e Russell. Obviamente, eles no modificaram as teses centrais que orientavam suas posies, as quais seriam, para Hilbert, o fato de que aos principais
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HILBERT apud SHAPIRO 1997, p. 162. FREGE apud SHAPIRO 1997, p. 163.
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conceitos definidos so atribudas diferentes extenses em cada modelo233 (tese capturada pela noo contempornea de um termo no-lgico, tal como definida por Tarski); e, para Frege, o fato de que o sentido de uma expresso determina completamente sua referncia234 (fixidez da referncia), relacionado com o proposicionalismo (toda sentena bem-formada em uma teoria matemtica efetua uma rgida assero sobre uma rgida coleo de conceitos e objetos. Cada proposio possui um valor de verdade determinado pela natureza das referncias dos objetos e conceitos235). Shapiro ento dedica algumas breves pginas ao desenvolvimento da aritmtica efetuado por Frege em seus Grundlagen, com o objetivo de retirar a estranheza que poderia causar a subscrio, por parte de um estruturalista ante rem, de teses como a fixidez da referncia e o proposicionalismo. Obviamente, sublinha-se o fato de que Frege, ele prprio, jamais sustentou qualquer teoria de matiz estruturalista, e para levar a cabo esta
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aproximao se modificaria, em alguma medida, o clssico programa fregeano. Shapiro acaba por esboar algumas consideraes at o momento em que afirma que para se localizar um precursor do estruturalismo ante rem deve-se retornar um pouco e olhar para outro logicista, Richard Dedekind236.
Nascido na cidade alem de Braunschweig, a carreira de Richard Dedekind no possui grandes mudanas ou lacunas. Diplomado pelo Collegium Carolinum na metade do sculo XIX, ele se matricula na Universidade de Gttingen para obter seu doutorado com uma tese sobre a teoria dos integrais de Euler, o qual transcorrer sob a superviso do prncipe dos matemticos Carl Friedrich Gauss. Em seguida, ele ingressa no quadro de professores da Escola Politcnica de Zurique antes de obter uma ctedra no mesmo Collegium Carolinum pelo qual se diplomara. Neste colgio permanecer por trinta e dois anos, amadurecendo e desenvolvendo lentamente sua obra intelectual da qual se
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destacar, para os fins aqui propostos, alguns excertos de sua longa correspondncia e seus dois famosos ensaios: o primeiro publicado em 1872 sobre a natureza da continuidade, intitulado Stetigkeit und irrationale Zahlen, e o segundo publicado em 1888 sobre a natureza dos nmeros naturais, intitulado Was sind und was sollen die Zahlen?. A atribuio de um carter logicista ao seu conjunto de escritos decorreria assim de um duplo movimento observado em sua obra: por um lado, a recusa da intuio nas provas oferecidas em aritmtica, e, por outro, a considerao da aritmtica e da anlise como resultados diretos das leis do pensamento. O primeiro movimento, deste modo, pode ser observado no prefcio ao artigo de 1872, no qual se procura reservar para a intuio geomtrica (Anschauung) um carter pedaggico, e no mais demonstrativo, em relao a noo de continuidade. J o segundo movimento entrevisto no primeiro prefcio ao ensaio de 1888, no qual afirma Dedekind que considera o conceito de nmero
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inteiramente independente das noes ou intuies do espao e do tempo preferindo consider-lo como um produto imediato das puras leis do pensamento237. Ser a partir de seu carter logicista que a teoria de Dedekind poder ser conectada com a argumentao de Benacerraf (em contraposio ao logicismo fregeano), e com o estruturalismo ante rem de Shapiro. Para aproxim-lo de Benacerraf, deve-se mencionar sua correspondncia com Heinrich Weber, na qual a pergunta sobre a possibilidade de identificao dos cortes com os nmeros reais, e das classes equivalentes com os nmeros naturais (quando observados sob o prisma de nmeros cardinais), levantada. A resposta de Dedekind sustenta que, em ambos os casos, existiriam caractersticas prprias aos conceitos de cortes e de classes equivalentes que seriam estranhas aos nmeros, de maneira que a pergunta sobre a natureza numrica no constitui um dos seus objetivos primordiais. Com esta recusa, problemas semelhantes ao problema de Jlio Csar enfrentado por Frege permanecem ausentes do horizonte conceitual dedekindiano. Para aproxim-lo de Shapiro, por outro lado, deve-se esquadrinhar a afirmao de que os nmeros so livres criaes da mente humana, pois pensa Shapiro que diferentemente de outros logicistas, Dedekind no sentiu a necessidade de
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localizar os nmeros naturais e os nmeros reais entre objetos previamente definidos e localizados. Este aspecto crucial da livre criao compartilhado com o presente estruturalismo ante rem238. Obviamente, Shapiro no se interessa por questes exegticas, e afirma Erich Reck que o que ele diz acerca de Dedekind permanece esboado e geral239, pois constitui seu interesse argumentar em defesa de sua prpria posio. Procurarei assim desenvolver brevemente alguns pressupostos de ambas as aproximaes. Primeiramente a considerao de que os nmeros seriam livres criaes. J no ensaio acerca dos nmeros irracionais, afirma Dedekind que a aritmtica sempre foi observada como uma necessria, ou ao menos natural, conseqncia do simples ato aritmtico de contar e contar no seria nada mais do que a sucessiva criao de uma srie infinita de inteiros positivos na qual cada indivduo definido pelo imediatamente precedente; o simples ato passar de um indivduo
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j criado para seu sucessor a ser criado240. Observa-se ento que, a partir deste ato, seguem-se naturalmente as definies das operaes de adio e de multiplicao, pois estas se aproximam da maneira produtiva pela qual o prprio ato de contar se constitui. Com suas operaes inversas, no entanto, o mesmo no ocorre, pois se a soma ou a multiplicao de dois nmeros inteiros positivos sempre redundam em outro nmero inteiro positivo, o mesmo no ocorre com a subtrao e com a diviso. Para solucionar este problema, pensa Dedekind, foram criados os respectivos sistemas dos nmeros inteiros e dos racionais, isto , tais nmeros foram criados para preservar o fecho do sistema numrico sob as operaes bsicas da aritmtica, seja este a possibilidade de se poder obter um nmero (seja natural, inteiro ou racional) a toda aplicao das operaes (excetuando-se a diviso por 0). razovel supor que, em nenhum momento, se procurava inventar um conjunto de novos objetos abstratos para a matemtica com o auxlio deste procedimento, mas sim fazer corresponder a algum sistema o bom comportamento destas operaes (afinal, este sistema deve preservar em sua constituio os sistemas anteriores a partir dos quais fora constitudo). A noo de correspondncia aqui empregada ser fundamental para a compreenso da noo
238 239
SHAPIRO 1997, p. 175. RECK 2003, p. 370. 240 DEDEKIND 2005a, p. 768.
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de criao utilizada por Dedekind, tanto neste ensaio de 1872, quanto no ensaio de 1888, no qual encontra-se presente a afirmao dos nmeros como livres criaes da mente humana241. Quando inicia o tratamento dos nmeros racionais, Dedekind faz uma analogia destes nmeros com os pontos de uma linha reta, isto , sugere que os nmeros racionais correspondem a este conjunto de pontos. Era evidente para ele, contudo, que o nmero de pontos existente em uma reta ultrapassava a quantidade de nmeros racionais disponveis, ou seja, que nem todo corte que se possa fazer em uma reta corresponderia a um nmero racional especfico. A noo de corte (Schnitt) de que ele se utiliza introduzida da seguinte maneira: qualquer ponto que se considere em uma linha, ou qualquer nmero observado no sistema dos nmeros racionais, estabelece uma diviso desta mesma linha, ou deste sistema, em duas classes. Estas classes, em princpio, deveriam apresentar este ponto, ou
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este nmero, como o maior elemento da primeira classe ou como o menor elemento da segunda, ou seja, deveriam se constituir como cortes fechados. O problema ocorre no momento em que se apresentam equaes que resultam em cortes abertos, isto , cortes nos quais no se identificaria tal resultado como o menor nmero da segunda classe ou como o maior nmero da primeira. A estes cortes correspondero, portanto, os nmeros irracionais, sejam eles os nmeros que explicitaro como uma de suas propriedades a continuidade presente na reta ou no sistema real. A continuidade, por sua vez, decorre do fato de que, ao se aplicar em uma reta constituda por nmeros racionais e irracionais a operao de corte, no se identifica nenhuma necessidade de se criar um novo sistema numrico. Como estes nmeros j eram de conhecimento matemtico (desde os pitagricos na antiga Grcia), no incorreria em exagero especular que o carter criativo dos irracionais possui os traos de uma sistematizao em termos puramente aritmticos, em detrimento da aproximao que se poderia fazer da noo de inveno. A fim de aproximar esta noo do estruturalismo proposto por Shapiro, pode-se inclusive considerar que a noo de criao de Dedekind se aproximaria daquela linha epistemolgica proposta entre as noes de definio
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implcita e de construo242, bem como que o fato de no se inventarem novos objetos subscreveria a distino entre uma perspectiva objetal (places-are-objects) e uma perspectiva posicional (places-are-offices) dos objetos abstratos utilizados pela matemtica. A permanncia da diferenciao entre os nmeros irracionais e os cortes efetuados por meio da manuteno do conceito de correspondncia antecipa em parte a possvel aproximao das posies sustentadas por Dedekind daquelas sustentadas por Benacerraf. Para complement-la, deve-se apenas ressaltar que a caracterizao dos nmeros efetuada por Dedekind oferece um largo privilgio ao carter ordinal dos mesmos, em detrimento de uma possvel observao de seu carter cardinal (como Frege pretendera). Em suas palavras,
(1) A sequncia numrica N um sistema de indivduos ou elementos, chamados nmeros. Com isto, somos levados a considerar os sistemas como tais, em seus aspectos gerais (1 do ensaio); (2) Os elementos do sistema N esto inter-relacionados de uma certa maneira; entre eles existe uma determinada relao de ordem que consiste, a princpio, no fato de que para cada nmero n h um outro nmero definido, n, denominado como o seu sucessor ou como o que lhe imediatamente posterior243.
De modo que no ser um problema para Dedekind a determinao ontolgica da natureza numrica, pois somente ser um nmero o objeto que se encontrar na cadeia dos nmeros, isto , somente ser um nmero o objeto que possuir um correspondente no sistema dos nmeros naturais. Ironicamente, como o objeto referido pelo nome de Jlio Csar nela no se encontra, para Dedekind, no haver problema que a este nome seja anexado.
A tranqilidade observada na biografia de Dedekind inexiste na de Nicholas Bourbaki. Poderia at mesmo se dizer que sua trajetria pessoal e intelectual requer um grande flego narrativo. Aliado pois ao respeito e
Erich Reck estabelece uma distino entre a noo de criao utilizada por Dedekind e a noo de construo que ser largamente utilizada pelo intuicionismo pouco depois (cf. RECK 2003, p. 385) 243 DEDEKIND 1967, p. 100.
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importncia que sua obra matemtica adquiriu ao longo do sculo XX, as polmicas nas quais seu nome esteve envolvido tambm foram numerosas. De modo que, para iniciar sua apresentao, Nicholas Bourbaki foi o pseudnimo de um grupo de matemticos franceses que se reuniram ao comeo da dcada de trinta para escrever um novo e moderno tratado de anlise em lngua francesa. Influenciados, porm, pelas estruturas algbricas desenvolvidas por Galois, pela teoria dos conjuntos de Cantor (e alguns trabalhos de Dedekind que lhe auxiliam), e pelo tratamento axiomtico de Hilbert, acabaram por escrever um faranico projeto de redefinio de toda a matemtica. Intitulado Elments de Mathmatique, sua escrita foi distribuda por mais de sete mil pginas (publicadas entre 1939 e 1998), alimentadas pelo desejo de se preservar a unidade fundamental da matemtica. Pode-se entrever semelhante desejo j no ttulo desta obra, pois, por um lado, ela veicula deliberadamente o termo mathmatique no
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singular, quando sua utilizao no plural mais comum em lngua francesa; por outro lado, utiliza-se do termo elments em uma clara aluso obra de Euclides, a qual se constituiu como o paradigma da construo matemtica por muitos sculos. As questes da unidade e da inteligibilidade da matemtica estaro no centro dos interesses do grupo de Bourbaki. De modo que, apesar do pouco espao reservado para os problemas oriundos da filosofia da matemtica em seus textos244, algumas de suas afirmaes permitem uma interpretao orientada para esta direo. E isto bem se aplica ao artigo Larchitecture des mathmatiques. Ser nas linhas deste artigo que Shapiro vislumbrar a noo de definio implcita to discutida, bem como Benacerraf encontrar um correspondente para um de seus pressupostos, aquele que manifesta a diferena de interesses entre um matemtico e um filsofo. Duas teses cujas aproximaes poder ser confeccionadas de forma mais simples do que aquelas apresentadas em relao s teorias de Dedekind. A primeira, de fato, vincula-se diretamente preservao do mtodo axiomtico de Hilbert, ou seja, ao fato de uma axiomatizao oferecer a descrio de um sistema para quaisquer objetos que ocupem os lugares por ela
Jean Dieudonn afirma, inclusive, que em apenas dois momentos da vasta obra de Bourbaki se poderiam inferir posies filosficas. Estas se refeririam sua posio em relao ao princpio de no-contradio e relao da matemtica com a natureza sensvel, constituindo-se como pragmtica em relao quele e anti-dogmtica frente a este.
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designados, permitindo a afirmao de que quaisquer objetos organizados desta maneira respeitam a esta descrio; ao passo que a segunda depende simplesmente da caracterizao da noo de estrutura efetuada por Bourbaki na segunda seo de seu artigo, quando afirma que uma estrutura matemtica se aplica a um conjunto de elementos cuja natureza no se encontra especificada, ou na quarta seo de seu artigo quando afirma que as estruturas so ferramentas para o matemtico. Uma vez discernidas, entre os elementos estudados, as relaes que satisfazem os axiomas de uma estrutura de tipo comum, ele dispe de imediatamente de todo o arsenal de teoremas gerais relativos a estruturas deste tipo245. suficiente recordar, para tanto, a epgrafe de Richard Martin utilizada por Benacerraf e algumas teses por ele veiculada na segunda e na terceira seo de seu artigo. A corrente estruturalista, e a noo de estrutura, por muito tempo foi
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vinculada ao nome de Nicholas Bourbaki. Consoante Leo Corry, porm, esta noo possui um duplo sentido no discurso matemtico de Bourbaki. Por um lado, versa sobre um esquema organizacional geral, que concebe o conjunto das disciplinas matemticas em termos hierrquicos. [...] Por outro lado, refere-se ao conceito matemtico formal, estruturas, sobre o qual este grupo provou alguns resultados em alguns captulos de seu tratado246. Um estudo sobre a maneira pela qual os mais diversos problemas formulados por Benacerraf e por Shapiro (bem como outras questes deixadas por Dedekind, Cantor, Hilbert e Poincar) foram trabalhados em sua obra monumental com o auxlio de semelhante noo mereceria para si um estudo especfico, em funo das muitas tcnicas matemticas envolvidas e das implicaes filosficas que delas se poderiam inferir. A fim de encerrar a aproximao entre as figuras de Dedekind, Bourbaki, Shapiro e Benacerraf, destaco a imagem utilizada por Bourbaki para descrever a geografia da matemtica com o auxlio das correes indispensveis proporcionada pela incluso da noo de estrutura (com a inteno de justificar a utilizao do ttulo da obra de Kevin Lynch247 neste terceiro captulo):
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tal uma grande cidade, cujos subrbios no param de crescer de maneira um pouco catica sobre o terreno circundante, enquanto que o centro se reconstri periodicamente seguindo um plano cada vez mais claro e uma disposio cada vez mais majestosa, jogando abaixo seus velhos bairros e suas ruelas labirnticas, para lanar at a periferia avenidas mais diretas, mais largas e mais cmodas248.
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