Moda e Arte - Atravessamentos, Influências e Rupturas - Charbelly Estrella
Moda e Arte - Atravessamentos, Influências e Rupturas - Charbelly Estrella
Moda e Arte - Atravessamentos, Influências e Rupturas - Charbelly Estrella
Charbelly Estrella
Apesar de muitos autores relacionarem diretamente, e, s vezes, exclusivamente o fenmeno
da moda ao vesturio, tomaremos como premissa que a moda uma dinmica moderna
de agenciamento da vida coletiva e de suas formas de fgurao social, nas quais o vesturio
tornou-se a mais privilegiada delas. Neste sentido, a moda ser abordada aqui como
um sistema de gerenciamento das formas coletivas de produo e consumo. Portanto,
s podemos entender a moda como fenmeno emergente de uma sociedade moderna
industrializada e urbana.
A idia de um sistema da moda se torna material, social e economicamente possvel a
partir de condies fomentadas no sculo XIX a modernizao das cidades europias, a
ampliao dos campos de uso da tcnica e a emergncia de uma sociedade de massa. Assim,
a concepo de uma vida administrada pela racionalidade produtiva est absolutamente
alinhada com a consolidao da chamada indstria da moda.
Em seu texto clssico Fashion, Georg Simmel (1971, p. 294) apresenta uma tessitura das
formas sociais expressa nas articulaes da moda. O autor defende que a moda serviu a uma
busca pela distino individual na sociedade moderna urbana, colaborando com a construo
de uma tipologia social. Da mesma maneira, o sistema da moda funcionou como uma
forma aplicada do racionalismo produtivo, produzindo e reproduzindo identidades e
hierarquias a partir da maneira pela qual o indivduo, e grupos de indivduos, agenciavam as
possibilidades de construir sua aparncia, sua forma de apresentar-se publicamente, atravs
de cdigos de vestimenta e dos adornos do corpo em geral.
Com essa abordagem sociolgica, Simmel nos d a pista central do problema que a moda
representaria na engrenagem moderna o agenciamento social das formas do parecer, ou
seja, como cada indivduo seria capaz de conjugar as suas possibilidades individuais de
apresentao pblica com os padres coletivos de organizao social. Isso signifca que os
indivduos inseridos em diferentes classes sociais deveriam conhecer os cdigos de distino
social que eram articulados na aparncia das pessoas.
Ao levantarmos essas questes, pode parecer que eliminamos a possibilidade de uma
relao mais ntima entre o universo da moda, que despontava na Europa em fnais do
sculo XIX, e a Arte Moderna. Mas, ao contrrio do que possa parecer, a Moda s pde se
assumir como uma dinmica de rupturas formais a partir de sua negociao com o campo
da arte. Em resposta racionalidade produtiva dominante na sociedade industrial, surge
uma dinmica cultural que agencia duas dimenses temporais confitantes: por um lado,
um valor espiritual, atemporal, ligado tradicionalmente arte; por outro lado, o agora,
difundido pelas tcnicas de produo seriada e pela agenda do cotidiano urbano2
1
. Ou seja,
o valor nico e as tcnicas de reproduo em massa. O gnio e o homem-mdio.
possvel observar, por exemplo, como vrias manifestaes artsticas lanaram mo do
vesturio para fomentar seu espectro conceitual, desde as experimentaes do Futurismo
ao movimento Punk londrino. o caso de fgurinos criados por alguns artistas, que podem
ser tomados como apresentao de um vocabulrio visual passvel de ser aplicado em
outros suportes, em outros meios. Este texto, portanto, tratar a dinmica da moda sob
os dois aspectos aqui indicados: o primeiro o que diz respeito sua funo social, sua
importncia como dispositivo de controle e condicionamento da fgurao pblica, prprio
das sociedades disciplinares europias do sculo XIX e da primeira metade do sculo XX.
1 Para debate mais amplo sobre essas transformaes, ver Richard Sennett (2002).
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O segundo, que receber maior nfase, o que diz respeito s especifcidades formais do
parecer, das tcnicas de produo do vesturio, da aplicao de novos materiais e das relaes
entre as novas formas de se vestir e a dinmica da arte.
Para que se contemplem esses dois aspectos, este texto tratar primeiro da dinmica da
moda numa sociedade urbano-industrial. Em seguida, ser focalizada a infuncia defnitiva
de alguns movimentos artsticos nas artes aplicadas, a partir da ampliao do campo da
arte promovida pelas correntes modernistas, conjugando um carter formal produo de
objetos de toda ordem, que passaram a invadir o cotidiano do cidado comum.
1. Indivduoesociedade:osextremosdaModa
A noo de moda relaciona-se diretamente com as possibilidades individuais de
apresentao pblica e os padres coletivos de organizao social. Sendo assim, s podemos
pensar historicamente o conceito de moda quando pensamos no prprio conceito de
indivduo e sociedade. Tais conceitos surgem no sculo XVIII, ao mesmo tempo em que
possvel perceber transformaes profundas nos dispositivos de controle social. Norbert
Elias3
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aponta para a consolidao do Estado Moderno e de como esse poder poltico,
burocrtico e institucional contou com instrumentos valiosos na construo do indivduo
moderno os cdigos de conduta, as regras de etiqueta como agenciadores e mediadores
de uma vida pblica organizada.
Outro autor importante na anlise desse processo Michel Foucault. Ao cunhar o conceito
de sociedades disciplinares
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, Foucault (2002, p. 117) aponta que o conceito de indivduo
prprio de uma etapa histrica, os sculos XVIII e XIX, na qual os dispositivos de controle do
coletivo se estabelecem a partir da tcnica de vigilncia o panptico. Para o autor, o poder
deixa de ser repressivo para ser condicionante, ou seja, deixa de ser brutalmente punitivo
para se tornar vigilante. O indivduo surge quando o sujeito no apenas se percebe como
alvo do poder, mas tambm internaliza a vigilncia, prpria de uma sociedade de produo
em massa. O indivduo, para Foucault, efeito de um tipo de poder, um poder internalizado
sob a forma de vigilncia constante. Nesse sentido, a dicotomia indivduo-massa central
para a concepo da sociedade moderna e atravessa, da mesma forma, os debates sociais e
estticos capitaneados pelos movimentos vanguardistas do incio do sculo XX.
A moda , em larga medida, conseqncia de uma sociedade disciplinar que credita nos
dispositivos de condicionamento do comportamento do indivduo sua principal fora para
fazer a grande mquina produtiva funcionar. Mas, como bem destaca Foucault, a grande
vantagem estratgica dessa forma de controle ser positiva, ou seja, ela no promove
capturas foradas, mas seduz, convoca a participao individual, ou seja, as disciplinas
induzem a fragmentao e a participao no coletivo como movimentos de uma mesma
dinmica social. Mas o que isso tem a ver com o universo da moda? Podemos dizer que,
a priori, o grande papel social das roupas, ao fnal do sculo XIX, foi a fgurao de um
condicionamento social de uma nova forma de poder econmico que se consolidava na
Europa o capital industrial.
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Norbert Elias aborda a formao do Estado Moderno e como isso interferiu diretamente sobre o comportamento dos
indivduos nas obras O Processo Civilizador (1993; 1994) e Sociedade dos Indivduos (1997).
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Para Foucault as disciplinas so possveis a partir do momento em que o corpo reconhecido como alvo e objeto
de poder. O autor defende as disciplinas como dispositivos de docilizao dos corpos, ou seja, numa sociedade capi-
talista industrial o poder exercido a partir do estmulo ao corpo produtivo e ao esvaziamento de sua vontade poltica,
evitando assim a prpria revoluo. A preocupao com a aparncia, operada pela moda, pode ser entendida como um
desses dispositivos na produo de corpos dceis. Para este debate ver Foucault (2002, p. 117-192).
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De uma funo elementar de proteo do corpo, as roupas passaram a servir, numa
sociedade civilizada, sobretudo ao agenciamento social do indivduo na coletividade.
Portanto, as roupas serviam para disciplinar os corpos e, assim, inseri-los no jogo social
do coletivo urbano e, acima de tudo, permitir as pequenas distines sociais. Com isso, as
roupas se tornaram as principais aliadas da hierarquia social moderna a partir dos tipos de
tecidos, dos modelos nicos, dos discretos cdigos de diferenciao o n das gravatas, a
forma de amarrar as botinas ou de fechar os botes das casacas.
A moda se estabelece como uma pedagogia do tempo, de um lado difunde maciamente as
novas formas visuais e os novos elementos artsticos, por outro presta tributo ao prprio status
quo. A vigilncia estabeleceu suas regras nos cdigos de etiquetas que se multiplicaram por
todo o sculo XIX, uma espcie de academicismo das formas de convvio social. A idia de
estetizao da vida cotidiana fez surgir fguras alegricas, como o dndi. Podemos entender
que a moda estabeleceu pontos decisivos de contato com o processo de modernizao das
cidades europias, pois se confgurou como elemento agenciador entre os corpos modernos
e seu novo espao de ao a cidade moderna.
possvel ver claramente a funo social que a produo orientada de trajes assume a partir
da dcada de 1870, com o surgimento das casas de costura, o que em pouco tempo viria a se
tornar a chamada Alta Costura. Alm da produo de modelos nicos, nesse contexto que
comeam a ser produzidos em larga escala utenslios para a toalete cotidiana, a proliferao
dos espelhos sem funo decorativa, mas como instrumentos que auxiliavam a preparao
do indivduo para a vida pblica na cidade
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. Portanto, o chamado sistema da moda
o enunciado da percepo de uma relao bastante complexa que aforava entre corpo e
cidade moderna. A roupa deixa de ser apenas um bem utilitrio e assume a insgnia de seu
tempo a idia de um fgurino urbano.
No incio do sculo XX, as Casas de Costura, que formavam a denominada Alta Costura,
eram o que de mais prximo existia do universo artstico moderno. O surgimento das casas
de Alta Costura e dos grandes costureiros, como Charles Frederic Worth, Paul Poiret, Jean
Patou e Coco Chanel, entre outros, acabou por conferir produo das roupas e acessrios
o lugar privilegiado de criao artstica