Abismos Do Tempo - Lucio Manfredi

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Lúcio Manfredi

Lúcio Manfredi

Rio de Janeiro
2003
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Ilustração da capa: Flussland, pintura de Adolf Hitler.


Dia cinzento, uma garoa fina cai sobre as ruas de Paris. Num café, às margens do
Sena, McGregor Mathers observa as configurações que as nuvens adotam levadas pelos
ventos, procura ler a assinatura das coisas na natureza, hieróglifos, mensagens, cifras.
Diante do homem de meia-idade, um cálice de absinto pela metade talvez explique como é
fácil para ele encontrar no céu as respostas que procura, os olhos esgazeados, mente que
oscila entre a depressão e a excitação maníaca. Os transeuntes sob a chuva são vultos que
mal se destacam contra o pano de fundo, sombras em parede de caverna, mero redemoinho
no turbilhão mais vasto que é a vida de Mathers. Seu olhar escorrega das nuvens para o
envelope sobre a mesa, uma mancha de absinto e tinta borrando o canto do remetente, o
último r de Farr quase desaparecendo numa névoa translúcida. Florence Farr, repete em voz
alta, atraindo a atenção de uma senhora que, na mesa ao lado, julgou-se chamada. Talvez
seja a sina de Mathers, ser traído pelas mulheres nas quais deposita sua confiança. Talvez
seja o amante de Farr, aquele irlandês ateu, com suas peças cheias de idéias profanas, que
está enchendo a cabeça de Florence. Talvez apenas a má sorte. Seja como for, é evidente
que Florence e Mathers não estão mais de acordo sobre os caminhos que a Ordem deve
seguir dali por diante. Aquela atrizinha de segunda a quem ele, num arroubo de desejo do
qual agora se arrepende, transformou em sua representante pessoal na Inglaterra, Principal
Adepta da Seção de Ânglia, e que agora tem o desplante de perguntar se não seria o caso de
encerrar a Ordem.
Estende a mão para o absinto, espera que o amargor da bebida suplante a amargura
em sua alma. Com o cálice suspenso no ar, a meio caminho da boca, repara que está sendo
observado. Um jovem de olhos flamejantes o encara do lado de lá da rua, sem se importar
com a chuva que respinga nos cabelos rebeldes. Quando vê que Mathers o notou, adianta-
se, atravessa a rua e vai até a mesa. Mathers estremece, a paranóia ainda não nomeada pela
psiquiatria se agita no cérebro nublado. Poderia ser um agente de Westcott, um assassino
encarregado de eliminá-lo, a fim de que o coronel pudesse retomar sua posição junto à
Aurora Dourada. É bem verdade que, com Mathers caído em descrédito, sua morte em nada
beneficiaria Westcott, mas Mathers tende a se julgar mais importante do que é, um joão-
ninguém exilado, nem metade do homem que já foi.
— Permita que eu me apresente. — diz o jovem, puxando uma cadeira e sentando,
sem esperar pelo convite de Mathers. — Sou um estudante do conhecimento oculto e dos
ensinamentos secretos. Meu nome é Aleister Crowley.
Mesmo mergulhado na embriaguez, Mathers não deixa de reparar na arrogância com
que o outro pronuncia o próprio nome, como se cada palavra fosse uma lâmpada eterna
brilhando na noite escura da alma. Parece esperar que Mathers reconheça o nome, preste
um tributo à grandeza de seu portador, mas Mathers nunca ouviu falar em Crowley antes.
Nem Mathers, nem ninguém.
— R. R. et A. C. — prossegue o jovem.
Então é isso. Um adepto de Segundo Nível. Suas suspeitas estavam certas, é um
agente da seção britânica da Aurora Dourada e sua presença só pode significar problemas.
— Na verdade, não sou propriamente um adepto. Tenho todos os requisitos e
qualificações, mas eles não querem me iniciar em Londres.
Mathers ergue os olhos para Crowley, que é ele para Hécuba ou Hécuba para ele? De
fato, sente-se cheio de Londres, do Templo Ísis-Urania, da própria Aurora Dourada. Pode
ser que Farr tenha razão, às vezes tem vontade de virar as costas para tudo, deixar que o
absinto o leve para outros mundos, onde não precise aturar burocratas do espírito e
funcionários públicos da alma.
— Quero que você me inicie.
Mathers arregala os olhos, surpreso.
— Como fundador da Aurora Dourada, você tem esse poder. Não tem?
O homem mais velho não responde. Acaba de lhe ocorrer que ele e Crowley estão em
situações parecidas, ambos rejeitados pela mesma organização. Mas o jovem está certo.
Mathers é co-fundador da Aurora Dourada. Ainda dispõe de um resto de autoridade. E
Crowley bem pode ser o instrumento que amplificará essa autoridade, colocará Mathers
novamente no controle da situação. Leva o cálice aos lábios, sorri. Algures, no alto, a chuva
começa a diminuir.

Crowley ergue os olhos para o alto, o Sol e a Lua ferem suas retinas. Um homem com
cabeça de falcão o encara com expressão de fúria numinosa. Sombras aleatórias movem-se
ao redor do caixão. Os braços cruzados sobre o peito começam a formigar, ele tem vontade
de se mexer, esticar as pernas, mas sabe que deve permanecer numa imobilidade
irrepreensível. Detrás dele, uma voz cavernosa, nem parece o velhote alquebrado do café,
entoa:
— Recua, Hai, que és impuro, que és a abominação de Osíris, Toth cortou-te a cabeça
e eu fiz em ti todas as coisas que a companhia dos deuses ordenou em relação ao trabalho
da tua matança.
Deitado no caixão, ele começa a sentir uma espécie de surdo tremor, como se a
madeira sob suas costas vibrasse. Indiferente às sensações do homem que jaz feito morto, a
voz de Mathers prossegue:
— Sois santos, todos vós, ó deuses, e derrubastes de ponta-cabeça os inimigos de
Osíris. Os deuses de Ta-ur gritam de alegria.
Crowley não ouve nenhum grito, mas tem a repentina impressão de que já conhece
essas palavras, de que conseguiria repetir cada sílaba antes mesmo que saísse da boca do
oficiante.
— Recua, ó Comedor do Burro, abominação do deus Ahu, que reside no mundo
inferior. Conheço-te, conheço-te, conheço-te. Quem és tu? Sou...
Quem Mathers é, qual divindade egípcia estará personificando, jamais se saberá. No
espaço entre duas frações de segundos, a cripta está cheia de homens armados que logo
imobilizam o velho, ridículo prisioneiro em trajes de sacerdote egípcio. Crowley levanta-se
do caixão de um salto, os membros adormecidos berrando em protesto contra o movimento
forçado, o próprio caixão agora convertido em projétil, arremessado sobre os invasores.
Eles atiram a peça para o lado, bruscamente. O caixão cai sobre a estátua de Hórus, que
tomba no piso frio da cripta e se quebra em brilhantes fragmentos de porcelana, centelhas
de espírito em choque com a matéria gnóstica.
Aproveitando-se da confusão, Crowley aproxima-se de um dos invasores, derrubado
pela cabeça de falcão. Enfia a mão em seus bolsos, de onde saca um cartão e uma pequena
caixa, digita uma seqüência de números e desaparece feito ilusão de ótica que se dissipa.
Uma fração de segundo antes de seu sumiço, os invasores apontam as armas para ele, mas
então não há mais ninguém para onde apontar, exceto o ar tremeluzente que paira sob as
duas lâmpadas no teto, simulacros do Sol e da Lua.
Eu sou a Besta do Apocalipse, o devorador de mundos, sou o princípio e o
fim, a serpente do paraíso, Shaitan e Aiwass, a força que cria e destrói universos, o
primeiro nome a ser pronunciado, o último a ser esquecido, sou a memória de tuas
verdadeiras origens e o cântico que entoaste ao despencar das alturas celestiais,
sou o espírito da alma do mundo, o guardião dos segredos, o verdadeiro Deus que
se ergue sobre Deus. Eu Sou.
Encontro-te entre vetustas relíquias da primeira civilização do mundo, em
corredores sombrios que refletem o teu vulto no piso encerado, estátuas de deuses,
imagens dos teus carcereiros, dos vossos carcereiros que ignorais, humanidade
escrava, autômatos de relojoeiro, títeres nas mãos dos arcontes, pobres vítimas de
uma conspiração que se estende até a aurora dos tempos, aurora dourada, aurora
das vítimas e dos carniceiros, aurora do gado tangido, do grito de morte, do
espanto silenciado. E vós, criados para obedecer, vossas faces esmagadas pelo
tacão impiedoso dos tiranos, vós que acreditais existir e caminhar e comer e
respirar, não passais de sombras numa caverna platônica, simulacros de seres
livres, fantasmas. E no entanto, em vós jaz a centelha da liberdade que almejais
sem saber. O livre-arbítrio, a escolha. A possibilidade de escapar às cadeias da
fatalidade, substituir o destino cego pela ação aleatória, randômica, indeterminada.
Quero tocar essa semente em vossas almas, me alimentar do turbilhão de acasos
que traçais com vossos passos, me regozijar com cada imprevisto lançado à face
dos arcontes que hoje são vossos algozes. Mas para isso preciso de ti, garoto que
caminha pelas salas catacúmbeas deste museu, que pára diante desse relevo e
contempla o homem com cabeça de falcão e arregala os olhos ao ver o número da
estela, o meu número, o teu número. O número da Besta.

Temos um psicopata à solta no tempo, pensou Yeats, não podia evitar de pensar,
enquanto seus olhos deslizavam pelo relatório na tela do computador. Tão evidentemente
louco que seria melhor nem ter nascido. Talvez fosse essa a saída, voltar ao instante da
concepção, impedir que Papai Crowley despejasse o sêmen no ventre úmido de Mamãe
Crowley.
— Não podemos, não. — cortou M, a voz de barítono introduzindo-se na mente de
Yeats e estourando suas fantasias de vitoriano sexualmente reprimido como um balão de
gás. — Não podemos desnascer Crowley, nem retirá-lo do contínuo, nem levá-lo à Prisão
dos Homens que Nunca Existiram.
— Por quê? — Yeats voltou-se na cadeira e encarou seu chefe, o rosto vermelho de
vergonha, provavelmente misturada com um resto de excitação. O retorno do recalcado.
Introduza um vitoriano no contexto mais amplo da Intempol, mostre-lhe que seus tabus são
historicamente condicionados, não refletem nenhuma verdade natural sobre o sexo. e você
estará criando um erotomaníaco. Não importa, claro. Contanto que ele não atrapalhe o
desempenho das missões, perdendo tempo em perseguir jovens ninfetas que fotografam
fadas. Mas esse era outro agente, lembrou M.
M, chefe do Departamento M, levantou-se de sua mesa e foi até Yeats. Metido
naquele terno cafona, gravata vermelha e tudo, nem parecia o poderoso mago que
efetivamente era. Não fosse a imponente barba branca, nada restaria da imagem tradicional,
chapéu cônico e manto azul, perpetuada até nos desenhos animados.
— Crowley é um homem perigoso. — explicou, mão no ombro de Yeats. — Sofre do
que os psiquiatras do século XX vão chamar de esquizofrenia paranóide. Na Idade Média,
diriam que ele está possuído pelo demônio. E acredite, não sei qual dos dois diagnósticos é
o mais acurado.
Yeats estremeceu. Como filho do século XIX, acostumara-se a encarar com ceticismo
essa história dos demônios. Como celta, sua memória racial se agitava com a lembrança de
espíritos e poderes que pairam além da fímbria da consciência. M tornou a rir.
— Não pense em chifres e cascos, meu amigo, não se deixe levar pela tua imaginação
poética. Crowley foi possuído, sim, mas por um arquétipo. Seu ego foi totalmente engolido
e ele se encontra num estado de inflação psíquica.
Era engraçado ver o maior mago de todos os tempos falar como se fosse Freud. Para
Yeats, magia evocava cerimônias realizadas nas clareiras das florestas, à sombra de antigos
menires, homens e mulheres rodopiando ao som de canções que não eram deste mundo,
roupas no chão, paus e peitos e vulvas balançando ao luar, enquanto prestavam reverência a
um sacerdote com cabeça de bode. Mas não havia nada disso naquele escritório,
escrivaninha e mesa e computador, cadeiras estofadas, a única referência à magia era a
tabuleta pendurada na parede: Qualquer tecnologia suficientemente avançada não pode ser
distinguida da magia.
— Se é assim, — disse — continuo não entendendo porque não podemos
simplesmente eliminá-lo.
— Porque, louco ou não, Crowley é uma peça-chave na história do século XX. —
explicou M. — Se fizermos com que Crowley nunca tenha existido, o contínuo sai dos
trilhos.

Aleister recua diante do vulto imenso que avança para ele. Seus passos ecoam pela
Sala Egípcia do Museu Britânico, reverberam na cabeça do garoto e envolvem o
desconhecido com uma aura de numinosidade.
— Não tenha medo. — ele diz. Há algo de profundamente familiar naquela voz
tempestuosa, uma nota que Aleister pensa ouvir todos os dias, mas que não consegue
reconhecer de imediato. É o bastante, porém, para tranqüilizá-lo e deixar que o outro
chegue perto. Aleister se dá conta de que o homem nem é tão imenso quanto parecera, é
pouco mais alto que ele próprio. São os olhos, enormes e flamejantes, e a calva imponente
que lhe dão o ar de uma aparição demoníaca.
— Você trabalha no museu? — Aleister percebe a estupidez da pergunta assim que
ela escapa de seus lábios. Não, idiota, é claro que não. Acha que ele vestiria essa túnica
preta se trabalhasse no museu? Mas é preciso dizer alguma coisa, qualquer coisa, contanto
que as palavras quebrem o encanto daquele olhar hipnótico, que cerca a consciência de
Aleister, envolve-a por todos os lados e ameaça tragá-la numa voragem para onde ele não
sabe se quer ser arrastado, não obstante a tentação da vertigem, a atração do abismo.
— Não. — responde o outro. — Eu não trabalho no museu. Mas, sim, você pode
dizer que sou uma espécie de guardião.
— Que tipo de guardião?
O homem calvo gargalha.
— Eu guardo o conhecimento. Um conhecimento que Eles não querem ver
divulgado. Um conhecimento que será teu no devido tempo.
— E-e-eles? — Aleister gagueja ao pronunciar o pronome, nem sabe porquê. —
Quem são eles? E que conhecimento é esse que eles querem esconder?
— Eles são os teus inimigos. Aqueles que sabem a teu respeito mais do que você
mesmo. Para Eles, a ignorância é o maior bem da humanidade.
Aleister desvia o olhar dos olhos do outro, seus olhos recaem sobre a estela nº 666,
sobre os olhos de falcão de Hórus.
— É você. — diz o homem.
— Hórus? — espanta-se Aleister.
— O 666. A Besta do Apocalipse. É você.
A voragem avança e traga o jovem Aleister.

Samuel McGregor Mathers não sabe quem são seus captores, mas desconfia. É bem
verdade que suas roupas não fazem pensar nos Superiores Desconhecidos. Apesar do corte
estranho, não passam de ternos negros, o último traje que se esperaria ver numa criatura de
transcendente sabedoria. Mas o modo inesperado como se materializaram no meio do
templo, o ar de autoridade que emana de seus olhos, a certeza de serem obedecidos que se
desprende de suas vozes, tudo faz com que ele pense que, finalmente, está face a face com
iniciados do Terceiro Nível. Apesar do medo, um frêmito de satisfação percorre sua
espinha. Afinal, o manuscrito estava certo. Existe um Terceiro Nível de iniciação, e o fato
de seus membros terem vindo até ele só pode significar uma coisa. Que sua iniciação ao
Segundo Nível foi aceita.
— Vossas Santidades são do Terceiro Nível? — arrisca-se a perguntar, imprimindo à
voz o máximo de reverência que consegue reunir.
Dois dos seis homens se entreolham e sorriem.
— Vossa Santidade é o papa. — diz o primeiro, que parece o líder do grupo. — E nós
somos do Nível Cinco.
Mathers engole em seco. Jamais ouvira falar de um Nível Cinco. Achara que três era
o grau máximo a que se podia chegar, supunha mesmo que os iniciados do Grau Três já
nem fossem humanos, mas espíritos incorpóreos, habitantes do Plano Astral.
— O que você e esse Crowley combinaram?
O tom ríspido da fala afasta qualquer pensamento do astral e veleidades etéreas.
— Como disse? — o choque é tão brusco que Mathers não consegue entender as
palavras.
— Qual era o plano de vocês? Pra depois da iniciação?
Não responder, mentir, nem passa pela cabeça de Mathers. São adeptos do Terceiro
Nível, certamente saberiam se ele faltasse com a verdade.
— Eu nomeei Crowley meu representante pessoal. Ele ia para Londres. Retomar a
Aurora Dourada.
O líder chama um dos seis homens com um gesto.
— Entra em contato com o Departamento M — ordena. — E diz pro Velho que a
gente continua no CET.

Eu sou você amanhã. As últimas palavras do homem calvo retornam à mente de


Aleister enquanto ele veste o kilt. Você compreenderá tudo mais tarde, tinha dito antes.
Aleister, então um rapazote de dezoito anos, não entendera nada das instruções do homem
calvo. Nem das instruções, nem do resto. Aquela estranha arenga sobre ele ser a Besta do
Apocalipse, sua missão de combater a tirania dos arcontes, as palavras não faziam o menor
sentido. Em dado momento, o desconhecido citara o evangelho de João. E conhecereis a
verdade, e a verdade vos libertará. Parecia um louco, um demente. Mas suas previsões
acabaram se mostrando surpreendentemente acuradas. Aleister viajara pelo mundo inteiro,
não porque o outro dissera para fazer isso, mas porque satisfazia seu espírito aventureiro. E
em cada ponto especificado, encontrara fragmentos daquele conhecimento que o homem
calvo lhe prometera. Um conhecimento sinistro, assustador, que falava de manipulações da
história e da própria realidade, que mostrava os homens como joguetes nas mãos de
entidades que decidiam o destino levando em conta unicamente seus inescrutáveis
objetivos. (Os gnósticos chamavam essas entidades de arcontes, diziam que os arcontes
eram os criadores deste mundo, mas que este não era o mundo verdadeiro, era uma ilusão,
uma armadilha destinada a manter a humanidade nas trevas da ignorância.) A
confirmação definitiva viera há poucos dias, naquela tarde chuvosa. Aleister estava em
Paris, como o homem calvo dissera que estaria, e encontrou Mathers no café, como o
homem calvo dissera que encontraria. Assim, o homem calvo sabia do que estava falando.
Assim, mesmo sem entender, Aleister veste o kilt e pendura a gaita de foles no ombro.
Seus olhos lentos percorrem o tampo da mesa, mas não sentem que ela está lá.
Poderia ser uma alucinação, miragem, a mesa dos filósofos. Ele não se espantaria se, de um
momento para o outro, ela se pusesse a dançar no meio da sala, trazendo mensagens de
espíritos e charlatões. O vento agita as janelas, uiva lá fora, e quem entenderá sua
linguagem, decifrará o que ele diz com as batidas violentas que enceta? O homem calvo
estende a mão para o cofre sobre a mesa, sabe que com aquele único gesto estará
amarrando dois instantes no tempo, não será contra isso que o vento protesta, contra essa
torção que violenta o devir, seu uivo é o grito de dor dos arcontes feridos, o poder que
protesta ao ser arrancado das costas dos que o sustentam. Os dedos do homem calvo
estreitam a tranca do cofre, o vidro estremece com os sacões da tempestade lá fora, a
combinação se fecha e a porta se abre. Seus olhos lentos se arregalam, não chega a ser
surpresa o que demonstram, não chega a ser alívio, um sentimento intermediário entre um e
outro. Dentro do cofre, sobre a almofada de seda vermelha, uma taça prateada, coberta.
O velho Crowley deposita a taça sobre a mesa com cuidado, retira a tampa cravejada
de pedras preciosas. Dentro da taça, um pó azulado reluz. Murmura uma prece agradecida,
não a dirige a nenhum deus em particular, quer apenas que saibam que ele se sente
agradecido. Funcionou. Terá funcionado. Estará funcionando. Pega uma pitada de pó com
uma colherinha dourada que traz junto ao corpo há décadas, especialmente para isso, e
aquece sobre a chama da vela. O pó se liqüefaz, reflexos azuis banham o tampo da mesa.
Crowley abre a gaveta, pega uma seringa. Aproxima a ponta da poça líquida, puxa o
êmbolo, o corpo vítreo da seringa se enche de azul.

Aleister irrompe na seção britânica da Aurora Dourada como um deus se


manifestando em meio aos mortais, cheio de pompa e circunstância, a espada dos querubins
pendendo em sua bainha. Um segundo olhar para a gaita de foles e o saiote xadrez o
revelaria menos deus que palhaço, a aura de numinosidade dissipando-se em eflúvios
cômicos ao redor, alimentada pelo olhar solene, a expressão compenetrada com que sopra a
gaita e espalha melodias que são como o grito de uma banshee no cio.
A recepcionista arregala os olhos, incrédula. Antes que consiga falar, Aleister está
entrando. Passa pelos retratos dos fundadores, o de Mathers discretamente deslocado para
um canto, atravessa um corredor de estatuetas egípcias, deuses sentados, a barca de Rá,
Osíris ressuscitado, e pára defronte o pórtico sobre o qual brilha um ankh dourado.
A gaita silencia. Aleister atravessa o pórtico, espada desembainhada.

A Terra é azul, murmura Crowley quando a droga colore sua percepção do mundo.
As paredes, a mesa, as estantes repletas de volumes ancestrais, tudo adquire uma aura
azulada e se põe a girar em volta do velho, uma ciranda de fadas na clareira da floresta,
uma horda de peregrinos em volta de pedra negra, um relógio de mil ponteiros alucinados,
girando, girando, girando (dê um nome a essa necessidade cega, a esse impulso
voraz. Os braços finos decaídos ao lado do corpo redondo e felpudo, branco, feito
um desenho animado de olhos malévolos e boca faminta. Dê um nome, dê uma
voz a essa necessidade cega que toma forma sob seus dedos manchados. Deixe-a
vir, deixe-a se instalar no quarto, na sala, na cozinha, deixe-a dominar a casa até se
tornar o reflexo da lembrança de uma presença fantasmal sentida durante a
adolescência, de uma Coisa flutuante no ar, um balão de gás cheio de desejos
compulsivos e impulsos não-premeditados, uma espécie de saco de vômito não
digerido e gargantas estraçalhadas sob o friso grego. Dê um nome, deixe falar essa
necessidade cega que se agita em sua carne, que bate os braços inermes, que tenta
chamar sua atenção com aplausos estereotipados. Uma presença alienígena, o
fantasma de uma outra dimensão que é a tua e o fundo do espelho e a sombra na
parede. Pergunte-lhe a que veio, pergunte-lhe o que quer, deixe fluir o jorro
famélico que escarra de sua boca escancarada, deixe-a cuspir no piso e urrar de dor
e desespero e pedir que abra a porta. Deixe-a transformar-se em dor, deixe-a ser
essa sensação dolorida no pulso da mão direita, esse excesso masturbatório, essa
lâmina multigirante que guarda os portões do paraíso, esses que você quer
estraçalhar com os dentes, mas não é seu o querer, é dela, dessa necessidade cega
que você convoca do fundo carcomido da memória e que desfralda suas negras
asas junto ao teto, os dentes serrilhados de um demônio de desenho animado. Fale,
fale com ela, ouça, ouça sua luz. Ela lhe falará de antigas colinas e vales
incendiados, não num outro mundo qualquer, nem mesmo neste mundo, mas em
teu próprio peito, que você achava conhecer como a palma da tua mão e que agora
se converte em aldeia abandonada e pedaços incendiados de madeira que
sobraram da última grande conflagração universal, e quem é que se importa,
certamente não você, certamente não a necessidade cega que o segue por toda
parte na esperança de um aparte, de uma audiência, de uma sessão especial junto
ao juiz da Suprema Corte e bate palmas esbaforidas e derruba livros na tempestade
e quer chutar as paredes até sair sangue, socar as paredes até esfolar os dedos,
escrever seu nome sem sentido como uma velha invocação necromântica, o
chamado de Cthulhu, essa coisa abissal que você carrega no fundo da espinha, essa
coisa abissal que espreita por cima de seus ombros, vulto branco que sobrepaira e
censura e espiona, sabendo apenas que obedece a essa necessidade cega e redonda
e brilhante que toma forma no interior de seu corpo cansado) e Crowley não está
mais lá, Crowley é o giro e o rodopio, o movimento que não cessa, o fluxo da história e por
baixo dele, outro fluxo mais primitivo, mais envolvente, de um tempo que não é tempo, que
não se mede em números, um tempo que se desdobra em espaço, que traça mensagens,
portador de revelações e nomes secretos.

Aturdido, o velho se materializa na sala vazia, ainda trêmulo, com a sensação de já ter
visto aquilo tudo acontecer, uma recordação da juventude que se superpõe ao tempo
presente, que não é presente mas passado, ao menos para ele, que foi, é e será. Uma
sensação avassaladora de irrealidade domina todas as suas percepções, todos os seus gestos.
Quando se está em todos os tempos, nenhum tempo é seu tempo. Nada existe de verdade,
salvo o fluxo contínuo que arrasta cada probabilidade de cada evento em cada época e
lugar. Olha em volta, precisa se orientar. Fazer de conta que sua consciência ainda domina
aquele corpo que habita, forçar a carne intangível a executar os movimentos necessários.
Precisa agir rápido. Ainda se lembra do pouco tempo que levou até as pessoas se
recuperarem da perplexidade que a irrupção de seu eu mais jovem causara (estava
causando), sua entrada folclórica, patética, manobra diversionista que lhe garantira (estava
garantindo) os preciosos minutos de que precisava para realizar seu último objetivo
humano, se é que ainda podia se chamar de humano, se não estava já se transformando em
alguma coisa mais cósmica, oblíqua e onipresente, concentração. Foco. Moveu-se ao longo
das peças que tornavam a sala mais abarrotada do que os porões do Museu Britânico, as
relíquias legítimas de civilizações vetustas, as antigüidades espúrias com que se deleitava a
imaginação teosófica da época e, mais importante, que tudo, os artefatos de universos que
já não eram, de universos que nunca tinham sido. Foi ali, entre máquinas ininteligíveis e
instrumentos estranhos, que encontrou o Graal, a taça reluzente, dourada, repleta do pó azul
que lhe permitiria levar avante sua rebelião contra os arcontes.
Seus sentidos, ampliados muito além da realidade visível, captaram o leve ruído de
passos, tão tênue que se confundiria com a vibração da própria atmosfera. Tempo de ir.
Tempo de encontrar seu eu mais jovem e lhe confiar a droga azulada, que ele deveria
guardar até o momento futuro em que seria necessária, em que teria já reunido
conhecimento suficiente para dominar o empuxo do Graal, impedir que a overdose o
destruísse e fundir sua consciência à própria essência miraculosa do tempo. Nesse dia, que
para ele era agora, estaria pronto para enfrentar, de igual para igual, o poder dos senhores
do mundo. O poder da polícia do tempo. Dos arcontes. Da Intempol.

Não há ninguém para gritar, para sentir que aquilo tudo já aconteceu. Ninguém para
ter a sensação subjetiva de um surdo tremor que percorre a alma. Ninguém para
testemunhar a aparição dos seis homens na sala, ternos negros e olhar sombrio. O líder do
grupo se aproxima do divã e olha com desprezo o cadáver esquisito. Nunca vai entender o
que se passa na cabeça do pessoal lá de cima. Mandar um esquadrão de elite para dar conta
daquela ruína? Observa os olhos semi-abertos, a boca escancarada de cujo canto pende um
filete azulado de baba. Seis homens era muito. Um homem teria sido muito. Faz um sinal
para o oficial de comunicações.
— Entra em contato com o Departamento M. — diz. — Avisa o Velho que este aqui
não é mais problema pra ninguém.
{1}
Your power I plead to crystallise in form
I summon thee Aiwass!
— Prece thelemita
O barulho da festa no andar de baixo é quase ensurdecedor. É difícil me concentrar
com a música no último volume, as risadas escandalosas, os gritos. Tenho vontade de ir até
lá e pedir para eles diminuírem o volume, a festa desvia a minha atenção e, desse jeito, não
vou conseguir cumprir a tarefa da qual fui incumbido. Estou no último andar de um velho
prédio na Praça da República, um edifício com ar de já ter sido antigo na época de
Matusalém mas que, de fato, remonta à primeira metade do século XX. A informação me
ajuda a ancorar minhas percepções no tempo, me diz quando eu me situo e onde. Ainda não
me acostumei com as possibilidades abertas pela minha nova situação, sempre pensei no
tempo como um fluxo contínuo e irreversível, você escorria do passado para o futuro, o
presente sempre lhe escapava e esse escoamento constante era, ao mesmo tempo, único. Só
existia um rio no tempo, sem afluentes nem tributários. Ele corria no mesmo sentido que o
eixo da entropia, da ordem para o caos, do sinal para o ruído, da vida para a morte. Não
havia caminho de volta. Não havia outros caminhos.
Claro que isso foi antes da Intempol.
O homem sentado à minha frente tamborila com impaciência. Terá, talvez, uns
cinqüenta anos de idade, o cabelo cortado curto, barba bem-aparada. Seu rosto é sereno,
mas inflexível.
— Como eu vou saber se posso confiar em você?
Ao lado dele, a mulher me observa com impassibilidade. Sua beleza tem uma
qualidade etérea, irreal. Os cabelos são negros, mas não da forma como cabelos negros
costumam ser negros. Trazem à lembrança o conhecimento de que o negro não é uma cor, é
a ausência de todas as cores, a absorção total da luz, sem superfície refletora. Não disse
uma palavra desde que eu cheguei. Parece alheia a tudo, os olhos verdes flutuando num
transe mediúnico, como se escutasse vozes diferentes da algaravia que sobe da festa no
andar de baixo. Suponho que seja a mulher do cara.
— Como eu posso confiar em você? — ele repete.
Em resposta, enfio a mão no bolso do paletó. Carlos tensiona os músculos,
provavelmente esperava que eu fosse sacar uma arma. Em vez disso, pego o meu cartão
cronal e estendo para ele. Nenhum agente se separa de seu cartão cronal. Somos ensinados
a protegê-lo com a própria vida se necessário, ou a destruí-lo ainda que isso implique em
ficar preso numa outra época que não a nossa, talvez até num outro universo. O gesto deve
convencê-lo da minha sinceridade. É óbvio que, se Carlos tentar usar o cartão, meu álibi cai
por terra. Mas não creio que ele tenha acesso a uma caixa registradora e não se atreverá a
usar a minha, que poderia ser facilmente rastreada pela Intempol.
Imagine se ele soubesse que o andar de baixo está coalhado de agentes.
Carlos não faz a menor menção de pegar o cartão cronal. Olha-o quase com desprezo
quando o coloco sobre a mesa, diante dele. Fica um instante em silêncio, pensativo.
— O que você quer? — pergunta, finalmente.
O barulho no andar de baixo pára de repente. Se eu não soubesse que é só uma
cobertura, pensaria que a festa está chegando ao fim.
— Quero me juntar aos seguidores de Crowley — respondo.
Imagino que, na verdade, os operadores na escuta deram o sinal de que a hora de agir
está se aproximando.
— Por quê?
Suponho que os agentes estão sacando suas armas e cercando o apartamento,
sorrateiramente, prontos para deitar as mãos em Carlos.
— Quando fui convocado para a Intempol, achava que preservar o contínuo era uma
tarefa nobre, pela qual valia a pena lutar.
Presumo que, neste exato momento, meu superior, o Comissário Ramos, está parado
diante do apartamento, Terminator na mão, prestes a arrebentar a porta com um pontapé.
— E não acha mais?
Creio que servir de isca para Carlos foi a missão mais fácil que me deram desde que
completei meu treinamento.
— Não — abano a cabeça. — Descobri que a Intempol é uma empresa corrupta e só
está preocupada com seus próprios interesses.
Carlos sorri. É quase como se seu sorriso fosse uma senha, ouve-se um barulho surdo
e, como eu previra, o Comissário Ramos invade a sala, acompanhado dos agentes Randolfo
e Montoro. Respiro aliviado, cumprimento-os com um aceno. Não preciso mais do disfarce.
Ramos aproxima-se de Carlos, que o encara com serenidade.
— Meus parabéns, agente Carlos. Sua missão foi um sucesso.
Carlos abaixa levemente a cabeça, me deixando sem entender nada. Sua mulher se
afasta para um canto da sala, discreta. O Comissário Ramos volta-se na minha direção e eu
sinto como se o chão fosse arrancado de sob os meus pés:
— Alexandre Toledo, considere-se preso por alta traição.
Sua arma está apontada para a minha cabeça.
{2}
An end to all authority that is not based
on courage and manhood, to the
authority of lying priests, conniving
judges, blackmailing police, and an end
to the servile flattery and cajolery of
mods, the coronations of mediocraties,
the ascension of dolts.
— Jack Parsons
Não, isto não é um sonho ruim. A prova são as três Terminators que me têm sob a
mira. Uma é a do meu superior imediato, o Comissário Ramos. As outras duas são de meus
colegas, os agentes Randolfo e Montoro. Carlos, o homem que eu supostamente viera
prender e que de repente também se revelou um agente da Intempol, não tem nenhuma
arma à vista. Mas quem duvida que ele seria capaz de sacar uma se precisasse?
— Como assim, alta traição? — pergunto, com medo de que o menor movimento
faça as pistolas cantarem.
Ramos faz um sinal com a cabeça na direção de Carlos. Este manipula algum controle
oculto no cinto e, em resposta, o ar no meio da sala se põe a tremular, torna-se luminoso,
enche-se de imagens. Vejo versões de mim mesmo e de Carlos, menos de cinco minutos
antes. Ouço minha própria voz ecoar pela sala que, de um momento para o outro, tornou-se
menor e muito mais ameaçadora do que quando entrei. "Descobri que a Intempol é uma
empresa corrupta e só está preocupada com seus próprios interesses", escuto-me a dizer. A
imagem congela na minha expressão compenetrada, o ar de quem está profundamente
imbuído do que acabou de falar.
— Foi você que me mandou dizer isso, seu filho da puta! — ameaço crescer pra cima
de Ramos, mas as Terminators me fazem desistir da idéia.
— Não sei do que você está falando — o Comissário Ramos é o cinismo em pessoa e,
se a lembrança de nossa reunião não estivesse ainda nítida na minha cabeça, eu quase
poderia acreditar que ele estava dizendo a verdade. Mas não estava, não podia estar, e a
lembrança de nossa reunião continuava nítida na minha cabeça.
Era uma terça-feira chuvosa quando cheguei à sede da Empresa e recebi um recado
para me dirigir à sala do Comissário Ramos. Achei que ia levar uma comida de rabo por
causa de meus sucessivos atrasos mas, em vez disso, ele me recebeu com um sorriso.
— Meus parabéns, Agente Toledo. Você está prestes a receber sua primeira missão
importante.
A notícia valia mesmo um sorriso. Eu já estava cansado de fazer parte da equipe de
apoio, os caras que ficam na escuta, que trazem cafezinho pro chefe, que escoltam os
prisioneiros. Fazia mais de um ano que eu tinha saído da Academia da Intempol, sentia que
estava preparado para tarefas grandes, desafiadoras mas, em vez disso, tudo que eu recebia
eram instruções para preencher memorandos e distribuir circulares. Enxugar gelo, por
assim dizer. Pelo menos, até agora.
— Já ouviu falar de Aleister Crowley?
Respondi com o pouco que sabia sobre Crowley, um charlatão excêntrico do início do
século XX que, depois de uma vida supostamente dedicada à prática da magia, morreu de
overdose de heroína.
— Não foi heroína, ele não morreu e nem era um charlatão — contestou Ramos,
estendendo-me um relatório com o timbre do Departamento M. — Estuda isso aí.
De acordo com o relatório, Crowley era um perigoso cronoterrorista, que descobrira a
existência da Intempol sabe Deus como e passara a vida a combatê-la. Usando um arco
fechado no tempo, conseguira se apoderar de uma amostra de Graal, a droga que permite
viajar no tempo sem cartão cronal, e aparentemente tomara uma overdose.
— O que acontece quando alguém toma uma overdose de Graal? — perguntei a
Ramos.
— Ninguém sabe direito — respondeu o comissário. — Ou, se sabe, não revela.
Tirou um charuto do bolso, acendeu e soltou uma baforada. A fumaça ficou flutuando
no ar, até se dissolver.
— Mas há quem diga que a consciência se dispersa no tempo, do mesmo jeito que
essa fumaça.
Desde a suposta morte de Crowley, continuava o relatório, seus discípulos haviam se
reunido em um movimento subversivo cujo objetivo declarado era descobrir uma maneira
de neutralizar a Intempol, cooptando todas as formas de oposição à polícia do tempo. Dizia-
se que o próprio Crowley, com sua nova consciência atemporal, dirigia o movimento,
orquestrando-o em diferentes épocas e lugares. Mas esse era um boato que os agentes
nunca tinham conseguido confirmar.
Nem desmentir.
Ramos tirou o relatório de minhas mãos e o atirou ao incinerador.
— Agora, você esquece que leu isso.
Fiquei em silêncio, esperando que ele informasse qual seria minha missão. A resposta
não se fez esperar.
— Ao que parece, um elemento chamado Carlos está organizando uma célula do
movimento crowleyano na São Paulo da década de 40. Não sabemos se é verdade, cabe a
você descobrir. Procura esse Carlos e se apresenta como agente da Intempol. Diz que você
quer se juntar aos discípulos de Crowley. Se ele for inocente, não vai fazer a menor idéia do
que você está falando.
— E se não for?
— Assim que você arrancar uma confissão, a gente prende e arrebenta.
Foi assim que armamos a arapuca para pegar Carlos, o chacal. Juntos, eu e Ramos
construímos cuidadosamente meu personagem de agente renegado. Estudamos a planta do
apartamento de Carlos, o prédio onde ele se escondia, as ruas e adjacências. Eu participava
das discussões com os outros agentes, todo compenetrado, certo de estar tomando parte de
uma complexa operação da Intempol. Só muito tarde descobri que tudo isso era uma farsa.
A arapuca era pra mim.
{3}
For I am BABALON, and she my
daughter, unique and there shall be no
other women like her.
— The Book of Babalon, verso 37
Analiso minhas possibilidades. O Comissário Ramos e Carlos estão à minha frente.
Randolfo, do meu lado esquerdo e Montoro, do direito. Em hipótese alguma, eu conseguiria
ser rápido o bastante para nocautear os quatro, a menos que tivesse ingerido uma dose de
PyrE, o que não é o caso. E os dois capangas de Ramos estão entre a porta e eu, de modo
que fugir também está fora de questão. De mais a mais, ainda que eu conseguisse escapar
dos quatro aqui dentro, tem um batalhão de agentes da Intempol espalhados pelo prédio.
E pensar que, minutos antes, saber disso me dava uma sensação de segurança.
Se eu ao menos entendesse o porquê, não digo que ficaria mais feliz de ser preso, mas
pelo menos me sentiria menos perplexo, compreenderia o quadro geral, em vez de me sentir
uma folha arrastada pela corredeira.
— Me entrega sua arma — ordena Ramos, tranqüilo. Ele também sabe que eu não
tenho chance de escapar. Com movimentos lentos, enfio a mão no coldre e estendo a
Terminator para Ramos. — E o cartão cronal. O verdadeiro — ele acrescenta, ao me ver
relancear para o falso cartão sobre a mesa.
Entrego o cartão.
— Bom menino. Eu sempre soube que você ia longe. Desde o treinamento.
Randolfo e Montoro se aproximam para me escoltar até a saída, tão eloqüentes
quanto uma sepultura. A minha sepultura. Ninguém presta a menor atenção à mulher de
Carlos. Diante dos últimos acontecimentos, eu mesmo me esqueci dela quase
completamente. Era como se a mulher tivesse se reduzido a parte da mobília, uma peça do
cenário que fica como pano-de-fundo e ninguém percebe, a não ser de forma subliminar,
uma sombra entrevista com o rabo do olho. Mas agora, a sombra se desloca para o centro
da sala e eu percebo que alguma coisa muito estranha está para acontecer.
Ela abre os braços. A princípio, é como uma ilusão de ótica, a impressão de que seu
corpo está mais brilhante, avermelhado. Aos poucos, percebo que não se trata de uma
ilusão. Seu corpo está realmente brilhando, com uma luminosidade vermelha, concentrada,
como se ela fosse um raio LASER em forma de mulher. Só os olhos e os cabelos não
brilham. Os olhos adquirem aquela escuridão de buraco negro dos cabelos e se abrem feito
dois abismos no meio do rosto. É a mesma expressão etérea de antes, mas agora, naquele
corpo aquecido ao rubro, o rosto adquire uma conotação aterrorizante.
Ninguém parece dar pela transformação. De fato, Ramos e Carlos, Randolfo e
Montoro nem sequer se movem. Permanecem estáticos, na posição em que os vi pela última
vez, uma fração de segundo antes de voltar minhas atenções para a mulher.
— O tempo já não é — diz ela, e sua voz é como o murmúrio de muitas águas. —
Pegue suas coisas.
Obedeço, recuperando minha Terminator e o cartão das mãos imóveis do comissário.
— Agora vamos.
Seus movimentos são menos passos do que um contínuo deslizar na direção da porta.
Não sei quem é a mulher, nem como ela fez pra parar o tempo, mas seja quem for, impediu
minha prisão e isso a torna mais digna de confiança do que o Comissário. Vou atrás dela.
Do lado de fora do apartamento, deparamos com cerca de quinze agentes, todos
catatônicos, mergulhados naquela espécie de tempo suspenso. Quer dizer, eu me deparo.
Ela provavelmente já sabia que íamos encontrá-los. Descemos as escadas, passando por
cima de outros tantos homens e mulheres, imobilizados nas posições mais estranhas,
capturados no intervalo entre dois gestos, um braço erguido, uma mão no bolso, um dedo
que coça o nariz.
Chegamos ao térreo e saímos pela antiquada portaria do edifício.
— Daqui a quatro respirações, o tempo voltará a ser — ela me adverte.
Percebo que, doravante, estarei por minha conta e risco.
— Quem é você? — pergunto, antes que ela vá embora.
A mulher não responde.
— Por que você me ajudou? — insisto, e percebo que o brilho em seu corpo se
intensifica ainda mais. — Pensei que você fosse a mulher do Carlos.
Ela sorri.
— Eles nem sequer me viram — diz.
Um arrepio me sobe pela espinha.
— Como assim, eles não te viram? Por que não?
Percebo que estou à beira de uma espécie de pânico.
— Porque eu não estou aqui — responde a mulher.
E desaparece num clarão de luz vermelha.
{4}
Swift as a trodden serpent turn and
strike! Be thou yet deadlier than he.
— Liber Al III:42
Durante um instante, uma névoa esverdeada recobre o mundo. É a imagem residual
deixada pela explosão de luz vermelha nas minhas retinas. Então, se esgota a duração das
dez respirações e o tempo volta a fluir ao meu redor. Começa com a buzina dos carros, o
ruído dos bondes, o alarido das pessoas que vêm e vão pelo centro da cidade. Um mascate
passa por mim, apregoando as maravilhas de seu tônico capilar. O cachorro sarnento da
esquina termina de urinar no poste. Uma folha suspensa no ar retoma sua queda. Dentro do
prédio, no apartamento do décimo-segundo andar, o Comissário Ramos deve estar prestes a
ficar furioso, ao descobrir que eu dei um jeito de desaparecer bem debaixo de suas asas.
Hora de sumir daqui. A São Paulo dos anos 40 já deu o que tinha que dar.
Pego meu cartão cronal e ativo a caixa registradora. Preciso de um lugar para pensar,
tentar entender o que está acontecendo. Minha casa está fora de questão e dizer que lá é o
primeiro lugar onde vão me procurar seria um clichê desgastado. Em dias mais felizes, eu
iria para um Porto Seguro ou uma estação de R&R da empresa, mas agora é a própria
Intempol que quer a minha cabeça e eu gostaria de saber porquê. Um refúgio neutro, de
preferência onde/quando eles demorem para rastrear meu cartão. A vantagem de se viajar
no tempo é que nenhuma localidade é distante em excesso, nenhuma época é remota
demais. A desvantagem de se viajar no tempo é que nenhuma época é remota demais,
nenhuma localidade é distante em excesso.
Finalmente, escolho um destino e digito rápido as coordenadas. Não vai demorar para
o Comissário Ramos ou Randolfo e Montoro saírem pela porta. Uma sensação de déja-vu
me domina quando o equipamento é acionado e a cidade em torno de mim desaparece,
tragada por um redemoinho.
O Sol é uma enorme bola vermelha que ocupa quase todo o horizonte visível. Um
vasto deserto se estende até onde a vista alcança. Não há mais cidades, nem aldeias. Não há
mais pessoas. Daqui a cinco bilhões de anos, até mesmo os ythianos, que substituíram a
humanidade como espécie dominante na Terra, já foram embora, deixando para trás a
carcaça de um planeta moribundo.
Estou no que um dia foi a cordilheira do Himalaia e que nesta época distante viu-se
reduzida a uma planície sem fim. Das majestosas montanhas que um dia desafiaram o
homem por sua simples presença, restam uns poucos morros arredondados, dos quais a anã
vermelha que ilumina o mundo arranca sombras duplas, pontiagudas. Um vento frio faz os
grãos de areia rodopiarem e, se eu não estivesse protegido pelos mecanismos homeostáticos
do traje, morreria congelado em menos de uma hora.
Não me é difícil localizar uma caverna que servirá de fortaleza da solidão enquanto
eu precisar de um esconderijo. Com um par de rápidas viagens aleatórias a épocas mais
civilizadas, reúno um estoque de alimentos que suprirá minhas necessidades básicas por
pelo menos um ano. Um gerador neguentrópico garante que os mantimentos não se
deteriorarão durante todo esse período. Mas não pretendo ficar tanto tempo aqui. Mais dia,
menos dia, os agentes da Intempol conseguirão rastrear o meu cartão e eu terei que fugir.
Além disso, quero descobrir quem foi que armou para mim, e por quê.
Deitado com a cabeça sobre um amontoado fofo de areia, minha arma ao alcance da
mão, examino os dados que possuo, e que são desgraçadamente poucos. Meu principal
suspeito, nem preciso dizer, é o Comissário Ramos. Foi ele quem me designou para a
suposta missão de prender o suposto cronoterrorista Carlos, supostamente seguidor de
Aleister Crowley. Mesmo que não seja ele o cabeça por trás dessa história, é óbvio que o
Comissário Ramos está em ligação direta com o sujeito.
O porquê já é mais complicado. Afinal, quem sou eu para eles, que são eles para
mim? Não passo de um agente de nível quatro que nunca desempenhou nenhuma tarefa
importante e assumiu suas funções há pouco mais de um ano, depois de um período de
treinamento durante o qual nunca se destacou como particularmente notável ou digno de
atenção.
Esse último pensamento, porém, dispara um alarme na minha cabeça.
Vasculho minha memória recente, uma coisa que alguém disse não faz muito tempo,
o que é? Quase consigo capturar a frase, ela me provoca, sapateia na fronteira do pré-
consciente, a um passo do meu alcance. Foi algo que me passou batido na ocasião, mas que
agora parece ser de extrema importância.
Se eu ao menos conseguisse lembrar.
Não adianta. Todo mundo que já tentou recordar um nome ou palavra que está na
ponta da língua sabe que, quanto mais insistir, mais a informação esquecida vai se
esconder. O negócio é fingir ignorá-la, deixar a questão para lá e ir cuidar de outra coisa.
Levanto e pego uma pastilha de comida. Fico observando o trabalho dos nanos que
transformam a pastilha de plástico insossa em uma refeição fumegante. E de repente, a
lembrança está lá, o Comissário Ramos zombando enquanto lhe entrego meu cartão cronal.
— Bom menino — ele diz. — Eu sempre soube que você ia longe. Desde o
treinamento.
Nunca encontrei o Comissário Ramos durante os meus anos de academia. Não sabia
quem ele era, até o momento em que foi designado como meu supervisor. Mas a frase que
ele deixou escapar prova que a recíproca não é verdadeira. Por algum motivo, que só pode
estar relacionado com essa confusão toda, Ramos acompanha meus passos desde que entrei
para a empresa. Se eu ao menos tivesse acesso à minha ficha...
Levanto, já estendendo a mão para a Terminator. Para obter algumas respostas,
preciso entrar na toca do leão.
Vou ter que invadir a sede da Intempol.
{5}
True Will, then, may be seen as a deeper,
unconscious driving-force which
sometimes sings in the blood as instinct.
— Michael Staley,
The Heart of Thelema
— Tu tá me pedindo demais, colega.
Sentada atrás de uma escrivaninha, uma antigüidade do século XXI que diz tudo
sobre o poder e as posses da traficante, Lucy Fera é o próprio espírito da negação
encarnado. As placas de transparência subjetiva filtram o Sol da manhã que se derrama
sobre o Palácio do Borel e iluminam a expressão em seu rosto, um ar de adoraria-poder-te-
ajudar-mas-sabe-como-são-as-coisas. Ela é pequena, pouco mais de 1m20, mas não há
ninguém em todos os mundos possíveis que se deixe enganar por sua baixa estatura. Das
planícies africanas, 150.000 anos atrás, até o topo da hierarquia do tráfico no Rio de Janeiro
do século XXV, Lucy pavimentou seu caminho com muito sangue e pedaços de carne.
Apesar da inteligência, em vários aspectos é mais animal do que humana e suas presas
impõem respeito em todos os níveis dos Comandos Unificados.
— O que é que cê tem pra oferecer em troca?
Jogo meu cartão cronal, que Lucy agarra em pleno ar e examina, com ar
compenetrado. Teria funcionado com Carlos, se Carlos não fosse um impostor.
— Essa bosta é inútil sem a caixa registradora — resmunga.
Entrego a caixa registradora.
— Rapaz, tu tá mesmo desesperado — Lucy comenta, sem olhar para mim. — Volta
daqui a duas horas, vou ver o que dá pra fazer.
Faço menção de pegar meus objetos de volta, Lucy me olha com ferocidade e solta
um rosnado.
— A tralha fica.
Levanto as mãos em sinal de paz. Vou ter que confiar nela. Se Lucy quiser me
sacanear, fico sem nada. Mas os traficantes têm seu próprio código de ética e eu duvido que
ela receba o pagamento sem entregar a mercadoria.
Sob a administração dos Comandos Unificados, o Rio de Janeiro do século XXIV é
uma metrópole pacífica. Ficaram para trás os tempos das grandes guerras entre quadrilhas,
que culminaram com um confronto nuclear em 2329, transformando o Pão de Açúcar em
uma cratera fumegante. O conflito devastou as facções do crime organizado, fazendo com
que elas não tivessem outra escolha senão se unir para se erguer das cinzas. A grande
artífice dessa unificação foi Lucy, convocada para representar os interesses da Intempol na
aurora da humanidade, mas que abandonou a empresa e veio se refugiar nesta época. Fez
um acordo com a Meggido Mangiare, o cartel de distribuição de drogas que é um dos
principais acionistas da Intempol e, em troca de assumir a chefia dos Comandos
Unificados, obteve permissão da empresa para viver no século XXV e nunca mais ser
incomodada pelos agentes da Intempol.
Essa é uma história que ainda precisa ser contada.
Gasto minhas duas horas tomando uma cerveja em frente às ruínas do Pão de Açúcar.
Um campo de neguentropia envolve a cratera, isolando a cidade da radiação. No interior da
bolha de entropia negativa, a radioatividade solta relâmpagos coloridos, um espetáculo
pirotécnico que atrai turistas do mundo inteiro. Se você ficar olhando por muito tempo, as
luzes têm um efeito hipnótico no teu espírito. São relâmpagos verdes, vermelhos, prateados
e iridescentes, que colocam a gente em uma espécie de satori instantâneo, um estado de
calmaria que é como as ondas na superfície de um mar tranqüilo. Termino a última cerveja,
meu relógio biológico me diz que é tempo de voltar ao Palácio do Borel.
— Tu tá com sorte, colega.
Lucy me leva para uma sala de cirurgia nos subterrâneos do palácio, prova de que eu
não sou o primeiro a comprar esse tipo de coisa. Lá, me apresenta a um homem de seus
quarenta e tantos anos, em trajes de cirurgião. Trocamos um aperto de mão e Lucy se retira,
deixando-me a sós com o médico.
— Deite-se aqui — ele diz, com ar profissional. Obedeço. O médico passa um
scanner sobre o meu corpo e a leitura do aparelho lhe arranca um assobio. — Nunca vi um
corpo tão perfeito.
Olho o doutor de través, será que esse viado quer me comer? Mas não, a admiração é
meramente profissional.
— Sem seqüelas de doença, marcas de degeneração, nada. É como se esse corpo
tivesse acabado de sair da fábrica.
— É que eu me cuido bastante — respondo, aliviado, mas ele não parece convencido.
Me encara um momento, antes de dar de ombros e retomar seu trabalho.
A colocação do implante leva pouco mais de meia hora. Outros quinze minutos se
passam até que a corrente sangüínea espalhe os nanos por todo o meu corpo. Quarenta e
cinco minutos depois de entrar na sala de cirurgia, o médico me libera. Eu tenho um
implante T e não preciso mais do cartão cronal para viajar no tempo. Agora, os agentes da
Intempol já não podem me rastrear. Mesmo que conseguissem seguir o sinal do cartão, sua
trilha só os levaria até um beco-sem-saída. Agradeço ao cirurgião e aciono mentalmente o
implante.
Estou pronto para a invasão.
{6}
Every event is a uniting of some one
monad with one of the experiences
possible to it.
— Aleister Crowley
No momento em que invoco o ícone apropriado, o implante T entra em ação e os
nanos colocam meu corpo num estado de indeterminação quântica. Existo agora como mera
probabilidade flutuante, minha consciência desliza por um oceano de energia potencial.
Filamentos de fluxos probabilísticos atravessam meu espectro. Cada fluxo é um universo,
cada elo do filamento representa um instante no contínuo espaço-temporal. O processador
quântico que é o coração do implante T seleciona os fios, filtra, coordena minha percepção,
direciona a consciência para o quantum escolhido no filamento determinado, até chegar no
ponto do espaço-tempo que representa a sede da Intempol. Sei que o rodízio dos
funcionários está organizado de tal maneira que, normalmente, a sala dos Arquivos nunca
está vazia. Mas sei também que, em um número infinito de universos possíveis,
inevitavelmente haverá algum no qual, por um motivo ou por outro, não há ninguém na sala
dos Arquivos, nem que seja por cinco minutos. É uma dessas linhas temporais alternativas
que eu seleciono. Visualizo o ícone de desconexão e o meu corpo cai na real, uma vez mais
sólido, quadridimensional.
Os Arquivos ficam num complexo subterrâneo sob o edifício da sede. O nome
sempre me faz pensar em estantes velhas, cheias de pastas de papel empoeiradas. Em vez
disso, deparo com uma sala imaculadamente branca e silenciosa, onde não se ouve nem o
zumbido do ar condicionado. Eu me materializo no corredor que leva à recepção. Não há
ninguém à vista, mas escuto vozes atrás de mim. Não sei qual a razão da sala estar vazia e,
assim, ignoro também de quanto tempo disponho. É preciso agir rápido.
Sem fazer barulho, salto por cima do balcão da recepção. Os computadores ligados, a
cigarrilha pousada sobre um dos cinzeiros, tudo denuncia que a sala estava em uso até há
poucos minutos e que seus ocupantes pretendem voltar logo. Procuro o terminal mais
próximo na sala de consulta, as baias com os terminais se estendem até onde a vista
alcança. Um dos paradoxos da seda da Intempol é que seu espaço físico parece muito maior
no interior do que no exterior, resultado de uma topologia n-dimensional própria.
Abro a pasta com os perfis dos agentes, digito meu nome no campo apropriado e
aguardo enquanto o computador procura meu prontuário nos arquivos da Intempol.
O terminal me informa que nada foi encontrado.
Tento de novo, desta vez mando procurar em qualquer perfil pessoal armazenado nos
computadores. Para evitar homônimos, defino uma busca com todos os parâmetros, nome
completo, idade, altura, data de nascimento, biotipo.
O terminal me informa que nada foi encontrado.
Começo a ficar desesperado. Meu tempo escasseia. A qualquer hora, as vozes ao
fundo podem se aproximar. Os arquivos não vão ficar vazios para sempre, eles nem
deveriam estar vazios. Serão dados confidenciais, protegidos por senha, relatórios
qualificados, sei lá o quê? Solicito uma busca geral, quero qualquer referência ao nome
Alexandre Toledo, em qualquer contexto possível.
O terminal me informa que encontrou 1 (um) resultado.
Peço para abrir o arquivo, ele me solicita a password apropriada. Digito a minha
senha de acesso nível 4 e, como não podia deixar de ser, o computador a recusa. Ou a
informação é classificada para nível 5+ ou minha senha foi revogada. Possivelmente as
duas coisas.
Tento algumas senhas ao acaso, às vezes o azar é uma sorte, mas não dessa vez. Uma
a uma, elas são recusadas pelo computador. Digito palavras a esmo, alexandre toledo
intempol ramos cumbuca elefante sapato pedra. Avestruz tecnofobia serelepe espasmo.
Delenda cartago est. Começo a inventar palavras, riverun jaguadarte reptagin.
Nada.
A resposta vem como um raio, uma iluminação espontânea que me fulmina com uma
certeza que nenhum raciocínio é capaz de justificar.
Digito aleister crowley. A tela do computador se ilumina:
Alexandre Toledo ⇒ biocárcere.
Que porra é essa de biocárcere?
— Não é da tua conta.
Merda, fiquei tão envolvido com a pesquisa que não ouvi ninguém se aproximando.
— Não se culpe. Já estávamos a sua espera.
O Comissário Ramos desliga o campo mimético e aparece bem do meu lado. Como
seria de esperar, está acompanhado por Randolfo e Montoro. A novidade é que Randolfo e
Montoro estão acompanhados por um batalhão de gente.
Todo mundo armado.
— Você não pode enganar uma polícia temporal, meu caro. Sempre podemos
antecipar os teus movimentos porque, do nosso ponto de vista, eles já aconteceram.
Estou cercado.
— Se você fosse um agente de verdade, ia saber disso.
Não é hora de pensar no que ele está dizendo. Não é hora de pensar na minha
ausência de perfil, no biocárcere, em nada. É hora de acionar o implante-T.
E continuar no mesmo lugar.
— Surpreso? — a satisfação de Ramos é tão profunda que chega a parecer pessoal.
— Assim que você entrou, acionamos uma barreira temporal em volta desta sala. Você não
tem como sair dos Arquivos.
{7}
My Mother called me the beast.
— Aleister Crowley
A uma ordem de Ramos, Randolfo algema minhas mãos, enquanto Montoro coloca
uma fita de Möbius metálica em torno da minha cintura. Não preciso perguntar para saber
que ele gera uma barreira individual, me impossibilitando de usar o implante.
— Pra onde você vai me levar? — pergunto. — Pra Prisão dos Homens que Nunca
Existiram?
O comissário dá uma gargalhada.
— Seria o lugar certo pra você — responde. — Mas não, a empresa tem outros
planos.
Estamos quase chegando à porta quando noto um brilho familiar no canto da sala. É
uma luz vermelha, a mesma luz emanada pelo corpo da misteriosa mulher que me ajudou a
escapar do prédio na Praça da República. Como daquela vez, ninguém mais parece
percebê-la.
Em vez da mulher, porém, surge um gigante.
O negro dos olhos e cabelos, e o brilho vermelho, são tudo que ele tem em comum
com a mulher. O corpo é inteiramente recoberto por pelos compridos e as mãos terminam
em garras aduncas, que se pode facilmente imaginar cravadas no pescoço de alguém. Há
uma aura de malignidade ao seu redor e a ferocidade estampada em suas feições só faz
aumentar a impressão de que se trata de algo infinitamente malévolo e diabólico. A criatura
emite um ronco prolongado, contínuo, que somente eu escuto.
Ela avança e um dos homens de Ramos cai com a garganta rasgada.
— Que merda... — o grito do comissário se interrompe ao ver outro agente ser
erguido no ar por uma força invisível, suas entranhas dilaceradas, o cadáver arremessado
contra a parede. Uma mancha rubra conspurca o branco imaculado da sala. — O que é que
você tá fazendo com o meu pessoal? — Ramos se volta para mim, o rosto contorcido de
raiva. E medo.
— Eu não tenho nada a ver com isso — respondo. Não vou dizer que estou vendo o
que ninguém mais vê, um demônio vermelho retalhando um esquadrão da Intempol,
reduzindo agentes treinados a postas de carne e sangue no chão dos Arquivos.
Ramos pede reforços. A essas alturas, metade dos vinte homens já está fora de
combate, a maioria também fora da vida, uns poucos jogados pelos cantos, gemendo ou
inconscientes. Randolfo jaz ao pé de uma mesa, um naco de carne tão grande arrancado de
suas costas que se pode ver a coluna vertebral pelo buraco.
Ninguém disse que era fácil ser agente.
O gigante está plantado no meio da sala dos Arquivos, como uma divindade tibetana
furiosa. Sua mão direita agarra um sujeito pelo tornozelo, a mão esquerda segura um crânio
que ele rói com satisfação. Um de seus pés se apóia sobre as costas dilaceradas de um cara
magrinho, os cabelos loiros empapados de sangue. Seus olhos negros se voltam para mim e
eu sinto como se estivesse ultrapassando o horizonte de eventos de uma estrela em colapso.
— Saia — ele diz. Sua voz é tonitroante, imperiosa.
Eu me viro para obedecê-lo e dou de cara com a Terminator de Montoro.
— Não atira! — Ramos berra.
O grito do comissário distrai Montoro. Eu me aproveito para chutá-lo no saco e sair
correndo.
Os reforços que Ramos pediu estão saindo do elevador. Me escondo atrás de uma
pilastra e espero eles passarem. Corro para o elevador, que se fecha assim que eu entro. Os
gritos que chegam, abafados pela porta metálica, me dizem que o novo esquadrão já
encontrou o bandido da luz vermelha.
— O sinhô num vai longe com essas algema.
O ascensorista é um preto velho que me olha de cima abaixo com um riso sardônico.
— Me deixa no térreo — digo, entre pedido e ordem.
Ele balança a cabeça, divertido.
— O velho Tião sabe onde tem que levar mizifio. O velho Tião sempre sabe.
O elevador começa a subir.
{8}
From all the Gods and energies and
powers of the Universe! Let no obstacle
of mind, matter, space or time e'er come
between us!
— Prece thelemita
O elevador pára no último andar do prédio, onde fica o conselho diretor da empresa, o
famigerado Nível 6, sobre o qual circulam os boatos mais disparatados. Sebastião, o
ascensorista, abre um sorriso zombeteiro.
— Eles estão esperando o sinhô — diz.
— O conselho diretor?
— Nós.
— Nós quem?
— Anda.
É um corredor comprido e escuro. As paredes recobertas por lambris de madeira
envernizada fazem pensar num caixão e eu imagino que talvez seja o meu. No final do
corredor, uma única porta. A maçaneta é de um metal dourado e tem a forma de uma
ampulheta. O preto velho faz um sinal com a cabeça, me mandando seguir em frente. Antes
que eu possa responder, as portas do elevador se fecham e ele vai embora.
Eu sigo em frente.
A porta no final do corredor se abre sozinha assim que eu me aproximo. Fico parado,
tentando adivinhar o que há do outro lado pelo pouco que o recorte da porta deixa entrever.
— Entre — comanda uma voz imperiosa.
Eu obedeço.
Do outro lado, há uma mesa redonda, cuja superfície parece engolir toda a luz que
incide sobre ela.
Do outro lado, há um negro totalmente calvo, com um ar imponente, que me faz
pensar num tigre.
Do outro lado, há uma mulata de olhos verdes e longos cabelos escorridos.
Do outro lado, há um jovem negro com argolas douradas nos ouvidos e nariz.
Do outro lado, há uma velha com o rosto encoberto por um véu.
Do outro lado, há uma mulher.
Estão sentados em volta da mesa. Nenhum me olha diretamente, mas sei que suas
atenções estão voltadas para mim. Uma aura de numinosidade se desprende dos cinco,
como se eles fossem capazes de me aniquilar com um simples erguer das sobrancelhas.
Seria um bom momento pro gigante vermelho aparecer por aqui.
— Abandonai vossas esperanças — diz a velha.
— A Sombra já foi neutralizada — completa o tigre.
Existe uma lacuna quase violenta entre o que vejo e o resto da empresa. A atmosfera
burocrática de repartição pública dá lugar à solenidade de um templo. Não me espantaria de
sentir o cheiro de incenso ou ouvir o rufar de tambores.
— Por que a minha ficha não consta nos arquivos da Intempol? — pergunto. Se não
me resta nada a fazer, quero pelo menos entender os passos que me levaram ao abismo.
— Você nunca foi um agente da Intempol — a mulher sorri, como se explicasse o
óbvio a uma criança de cinco anos.
— Mas eu me lembro da Academia — protesto.
— Você se lembra de muitas coisas — diz o rapaz negro.
— O Comissário Ramos também mencionou meu treinamento — insisto.
— Há treinamentos e treinamentos — sentencia a velha, como se enunciasse um
oráculo chinês.
Ando pelo salão. Ninguém faz um movimento para me deter. Ele é vasto, mas com
muito pouca mobília, além da mesa do conselho e de suas respectivas cadeiras. Suas
paredes são circulares e uma janela contínua, de vidro, contorna todo o perímetro do salão.
Me aproximo da janela, espio pelo vidro. Não é a confusão da Avenida Rio Branco que eu
vejo dali. Uma floresta luxuriante se estende até onde a vista alcança. Por entre a folhagem
das árvores, vez por outra se entrevê gigantescas massas escuras deslocando-se entre os
troncos. Ao longe, pode-se avistar coisas disformes, dotadas de asas, cortando um céu azul
e sem nuvens.
— Nem sempre é o que se vê — informa a moça.
— Nem sempre é sempre — completa a velha.
A moça e a velha, como naquelas figuras reversíveis da Gestalt que os surrealistas
adoravam.
— Os surrealistas. Sim, nós tentamos recrutá-los — diz o homem.
— Infelizmente, eles se recusaram e tivemos que neutralizar o movimento —
acrescenta o rapaz.
— Das ruas para os museus — o homem gargalha.
— Mas você não está aqui para saber a história secreta da história da arte —
interrompe a mulher.
Viro as costas para a janela e encaro o conselho diretor.
— Eu estou aqui para quê?
A velha se levanta, as veias saltadas nas costas de suas mãos enrugadas lhe dão o
aspecto de uma bruxa. Ela se aproxima e os outros membros do conselho diretor me olham
com um ar que só posso qualificar como de comiseração.
— Tivemos muito trabalho para trazer-vos até aqui.
Seu andar é lento, hierático, uma pantera que sabe que encurralou a presa.
— Não podemos continuar e não podemos deixar-vos ir.
Meus instintos me dizem para recuar, mas meus pés estão paralisados.
— Estou certa de que haveis de compreender.
Ela pára diante de mim e ergue suas mãos de múmia.
— A vida de Alexandre Toledo chegou ao fim.
Tudo escurece ao meu redor.
{interlúdio}
Sentado a sua mesa, o Comissário Ramos observava com interesse o implante
extraído do cérebro de Alexandre Toledo. O microprocessador estava em uma caixinha
revestida com veludo azul e, na verdade, era a caixa que Ramos observava com interesse.
O microprocessador seria invisível a olho nu. Sem ele, não havia como direcionar o fluxo
induzido pelos nanos que, dessa forma, para economizar custos, continuavam no corpo de
Alexandre.
Ramos achava isso um erro, mas ninguém queria saber o que Ramos achava.
Havia outras coisas que todo mundo queria saber, coisas para as quais o comissário
não tinha uma resposta satisfatória. E não ter respostas satisfatórias na sua área de
trabalho não era lá um comportamento dos mais aceitáveis.
Por exemplo, todo mundo queria saber como é que Alexandre tivera acesso a um
implante T. O artefato fazia parte das tecnologias cujo uso era severamente controlado
pela Intempol e, de fato, proibido na maioria das linhas temporais administradas pela
agência. Que Ramos se lembrasse, só uma vez antes se ouvira falar de um implante T não
autorizado, e ele fôra parar nas mãos de um mágico do início do século XX chamado
Harry Houdini. Daquela vez, a empresa conseguira seguir a trilha do implante até o
contrabandista, Jean Rimbaud, um célebre traficante de armas francês cujo quartel
general ficava em algum ponto no deserto da Argélia.
Havia um outro Rimbaud nos quadros da Intempol que também vivia causando
problemas.
Todo mundo queria saber ainda como é que um cartão cronal verdadeiro,
plenamente operacional, tinha ido parar no bolso de Alexandre. Ele só deveria estar com o
simulacro, que fazia parte da encenação. Mas, assim que Ramos pôs os pés no
apartamento, os sensores detectaram o cartão. Não fazia o menor sentido. E havia, claro,
sua misteriosa fuga, cercado por um batalhão de agentes e sob a mira do próprio
Comissário Ramos. Taí um detalhe bastante complicado pra explicar e Ramos já antevia
as dezenas de relatórios que seria obrigado a preencher em busca de uma desculpa que
soasse pelo menos plausível aos olhos de todo mundo.
Todo mundo, no caso, era o conselho diretor.
Os dois homens entraram de sopetão, passando direto pela secretária de Ramos.
Dona Michela veio correndo atrás deles, esbravejando, mas calou-se quando viu o sinal do
chefe para se retirar. Ramos nem precisou esperar que os intrusos falassem para
identificar a aura de arrogância que os dois exalavam como um peido.
Eram aqueles babacas do Departamento M.
— Sou o agente Kramer — disse o primeiro — e este é o meu colega Sprenger.
— Viemos buscar as evidências — acrescentou o segundo, num tom que parecia
repreender Ramos severamente por não ter adivinhado antes que o Departamento M
precisaria daquelas evidências, obrigando os dois a virem buscá-las em vez de levá-las ele
mesmo. Sem nem sequer esperar pela resposta do comissário, já estendeu a mão para a
mesa e agarrou a caixinha azul.
— Estamos assumindo o caso — informou Kramer e, de novo, o subtexto parecia
dizer que, se o Departamento M tivesse cuidado de tudo desde o princípio, Alexandre
Toledo nunca teria dado o menor trabalho e aquela merda toda jamais aconteceria.
Ramos não disse nada. Esperou que Sprenger enfiasse a caixinha no bolso e os dois
rodassem sobre os calcanhares, abandonando a sala no mesmo passo de ganso com que
tinham entrado. Só então olhou para o lugar vazio que Sprenger e Kramer haviam
ocupado e murmurou:
— Façam um bom proveito.
Pelo menos, não ia ter que preencher dezenas de relatórios em busca de uma
desculpa plausível.
{9}
Every man and every woman is a star.
— The Book of the Law
Acordo de uma noite de sonhos intranqüilos e, por um instante, tenho a impressão de
que me encontro metamorfoseado num inseto gigantesco. Mas não, é o meu velho corpo de
sempre. Foram os sonhos que perturbaram meu sólido senso de identidade. Num deles, eu
estou num apartamento com um gângster e sua amante. Sou um ex-policial de um regime
totalitário, que se passou para o lado dos bandidos ao se dar conta da corrupção dos
mocinhos. Pela porta aberta do apartamento, vejo uma velhinha de pele escura se
aproximando no corredor. A amante do gângster solta uma exclamação de assombro,
reconhecendo a mãe morta. A velhinha-fantasma vai em direção à escada do prédio e eu
percebo que é um holograma projetado por um raio de luz avermelhado. Resolvo segui-la,
para descobrir quem está projetando o holograma. No andar de baixo, tenho a impressão
que ela entrou num apartamento onde está se realizando uma festa, a porta está aberta,
cheio de gente no corredor, no hall de entrada, no interior do apartamento. Tiro do bolso a
identificação de policial que ainda carrego comigo, uma carteirinha branca com detalhes
em azul da INTERPLAN, e entro. Deparo quase com uma bacanal, gente bebendo, comendo,
fazendo uma algazarra insuportável. Prestando atenção nos fiapos de conversa, no entanto,
descubro abismado que é uma reunião da INTERPLAN e que eles estão se preparando para
dar uma batida no apartamento de cima. Finalmente, dou de cara com meu ex-superior que,
ao ver que sou eu, manda me prender.
— Meu amor, você já tá atrasado pro trabalho.
Afasto os fragmentos do sonho e levanto da cama com um movimento decidido. No
espelho do banheiro, é o meu rosto familiar que me olha, com as papadas roxas sob os
olhos castanhos, os cabelos à espera do pente e a marca de nascença em forma de olho na
testa. Quantas gozações eu não tive que aturar por causa desse sinal. Já na escola, a
molecada me chamava de cíclope, de zarolho, de três-olhos. Mas com o tempo, o pessoal se
acostuma. No escritório, por exemplo, ninguém menciona meu terceiro olho tatuado na
pele.
O banho termina de limpar os últimos restos do sonho que tinham ficado na minha
cabeça. É a melhor hora do dia, todos os dias, desde que eu me entendo por gente. A
sensação da água morna escorrendo sobre a pele faz com que eu sinta a minha existência
com mais solidez e intensidade do que nunca.
Sigo a mesma rotina diariamente há mais de dez anos. O despertador toca, mas eu
fico preguiçando na cama até que a minha mulher venha me dizer que estou atrasado. Então
levanto, tomo um banho e, enquanto como o desjejum que Amanda prepara todas as
manhãs, aproveito para repassar os olhos pelas primeiras páginas do jornal. Todo dia ela faz
tudo sempre igual, o leite com chocolate batido, dois dedos de café preto, o pão com
manteiga aquecido no microondas durante quinze segundos. A repetição me conforta como
se fosse um mapa, me dizendo em que ponto do dia eu me encontro a cada instante
determinado. Detesto não saber o que vem pela frente.
Detesto surpresas.
Detesto reviravoltas.
Meu primeiro trabalho foi na empresa de contabilidade onde continuo ainda hoje.
Entrei como office-boy e fui galgando todas as etapas previsíveis, até me tornar contador
sênior. Minha mesa é a quarta a partir do chefe, contando da esquerda para a direita. Os
materiais sobre ela encontram-se arrumados com a maior meticulosidade possível, os
relatórios empilhados num canto, os documentos empilhados no outro, todos os clipes
armazenados no lugar certo, as canetas em ordem no porta-canetas, o teclado do
computador imaculadamente limpo.
Nunca tive outra vida. Nunca quis ter outra vida.
O escritório fica a poucas quadras da minha casa, no Jardim Botânico, de modo que
vou a pé para o trabalho. Meus passos têm a regularidade de um metrônomo e os colegas
costumam dizer, brincando, que dá pra acertar o relógio da firma pela hora que eu entro
pela porta, todos os dias às nove horas e trinta e cinco minutos, nem um a mais, nem um a
menos.
Caminhar me faz bem, estimula a circulação do sangue, uma compensação necessária
para quem passa a maior parte do tempo sentado numa cadeira e cujo único movimento é o
dos olhos saltando da tela do computador para os balancetes, do livro-caixa para o monitor.
De mais a mais, gosto de aspirar o ar puro do Parque Laje, de ver o céu azul brilhando
sobre mim, de assistir o vai-e-vem das pessoas entregues a suas próprias rotinas. Mas,
acima de tudo, gosto de olhar para o Corcovado e ver a Estátua da Liberdade iluminando a
baía de Guanabara com sua tocha.
{10}
I am as one who should have plumed himself for years upon the speed and strength of a
favourite horse, only to find not only that its speed and strength were illusory, but that it
was not a real horse at all, but a clothes-horse.
— dos diários de Aleister Crowley
Chego no escritório às nove horas e trinta e cinco minutos. Na verdade, cheguei às
nove e trinta e três mas, como não queria ser impontual, gastei dois minutos subindo as
escadas, em vez de pegar o elevador. Essa pequena modificação nos meus hábitos diários
vai me perturbar durante todo o expediente, eu sei, mas chegar fora do horário teria sido
ainda mais angustiante.
Tão logo me sento à minha mesa, seu Kramer vem até mim. O nome completo é
Heinrich Kramer e ele é um dos sócios da firma, juntamente com Jacob Sprenger. Os dois
vieram da Alemanha faz quase trinta anos e se alternam na administração da empresa. Às
segundas, quartas e sextas, é Sprenger quem senta na cadeira do chefe. Às terças, quintas e
sábados, é a vez de Kramer. Se eu parar pra pensar, esse esquema de rodízio chega até a
parecer um jeito muito estranho de conduzir um escritório de contabilidade, mas eu nunca
paro pra pensar. Nunca paro pra pensar em nada, a não ser nas minhas tarefas.
— Por que o balancete da Mesbla Sears ainda não está pronto? — pergunta Kramer,
naquele tom duro que só os alemães conseguem dar à voz.
Eu tinha certeza que era isso que ele vinha me cobrar antes mesmo que seu Kramer
abrisse a boca, mas saber antecipadamente não diminui em nada meu desconforto.
— A culpa não é minha — respondo, surpreso por ter que dizer uma coisa tão óbvia.
— Foi o escritório central deles que demorou a fornecer os dados.
Os olhos de seu Kramer se estreitam, o que nunca é prenúncio de boa coisa.
— Quantas vezes eu vou ter que te dizer que a culpa nunca é do cliente?
Talvez tenham sido os dois minutos de diferença, talvez a escada. O fato é que eu me
levanto e encaro meu chefe com um olhar tão feroz quanto o dele.
— E o que o senhor espera que eu faça? Que eu manche a minha folha de serviços
impecável só pra livrar um cliente estúpido da culpa que é dele?
Nunca aconteceu em todos os meus anos na Sprenger & Kramer, Contadores. Nunca
aconteceu em toda a minha vida. Sempre fui um homem humilde, cidadão pacato,
cumpridor de seus deveres, respeitador das autoridades constituídas, dos pais aos pais da
pátria. Comungo todo domingo e fui coroinha aos onze anos. Só pode ter sido a escada.
Kramer pisca os olhos, surpreso
(Que história é essa de Kramer?)
mas não se dá por achado.
(É seu Kramer, esqueceu que ele é teu chefe?)
— Entendo. Mas não te importa manchar a tua impecável folha de serviços com um
ato de insubordinação, importa?
Eu ensaio uma resposta
(me imagino esmurrando a cara de Kramer)
mas nunca chego a completar o movimento.
Estou ocupado demais tentando entender o que é esse estrondo que sacode os
fundamentos do prédio e como foi que se abriu um buraco na parede à minha esquerda.
Todos os funcionários da Sprenger & Kramer se voltam na direção do rombo. Ainda se
pode ver as nuvens de poeira pairando no ar quando entra o primeiro homem, logo seguido
por outros cinco.
Cada um deles segura uma arma na mão.
O resto é rápido demais pra que eu possa entender. Viro na direção do meu chefe, pra
ver como ele está reagindo aos acontecimentos, e ele está segurando uma shotgun. (E como
é que eu sei que é uma shotgun?) Procuro os outros funcionários, que eu sempre achei que
também fossem contadores humildes e pacatos cidadãos, e encontro-os com pistolas e
metralhadoras. Alguns emborcaram as mesas e as estão usando como escudo.
As pistolas e metralhadoras que eles portam têm um ar futurista.
Os invasores também procuram abrigo por trás dos móveis, há os que derrubam
estantes, os que se escondem atrás de cadeiras e os que avançam para as mesas que meus
colegas contadores ainda não transformaram em trincheiras. E de repente, o escritório, meu
escritório familiar, o escritório onde eu trabalho desde que arrumei meu primeiro emprego
como office-boy, dá lugar a uma verdadeira praça de guerra.
(Alguma coisa me diz que é melhor eu me esconder.)
— Entreguem ele e vamos embora sem acabar com vocês — diz o primeiro dos
recém-chegados, que parece ser o líder.
(Me esconder seria mesmo uma ótima idéia.)
— Venham pegá-lo, se vocês acham que podem, satanistas de merda! — responde
Kramer.
(Mas onde é que eu posso me esconder?)
— Depois, não vá a Intempol dizer que a gente não quis negociar — o oponente de
Kramer engatilha sua arma.
(Quem?)
Debaixo de uma saraiva de ruídos de armas sendo destravadas, engatilhadas, de uma
nuvem de movimentos de armas sendo apontadas, miradas, noto a porta do banheiro
entreaberta. É pra lá mesmo que eu vou correr.
Estou bem no meio da sala quando o tiroteio começa.
{11}
And in my name shall they work miracles, and confound our enemies,
and none shall stand before us.
— The Book of the Antichrist
Dura apenas alguns segundos, mas tenho a impressão de que demora uma eternidade
para acabar, todos esses disparos explodindo ao meu redor e eu feito em cego em tiroteio,
que é mesmo a minha situação, exceto pelo fato de que não sou cego, pelo menos não no
sentido físico do termo. Nem cego, nem surdo, e o barulho faz os meus tímpanos gritarem
em protesto, meu corpo todo estremece, sei que a qualquer momento vou ser atingido por
uma saraivada de balas e cairei no chão, crivado de estilhaços, o São Sebastião dos
contadores. A última visão que levarei deste mundo será a constatação abismada de que o
trabuco de Kramer não dispara projéteis, mas pacotes de luz, e o que quer que eles atinjam
se dissolve no ar, como se nunca tivesse existido.
— Sai da linha de tiro, seu idiota! — berra Kramer.
Uma parte de mim cuja existência eu nem sequer conhecia reage com a fúria de uma
besta ao grito do meu chefe. Esse outro eu assume o comando do meu corpo, passa a
movimentar meus braços, minhas pernas, minha cabeça. Só me resta ficar de lado,
observando, enquanto ele se desvia das balas com a velocidade de um raio. Sei que
ninguém vai me acreditar, mas é o que acontece. Ele abre caminho em direção a Kramer,
que arregala os olhos como se estivesse vendo o diabo em pessoa. Tento correr atrás de
mim mesmo, mas quando consigo me alcançar, essas mãos que não são mais minhas
ergueram meu chefe pelo pescoço e o atiraram para longe. Por algum motivo que
desconheço, Kramer se recusa a usar contra mim o trabuco que, no entanto, segura firme
junto ao peito, uma mãe embalando seu filho de colo com carinho e dedicação.
Um ponto de luz vermelha aparece sobre a minha testa. Depois outro. E mais outro, e
mais outro, até que meu corpo está coalhado de pontos vermelhos, até se poderia dizer que
fui infectado por uma variante nova de sarampo.
— Eu arranco pessoalmente o fígado do primeiro imbecil que puxar o gatilho —
adverte Kramer, ainda se recompondo do baque.
Meus colegas contadores abaixam suas armas e os pontos vermelhos desaparecem.
— Vem com a gente — diz o líder dos invasores. Seus cabelos são negros feito saco
de crina e curtos como a respiração de um enforcado. Olhos azuis, fundos, do tipo que
minha mulher costuma chamar de olhos de caverna, porque é como se o olho fosse a
entrada de uma caverna grande, escura, profunda. E lá dentro vivesse alguma coisa que não
é inteiramente humana. Uma fera, pronta pra pular em cima da gente, devorar a carne,
deixar só os ossos. A barba cerrada e a cicatriz na face esquerda só aumentam essa
impressão de ferocidade.
— Ir com vocês pra onde? — pergunto. Não sei quem é esse meu chefe que atira com
um trabuco desintegrador, e não tenho certeza se quero descobrir.
— Pro lugar a que você pertence — responde o homem da cicatriz.
Do que ele está falando?
— Meu lugar é em casa, com a minha mulher.
— Você nunca foi casado com essa tal de Amanda — ele diz.
— Não preste atenção nesse adorador do diabo! — intervém Kramer, mas nem eu,
nem o homem da cicatriz ligamos para suas palavras.
— Eu me lembro do casamento — protesto.
— Você se lembra de muitas coisas.
Onde foi que eu já ouvi esse diálogo antes?
— Como eu sei que posso confiar em você? — essa pergunta também me desperta
ecos que não sou capaz de localizar com precisão, alguém me perguntou isso, há muito
tempo, quase numa outra vida.
— Porque você me conhece — o homem da cicatriz responde.
Não é verdade, eu nunca o vi antes.
— Você me conhece, mas não se conhece. Não faz a menor idéia de quem você é.
— Eu sou Antônio Colares, contador sênior.
— Não, não é.
— Cale essa boca! — berra Kramer, disparando contra o homem da cicatriz e
obrigando-o a se jogar para trás de um arquivo de metal cinzento. Na lateral do móvel,
surge um rombo, expondo suas entranhas de papel carcomido e chamuscado.
Olho para Kramer, o rosto contorcido num esgar maníaco. Olho para o homem da
cicatriz, a marca em seu rosto brilhando de raiva. Olho para os destroços da vida que eu
sempre vivi. Tudo o que vejo são as ruínas de um edifício que talvez nunca tenha existido.
Não me conheço. Não faço a menor idéia de quem eu sou.
Viro as costas para o escritório da firma Sprenger & Kramer, Contadores, e saio
andando em direção às escadas.
Atrás de mim, o tiroteio recomeça.
{12}
O man! refuse not thy wife, if she will!
— The Book of the Law: I, 41
Abro a porta de casa com as mãos tremendo. Amanda está sentada no sofá, assistindo
TV, e eu me jogo no colo dela, soluçando. Minha mulher acaricia os meus cabelos,
maternal, protetora, e basta esse gesto para eu me lembrar de todos os motivos pelos quais
casei com ela.
— O que foi? — ela pergunta baixinho. — O que é que o meu menino tem?
Leva alguns minutos até eu ter condições de responder. Percorri o caminho entre o
escritório e a minha casa quase correndo, num estado de crescente exaltação histérica.
Tinha a impressão de que cada indivíduo na rua me olhava com suspeita, de que as pessoas
nas janelas vigiavam todos os meus passos, de que a qualquer momento os fregueses nos
bares e lojas iam sacar um fuzil do nada e mirar entre os meus olhos. Os edifícios davam a
impressão de serem apenas fachadas de madeira e papelão sustentadas por vigamentos e o
próprio asfalto não tinha mais consistência do que uma pintura naïve. Agora, o colo de
Amanda me parece a única realidade palpável do mundo e eu tenho medo de levantar a
minha cabeça para encará-la e perder o último abrigo que me resta.
Conto a estranha manhã pela qual acabo de passar, o grupo armado que invadiu o
escritório da Sprenger & Kramer, o dia de trabalho rotineiro que se transformou numa
batalha campal. Falo de como todos os outros funcionários da empresa de repente se
revelaram exímios atiradores e descrevo o trabuco desintegrador de Heinrich Kramer.
Relato o estranho diálogo que travei com o homem da cicatriz, como ele me disse que eu
nunca fui casado com Amanda e que eu não faço a menor idéia de quem sou na realidade.
— Então eles te encontraram — comenta a minha mulher quando termino, e não resta
mais o menor traço de doçura ou carinho em sua voz. — Vamos ter que tomar outras
providências.
Amanda me empurra de lado e levanta, toda competência e profissionalismo.
— O que você vai fazer? — pergunto, ainda abismado com a transformação da minha
esposa.
— Vou proteger você, Antonio — por um momento, a máscara de carinho retorna ao
rosto dela. — Como eu sempre fiz.
Amanda desaparece no quarto. Ouço a dobradiça gemer quando a porta do guarda-
roupa é aberta. Depois, escuto ruídos eletrônicos, o barulho de um painel deslizando. Em
seguida, minha mulher volta com um óculos de lentes opacas e um objeto comprido em
suas mãos. O objeto é uma shotgun de cano curto.
Será possível que eu sou a única pessoa em todo o universo que não tem uma arma?
— Pega as tuas coisas — ela diz, numa voz de comando, para logo em seguida mudar
de idéia. — Pensando bem, não pega porra nenhuma. Só ia atrapalhar a gente.
Sem me dar tempo de dizer nada, Amanda me agarra pelo braço e empurra na direção
da porta.
— Vamos pela escada, não quero dar de cara com eles na saída do elevador.
Ela parece saber quem são "eles", mas desconfio que não é um bom momento pra
perguntar.
Descemos as escadas às escuras. Amanda toma o cuidado de apagar a luz de cada
andar antes de descermos o próximo lance de degraus e, às vezes, sem paciência para
procurar o interruptor, arrebenta a lâmpada com um tiro.
Como é que os vizinhos não saem pra ver o que é esse barulho?
As lentes dos óculos de Amanda emitem uma luminosidade baça, avermelhada,
desconfio que é algum tipo de sensor que lhe permite enxergar no escuro. Eu não disponho
da mesma facilidade, tropeço a todo instante e uma vez chego a rolar por cima de Amanda,
que me empurra de lado sem a menor cerimônia.
Chegamos no térreo, Amanda abre a porta com o pé, devagarinho, a shotgun pronta
pra disparar. Não há ninguém à vista e ela me faz sinal para segui-la.
Saímos para a luz do dia e meus olhos se fecham automaticamente. Amanda retira os
óculos e os guarda no bolso, sem nunca descuidar da vigilância.
— Não importa o que eles digam, — Amanda fala de olho no hall de entrada — essas
pessoas querem te matar.
— Mas quem são eles? — agora talvez seja um bom momento para perguntar.
— São os thelemitas — responde, como se isso esclarecesse tudo. — Adoradores do
demônio.
Só falta ela dizer que eles querem me sacrificar num ritual de magia negra.
— Eles querem te sacrificar num ritual de magia negra.
É demais pra mim. Adoradores do diabo e rituais de magia negra não cabem na
minha pobre cabeça de contador, toda feita de números e certezas, e Amanda percebe a
incredulidade no meu rosto.
— Você não faz a menor idéia, não é? — ela diz, levando a mão a um botão
escondido no cinto da calça.
E bem diante dos meus olhos, minha mulher se transforma em Jacob Sprenger.
{13}
Esta noite, eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, acordei
No dia em que a Terra parou
— Raul Seixas
Sprenger rosna com impaciência:
— Nunca me viu, não?
Ainda não me recuperei do choque.
— O que você fez com Amanda?
Ele solta uma gargalhada estridente.
— Quem te descreveu como dono de uma inteligência demoníaca não sabia do que
estava falando.
Quem me descreveu como dono de uma inteligência demoníaca?
— Vamos, não temos tempo a perder!
Sprenger me puxa pelo braço, a outra mão segura firme a shotgun. A cautela e a
suspeita se misturam nos olhares que ele lança para os lados, como que esperando o
inimigo que a qualquer momento há de saltar das sombras. Mas não existem sombras. Uma
luz solar ácida se derrama sobre o Rio de Janeiro, arrancando nuvens de vapor do asfalto.
— Era você desde o começo? — eu pergunto, lembrando da noite de núpcias com um
estremecimento.
— Não se preocupe, nunca tivemos nenhum contato físico — Sprenger esclarece, e
parece ainda mais aliviado do que eu.
— Como é possível?
— Um conjunto de sugestões pós-hipnóticas. Parte do teu condicionamento.
Eu não entendo a parte sobre o meu condicionamento, mas Sprenger conclui que o
que eu não compreendi foram as sugestões pós-hipnóticas e pergunta se eu quero ver.
Encolho os ombros, o que ele interpreta como um sim.
— Meu amor — ele diz, — você já tá atrasado pro trabalho.
E eu me lembro nitidamente de ter descido o elevador com Amanda, os dois
abraçados, trocando carícias enquanto os andares passavam por nós. Ao mesmo tempo,
porém, conservo o outro conjunto de memórias, o da descida pelas escadas, provavelmente
porque Sprenger disse a frase-gatilho com sua própria voz e não com o simulador vocal de
Amanda.
Por que alguém se daria a todo esse trabalho para me manter sob vigilância
constante?
— Taí uma coisa que você nunca vai saber — responde Sprenger. — Pelo menos, não
da minha boca.
Passamos pela guarita do porteiro, Sprenger e o funcionário trocam um olhar
significativo, os dedos do meu guarda-costas traçam no ar um sinal em código que o outro
compreende e assente com a cabeça.
— Se a gangue do Parsons vier te procurar aqui, vão ter uma bela surpresa —
Sprenger murmura, mais para si próprio do que para mim.
Descemos até a garagem do prédio, Sprenger me leva até o carro de Amanda.
— Para onde vamos? — pergunto.
Ele abre a porta e me empurra para dentro.
— Quem somos, de onde viemos, para onde vamos? — diz, tomando lugar no
assento do motorista. — Detesto questões metafísicas.
O carro arranca.
Atravessamos uma cidade estranhamente deserta. Não há automóveis nas ruas nem
pedestres nas calçadas. Até mesmo a Voluntários da Pátria, habitualmente sempre lotada de
gente, encontra-se vazia. Na Praia de Botafogo, ninguém corre ou caminha pelo calçadão,
não se vê uma bicicleta na ciclovia, ninguém toma cerveja nos botecos. Um silêncio
sepulcral caiu sobre o Rio de Janeiro. Quem seria capaz de dizer que, até há poucos
minutos, eu tinha a nítida impressão de estar sendo observado por todo mundo em volta?
Agora não há ninguém em volta para me observar.
Sprenger dirige em silêncio, os olhos duros cravados no pára-brisa com uma
intensidade tal que me admira o vidro não estilhaçar. Eu não consigo me conter:
— Onde é que estão as pessoas?
Ele nem se dá ao trabalho de me olhar.
— Mais questões metafísicas — grunhe. — Elas foram evacuadas.
Penso em perguntar evacuadas pra onde, mas o tom metálico na voz de Sprenger me
faz desistir da idéia.
O carro segue em direção ao Túnel Santa Bárbara, o barulho do motor reverberando
pelas paredes como um uivo fantasmagórico que ecoa ao longo dos séculos, uma maldição
que se perpetua, o grito de um condenado atravessando os abismos do tempo.
Alguma coisa me diz que o condenado sou eu.
Sei que não corro risco de vida, ainda me lembro de Kramer ameaçando fuzilar quem
me acertasse um tiro, mas sei também que existem destinos piores do que a morte e as
possibilidades que passam pela minha cabeça são as mais tenebrosas possíveis.
Penso em abrir a porta do carro e saltar. Imagino meu corpo rolando pelo asfalto do
túnel. Será que eu sobreviveria? Será que conseguiria levantar e fugir antes que Sprenger
tivesse tempo de usar a shotgun que jaz atravessada em seu colo?
Infelizmente, eu nunca vou descobrir a resposta para essa pergunta.
Estamos quase saindo do outro lado quando chega aos nossos ouvidos um barulho
estridente e contínuo, feito o som de uma metralhadora ou um solo de bateria. Uma nuvem
de poeira, papel picado e sujeira rodopia no chão e uma sombra enorme surge na boca do
túnel. Atônito, percebo que é um helicóptero negro bloqueando a saída. Sprenger solta um
puta que pariu comovido e dá marcha-a-ré com toda velocidade.
Um segundo helicóptero negro bloqueia a entrada.
{14}
Only in the irrational and unknown direction can we come to wisdom again.
— Jack Parsons.
Sprenger freia o carro e fica um instante encarando o vazio, a expressão de
determinação maníaca de volta ao seu rosto. As ondas sonoras dos dois helicopteros se
encontram no meio do túnel e reverberam pelas paredes, criando uma cacofonia dos diabos.
Não tenho a menor dúvida do que ele pretende fazer.
Deveria ter tentado saltar. É claro que eu podia morrer pulando do carro, ou Sprenger
podia cagar para as ordens de Kramer e me acertar uma bala no cocuruto, mas havia uma
chance de não acontecer nada disso e eu conseguir escapar mais ou menos ileso.
(Cacofonia dos diabos, cagar, desde quando eu uso esse vocabulário?)
Sprenger mete o pé na tábua e o urro do motor protestando contra o excesso
inesperado vem se juntar à salada sonora em que o Túnel Santa Bárbara se transformou.
Filho da puta suicida.
O Santa Bárbara se converte num borrão em movimento e o automóvel dispara em
direção à boca do túnel. Não dá pra saber a reação dos tripulantes nos helicópteros, os
vidros são todos escuros e não se entrevê nem sequer uma sombra.
No lugar deles, eu ficaria apavorado.
Quer dizer, não precisa ser nenhum adivinho pra perceber que o Sprenger é maluco,
ele não vai parar enquanto não conseguir jogar o carro em cima do helicóptero, transformar
os dois veículos numa maçaroca retorcida de ferragens fumegantes, como as vértebras
expostas de um suicida.
Um filete de baba escorre pelo canto da boca de Sprenger.
O helicóptero levanta vôo no último segundo antes da colisão e eu posso jurar que
escuto um gemido frustrado escapar da boca de Sprenger no momento em que o automóvel
irrompe do lado de fora do morro.
Suponho que o passatempo dele era atropelar velhinhas.
O helicóptero dá uma volta no ar e se põe no encalço do nosso automóvel. Instantes
depois, o segundo helicóptero se junta ao primeiro na caçada. Os dois são idênticos,
totalmente pretos, sem nenhuma identificação ou código.
Sempre com o carro na velocidade máxima, Sprenger segue pela rua dos Coqueiros e
em seguida toma a Marquês de Sapucaí. Os pneus arrancam faíscas do asfalto negro e eu
não sei como ele não perde o controle da direção e enfia o veículo num poste. Um dos
helicópteros contorna o Monumento ao Imigrante Japonês e vem pra cima da gente.
Pequenas centelhas saem das laterais do helicóptero, seguidas por uma saraivada de ruídos
secos em torno do automóvel.
Eles estão atirando.
Sem diminuir a velocidade, Sprenger pega a shotgun e bota metade do corpo pela
janela do carro. Mira na direção do helicóptero e dispara. Uma esfera brilhante brota da
boca da shotgun e, quando o aparelho desvia, atinge a lateral de um prédio, provocando
uma bola de fogo e fumaça.
Tem horas que eu queria ser um peixe.
As rodas do carro soltam um guincho horrorizado quando Sprenger esterça para
entrar na Av. Presidente Vargas. Suponho que, com todos aqueles prédios, os helicópteros
vão ter alguma dificuldade em nos seguir, mas é engano meu. Não dá nem um minuto e lá
vem eles.
Sprenger entra numa rua lateral e toma um labirinto de ruelas, na esperança de
despistar nossos perseguidores. No entanto, quando emergimos na Av. Rio Branco, eles já
estão esperando por nós.
— Merda — resmunga Sprenger.
Como é que eles sabiam que estávamos indo para a Rio Branco?
A cara de Sprenger é a de um lutador de luta-livre no momento em que desiste do
combate e pede água. Ele estende a mão para o painel do carro e aperta um botão. Ouve-se
uma voz dizendo para o agente se identificar.
— Agente Jacob Sprenger, com o pacote.
Após uma pausa, a voz faz-se novamente ouvir:
— Prossiga, agente Sprenger.
— Estou na Av. Rio Branco, a caminho da empresa. Mas tem dois urubus na minha
cola.
Desta vez, a pausa é quase imperceptivelmente mais longa.
— Entendido, agente Sprenger. Estamos mandando reforços.
— Merda — Sprenger repete ao cortar a comunicação.
Por acaso, o pacote de que ele falou sou eu?
Os reforços que a empresa mandou, seja lá qual for a empresa, nunca chegaram. Ou,
se chegaram, não nos encontraram à espera deles.
Um dos helicópteros pousa no meio da Av. Rio Branco. Sprenger diminui a
velocidade. A hesitação não dura muito, em poucos segundos ele estará reprisando o
espetáculo suicida lá do túnel, mas é o suficiente para que o outro helicóptero faça sua
parte. Seu barulho fica um pouco mais alto e logo depois ouvimos duas pancadas metálicas
de ambos os lados do carro. Minha primeira impressão é a de que os prédios estão
desabando e eu solto um berro de espanto.
— Não seja estúpido, Colares — grunhe Sprenger, e ele tem toda razão.
Não são os prédios que estão caindo.
É o automóvel que está subindo.
{15}
Parsons opened a door and something flew in.
— Kenneth Grant,
Outside the Circles of Time
O helicóptero atravessa os céus do Rio de Janeiro nos levando a reboque e eu me
pego imaginando o que aconteceria se os ganchos que prendem o automóvel ao aparelho
por acaso quebrassem no meio do caminho, deixando o carro se estatelar nos morros lá
embaixo. Mas os ganchos agüentam firme e durante todo o percurso, Sprenger não pára de
acariciar a shotgun em suas mãos de uma maneira quase obscena.
As tentativas de entrar em contato com a misteriosa empresa pelo rádio do carro só
conseguem captar estática. De alguma forma, o helicóptero bloqueia a comunicação, o que
apenas aumenta a irritação silenciosa do homem sentado no banco do motorista e que até
então eu conhecia ou como um dos meus chefes ou como a minha bem-amada esposa, sem
jamais desconfiar que fossem a mesma pessoa.
Sei que, dizendo assim, fica difícil de acreditar e parece até meio ridículo. Mas
considere que ele usava algum tipo de camuflagem eletrônica que o fazia ficar parecendo
uma mulher.
Tomamos o rumo da Pedra da Gávea, que observa nossa aproximação com sua
impassibilidade de esfinge. A aeronave embica de lado e pára diante de um enorme portal
escavado na rocha, que se abre com um pesado barulho de rolamento.
— Debaixo do nosso nariz — Sprenger vocifera. — Debaixo do nosso nariz.
O helicóptero entra pela abertura revelada num dos lados da pedra e o portal se fecha
outra vez atrás de nós.
Cresci ouvindo as lendas que circulam sobre a Pedra da Gávea, os malucos que
acham que ela é uma construção artificial, os que a atribuem aos atlantes, aos extraterrestres
ou aos fenícios. Nem eu nem ninguém que tenha os parafusos no lugar costumamos dar
muita trela a esses boatos, mas agora eu me arrependo disso. Se eu tivesse prestado mais
atenção ao falatório, acho que teria pelo menos alguma idéia do que nos aguarda quando o
aparelho solta o carro no piso da enorme caverna que se esconde no interior da montanha e
aterrisa alguns metros adiante, sobre um heliporto com uma espécie de hieróglifo como
emblema.
O hieróglifo é idêntico à marca de nascença em minha testa.
Sprenger desce do carro já fazendo mira na porta do helicóptero. Mas mal dá dois
passos, que ecoam pelas paredes como um exército marchando, e cai duro com um baque
surdo.
Vou até ele e me ajoelho ao seu lado. Sprenger está vivo, mas inconsciente. Pra ser
sincero, eu diria pelo ronco que escapa do peito dele que Sprenger está é ferrado no sono.
— Acho que agora dá pra gente conversar — diz uma voz às minhas costas.
Eu me viro e, como já esperava, encontro o homem da cicatriz.
— O que foi que aconteceu com ele? — indico Sprenger com um movimento da
cabeça.
— Gás.
Dou uma fungada, o ar tem mesmo um cheiro estranho.
— E por que é que eu não estou dormindo também?
O homem da cicatriz se aproxima.
— É um gás configurado especificamente para o padrão psicofisiológico de Sprenger.
Não sei se é sensato deixar o homem da cicatriz chegar tão perto. Meu olhar
escorrega para a shotgun caída ao lado de Sprenger.
— Não se preocupe, eu não mordo.
A essa altura dos acontecimentos, não sei mais em quem confiar.
— Você pode não acreditar, mas nós já fomos amigos
— Seu nome é Parsons? — pergunto.
O homem da cicatriz abre um sorriso.
— Você lembrou!
Balanço a cabeça.
— Sprenger falou de você. De você e dos thelemitas.
A decepção em seu rosto é visível.
— Pena. Mas temos como fazer você lembrar.
Aponto a marca em minha testa.
— Por que este símbolo?
— É o seu sigilo pessoal. Nós o usamos para marcar nossa ligação com você. O
Departamento M usou pra te aprisionar nessa forma.
Ainda não consigo baixar a guarda.
— O que é o Departamento M?
Parsons olha Sprenger com desdém.
— Ele é o Departamento M. Ele e Kramer. E os outros. Os que criaram esta linha
temporal alternativa como uma masmorra pra você.
Ele encolhe os ombros, pensativo.
— Foi uma jogada esperta. Quem ia te procurar na América do Sul? Pior, na América
do Sul de um universo obscuro, num canto qualquer das realidades possíveis?
— Quem são os thelemitas? E que porra eles têm a ver comigo — pergunto. Não
entendo nada do que Parsons está dizendo e não quero que ele mergulhe numa divagação
interminável.
— Você vai saber no devido momento. A hora ainda não é própria.
— Quando a hora própria chegar, você vai me dizer?
— Não. Você vai se lembrar.
Resolvo mudar de tática.
— Essa organização que você lidera...
Mas ele me interrompe, com uma surpresa que não parece nada fingida:
— De onde você tirou essa idéia?
— Você não é o líder dos thelemitas?
Parsons sacode a cabeça com veemência.
— É claro que não.
Uma porta se abre no fundo da caverna, para dar passagem a um velho de longas
barbas brancas.
— Ele é o líder.
O corpo todo do velho emite uma luz intensa.
Uma intensa luz vermelha.
{16}
One is the key.
Chosen for those that free.
And in the day of balance it shall be three for ye.
— Liber Omonoia, 6

O velho é totalmente calvo e seus olhos são negros, sem separação visível entre
córnea, íris ou pupila. Uma impressão de sabedoria transcendente emana desses olhos.
Sabedoria e bondade, mas uma bondade que, há qualquer momento, pode ser substituída
por formas muito mais terríveis de atenção.
Parsons se afasta para um lado, a fim de lhe dar passagem, e o velho caminha
lentamente em minha direção. Sorri, de modo paternal.
— Tivemos bastante trabalho para encontrá-lo — ele diz. — A Intempol soube
esconder você muito bem.
Parado diante de mim, uma cabeça mais alto que eu, o velho toca o sigilo em minha
testa.
— Mas agora estamos prontos para a Reunificação.
Sprenger se remexe no chão, mergulhado em um sono inquieto. O efeito do gás deve
estar passando.
— É melhor levá-lo para um lugar seguro — o velho se volta para Parsons, que
imediatamente se põe a caminho, a fim de cumprir a ordem.
— Sprenger falou de uma empresa — eu digo. — Ele estava se referindo à Intempol?
O velho faz que sim. Uma aura de numinosidade se desprende de seu corpo e, quando
ele fala, é como se sua voz atravessasse a poeira dos séculos.
— Uma corja que se auto-intitula polícia do tempo. Eles proclamam ser os guardiões
da realidade, mas servem apenas a seus próprios interesses pervertidos.
— E o que eles querem comigo?
O sorriso paternal retorna ao rosto do velho.
— Tenha paciência, meu pobre ego alienado. Em breve, tudo se esclarecerá.
Parsons volta com dois thelemitas, um rapaz magricela e um sujeito parrudo, que
pegam Sprenger pela cabeça e pelos pés, e o levam para fora da caverna.
— Agora podemos continuar com mais tranqüilidade. O Departamento M não vai
mais nos incomodar.
Penso em perguntar de novo o que é o Departamento M, na esperança de, desta vez,
receber uma resposta que eu consiga entender, mas o velho se antecipa:
— O Departamento M é a divisão da Intempol que cuida da magia e do sobrenatural.
É a segunda vez que alguém se refere ao sobrenatural nessa história. A primeira foi
quando Sprenger disse que os thelemitas eram adoradores do diabo, que queriam me
sacrificar em um ritual de magia negra.
— Sprenger não estava totalmente errado — esclarece o velho, e eu estremeço. —
Pelo menos, se considerarmos o ponto de vista distorcido que ele e Kramer compartilham.
Como foi que o velho leu meus pensamentos?
— Porque, num certo sentido — suas palavras são densas, graves, como o peso de
uma revelação, — os seus pensamentos são os meus pensamentos.
O velho me pega pelo braço e conduz para a porta por onde ele entrou na caverna,
momentos atrás. Me ocorre que é dele o rosto esculpido na Pedra da Gávea.
— Ah, sim. Desde que o descobrimos, estamos esperando por você. Esperando e nos
preparando. Durante muito tempo.
O velho me conduz até uma espécie de templo escavado na rocha, um andar abaixo
do heliporto. Não é muito grande, mas dá a impressão de conter um espaço mais vasto do
que caberia em suas reduzidas dimensões. É um recinto circular, dominado por um altar de
pedra, mais ou menos do tamanho e do formato de um leito. Nos pés do altar, vejo
novamente o meu sigilo em baixo-relevo e dos dois lados há uma mesma frase gravada:
"Faze o que Tu queres" há de ser toda a Lei.
Há uma mulher nua deitada sobre o altar.
Seu corpo brilha com a mesma luz vermelha que o velho e os olhos têm um negrume
idêntico. Poderiam ser pai e filha, e talvez sejam isso mesmo.
— Aproxime-se — insta o velho. — Aproxime-se de Babalon.
Eu obedeço, cada vez mais curioso. Tão logo chego diante do altar, Babalon me
enlaça com seus braços e me puxa em direção ao leito de pedra. De muito longe, escuto a
voz do velho, numa cantilena hipnótica:
— Eu sou a Besta do Apocalipse. Sou o devorador de mundos, o princípio e o fim,
sou a serpente do paraíso.
De repente, estou igualmente nu, sem que eu saiba o que foi feito de minhas roupas.
— Sou Shaitan e Aiwass, a força que cria e destrói universos, o primeiro nome a ser
pronunciado, o último a ser esquecido, sou a memória de tuas verdadeiras origens e o
cântico que entoaste ao despencar das alturas celestiais.
Babalon me beija e de sua garganta vem um hálito quente, flamejante, que parece
consumir minha alma por dentro. Eu a penetro...
— Sou o espírito da alma do mundo...
...e nossos corpos se confundem num amálgama de carne e luz.
— Sou o guardião dos segredos, o Deus acima de Deus.
O gozo sobe pelas minhas entranhas como uma explosão furiosa, capaz de aniquilar a
realidade em seu espasmo.
— Eu sou.
Meu esperma flui para o ventre incandescente de Babalon no instante mesmo em que
um gigante vermelho arranca minha cabeça com suas garras.
{17}
The Perfect and the Perfect are one Perfect and not two; nay are none!
— Liber Al 1: 45
Uma sucessão de imagens desconexas rodopia em volta de mim. Minha primeira
reação é achar que a cabeça, separada do corpo, está rodando pelo chão da caverna com os
olhos abertos. Mas em seguida, percebo que as imagens são como flashes de diferentes
cenas acontecidas em cenários diversos, fragmentos de uma vida que não é a minha e que,
no entanto, me parecem mais familiares do que a minha própria vida.
Vejo uma equipe escalando o Everest e um casal nas areias do Egito, o Louco no
Tarô, um velho injetando heroína, um ritual de iniciação maçônico, a Morte no Tarô, uma
atriz ruiva que escancara a boceta pra mim, um moleque vestido de kilt brandindo uma
espada, o Diabo no Tarô, uma festa dos Mortos nas ruas do México, com suas caveiras de
açúcar, e uma cerimônia de feitiçaria kahuna nas praias havaianas, a Imperatriz no Tarô, a
dança de uma deusa encarnada nos templos do Ceilão, um sacrifício humano nos templos
da Índia, uma abadia na Sicília e uma igreja na Inglaterra, o Enforcado no Tarô, as ruas de
Nova York e os esgotos de Paris, os labirintos do Plano Astral e os demônios de Madri.
O Mago no Tarô.
Então tudo some. Não há mais paisagens exóticas nem cartas do Tarô. Até mesmo o
gigante vermelho e a mulher escarlate desapareceram, como se não fossem mais do que a
alucinação que provavelmente eram. Restamos apenas eu, o altar de pedra e o velho que
afirma se chamar Aiwass e Shaitan.
Caio de joelhos ao lado do altar e vomito.
Depois, vomito de novo.
Me apóio no leito de pedra e levanto, a boca ainda amarga com o sabor do vômito, as
pernas ainda trêmulas com o caleidoscópio visual. As paredes da caverna oscilam e eu
tenho um princípio de vertigem que quase me faz vomitar uma vez mais.
Um Jack Parsons saído não se sabe de onde me ampara antes que eu me estatele no
chão com um baque.
— Você está bem? — ele pergunta.
Não consigo responder. As palavras chegam até a garganta e se recusam a continuar.
Olho para o velho com um ar de desespero.
— Relaxe — aconselha Aiwass e se volta para Parsons: — Traga um copo d'água.
Meu pobre ego alienado passou por uma prova difícil. Mas agora estará um pouco menos
alienado.
Parsons desaparece e volta um instante depois com a água, que eu bebo num grande
gole, para afogar a vertigem. A água cai no meu estômago como um jato frio e exerce um
efeito calmante em meus sentidos exaltados.
— O que aconteceu? — eu quero saber, a voz ainda trêmula se perdendo na
imensidão da caverna.
— O trabalho de uma vida inteira realizado em uns quantos minutos.
Estendo o copo vazio para Parsons, que some com ele por algum passe de mágica. O
estilo enigmático, sibilino de Aiwass começa a me dar nos nervos.
— Será que dava pra ser um pouco mais claro?
Aiwass dá uma gargalhada e eu sei exatamente do que ele está rindo. O antigo
Antonio Colares jamais seria capaz de tanta arrogância diante de uma série de
acontecimentos tão evidentemente sobrenaturais. Mas o antigo Antonio Colares morreu
decapitado e a personalidade que assumiu o lugar dele está mais de acordo com o sujeito
que arremessou Kramer contra a parede e fala aos palavrões e detesta a rotina que era o
alento e a vida do meu velho eu.
— Agora você começa a entender — comenta Aiwass, mas ele está errado, porque eu
não começo a entender porra nenhuma.
— Você já integrou a sua anima e a sua sombra — ele explica. — Só falta mais um
degrau para completar a Reunificação.
Antes que eu consiga perguntar qual seria esse degrau, o velho se adianta e retira sua
túnica, que entrega a um reverente Jack Parsons. Em suas mãos, há uma adaga de lâmina
retorcida, o cabo em forma de serpente entalhado em, sei lá, marfim ou madrepérola. Eu
recuo à visão da arma.
— Não tenha medo — diz Aiwass. — A adaga não é para você.
Diante de meus olhos incapazes de reagir, ele crava a adaga em seu peito e escava um
buraco. O sangue escorre de sua carne, vermelho sobre vermelho. Com a outra mão,
mergulha na ferida e arranca o próprio coração, que exibe sobre a palma como uma criança
orgulhosa do prêmio que acaba de conquistar.
— Tomai e comei — diz, estendendo-me o coração ainda palpitante. — Este é o meu
corpo.
Nesse momento, ouve-se um disparo e o coração de Aiwass explode numa pasta de
carne sanguinolenta, enquanto o velho desaparece com um grito de dor lancinante. Parsons
e eu olhamos ao mesmo tempo na direção do disparo.
Amanda está na porta da caverna. Com a shotgun de Sprenger.
{18}
I adore the might of thy breath,
Supreme and terrible God,
Who makest the gods and death
To tremble before Thee:-
I, I adore thee!
— Liber Al, capítulo três
Por um momento, fico olhando para Amanda bestamente, me perguntando como ela
fez para conseguir a arma de Sprenger. Depois, me lembro que Amanda é Sprenger e a
pergunta passa a ser como foi que ela escapou aos efeitos do gás.
— Vocês devem estar se perguntando como foi que eu escapei aos efeitos do gás —
diz Amanda, sem nunca abaixar a arma.
— Isso é óbvio — retruca Parsons, a voz carregada de tensão.
Só se for óbvio para ele.
— O gás foi preparado pra estrutura do Sprenger, não para a Amanda.
Certo, isso é óbvio. Mas Amanda não gosta nenhum pouco de Parsons ter roubado
seu momento Fu-Manchu.
— Você é um desmancha-prazer, Parsons. Agora, seja um bom garoto e se afasta.
Parsons recua. Amanda me olha, irônica.
— Sentiu minha falta, querido?
Meu corpo enrijece ao ouvir a palavra de ordem. Um batalhão de reflexos
condicionados luta para se apossar do meu cérebro e me obrigar a ver a realidade da
maneira como as sugestões pós-hipnóticas que recebi querem que eu veja. Consigo senti-
los enquanto tentam atravessar as minhas sinapses, restabelecer determinadas ligações
neurais, ativar algumas áreas do cérebro e desativar outras.
Surpreendentemente, não me dá o menor trabalho dissolvê-las.
— Ah merda, cheguei tarde — pragueja Amanda, ao ver que a minha lavagem
cerebral não está mais funcionando. — Tá certo, vai ter que ser do jeito primitivo.
A boca da shotgun volta-se na minha direção. Parsons tenta se aproveitar da distração
momentânea, mas Amanda é mais rápida. Uma bola luminosa explode aos pés de Parsons,
cavando uma cratera.
— Eu devia mirar mais pra cima — diz Amanda. — Pena que não é nessa explosão
que você vai morrer.
Acho que Parsons sabe do que ela está falando, porque resolve ficar quietinho no
canto dele.
— Como eu estava dizendo, você vem comigo. É uma bosta, porque a gente vai ter
que começar do zero de novo. Mas a vida é assim mesmo.
Eu não me mexo.
— Qual é, Colares, resolveu bancar o durão?
Ela não pode me matar.
— Tá achando que eu não posso te matar?
Não pode fazer nada comigo.
— Que eu não posso fazer nada com você?
Amanda se aproxima, a maldade faiscando em suas pupilas. Como é que eu nunca
percebi essa maldade que é tão dela? Sugestões pós-hipnóticas de merda...
— Você tem razão. Se eu te matar, o Conselho Diretor me manda pra Prisão dos
Homens que Nunca Existiram antes mesmo que o teu cadáver acabe de cair no chão.
Amanda pára diante de mim, olho no olho, uma deusa-pantera prestes a desencadear
um dilúvio de sangue sobre o mundo, se for necessário.
E mesmo se não for.
— Mas ninguém falou nada sobre te machucar.
O cano da shotgun encosta na minha coxa esquerda.
— Depois eles te reconstróem.
Amanda puxa o gatilho.
— Só que até lá, vai doer feito o diabo.
Eu caio no chão, segurando a coxa destroçada com as mãos ensangüentadas, os
sentidos mergulhando numa estranha dissociação. No início, você sente apenas horror
diante da enorme ferida que se abriu na tua perna. Mas espera só um segundo e logo você
vai sentir a dor pateando ao longo do sistema nervoso central, uma erupção de faíscas
dançando diante dos olhos e a sensação de que tem uma matilha de lobos ferozes
devorando as tuas entranhas.
— Você é um filho-da-puta, Colares.
Vejo Parsons me olhando com piedade, como se quisesse me ajudar.
— Vai dar um trabalho do cão pra consertar o biocárcere.
Vejo também o medo em seus olhos.
— Bom, isso não é problema meu.
Vejo Parsons se recolher a sua imobilidade.
— O meu problema é não deixar você me subestimar só porque eu tenho que te
entregar respirando.
Amanda torna a apontar a shotgun pra mim.
— Levanta. Quanto antes a gente sair daqui, melhor.
Será que essa cretina não vê que eu não consigo levantar?
— Levanta enquanto você ainda tem a outra coxa.
Ela não está brincando.
Me agarro ao altar e fico de pé. Tento jogar todo o meu peso sobre a outra perna.
Mesmo assim, a dor é lancinante e arranca o ar dos pulmões. Lágrimas escorrem pelos
meus olhos.
— Ótimo. Vai andando até o helicóptero, que o Parsons aqui vai fazer a gentileza de
nos emprest...
Amanda olha para Parsons e se corta.
Parsons segura uma varinha apontada na direção de Amanda. Antes que ela possa
fazer fogo, ele grita:
— Macaneh maharacah metisurah!
Como se obedecessem a um chamado mental de Parsons, um exército de thelemitas
armados entra pela porta da caverna.
— Porra, por que você não chamou eles antes? — berro, ao mesmo tempo em que os
tiros começam a zunir pela caverna. Amanda se joga atrás do altar de pedra, e de repente é
como se houvesse uma centena de Amandas, tamanha a fúria com que ela revida aos
thelemitas.
A minha sina é ficar no meio do fogo cruzado.
Parsons corre para onde eu estou e me ajuda a sair da linha de tiro da shotgun.
— Tenho que tirar você daqui logo — diz. — Os guerreiros não vão durar muito
tempo.
— Como é que é?
— Eles não são reais. São só pra distrair Amanda.
Estamos quase chegando na porta da caverna quando Amanda nota nossa fuga.
— Nada feito, Parsons!
Ela ergue a shotgun e atira na porta. Um desmoronamento bloqueia a saída.
— Sprenger, seu imbecil! — grita Parsons.
A caverna inteira começa a desmoronar. Parsons tenta me proteger das pedras. Sem a
atenção de seu criador para sustentá-los, a alucinação se dissipa e os thelemitas
desaparecem como se nunca tivessem existido. Amanda voa pra cima da gente e não sei se
quer me matar ou ajudar Parsons a evitar que eu morra. Antes que ela nos alcance, porém,
um enorme bloco de pedra se solta do teto da caverna e despenca sobre nós.
Tudo escurece ao meu redor.
{interlúdio}
Sprenger não gostava do Velho Nick. O cavanhaque vermelho pontiagudo e aqueles
sapatos que pareciam cascos, as sobrancelhas enviesadas e o brilho malicioso nos olhos,
tudo contribuía para emprestar um ar mefistofélico ao ascensorista da empresa, e se tinha
uma coisa que Sprenger odiava, por deformação profissional que fosse, eram pessoas de ar
mefistofélico. O próprio Sprenger, claro, tinha um ar mefistofélico, mas as pessoas
desenvolvem toda uma técnica extremamente hábil para enxergar o cisco no olho do
vizinho e não ver a trave que tolda o próprio olho.
E Sprenger era extremamente habilidoso.
Não que, naquela manhã em particular, estivesse se sentindo assim. Ele e Kramer
entraram no elevador cabisbaixos,conscientes de que o sermão que tinham acabado de
ouvir do Comissário M era apenas o prefácio, que a verdadeira inquisição viria agora, no
último andar da empresa, diante do Conselho Diretor.
Os boatos mais desencontrados circulavam sobre esse misterioso Conselho Diretor,
que pouca gente via e cujos desígnios pareciam mais insondáveis que os do próprio Deus.
Dizia-se que eram divindades pagãs, ídolos demoníacos alçados à condição de deuses,
dizia-se que eram orixás.
Sprenger e Kramer sabiam mais. Eles conheciam a Verdade.
E isso os libertaria.
— Prontos pra sabatina? — perguntou Nick, a ironia escapando de sua boca como
um vapor fino e corrosivo.
— Não tem nada pra gente ser sabatinado — respondeu Kramer, mau humorado.
Sprenger manteve-se em silêncio.
— Como é que não tem, meus queridos? — e continuou, escandindo as sílabas bem
devagar, para frisar o absurdo da situação: — Vocês per-de-ram ele! Só tinham que
mantê-lo bem debaixo dos olhos, e nem isso vocês conseguiram. Sprengerota e Kramercil.
— o Velho Nick deu uma gargalhada, rindo do próprio trocadilho.
— Fica na tua — cuspiu Sprenger.
— É, mantenha-se no seu lugar — arrematou Kramer.
O rosto do Velho Nick tornou-se repentinamente sério, um demônio furioso soltando
centelhas das pupilas.
— É exatamente o que eu estou fazendo.
Os três continuaram em silêncio até o elevador parar.
— Rezem pro Conselho não usar os mesmos métodos que vocês — concluiu o
ascensorista, fechando a porta atrás deles. — Quem sabe assim vocês conservam as unhas.
A gargalhada continuou ecoando pelo poço à medida que o elevador descia.
Sprenger e Kramer viram-se sozinhos no longo corredor escuro e não tinham outra
escolha senão seguir até a porta que tinha uma ampulheta de ouro por maçaneta. Kramer
estendeu a mão, mas a porta se abriu antes que ele conseguisse tocar na maçaneta
dourada.
Estavam na Jerusalém Celeste.
Do lado de lá da porta havia um trono, e no trono alguém se sentava. Quem estava
sentado parecia uma pedra de jaspe e de sardônica. Um arco-íris semelhante à esmeralda
rodeava o trono. Ao redor, havia outros vinte e quatro tronos, em que se sentavam vinte e
quatro anciãos vestidos de branco e com coroas de ouro na cabeça. Do trono saíam
relâmpagos, vozes e trovões.
Igualzinho ao Apocalipse de São João Evangelista.
— Aproximem-se, Sprenger e Kramer — ordenaram as vozes.
Sprenger e Kramer se aproximaram, os rostos baixos, não ousando encarar as faces
acusadoras em volta do trono.
Disseram os anciãos:
— Contem-nos o que aconteceu.
Nem Kramer, nem Sprenger deixaram-se iludir pelo pedido. A essas alturas, o
Conselho Diretor já devia ter recebido o relatório do Comissário M e provavelmente nem
precisavam das palavras do chefe do Departamento M para saber tudo o que tinha se
passado. Bastante provavelmente, o que eles queriam era testar as reações dos dois
agentes, como se fossem o detetor de mentiras de Deus. Assim, alternando as frases,
repetiram tudo o que já haviam relatado a seu superior. Como o teto da caverna
desmoronara por um disparo mal-calculado de Sprenger, de que modo Antônio Colares
ativara instintivamente os nanotechs do implante T no momento em que ia ser esmagado
por uma rocha; como Parsons fugira e de que modo Sprenger fora resgatado por Kramer.
Contaram também sobre os dois thelemitas capturados, o gordo e o magro, libertados com
memórias falsas depois que seu interrogatório não revelou nada de substancial.
— O que gostaríamos que vocês explicassem — disseram os anciãos — é porque ele
ainda estava com os nanos.
Sprenger e Kramer se entreolharam, um esperando que o outro se adiantasse para
responder. Na verdade, não lembravam de quem havia sido a idéia. Era até possível que
ela tivesse ocorrido a ambos simultaneamente.
— Bom, a empresa está cortando custos — começou Kramer.
— Achamos que, sem o implante, ele não ia ter como ativar os nanos — concluiu
Sprenger.
Houve uma longa pausa, feita sob medida para que os dois contemplassem o
tamanho da cagada que tinham cometido.
— Uma mente como a dele não precisa de implante para ativar os nanos — disseram
os anciãos.
O tom de voz deixava implícito que dois agentes com a experiência de Sprenger e
Kramer deveriam saber disso.
— Vocês fazem idéia de onde ele pode ter ido? — os anciãos disseram.
Dessa vez, Sprenger pôde responder com segurança:
— Não.
— Mas estamos trabalhando nisso — Kramer acrescentou rapidamente, não fossem
os dois pulverizados por um raio divino.
— Já solicitamos uma permissão para rastreá-lo com o cronoscópio — concluiu
Kramer.
— Façam isso — os anciãos disseram. — Ele deve ser localizado antes de completar
a Reunificação.
Os ecos da última frase continuaram flutuando pela sala do conselho durante um
longo tempo, até Sprenger concluir que a entrevista estava terminada. Fez um sinal para
Kramer e os dois começaram a se retirar, hesitantes. Mas ainda havia uma última coisa a
ser dita.
E os anciãos disseram:
— Se alguém está destinado ao cativeiro, irá para o cativeiro.
Sprenger e Kramer se retiraram, sem saber se os anciãos estavam se referindo a
Colares ou a eles próprios.
{19}
Let I be Master of spirit and matter
As I create and formulate my Universe
— Simon Hinton
Estou amarrado a um poste por cordas que me atam pelos pulsos e pela canela. As
fibras das cordas arrancam filetes de sangue da minha pele lanhada. Um sol demoníaco
inflama o meu corpo e faz com que grossas bagas de suor escorram sobre os cortes. É como
jogar álcool numa fogueira. Esse conjunto de sensações se torna ainda mais insuportável
diante do alarido da multidão que, como todas as multidões, tem uma preferência
irresistível para se reunir em torno de situações mórbidas. Dificilmente haverá uma situação
mais mórbida do que a minha. O carrasco se aproxima com o machado nas mãos e, em meu
desespero, seus movimentos se fazem em câmera lenta. Ele sorri de um jeito endiabrado, os
olhinhos brilhando de malícia e antecipação, e ergue o machado.
A lâmina se enterra nas minhas costas e desponta no peito, abrindo uma clareira por
entre a qual pode-se ver o poste ao qual estou atado. A dor se espalha pelo meu corpo em
ondas concêntricas, eu me contorço feito um boneco de pano agitado por uma criança
ranheta. O segundo golpe se crava no meu antebraço esquerdo. A dor é vermelha feito o
sangue que esguicha e rega a areia aos meus pés, transformando-a numa papa nojenta. Em
seguida, o carrasco me golpeia com o machado no joelho direito. A dor explode em uma
revoada de relâmpagos que coruscam diante dos meus olhos cheios de lágrimas. O golpe
seguinte faz com que a lâmina se enterre nas costas, à altura da barriga, e eu sinto a minha
espinha se esmigalhando ao contato com o metal. A dor ultrapassa o limiar da percepção
consciente e se transforma numa beatitude inefável. Sorrio para o carrasco.
A alucinação se dissipa, mas não a sensação de estar sendo esquartejado por forças
titânicas, que puxam o meu corpo em todas as direções simultaneamente, como se
quisessem me fazer ocupar todos os pontos possíveis do espaço de uma só vez. Minha
identidade explode numa miríade de fragmentos cintilantes, e se alguma vez tive um nome,
ele agora está perdido nos abismos do tempo. O que sobrou da minha consciência é essa
ausência de personalidade que rodopia num oceano de escuridão. Então, o turbilhão cessa e
até mesmo a ausência desvanece.
O que sobra de um homem de quem se retirou a carne e o sangue, a mente e o corpo?
O que sobra de um homem a quem não sobra sequer o espírito? O que sobra de um homem
que não é mais homem nem mulher, não é animal nem planta, não é tampouco uma coisa e
nem mesmo é o nada? O que sobra sou eu, a flutuar nas trevas que enchem o espaço
ilimitado. Os senhores do tempo e suas verdades parciais deixaram de ser, e o Universo,
filho da necessidade, está imerso na beatitude suprema, esperando ser despertado por
aquele que é e, no entanto, não é.
Não há mais nada. As causas da existência foram extintas, o visível que existia e o
invisível que existe descansam no eterno não-ser. Solitária, a forma desprovida de forma
estende-se, ilimitada, infinita, imotivada, num sono sem sonhos; e a vida pulsa inconsciente
no espaço universal, através dessa onipresença sentida pelo olho aberto da alma purificada.
Mas onde está a alma purificada quando se vive na realidade absoluta e o mundo encontra-
se órfão?
Onde estão os construtores, os filhos resplandescentes da aurora dourada? Os
criadores que tiram a forma da não-forma, a raiz do tempo, repousam no não-ser absoluto.
Onde está o silêncio? Onde os ouvidos para ouvi-lo? Não há nem silêncio, nem som. Não
existe nada a não ser o alento incessante e eterno, que não se conhece a si mesmo.
A última vibração da eternidade palpita através do infinito. As águas do espaço
intumescem, expandindo-se de dentro para fora, como um botão de lótus. A vibração
alastra-se por toda parte, tocando com sua asa veloz o Universo inteiro e o germe que vivia
nas trevas, as trevas que respiram sobre as adormecidas águas da vida. As trevas irradiam
luz, e a luz lança um raio solitário no meio das águas, no abismo. O raio projeta-se através
da existência potencial e deixa cair o germe não-eterno, que se condensa no interior do
mundo. A consciência desdobra-se num espaço de quatro dimensões e mergulha na matéria.
A essência radiante transforma-se em um interior e um exterior. O átomo primordial
explode e se expande em coágulos da brancura do leite através das profundezas do espaço.
A raiz da vida espalha-se por todas as gotas do oceano da imortalidade, e o oceano é uma
luz radiante, que é fogo, calor e movimento. As trevas desaparecem e já não existem. Abro
os olhos.
Estou amarrado a um poste e o carrasco se aproxima com o machado na mão.
{20}
Sê pronto a fugir ou a golpear!
— Liber Al vel Legis, III:33.
As fibras das cordas arrancam filetes de sangue da minha pele lanhada. Um sol
demoníaco inflama o meu corpo e faz com que grossas bagas de suor escorram sobre os
cortes. A multidão em volta aclama, aplaude, berra invectivas e frases de encorajamento
numa língua que eu não entendo. Estou preso a um poste no que parece ser a praça central
de uma cidade exótica. Há qualquer coisa de oriental na arquitetura dos edifícios e nos
mercadores que ocupam a rua inteira. Eles também interromperam seu pregão e voltaram as
atenções para a praça, onde o carrasco já está quase aos pés do poste. Seus olhos brilham de
malícia e antecipação. Ele sorri de um jeito demoníaco e ergue o machado. A lâmina cintila
com o reflexo dos raios de Sol.
E se crava na madeira, quebrando o poste ao meio com um enorme barulho de estralo.
Estou parado do outro lado da praça, debaixo do toldo que cobre a entrada do que me
dá a impressão de ser uma loja de ânforas. Não faço a menor idéia de como vim parar aqui
e a perplexidade é tanta que nem me lembro de fugir. Só quando alguém da multidão olha
para cá por acaso e me identifica entre os vasos, jarros e garrafas é que eu saio correndo. O
sujeito começa a pular e a berrar, tentando chamar a atenção do carrasco, que está
contemplando o poste partido ao meio com um ar apatetado. Depois de muita insistência do
outro, o carrasco se vira, bem a tempo de me ver chegando a uma esquina. Seus olhos se
arregalam de espanto e ele também se põe a berrar, furioso. Uma tropa de guardas armados
com espadas e escudos acorre a seus gritos e sai no meu encalço. Nesse meio tempo, outras
pessoas, atraídas pelo berreiro, me identificaram e tentam me agarrar, vai saber se não
existe alguma recompensa pela minha cabeça.
Dobro a esquina. Como se seus movimentos fossem coreografados por um diretor
invisível, de cada lado da rua sai um brutamonte. Os dois gigantes me barram o caminho e
olham para mim com cara de poucos amigos. Não tenho tempo para eles. De ambas as
minhas mãos, brotam garras compridas e recurvas, garras vermelhas e luminosas, que se
movem por vontade própria e dilaceram meus supostos captores antes que eles tenham
tempo de soltar um ai nessa língua estranha que todos falam por aqui.
A maioria dos perseguidores param, surpresos, diante da posta de carne que até há
poucos segundos eram dois seres humanos. Não estou menos espantado que eles, mas não é
hora de pensar nisso. Depois de cumprida sua missão, as garras tornam a desaparecer como
se nunca tivessem existido. As pessoas estão amedrontadas, mas a surpresa dos guardas
dura pouco. Com garras ou sem garras, eles estão na minha cola. Mais e mais soldados
saem das ruas laterais para se juntar aos primeiros, logo há centenas deles, brandindo suas
espadas e gritando sem parar.
Do nada surge um rebanho de vacas pretas cortando a minha fuga. Não, não são
vacas. São uns bichos semelhantes a hipopótamos, com uma farta bigodeira branca e um
único chifre brotando entre seus olhos redondos. Mas estão, indubitavelmente, cortando a
minha fuga.
Me enfio pelo meio deles, na esperança de que, se estão me atrapalhando, também
vão atrapalhar meus perseguidores. O pastor me encara, pasmado, enquanto eu abro
caminho entre as montanhas escuras, desviando de umas, saltando por cima de outras, sem
arrancar dos bichos nenhuma outra reação que não um olhar preguiçoso. Atrás de mim,
escuto as primeiras imprecações de raiva, à medida que os guardas descobrem que o
caminho de um único homem de estatura mediana não é necessariamente bom para uma
tropa enfiada em armaduras.
Quando termino de atravessar a manada de pseudo-hipopótamos, a situação já me
parece menos desesperadora. Ganhei preciosos minutos nessa corrida de obstáculos e trato
de utilizá-los da melhor maneira possível, saindo do caminho principal e procurando uma
ruela obscura, em meio a tantas ruelas igualmente obscuras que os soldados terão
dificuldades para determinar por onde foi que eu escapei.
É então que as lembranças dos últimos acontecimentos me voltam à memória.
Sprenger e Kramer, os thelemitas, a enorme rocha que despencou sobre mim. Seja qual for
o poder que me tirou do caminho do machado, deve ter sido o mesmo que me salvou de ser
esmagado pela pedra. Tenho certeza que é uma força latente dentro de mim e gostaria de
conseguir ativá-lo à vontade. Isso tornaria toda esta fuga desnecessária.
Então, uma outra lembrança me atinge. Vejo Amanda encostando a arma na minha
coxa e puxando o gatilho, eu caindo ao chão com a perna dilacerada, o sangue esguichando
no chão da caverna. Instintivamente, levo a mão à coxa mas, como seria de esperar, não há
sinal de ferimento. Essa incongruência me deixa tão admirado que nem noto quando uma
sombra se esgueira por trás de mim e me acerta a cabeça com um porrete.
{21}
Tu apareceste para mim como uma caçadora entre Teus cães, como uma deusa virginalmente
casta, como uma lua entre os orvalhos murchos dos bosques dos anos.
— Liber vel Ararita, 9.
— Graças a Zcrro, achei que tivesse batido com muita força!
As palavras atravessam um labirinto de escuridão e impressões confusas. Aos poucos,
essa massa caótica de dados sensoriais vai se condensando ao meu redor e, uma vez que a
história sempre se repete como farsa, percebo que estou em outra caverna.
— Desculpe a violência, eu não queria que as suas garras me atacassem antes que eu
tivesse tempo de implantar as palavras no seu coração.
É uma voz feminina suave, que vem de algum lugar às minhas costas. Levo algum
tempo para entender o que ela está dizendo e é só quando entendo que me dou conta de que
ela não está falando português, inglês ou qualquer uma das línguas que eu conheça ou das
quais já tenha ouvido falar. No entanto, compreendo tudo o que ela diz com uma pureza
cristalina.
— Você tem um coração estranho. Todo torcido, dobrado sobre si mesmo.
Tento me virar, alguma força poderosa transformou a minha cabeça no sino de uma
catedral e o sino cismou de se pôr a badalar incessantemente justo neste momento.
— Parece até um embrulho.
Certo, vamos tentar de novo. Devagar, agora. Afinal das contas, parece que, seja
quem for que está falando, ela bateu com muita força.
— Cuidado, deixa que eu te ajudo.
Mãos surpreendentemente leves e delicadas me ajudam a sentar e, quando a caverna
começa a rodopiar feito um barco bêbado, apertam minha testa com uma firmeza quase
maternal, até que a vertigem se estabilize e eu consiga pelo menos olhar para os lados.
O que eu vejo é uma menina que não deve ter mais de onze ou doze anos. A pele é
negra, mas um tom de negro que não é o das pessoas negras. Não me peçam, porém, para
descrever em que consiste a diferença, é algo que se encontra além do meu vocabulário. O
melhor que eu consigo fazer é dizer que sua pele é ao mesmo tempo negra e transparente,
como se fosse feita de um vidro fumê, escuro mas reluzente. Os cabelos não são menos
estranhos que a pele. Têm o azul do céu e se espalham por uma vasta cabeleira que parece
uma cascata rumorejante. Mas nada se compara à estranheza dos olhos, duas pedras
lapidadas, brilhando com uma intensidade violeta que a transforma quase num espectro
sobrenatural.
A garota está nua, exceto por uma faixa vermelha em volta de sua cintura e um colar
de contas coloridas pendurado no pescoço. Nas mãos, segura um tacape tão grande e
pesado que dificilmente alguém acreditaria que ela tivesse força para manejar, exceto se
esse alguém ainda estivesse com a cabeça doendo por causa da porrada.
Ao ver que a tontura já não me domina, ela recua até uma pedra, na qual senta e fica
me olhando, com ar interrogativo. Agora que meus olhos se acostumaram com a escuridão,
vejo que as paredes das cavernas estão recobertas de desenhos, semelhantes aos que, no
meu mundo, costumam ser atribuídos aos povos da pré-história.
— São instruções de Zcrro — ela explica. — Ensinando as pessoas a voar.
A informação arranca um suspiro de espanto da minha garganta.
— As pessoas deste mundo sabem voar?
A menina balança a cabeça com veemência.
— Ninguém nunca se deu ao trabalho de aprender.
Levanto e me aproximo da garota. Ela aperta o cabo do tacape, pronta a me atacar ao
menor sinal de violência.
— Eu não sei se devo te agradecer por ter me salvado dos guardas ou ficar furioso por
você quase arrebentar a minha cabeça — digo. — Mas em ambos os casos, eu preciso saber
o seu nome.
Ela arregala os olhos na mais sincera demonstração de espanto que já tive ocasião de
ver.
— Só o meu marido e Zcrro podem saber o meu nome!
É a minha vez de ficar espantado.
— Você tem um marido?
Ela dá uma gargalhada infantil.
— É claro que não. As mulheres de Atlas só se casam aos dezessete anos. Mas
quando eu tiver um marido, então poderei revelar o meu nome secreto a ele.
São dados importantes, os que ela me transmite. Estou num lugar chamado Atlas,
onde as pessoas, pelo menos as mulheres, possuem nomes secretos que só são conhecidos
por seu deus e seu cônjuge.
— E além do nome secreto? Como é que as pessoas te chamam quando querem falar
com você?
Ela abre um sorriso que revela ao mesmo tempo simpatia e mordacidade.
— As pessoas me chamam de Menina. O que mais haveria de ser?
Vai ter que servir por enquanto.
— Menina, por que foi que você me salvou dos guardas?
A garota fica de pé e seu corpinho estremece de fúria.
— Aqueles estúpidos filhotes de behemoth! Matam tudo o que não compreendem!
Não são como nós, mulheres.
Mal ela acaba de dizer isso e a caverna é inundada por uma luz intensa, que fere
minhas retinas como unhas afiadas se cravando nos meus olhos. E eu percebo que, durante
todo o tempo em que fiquei com a menina, estive sob atenta vigilância.
{22}
Comanda Tuas moças que Te seguem a que nos façam uma cama de flores imortais...
— Liber Cordis Cincti Serpente, V:47
A Moça e a Velha juntam-se à Menina, e as três mulheres avançam na minha direção.
A pele das outras duas tem a mesma cor e consistência que a da menor. Me dá um estalo de
Vieira, deve ser por isso que o lugar se chama Atlas. Nessa estranha língua cujas palavras a
Menina implantou no meu coração, tla quer dizer negro e a é o prefixo feminino.
— Sabíamos que você vinha — diz a Moça.
A luz que ilumina a caverna parece irradiar de sua pele.
— Nos preparamos para sua chegada — completa a Velha.
Sua pele também brilha com uma estranha luminescência esverdeada, mais fraca que
a da Moça.
— Mas você caiu primeiro nas mãos dos phph — torna a Moça.
— Tivemos que mandar a Menina para resgatá-lo — torna a Velha.
Deduzo que os phph são os homens de Atlas.
— Nós deixamos o poder político nas mãos deles — é a vez da Menina falar — e eles
acham que mandam de verdade.
— Mas todo conhecimento vem de Zcrro — as três entoam em uníssono — e apenas
Zcrro é poder.
Seus movimentos são todos coreografados, como se fossem três bailarinas
representando um espetáculo somente para os meus olhos.
— Como vocês sabiam que eu vinha? — pergunto, meio tonto com o jogral das
mulheres.
— Temos uma mensagem para lhe entregar — responde a Velha. — Uma mensagem
de Zcrro.
Espero que ela continue, mas a Velha se cala. Aguardo mais um instante, nenhuma
das outras duas toma a palavra.
— Está bem, podem me dar a mensagem.
A Velha, a Moça e a Menina se entreolham.
— No devido momento, você saberá — é a Menina quem fala. — Por enquanto,
precisamos mantê-lo a salvo dos phphs.
— E dos outros — completa a Moça.
— Que outros? — digo eu.
— Os outros que virão.
Insisto, quero saber de quem elas estão falando. As três semicerram os olhos, dão a
impressão de que estão tentando atravessar uma bruma impenetrável com o olhar.
A Velha diz:
— Só vemos uma palavra nebulosa.
A Moça diz:
— Não sabemos o que quer dizer.
E eu já sei o que a Menina vai dizer antes que ela abra a boca:
— Intempol.
{23}
Existem profundos segredos nestas canções.
— Liber Liberi vel Lapidis Lazuli, VI:14
A Velha fica de frente pra mim, põe as mãos nos meus ombros e me encara, muito
séria.
— Tem sido uma longa jornada — diz. — Mas ainda está longe de terminar.
Não sei o que responder. Me pergunto o que elas esperam que eu diga. Não sei o que
responder.
A Moça e a Menina se colocam junto a mim, cada uma de um lado. Há uma
atmosfera hierática no ar, o tom solene de uma missa, só que sem as velas.
— Quem é você? — pergunta a Velha.
Por um momento, tenho a impressão de que ela surtou. Faz apenas um instante que a
Velha falou comigo com a maior familiaridade e agora não sabe nem quem eu sou?
— Quem é você? — ela repete, diante do meu silêncio atônito.
Olho para as outras duas, será que elas perceberam que a Velha não está mais na
posse do seu juízo perfeito? A Moça e a Menina, no entanto, limitam-se a sorrir, como que
me encorajando a responder.
— Quem é você? — a Velha torna a perguntar, desta vez com uma leve nota de
impaciência na voz. A resposta salta aos lábios com a espontaneidade dos reflexos
condicionados.
(Alexandre Toledo.)
— Antônio Colares.
Mas não é a resposta que elas querem.
— Antônio Colares é só um nome — censura a Moça com brandura.
— Você não é um nome — completa a Menina.
— Quem é você? — repete a Velha.
Considero cuidadosamente o que dizer.
— Sou um homem.
Se fosse um quiz show, eu estaria ouvindo uma campainha estridente.
— "Homem" é só uma palavra — a Menina.
— Você não é uma palavra — a Moça.
— Quem é você? — a Velha.
Seus olhares são ávidos, a resposta parece ter uma importância transcendental,
qualquer coisa da ordem da quadratura do círculo ou da raiz quadrada de menos um.
— Sou um ser humano.
Sei que elas vão dizer que "ser humano" é só uma expressão e que eu não sou uma
expressão, mas é o melhor que eu consigo fazer.
— Você não é um ser humano.
— Você já foi um ser humano.
— Quem é você?
Essa insistência já está começando a ficar chata, não vejo a menor graça nesse
interrogatório e além disso.
Você não é um ser humano.
(Você já foi um ser humano.)
Espera aí.
— Quem é você?
Como assim?
— Quem é você?
O que vocês querem dizer com isso?
Não chego a formular a questão em voz alta. Até tento, mas as palavras se recusam a
sair. Elas se escondem em algum lugar no fundo da garganta, morrendo de medo do que
vão encontrar do lado de fora.
As três mulheres dão-se as mãos e me envolvem, como numa brincadeira de roda,
todas elas repetindo o bordão da Velha:
— Quem é você?
— Quem é você?
— Quem é você?
Às vezes, repartem a pergunta entre si, como se fosse um jogral:
— Quem
—é
— você?
Estou começando a ficar tonto, a impressão é de que o chão sob os meus pés está
sendo firmemente solapado pelas vozes que saem de suas bocas, um oráculo divino
pronunciando uma sentença de morte.
Você não é um ser humano.
Quem é você?
Você já foi um ser humano.
Quem é você?
Você não é um ser humano.
Quem sou eu?
Elas não sabem do que estão falando, não podem saber do que estão falando. Há
apenas alguns minutos, com exceção da Menina, nenhuma delas já havia me visto mais
gordo, e mesmo ela não me conhece há muito mais do que um par de horas.
Devem estar me confundindo com alguma outra pessoa. Só pode ser isso. Mas então,
de onde me vem essa sensação de ser uma máscara que se acreditava rosto, de onde me
vem essa impressão de ser um traje que se julgava corpo? Por que essa certeza de que, se
tem alguém aqui que não sabe do que está falando, não são as três mulheres?
De súbito, me dou conta. Elas estão praticando um ritual. Não há nada de louco ou
gratuito em suas falas, gestos e movimentos. Cada passo foi minuciosamente coreografado
com o objetivo de tocar meu imo, onde minha verdadeira identidade deve jazer oculta, à
espera de um impulso que a faça despertar.
O reflexo de um eco, a palidez de uma lembrança se agita nas profundezas do
inconsciente. É como uma brisa fresca que sopra tão levemente que nem sequer temos
certeza de que há mesmo uma brisa soprando.
E pára.
Olho para as mulheres, por que elas interromperam sua dança e espreitam temerosas
para os lados?
— Os constritores sentiram a Dança — diz a Menina.
— É preciso salvá-lo — diz a Moça.
— A salvação já não é — diz a Velha.
Ouço um rosnado às minhas costas.
{24}
Eu vi as rapinas da morte, que voavam com gritos roucos por sobre a carne podre da terra. Eu Te
vi nestes.
— Liber vel Ararita, II:7
Três enormes cães, negros e ferozes, fecham a entrada da caverna. Gotas de saliva
pingam de suas bocarras e eu tenho certeza de que essa saliva seria capaz de dissolver até
pedra, se alguma pedra fosse estúpida o bastante para se enfiar sob a mandíbula dos
animais. Eles entram devagar, naquele passo macio do predador que sabe que a presa não
tem como escapar. Há um brilho de indubitável inteligência em seus olhos raiados de
vermelho, uma inteligência maligna, cruel, mas indiscutivelmente inteligência.
O primeiro deles vem pelo meio da caverna, anda até onde estou e se põe a me
cheirar. Seu hálito é quente como um inverno no inferno, mas o focinho é frio feito a lápide
de um túmulo. Os outros dois param alguns metros atrás, cobrindo as saídas laterais.
— Não se mova — adverte a Velha, mas o conselho vem tarde demais. Esse outro eu
dentro de mim resolve tomar a dianteira e saca as garras vermelhas que ele guarda o diabo
sabe onde.
Elas tremem, oscilam e desaparecem, sem sequer se solidificar totalmente.
— Nós avisamos — diz a Moça. — Os constritores inibem qualquer mágica.
— Inclusive a nossa — completa a Menina, e eu vejo o terror em seus olhos de
criança.
Minha ridícula tentativa de ataque enfurece os cães constritores. O líder abre a
mandíbula e salta em direção ao meu pescoço, emitindo um ronco grave que mais parece
um terremoto.
A mente do meu corpo, no entanto, possui uma agilidade que não me lembro de ter
desenvolvido e pula para trás, fazendo com que o cachorro só consiga abocanhar o chão de
terra da caverna. Isso não faz muito bem para o estado de sua fúria e, como que incitados
por seus latidos raivosos, os outros dois cães também atacam.
Estendo minha mão para o lado e agarro o tacape da Menina. O segundo pulo do
constritor é interceptado por uma porrada no lado esquerdo da cabeça. Ele bate na parede
da caverna, mas já está de pé quando chega ao solo, no instante exato em que levanto a
arma e acerto um golpe no meio das pernas do segundo cachorro. Este golpe é mais
eficiente e arranca um ganido da vítima. Ainda não inventaram nada tão eficaz quanto um
chute no saco.
O terceiro cão encurralou a Moça e a Velha num canto da caverna e suas bolas estão
fora do alcance do tacape. Além disso, o líder da matilha de três não está nada disposto a
largar o osso, que eu imagino seja o osso da minha canela. Mas, mesmo sem magia, elas
não são exatamente o que eu chamaria de duas donzelas indefesas. A Moça enfia a mão na
faixa da cintura e a retira com um punhal de lâmina recurva. A Velha recua para trás da
mulher, que segura o punhal com a lâmina para baixo, a fim de cravá-lo na nuca do
primeiro cãozarrão metido a besta que ousar se aproximar. O bicho reconhece o brilho da
lâmina e se volta para um alvo mais fácil, a Menina, que ficou desarmada desde que eu
peguei o tacape dela para me proteger do constritor-chefe.
Nesse meio tempo, meu animal de estimação favorito faz uma nova tentativa de
separar minha cabeça do pescoço. Dessa vez, enfio o tacape sob seu corpo como se fosse
uma pá e o arremesso na direção do segundo cachorro. Os dois rolam pelo chão embolados,
o que dá à Menina tempo suficiente de correr para junto da Moça.
— Cuidado! — berra a Velha.
Alguma coisa pesada cai sobre as minhas costas e, quando sinto seu bafo quente
resfolegando na minha nuca, percebo que o terceiro cão teve tempo de sobra para se
recuperar do chute no saco e agora quer devolver a gentileza.
No instante exato que suas presas se fecham sobre o meu pescoço, a cabeça do
constritor explode.
Me levanto, todo sujo de sangue e miolos de cachorro. Os dois outros cães também
jazem no chão, cada qual mergulhado numa poça vermelha. Olho para a entrada da caverna
e dou de cara com dois vultos de pé, Terminators na mão.
Meus velhos chapas, Sprenger & Kramer, estão de volta.
{25}
The two are one and form the Kingdom's essence. Who master's them is the Master of the World.
They are the utter keys of transmutation, and the keys of the power of other elements.
— Liber Pennae Praenumbra
— Que porra é essa? — pergunta Sprenger, com sua elegância habitual. Os dois
agentes da Intempol se aproximam, as armas ainda na mão. Não apontam as Terminators
ostensivamente pra ninguém, mas fazem questão de que todos as vejam.
— São os constritores — respondo, muito orgulhoso do meu conhecimento da fauna
local. Claro que, se ele me perguntar que diabo é um constritor, vai me pegar com as calças
na mão mas, felizmente, a Velha vem em meu auxílio.
— São os cães de guarda dos sacerdotes de Zcrro — ela explica. — Percebem
qualquer atividade mágica em todas as sete ilhas de Atlas.
— Ah, esse cu-do-judas onde a gente tá chama Atlas, é? — diz Sprenger.
— Foi um trabalho do cão te encontrar dessa vez — Kramer se volta para mim. —
Literalmente — e ri do próprio trocadilho.
Alguma coisa dentro de mim põe-se em alerta, os músculos retesados.
— E agora que vocês me encontraram?
— A gente te leva de volta. É claro — Sprenger acaricia a Terminator com o ar
displicente de um moleque batendo punheta.
As três mulheres ainda não decidiram se Sprenger e Kramer são amigos ou inimigos.
Olham para mim, esperando que eu lhes dê o sinal. Encolho os ombros. O que os dois não
perceberam é que, sem os constritores por perto, tanto meus poderes quanto o delas está de
volta ao seu lugar. O estado de alerta se intensifica e percebo que não é exatamente nos
músculos, pelo menos não nos músculos físicos. É como se, superposto ao meu corpo de
carne, houvesse um sistema de energia que estou aprendendo a controlar aos poucos. Esse
outro eu que às vezes dá as caras por aqui é uma espécie de consciência automática desse
corpo energético.
— Diz que você vem com a gente por bem, vai — implora Kramer.
— A luta com os constipadores aí foi foda, vê se não dá mais trabalho — ao mesmo
tempo em que fala, Sprenger saca o cartão cronal e a caixa registradora. No instante
seguinte, o que sobrou da caixa está a seus pés, retalhada pelas garras vermelhas.
— Filho de uma puta! — ele berra, levantando a Terminator.
Derrubo a arma com um chute. Enquanto isso, acontece uma coisa muito esquisita.
Por um instante, tenho a impressão de que as garras estão ficando maiores. Mas logo me
dou conta de que não é isso. Tem um bicho saindo de dentro de mim, e o bicho é o dono
das garras. É o gigante vermelho que eu já tinha visto na caverna sob a Pedra da Gávea, e
agora reconheço que ele faz parte de mim, parte desse sistema energético que se estende
para lá do meu corpo físico.
A cara de Kramer quando o gigante avança para ele é indescritível, mas não tenho
tempo para me deliciar com seu espanto, tenho um Sprenger para dar conta. O homem não
está mais armado, mas ainda possui todo o treinamento em combate corporal que ele
adquiriu na Academia da Intempol (como é que eu sei disso?). Eu não tenho treinamento de
combate mas, de alguma forma, não me faz a menor falta. Minhas mãos e pés simplesmente
parecem saber espontaneamente o que fazer, aparam cada golpe de Sprenger, procuram
brechas em sua defesa e, com a minha atenção periférica, ainda posso sentir as mulheres
atrás de mim, tentando decidir se interferem ou não na luta.
Kramer dispara contra o gigante, mas é como se não tivesse disparado. O monstro
arranca a Terminator de suas mãos e quase leva os dedos junto. Depois ergue Kramer com
o braço direito e recua o esquerdo, visivelmente com a intenção de cravar as garras em
algum ponto da barriga do homem. Kramer enfia a mão no paletó e procura freneticamente
pelo cartão cronal, digita os números com movimentos trêmulos e desaparece no instante
exato em que as garras do gigante atravessam o espaço onde ele estava.
Um segundo depois, Kramer reaparece e leva Sprenger embora.
— Eles vão voltar — diz a Moça.
— É, eu sei — respondo. — Com artilharia da grossa.
{26}
Também eu ouvi a voz de Adonai o Senhor, o desejável sobre aquilo que está além.
— Liber Cordis Cincti Serpente, V:48
O vento marinho entra pela boca da caverna, trazendo um cheiro estranho no ar. Boto
a mochila nas costas e me preparo para partir. Dentro da mochila estão algumas peças de
roupa e uns quantos objetos que as mulheres trouxeram da cidade e que elas acham que me
podem ser úteis, como uma faca, um acendedor, essas coisas, além de comida que, pelos
meus cálculos, deve dar para uma semana. Pelo que a Velha disse, é tempo de sobra para
chegar aonde eu quero.
— Você tem certeza do que vai fazer? — pergunta a Moça. Ela e a Velha estão
paradas ao meu lado. — Aqui, nós podemos proteger você. Dos phphs e dos constritores.
Balanço a cabeça, de modo gentil e, ao mesmo tempo, firme.
— Eu tenho que ir — respondo.
A Velha se aproxima.
— O que te faz pensar que as suas respostas estão lá?
O que me faz pensar que minhas respostas estão lá?
— Suponho que seja a profecia. Se os sacerdotes de Zcrro já estavam me esperando,
se vocês também sabiam que eu vinha porque Zcrro lhes disse...
Não sei como continuar. A verdade é que, bem lá no âmago, há uma voz sem palavras
me dizendo que eu devo subir as montanhas de Atlas, devo buscar a catedral de Zcrro,
aquela que, segundo os phphs e as mulheres acreditam, foi construída pelo próprio deus.
— Se é a vontade de Zcrro, que se cumpra seu destino — diz a Velha, afastando-se.
O Sol desta terra sem nome atinge minhas retinas com uma fisgada dolorida. Passei
tanto tempo dentro da caverna que meus olhos se adaptaram à penumbra. Minha visão se
ofusca, a praia adquire uma tessitura irreal, dá a impressão de uma miragem, uma coleção
de esculturas de gelo que a luz do dia vai derreter.
Uma das esculturas caminha ao meu lado, quase correndo para acompanhar o meu
passo.
— Onde você pensa que vai?
A Menina não se dá ao trabalho de responder. Traz apenas um tacape e a lâmina da
mulher enfiada na faixa vermelha da cintura.
— Olha, menina, eu agradeço a boa vontade, mas prefiro viajar sozinho.
Ela continua em silêncio. Até onde me é dado perceber, poderia nem ter me ouvido.
Mas sei que ouviu.
— Guria, não leva a mal, mas se eu tiver que me preocupar comigo e com você, os
constritores vão fazer uma boa refeição.
A Menina continua sem me olhar mas, desta vez, pelo menos, diz alguma coisa.
— Eu salvei você dos phphs.
Sua voz é firme, o próprio tom parece quer dizer que ela é perfeitamente capaz de
cuidar de si própria, obrigada.
— Tá bem, eu sei que você não é uma garotinha indefesa. Mas então...
— Então, cale a boca e continue andando. Cada palavra a mais é um passo a menos
que você dá.
Há tanta autoridade em suas palavras que não tenho outra escolha. Calo a boca e
continuo andando.
{27}
Cada homem deve superar seus próprios obstáculos, expor suas próprias ilusões.
— Liver LXI Vel Causae, 4
A Montanha é um pico escarpado, que se ergue até onde a vista alcança. Cada fibrila
dos meus músculos dói com o esforço da jornada. O cume da Montanha se perde entre
nuvens densas, que assumem formas ominosas. A planta dos meus pés pulsa com o ritmo
enlouquecido do meu coração. Não vejo qualquer caminho que permita uma escalada. Meu
corpo é feito de desânimo.
Assim que chegamos, a Menina sentou-se junto a uma árvore morta, de galhos
retorcidos. A viagem pela ilha levou um mês e cinco dias, mas ela não parece mais cansada
do que se tivesse saído para dar uma volta no quarteirão. Recolheu algumas pedrinhas pelo
caminho e agora se entretem com elas, brincando de escravos-de-jó. A brincadeira absorve
seu interesse tão completamente que dir-se-ia ser um oráculo onde ela pode ler os destinos
da humanidade. Dá a impressão de não estar consciente da minha presença, mas que sei eu?
Sei apenas que meu corpo é feito de desânimo, a planta dos meus pés pulsa e cada fibrila
dos meus músculos dói com o esforço da jornada. Deve ser o ritmo enlouquecido do meu
coração.
Andamos por um labirinto de praias e florestas. Da entrada da caverna, a Montanha
elevava-se tão próxima que não julguei levar mais de uma semana. Mas a Menina me
pegou pela mão e nos conduziu por uma trilha intrincada, tortuosa, como se as linhas retas
lhe trouxessem calafrios. Perguntei o porquê, e ela respondeu que devíamos evitar a
proximidade das aldeias, os perímetros das cidades e, acima de tudo, os territórios de caça
dos constritores. Seu argumento fazia sentido, e eu não insisti. Mas a viagem evocava em
mim estranhos sentimentos e sensações, eu me via percorrendo paisagens de sonhos,
atravessando minha própria alma, que tomara a forma de árvores antigas e nodosas, chão
coberto de húmus e o canto de pássaros exóticos. Um longo percurso para um contador que,
até bem pouco tempo atrás, tinha como maior ambição na vida conseguir fechar um
balanço no último dia útil do mês.
Eu ainda não estou bem certo do que é a Intempol, mas o silêncio de seus espaços
infinitos me apavora. Depois de repelir Sprenger e Kramer, eu tinha certeza que eles
voltariam em breve, com tudo o que tinham direito em termos de armamentos e fúria
vingativa. Mas os dias foram se passando, transformaram-se em semanas e a semana
confluiu no último mês inteiro sem que eu visse o menor sinal de homens em ternos
estranhos. No news good news, sei que se costuma dizer, mas não creio que isso valha para
a Intempol. A aranha trabalha em silêncio e me pergunto que tipo de teia não estará sendo
tramada para mim.
Há outras ausências que me inquietam. Jack Parsons e seus thelemitas, por exemplo,
mais próximos do meu coração do que eu mesmo, esse coração que demonstra ter razões
que a própria razão desconhece. Parsons parecia capaz de percorrer os abismos do tempo
com a mesma desenvoltura que os agentes da Intempol, parecia ansioso por me encontrar e,
mesmo assim, ele e suas respostas continuam sem dar as caras. Creio que terei de encontrar
minhas próprias respostas. Razões que a própria razão desconhece.
Reunindo a pouca energia que ainda me resta, contorno um bom pedaço do sopé da
montanha. Quem sabe não há uma picada, dissimulada entre as rochas secas e sem vida?
Mas se há, está tão bem dissimulada que é impossível de encontrar. Tudo o que vejo é
rocha sólida, dura e vertical. O Sol brilha com uma clareza devastadora, sua luz
entrecortada pelas nuvens, que projetam zonas de sombra sobre o terreno descarnado. É
uma terra amarelenta, onde o ouro se mistura com pus e vômito seco. Nada aqui é
encorajador, nada me dá uma pista de como seguir adiante. E no entanto, dentro de mim,
vibra a certeza, a mesma certeza inquestionável de que essas respostas que procuro
aguardam lá em cima, no templo do deus desconhecido, no templo de Zcrro.
Volto ao ponto de partida e caminho até o pé da árvore morta. A Menina joga uma
pedrinha para o alto. Paro diante dela. A Menina apanha uma segunda pedra antes que a
primeira caia. Olho diretamente em seus olhos. A Menina apara a pedra que cai.
— Como eu subo?
Ela não responde.
— Como eu subo a Montanha?
Ela joga a pedrinha para cima.
— Como eu faço pra chegar ao templo?
Agarro a pedra no alto. A Menina me olha com um ar de protesto.
— Você não me trouxe aqui pra ficar vendo você brincar, trouxe? Isso, a gente podia
fazer lá na praia.
Com uma expressão resignada no rosto, a Menina se levanta.
— Pensei que você fosse mais esperto — diz.
Estendo a pedrinha para ela, que a apanha com displicência.
— Como eu faço pra ir até o templo de Zcrro?
A Menina recolhe as outras pedrinhas e guarda na bolsa.
— Você tem que voar — diz.
O cume da Montanha se perde entre nuvens densas, que assumem formas ominosas.
{28)
Agora dar-vos-ei a seguir distintas e suficientes informações sobre como empregar os Símbolos, e
como proceder se desejardes adquirir outros.
— O Livro de Abramelin, Livro II, cap. XX.
Minha vontade é de socar a garota.
— Você só me diz isso agora?
Ela encolhe os ombros, displicente.
— Você só perguntou agora.
Dou alguns passos a esmo, pra ver se minha frustração se descarrega por alguma
outra via motora, que não envolva agarrar a Menina pelos ombros e sacudi-la até ela se
desmanchar em lágrimas.
— Não sei se você notou, — digo, tentando parecer calmo — mas eu não sou um
passarinho.
— Não precisa ser passarinho pra voar — ela responde, ficando de pé.
— Você sabe voar, por acaso?
A Menina ri.
— Nunca precisei aprender.
Torno a olhar para a Montanha. Se ao menos eu tivesse uma corda... Ia ser difícil pra
caralho, mas não impossível. Na verdade, se tem alguma lição a tirar de tanta maluquice
que vem me acontecendo é que nada parece impossível. Bem, nem mesmo voar. De
repente, me ocorre que estou fazendo as perguntas erradas pra Menina, ou as perguntas
certas, mas do jeito errado. Me aproximo dela. A Menina me olha com um ar desprovido de
expressão, mas eu poderia jurar que, lá no fundo da retina, há um leve brilho de diversão.
— Como eu faço pra voar?
O leve brilho se expande num sorriso, que se alastra por todo o rosto da Menina.
— Você já voou uma vez, lembra? Quando escapou do carrasco.
É verdade. De alguma forma, eu consegui me transportar do poste para o outro lado
da rua, uma fração de segundo antes do machado atingir minha carne amarrada. E, embora
a Menina não saiba, não foi a primeira vez. Também tem a rocha na Pedra da Gávea. Mas
não sei como consegui isso em nenhuma das ocasiões, nem se seria capaz de repetir o feito,
especialmente sem uma ameaça bem palpável contra a minha vida.
— Daquela vez, — diz a Menina, que dá a impressão de ter acompanhado o meu
raciocínio — a ameaça de morte funcionou como gatilho. Mas existem outros gatilhos.
Existem outros gatilhos.
— Tente se recordar dos desenhos na parede da caverna — sua voz tem um tom de
benevolência que faz contraponto com o mutismo teimoso de há apenas alguns minutos. —
Eles ensinam como voar.
Lembro de ter visto os desenhos ao despertar, depois que a Menina me pôs a nocaute
com um tacape. Mas não lhes prestara mais que uma atenção superficial. Como ela quer
que eu recorde os detalhes?
— Tome, isto vai ajudar.
Me estende um punhado de grãos ressecados, que acaba de tirar de sua bolsa.
— O que eu faço com isso?
Ela me manda mastigar e engolir. Os grãos têm um gosto parecido com café, mas
deixam um ressaibo amargo na boca depois que eu engulo.
— Agora, feche os olhos e se concentre.
O efeito não demora a se fazer sentir. Meus pensamentos se aceleram, como se
fossem uma manada de trens desgovernados. Tenho a impressão de que basta focar a minha
atenção sobre algum deles para ser arrastado a um mundo diferente, uma outra realidade,
universos enrolados sobre si mesmos, que apenas esperam pela minha consciência para se
desdobrar em toda sua magnitude e pujança.
— Pense nos desenhos.
Subo no trem que conduz à caverna. Estou parado diante das pinturas. Elas são
traçadas com uma tinta vermelha, forte, que dá a impressão de brilhar na penumbra. A
primeira figura é semelhante a um funil ou um capuz de cabeça pra baixo.
— Esse é o tempo do mundo, esse é o espaço do mundo — diz uma voz, que eu não
sei se é a da Menina ou a minha. — O espaço que você vê, o tempo que você sente.
A figura seguinte é uma esfera resplandecente, feita de círculos superpostos.
— Esse é o tempo imaginário, o espaço da imaginação.
Subitamente, a primeira figura se retorce, dobra-se sobre si mesma e se transforma na
esfera. Deve ser efeito da droga. Tenho certeza que os desenhos da caverna não eram um
desenho animado.
— O segredo do vôo é compreender que o tempo imaginário é o tempo real. E que o
espaço real é um espaço imaginário.
Sinto meu sangue fervilhar, como se bilhões de pequenos insetos rastejassem por
minhas veias. A esfera se agita no mesmo ritmo da canção do sangue e transforma-se no
que a princípio tomo por uma noz mas, olhando melhor, percebo que é um cérebro humano.
— Pois o tempo não existe e o espaço é só um sonho.
Ali dentro da caverna imaginária, percebo a aproximação de um trem do pensamento
às minhas costas. Embarco em seu vagão tremeluzente e ele me conduz de volta à encosta
da Montanha. Abro os olhos e dou de cara com os olhos curiosos da Menina. Ela não
precisa formular a pergunta, eu não preciso verbalizar a resposta.
Sim, eu sei como voar.
{29}
They are as serpents, they are as trees, they are as the holy Zcrro, they are as all things straight or
curved, they are winged.
— Aleister Crowley.
Daqui do alto, o arquipélago de Atlas tem uma forma curiosa. Suas sete ilhas estão
dispostas de forma regular, como se não fossem livres criações da natureza, o pico de
montanhas submersas, mas uma construção artificial, deliberada, cujo padrão só se tornasse
evidente quando visto de cima. Ao redor das ilhas, o mar se estende até onde a vista
alcança, transmitindo a impressão de uma solidão cósmica. Chega-se a pensar que não há
mais nada no planeta, exceto Atlas e o oceano. Chega-se a pensar que, se navegássemos até
o horizonte, cairíamos pela borda do mundo. Chega-se a pensar que tudo não passa de um
cenário. O topo da Montanha é tão seco e descarnado quanto seu cone maciço. Por todo o
lado, vê-se apenas rochas amarelentas e poeira. A única forma de vegetação, talvez a única
forma de vida, é o esqueleto de antigas árvores retorcidas, completamente desprovidas de
folhagem e que estendem suas raízes feito serpentes à espera do momento certo para
abocanhar o incauto viajante que se atrevesse a botar os pés ali. Meus pés estão aqui e eu
sou um viajante, mas estou fazendo o possível para não ser incauto.
(Onde estão os sacerdotes de Zcrro?)
Deixei a Menina na encosta, entregue a suas pedrinhas. Não havia como trazê-la
comigo. Não sei se ela continuou lá ou se tomou o caminho de casa assim que eu
desapareci de suas vistas. Imagino que não faça diferença. Antes de seguir em frente,
perguntei se ela esperaria pela minha volta. Ela fez uma pausa antes de responder, mas não
como se hesitasse, e disse:
— Você não vai voltar.
Perguntei o que ela queria dizer com isso, mas a Menina parecia disposta a mergulhar
novamente no estado de teimosia muda que ela adotava sempre que não ficava satisfeita
com as minhas perguntas.
— Eu vou morrer? — disse, sabendo no íntimo que não.
— Não exatamente.
— Então, o que vai acontecer comigo?
Ela sentou sobre a areia, abriu sua bolsa e, uma a uma, começou a retirar suas
pedrinhas.
— Só Zcrro sabe.
E essa foi toda a despedida que consegui dela.
Assim, sem ter mais o que fazer ali, e ansioso para encontrar minhas respostas, dei-
lhe as costas, fechei os olhos e me concentrei em voar. Essa não é uma palavra realmente
adequada para descrever o que aconteceu, apesar de, ao que tudo indica, ser o termo
corrente entre o povo de Atlas, ou pelo menos entre as mulheres de Atlas. Como já havia
acontecido na praça, eu simplesmente estava na encosta num instante e, no instante
seguinte, vi-me no topo da Montanha. O próximo passo, imagino, é encontrar o templo de
Zcrro.
(Onde estão Sprenger & Kramer?)
Achar o templo acaba sendo mais fácil do que eu tinha imaginado. Basta-me andar
alguns minutos e contornar uma enorme pedra em forma de ovo para dar de cara com a
única construção que parece haver aqui em cima. Ela é cercada por um muro alto,
construído com pesados blocos de pedra cinzenta, que destoam da amarelidão de tudo o
mais. No centro do muro, há uma sólida porta de madeira com aspecto de antiga, envolvida
por um tríplice arco de mármore. Experimento a porta. Ela se abre com facilidade, apesar
de suas dobradiças emitirem um uivo lúgubre quando a empurro com as duas mãos.
Do lado de lá do muro, uma trilha mal cuidada conduz até o templo que, bem, não se
parece exatamente com um templo. Lembra mais um simpático chalé siciliano, com um
telhado de duas águas que, assim como a trilha, mostra evidentes sinais de desgaste do
tempo, com telhas faltando, paredes sujas e os restos do que outrora deveria ter sido um
belo jardim. É fácil imaginá-lo repleto de flores vermelhas, mas hoje, tudo o que se vê, são
canteiros revolvidos, cheios de uma terra ressequida e doentia. Postada entre o jardim e a
porta, uma sacerdotisa de pedra contempla os visitantes, e acho que faz muito tempo que
ela não tem visitante algum para contemplar. Seu rosto é belo, de uma serenidade hierática,
a mão esquerda postada sob o peito, como se apontasse para o estranho crucifixo pendurado
em seu pescoço. Ao olhar para a estátua, uma imagem inesperada explode em minha
memória. (A mulher me observa com impassibilidade. Sua beleza tem uma qualidade
etérea, irreal. Os cabelos são negros, mas não da forma como cabelos negros costumam
ser negros. Trazem à lembrança o conhecimento de que o negro não é uma cor, é a
ausência de todas as cores, a absorção total da luz, sem superfície refletora.) Tenho
certeza de que já a vi antes, mas não consigo lembrar onde.
Entro na casa e dou de cara com outra estátua, um gigante de garras crispadas, cujo
olhar furioso também me desperta uma sensação de familiaridade. (Meu esperma flui para
o ventre incandescente de Babalon no instante mesmo em que um gigante vermelho
arranca minha cabeça com suas garras.) A nave do templo está imersa na mais profunda
escuridão, e demora alguns minutos antes que meus olhos se acostumem o suficiente para
eu poder olhar em volta.
(Onde estarão Sprenger & Kramer?)
A imagem de Zcrro ocupa o centro do recinto circular. Sei que é a imagem de Zcrro
porque o pedestal traz seu nome gravado em relevo com letras bem grandes, que se pode
ver desde a porta de entrada. Estranhamente, o nome não está escrito em caracteres atlantes,
mas em meu próprio alfabeto. E escreve-se SCRO, embora os atlantes pronunciem Zcrro.
De onde estou, não consigo divisar o rosto do deus, mergulhado nas sombras.
(Onde estarão os sacerdotes de Zcrro?)
À medida que me aproximo, vou percebendo que as letras são parte de uma palavra
muito maior, parcialmente encoberta pela escuridão.
À medida que me aproximo, o rosto do deus vai ficando mais nítido para mim.
À medida que me aproximo, consigo ler o nome.
À medida que me aproximo, consigo ver o rosto.
Uma voragem negra e infinita sobe pela minha espinha e se espalha por todo o meu
corpo.
O nome é ALEISTER CROWLEY.
O rosto é o meu rosto.
{30}
Tu és um pequenino coelho branco na toca da Noite.
— Liber Liberi vel Lapidis Lazuli, I:14.
— De modo que, agora, você sabe — diz uma voz atrás de mim.
Volto-me e deparo com um desconhecido, cujo rosto, tenho certeza, já vi muitas
vezes no espelho. É bem mais jovem do que eu e, no entanto, temos a mesma idade,
atemporal e infinita. É bem diferente de mim, e contudo sou eu. O nome salta-me aos lábios
com a presteza de um relâmpago, ou de uma iluminação súbita, zen-budista.
— Alexandre Toledo.
Ele abre um sorriso irônico.
— Gostaria de dizer que em carne e osso mas, infelizmente, isso não é verdade.
Alexandre Toledo está parado na entrada, displicentemente encostado à estátua do
gigante. Para mim, parece tão sólido e substancial quanto eu mesmo.
— A questão é exatamente essa. Como você acaba de descobrir, nenhum de nós dois
é real de verdade.
Alexandre se endireita e, com meia dúzia de passos, estamos frente a frente.
— Nós dois não passamos de uma cela de carne, uma prisão construída pra segurar o
sujeito aí da estátua.
Aponta com a cabeça para a imagem de Crowley, minha, sei lá de quem.
— O termo técnico, se você quer saber, é biocárcere.
Estou confuso mas, ao mesmo tempo, sei precisamente do que ele está falando, um
conhecimento intuitivo, que não seria capaz de colocar em palavras.
— Mas fico feliz que você tenha me reconhecido. Sinal de que as barreiras estão
cedendo.
Que barreiras?
— Melhor te contar a história toda, do princípio.
Ele dá um pulo e senta no braço estendido da imagem.
— Quando o velho aí tomou uma overdose de Graal, a consciência dele se
transformou numa superposição coerente. Você tem idéia do que é isso?
Faço que não com a cabeça.
— Se tivesse usado a tua matemática pra mais coisas além de fechar um balanço,
saberia — dá uma risada. — É um conceito de mecânica quântica. A gente aprende
mecânica quântica logo no primeiro ano na Academia da Intempol. É essencial pra entender
a dinâmica das viagens no tempo — ele fica um instante pensativo. — Claro que, no fundo,
nem eu estudei na Academia, nem você aprendeu matemática. Tudo são memórias
implantadas.
Com outro pulo, Alexandre desce do braço e põe-se a rodear a estátua.
— De qualquer forma, um objeto está em superposição coerente quando deixa de ser
um objeto e se transforma em um pacote de ondas de probabilidade. Quer dizer que ele
assume de uma só vez todos os estados possíveis, em todos os pontos do espaço-tempo. Em
vez de estar aqui hoje, ali amanhã e acolá daqui a meia hora, está simultaneamente aqui, lá
e acolá, hoje, amanhã e daqui a meia hora. Tudo ao mesmo tempo agora. Não faz sentido,
mas é o que é. Tem uma equação danada de difícil pra descrever essa porra. Bom, difícil
pra mim. Pra você, que acha que estudou matemática, deve ser relativamente simples.
É de fato simples, mas não por causa da matemática. A explicação de Alexandre toca
uma nota no meu íntimo, como se ele estivesse descrevendo um lugar onde vivi durante
algum tempo, e as lembranças vão fluindo à medida que ouço a descrição.
— Imagina o risco que um sujeito desses representa pra uma polícia que tomou pra si
mesma a missão de patrulhar o tempo. Especialmente quando ele sabe que essa tal polícia
só quer mesmo é proteger o próprio osso e abanar o rabinho pros poderes estabelecidos.
Intempol. Mesmo sem ser dito, o nome flutua pelo ar da nave, com todas as suas
sombrias implicações.
— É onde a gente entra na parada. Usando uma daquelas tecnologias tão avançadas
que não podem ser distinguidas da magia, o pessoal do Departamento M provocou o
colapso da função de onda do Crowley. Fizeram isso com o sigilo do cara, que tem uma
conexão não-local com ele e funcionou como foco pra concentrar todas as probabilidades
da superposição em um único ponto do espaço-tempo.
Levanto as mãos e digo pra ele ir mais devagar. Não consigo acompanhar tantos
termos técnicos. Sei que o sigilo é a tal marca de nascença em forma de olho, que tanto eu
como Alexandre temos na testa. Mas não faço a menor idéia do que é uma conexão não-
local.
— Os detalhes não importam. Você vai lembrar de tudo por si mesmo quando as
barreiras acabarem de cair. O que interessa é que o ponto focal era um corpo construído
artificialmente e equipado com um conjunto completinho de falsas memórias. Daí, o
Crowley não ia poder sair, nem lembrar quem era.
— E eu sou esse corpo...
— Nós somos. O teu corpo é o meu corpo, só que reconstruído, depois que a primeira
experiência falhou. Atualmente, eu não passo de um punhado de recordações enfiado no teu
inconsciente.
— Nesse caso, como é que eu estou te vendo aí fora?
Alexandre solta uma gargalhada sarcástica, que ecoa pelas paredes do templo e reflui
sobre mim.
— Você não sacou ainda? Este mundo foi criado por Zcrro e você é Zcrro. O mundo
inteiro não passa de uma projeção do teu inconsciente, uma coleção de símbolos que você
extraiu da nuvem de probabilidades e transformou em real.
Ele pára bem na minha frente.
— Tudo vai deixar de existir no momento mesmo em que as barreiras caírem e você
recuperar todos os teus aspectos.
A pergunta se formula na minha boca por si mesma:
— O que falta pras barreiras caírem?
Alexandre dá de ombros.
— Isso é com ele.
Eu me viro na direção que ele aponta no exato instante em que Aiwass surge das
sombras e crava uma adaga no meu peito. Caio de joelhos e meu sangue asperge a imagem
de Zcrro como uma oferenda ao deus desconhecido.
Tudo escurece ao meu redor.
{interlúdio}
Tudo escurece ao meu redor. Mas não há mais um eu ao redor do qual tudo possa
escurecer. Não há mais um tudo que possa escurecer ao redor desse eu que não está aqui.
Não há nem mesmo um arredor para conter esse tudo que não está mais lá para escurecer
ao redor de um eu que não está aqui. Resta apenas o escurecer, um ato puro, a pulsação de
uma experiência desprovida de sujeito e privada de objeto. Era uma vez um contador que
nunca contou nada e um agente que não agia. Era uma vez um mago e um velho viciado.
Era uma vez um demônio. Era uma vez uma besta. A serpente, mais sagaz de todas as
criaturas, rastejava nas trevas, uma onda que crescia, se multiplicava e convergia, uma
cobra que engolia a própria cauda.
É assim que começa. Um dia, uma estrela e um nome. A madrugada se desdobrando
em folhas amplas de um subtexto tão atroz quanto explícito. O silêncio dos lábios de pedra
e a porta que desenha minha sombra sem nome. As ausências na parede, as presenças na
caverna. No quintal do mundo rondam os fantasmas, no espaço ninguém pode ouvir você
gritar. Delicados e diabólicos, os convidados encenam um funeral sobre a mesa do altar.
Deslizantemente, o advérbio. Nem o grito seco ou estalido na garganta. A pedra-pome, o
silêncio ríspido. Contas cármicas não vêm pelo correio. Quero lembrar da prontidão
muda, da invisibilidade flamejante neste horizonte de plástico e vidro. Meu vulto triturado
entre escunas de gelo, ossos de obsidiana e setecentas virgens sacrificadas no bico
implume de um condor. Nós coloridos me amarram o coração. Criaturas híbridas vagam
pelas dimensões perdidas da memória errante. É um filme de terror e o ponteiro do
relógio. Letra que tropeça, tinta que ilumina. Olha, é um incêndio no rodapé do universo.
Vê, uma corrente na contracorrente do tempo. Desfeito rodamoinho num ninho de
mafagafos. E uma boneca de pano que as entrelinhas consertam. Palhaços, malabaristas,
vendedoras de fósforo sem sombra. E uma bailarina no palco da minha pálpebra. E uma
vacina na beira da minha alma. E uma menina na trilha da minha perna. Ondas de asfalto
fazem a madrugada fosforecer. Vértebras de ouro, não são estranhas estas catacumbas?
Entendo que bonecos vociferam palavrões. Desenho a sombra de escritores mortos que me
esculpissem a carne. Desdenho o cinza dos leitos de hospitais. Desdigo a voz que arranha
os dentes. Eu sou o protetor dos homens, aquele que rasteja pelos éons da eternidade.
Eu sou Aleister Crowley.
{31}
O Rei atinge a abundância.
Não fique triste.
Seja como o sol ao meio-dia.
— Hexagrama 55
É uma terça-feira qualquer, no ano de 2004. A data, na verdade, não importa muito. A
teoria da relatividade especial de Einstein estabeleceu que o tempo é relativo, e em nenhum
outro lugar isso é tão verdadeiro quanto nos corredores do nº 1 da Av. Rio Branco. É ali,
por trás da fachada de escritórios e repartições públicas, num espaço dotado de topologia
aberrante, que fica a sede da Intempol. Claro, ela não fica exatamente ali. Como se disse, o
espaço dentro do edifício não possui as mesmas propriedades que o espaço no interior dos
outros prédios, e a sede da Intempol tem pontos de conexão com centenas de outros locais,
em outros milhares de épocas. Mas Sprenger e Kramer não estão nos corredores da sede.
Estão no boteco, do outro lado da rua, tomando um cafezinho e comendo um salgado que já
deveria ter sido derrotado pela Segunda Lei da Termodinâmica pelo menos desde a semana
passada.
Kramer mastiga sua coxinha em silêncio, olhando as nuvens cinzentas que encobrem
o céu do Rio de Janeiro. Nos últimos dias, Kramer tem ficado muito em silêncio. Não que
antes ele tenha sido um prodígio de loquacidade, mas agora tornou-se tão lacônico que, às
vezes, os colegas precisam se certificar de que ele ainda está respirando.
Sprenger come seu croissant com voracidade, praguejando de vez em quando contra
essa merda de tempo maluco. Nos últimos dias, Sprenger tem praguejado muito. Não que
antes ele se destacasse por seu linguajar elegante, mas agora tem dito coisas que fariam
gelar o sangue dos marinheiros no cais ali ao lado.
Ambos mastigam e engolem com regularidade germânica. O que sua regularidade
germânica não lhes permite engolir, porém, é seu próprio fracasso em recapturar Antônio
Colares. Não são os únicos. Levou algumas horas de árdua discussão até convencer o
Comissário M de que a culpa não tinha sido deles. Durante todo o tempo, a perspectiva de
ter que enfrentar novamente os Anciãos do Conselho Diretor rondava pela espinha dos dois
agentes como uma forma de vida alienígena, à espera do momento propício para abrir
caminho até o cérebro sob a forma de um calafrio. O fracasso nunca é um sentimento
agradável e, na Intempol, ele pode levar a uma eternidade em uma cela na Prisão dos
Homens que Nunca Existiram.
O universo numa casca de noz.
Sprenger olha para o outro lado da rua e vê o Comissário Ramos parado na esquina,
esperando o sinal abrir para atravessar a rua.
— Caralho do Padre Inácio — resmunga.
Kramer acompanha o olhar do companheiro e também não gosta do que vê, mas sua
única reação é enfiar a mão no bolso, sacar um punhado de notas amassadas e deixar sobre
o balcão. Sprenger o imita e os dois batem em retirada, mas Ramos os alcança antes que
eles consigam atravessar a rua.
— E aí, Martelo das Feiticeiras? Perdendo muitos magos ultimamente? —
cumprimenta Ramos. Sprenger tem vontade de lhe arrebentar os dentes com um soco, mas
Kramer se limita a arquear levemente a sobrancelha esquerda.
— Não foi culpa nossa — Sprenger repete quase as mesmas palavras que usara com o
Comissário M. — O filho da puta ergueu uma barreira depois que a gente foi embora.
— Uma barreira? Não brinca! Mas ele não é só um contador?
— Não fode, Ramos. Você sabe muito bem quem ele é. Você também perdeu o
Crowley antes, tá lembrado?
— É, mas eu recapturei. E entreguei direitinho na mão de vocês.
— Vai tomar no cu, antes que eu me esqueça. Quem pegou o Crowley foi o Conselho
Diretor.
— Touché — Ramos ergue as duas mãos, numa rendição irônica. — Mas me explica
direito essa história de barreira.
— Não tem porra nenhuma pra explicar — retruca Sprenger, de má vontade. — O
viado expulsou a gente de lá e, quando tentamos voltar, não conseguimos entrar.
— Vocês tentaram criar um tunelamento quântico?
— Vai à merda, Ramos! Tá pensando que a gente é o quê? Recrutas da academia? —
Sprenger explode.
Um office boy com o nariz atravessado por um enfeite de osso pára ao ver a explosão
de Sprenger. Nenhum dos três lhe dá a menor importância.
— Foi a primeira coisa que tentamos — completa Kramer, falando pela primeira vez.
— De algum jeito, o corno do Crowley cancelou as probabilidades.
Ramos vai abrir a boca para falar alguma coisa, mas se interrompe. Sprenger e
Kramer também ficam imediatamente hirtos. O alarme EPR em seus cérebros dispara.
— O Crowley voltou pro contínuo! — diz Sprenger.
O office boy arregala os olhos, achando que estão falando dele. Mas os três saem
correndo para a sede da Intempol, sem nem olhar os carros que passam e buzinam
histericamente. O office boy sacode a cabeça e retoma seu caminho.
É cada coisa doida que a gente vê nessa cidade.
{32}
Um lago na montanha:
a imagem da INFLUÊNCIA.
Assim o homem superior,
através da receptividade,
incentiva as pessoas a que
se lhe aproximem.
— Hexagrama 31
Lucy cumprimenta o visitante com um rosnado animal, um alerta severo nascido há
milhares de anos numa savana africana, uma advertência que teria feito qualquer outra
pessoa recuar, com medo de ver suas presas pontiagudas cravarem-se em algum ponto do
pescoço e arrancarem sangue e pedaços de carne. Mas o visitante não demonstra qualquer
reação, e isso deixa Lucy ainda mais incomodada. Não gosta de visitas não-anunciadas,
especialmente quando a visita se materializa num canto da sala que deveria ser um dos
lugares mais bem guardados de todos os contínuos. Nuvens de nanotechs flutuam por todos
os corredores e recintos do Palácio do Borel, microscópicas sentinelas automáticas, prontas
a detectar a menor invasão e tomar providências para a defesa, feito anticorpos de um
gigantesco organismo. Nem mesmo os agentes da Intempol seriam capazes de entrar ali
sem a autorização de Lucy, mas o visitante parece invisível aos nanotechs, que continuam
sua ronda como se não registrassem a presença de mais ninguém na sala a não ser Lucy.
Lucy encara o velho, sem saber muito bem o que fazer, enquanto seus implantes
neurais acessam a base de dados e tentam identificá-lo. O homem recolhe o olhar perplexo
de Lucy em suas próprias retinas, onde submete-o a uma espécie de torção dimensional,
antes de devolvê-lo transformado em uma expressão de divertida ironia. Não diz uma
palavra, não faz o menor gesto. Espera, como se tivesse todo o tempo do mundo. E talvez
tenha mesmo. Depois de alguns segundos de busca, o que significa que a informação teve
que ser recuperada em pastas remotas e pouco usadas, o implante identifica a cabeça calva
em forma de ovo, as orelhas saltadas, os intensos olhos escuros. A identificação explode na
mente de Lucy sob a forma de uma lembrança súbita.
— Tu tá bem longe de casa, não, Mr. Crowley? — diz Lucy, arreganhando as presas
num sorriso ameaçador.
— Olha só quem fala — responde Crowley, abrindo a boca pela primeira vez. Sua
voz é profunda, reverbera como os ecos numa caverna de outrora.
Lucy dá de ombros.
— Como é que tu passou pelos olheiros, é só o que eu queria saber.
A mão de Lucy repousa displicentemente sobre o tampo da escrivaninha, pronta pra
alcançar a arma num movimento mais rápido do que os olhos poderiam ver. Olhos
humanos, pelo menos. Mas ela desconfia que não é o caso.
— Você quer dizer, os nanotechs? Eles são bons, sabe? Mas têm uma limitação
fundamental.
Lucy não pergunta qual é a limitação fundamental dos nanotechs. Não vai entrar
nesse jogo. Crowley, contudo, não parece esperar por uma resposta.
— É que eles só podem perceber alguma coisa quando ela realmente está aqui.
Desta vez, a diminuta fêmea de Homo affarensis não consegue reprimir a surpresa:
— E tu não tá?
O ar de Crowley é o de que sabe que não adianta tentar explicar, porque é o tipo de
coisa que não dá pra colocar em palavras.
— Não no sentido que você e eles estão.
— Quê que tu é, então? Algum tipo de holograma?
Crowley ri.
— Não exatamente. Se eu te desse um soco...
Interrompe-se ao ver a arma que aparece na mão de Lucy, mas não demonstra a
menor preocupação.
— Relaxa, é só uma ilustração.
Ela hesita um instante, a vontade é de puxar logo o gatilho, atirar primeiro e perguntar
depois, mas acaba guardando a arma de volta na escrivaninha.
— Como eu ia dizendo, se eu te der um soco, você vai voar longe. Pra todos os fins
práticos, é como se eu estivesse aqui de fato.
Lucy não gosta nenhum pouco da ilustração, mas deixa passar batido. Apesar de
sentir que ela contém algum tipo de ameaça velada.
— Deixa pra lá — desiste Crowley. — É difícil de explicar. Aceite a minha palavra,
eu não estou realmente aqui. Mas estou.
— Tá, chega de merda metafísica — diz Lucy. — O que é que te trouxe aqui... mas
não trouxe?
— Faz algum tempo, um agente renegado da Intempol chamado Alexandre Toledo te
deu um cartão cronal em troca de um implante T. Estou certo?
— Vai ver, tá. Vai ver, não tá. Continua.
— Eu quero esse cartão. É só isso.
Lucy inclina a cabeça para trás e solta um cacarejo que Crowley leva algum tempo
para identificar como uma gargalhada.
— Só isso? Tu não quer mais nada?
— Quero. A caixa registradora, claro.
Lucy contorna a escrivaninha, até se postar diante de Crowley, de mãos na cintura.
— Tu sabe quanto vale uma porra dessas? Vamos supor que o tal cartão tá comigo. O
quê que eu levo nisso?
Crowley dá a impressão de refletir.
— Eu não tinha pensado nesse ponto.
De repente, Lucy está olhando sua própria sala de um ponto de vista elevado e, depois
de um instante, percebe que foi erguida no ar por uma criatura enorme, com ar demoníaco,
que a segura com um par de garras afiadas.
— Parece que o Mega Therion tem uma proposta — diz Crowley.
{33}
Nove na terceira posição significa:
Um bom cavalo que segue a outros.
É favorável ter consciência do perigo [...].
É favorável ter aonde ir.
— Hexagrama 26
O barulho é ensurdecedor. É difícil para Alexandre Toledo se concentrar com a
música no último volume, as risadas escandalosas, os gritos. Tem vontade de ir até lá e
pedir para o Comissário Ramos desligar a aparelhagem de som que simula uma festa no
apartamento, uma big band tocando, as conversas dos convidados, ruídos de pratos e copos.
Desse jeito, tem vontade de argumentar, não vai conseguir cumprir a tarefa da qual foi
incumbido. Mas aquela algazarra toda não parece incomodar os agentes mais velhos, que
repassam seus planos, conversam ou simplesmente ficam a postos, aguardando o momento
certo de agir, e Alexandre não quer passar pelo novato que efetivamente é. Além disso, o
Comissário Ramos se trancou numa das salas com um homem de longas barbas brancas e
dois caras cujo ar de autoconfiança desautorizava qualquer aproximação. Pelos comentários
que escuta, Alexandre deduz que o tal sujeito barbudo é o Comissário M. Sua presença no
apartamento faz o maior sentido, pois eles estão para desbaratar uma célula thelemita na
São Paulo da década de 40 e todo mundo sabe que Crowley e os thelemitas são assunto do
Departamento M. Pelo menos, Alexandre presume que todo mundo saiba. A verdade é que,
até poucos dias antes, Alexandre Toledo nunca tinha ouvido falar nem em Crowley, nem
nos thelemitas.
— Não se preocupe, você ainda vai ouvir falar muito sobre eles.
Alexandre se volta. A frase veio de um homem de meia-idade, com os cabelos
rareando e uma pequena mas saliente barriga de burocrata. Não o tinha notado antes e ele
não está usando o uniforme de agente da Intempol.
— Quem é você? — pergunta. "E como consegue ler meus pensamentos", tem
vontade de completar. Mas tudo a seu tempo.

Alheio à conversa que se inicia no salão, o Comissário Ramos está a um canto da sala
fechada, acompanhando o ritual mágiko que o Comissário M executa com a ajuda dos
agentes Sprenger e Kramer. Ramos simpatiza com o ar de sabedoria que emana do
Comissário M, mas não gosta nenhum pouco dos outros dois. Embora sejam
hierarquicamente do mesmo nível que o próprio Ramos, Sprenger e Kramer o olham como
se ele fosse um ácaro pousado num grão de poeira que caiu sobre a bosta do cavalo do
bandido. Se pudesse, Ramos arrancaria aquele ar de superioridade com um murro bem dado
na boca de Kramer e um joelhaço no saco de Sprenger. Mas não pode. Não enquanto o
ritual estiver sendo desempenhado. Depois, quem sabe? A gente sempre acaba tropeçando
pelos corredores da Intempol.
A sala é completamente desprovida de mobília. No piso, com uma pemba, Kramer
traçou um pentagrama inscrito em um círculo. O vértice superior do pentagrama é ocupado
pelo Comissário M. Sprenger e Kramer ficam nos vértices inferiores. Todos os três vestem
túnicas brancas. No centro do pentagrama, vê-se um olho de Hórus que, segundo Ramos foi
informado, é o sigilo pessoal de Crowley, o instrumento através do qual sua função de onda
será focalizada e obrigada a assumir um estado determinado. Ramos não entende direito o
porquê de sua presença, já que não desempenha parte alguma no ritual.
— Por isso mesmo — explicara o Comissário M. — Precisamos de um observador
externo para deter o espalhamento da onda. Do contrário, quando Crowley assumisse uma
posição definida, nós é que nos transformaríamos numa superposição coerente.
Para Ramos, aquilo tudo é loucura. Mas o Departamento M tem razões que a própria
razão desconhece. Acende um cigarro, sem se preocupar em perguntar se não atrapalharia a
cerimônia. Afinal, é um observador externo.

— Foi o Ramos que te mandou falar comigo? — pergunta Alexandre no salão.


O homem balança a cabeça.
— Alguém mais elevado — responde, com um sorriso misterioso.
Antes que Alexandre possa fazer mais perguntas, ele enfia a mão no bolso e tira um
embrulho, que estende para o agente.
— Mandaram te entregar isso — diz. — No caso das coisas darem merda.
Alexandre pega o objeto, sem entender. Quando torna a olhar, o outro desapareceu.
— Ô Randolfo, você conhece o cara que estava falando comigo?
O veterano encolhe os ombros.
— Não vi ninguém falando contigo.
Alexandre se afasta e abre o embrulho. Dentro dele, tem uma caixa registradora.
E um cartão cronal.
{34}
Seis na sexta posição significa:
Limitação amarga.
A perseverança traz infortúnio.
— Hexagrama 60
A tela do cronoscópio ocupa toda uma parede do salão, como um túnel cavado no
tempo. Cronoscópio é um termo jocoso para se referir ao aparelho que é oficialmente
conhecido como Dispositivo de Rastreamento das Linhas Temporais. No momento, ele
exibe um mapa quadridimensional do contínuo e suas imagens projetam centelhas no rosto
dos quatro homens sentados diante do écrã luminoso.
— Como vocês podem ver — diz o Comissário M — a função de onda de Crowley
está se espalhando.
No monitor, uma mancha simétrica, mais ou menos no formato de uma cruz de Santo
André, pulsa como se fosse uma ameba, estendendo-se por entre as linhas de mundo que
representam o contínuo.
— Por enquanto, ela está confinada ao período que vai da época histórica de Crowley
até o século XXV.
Nem Ramos nem Kramer fazem qualquer comentário. Sprenger mastiga
nervosamente um palito de fósforo que faz dançar de um canto da boca a outro.
— Mas a taxa de expansão é constante — prossegue M. — Se não for detido,
Crowley vai se espalhar por todo o contínuo.
Como um câncer, pensa Ramos. Um câncer insidioso, que vai corroendo o tecido do
espaço-tempo, até devorá-lo totalmente. Transformando o contínuo em sua própria
substância, numa paródia cósmica da eucaristia.
— Não preciso lhes dizer que, dentro dessa área — M aponta a cruz de Santo André
com uma caneta-laser — não podemos localizar Crowley com precisão. Ele pode estar em
qualquer ponto entre 1875 e 2597. De fato, como se encontra num estado de superposição
coerente, ele pode estar em vários pontos de uma vez. Ou mesmo em todos.
As you know, Bob, resmunga Sprenger, impaciente. Por que M perde seu tempo
ululando sobre o óbvio?
— Não podemos construir um novo biocárcere? — arrisca Kramer, por falar em
óbvio.
M abaixa a caneta-laser e volta-se para ele.
— Não temos mais o elemento-surpresa do nosso lado.
— Por que a gente simplesmente não volta para 1875 e mete uma bala na cabeça do
bebê Crowley? — sugere Sprenger. — Ia resolver todos os nossos problemas.
M não responde de imediato. Durante quase meio minuto, ouve-se apenas o
murmúrio do ar-condicionado, que parece censurar a sugestão de Sprenger.
— Não, não ia — diz M por fim. — A função de onda de Crowley está entrelaçada à
do contínuo. Não sabemos bem por quê, mas se apagarmos Crowley, toda a história do
universo seria alterada de formas que nem somos capazes de prever.
Ramos levanta e se serve de um café na máquina de expresso ao lado da porta. Sua
hérnia de hiato lateja, fazendo o esôfago arder como uma conflagração universal. O café se
derrama sobre ela feito gasolina num incêndio. Ramos deixa escapar um gemido surdo, mas
aceita. A dor é adequada ao momento. Uma dor contínua, estável, que nos limitamos a
contemplar com uma resignação passiva.
— O que podemos fazer? — pergunta, largando o copo vazio no cesto de lixo.
De repente, o Comissário M não parece mais um velho sábio, um Gandalfo com todas
as respostas na ponta da língua. É apenas um velho, com os ombros curvados sob o peso da
idade. Seu rosto é um labirinto de rugas e uma lágrima que rolasse teria dificuldades para
encontrar seu caminho.
— Neste exato momento, tenho três equipes de técnicos do Departamento M
estudando o problema. Eventualmente, uma delas vai chegar a uma solução — diz, mas não
soa convincente nem mesmo a seus próprios ouvidos.
— E nós? Por que estamos aqui? — interpela Sprenger, depois de cuspir a massa
úmida a que se reduziu o palito em sua boca. Ela fica caída ao pé da cadeira, ainda envolta
por borbulhas de saliva.
— Precisamos ficar de sobreaviso — responde M. — Há uma probabilidade de 67%
de que Crowley se manifeste aqui — aponta com a caneta-laser para uma área do mapa.
— Aqui nesta época? — pergunta Kramer, mas Ramos já sabe a resposta antes
mesmo que o Comissário M abra a boca.
— Aqui. Na sede da Intempol.
{35}
O céu doa, a terra parteja:
assim as coisas aumentam em todas as direções.
O caminho do AUMENTO em toda parte
age em harmonia com o tempo.
— Hexagrama 42
O homem que um dia foi Aleister Crowley flutua em meio ao imponderável. Não há
como descrever onde ele se encontra. Aleister Crowley encontra-se em todos os lugares e
não está em lugar nenhum. Não há como descrever quem é Aleister Crowley. Ele é todas as
pessoas que já foi ou poderia ter sido. Não há como dizer nem mesmo que o homem que
um dia foi Aleister Crowley ainda seja humano. Pois não faz parte da condição humana a
escolha inexorável entre diferentes possibilidades, a frustração com as escolhas que fez, o
arrependimento amargo pelas escolhas que deveria ter feito e deixou de fazer?
Perdurabo.
Desde que o mundo é mundo, e pela escala de Crowley isso nem faz tanto tempo
assim, cada pessoa arrasta atrás de si uma fileira de fantasmas, os espectros de todas as
coisas que talvez tivesse se tornado, o espírito dos natais passados, a sombra dos natais
futuros e o presente que escapa por entre os dedos antes que tenhamos chance de agarrá-lo.
Mas o presente, para Crowley, é atemporal. Neste momento, ele tem três meses e está
sendo mergulhado na pia batismal por um homem que diz: "Eu te batizo Edward
Alexander, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo." Neste momento, ele está em sua
casa, morrendo de overdose. Neste momento ele escala o Monte Kangchenjunga. Neste
momento, seu rosto é iluminado pelos raios que o Sol derrama sobre as pirâmides do Egito.
Neste momento ele sonha e desperta, convoca deuses, invoca demônios, faz amor com uma
mulher de cabelos vermelhos, faz amor com uma jovem de cabelos loiros, faz amor com
uma velha de cabelos brancos. Faz amor com um homem. Faz amor consigo mesmo.
Perdurabo.
Crowley tem quinze anos e está sendo operado da fimose. Contempla o rio Tâmisa e
descobre, maravilhado, que Londres à noite é bonita. Olha para o rosto de urso de sua
primeira governanta. Contempla o rio Tâmisa e descobre, maravilhado, que Londres é
monstruosa e disforme. Acorda em seu quarto após um ataque de asma e vê uma mulher
estranha, o fogo aceso e uma chaleira sendo levada. Contempla o rio Tâmisa e descobre,
maravilhado, que o segredo da cidade é uma conspiração.
Perdurabo.
Aqui, Crowley é um mago legítimo, que domina os antigos arcanos e abre portas para
outros universos. Ali, Crowley é um charlatão, que usa fórmulas pomposas para obter
ascendência sobre os pobres de espírito. Acolá, Crowley é um louco que diz o que lhe vem
à cabeça e não sabe do que fala. É um ladrão e um sacerdote, um aventureiro e um burguês
acomodado, um oficial e um cavalheiro, um falcão e um boneco de neve. Um santo. Uma
santa. Uma puta. Um filho da puta.
Perdurabo.
Crowley é um menino de oito anos que encontra a casa vazia e conclui que o Dia do
Juízo chegou, todos foram levados pela graça divina e só ele ficou para trás. Crowley é um
viciado em heroína, com problemas nos pulmões, que assiste à dissolução da Abadia de
Cefalu e conclui que só ele ficou para trás. Crowley é uma criança que vê a empregada
morrer em meio a um delírio aterrador, gritando: "Perdida! Perdida! Estou perdida!"
Crowley é um homem que acaba de se divorciar e olha, impassível, enquanto a mulher
enlouquece e grita, em meio a um delírio aterrador: "Perdida! Perdida! Estou perdida!"
Perdurabo.
Ele é Aiwass, sua essência imortal, o velho sábio que todos carregam dentro de si. Ele
é a Mulher Escarlate, sua essência feminina, a deusa criadora de ilusões que todos carregam
dentro de si. Ele é o Mega Therion, sua essência demoníaca, a besta do apocalipse que
todos carregam dentro de si.
Perdurabo.
O homem que um dia foi Aleister Crowley flutua em meio ao imponderável. Não há
como descrever onde ele se encontra. Aleister Crowley encontra-se em todos os lugares.
E não está em lugar nenhum.
{36}
Entusiasmo.
É favorável designar ajudantes
e por os exércitos em marcha.
— Hexagrama 16.
Será outro psicopata à solta no tempo, pensa Yeats, enquanto seus olhos deslizam
pelo relatório na tela do computador. Tão evidentemente louco que seria melhor nem ter
nascido. Quantos malucos já não pensaram que essa era a saída, voltar ao instante da
concepção, impedir que papai Alois despejasse o sêmen no ventre úmido de mamãe Klara.
Quantos cronoterroristas a Intempol já não teve que deter, dispostos a voltar no tempo e
sufocar o bebê no berço, antes que ele crescesse e se transformasse na não-pessoa que
levaria o mundo a uma transformação violenta mas necessária, extinguindo o século XIX, o
século de Yeats, e fazendo um admirável mundo novo brotar de suas cinzas.
— Você sabe, a soma do nome dele dá 666 — diz Yeats. — E não há dúvida de que,
se existe uma Besta do Apocalipse, ele é um forte candidato ao posto.
— Eis porque é a pessoa ideal pra nós — diz M, a voz de barítono ricocheteando
pelas paredes do escritório, as ondas sonoras deslizando sobre escrivaninha mesa
computador, engolfando as cadeiras estofadas, até se quebrar junto à tabuleta pendurada na
parede: Qualquer tecnologia suficientemente avançada não pode ser distinguida da magia.
— O que eu quero dizer — contesta Yeats — é que eles são mais afins do que
opostos.
O comissário M se levanta e caminha até a janela. O Sol carioca se derrama sobre a
azáfama humana que percorre as calçadas da Av. Rio Branco. O vidro da janela é, na
verdade, uma placa de transparência subjetiva. Se M quiser, poderá mudar a paisagem,
sintonizando-a com qualquer das muitas épocas com as quais a topologia especial do
edifício está em contato. As maravilhas da viagem no tempo nunca cessam de surpreendê-
lo. Um mago bretão do século VIII, um poeta inglês do século XIX reunidos em uma sala
no Rio de Janeiro para discutir os destinos de um anarquista e um tirano do século XX. Há
uma certa beleza nesse tipo de reunião, pensa M. A beleza do encontro entre uma máquina
de costura e um guarda-chuva sobre a proverbial mesa de cirurgia.
— Eles são suficientemente afins para que suas funções de onda sejam isomorfas —
volta-se para Yeats — e ao mesmo tempo, opostos o bastante para que suas amplitudes
sejam não-coincidentes.
Aproxima-se da tela de computador. Yeats recua um pouco a cadeira, para dar espaço
a seu superior.
— Você pode ver a projeção no gráfico que a equipe 3 anexou ao relatório —
continua.
M aponta para um ícone na borda superior direita da tela. A imagem se expande,
transforma-se numa animação de dois pacotes de ondas que se sobrepõem. Os picos e
depressões recobrem-se mutuamente em quase todos os pontos, depressão sobre pico, pico
sobre depressão.
— Eles não se anulam completamente — observa Yeats.
— É claro que não — concorda M. — Eu já te disse, não podemos apagá-los do
contínuo. São duas figuras-chave na história do século XX, a existência deles é essencial
para os nossos objetivos.
Nossos objetivos, repete para si mesmo, em silêncio. Como se ele soubesse quais são.
Como se alguém soubesse, além do misterioso conselho diretor, do qual se ignora até
mesmo a verdadeira aparência, para não falar da natureza real. Nesse caso, por que está
com eles? É uma pergunta que M se faz a si mesmo dia após dia. Todas as respostas já
passaram pela sua cabeça. Porque isso o tornaria praticamente imortal, dando-lhe acesso ao
passado e ao futuro da humanidade, permitindo-lhe a ilusão fugaz de escapar às garras da
deusa da morte. Ou talvez porque alimente dentro de si uma vontade de poder inconsciente,
que o cargo de chefe do Departamento M lhe permite satisfazer. Mas a resposta que lhe
parece mais provável, a que faz vibrar uma nota íntima em seu peito e arranca centelhas
vivas de seus olhos, resume-se a uma única palavra: conhecimento. Não foi esse também o
motor de Crowley ao longo de toda sua vida histórica?
Afasta essas reflexões com um espadanar mental. A insistência com que elas passam,
repassam e tornam a passar indicam que ele está ficando velho e provam que ninguém
escapa verdadeiramente às garras da deusa da morte. Mas é preciso se concentrar no aqui e
agora imediatos e Yeats aguarda que a explicação prossiga. A explicação prossegue:
— Quando as duas matrizes forem entrelaçadas, as possibilidades alternativas de
Crowley e do anti-Crowley se cancelarão reciprocamente. Com uma única exceção para
cada um deles.
M aponta um pico elevado na matriz de Crowley, não recoberto por nenhuma parte da
matriz do anti-Crowley.
— Vê? Esta é a linha de mundo em que Crowley abandona a Aurora Dourada, funda
sua própria ordem e acaba morrendo de overdose de heroína em um quarto miserável em
Hastings, 1947.
Indica um ponto semelhante na outra matriz.
— E esta é a linha de mundo em que o anti-Crowley sobrevive à I Guerra Mundial,
torna-se chanceler da Alemanha e conduz o mundo a Auschwitz.
Meios e fins, pensa Yeats, os olhos fixos na tela do computador.
{37}
Assim, o homem superior
caminha em constante virtude
e exerce o magistério.
— Hexagrama 29
— Hitler era viado? — exclama Sprenger, sem tentar esconder a incredulidade.
Kramer limita-se a assentir com a cabeça.
— Viadão, biba, fanchona?
— É o que consta — responde Kramer.
— Gostava de agasalhar o croquete? Andar de marcha-a-ré? Chupar pirulito?
— É.
— O negócio dele era brincar de tratorzinho?
— Escuta, você não leu o relatório? — corta Kramer, inquieto. Alguns olhares já
começam a se voltar para os dois.
— Eu li a porra do relatório — retruca Sprenger. — Mas é que é difícil de acreditar,
né? Se bem que, com aqueles uniformes de couro, aquela saudação desmunhecada...
— Ainda não existem nem uniformes de couro, nem saudações desmunhecadas —
encerra Kramer, disposto a interromper de vez aquele blábláblá.
Estão em 1914. Em breve, eclodirá a I Guerra Mundial mas, por enquanto, a futura
conflagração que será brevemente descrita como a guerra para acabar com todas as guerras
não passa de vagos rumores pairando no horizonte. Ali, na Hofbräuhaus de Munique, os
boatos certamente seriam absorvidos pelo burburinho embriagado que se evola da multidão
como um rumor boêmio, à sombra do imponente edifício que, desde 1644, vem se
dedicando à nobre tarefa de abastecer de vapores etílicos a horda de pintores, escultores,
poetas, modelos, vagabundos, filósofos, subversivos, reformadores, sexólogos e
homossexuais que encontraram em Schwabing, na reluzente Munique, um refúgio para suas
excentricidades. Sprenger se cala e começa a assobiar a melodia de Gimme Shelter,
enquanto Kramer o arrasta para dentro da cervejaria, abrindo caminho por entre a compacta
massa humana que ocupa as calçadas da Hofbräuhaus. Uma prostituta bêbada na porta, um
burguês envergonhado a uma mesa de canto ou um dândi magnificamente postado no meio
do salão encaram o terno de corte estranho usado pelos dois e eventualmente se perguntam
que tipo de roupa é aquela. Mas roupas estranhas e hábitos esquisitos são o arroz com feijão
de Schwabing e ninguém lhes dedica uma atenção muito prolongada.
— A moçoila já chegou? — pergunta Sprenger, assim que os dois entram no jardim
apinhado de mesas, mas Kramer o faz calar com um sinal de silêncio.
Ocupam uma mesa junto à do burguês envergonhado e pedem uma cerveja para
passar o tempo. A bebida é trazida por uma garçonete de formas rechonchudas que, ao se
inclinar para depositar os canecos, expõe o cavado decote por mais tempo do que o
necessário, deixando claro que há outras ofertas na casa além de cerveja. Kramer não lhe dá
muita atenção, mas Sprenger deixa os olhos afundarem nos seios dela com o uivo
silencioso de um lobo esfomeado.
Não demora mais que alguns minutos e vêem seu alvo. É um jovem pintor de cabelos
curtos, mas desgrenhados, enfiado numa camisa desmazelada e num par de calças que
devem estar implorando há meses por uma boa lavanderia. O nariz reto e o queixo
pronunciado emprestam-lhe ao rosto um ar arrogante, desmentido pela maneira quase servil
com que aborda os fregueses da cervejaria. Sobre os lábios finos, o vulto quase
fantasmagórico de um bigode pontudo, que um dia seria substituído pela taturana quadrada
que ele roubaria de Charles Chaplin. Carrega debaixo do braço uma tela sem moldura que,
mesa após mesa, como um ritual religioso, ele desenrola e exibe aos clientes, apenas para
colher reações desinteressadas ou expressões de admiração polida.
— O quê que a gente faz agora? — pergunta Sprenger, impaciente. — Enquadramos
a boneca?
— Sprenger, dá pra fechar a torneirinha de asneiras?
Sprenger dá de ombros, pega sua caneca e fica admirando a bunda da garçonete.
Kramer, por sua vez, não tira os olhos do pintor. Depois de rodar em vão por quase todas as
mesas, aproxima-se do burguês envergonhado e repete o gesto de desenrolar a pintura. O
homem, que deve ter uns quarenta anos, avalia o quadro um momento, antes de medir seu
autor de cima abaixo. Sorri e faz um gesto para que ele se sente. Apenas fragmentos do
diálogo chegam até Kramer, o restante encoberto pelas dezenas de conversas simultâneas
que traçam sua teia pelo ar da Hofbräuhaus. Mas é o bastante para que ele perceba o sentido
geral. Falam sobre o quadro, introduzem aqui e ali observações pessoais. Trocam sorrisos.
Há uma segunda transação sendo feita por baixo da venda do quadro, uma transação mais
sutil, feita de subentendidos e frases não ditas. Acabam acertando um valor muito maior do
que a medíocre pintura de uma árvore seca ao por-do-sol mereceria mesmo sob a avaliação
mais generosa e, como o burguês, que é médico, alega não ter tanto dinheiro consigo,
marcam um encontro para o dia seguinte no consultório deste. O outro se levanta, satisfeito.
O médico lhe dá um último sorriso, pleno de segundas intenções, e o pintor se volta, apenas
para ser interceptado por Sprenger e Kramer.
— Hitler? — intima Kramer. — Você é Adolf Hitler?
— Pois não? Mas o que é que eu fiz? Se é documento, eu tenho aqui...
— Não interessa — corta o homem, com um ar de autoridade que faz o jovem se
encolher.
— O negócio é o seguinte, mona — adianta-se Sprenger. — A gente soube que você
devia ter servido o exército faz uma pá de anos, mas tratou de tirar o cu da reta na primeira
oportunidade.
— O que o meu colega está querendo dizer — Kramer toma a palavra — é que
gostaríamos que você nos acompanhasse até a delegacia para prestar alguns
esclarecimentos.
O jovem Hitler olha para Kramer, olha para Sprenger e sai correndo.
{38}
Deter-se cautelosamente no meio do caminho traz boa fortuna.
Ir até o fim traz infortúnio.
É favorável ver o grande homem.
Não é favorável atravessar a grande água.
— Hexagrama 6.
Alguma coisa passa voando rente ao ombro de Ramos e, ao se desviar, ele nota que é
a cabeça do agente Virgulino. Ela bate contra a parede, onde deixa uma mancha vermelha,
e cai rolando a seus pés, olhos abertos, olhar fixo congelado em uma expressão de surpresa.
Ramos avança, Terminator na mão, mas não pode atirar no Mega Therion sem colocar em
risco a vida dos agentes que lutam contra a criatura. Não que eles precisem de uma bala
perdida para que suas vidas sejam colocadas em risco. O demônio de garras afiadas está
dando conta da tarefa muito bem sozinho. Suas patas enormes pisam uma pilha de corpos
ensangüentados, alguns ainda se contorcendo com um último fiapo de alento, outros
reduzidos a pouco mais que uma pasta avermelhada. Braços decepados, pernas arrancadas,
fragmentos de carne recobrem o corredor da sede da Intempol. Finalmente, Ramos
consegue uma posição que lhe permite mirar na cabeça do gigante, mas um uivo agudo a
suas costas faz com que ele estremeça e perca o tiro. Ramos vira-se. Um segundo Mega
Therion mergulha em sua direção com a bocarra escancarada.
O comissário se joga de lado, ao mesmo tempo em que dispara, não sem antes
perceber com o canto do olho a aparição do terceiro Mega Therion diante de uma porta
entreaberta. Em menos de um minuto, um exército de gigantes ocupa o largo corredor e,
enquanto luta para se manter longe de suas unhas e presas, Ramos pergunta-se como é
possível, se o Mega Therion é uma projeção da sombra de Crowley. A resposta lhe vem
entre um tiro que erra o braço de um dos monstrengos e um golpe que abre um rasgão em
seu terno de comissário. A porra da incerteza quântica. Não é possível localizar o Mega
Therion com precisão e, conseqüentemente, ele está em todos os lugares onde poderia estar.
Há um único Mega Therion e, no entanto, esse Mega Therion único se transforma em uma
horda furiosa. Meu nome é legião, pensa Ramos, observando horrorizado como um/o Mega
Therion agarra o agente Euclides pelo pescoço e o retalha com a outra mão. Os dedos
pontiagudos penetram no ventre de Euclides e voltam trazendo os intestinos enrolados nas
falanges. Um cheiro adocicado de sangue impregna a atmosfera, uma névoa invisível mas
vermelha, que penetra nas narinas dos agentes como um eflúvio de desespero.
Situações desesperadas exigem medidas desesperadas, murmura Ramos, sacando o
cartão cronal, as mãos trêmulas, os dedos tentando digitar as coordenadas na caixa
registradora corretamente. Ele só consegue pensar em um ser humano capaz de enfrentar o
Mega Therion. Mas não tem certeza se o termo "humano" se aplica à pessoa em questão.
Ramos precisa encontrar o Homem da Meggido.
{39}
Ele não está a serviço de reis e príncipes.
Propõe para si objetivos mais elevados.
— Hexagrama 18
Os ruídos da batalha chegam aos ouvidos do Comissário M no momento em que ele
se prepara para estudar o relatório dos agentes de campo sobre seu fracasso em resgatar a
agente Jeanne das fogueiras do século XV. Eles não sabiam que seu fracasso já estava
escrito nas páginas da história, claro, mas o Comissário M sabia. Era preciso que eles
fracassassem para que o barão Gilles de Rais se tornasse um apóstata e um satanista, e
Gilles de Rais tinha que se tornar um apóstata e um satanista para que inspirasse a lenda do
Barba Azul que, por sua vez, era um instrumento subliminar de repressão à curiosidade
mantido no imaginário popular ocidental durante o tempo que fosse conveniente para a
empresa.
É assim que se fazem as coisas na Intempol. Manipulações sutis, pequenos toques na
história aqui, alguns ajustes ali, de modo a fazer com que o fluxo do contínuo corra sempre
através dos trilhos adequados. Detalhes sobre os quais os agentes de campo quase nunca
estão informados, mas é neles que está a essência. O zen na arte de controlar a história.
Tome a pobre Jeanne, por exemplo, que viajou para Orleans firmemente convencida
de que deveria apenas substituir a verdadeira Joana d'Arc até que eles fossem capazes de
localizá-la. Jamais lhe passaria pela cabeça que nunca houve uma verdadeira Joana d'Arc e
que ela própria estava destinada, desde o princípio, a ser a Santa Joana dos matadouros.
É nesse ponto de seu raciocínio que os ruídos da batalha chegam aos ouvidos de M.
Desvia o olhar do computador e tenta identificar a barafunda. Os gritos de dor, as
exclamações de espanto. Os tiros. Abre a gaveta de sua mesa. Retira uma arma. Levanta.
Não faz idéia do que está causando aquele escarcéu todo, mas os altos índices de
probabilidade e uma intuição que atravessa os séculos lhe dizem, com a precisão de uma
dor nas juntas anunciando a tempestade vindoura, que se trata de Crowley. Empunha a
arma e dirige-se para a porta.
— Deixe que os mortos enterrem seus mortos, comissário.
M gira sobre os próprios pés na direção da voz. Sentada em sua escrivaninha, as
longas pernas balançando, está uma mulher como ele nunca viu. Os cabelos caindo sobre os
ombros feito volutas de uma fumaça negra. Olhos que parecem talhados num fragmento da
Tábua de Esmeralda, não apenas pela cor, mas pelo brilho transcendente que expele em
fagulhas de numinosidade. A aura de luz vermelha que envolve todo seu corpo. A aura de
luz vermelha que envolve todo seu corpo nu.
— A Mulher Escarlate, eu presumo.
Ela abre um sorriso, como se estivesse feliz por ter sido reconhecida.
— Era assim que eu me chamava antes de saber que eu fazia parte de mim.
M absorve a declaração, até achar que conseguiu entendê-la.
— Crowley?
O sorriso se alarga.
— Um de seus aspectos. Mas pode me chamar de Crowley, se preferir.
M sacode a cabeça.
— Prefiro um nome que não me lembre um velho careca de cabeça redonda.
A Mulher Escarlate dá uma risada genuinamente infantil.
— Nesse caso, me chame de Babalon, que eu atenderei.
Babalon, a Mulher Escarlate ou o aspecto feminino de Crowley salta da mesa para o
chão e vai até M num passo que é quase uma ilusão de ótica. M aponta a arma para ela.
— É melhor manter a distância. Eu não confio em você.
— Não esperava que confiasse. Mas se quiser me manter a distância, vai precisar de
mais do que uma arma.
Apesar disso, Babalon fica onde está e não se aproxima mais de M.
— O que você veio fazer aqui? Me seduzir?
Babalon dá uma volta em torno de si mesma, numa pose coquete.
— Por quê? Não pareço adequada para a tarefa?
M não diz nada.
— Pra falar a verdade, eu vim te fazer uma pergunta.
— Vai me perguntar por quê? — M se antecipa a ela.
— Nem mais, nem menos.
M leva um tempo enorme antes de responder. Quando fala, sua voz sai hesitante,
tateando atrás das palavras.
— Engraçado, eu venho me fazendo a mesma pergunta.
— Encontrou alguma resposta?
— Várias. Nenhuma que me satisfaça inteiramente.
O olhar incisivo de Babalon cerca M por todos os lados, grades verdes de uma cela
luminosa.
— Então, por quê?
M. não sabe o que responder. Mas Babalon não espera uma resposta. De repente, ela
não está mais lá, no meio da sala. Merlin está de novo sozinho com suas dúvidas.
E com os ruídos da batalha.
{40}
O ganso selvagem dirige-se gradualmente aos rochedos
— Hexagrama 53
Hitler nem olha para trás, abre caminho às pressas por entre os freqüentadores da
Hofbräuhaus, arrancando protestos, despertando xingamentos e enterrando a cara de um
sujeito com rosto de leão-marinho em um prato de sopa fumegante. Sprenger e Kramer vêm
no seu encalço, o primeiro já com a mão no paletó, buscando o coldre da shotgun. Kramer
não acha que seja uma boa idéia sacar a arma ali, mas está ocupado demais com a
perseguição para se preocupar com as atitudes tresloucadas do parceiro.
— Pára aí, bichona do caralho! — berra Sprenger.
Hitler entra no salão, salta pra cima da mesa mais próxima e, pulando de mesa em
mesa, chega até a porta da cervejaria. As pessoas olham para ele, estupefatas, e se admiram
com as coisas que alguém é capaz de fazer para fugir de um cobrador. Ou de um cliente
insatisfeito. Ou de um namorado ciumento. A admiração é imediatamente esquecida, no
entanto, ao verem a shotgun na mão de um dos homens que estão atrás do fugitivo, e é
substituída pelo medo e por uma sucessão de gritos histéricos. Ninguém ali jamais viu uma
arma daquelas, mas não há como duvidar que é uma arma, e o tumulto começa. Há os que
se jogam embaixo das mesas, os que saem correndo, os que agarram as pernas de Sprenger
e Kramer e precisam ser afastados a coronhadas. Quando os dois agentes da Intempol
conseguem se desvencilhar da barafunda e sair da Hofbräuhaus, não se vê sinal de Hitler.
— Puta que pariu de rodela! — Sprenger descarrega sua frustração chutando uma das
muitas cadeiras dispostas na calçada da cervejaria. Como a cadeira ainda estivesse ocupada,
seu ocupante cai de bunda no chão mas, vendo a expressão furiosa de Sprenger, acha mais
prudente não protestar e vai saindo de gatinhas, sem nem se dar ao trabalho de levantar.
— Fica frio, colega — aconselha Kramer, consultando o relatório. — A gente sabe
pra onde ele foi.
— Sabe?

O apartamento que Hitler divide com Rudolf Häusler é pouco mais que um cubículo
em um prédio espremido entre cortiços decrépitos, a maioria dos quais habitado por gente
cuja história pregressa nenhum respeitável pai de família gostaria de conhecer. O que não
impede, evidentemente, que respeitáveis pais de família possam ser vistos perambulando
pelas ruas do bairro, em busca de aventuras inconfessáveis e emoções que a pequena
vidinha burguesa que levam no quotidiano não pode lhes proporcionar. Hitler sobe os dois
lances de escada correndo, escancara a porta e se atira para dentro do apartamento, pondo-
se imediatamente a empacotar suas coisas.
O barulho atrai Häusler, um adolescente com cara de menino, que vem do seu quarto
ainda equilibrando sobre o nariz os óculos de aro redondo, que lhe dão um ar de seriedade
precoce quase tão consistente quanto a penugem que começa a se formar no bigode.
— Adi, está tudo bem? — espanta-se ao ver a pressa do companheiro.
— Estão atrás de mim, Rudi. Acho que é por causa do exército — responde Hitler,
sem parar de socar peças de roupa em uma mochila.
— Mas, meu querido, como foi que eles o descobriram? — Häusler bota uma mão
preocupada sobre o ombro tenso de Hitler.
— Você acha que eu me preocupei de perguntar? — Hitler desvencilha-se da mão de
Häusler, que a recolhe com um olhar magoado.
— Para onde você vai?
Hitler coloca a mochila nas costas.
— Para qualquer lugar, desde que bem longe daqui.
Häusler parece à beira das lágrimas.
— Isso quer dizer que não nos veremos mais?
Ao ver a tristeza do companheiro, a tensão no rosto de Hitler se suaviza um pouco.
— Foram dias muito bons para nós, Rudi. Muito bons mesmo — Hitler estende a
mão e faz uma carícia branda nos cabelos cortados à escovinha do outro. — Mas eu tenho
um destino a cumprir.
— E se quiser viver pra cumpri-lo, é melhor parar com a viadagem.
Sprenger e Kramer estão encostados à porta do quarto, a shotgun de Sprenger
displicentemente apontada para a testa de Hitler. Ao vê-los, Häusler dá um gritinho e cai
desmaiado.
Ninguém se mexe para socorrê-lo.
{41}
O pescoço preso à canga de madeira
de modo que as orelhas desaparecem.
Infortúnio.
— Hexagrama 21

Thomas Payne não demonstra a menor reação ao ver o Comissário Ramos surgir
diante de sua escrivaninha, ofegante. Sua expressão permanece inalterada mesmo quando
nota o uniforme rasgado e coberto de sangue.
— Quem lhe deu autorização para entrar aqui? — a pergunta sai em uma voz
monocórdia, reta como o gume de uma lâmina.
— Não tenho tempo pra usar os canais competentes — ofega Ramos. — Foi o
Comissário Valladão quem me disse pra te procurar.
O pôr-do-Sol de Marte rasteja para dentro do escritório com morosidade, fazendo as
roupas de Ramos parecerem mais ensangüentadas do que estão de fato. Ele retira sua
identificação do bolso e joga para que Payne a examine. O executivo da Meggido Mars, a
divisão de cobrança da Meggido Incorporated, nem se dá ao trabalho de olhar para ele.
— Pensei que um homem capaz de viajar no tempo tivesse todo o tempo do mundo.
É verdade, claro. Ramos teve tempo de se transportar até o escritório de Valladão,
dias antes do ataque, e explicar a situação ao colega comissário, que lhe recomendou o
nome de Payne. Teria tido tempo ainda de ir para casa, tomar um banho e descansar, pois
bastava programar a caixa registradora com os números certos para, a qualquer momento,
voltar no instante exato em que o primeiro Mega Therion surgira na sede da Intempol. Mas
o tempo subjetivo é uma merda e a adrenalina corre solta pelas veias de Ramos. Ele quer
resolver o problema, e logo. Os corpos estraçalhados dos agentes e a cabeça decapitada de
Virgulino não lhe saem da cabeça.
— Pois é, pensou errado — retruca Ramos. Antes que termine de colocar o ponto
final na frase, a porta se abre e quatro guarda-costas armados o cercam de metralhadoras
em riste.
— Se quiser a minha ajuda — diz Payne, que deve ter chamado os seguranças assim
que Ramos botou os pés no escritório — vai ter que ser um pouco mais educado.
Faz um sinal para os quatro armários, que abaixam as armas.
— É a minha ajuda que você quer, pois não?
Ramos encara os leões-de-chácara com animosidade e faz que sim com a cabeça.
— Então, comissário Ramos, em que posso ser útil?
Filho da puta, pensa Ramos, sabia o tempo todo quem eu era.
— Faz um tempinho, vocês pediram o auxílio da Intempol pra resolver o caso de
Roberto Luis Savarinni.
Payne não confirma nem desmente. Limita-se a encarar Ramos, esperando pela
continuação. O caso Savarini é assunto confidencial, na linha do oficialmente-nunca-
aconteceu, mas Valladão lhe contara em síntese do que se tratava. Tratava-se da única
aparição confirmada do Homem da Meggido. Roberto Luis Savarinni era um consumidor
das drogas que a Meggido Mangiare oferecia no mercado, e se escondera no passado depois
de ingerir uma dose de Graal, deixando de pagar uma fortuna a seus fornecedores. Com a
ajuda do Homem da Meggido, o então agente Valladão conseguira recuperá-lo. "Ajuda", na
verdade, era um eufemismo. Valladão passara a maior parte do tempo tentando impedir que
o psicopata da Meggido Mars transformasse a missão em uma carnificina.
— Tá na hora de retribuir o favor.
O homem detrás da escrivaninha sorri, mas é apenas a metade inferior do rosto que se
move.
— Não tenho muita certeza se a Meggido deve "favores" à Intempol — diz. — Você
sabe, de algum lugar deve vir o dinheiro que mantém aquela estrutura toda funcionando.
Ramos não responde. Rumores de que megacorporações como a Meggido estão entre
os acionistas da Intempol circulam pelos corredores da empresa, mas os corredores da
empresa são um verdadeiro celeiro de rumores e nunca se sabe a quais se deve dar crédito.
Se é que algum deles merece crédito.
— Supondo que eu quisesse ajudá-lo — prossegue Payne —, o que eu poderia fazer
por você?
Antes de mais nada, pensa Ramos, podia tirar essa merda de sorriso superior da cara.
Em voz alta, diz:
— Eu preciso do Homem da Meggido.
Payne faz um sinal para que os seguranças se retirem. Eles saem sem uma palavra,
deixando Ramos envolto em quatro olhares de desprezo.
— O Homem da Meggido — Payne fala lentamente, deixando cada palavra flutuar
diante da boca com um prazer evidente — é uma lenda urbana. Como o psicopata da
seringa de AIDS ou a mulher misteriosa que seduz os homens para roubar seus rins.
O jeito como ele pronuncia a frase deixa Ramos com a incômoda impressão de que a
Meggido também teria uma ou duas coisinhas a dizer sobre estes.
— Mr. Payne, um batalhão inteiro de agentes da Intempol foi, está sendo e terá sido
massacrado pela sombra materializada de um maluco. Então, com o devido respeito, não
torra o meu saco. O comissário Valladão trabalhou com o Homem da Meggido. Sabemos
que ele existe.
— O agente Valladão quase fodeu com o nosso homem — diante da réplica de
Payne, a temperatura da sala cai dez graus centígrados. — Tivemos muito trabalho para
impedir que ele acabasse sob as rodas de um caminhão desgovernado. É esse tipo de favor
que você quer que retribuamos?
Ramos permanece em silêncio. Sem o Homem da Meggido, não consegue pensar em
nenhuma outra forma de combater o Mega Therion. Mas, depois de desfrutar o bastante da
angústia interior de Ramos, Payne pega um pedaço de papel onde rabisca alguma coisa
rapidamente e o estende para Ramos. Este olha o que está escrito e deixa escapar um
assobio. Deve ser verdade que a Meggido Incorporated financia a Intempol. De que outra
forma ela poderia ter negócios em uma época tão remota?
{42}
O homem superior conduz as coisas à conclusão.
— Hexagrama 15
As coisas desmoronam, pensa Yeats, o centro não se mantém. Contempla a anarquia
que parece ter sido liberada sobre o mundo e sente-se perdido como um falcão que não
consegue ouvir o falcoeiro. A arma pende inútil de sua mão, não sabe o que fazer com ela.
Caminha pelos corredores da Intempol, chapinhando sobre a maré tingida de sangue em
que a cerimônia de sua inocência se afoga. Em seu aturdimento, coloca-se mais de uma vez
ao alcance das garras de um Mega Therion, mas estes parecem ignorá-lo solenemente. Sou
um poeta, Yeats pensa, não um guerreiro. Não que ser um guerreiro pudesse ser de alguma
ajuda. Os melhores ali perderam todas as suas convicções e se contentam em permanecer
vivos. Os piores, pensa Yeats, os que não foram rápidos o bastante, os que não souberam
lutar com uma paixão intensa o suficiente, foram vexados até o pesadelo pelo olhar vazio
das formas com corpo de leão e cabeça de homem, impiedosas como o Sol, e agora jazem
sobre um leito de pedra. A sombra de Yeats rodopia em torno da carnificina feito uma ave
do deserto indignada.
— E qual besta feroz, sua hora afinal chegada, se arrasta rumo a Belém para nascer?
Yeats volta-se na direção da voz. De pé entre os cadáveres, majestoso e solene feito
uma divindade que desceu à Terra para julgar os vivos e os mortos, está um velho de longas
barbas brancas.
— Aiwass — Yeats reconhece.
— Eu era, de fato — responde o velho, fazendo um sinal para que Yeats se aproxime.
Yeats se aproxima.
— É isto uma vingança? — pergunta.
A resposta de Aiwass é uma gargalhada sonora, um trovão que ribomba pelo prédio
da Intempol, indiferente aos vivos e aos mortos.
— Motivações humanas já não tenho — diz ele, quando os últimos ecos morrem de
encontro aos lambris vermelhos.
— Então não há propósito para isto? — Yeats abre os braços, indicando o cenário de
destruição ao redor.
De alguma forma, o olhar do velho torna-se quase bondoso.
— Seus olhos enxergam uma destruição sem sentido. Os meus contemplam outra
paisagem.
— Eu vejo fantasmas de ódio e a chegada do vazio — contesta Yeats.
— Eu vejo a plenitude do coração — retruca Aiwass, estendendo a mão para o poeta.
E Yeats compreende.
{43}
Se ele não tiver uma extraordinária cautela
alguém pode vir por detrás e golpeá-lo.
Infortúnio.
— Hexagrama 62
O sangue brota da garganta cortada com o bisturi antes que Catherine Eddowes tenha
tempo de desfazer a expressão de ébria felicidade em seu rosto, e ela desaba sobre os
paralelepípedos da rua com um ruído seco, o vestido, verde e pesado, amarfanhando-se ao
redor de seu corpo desgastado feito uma planta exótica. O homem envolto em um longo
sobretudo negro, o rosto encoberto pela sombra da cartola, perde alguns segundos
admirando o cadáver, o sangue que ainda brota da jugular aberta. Poderiam ser segundos
preciosos. Seria tempo o bastante para que um policial fazendo a ronda noturna passe pela
esquina da Mitre Square. A possibilidade, contudo, não o preocupa. Nada o preocupa
muito, a não ser a chance de salvar mais uma alma de testemunhar os horrores do inferno
que um dia ele sabe que se abaterá sobre o mundo. Que sejam os todo-poderosos da
Meggido a determinar quem deve ou não ser salvo desses horrores também não o preocupa.
Uma alma é uma alma e, como ele não pode salvar todas, qualquer critério é melhor do que
nenhum. Um guarda que aparecesse só precisaria ler o documento em seu bolso, assinado
por Sua Majestade, a Rainha Vitória, para deixá-lo concluir sua tarefa em paz.
O Homem da Meggido arrasta o corpo de Eddowes até a calçada e abre sua maleta,
dentro da qual pode-se ver um jogo completo de lâminas, bisturis e serras cirúrgicas. Com
meticulosidade, ele corta o vestido da prostituta e afasta o tecido para os lados. Coloca a
tesoura de lado e a substitui por uma serra. Depois de limpar o suor da testa com a mão
enluvada, começa o trabalho propriamente dito. Este consiste em extirpar cuidadosamente a
vagina da mulher, recolhendo o pedaço suculento de carne e osso em um pote de vidro.
Depois virá o momento de saboreá-lo, deliciando-se com a certeza de estar impedindo Deus
sabe quantos réprobos infelizes de virem ao mundo por aquele canal, ignorando com a
inocência dos puros o destino atroz que aguarda a humanidade no futuro, quando os
Yithianos dominarem a Terra.
Inclinado sobre o cadáver de Eddowes, resistindo à tentação de beijar seus lábios sem
vida, o Homem da Meggido é repentinamente invadido pela sensação de já ter estado
inclinado sobre o cadáver de Eddowes, resistindo à tentação de beijar seus lábios sem vida,
sendo repentinamente invadido pela sensação de já ter estado inclinado sobre o cadáver de
Eddowes, resistindo à tentação de beijar seus lábios sem vida.
A regressão infinita é interrompida por um ruído às suas costas. Ele se levanta,
atabalhoado, as mãos prontas para alcançar o documento em seu bolso, mas pára ao ver que
não é um policial. Pelo menos, não um policial da Londres vitoriana.
O homem com o uniforme da Intempol dá um passo à frente, a perplexidade em
pessoa, a solução de um enigma histórico postada diante de seus olhos incrédulos.
— Você é Jack, o Estripador?
{44}
Homens ligados por um sentido de comunidade
primeiro choram e se lamentam, mas depois riem.
Após grandes lutas conseguem encontrar-se.
— Hexagrama 13
A casa onde Crowley vivia em 1947 é grande mas decadente. Suas paredes
envelhecidas, as janelas embaçadas, o telhado que dá a impressão de estar a um passo de se
desfazer em pó, tudo lança uma sombra de decrepitude sobre as ruas de Hastings. É antes
sepultura que residência, e a Kramer parece o lugar adequado para a morte de Crowley.
Consulta o relógio. Um amedrontado Hitler faz o possível para não irritar a shotgun de
Sprenger, que não tira os olhos de seu prisioneiro trêmulo. Os três estão no jardim da casa,
a grama ressecada e as plantas raquíticas contribuindo para a triste impressão do cenário,
completado pelas nuvens de tempestade que se amontoam como presságios de mau agouro.
— Dentro de 1.4 minutos, o velho Crowley estará abrindo o cofre com o Graal —
anuncia Kramer. — Melhor a gente se preparar também.
Enfia a mão no bolso do paletó e pega a ampola de Graal.
— É pra mim? — choraminga Hitler.
— Não é disso que você gosta, santa? Ser espetado por coisas pontudas?
Kramer pressiona um botão na base da ampola. Nanofornos aquecem a pasta azulada
e, quando ela se liqüefaz, uma agulha emerge da ponta do frasco. Kramer se aproxima de
Hitler, que tenta fugir, mas Sprenger o agarra com os dois braços, a shotgun rapidamente de
volta ao coldre.
— Relaxa, docinho — sussurra no ouvido dele. — Você vai curtir.
A tempestade desaba. Fortes ventos agitam o cabelo dos três homens. Assim que a
agulha encosta na pele do braço de Hitler, ouve-se um estampido.
— Merda, buceta, caralho!
Os fragmentos da ampola estão caídos na calçada, a mão de Kramer coberta por um
líquido azul que escorre pelos dedos e mistura-se à água da chuva.
Sprenger vira-se para o homem com a pistola, a shotgun rapidamente de volta a suas
mãos.
— Parsons, alguém já disse que a tua mãe é uma puta rampeira da zona do cais?
Jack Parsons torna a atirar, Sprenger se joga no chão e revida. A bala de Parsons
atinge Hitler no ombro. Passa apenas de raspão, mas o impacto é suficiente para lançar o
futuro ditador para trás com um gemido. Kramer também saca sua Terminator e mira na
cabeça de Parsons. Vendo que ninguém está prestando atenção nele, Hitler aproveita para
fugir.
— Segura a fanchona! Deixa que eu cuido do Parsons! — berra Sprenger, atirando de
novo.
Kramer sai no encalço de Hitler que, sem pensar, querendo apenas um lugar para se
esconder, corre para dentro da casa.

Seus olhos lentos percorrem o tampo da mesa, mas não sentem que ela está lá.
Poderia ser uma alucinação, miragem, a mesa dos filósofos. Ele não se espantaria se, de um
momento para o outro, ela se pusesse a dançar no meio da sala, trazendo mensagens de
espíritos e charlatões. O vento agita as janelas, uiva lá fora, e quem entenderá sua
linguagem, decifrará o que ele diz com as batidas violentas que enceta? O homem calvo
estende a mão para o cofre sobre a mesa, sabe que com aquele único gesto estará
amarrando dois instantes no tempo, não será contra isso que o vento protesta, contra essa
torção que violenta o devir, seu uivo é o grito de dor dos arcontes feridos, o poder que
protesta ao ser arrancado das costas dos que o sustentam. Os dedos do homem calvo
estreitam a tranca do cofre, o vidro estremece com os sacões da tempestade lá fora, a
combinação se fecha e a porta se abre. Seus olhos lentos se arregalam, não chega a ser
surpresa o que demonstram, não chega a ser alívio, um sentimento intermediário entre um e
outro. Dentro do cofre, sobre a almofada de seda vermelha, uma taça prateada, coberta.
O som de um tiro desvia a atenção de Crowley do Graal. Um tiro próximo, bem às
portas de sua casa. Olha pela janela, há quatro homens no jardim. Um deles é quase uma
criança perdida no meio da tempestade. O segundo é Jack Parsons, seu discípulo
americano, e Crowley não entende o que ele pode estar fazendo na Inglaterra sem ter lhe
avisado. Quanto aos outros dois, reconhece imediatamente os uniformes da Intempol e seus
rostos lhe trazem uma amarga recordação do futuro. Vieram impedi-lo. Vieram impedi-lo e,
de alguma forma, Parsons veio impedi-los de impedi-lo. É preciso se apressar. A eternidade
o espera.
Deposita a taça sobre a mesa com cuidado, retira a tampa cravejada de pedras
preciosas. Dentro da taça, um pó azulado reluz. Pega uma pitada de pó com uma colherinha
dourada que traz junto ao corpo há décadas, especialmente para isso, e aquece sobre a
chama da vela. O pó se liqüefaz, reflexos azuis banham o tampo da mesa. Crowley abre a
gaveta, pega uma seringa. Aproxima a ponta da poça líquida, puxa o êmbolo. O corpo
vítreo da seringa se enche de azul.

Sprenger atinge um arbusto, que se desintegra numa explosão de chamas. Não


lamenta o arbusto. Pelo estado da planta, ela devia estar há muito tempo implorando pela
morte. Mas é uma pena ter errado Parsons. O filho da puta se move rápido, deve estar
usando magia para acelerar seus reflexos. Ele que se foda, não se trabalha pro
Departamento M sem aprender um ou dois truques. Uma parte da consciência voltada para
Parsons, que procura abrigo entre as moitas, a outra puxa da memória as palavras do
encantamento. São gatilhos mentais e, à medida que os pronuncia, seus batimentos
cardíacos se aceleram, o metabolismo cerebral se intensifica. A sensação subjetiva de
tempo torna-se mais rápida que o tempo externo e um manto de lentidão cai sobre o lado de
fora do mundo. As gotas de chuva parecem demorar séculos para atingir o chão, a folhagem
dá a impressão de estar imóvel e um relâmpago se congela no céu. Sprenger ergue a
shotgun.
— Agora, colega, — murmura — a gente vai ver quem é o fodão.
{45}
Seis na quinta posição significa:
As presas de um javali castrado.
Boa fortuna!
— Hexagrama 26
Ramos não tira o olho da metralhadora que mesmo o Homem da Meggido precisa das
duas mãos para carregar. É uma arma imponente, assustadora, que exala uma aura negra de
destruição absoluta, uma vontade purificadora que está em perfeita comunhão com o brilho
insano que arde nas pupilas do Homem da Meggido, quase como se as balas fossem a
materialização desse brilho, a tradução numa realidade concreta, palpável, do ímpeto
aniquilador que impulsiona o coração do outro.
O comissário tem apenas uma vaga noção das origens desse ímpeto. Há quem diga
que o Homem da Meggido, então uma criança, sobreviveu ao massacre de Sharon Tate, que
Charles Manson usou as mortes para abrir um portal para o futuro da humanidade, e que o
menino viu alguma coisa por essa brecha que destruiu sua sanidade para sempre. Há quem
diga que o Homem da Meggido não é um homem, mas um Neanderthal, sobrevivente de
uma realidade paralela na qual o Homo Sapiens nunca chegou a se desenvolver e que foi
extirpada do contínuo pela Intempol. Deste então, sua meta seria a de se vingar da
humanidade que condenou sua espécie e seu mundo à irrealidade. Ramos não sabe qual
dessas versões é a correta, se é que alguma dessas versões é a correta. Do que ele não tem a
menor dúvida é que, se existe alguém no mundo que pode ser páreo para o Mega Therion,
esse alguém é o Homem da Meggido. Não tem certeza se uma simples metralhadora vai ter
sucesso onde o sofisticado armamento da Intempol fracassou mas, como os samurais
sempre souberam, não é a espada que conta, é o homem que a empunha.
Ajusta os cartões cronais, o dele e o do Homem da Meggido, para chegarem no
instante exato em que o primeiro Mega Therion se materializou no corredor. A esperança
de Ramos é conseguir pegá-lo antes que o espalhamento torne sua localização imprecisa.
Por isso, torna a advertir o Homem da Meggido:
— Já entra atirando, ok? Mas atira só naquela área que eu te disse, toma cuidado pra
não ferir os agentes.
É a terceira vez que repete isso. O ar apalermado do Homem da Meggido não lhe
inspira propriamente confiança. Mas não tem outra opção. O grandalhão loiro o encara com
a mesma expressão vazia e não esboça a menor reação enquanto ele passa os cartões
cronais.
Continua a não esboçar a menor reação quando o Mega Therion surge, apenas uma
fração de segundo mais tarde. Os dois gigantes se encaram e Ramos seria capaz de jurar
que viu um sorriso irônico despontar no canto dos lábios da sombra materializada de
Crowley.
— O que é que você tá esperando, seu idiota? Aperta a porra do gatilho!
O agente Euclides sai pela porta de um escritório e arregala os olhos ao ver a criatura.
Dispara o alarme. Logo chegam os demais agentes: Virgulino, Sylvester, Arnold, o próprio
Ramos em sua versão passada, dezenas de homens desesperados, prontos para combater o
invasor.
A vantagem com que Ramos tinha contado já era. O Mega Therion se multiplica, está
numa ponta do corredor, na outra, diante do elevador, ao lado de diferentes escritórios, e
Ramos observa o pânico se espalhando entre os agentes à medida que vai ficando claro que
eles não são capazes de localizar o monstro com precisão suficiente para atingi-lo com suas
armas.
O Homem da Meggido assiste, impassível. Um calafrio sobe pela espinha de Ramos.
É somente quando a cabeça de Virgulino voa por sobre o ombro do outro Ramos que o
Homem da Meggido aperta o gatilho.
E varre o corredor indiscriminadamente com suas balas.
Imbecil, eu sou um imbecil, pensa Ramos, sacando sua Terminator para deter o
homem em quem depositara suas esperanças de salvação. Não chega a ter tempo de atirar.
A rajada de metralhadoras encontra o caminho para seu próximo alvo e o Ramos do
passado tomba com o peito crivado de balas.
— Puta que pariu! — grita o Ramos atual. E deixa de existir.
Naquela região do espaço-tempo, a realidade entra em looping.
{46}
A comoção gerada pela manifestação de Deus
nas profundezas da terra atemoriza o homem.
— Hexagrama 51
Diante de Crowley estende-se o longo corredor que visitou quando estava preso no
corpo de Alexandre Toledo, escuro como o interior de um caixão. Em passos lentos,
cuidadosos, caminha em direção à porta com puxador em forma de ampulheta. Sua
primeira tentativa foi de se projetar no tecido do espaço-tempo diretamente no salão do
conselho diretor, mas ele está protegido por uma espécie de barreira que impede o acesso
direto. Bem, existem subterfúgios para se penetrar uma barreira. Estende a mão para a
maçaneta e, como esperava, a porta não se abre. Mas Crowley é uma criatura feita de
possibilidades, sua localização depende da probabilidade de ser localizado e a chance de
que ele possa ser localizado do lado de dentro do salão, por menor que seja, é uma
probabilidade real, que poderia ser calculada. De mais a mais, sua consciência é composta
de vários aspectos alternativos, o que multiplica as probabilidades de que pelo menos um
desses aspectos consiga penetrar a barreira. E como diz o ditado, por onde passa um boi,
passa uma boiada.
Crowley concentra-se e deixa a consciência mergulhar no agregado indiferenciado a
partir do qual seu ser se desdobra em múltiplas realidades. Em seus tempos de mago, era
uma operação complexa, que ele só conseguia realizar com o auxílio de drogas, rituais
estimulantes e uma intensa canalização da energia sexual. Naquele tempo, era incapaz de
reconhecer as entidades com que se deparava como diferentes aspectos de seu próprio ser, e
com a ingenuidade característica dos que se aventuram no desconhecido sem saber onde
pisam, tomava-os por espíritos que conseguia invocar através da magia. Agora, a divisão de
sua psique em consciências diversas é tão simples quanto respirar. Em um tempo muitas
vezes menor do que o menor espaço entre dois batimentos cardíacos, Crowley é uma
nuvem de probabilidades e sua função de onda se espalha até preencher todo o corredor.
Como seria de esperar por sua interação prévia com o conselho diretor, que criou uma
conexão não-local entre eles, é Alexandre Toledo quem obtém sucesso com o tunelamento
quântico. E quando o segundo batimento cardíaco se completa, ele está do lado de lá da
porta, olhando para os cinco membros da diretoria da Intempol. Nenhum deles parece
surpreso em vê-lo.
— Estava escrito que tornaríamos a nos encontrar, Alexandre Toledo — diz o
guerreiro calvo.
— Tem muita coisa escrita. Nem tudo é verdade — retruca Alexandre, imperturbável.
— Mas você está aqui, não está? — contesta a mulher.
Alexandre ri. Usando sua consciência como foco, Crowley reúne seus outros aspectos
e, em breve, Aiwass, Babalon, o Mega Therion e o próprio Crowley estão de pé ao lado do
homem que um dia pensou ter sido agente da Intempol.
— Belo truque esse seu — comenta o jovem com argolas douradas. — Dá um novo
sentido à expressão "dividir para conquistar".
É a vez de Crowley dar uma gargalhada.
— Belo truque, de fato — responde. — Mas será diferente do teu próprio truque?
Cinco bocas se abrem em cinco sorrisos simultâneos. E então as bocas, as cabeças, os
corpos, tudo se desvanece e restam apenas os sorrisos pairando no vazio. Finalmente,
mesmo os sorrisos se fundem ao nada. No lugar deles, surge uma forma sem forma, uma
esfera de pura energia pairando sobre a mesa do conselho diretor. Uma esfera viva,
pulsante. Sua localização definida no salão, Crowley sabe, é uma espécie de ilusão de ótica.
Ela é na verdade infinita, estende-se por todo o espaço, por todo o tempo, talvez por todos
os espaços e por todos os tempos, um animal predador, que estende sua teia como uma
aranha cósmica, alimentando-se dos pequenos fragmentos de consciência que lutam para
sobreviver no palco que ela vem construindo cuidadosamente desde o primeiro atosegundo
da criação.
Crowley está olhando para a face de Deus.
{47}
Se o viajante se ocupa de coisas banais,
atrai sobre si a desgraça.
— Hexagrama 56
Hitler atravessa a biblioteca abarrotada de livros sem nem se deter. Em outras
circunstâncias, aqueles volumes cuidadosamente organizados nas prateleiras teriam
exercido um apelo irresistível sobre ele. Desde muito jovem, é um leitor voraz mas seletivo.
Ao mesmo tempo em que se atira sobre qualquer matéria impressa, nutre um profundo
desprezo pelos intelectuais, cujos cérebros são abarrotados de conhecimentos, mas que não
dominam a arte de separar, no livro, o que é de valor do que é inútil. A leitura, para Hitler,
não é uma finalidade, mas um meio para alcançar uma finalidade. Ele não sabe ainda qual
será essa finalidade, mas sente que ela fermenta em algum recesso ainda inacessível de seu
espírito, amadurecendo, esperando o momento certo de aflorar. Enquanto isso, prepara-se
para quando chegar o dia em que seu destino se tornará claro para ele e para o mundo.
Antes disso, no entanto, precisa escapar de seus perseguidores, aqueles estranhos
alemães que o arrancaram de sua realidade, levando-o para um espaço e um tempo que ele
não reconhece como seus e que lhe parecem mais ameaçadores do que a crescente
degeneração que vê espalhar-se por sua amada Alemanha. Não pode se dar ao luxo de parar
pra ver os livros. E se pergunta se, a despeito dos nomes puramente germânicos, Sprenger e
Kramer não serão, no fundo, judeus assimilados. Mas de onde teriam vindo aquelas armas e
máquinas, como Hitler jamais viu nas mãos de nenhum homem, judeu ou ariano? "O
aumento dos armamentos e do pessoal da polícia é um complemento imprescindível do
plano que estamos expondo", lembra de ter lido nos Protocolos dos Sábios de Sião, que
conserva sempre à cabeceira da cama, cuidadosamente anotado. "É preciso que não haja
mais, em todos os Estados, além de nós, senão massas de proletários, alguns milionários
que nos sejam dedicados, policiais e soldados", continuava dizendo o livro. E uma dúvida
lhe assalta a mente: terá Hitler caído nas mãos dos agentes da conspiração judaico-
maçônica que lhe tira o sono todas as noites? Terão eles, com o auxílio dessa tecnologia
cujas bizarras manifestações acaba de testemunhar, descoberto de alguma forma a ameaça
potencial que o jovem pintor representa para seus planos de dominação mundial?
A resposta a essas perguntas lhe chega aos ouvidos sob a forma de um gemido
incompreensível. Sua primeira reação é congelar onde está, mas logo domina essa reação
de coelho amedrontado, indigna de um ariano de pura cepa como gosta de se considerar.
Cautelosamente, escondido pelas sombras que envolvem a biblioteca, aproxima-se da fonte
dos gemidos. À medida que vai chegando perto, começa a entender algumas palavras, mas
isso não torna o discurso mais compreensível.
— Dê um nome, dê uma voz a essa necessidade cega que toma forma sob seus dedos
manchados.
A voz tem um timbre que guarda pouca semelhança com qualquer som que pudesse
ser proferido por uma garganta humana.
— Uma presença alienígena, o fantasma de uma outra dimensão que é a tua e o fundo
do espelho e a sombra na parede.
É uma voz amorfa, líquida, como se os fonemas escorressem pela boca e se
derramassem pelo queixo.
— Pergunte-lhe a que veio, pergunte-lhe o que quer, deixe fluir o jorro famélico que
escarra de sua boca escancarada, deixe-a cuspir no piso e urrar de dor e desespero e pedir
que abra a porta.
Hitler hesita, será dele que estão falando? Será ele esse fantasma alienígena a que o
velho se dirige?
— Fale, fale com ela, ouça, ouça sua luz.
Porque agora que está quase contornando a mesa, notando de relance o pequeno cofre
aberto sobre o tampo, Hitler não tem a menor dúvida de que é a voz de um velho.
— Ela lhe falará de antigas colinas e vales incendiados, não num outro mundo
qualquer, nem mesmo neste mundo, mas em teu próprio peito, que você achava conhecer
como a palma da tua mão e que agora se converte em aldeia abandonada e pedaços
incendiados de madeira que sobraram da última grande conflagração universal.
Hitler agora pode ver o velho, a cabeça inteiramente calva, o filete azul de baba que
desliza pelo canto da boca e goteja sobre o carpete. É óbvio que ele está sob a influência de
algum tipo de droga, e a seringa ainda meio cheia caída junto à mão só confirma essa
impressão. Hitler reconhece o líqüido na seringa, é a mesma porcaria que aquele Kramer
pretendia injetar nele.
Aquele Kramer está parado junto a Hitler, o cano da arma encostado em seu coração.
— Herr Hitler, é hora de menos conversa e um pouco mais de ação.
{48}
Aproximação em conjunto.
A perseverança traz boa fortuna.
— Hexagrama 19
A bala se aproxima de Parsons em um passo lento, cadenciado, os movimentos
estudados de uma sedutora que identificou a presa e sabe que ela não tem como escapar. Se
seu senso de temporalidade estivesse operando em velocidade normal, a bala estaria voando
pelos ares com a mesma velocidade do foguete que Parsons e seus colegas dispararam no
Dia das Bruxas de 1936. Mas, à diferença daquele foguete, que marcara a fundação do Jet
Propulsion Laboratory, aquela bala não traria o nascimento de coisa alguma, traria a sua
morte e, possivelmente, a do homem que ele jurou manter a salvo da manopla da Intempol.
Com seus sentidos operando a um ritmo milhares de vezes mais rápido que a consciência
normal, no entanto, é fácil para Parsons esquivar-se do projétil, manter-se a salvo do canto
silencioso e mortal da sereia de chumbo. Basta-lhe dar um passo para a esquerda e a bala
passa ao lado dele, sua trajetória inexorável que termina numa colisão explosiva com a
parede da casa, arrancando uma chuva de faíscas e estilhaços que se desdobram lentamente
no espaço, como o desabrochar de uma flor sanguinária.
Só quando torna a olhar para o vulto de seu adversário escondido entre os arbustos é
que Parsons percebe que caiu numa cilada, que a primeira bala não passava de um chamariz
e cumpriu bem sua função, seduzindo a atenção de Parsons, desviando-a do oponente e
deixando-o livre para partir pro verdadeiro ataque. Pois enquanto Parsons se punha fora do
caminho do projétil, Sprenger disparava uma saraivada de tiros, que agora voavam em
ordem unida na direção do outro, que nem fossem uma esquadrilha de caças sobrevoando o
território inimigo, prontas para libertar uma carga de destruição sobre tantos alvos
simultâneos que Parsons não conseguiria escapar de todas. Desesperado, ele joga-se no
chão, apenas para descobrir que há mais balas avançando por ali. Levanta-se, contorna a
primeira, faz uma finta na segunda, dribla a terceira e a quarta, quase ouvindo em sua
mente a voz de um imaginário locutor de futebol americano, e ele vê-se a si próprio
tentando abrir caminho no campo, a bola embaixo do braço, a massa de jogadores do time
adversário pronta pra se atirar sobre ele, esmagá-lo sob seu peso coletivo, impedir que ele
chegue até o gol. Mas onde é o gol, ele pensa, o raciocínio desembestado, girando no vazio,
o gol não é do outro lado do campo, o gol é do outro lado do tempo, e a mão já se move
sozinha, toca o quadrado mágico de Mercúrio tatuado em seu peito esquerdo, os lábios que
se abrem e murmuram o encantamento, a magia dobrando o contínuo ao seu redor, o gol é
sua casa, é seu laboratório, o gol é sua própria época, e o encantamento chega ao fim no
exato instante em que um obus colide com o abdômen de Parsons e se abre um portal por
onde ele se joga.
A explosão começa em Hastings, Inglaterra, no dia 1º de dezembro de 1947, e
termina no dia 17 de junho de 1952, em Pasadena, Califórnia.
Quando os sentidos ampliados de Sprenger voltam a seu ritmo normal, ele ainda
consegue ver as últimas volutas de fumaça que se dissipam.
— É como eu sempre digo — Sprenger fala para ninguém, para as rosas no jardim.
— Thelemita bom é o thelemita morto.
{49}
Preste atenção à nutrição
e àquilo que o homem procura
para encher sua própria boca
— Hexagrama 27
Kramer dá um último puxão a fim de verificar se o nó está bem preso e limpa o suor
da testa com as costas da mão. A bichinha que um dia se tornaria o maior enigma na
história do século XX tinha cismado de ter um ataque histérico, e nem as ameaças verbais
de Kramer nem a arma brandida diante do nariz de Hitler foram o suficiente para acalmá-lo.
Por fim, teve que dar uns tabefes na cara do moleque, que caíra num estupor catatônico.
Agora está ali, amarrado a uma cadeira, os olhos imóveis contemplando o nada e mais
alguma coisa.
Embora não hesite em apelar para ela quando necessário, a violência física desgosta
Kramer. Prefere deixar isso para Sprenger, cuja personalidade sádica se retorce em
convulsões íntimas de prazer perante o medo da vítima. Ou então para os agentes regulares
da Intempol, que fazem da violência e da tortura o seu arroz com feijão. Ao contrário deles
e de Sprenger, Kramer se compraz com o pensamento de que os métodos do Departamento
M devem ser mais sutis. Mas a necessidade é a mãe da invenção e se Hitler precisava de
uns sopapos para se acalmar, não seria Kramer quem haveria de negá-los.
Ao se abaixar para apanhar a seringa com o graal junto ao corpo convulso de
Crowley, constata, entre chocado e divertido, que Hitler tem uma ereção no meio das
pernas. Não chega a ser uma surpresa. Sadismo e masoquismo formam um imbroglio na
cabeça da maioria dos fetichistas, e não há porque pensar que Hitler seria uma exceção.
Levanta-se com a seringa empalmada e ergue a manga direita de seu prisioneiro. A pele é
de uma brancura mórbida, o traçado esverdeado das veias tecendo uma teia em seu bíceps
flácido. Calcula que a dose deixada por Crowley será suficiente para causar uma overdose
em Hitler. De modo que, no final das contas, de nada adiantou o esforço heróico de Parsons
para destruir a ampola que Kramer trouxera dos laboratórios da Intempol. Tudo que ele
tinha conseguido era despertar a raiva de Sprenger e a raiva de Sprenger não é o tipo de
monstro que se gostaria de despertar.
Hitler não reage à aproximação da seringa e continua mergulhado na estase mesmo
quando a ponta da agulha penetra-lhe na carne do braço, um redemoinho vermelho de seu
sangue entremisturando-se com o azul do graal. Kramer pressiona o êmbolo um pouco mais
e a droga se derrama nas veias do ditador que ainda não é. É então que uma forte onda de
déja-vu espouca no cérebro de Kramer ao ver a seringa quase vazia se estilhaçar com uma
bala.
— Porra, de novo? — resmunga Sprenger, entrando na sala e desarmando Yeats com
um murro na boca do estômago.
O poeta galês e dublê de secretário do Comissário M cai de joelhos, arquejando,
lutando contra uma golfada de vômito que faz o que pode para abrir caminho em sua
garganta e acaba levando a melhor, espalhando-se com um cheiro nauseabundo sobre o
carpete da biblioteca.
— Qualé, Yeats? Você é um dos nossos, caralho!
— ...guerra... — gorgoleja Yeats — ... lado errado, o meu...
Sprenger o cala de vez com um chute no queixo.
— Não dá pra confiar nesses artistas — comenta, empurrando o corpo inconsciente
de Yeats com a ponta do pé. — Têm tudo merda na cabeça.
Volta-se para Kramer.
— E aí, colega? Fodeu a biela?
Kramer inspeciona o rosto de Hitler, que rapidamente vai se tornando tão cinzento
quanto o do velho comatoso.
— Eu já tinha injetado quase tudo quando o Yeats atirou — balança a cabeça de um
lado para o outro. — Deve funcionar.
Os dois se calam e ficam observando enquanto as funções de onda de Crowley e
Hitler começam a se entrelaçar.
{50}
A retirada voluntária traz boa fortuna ao homem superior
e ruína ao inferior.
— Hexagrama 33
Hitler sonha com o futuro.
Dois caminhões que eu mandarei fretar serão cobertos com o maior número possível
de panos vermelhos, arvorando algumas bandeiras nossas. Quinze a vinte adeptos do nosso
partido seguirão nos mesmos, com a ordem expressa de passar por todas as ruas da cidade
jogando boletins, enfim, fazendo propaganda para a colossal manifestação da noite. Será a
primeira vez que caminhões embandeirados passarão pela cidade sem serem guiados por
marxistas. Eis porque a burguesia verá, boquiaberta, a passagem dos carros enfeitados de
vermelho e de bandeiras nazistas que voarão ao vento, enquanto, nos bairros afastados do
centro da cidade, levantar-se-ão também inúmeros punhos cerrados que exprimirão uma
fúria visível contra a última provocação ao proletariado.
Crowley sonha com o passado.
Havia a questão de nosso caso amoroso. Eu estava absolutamente apaixonado por
Rose no sentido comum do termo. Meu amor por Fidelis excluía quase inteiramente o
aspecto material. Eu tinha muito orgulho de meu amor por Rose e estava bastante feliz com
ele. A única coisa de que eu tinha certeza era esta: que nós tínhamos uma oportunidade
soberba de realizar a Grande Obra juntos e a perdemos por conta de nossa determinação em
ver as coisas com nossos próprios olhos. Estávamos, não há a menor dúvida, bastante
prontos para efetuar a Grande Obra no início, no fim, durante todo o tempo; mas fomos
impedidos por nossa firme convicção do que a Grande Obra poderia implicar.
Serão sete horas da noite e o circo ainda não estará repleto. De dez em dez minutos,
me chamarão ao telefone. Sentir-me-ei bastante inquieto, pois às sete horas ou às sete e um
quarto, as outras salas já estarão quase completamente cheias. A razão não tardará a ser
descoberta: eu não terei contado com as dimensões gigantescas do novo local. Mil pessoas
na sala do Hotbräuhaus fazem um bonito efeito, mas passarão inteiramente despercebidas
no circo Krone. Quase não se verá ninguém. Pouco depois começarão a vir comunicações
mais favoráveis e, às quinze para as oito horas, dir-me-ão que três quartos do circo estarão
ocupados, havendo grande multidão diante dos guichês da entrada. Com essa notícia, eu me
porei a caminho.
Da minha parte, pelo menos, eu sei que estava sempre argumentando que tal e tal
caminho não podia estar de acordo com os princípios gerais, como eu fiz quando a própria
Rose me disse como invocar Hórus; e eu ainda não tinha aprendido a lição de que a minha
idéia sobre os "Princípios gerais" não era confiável. Em Kobe, o ritual foi apenas correto,
embora eu tenha invocado todos esses meus poderes. No entanto, mais tarde, por uma
grande força de vontade, eu bani minha garganta dolorida e entrei em meu Corpo de Luz.
Alcancei uma sala na qual estendia-se uma mesa cruciforme, com um homem nu pregado a
ela. Muitos homens veneráveis estavam sentados ao redor, banqueteando-se em sua carne
viva e sorvendo seu sangue quente.
Chegarei ao circo às oito horas e dois minutos. Ver-se-á uma grande multidão diante
do mesmo, alguns parecerão meros curiosos, outros, adversários, que esperarão do lado de
fora o desenrolar dos acontecimentos. Quando penetrar na formidável área, deixar-me-ei
empolgar pela mesma alegria que terei experimentado no ano precedente, quando da
primeira reunião na sala de festas da Bräuhaus, de Munique, Mas somente depois que eu
tiver a muito custo conseguido passar através de verdadeiras muralhas humanas, até chegar
ao estrado um pouco elevado, e que o sucesso em toda a sua plenitude se manifestar aos
meus olhos. Esse local se estenderá diante de mim como uma concha enorme, repleta de
milhares e milhares de pessoas.
Esses, me disseram, eram os adeptos, aos quais eu poderia me juntar um dia. Entendi
que isso significava que eu deveria ter o poder de tomar apenas alimento espiritual — mas
provavelmente queria dizer muito mais do que isso. Em seguida, entrei em uma sala
aparentemente vazia, de mármore branco trabalhado em filigrana. Um altar quadrado e
estreito estava no meio e me perguntaram o que eu sacrificaria naquele altar. Ofereci tudo,
exceto minha vontade de conhecer Deus, a qual eu trocaria apenas por sua própria
realização. Agora me tornei consciente de formas de deuses egípcios sentadas, tão vastas
que eu mal conseguia ver seus joelhos. "O conhecimento dos deuses não seria o
suficiente?" "Não!", eu disse.
Até o picadeiro estará repleto. Na entrada, terão sido distribuídos cinco mil e
seiscentos cartões. Sem contar o número total dos sem-trabalho, dos estudantes pobres e
dos nossos homens do "serviço de ordem", serão ao todo seis mil e quinhentas pessoas.
Meu coração exultará na convicção de que o futuro vai estar ali, diante dos meus olhos.
Começarei a falar e falarei por cerca de duas horas e meia. Depois da primeira meia hora,
pressentirei que a reunião será um grande sucesso. Estará estabelecida a ligação com todos
esses milhares de indivíduos. Já no fim da primeira hora, começarei a ser interrompido por
aplausos que explodirão cada vez mais, espontaneamente, para decrescer novamente,
depois de duas horas, passando a um silêncio solene que eu deverei, mais de uma vez, mais
tarde, constatar nesse lugar, e de que cada um de nós guardará uma lembrança imperecível.
Quase não se ouvirá outra coisa senão a respiração dessa multidão colossal e, só depois que
eu proferir a última palavra é que se levantará, subitamente, um bramido que somente
cessará com o cântico patriótico "Alemanha", entoado com o máximo ardor. Eu observarei
como, aos poucos, a enorme área começará a se esvaziar e uma monstruosa onda de gente
procurará a saída pela grande porta do centro.
Então me apontaram que eu estava sendo crítico, até mesmo racionalista, não vendo
que Deus não era necessariamente feito à minha imagem. Pedi perdão por minha cegueira e
me ajoelhei perante o altar, colocando minhas mão sobre ele. Então, uma forma humana,
branca, com luminosidade própria (minha idéia, afinal de contas!) veio e pôs suas mãos
sobre as minhas, dizendo: "Eu te recebo na Ordem de —".
Isso durará por quase vinte minutos. Só então, possuído do mais vivo contentamento,
deixarei o meu lugar, a fim de voltar para casa.
Voltei para a Terra em um berço de fogo.
{51}
Isolado através da oposição,ele encontra
um homem que lhe é semelhante.
— Hexagrama 38
Como você pode se revoltar contra Mim?
A voz de Deus se insinua diretamente na cabeça de Crowley em trilhas prateadas que
por pouco não se confundem com seus próprios pensamentos.
Não sabe que eu te criei? Com minha unha rasgo tua carne, com meu dedo esmago
tua alma.
A expressão de Crowley permanece impassível. Se Deus esperava uma reação, deve
ter se decepcionado.
Onde você estava quando eu lancei os fundamentos da terra? Diz, se é que sabe
tanto. Quem lhe fixou as dimensões?Ou quem estendeu sobre ela a régua?
O mago não responde, o que só faz aumentar a impaciência de Deus.
Alguma vez na vida você deu ordens à manhã, ou indicou seu lugar à aurora, para
agarrarem a terra pelos quatro cantos, e serem dela expelidos os ímpios; para elas
mudarem de aspecto como argila sob o sinete e vestirem um traje de gala dourado? para
ser recusada a luz aos ímpios e o braço rebelde ser quebrado?
Crowley permite-se uma gargalhada. Não há dúvida que, de quebrar o braço rebelde,
Deus entende.
Você entrou pelas fontes do Mar, ou passou pelo fundo do Oceano? Foram-te
indicadas as portas da Morte, ou você viu os portais das Sombras? Examinou a extensão
da terra? Conta, se sabe tudo isso!
Poderia responder a essas perguntas. Sim, ele viu os portais das Sombras e atravessou
as portas da Morte. Adquiriu conhecimentos que estão além do próprio Deus e de seus
limites mesquinhos. Mas essa exibição titânica de poder, que não serve a nenhum
propósito, começa a enfastiar Crowley. Deus, quem diria, é um doido varrido.
Você pode atar os laços das Plêiades, ou desatar as cordas do Órion? Pode fazer as
constelações saírem a seu tempo, ou guiar a Ursa com seus filhos? Conhece as leis do céu,
e determina suas funções sobre a terra?
É então que, em meio à diatribe de Deus, cuja megalomania parece não ter fim,
Crowley dá-se conta de outra coisa. A princípio, confunde-se com o puro ódio e a
voracidade insaciável da criatura diante dele. Aos poucos, porém, as duas correntes vão se
diferenciando em sua consciência.
Quem pode contar as nuvens com exatidão e quem entorna os odres do céu, de modo
que o pó se torne em lama e os torrões se interliguem?
Uma onda de nadificação se estende do passado e busca o ser de Crowley com suas
presas famélicas, aniquilando todos os seus aspectos, um após o outro.
É você que caça a presa para a leoa, ou sacia a fome dos leõezinhos, quando se
recolhem nos seus covis, ou se põem de emboscada nas moitas?
O primeiro a sucumbir é Antônio Colares, e quando a persona do contador é
engolfada pelo não-ser absoluto, Crowley sente como se tivessem lhe arrancado um braço
ou uma perna.
Quem prepara ao corvo o alimento, quando seus filhotes gritam a Deus, frenéticos
por falta de comida?
Em seguida é Alexandre Toledo que morre dentro de Crowley, deixando em seu lugar
um vazio que nada pode preencher. E ele entende que, de alguma forma, os agentes da
Intempol descobriram como cancelar sua função de onda.
Por acaso lutar contra o Todo-Poderoso é sabedoria? Quem argüi assim a Deus,
responda por isso.
E Crowley responde. E sua resposta é saltar de cabeça no centro da massa esponjosa
que é Deus. E, enquanto salta, ele grita:
— Aniquilar minha revolta é aniquilar a você mesmo.
{52}
Ele o submete e detém com firmeza
usando couro de boi amarelo.
Ninguém consegue soltá-lo.
— Hexagrama 33
...e lutou com ele um homem, até que a aurora subiu.
E vendo este que não prevalecia contra ele... disse:
Deixa-me ir, porque já a aurora subiu.
Porém ele disse: Não te deixarei ir, se não me abençoares.
E disse-lhe: Qual é o teu nome?
E ele disse: Jacó. Então disse:
Não te chamarás mais Jacó, mas Israel;
pois como príncipe lutaste com Deus e com os homens,
e venceste.
— Gn XXXII, 24:28
Mesmo quando lançado em circunstâncias eternas, do fundo de um naufrágio, todo
pensamento emite um lance de dados. A consciência de Crowley se agarra ao abismo
branco que é Deus e adapta-se a sua hiante profundeza, deixando-se tragar pelo ulterior
demônio imemorial, numa conjunção suprema com a probabilidade, perdendo-se no vazio
onde toda realidade se dissolve.
E Deus grita diante da invasão daquele corpo estranho que agora é parte dele mesmo,
e seu grito é um uivo lancinante que atravessa todos os sistemas de mundos, apagando
estrelas e erguendo conflagrações. Tenta se desvencilhar, vomitar com asco aquela mente
alienígena que se instala dentro dele, mas Crowley crava as unhas que não tem e os dentes
que já se foram à carne opalescente da divindade, e resiste.
Uma insinuação ao silêncio esvoaça próxima, enrolada em ironia ou no mistério
precipitado pelo turbilhão de hilariedade e horror em torno do vórtice, sem o juncar nem
fugir, como uma pluma solitária e perdida, a gargalhada sombria de Crowley, a brancura
derrisória de Deus, em oposição ao céu, como algo heróico e irresistível, mas contido por
sua pequena razão viril, relâmpago angustioso, expiatório, e púbere mudo.
Não há mais Crowley ou Deus. Os dois tornam-se um, um sistema único de funções
de onda entrelaçadas. Todos os aspectos de Crowley e todos os aspectos de Deus, o negro
que se parece um tigre, Aiwass, a mulata de olhos verdes, Babalon, o jovem com argolas
douradas, a velha, o Mega Therion, a mulher, emaranhados numa única identidade sem
identidade, um rosto sem rosto, superposição de todos e de nenhum, espaço sem forma e
vazio, desprovido de águas sobre as quais o espírito de Deus possa pairar.
Núpcias cujo véu de ilusão irrompe na realidade como o fantasma de um gesto a
abater a insânia divina.
E Deus recua, retira-se do salão que não habitava, deixa-se escorrer para dentro de si
mesmo, como um inseto se envolvendo na carapaça brilhosa, como a ostra que se fecha
sobre o grão irritado de areia, a bolsa de pus que isola o tecido necrosado. O tempo reflui, o
espaço desmorona, até não restar nada senão o silêncio original, a singularidade nua de
onde todas as coisas virão a emergir num estertor sanguinolento.
Não há mais espaço, não há mais tempo.
Não há mais contínuo, não há mais Intempol.
Não há mais nada exceto o nada.
E Deus.
E Crowley.
Porque Crowley é Deus e Deus é Crowley.
E de nada adiantou a Deus recuar nos abismos do tempo até o tempo antes do tempo.
A consciência de Crowley o acompanha, irredutível, sólida, inexorável.
Dentro do ovo primordial, Crowley e Deus brigam como dois gêmeos no útero da
mãe. E brigam tão violentamente que a tensão rompe o delicado equilíbrio do sistema.
Uma grande explosão e a luz se faz, uma aurora dourada que rompe a escuridão,
trazendo o universo à existência.
Um lance de dados jamais abolirá o acaso.
Sem se levantar da cama, Yeats apertou um botão na cabeceira. Como se fosse um
pensamento emergindo das profundezas do inconsciente, ouviu sua própria voz dentro do
cérebro, declamando um poema que ele deveria ter escrito no futuro, mas que agora ficaria
a cargo de um outro Yeats:
O que farei com este absurdo —
Oh coração, oh perturbado coração — esta caricatura,
Idade decrépita que amarram a mim
Como a cauda de um cão
Ainda sentia-se longe daquela idade decrépita, mas o sentimento de nostalgia pela
vida que vivera e pela vida que deixara de viver já começava a se tornar familiar para ele, e
desconfiava que o acompanharia pelo resto de seus dias.
Não que tivesse do que reclamar em termos de conforto físico. Apesar da aura de
horror e das lendas sinistras que cercavam a Prisão dos Homens que Nunca Existiram, sua
cela na Penitenciária de Segurança Máxima Henry Armstead-González equivalia a um
apartamento de luxo, com amplas instalações, uma biblioteca digital bem fornida e todo o
necessário para lhe proporcionar a vida que qualquer intelectual pediria a Deus. Bem vistas
as coisas, era como ser prisioneiro da suíte presidencial em um hotel cinco estrelas.
O que mais agradava Yeats era, evidentemente, a biblioteca. Havia livros de verdade,
caso ele sentisse falta do contato físico com o papel, do cheiro da celulose, da poeira
acumulada nas fibras. Mas a maior parte das obras estava codificada em qbits, cujo
conteúdo a leitora inseria diretamente no cérebro de Yeats. O acervo da biblioteca abrangia
praticamente toda a produção escrita da humanidade no passado, no presente e no futuro, e
incluía também boa parte dos livros que jamais chegaram a ser escritos em nosso contínuo
espaço-temporal, mas que pertenciam a linhas de tempo alternativas. Era assim que ele
podia ter acesso aos poemas que ainda viria a escrever no futuro, bem com aos poemas de
outros Yeats, pertencentes a mundos que nunca tiveram a chance de se tornar reais.
— Lucile, — disse quando o poema chegou ao fim — cansei do som da minha
própria voz. Seleciona outra coisa pra mim, por favor.
Lucile era o computador quântico que coordenava todos os equipamentos na cela de
Yeats. (Era encarregada também, ele não tinha ilusões quanto a isso, de monitorar seus
movimentos e traçar um perfil psicológico do prisioneiro, constantemente atualizado. Não
se importava. Era bom saber que alguém se preocupava com a possibilidade de que ele
enlouquecesse com o isolamento.) Podia escolher pessoalmente os livros que queria ler,
mas gostava de ouvir a voz de soprano da inteligência artificial, sua inflexão de oráculo
chinês, ou de cigana lendo a buena dicha:
— Você não deve seguir seus caprichos, deve cuidar dos alimentos no interior. O que
gostaria de ler?
Yeats não tinha pensado em nada específico e, por isso, respondeu:
— Você conhece as minhas preferências melhor do que eu. Me faz uma surpresa.
A avaliação do estado de espírito de Yeats foi instantânea — computadores quânticos
são muito mais rápidos que o cérebro humano — e nem bem ele terminara de falar, uma
outra voz se insinuou em sua mente:
Aquela noite eu a trouxe para casa. Dava-me pena. E o que você acha que tinha
feito, essa louca? Havia raspado a xoxota. Você já comeu mulher com buceta raspada? É
nojento, não é? E também é divertido. Coisa de louco. Já não parece mais uma buceta: é
como uma concha morta ou qualquer coisa do gênero.
***
Ramos não tirava o olho da metralhadora que mesmo o Homem da Meggido
precisava das duas mãos para carregar. Era uma arma imponente, assustadora, que exalava
uma aura negra de destruição absoluta, uma vontade purificadora em perfeita comunhão
com o brilho insano que ardia nas pupilas do Homem da Meggido, quase como se as balas
fossem a materialização desse brilho, a tradução numa realidade concreta, palpável, do
ímpeto aniquilador que impulsionava o coração do outro. O comissário não tinha a menor
dúvida de que, se havia alguém no mundo que pudesse ser páreo para o Mega Therion, esse
alguém era o Homem da Meggido. Não estava certo de que uma simples metralhadora teria
sucesso onde o sofisticado armamento da Intempol fracassara mas, como os samurais
sempre souberam, não é a espada que conta, é o homem que a empunha.
Ajustou os cartões cronais, o dele e o do Homem da Meggido, para chegarem no
instante exato em que o primeiro Mega Therion se materializou no corredor. A esperança
de Ramos era conseguir pegá-lo antes que o espalhamento tornasse sua localização
imprecisa. Por isso, tornou a advertir o Homem da Meggido:
— Já entra atirando, ok? Mas atira só naquela área que eu te disse, toma cuidado pra
não ferir os agentes.
Era a terceira vez que repetia as instruções. O ar apalermado do Homem da Meggido
não lhe inspirava propriamente confiança. Mas não tinha outra opção. O grandalhão loiro o
encarou com a mesma expressão vazia de sempre e não esboçou a menor reação enquanto
Ramos passava os cartões cronais.
Continuou a não esboçar a menor reação quando o Mega Therion surgiu, apenas uma
fração de segundo mais tarde. Os dois gigantes se encararam e Ramos seria capaz de jurar
que viu um sorriso irônico despontar no canto dos lábios da sombra materializada de
Crowley.
— O que é que você tá esperando, seu idiota? Aperta a porra do gatilho!
O agente Euclides saiu pela porta de um escritório e arregalou os olhos ao ver a
criatura. Disparou o alarme. Logo chegaram os demais agentes: Virgulino, Sylvester,
Arnold, o próprio Ramos em sua versão passada, dezenas de homens desesperados, prontos
para combater o invasor.
A vantagem com que Ramos tinha contado já era. O Mega Therion se multiplicava,
estava numa ponta do corredor, na outra, diante do elevador, ao lado de diferentes
escritórios, e Ramos observou o pânico se espalhando entre os agentes à medida que se
tornava claro que eles não eram capazes de localizar o monstro com precisão suficiente
para atingi-lo com suas armas.
O Homem da Meggido assistia, impassível. Um calafrio subiu pela espinha de
Ramos. Foi somente quando a cabeça de Virgulino voou por sobre o ombro do outro
Ramos que o Homem da Meggido apertou o gatilho.
E varreu o corredor indiscriminadamente com suas balas.
Imbecil, eu sou um imbecil, pensou Ramos, sacando sua Terminator para deter o
homem em quem depositara suas esperanças de salvação. Antes que tivesse tempo de atirar,
porém, a rajada de metralhadoras se aproximou do Ramos do passado.
— Puta que pariu! — gritou o Ramos atual.
Seu alter ego passado caiu de cara no carpete, empurrado pela mão de Kramer, que
surgira bem a tempo de desviá-lo da rajada de balas. O Ramos atual voltou-se para o
Homem da Meggido, apenas para encontrá-lo estendido no chão, algemado. O cano da
arma de Sprenger estava encostado em seu queixo, e o agente parecia sentir um êxtase
quase erótico ao dizer:
— Me dá só um motivo pra eu te meter uma bala no cu.
O Homem da Meggido não esboçou a menor reação.

— Alguém cai no buraco — anunciou Lucile. — Chega um hóspede que não foi
convidado. Honra-o, e ao final virá boa fortuna.
A porta da cela se abriu para dar passagem ao Comissário M. Yeats fez menção de se
levantar e cumprimentá-lo, mas seu antigo chefe lhe fez um sinal de que não se
incomodasse. O livro de Henry Miller continuava se desdobrando na mente do preso.
Fiz com que ela a mantivesse aberta e focalizei ali a lanterna... Você precisava me
ver... Era engraçado. Estava tão entusiasmado que me esqueci completamente dela.
— Achei que os prisioneiros não pudessem receber visitas — comentou Yeats, a nota
de amargura na voz reduzida a uma harmônica tão sutil que poderia passar despercebida.
— Não podem — retrucou M. — Mas chefiar o Departamento M concede alguns
privilégios. Como o de ver quem eu quiser aqui dentro.
Nunca na minha vida tinha olhado tão a sério para uma xoxota. Dava a impressão de
jamais ter visto uma. E à medida que mais olhava, parecia-me menos interessante.
— Veio me perguntar por quê?
M sorriu:
— Engraçado, ainda outro dia me disseram a mesma coisa e eu não soube o que
responder. Agora eu sei. Suponho que devo te agradecer por isso.
Somente uma vez vi uma buceta de verdade numa estátua: era de Rodin. Você tem
que ir vê-la alguma vez... a mulher tem as pernas bem abertas... acho que nem tem cabeça.
Podia se dizer que era uma buceta e mais nada.
— Fico feliz que você saiba. Eu mesmo não entendo.
M. senta-se numa poltrona ao lado da cama. Ela é azul e seus contornos se modificam
para amoldar-se ao corpo do velho.
— Por que eu continuo trabalhando pra Intempol? Por que você se juntou a Crowley?
Você quer saber a resposta?
Tinha um aspecto horrível. A questão é que todas são parecidas. Enquanto você olha
para elas vestidas, imagina todo tipo de coisa: você dá a elas uma individualidade que na
verdade não têm.
— Porque é o nosso papel. Somos como personagens de um romance escrito por
alguma outra pessoa. Pensamos que escolhemos nossos passos, que somos livres para
decidir o que fazer com as nossas vidas, mas nos limitamos a seguir o que foi determinado
que faríamos.
— Determinado por quem?
Você sabe que está ali e o único pensamento é meter o pinto dentro; é como se o
pênis pensasse por você. É uma ilusão! Você se consome à toa, por um risco com pêlo ou
sem pêlo.
— Por ninguém — responde M. — Essa é a parte engraçada da coisa. Mas quanto
mais eu analiso a questão, mais eu me convenço disso. Somos personagens de um romance
que se escreve sozinho. Às nossas custas.
É tão insignificante que fiquei fascinado olhando para ela. Devo tê-la estudado
durante dois minutos ou mais. Quando você a olha dessa forma, com uma certa distância,
ocorrem idéias estranhas.
— Pensei que a Intempol determinasse o enredo — contestou Yeats.
Todo aquele mistério sobre o sexo para descobrir depois que não é nada: um vazio.
— A Intempol é como o narrador da história. Ela acha que é quem está contando, mas
não passa de um instrumento. Como o demiurgo gnóstico, sabe? Ele acreditava que era o
criador do mundo, e era apenas uma sombra.
Não seria engraçado descobrir uma gaita dentro... ou um calendário? Mas não há
nada dentro... nada de nada. É repulsivo.
Yeats não respondeu. Não estava certo de ter compreendido.
Quase fiquei louco.

— Uma pessoa da intimidade de Hitler disse-me que ele acorda durante a noite,
soltando gritos convulsivos — disse Hermann Rauschning, acendendo um cigarro. Antes de
prosseguir, deu uma longa tragada, expirou e aparentemente se esqueceu do que estava
dizendo, entretido em acompanhar o labirinto de volutas que a fumaça traçava no ar do
gabinete. Depois de quase um minuto, retomou o fio da fala, do ponto exato onde havia se
interrompido. — Pede socorro, sentado na beira da cama, como que paralisado. É possuído
por um pânico que o faz tremer a ponto de sacudir a cama. Profere vociferações convulsas e
incompreensíveis. Arqueja como se estivesse a sufocar.
Pela janela, podia-se observar a luz do Sol refletida sobre a superfície pálida do lago
Genebra. Para o ex-presidente do senado de Danzig, era como contemplar um espelho
mágico, no qual o passado se refletia. Seu secretário, no entanto, estava de costas para a
paisagem, ocupado apenas em registrar em rápidas anotações taquigráficas o depoimento
do homem que renegara sua associação com o Partido Nazista e se exilara voluntariamente
na Suíça.
— A mesma pessoa — prosseguiu — relatou-me uma dessas crises com pormenores
em que me recusaria a acreditar se a fonte não fosse de tanta confiança.
Fechou os olhos, como que para evocar mais vividamente os pormenores aos quais
acabara de se referir.
— Hitler estava de pé no seu quarto, cambaleante, olhando em redor com ar
desvairado. "É ele! É ele! Ele esteve aqui", gemia. Os lábios tremiam-lhe. O suor escorria
abundantemente.
O suor escorria abundantemente, registrou o secretário, a ponta da caneta traçando
hieróglifos sobre a superfície branca do papel.
— De súbito, pronunciou números sem qualquer sentido, depois palavras, restos de
frases.
Tentou se lembrar dos restos de frases, mas a única palavra que lhe veio à mente
parecia uma das muitas siglas que o próprio Partido Nazista fazia multiplicar pelos
corredores burocráticos do poder. Alguma coisa que lembrava Gestapo, mas não era bem
Gestapo. Intempol, seria isso?
— Era pavoroso. Empregava termos curiosamente reunidos, absolutamente
extraordinários.
Seu informante havia guardado apenas uma dessas frases, tão impressionante que
continuava na memória de Rauschning mesmo passados tantos anos, e olha que não era
uma frase fácil de reter: "essa coisa abissal que você carrega no fundo da espinha, essa
coisa abissal que espreita por cima de seus ombros..."
— Depois, novamente voltava a ficar silencioso, mas continuava a mexer os lábios.
Tinham-no então friccionado, e fizeram-no tomar uma bebida.
"...vulto branco que sobrepaira e censura e espiona, sabendo apenas que obedece a
essa necessidade cega e redonda e brilhante que toma forma no interior de seu corpo
cansado".
— Depois, subitamente berrou: "Ali, ali no canto! Está ali!" Batia com o pé no chão e
soltava gritos. Tranqüilizaram-no, dizendo-lhe que nada se passava de anormal, e ele
acalmou-se pouco a pouco.
A pessoa que lhe contara o estranho episódio achou que Hitler estivesse vendo o
super-homem nietzscheano com o qual tanto sonhava, e essa interpretação tornou-se
consensual entre os altos oficiais que ficaram sabendo do acontecido. Para eles, o próprio
delírio de Hitler tornara-se uma prova de que o Führer não estava louco. O super-homem
existia e o visitava em certas noites. Rauschning nunca aceitara essa explicação. Era óbvio
que Hitler estava sendo perseguido por algum fantasma do passado, um pesadelo que só se
tornava claramente manifesto em noites como aquela, mas que o acompanhava a todas as
horas do dia, colava-se às suas costas e espreitava por sobre os ombros, como aquela coisa
branca de sua alucinação.
— Em seguida, dormira várias horas e voltara a ser quase normal e suportável.
Apagou o cigarro no cinzeiro e voltou-se para seu secretário.
— Preciso de uma bebida. Você me acompanha?
— Com prazer — respondeu Alexandre Toledo, fechando o bloco de notas e
guardando a caneta no bolso.

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