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Muitas mulheres tm o sonho de se casar. Algumas enfrentam o altar como no passado: usando vestido longo, vu e grinalda. Outras querem apenas levar uma vida a dois, independente da existncia de um cerimonial religioso. Apesar de a prtica de se casar na igreja ser uma inveno medieval, esse um tema que existe desde os nossos primeiros tempos. No Velho Testamento, por exemplo, narrativas sobre a criao fecham-se com cenas emblemticas sobre o matrimnio. Deus criou para o homem uma companheira, carne de sua carne, para que fizessem uma s carne, multiplicando-se sobre a Terra. E o Novo Testamento parece querer privilegiar o celibato, a solteirice. Os homens deveriam fazer-se eunucos voluntrios, diz Mateus, enquanto Paulo insiste sobre o valor da castidade. A absteno de prazeres no na teoria, mas na prtica , ainda, glorificada pelo celibato exemplar de Jesus Cristo e a virgindade de Maria. Santo Agostinho, um dos doutores da doutrina da Igreja Catlica, em princpios do sculo V, deu uma definio positiva do casamento e ajudou a Igreja a sair do impasse: o casamento um bem, pois foi institudo por Deus desde o incio do mundo e elevado por Cristo ao papel sublime de representar sua prpria unio com a Igreja.

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Os ritos familiares de casar os noivos na Igreja comearam em fins do sculo XI. Inicialmente cabia ao padre ajudar na escolha do marido; depois, passou a entregar a esposa ao futuro marido. dele a frase: eu vos uno.... Foi quando apareceu o anel como smbolo da fidelidade e do amor, lao de unidade conjugal. A partir do sculo XII, o ritual do casamento era praticado em toda a Europa crist. No Brasil, o casar-se chegou com os portugueses que aqui desembarcaram h mais de 500 anos. No Brasil colonial, os rapazes podiam se casar aos 14 anos e as meninas a partir dos 12 anos. Mas essas idades no eram a regra. Estudos comprovam que, no sudeste, no sculo XVIII, a idade mdia era de 21,6 anos para os homens e 20,8 anos para as mulheres. Casamentos e batizados numa mesma famlia costumavam realizar-se no mesmo dia, sobretudo no interior. O padre ia capela da fazenda e, em um s dia, realizava as duas cerimnias. Ao voltar para casa, os noivos eram recebidos com tiros de mosqueto, foguetes e cantorias que louvavam os comes e bebes e o baile que se seguiriam. Uma semana depois, um almoo ou boda encerrava as festas, que tinham farta distribuio de rapadura, aguardente e eram animadas por batuques e repeniques de viola.1 Casar-se virgem no era o forte das noivas no perodo colonial. Muito poucas mulheres tinham condies financeiras de pagar um vestido nupcial para ir igreja. A maioria entregava-se ao noivo nas redes e quintais das casas em troca de promessas de casamento. Foram, alis, promessas de casamento regadas a versos que levaram uma das mais belas filhas de um importante advogado de So Joo del-Rei a se entregar aos deleites sexuais de um homem j experiente e com quase o dobro de sua idade. Ela com 18 anos; ele com 32 anos. Histrias como esta se repetem

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cotidianamente. J nos acostumamos a escut-las homens que se relacionam com mulheres bem mais novas, e vice-versa. Na colnia, isso ocorria sem problema algum. Homens e mulheres se relacionavam e muitos filhos nasciam legtimos ou ilegtimos.... Mas, uma dessas histrias particularmente interessante: pelos idos de 1776, chegou vila de So Joo delRei, em Minas Gerais, um carioca solteiro, vindo de Lisboa, para assumir o cargo de ouvidor geral da comarca do Rio das Mortes, cujo ofcio era exercido na Cmara de So Joo del-Rei. O poeta Incio Jos de Alvarenga (1742-1789), ou simplesmente Alvarenga Peixoto, como conhecido nos livros de Histria e de Lngua Portuguesa, foi residir, naquela vila, na casa vizinha a do magistrado Jos da Silveira e Sousa. O doutor Sousa, como era conhecido, tinha filhas de excepcional beleza.2 Alvarenga Peixoto tomou logo para si uma dessas moas, Brbara Eliodora Guilhermina da Silveira (1759-1819). Desse idlio nasceu, em 1779, uma filha ilegtima, Maria Efignia. O que torna essa histria interessante? Ser apenas o fato de Alvarenga Peixoto ser um dos participantes da Conjurao Mineira a rebelio colonial mais comentada nos livros de Histria ou por pertencer ao grupo dos poetas rcades de nossa literatura colonial? O que d valor a essa histria, alm de ter como personagem central o Alvarenga poeta e futuro inconfidente, so os desdobramentos causados por essa histria. Histria privada de um personagem pblico! O casal s veio a se casar em 1781, depois de sofrerem prolongadas repreenses pblicas por parte do padre Antnio Caetano de Almeida Vilasboas irmo do poeta Jos Baslio da Gama. A ira do padre Vilasboas, tido como um homem enrgico, obstinado e seguidor feroz dos preceitos catlicos, fez-se acompanhar por pasquins que se distribuam na vila de So Joo denunciando a escandalosa prostituio em que viviam.3 Como

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libi, Alvarenga afirmava que adquirindo propriedades em locais distantes e com tantos afazeres, no teve tempo de preparar um casamento altura de sua posio...4 Passados quatro anos da intensa relao de mancebia, contada com a estranha complacncia do pai dela, Alvarenga Peixoto foi levado a casar com Brbara Eliodora, por portaria do Bispo de Mariana de 22 de dezembro de 1781, no oratrio da casa do pai. Administrou-lhe o sacramento do matrimnio o seu amigo Carlos Correia de Toledo e Melo, vigrio da vila de So Jos.5 Desse relacionamento teriam mais trs filhos: Jos Eleutrio (nascido em 1787), Joo Damasceno (em 1788) e Tristo Antnio (em 1789).

Brbara Eliodora Brbara bela, do norte estrela, que o meu destino sabes guiar, de ti ausente, triste, somente as horas passo a suspirar. Isto castigo que Amor me d. Por entre as penhas de incultas brenhas cansa-me a vista de te buscar;

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porm no vejo mais que o desejo, sem esperana de te encontrar. Isso castigo que Amor me d. Eu bem queria a noite e o dia sempre contigo poder passar; mas orgulhosa sorte invejosa desta fortuna me quer privar. Isto castigo que Amor me d. Tu, entre os braos, ternos abraos da filha amada podes gozar. Priva-me a estrela de ti e dela, busca dois modos de me matar. Isto castigo que Amor me d.6 A lira acima, escrita enquanto Alvarenga Peixoto estava na masmorra da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, a espera da sentena que o condenaria pelo crime de inconfidncia, um de seus escritos mais conhecidos.

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No refro, uma das partes poticas mais importantes da lira seno a mais importante! , o poeta expressa o arrependimento por ter durante longo tempo se esquivado do casamento com a mulher que j lhe dera uma filha e praticava seus mais libidinosos pecados. Analisar Brbara Eliodora difcil de fazer com objetividade, porque reluz sobre a sua fronte a aurola do mito. Por ser mulher sofredora por excelncia, que viu seu marido arrancado de casa e levado algemado ao Rio, e sentir na pele o desprezo dos amigos, sua trajetria e histrias a fizeram entrar no panteo das heronas brasileiras. Brbara Eliodora considerada a mulher-smbolo, o exemplo tpico da mulher mineira: culta, esposa dedicada, me de famlia e sofredora. Ela foi, ainda, o vulto feminino que mais se destacou na Inconfidncia Mineira. Apesar de a Literatura atribuir a imagem de musa inspiradora do movimento Marlia famosa pelas liras de Dirceu Maria Dorotia Joaquina de Seixas no teve qualquer envolvimento na sedio que se planejava em Minas. Isto histria para outro momento... Mas, voltando bela Brbara, o que mais nos encanta ou melhor, me encanta nessa personagem? A partir das poucas informaes que existem de sua vida obtidas a partir de trechos dos depoimentos da devassa da Inconfidncia e das cartas que enviou ao amigo Joo Rodrigues de Macedo em Vila Rica Brbara Eliodora era uma mulher de temperamento forte. Lutou o quanto pde para salvar seus bens e de seus filhos do sequestro empreendido aos presos mineiros de 1789. Brbara mostrou firmeza ao impedir que seu marido vacilante no momento decisivo da conspirao delatasse os companheiros de sedio. A traio, fosse como fosse, no era de seu carter, nem a permitiria a algum de sua casa.7

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Criou sua filha Maria Efignia como uma princesa. Em depoimento devassa, Jos Joaquim de Oliveira disse que o mestre de msica da menina (Jos Manuel Vieira) lhe contara que era difcil ensinar sua discpula, pois o demasiado mimo com que a criava sua me, a qual lhe costumava chamar princesa do Brasil, impedia-o de forar o aprendizado (a dita menina nunca poderia adiantar-se muito).8 Desde seu casamento com Alvarenga, Brbara tomou parte nos negcios do marido. Em 1787, atuou como procuradora numa composio efetuada em virtude de uma demanda sobre terras.9 Embora possuidora de vrias mineraes e terras de cultura, foi fulminada com a priso, degredo e morte de seu companheiro. Suas contas sofreram desequilbrios ocasionados pelos acontecimentos. Em 13 de outubro de 1789, estava Brbara em sua casa no arraial de So Gonalo, quando a foram o ouvidor Lus Ferreira de Arajo e Azevedo e o escrivo, entre outros, realizar o sequestro dos bens do casal.10 Trs dias aps o incio dos sequestros, Brbara fez requerimento alegando que era casada com comunho de bens e que, na forma da lei, se devia proceder antes o inventrio e separar a sua parte. 11 Conseguiu dessa maneira que apenas se sequestrasse os bens da meao de Alvarenga Peixoto, garantindolhe algum patrimnio. O ouvidor, um velho amigo da famlia, fez mais: engordou significativamente a dita meao, ajeitando-a com credores impacientes que esperavam receber algumas das dvidas contradas por seu marido nos empreendimentos minerais e agrcolas que se meteu aps deixar a magistratura. Alm das terras e lavras avaliadas pela devassa em mais de 80 contos, a maior fortuna dentre os inconfidentes, Brbara permaneceu com propriedades e escravos que no figuram na avaliao, da mesma maneira que permaneceu com mveis e objetos de prata que totalizam mais de 12 quilos!

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Em nosso entender, residem nesse ponto o dos sequestros de bens as maiores inovaes que podem ser trazidas ao temrio da Inconfidncia Mineira. E, tambm, o do envolvimento das mulheres na sedio de 1789. Os sequestros de bens como fontes de histrias de outras mulheres Quando pesquisei pela primeira vez o tema dos sequestros na elaborao de minha dissertao de mestrado Um potentado na Mantiqueira: Jos Aires Gomes e a ocupao da terra na Borda do Campo , entre 1999 e 2002 deparei-me com algo surpreendente: as famlias dos inconfidentes foram penalizadas pelos sequestros de seus bens, mas muitas delas permaneceram com bens mveis e imveis, escravos e, tambm, participando das intrincadas redes econmicas e sociais que existiam e da qual faziam parte antes da Inconfidncia Mineira, sem se importarem com os trmites jurdicos que os abalavam. E o mais surpreendente: todos os arranjos foram tecidos pelas mulheres dos conjurados! Acompanhemos essa histria... No mestrado, investiguei a ocupao e a posse de terras na freguesia da Borda do Campo, na comarca do Rio das Mortes, durante o sculo XVIII. Para tanto, optei por reconstituir a trajetria de Jos Aires Gomes, o maior proprietrio de terras da regio. O incio de sua histria e do povoamento das terras do alto da serra da Mantiqueira comeou com a abertura do Caminho Novo a principal via de acesso aos viandantes e comerciantes que iam do Rio de Janeiro s zonas aurferas mineiras e com a criao da fazenda da Borda do Campo. As terras da Borda do Campo, inicialmente pertencentes ao bandeirante Garcia Rodrigues Pais, passaram, por compra, a ser administradas por Aires Gomes em 1775. Alm dessa propriedade, o futuro inconfidente adquiriu outras na regio. Das

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174 cartas de sesmarias doadas aos moradores da freguesia da Borda, pelo menos 24 estavam nas mos de sua famlia. Alm de terras legalmente ocupadas, Aires Gomes embrenhou-se nas reas proibidas dos sertes da Mantiqueira abrindo picadas, caminhos e desenvolvendo prticas agrcolas, mineratrias e pecuaristas furtivamente ao controle metropolitano. Suas propriedades chegaram a mais de 22; contrrias s oito herdades citadas pela historiografia da Inconfidncia Mineira. Alm das fazendas, encontramos, na sua documentao fiscal, vrias sentenas e cartas de sesmaria. Como apuramos, Jos Aires Gomes dominava territorialmente a regio e comandava as pessoas que l estavam. Tornou-se o senhor da Mantiqueira e, como tal, administrava mais de 40 sesmarias, estando a sua maior parte posicionada beira do Caminho Novo. Nessa histria, entretanto, est merecendo aparecer outra mulher: Hiplita Jacinta Teixeira de Melo. A participao de Hiplita Jacinta na Inconfidncia restringiuse a dois episdios: o envio que fez de um bilhete ao marido avisando-lhe das prises de Tiradentes e de Silvrio dos Reis no Rio de Janeiro; e o da destruio da carta-denncia escrita pelo seu esposo Francisco Antnio de Oliveira Lopes que seria entregue ao governador de Minas, visconde de Barbacena, como uma tentativa de diminuir sua pena de ter-se envolvido no intento sedicioso.12 Em seu depoimento, Francisco Antnio confirma que no entregou por escrito sua denncia do levante pelo fato de sua mulher t-la queimado.13 Com a publicao da sentena condenatria, os inconfidentes foram penalizados com o sequestro de seus bens. s famlias de Aires Gomes e Alvarenga Peixoto couberam as meaes de seu patrimnio; famlia de Francisco Antnio de Oliveira Lopes, a perda total de seus pertences, sem direito meao da mulher, nem mesmo dos bens indivisos da herana paterna.

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As mulheres dos trs Maria Incia de Oliveira (de Jos Aires Gomes), Brbara Eliodora (de Alvarenga Peixoto) e Hiplita Jacinta Teixeira de Melo (de Francisco Antnio de Oliveira Lopes)-, mesmo aps o sequestro e o confisco de seus bens, permaneceram com vrias propriedades, como j afirmamos. Apesar das agruras, por exemplo, dona Hiplita soube agir em defesa de seus interesses, no sentido de resguardar seus imveis. No seu testamento, datado de 27 de abril de 1828, nota-se que ela era possuidora de muitos bens, como fazendas, lavras e escravos que alforriou.14 Quando do inventrio de bens do casal, Hiplita Jacinta Teixeira de Melo teria provavelmente subornado o funcionrio responsvel, que recebeu trs vacas paridas sabe Deus pelo que....15 Da mesma forma que ela, Maria Incia de Oliveira, como mostrei em minha pesquisa de mestrado, tambm permaneceu com bens que no foram seqestrados pela devassa da Inconfidncia. Situao repetida na trajetria de Brbara Eliodora na administrao dos bens de Alvarenga Peixoto. As atitudes de suborno praticadas pela primeira nos ajudam a pensar semelhantes aes proporcionadas pela segunda e pela terceira. As avaliaes, ou melhor, as subavaliaes recebidas pelos bens de Jos Aires Gomes, mostradas em nossa dissertao, permitiramnos desconfiar de atos corruptveis dos inquiridores em outros sequestros de bens. A fazenda da Borda, adquirida por Aires Gomes, custou 24 contos de ris em 1775. No ato da compra pagou ao irmo 12 contos vista; o restante foi parcelado em prestaes em longo prazo. Em 1791, quando essa herdade foi sequestrada pela devassa, recebeu a mdica avaliao de 1:872$900 ris inferiores a aproximadamente dez vezes o valor originalmente pago. O monte-mor de seus bens foi avaliado em 31:859$015 ris. Deste total, aps a meao da esposa, coube aos cofres metropolitanos a importncia de 15:929$507 ris, que foi dividida em duas partes iguais, sendo uma delas destinada ao

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pagamento das dvidas pessoais do conjurado (7:964$753 ris) e, a outra, reservada ao Fisco Real. Os quase 32 contos de ris, pouco menos que a metade dos 65:066$236 contos apontados por Joo Pinto Furtado como a possvel avaliao que o patrimnio do inconfidente deveria valer, permitiu-nos vislumbrar que muitos dos bens de Aires Gomes foram subavaliados pela devassa.16 Nos sequestros dos demais conjurados mineiros, por exemplo, um porco valia em mdia 450 ris, no de Aires Gomes, de 72 a 75 ris. Aires Gomes teve quantificado pela devassa 1976 bens, excluindo-se as oitavas de ouro e as de prata sequestradas. Os bens de Incio Jos de Alvarenga Peixoto em nmero de 456 foram avaliados em pouco mais de 84 contos (a maior avaliao!). Entre os mais de vinte envolvidos na Conjurao Mineira, o coronel Jos Aires Gomes teve o segundo maior nmero de escravos confiscados, o maior nmero de cabeas de gado, de ferramentas, de utenslios domsticos, de bens mveis, de toucador, de oitavas de prata e a segunda maior quantidade de terras (vale lembrar que teve somente oito propriedades seqestradas, mas possua mais de vinte, alm de inmeras cartas de sesmaria). Exemplo interessante da atuao dos avaliadores foi expresso nas listagens dos rendimentos agrcolas das fazendas da Borda do Campo, da Mantiqueira, do Confisco e do Engenho, pertencentes a Aires Gomes e elaboradas durante o tempo em que estas propriedades ficaram sequestradas pela devassa (de 1791 a 1796). O borrador da fazenda da Borda aponta a existncia de plantaes de milho, de feijo e de arroz. As duas ltimas culturas foram esquecidas pelos inquiridores, quando foram vistoriar e anotar tudo o que vissem na herdade. Esses produtos agrcolas no apareceram indicados no sequestro publicado nos Autos de Devassa da Inconfidncia Mineira. A soma dos rendimentos das quatro propriedades foi de 7:157$064 ris.

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Assim, com base nos esquecimentos e na miopia dos inquiridores perante os bens de Aires Gomes, e mostrados em nossa dissertao, perguntamos: A devassa abalou a fortuna desses inconfidentes? Para responder a essa pergunta preciso voltar a analisar o papel da mulher na Inconfidncia. As trs mulheres citadas Brbara, Maria Incia e Hiplita Jacinta , com participaes diferenciadas e cada uma a seu modo, so as personalidades femininas que administraram as propriedades dos maridos aps a devassa e ao arrepio da lei. Fato, alis, significativo, pois somente pelas atitudes das esposas que conseguimos conhecer e compreender os trmites jurdicos e econmicos que envolvem a administrao dessas propriedades e a reconstituio do que foi declarado e do que foi omitido devassa. Esse ponto foi detalhado em minha pesquisa de doutoramento em Histria A fortuna dos inconfidentes: caminhos e descaminhos de bens de conjurados mineiros (1760-1850), publicado em 2010 pela Editora Globo.

Outras mulheres... corrente a ideia que muitos casamentos so mantidos graas aos servios prestados por meretrizes e pelas atitudes amorosas das amantes que povoam desejos no realizados pelas esposas. Em Minas, a atuao das mulheres de vida fcil, como se costumam rotular as profissionais do sexo, foi muito comum. Mulheres brancas tanto solteiras, quanto casadas (as semiprostitutas) como negras e mulatas, escravas ou forras, usavam da prostituio como fonte de renda para si, seu maridos, suas mes e proprietrios.17 Como era de se esperar, as ideias revolucionrias tambm chegaram s casas de alcouce, por intermdio do alferes Joaquim Jos da Silva Xavier, o Tiradentes.18

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Por meio das atitudes do alferes Tiradentes, um dos responsveis pela divulgao das ideias sediciosas entre a populao e por ser freqentador assduo dos prostbulos de Vila Rica, possvel acreditar que as prostitutas da cidade sabiam da premeditada rebelio que se arquitetava para o ano de 1789. Os documentos no permitem conjecturar que elas participaram diretamente do levante, mas, apenas, que elas sabiam do que se tramava. de um dos denunciantes da Inconfidncia, Baslio de Brito Malheiro do Lago, a frase pejorativa e discriminatria que tratava as meretrizes na poca e que se referia conjura como um movimento inexpressivo: s se for levante de putas.19 Tiradentes: falastro, corajoso, imprudente, bode expiatrio... heri... patrono da liberdade... os olhares sobre ele so muitos e to variados quanto os olhares sobre a Inconfidncia Mineira, como j foi apontado pela historiografia do movimento. Como relatado no incio desse texto, as mulheres tm anseios por casar. Este foi o caso de Antnia da Encarnao do Esprito Santo que se deixou envolver pelo alferes Tiradentes. Como Alvarenga Peixoto, o maior heri brasileiro tambm se envolveu com uma jovem, vivendo maritalmente com ela. Foi graas ao processo aberto por Antnia da Encarnao, entre novembro de 1789 e meados de 1790, em Vila Rica, que tomamos conhecimento de seu envolvimento com Tiradentes. Amsia do inconfidente, Antnia decidiu procurar a justia para reivindicar, junto s autoridades locais, a posse da escrava Maria, de nao Angola junto com seus dois filhos pequenos, Jernimo e Francisca , que fora seqestrada pela devassa com os demais bens de Tiradentes na ocasio de sua priso. Para tanto, como informou Paulo da Costa e Silva, em artigo recente publicado na Revista de Histria da Biblioteca Nacional, Antnia Maria alega que a escrava lhe havia sido doada pelo alferes, no pertencendo mais a Tiradentes, e que, portanto, lhe deveria ser restituda.20

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As delicadas relaes entre eles so expostas no processo da seguinte forma: Diz Antnia Maria do Esprito Santo, menor rf do falecido seu pai Antonio da Silva Pais, que estando na companhia da viva sua me Maria Josefa, vivendo com toda a honestidade e recato, a principiou a aliciar o alferes Joaquim Jos da Silva Xavier, o qual debaixo de palavra de honra e promessas esponsalcias lhe ofendeu a pudiccia, de cuja ofensa resultou conceber e dar luz um feto do mesmo alferes, que passou ao extremoso excesso de arrancar a suplicante dos braos da dita sua me.21 Para reaver sua escrava, Antnia Maria joga com informaes que levam a crer que foi vtima dos encantos e das falsas promessas de Tiradentes, que a tirou dos braos de sua me, deflorando-a, concebendo nela um rebento, sem que cumprisse, contudo, a promessa de casamento. O alferes faltou com sua palavra de honra ao acenar com promessas de casamento que no foram cumpridas. No fundo, voltamos estaca inicial: o sonho que muitas mulheres tm em se casar, em constituir uma famlia legalmente estabelecida. Se o maior heri nacional manchou sua trajetria lmpida com essa mcula, o que ser de ns... Ah!, Antes que esquea: as demais mulheres, entre elas a tambm bela Marlia, do poeta Dirceu (Toms Antnio Gonzaga), fica para outra oportunidade! Uma vez noiva de Gonzaga, teve seu nome envolvido nos acontecimentos que o cercaram, passando a figurar no apenas como a Marlia bela dos versos gonzagueanos,

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mas tambm como a noiva da Inconfidncia.22 Esse cognome aplicado Maria Dorotia de Seixas Brando propiciou uma gama de lendas a seu respeito e como gosto de trabalhar com a concretude e com as histrias das pessoas que realmente participaram do levante mineiro, deixo-a para os mistrios que ainda perpetuam a sua existncia. Andr Figueiredo Rodrigues Doutor em Histria pela
Universidade de So Paulo. Acadmico Efetivo da Academia Guarulhense de Letras (AGL) e Membro Titular da Comisso de Histria do Instituto Panamericano de Geografia e Histria (IPGH). Professor do Departamento de Histria da Faculdade de Cincias e Letras da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Assis. Website: www.histoecultura.com.br.

. Os pargrafos iniciais contendo informaes sobre a histria do casamento foram inspirados em PRIORE, Mary del. Histria do cotidiano. So Paulo: Contexto, 2001, p. 33-36. . Tem sido largamente celebrada em prosa e verso a beleza fsica de Brbara. Sem querer dar crdito aos comentrios de Alvarenga Peixoto, j que manteve relacionamento com ela, deixemos que o poeta Antnio Diniz da Cruz e Silva, que conhecera Brbara de perto, apresente referncias claras aos seus encantos: Absorto entre as trs deusas, duvidava Pris qual o ponto entregaria: sem vu, as perfeies de todas via, e quanto mais via mais vacilava.
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Se qualquer de per si atento achava, em seu favor a lide decidia, mas logo resolver-se no sabia quando juntas depois as contemplava. Enfim, um no sei qu, que a natureza mais liberal com Vnus repartira, o move a dar-lhe o prmio da beleza. Ah! Se igual entre vs lide se vira, o mesmo Pris cheio de incerteza nunca a magna contenda decidira. (Apud. OLIVEIRA, Martins de. A herona da Inconfidncia. Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 4, 24 maio 1969. Suplemento Literrio.) . LAPA, Manuel Rodrigues. Vida e obra de Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: INL; MEC, 1960, p. XXXIII - XXXIV.
4 . JARDIM, Mrcio. A Inconfidncia Mineira: uma sntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1989, p. 137. 3

. Fundao Biblioteca Nacional . Seo de Manuscritos, Coleo Tiradentes, I-35, 11, 15 n 2. . PEIXOTO, Alvarenga. Lira 21. In: LAPA, Manuel Rodrigues. op. cit., p. 30-31. O refro Isto castigo // que Amor me d no se encontra publicado na edio organizada por Joaquim Norberto em 1856 das obras poticas de Alvarenga Peixoto. Conferir: SILVA, Joaquim Norberto de Souza e. Obras poticas de Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: Garnier, 1856, p. 263-266.
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. JARDIM, Mrcio. op. cit., p. 139.

. Formao de culpa: inquirio da testemunha Jos Joaquim de Oliveira, Casa do desembargador Pedro Jos Arajo Saldanha (Vila Rica), 25 jun. 1789. In: Autos de Devassa da Inconfidncia Mineira. 2. ed. Braslia: Cmara dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Governo do Estado de Minas Gerais, 1976, v. 1, p. 171.

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9 . Conferir: Carta de Incio Jos de Alvarenga e Vicente Vieira da Mota a Joo Rodrigues de Macedo com escritura de compra e venda de fazenda. 21 jun. 1787. In: OLIVEIRA, Tarqunio J. B. de. Correspondncia ativa de Joo Roiz de Macedo. Ouro Preto, MG: ESAF; Centro de Estudos do Ciclo do Ouro; Casa dos Contos, 1981, v. 2, p. 246; Recibo passado por Incio Jos de Alvarenga, relativo venda de terras e escravos. Vila Rica, 10 jul. 1787. Revista do Arquivo Pblico Mineiro, Belo Horizonte, v. 38, 1990, p. 33; Procurao passada por Alvarenga Peixoto a Joo Rodrigues de Macedo e Vicente Vieira da Mota, para assinatura de escritura de destrato da venda de uma fazenda. Vila Rica, 21 jul. 1787. Arquivo Pblico Mineiro, ACC, pl. 20305, r. 529. 10

. Auto de seqestro em bens de Incio Jos de Alvarenga Peixoto. In: Autos de Devassa da Inconfidncia Mineira op. cit., v. 6, p.167-177.
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. Ibidem,177-178; p. 194-215.

. Auto de perguntas ao coronel Francisco Antnio de Oliveira Lopes, 1 inquirio, Cadeia Pblica (Vila Rica), 15 jun. 1789. In: Autos de Devassa da Inconfidncia Mineira. op. cit., v. 2, p. 57. . Formao de culpa: inquirio da testemunha Francisco Antnio de Oliveira Lopes, Casa do desembargador Jos Pedro Machado Coelho Torres (Vila Rica), 8 ago. 1789. In: Autos de Devassa da Inconfidncia Mineira. op. cit.,4, p.158. . bito e registro do testamento de D. Hiplita Jacinta Teixeira de Melo, viva do inconfidente Francisco Antnio de Oliveira Lopes. Prados, 27 abr. 1828. In: Autos de Devassa da Inconfidncia Mineira. op. cit., v. 9, p. 429-437.
15 . Carta-denncia de um annimo ao visconde de Barbacena contra Lus Ferreira de Arajo e Azevedo. So Joo del Rei, 14/10/1789. In: Autos de Devassa da Inconfidncia Mineira. op. cit., v. 3, p. 412. 16 14 13

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. Joo Pinto Furtado. O manto de Penlope: histria, mito e memria da Inconfidncia Mineira de 1788-9. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 107.

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17 . REIS, Liana Maria. A mulher na Inconfidncia (Minas Gerais 1789). Revista do Departamento de Histria, Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, n. 9, p. 88, jun. 1989. 18

. Auto de perguntas ao cnego Lus Vieira da Silva, 1 inquirio, Casa do Contrato (Vila Rica), 1 jul. 1789. In: Autos de Devassa da Inconfidncia Mineira. op. cit., v. 2, p. 147. . Carta-denncia de Joaquim Silvrio dos Reis, Cachoeira, 19 abr. 1789. In: Autos de Devassa da Inconfidncia Mineira. op. cit., v. 1, p. 98. . SILVA, Paulo da Costa. A outra face do alferes: documento raro revela um Tiradentes demasiado humano. Revista de Histria, Rio de Janeiro, ano 2, n. 19, p. 19, abr. 2007.
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. Apud Ibidem, p. 19.

. PIRES, Antnia Cristina de Alencar. Marlia de Barreto. In: MALARD, Letcia (Org.). A fico mineira hoje. Belo Horizonte: NAPq/FALE/UFMG, 1994, p. 26. (Cadernos de Pesquisa, 18).

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