O Livro Segundo Da Saudades Da Terra de Gaspar Frutuoso
O Livro Segundo Da Saudades Da Terra de Gaspar Frutuoso
O Livro Segundo Da Saudades Da Terra de Gaspar Frutuoso
FUNCHAL
Da ponta do Garajau, que está ao Nascente, até uns ilhéus, que estão ao
Ocidente, perto da terra, e a ponta da Cruz, que é quase uma légua e meia, faz
a terra uma enseada muito grande e formosa, e do Corpo Santo a São Lázaro e
as Fontes de João Dinis, que estão ao longo do mar, que é um quarto de
légua, há pela costa calhau miúdo e areia, o qual é o porto da cidade, onde
ancoram naus e navios, que ali carregam e descarregam, tão povoado e
cursado sempre deles, com tanto tráfego de carregações e descarregas, que
parece outra Lisboa. E deste quarto de légua de calhau miúdo e areia pela
costa é a compridão da grande e nobre cidade do Funchal. Ali situada em
lugar baixo, em uma terra chã, que do mar se mostra aos olhos mui soberba e
populosa tão bem assombrada nos edifícios como nos moradores, não
somente dela, mas também de toda a ilha. Está assentada entre duas frescas
1
ribeiras, a de Nossa Senhora do Calhau , a leste dos muros com esta igreja,
que é freguesia fora deles, e a ribeira de São Pedro, ou de São João, ermidas
que estão para o poente, porque ambas elas estão ali, no cabo da cidade,
ficando a ribeira fora dos muros entre elas, e a igreja de São Pedro dos muros
para dentro aquém da ribeira, e São João e fora deles, da banda de oeste; (...)
Esta cidade amurada, da ribeira de Nossa Senhora do Calhau, junto da qual
está uma fortaleza nova, até à fortaleza velha, onde tem o capitão sua morada,
donde defende o mais da cidade que fica fora do muro, da banda de oeste até
São Lázaro, e, pela ribeira de Nossa Senhora do Calhau, vai o muro em
1
. Hoje de João Gomes.
compridão perto de meia légua pela terra dentro, a entestar com rochas mais
ásperas, fortes e defensáveis, o qual, fabricado com cubelos e seteiras, da
banda da ribeira tem três portas, em que estão suas vigias e guardas, pelas
quais se serve a cidade, que fica da banda de oeste deste muro para dentro e
para fora. E no muro da banda do mar tem uma porta de serventia, junto de
Nossa Senhora do Calhau, e outra, mais no meio da cidade, junto dos
açougues, e outra, que é a mais principal, aos varadouros, defronte da rua dos
Mercadores.
Meio tiro de besta desta porta principal está a casa da Alfândega. Mais
próspera e de melhores oficinas que a da cidade de Lisboa, bem amurada de
cantaria e fechada pela terra e pelo mar, que está junto dela e nela bate muitas
vezes, quando há aí maresias.
Adiante logo da Alfândega um tiro de besta está a Fortaleza Velha, que é a
principal, situada sobre uma rocha, e tem pela banda do mar seis grandes e
formosos canos de água, que dela sai e nela nasce, na mesma rocha sobre
que é fundada, e de nenhuma maneira se pode tomar nem tolher, pela banda
da terra, de nenhuns inimigos; a qual fortaleza tem, pela parte do mar, dois
cubelos, como torres mui fortes, que guardam o mesmo mar e a artilharia, de
que estão bem providos, e, pela banda da terra, outros dois, que guardam toda
a cidade por cima, por estarem mais altos que ela, em a qual parte tem
também um muro muito alto e forte, com uma fortíssima porta de alçapão; e,
assim como tem dentro água, não lhe faltam atafonas, fornos e celeiros para
recolher os mantimentos, e ricos aposentos, onde o capitão pousa, adornados
com seu jardim e frescura.
A primeira rua 2 , das mais principais dos muros para dentro, é a dos
mercadores e fanqueiras, ingleses e flamengos e outros forasteiros, e de
homens ricos e de grosso trato, que vai de Nossa Senhora do Calhau até à
fortaleza, e no começo dela, junto de Nossa Senhora do Calhau, está uma não
muito grande, mas formosa e cercada praça, de boas casas sobradadas,
algumas de dois sobrados, com um rico pelourinho 3 de jaspe, do qual uma
grande e larga rua, que se chama a Direita e é a maior da cidade, vai ter ao
pinheiro, que é uma árvore que está no cabo dela, a mais grande e formosa
que há na mesma cidade. E nesta rua tem o ilustríssimo Bispo Dom Hierónimo
Barreto seus aposentos muito ricos, com seus frescos jardins de trás, que
entestam com a ribeira de Santa Luzia; e logo mais acima, indo pela mesma
rua, está a casa e igreja, da invocação de São Bartolomeu, dos padres da
Companhia de Jesus, de muita virtude, exemplo e doutrina, sofredores de
muito trabalho por salvar as almas, de que direi adiante; (...)
Desta rua dos Mercadores, além da rua Direita, sai outra, não tão comprida,
de outros de menos trato, como é fruta, pano de linho e coisas de fancaria,
que vêm de fora, no cabo da qual está um poço, pelo que se chama rua do
Poço Novo, logo além está outra, que sai desta primeira dos Mercadores e se
chama de João Esmeraldo, por ele ter ali seu aposento, antigo, mui rico, com
casas de dois sobrados e piares de mármores nas janelas, e em cima seus
eirados com muitas frescuras; e na mesma rua estão ricas casas e aposentos,
onde mora o nobre Pero de Valdavesso e Francisco de Salamanca, e outras
2
. Hoje equivale à rua da Alfândega.
3
. Demolido em 1835, foi restabelecido em 1990
nobres pessoas. Outra sai desta primeira, chamada rua do Sabão, que serve
de lojas e granéis de trigo, onde mora um Tristão Gomes, que chamam o
Peru 4 , o qual tem umas ricas casas de dois sobrados, com poço dentro e
portas de serventia, com muitos abrolhos de ferro da banda de fora, e defronte
dele, algum tanto mais acima, estão uns poços muito grandes, em que, o mais
do tempo, habitam mercadores muito grossos, ingleses. (...)
E desta rua saem serventias para a Sé, que é uma igreja muito populosa,
bem assombrada e fresca, e tem uma formosa torre, muito alta, de cantaria,
com um formoso coruchéu de azulejos, que, quando lhe dá o raio do Sol,
parecem prata e ouro, em cima do qual está um sino de relógio, tão grande,
que levará em sua concavidade trinta alqueires de trigo, de tão soberbo e
grande tom, que se ouve de duas léguas, onde acode a gente a qualquer
rebate de guerra, quando se ele tange; e, mais abaixo, na torre, estão três
janelas, onde estão quinze sinos.
O corpo da igreja, que está sujeita à torre, é grande, com seu adro, também
espaçoso, e cercado, em partes, de muro, e com dez degraus, porque sobem a
ele, fora do qual tem um campo tão grande, que correm nele touros e cavalos,
jogam as canas e fazem outras festas.
Está esta igreja (que é da invocação de Nossa Senhora da Estrela)
arrumada de Leste a Oeste, com a porta principal para o Poente e as duas
portas travessas de Norte a Sul; estão guarnecidos os altares (que são nove)
de ouro e azul, com três ricas capelas, afora a principal, onde tem o coro, do
arco para dentro, com seus assentos custosos e bem lavrados de rica
marcenaria, e no cruzeiro se diz a Epístola e Evangelho em seus púlpitos.
4
. Hoje dos Ferreiros. É o troço entre os Largos do Chafariz e do Colégio.
4.CADAMOSTO
Esta Ilha de Porto Santo é muito pequena, tem umas quinze milhas de
circuito e foi descoberta há vinte e sete anos 5 pelas caravelas do sobredito
senhor Infante, que a fez habitar por Portugueses. Nunca dantes fora habitada.
É capitão dela um Bartolomeu Perestrelo, homem do dito senhor.
Produz trigo e cevada para seu consumo; e abunda de carne de bois,
porcos selvagens, e infinitos coelhos. Encontra-se aí também sangue de
drago, que nasce em algumas árvores, isto é, goma que dão estas árvores em
certo tempo do ano. Extrai-se desta maneira: dão-se uns golpes de cutelo no
pé da árvore; e no ano seguinte, em certo tempo, os ditos cortes deitam goma,
que cosem e purificam, e se faz o sangue. A dita árvore produz certo fruto que
está maduro no mês de Março, e é muito bom para comer; assemelha-se às
cerejas, mas é amarelo. Note-se que em volta desta ilha se acham grandes
pescarias de dentais e doiradas velhas, e outros bons peixes. Esta ilha não
tem porto, mas apenas uma boa enseada, ao abrigo de todos os ventos,
excepto do les-sueste e su-sueste, pois com estes ventos não se estaria em
segurança. Seja, porém, como for, tem bom ancoradoiro. Esta ilha é chamada
Porto Santo, porque foi descoberta pelos portugueses no dia de Todos os
6
Santos , e nela há o melhor mel que suponho exista no mundo, e cera; mas
não em grande quantidade.
Depois, aos vinte e oito de Março, partimos da dita ilha e naquele mesmo
dia chegámos a Machico, que é um dos portos da ilha da Madeira, distante da
de Porto Santo quarenta milhas. Vêem-se com tempo claro uma da outra. Esta
5
. Se tivermos em conta que o navegador passou pela primeira vez na ilha em 1455 teremos o
descobrimento em 1428 o que não corresponde à verdade. Deverá haver um erro no número: em
vez do 2 deve-se ler três.
6
. É o único que estabelece a data exacta para o descobrimento da ilha, baseado no nome que
teve. Todavia a ser assim seria a ilha de Todos os Santos e não Porto Santo. Acresce que na
cartografia do século XV é já representada com este nome. Para outros autores a relação entre
o nome e o descobrimento deve resultar da ocorrência de um naufrágio no seu encontro ou da
ligação à lenda de S. Brandão.
ilha da Madeira mandou-a o dito senhor habitar 7 pelos portugueses só de há
vinte e quatro anos 8 para cá, e nunca foi dantes habitada. Fez capitães dela
dois seus cavaleiros, um dos quais chamado Tristão Teixeira, que governa a
metade da ilha da parte de Machico; e o outro, chamado João Gonçalves
Zarco, a outra metade, da parte do Funchal. Chama-se a ilha da Madeira, que
quer dizer ilha dos lenhos, porque quando primeiramente foi descoberta pelos
do dito senhor, não havia palmo de terra que não estivesse cheio de
grandíssimas árvores, e tiveram os primeiros que a quiseram habitar de lhes
deitar fogo. Este foi lavrando pela ilha, durante muito tempo, e tão grande foi,
que me disseram que ao sobredito João Gonçalves, que aí se encontrava, foi
preciso ele e todos os outros com as mulheres e os filhos, fugir da sua fúria e
acolher-se à água, no mar, onde estiveram mergulhados até à garganta dois
dias e duas noites, sem comer nem beber, pois que de outra maneira teriam
morrido 9 . Desta maneira varreram grande parte da dita madeira fazendo terra
de lavoura.
Esta ilha é habitada em quatro partes: a primeira chama-se Machico, a
segunda, Santa Cruz, a terceira, Funchal, e a quarta Câmara de Lobos; e ainda
que tenha outras povoações, estas são as principais. Poderá ter uns
oitocentos homens, entre os quais cem de cavalo, tem cento e quarenta
milhas de circuito, sem ter nenhum porto fechado, mas com ancoradoiros, e
terras muito frutíferas e abundantes.
E ainda que seja montuosa como a Sicília, contudo é muitissimo fértil, pois
produz cada ano trinta mil estares10 venezianos de trigo, ora mais ora menos.
As suas terras costumavam dar, a princípio, sessenta por um, o que
presentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão deteriorando
dia a dia. E o país é copioso de água de fontes muitissimo boas, e tem uns
oito regatos muito grandes, que atravessam a dita ilha, e sobre os quais estão
construídas umas oficinas de serrar que continuamente trabalham madeiras e
tábuas de muitas maneiras, de que se provê Portugal inteiro e outros países.
destas tábuas, menciono dois géneros: o primeiro é de cedro, que tem grande
cheiro, e é parecido com o cipreste, e fazem-se belíssimas pranchas, largas e
compridas, caixas e outros trabalhos; o segundo é de teixo, também muito
bonito e de cor róseo-encamada. E por ser banhada por muitas águas, o dito
senhor mandou pôr nesta ilha muitas canas de açúcar, que deram muito boa
11
prova. fazem-se açúcares para quatrocentos cântaros , de uma cosedura e de
mistura, e, pelo que posso perceber, far-se-á deles maior quantidade com o
tempo, por ser terra muito própria para isto, pelos seus ares quentes e
temperados, pois que nunca faz frio, como em Chipre e na Sicília. Aí se fazem
muitos doces brancos, perfeitissimos.
7
. Não foi o Infante quem deu o início ao povoamento, mas sim a coroa.
8
. Vinte quatro anos, quer dizer que o povoamento se iniciou em 1431, o que não corresponde à
verdade.
9
. A ideia de um incêndio duradouro, chegando a manter-se aceso 7 anos é hoje considerada uma
figura de estilo.
10
. Trinta mil estares equivale a três mil moios.
11
. Quatrocentos cântaros equivalem a 6 mil arrobas.
Produz cera e mel, mas não em grande quantidade, tem vinhos bons,
mesmo muitissimo bons, se se considerar que a ilha é habitada há pouco
tempo. São em tanta quantidade, que chegam para os da ilha e se exportam
muitos deles. Entre as videiras, o dito senhor mandou pôr plantas ou moitas
de malvasias, que mandou vir de Cândia, e que provaram muito bem, e por ser
o país tão gordo e bom, as videiras quási produzem mais uvas do que folhas e
os cachos são muito grandes, de dois e três, e atrevo-me até a dizer, de quatro
palmos, o que é a coisa mais bela de ver no mundo. Há também uvas pretas
de parreira, sem grainha, perfeitas. fazem-se na dita ilha arcos belíssimos, e
muito bons, de teixo, e enviam-se para o Ocidente; e também hastes muito
boas para bestas. Acham-se nela pavões bravos, alguns dos quais brancos, e
perdizes; e não há outra caça, a não ser codornizes, e abundância de porcos
bravos nos montes. E digo, por ter ouvido a alguns da ilha, dignos de crédito,
que no princípio havia grande quantidade de pombos, e ainda há, os quais se
caçavam com um certo laço que lhes deitavam com uma cana, que apanhava
o pombo pelo pescoço e o puxava abaixo da árvore. Como o pombo não
conhecia o homem, não se espantava; e pode-se acreditar, pois que numa
outra ilha descoberta há pouco ouvi que se fez o mesmo. A dita ilha é
abundante de carnes, e há nela muitos homens ricos, em relação ao país, pois
que ela é toda um jardim e tudo o que nela se aproveita é ouro.
Há nesta ilha conventos de frades menores da observância12 , que são
homens de santa vida. E ouvi dizer por pessoas de bem e dignas de crédito
terem visto nesta ilha, por causa da temperança do ar, agraço e uvas maduras
na semana santa, ou por toda a oitava da Páscoa.
12
. Deverá referir-se aos cenóbios de São João da Ribeira (no Funchal) e de São Bernardino
(Câmara de Lobos).
5.ZURARA
13
. Seiva do dragoeiro, usada na tinturaria e farmacopéia.