Experiencia Etnografica em Ciencias Sociais
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A construo etnogrfica do conhecimento em Cincias Sociais: reflexividade e fronteiras Telmo H. Caria 1. Para uma teoria da investigao etnogrfica
Como que se faz e pensa a etnografia em Cincias Sociais, em Portugal? Esta pergunta central que pretendemos responder atravs das nove contribuies que apresentamos neste livro. O propsito no novo. Destacamos, pelo seu pioneirismo individual ou colectivo, os trabalhos de Cabral (1983), Portela (1985), Costa (1987), Cardeira da Silva (1991) e, mais recentemente, o nmero temtico da revista Ethnologia (1997). Para responder pergunta formulada no apresentaremos quaisquer normas de procedimento metodolgico. Entendemos que uma metodologia uma construo estratgica, que articula teoria e factos para abordar um objecto. Ora o objecto no passivo manipulao tcnico-instrumental, nem imediatamente evidente observao. O objecto uma construo limitada pelos recursos tericos inventados at ao momento e quilo que as pessoas (dimenso determinante do objecto em Cincias Sociais) "deixam ver" e se "dispem a usar da cincia" (Caria, 2000b). Por isso, quaisquer normas de bem fazer ou bem dizer sobre o mtodo, que aqui pudessemos indicar seriam votadas ao fracasso, porque a objectividade em Cincias Sociais no um acto de neutralidade da observao (Caria, 1999b; 2000d). O facto de no apresentarmos normas de procedimento (um mtodo) no quer dizer que consideremos as as metodologias etnogrficas, de investigao em Cincias da Sociais, e e particularmente dependentes apenas subjectividade
emocionalidade dos seus autores e protagonistas, como se se tratasse somente de desenvolver (eventualmente formalizar na escrita) uma racionalidade estticoliterria, absolutamente oposta a considerar a especificidade do social no debate sobre
objectividade cientfica. Recusamos estes dois plos do debate sobre a etnografia: aquele que a reduz a uma "arte", impossvel de ensinar e incomparvel a qualquer outra metodologia, e aquele que a afirma no quadro de uma norma de "naturalismo observacional", possuindo uma qualidade que a tornaria imune "artificialidade e convencionalismo" dos mtodos "dedutivo-positivistas". A nossa proposta a de conjugar e fazer coexistir a linguagem da experincia, de estar e pensar no trabalho de campo, com a linguagem da teoria, que permite objectivar e racionalizar o que ocorreu. Uma leitura atenta aos diferentes contributos reunidos neste livro mostrar como existem elementos de anlise que se repetem e que so objecto de explicao atravs de noes e conceitos com sentidos aproximados. Isto particularmente visvel nos textos apresentados na segunda parte, relativos teorizao do processo de interaco nos contextos sociais, apesar da heterogeneidade de contextos estudados, a saber: um grupo de crianas num jardim de infncia (captulo 8), um grupo de txico-dependentes urbanos (captulo 1), vrias colectividades rurais (captulos 5 e 9), povos nativos da Guin-Bissau e do Chile (captulos 6 e 7), vrias colectividades de festividades populares (captulo 2), um grupo operrio numa empresa industrial (captulo 3) e grupos de professores (captulo 4). As abordagens que podero ser encontradas mostram os limites actuais da teoria social para reflectir, em contexto, sobre as condies sociais e scio-cognitivas da investigao etnogrfica e a necessidade de desenvolver um trabalho conceptual que permita a objectivao da experincia de modo articulado com a contextualizao da teoria social. Da que este livro seja um contributo para o desenvolvimento de uma teoria social sobre a investigao etnogrfica em Cincias Sociais. ainda uma metodologia pluridisciplinar, dado estarmos em presena de contribuies de investigadores em Antropologia, em Educao, em Psicologia e em Sociologia. Poderemos, tambm, enquadrar este livro nas propostas de cunho epistemolgico apresentadas em Portugal nos anos 80 por Jos Madureira Pinto (1984; 1995a; 1985b), por Ral Iturra (1987) e por Boaventura Sousa Santos (1987; 1989), j sistematizadas num outro trabalho (Caria, 1999a). Lembramos que Madureira Pinto, opondo-se ao normativismo do mtodo, concebia a existncia de uma relao social de investigao
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no quadro da qual propunha uma teoria auxiliar das metodologias de investigao que permitisse explicar e objectivar as condies sociais da observao/inquirio do social. Ral Iturra, criticando o teoricismo, concebia a etnografia como uma experincia de vida feita de momentos e episdios significativos, crticos e marcantes na biografia do investigador, experincias que seriam determinantes no modo como se constri a teoria social. Boaventura Santos, situando os limites e as virtualidades de uma cincia ps-moderna, reafirmava a actualidade da ruptura epistemolgica com o senso comum para o desenvolvimento da teoria social, desde que subordinada preocupao de operar, ainda, uma segunda ruptura com a primeira ruptura que permitisse promover um senso comum esclarecido, potenciador de uma cincia implicada no social. Acrescentaremos que pretender interrogar a etnografia investigao supe actuar numa zona de como metodologia de
instituda (os produtos cientficos) e os seus usos contextuais em diferentes disciplinas, convocando a cultura e identidade cientfico-disciplinares para uma zona de transaco comum, por vezes "impura" e heterognea. Neste quadro, supomos estar a promover na cultura cientfica dos investigadores a passagem da conscincia prtica a uma conscincia discursiva contextualizada, permitindo "culturalizar" a teoria social e desmistificar as concepes idealizadas do que a prtica/aco em Cincias Sociais (Caria, 2000c; Nunes; 2000; Bergeron, 2000). Uma tarefa que pode ser entendida como um risco ou um perigo para a institucionalizao dos diferentes campos/disciplinas cientficos(as) que estudam o social mas que, para ns, vista como uma oportunidade de conhecimento sobre a cincia real. a eventual conscincia dos perigos dos lugares de fronteira que, pensamos, justifica o continuado silenciamento ou a parcial ocultao da reflexo sobre os processos de construo cognitiva e cultural dos objectos cientficos de estudo das Cincias Sociais, que seria suposto ocorrer na produo escrita e no debate legtimos sobre as metodologias de investigao. Da a oportunidade deste livro, para divulgar a perspectiva daqueles que pretendem "iluminar" os saberes e as atitudes tcitos e "reais" da cincia social, em contexto prprio de aco.
No entanto, convir no confundir os dois planos: o da construo e o da produo cientficas. Aquilo que nos ocupa neste livro principalmente o problema da construo e no o da produo do conhecimento, pois no pretendemos desenvolver e analisar os processos sociais que permitem a transformao dos conhecimentos accionados nos contextos de aco cientficos em produtos instituintes e legitimadores da aco colectiva nos campos das Cincias Sociais. Apesar disto, os captulos 2 e 3, da responsabilidade de Paulo Raposo e Elsio Estanque, so aqueles em que mais evidenciado a associao entre os processos de construo e de produo cientficas, pois trata-se das contribuies em que so mais marcantes as referncia s tradies disciplinares em Cincias Sociais.
da cincia, enquanto produto da cultura ocidental. A etnografia ao ser utilizada como estratgia de investigao pelas diferentes Cincias Sociais torna-se, hoje, especialmente til para abordar o banal e o familiar, e o que se encontra mais prximo, permitindo identificar a diversidade cultural daquilo que aparenta ser to igual ou comum a "ns". Neste contexto, a etnografia permite ao investigador ver-se naquilo que j pensava conhecer, evidenciando o seu etnocentrismo. Esta faceta da etnografia ser tanto mais desenvolvida quanto os grupos sociais em estudo se debaterem com a interrogao de quererem saber como lidar com "outros", isto , de se quererem pensar na relao com outros (cf. Lima, 1997). A questo complexa e obriga-nos a acrescentar uma outra definio, tomando posio noutra linha de debate. O etngrafo, nas Cincias Sociais, ao pretender compreender, tem para isso que "viver dentro" do contexto em anlise, apesar de no se transformar num autctone. Assim, a etnografia supe um perodo prolongado de permanncia no terreno, cuja vivncia materializada no dirio de campo, e em que o instrumento principal de recolha de dados a prpria pessoa do investigador, atravs de um procedimento geralmente designado por observao participante. O contributo de Lus Fernandes (captulo 1), ao descrever em pormenor a organizao do seu dirio, bem elucidativo das diversas facetas e tipos de registo, mostrando como o etngrafo objecto de processos de socializao local que o obrigam a evidenciar as suas inseguranas e perplexidades e a relativizar as suas origens culturais. Ele est dentro para compreender, mas ao mesmo tempo tem que estar fora para racionalizar a experincia e poder construir um objecto cientfico legtimo. Tem que se pensar a si prprio na relao com o outro. Ao discutirmos estas definies, breves e polmicas, estamos mais uma vez a conceber a etnografia como um lugar de fronteira: o estar dentro e estar fora dos contextos de aco em anlise, e, simultaneamente, convocar os autctones para se posicionarem do mesmo modo. O "dentro e fora" fonte de conhecimento acrescido porque provoca uma tenso e uma ambiguidade na relao social de investigao que convoca o investigador a reflectir sobre o inesperado. O investigador um actor social que reconhecido como competente nos "saberes-pensar de fora", mas, ao mesmo tempo, mostra ser incompetente nos "saberes-fazer de dentro". nesta fronteira, que
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designaria de intercultural (entre a cincia e o saber comum), que se pode construir a reflexividade da cidadania e a reflexividade que desenvolve uma cincia da cincia. o compromisso da etnografia com o intercultural torna-a fiel s suas origens, filiadas na tradio antropolgica, de relativizao da cultura do homem ocidental e europeu. Alis, devido a esta filiao que no entendemos o posicionamento daqueles que defendem para a cincia uma imparcialidade explicativa (no confundir com neutralidade observacional), pois o lugar de fronteira que sustentamos no vazio de valores e interesse pelo mundo (Caria, 2000c). O nosso posicionamento no poltico concerteza, porque no quer diluir o espao de autonomia relativa da cincia, mas inevitavelmente crtico e parcial, de um modo consciente, naquilo que distingue a cincia do senso comum menos elaborado: sabe como conhece porque no se limita a reconhecer e a legitimar o banal, o imposto e o oficial, mesmo aquele que aparenta ser "alternativo", dado interrogar a sua justia organizacional (cf. Caria, 1999c).
estudo. So os casos das estratgias de investigao que se centram na construo identitria, por via da narratividade de um trajecto de vida (histrias de vida) e na construo da inovao social, por via da experimentao contextualizada (investigao-aco). No entanto, a etnografia tem uma especificidade que a coloca para alm destas afinidades metodolgicas, resultado do facto de se centrar numa anlise holstica do social, tantas vezes enfatizada nos manuais, atravs das noes terico-empricas de "contexto" e "cultura" (cf. Caria, 1997): uma anlise centrada na construo social do quotidiano partilhado em rotinas de aco e negociado em consensos e conflitos sobre regras de significao e de uso legtimo dos recursos e no em qualquer verso "essencialista" e/ou extica de cultura. Esta especificidade da etnografia parece, hoje, requerer alguma pormenorizao porque, a realidade multicultural das sociedades complexas que desenvolveram processos endgenos de modernizao, implica que a preocupao pela "totalidade" esteja reduzida anlise de actividades colectivas particulares que correspondem a segmentaes institucionalizadas do espao-tempo societal. Estamos longe pois de pretender conter "o todo" da vida quotidiana dos grupos sociais em estudo. Uma outra especificidade da etnografia est no posicionamento perifrico do investigador relativamente s dinmicas de interaco social. O quotidiano apreendido por referncia central racionalidade contextual dos "nativos" e no s representaes sociais ou s racionalidades importadas do exterior ou situacionalmente accionadas em entrevistas pontuais (mesmo que no estruturadas) (Caria, 1995b). No confundimos posio perifrica com maior ou menor participao no contexto em estudo, pois no pensamos que os dois elementos grau de participao e grau de centralidade sejam equivalentes. A centralidade do investigador no terreno remete para uma dinmica social em que este, ao esquecer ou dissimular a sua incompetncia nos "saberes-fazer de dentro", se torna, quando est presente, o plo central da aco quotidiana, no chegando a banalizar a sua presena. A contribuio de Carlos M. Silva (captulo 9) bem elucidativa das consequncias dos diferentes posicionamento do investigador em diferentes terrenos, sobre a construo do conhecimento cientfico.
Pensamos que a etnografia tem em comum com as histrias de vida e com a investigao-aco o associar a produo de conhecimentos sobre o real a efeitos formativos sobre os actores sociais em estudo (Caria, 1995a). De facto, o etngrafo nas Cincias Sociais no se limita a observar, a agir e a ouvir, faz, alm disso, perguntas adequadas e pertinentes ao contexto, ainda que estas no sejam as que os autctones verbalizam no quotidiano sobre o seu "ns". O investigador faz os "nativos" pensarem e verbalizarem sentidos e deterem-se sobre aspectos das suas vivncias com os "outros" que, inevitavelmente, interrogam a sua identidade social e permitem estimular a sua reflexividade enquanto cidados. So estas interrogaes e reflexes, associadas, que nos permitem dizer que poderemos encontrar efeitos de formao na investigao etnogrfica (Caria, 1999a). Neste quadro, poderemos afirmar que a produo de conhecimentos sobre o real, permitida pela etnografia, no se destina a encontrar regularidades ou mudanas sociais dos quais os actores em estudo so inconscientes. A etnografia valida as construes tericas que operam como traduo, num plano mais abstracto e geral, das construes simblicas localistas e imediatas da cultura "nativa", correspondentes conscincia prtica e discursiva dos autctones sobre as suas condies sociais de existncia. Isto tem como consequncia o facto da validao da construo tericoetnogrfica no resultar da simples constatao e verificao factuais. A etnografia constri-se na desejvel articulao entre os sistemas de significao e de aco "nativos" (o "emic") e os sistemas de significao e aco cientfico-sociais (o "etic") (cf. Batalha, 1998). Isto , depende de formas de reconhecimento locais de que as explicaes cientficas encontradas so plausveis, porque traduzem, parcialmente noutra linguagem e por resposta a problemas que no so s os do quotidiano, um sentido comum mais elaborado. No entanto, importa ter algumas precaues, a saber: (1) no limitar a teoria social ao contextual-etnogrfico, dado no se pretender excluir ou condenar a teorizao conceptual-abstracta e/ou filosfico-ideolgica, como discurso transcultural de filiao ocidental, mas apenas evidenciar a sua validade e objectividade;
(2) no esquecer que o "etic" se inscreve sempre num "emic" cientfico (ocidental e/ou erudito, desejavelmente relativizado) e que o "emic" nativo pode desenvolver um "etic", racionalizador da "cultura nativa"; (3) no tomar o que se diz pensar e fazer (conscincia discursiva dos "nativos") como equivalente ao que se pensa e se faz colectivamente (conscincia prtica dos "nativos"), e que pode ser objecto de observao exterior; (4) no confundir a reflexividade em cincia com a construo de textos interpretativos centrados numa hiperexposio do eu, com valor teraputico e/ou esttico. A validade da teoria social desenvolvida atravs da etnografia est directamente associada no s relao entre teoria e factos mas tambm, e principalmente, ao desenvolvimento da intersubjectividade. No entanto, entendemos que a conceptualizao da investigao como construo intersubjectiva carece de uma maior pormenorizao factual e uma maior especificao conceptual, pois trata-se de conceber as relaes entre teoria e reflexividade social, incluindo a afirmao da cidadania dos actores sociais em estudo (Caria, 1999a). Os factos depois de conquistados pela teoria no so s constatados e verificados empiricamente: os factos etnogrficos so traduzidos pela reflexividade intercultural no quadro da relao social de investigao. Esta reflexividade desenvolvida apenas na medida em que se intercepta e se faz coexistir a reflexividade institucional sobre a cultura local com a reflexividade interactiva sobre a teoria social, protagonizadas tanto pelo investigador como cidado e cientista como pelo actores sociais em estudo enquanto cidados e potenciais utilizadores contextuais da cincia (cf. Caria, 2001). Neste contexto, fica claro que a reflexividade intercultural no a simples comunicao e dilogo entre as diferenas culturais. De facto, a etnografia em Cincias Sociais pode fazer reconhecer e dar visibilidade pblica e social a realidades multiculturais e identitrias, de forma a contrariar as prticas monoculturais dominantes de discriminao scio-cultural e os preconceitos racistas, classistas ou sexistas. Mas isso no chega para que a etnografia opere na fronteira intercultural.
Para operar na fronteira intercultural necessrio actuar sobre a estrutura da relao social de investigao (RSI) a dois nveis: (1) no plano da informalizao da RSI, para facilitar as relaes inter-pessoais e as trocas de informaes e linguagens entre diferentes no quotidiano de vivncias comuns, potenciadoras da diluio dos papis e estatutos sociais desiguais e da atenuao dos constrangimentos institucionais; (2) no plano da "culturalizao" da RSI, para facilitar a relativizao dos etnocentrismos em presena, as trocas formativas e as hetero-socializaes, potenciadoras da diluio de desigualdades de poder simblico e cultural e da valorizao do uso "impuro" e heterogneo da cincia pelo senso comum (Caria, 1999a; 2000a). A reflexo sobre as metodologias etnogrficas de investigao enfatizam normalmente o plano da informalizao da RSI (a empatia, a cumplicidade, o sentido contextual da linguagem, o -vontade na relao interpessoal, e a percepo de sentimentos e atitudes comuns) e esquececem ou desvalorizam a vertente da "culturalizao". Quando assim estamos a usar a cincia para ampliar e amplificar a multiculturalidade e no, garantidamente, a actuar sobre as desigualdades de poder que permitem falar na cincia como uma reflexividade intercultural. De facto, por um lado, a culturalizao da RSI no fcil de legitimar como produto porque vai questionar o poder simblico das culturas cientfico-disciplinares das Cincias Sociais. Por outro lado, trata-se de uma vertente da metodologia que nem sempre realizvel e possvel, porque podemos estar em presena de culturas e grupos sociais que, pela posio social que ocupam na estrutura de desigualdades de poder, no desenvolvem continuadamente uma dupla hermenutica (cf. Giddens, 1996). Isto , so objectos que reflectem e que, nesse acto, integram na aco quotidiana os produtos cientficos no desenvolvimento da aco social. As contribuies apresentadas por Elsio Estanque (captulo 3), por Manuela Ribeiro (captulo 5), por Manuela Ferreira (captulo 8), por Lus S. Pereira (captulo 6) e por Amlia Frazo-Moreira (captulo 7) so bem elucidativas dos "mal-entendidos" resultantes da familiaridade/distncia dos grupos sociais dominados sobre o uso e funes da cincia social e como tal se torna objecto da reflexividade social dos diferentes interlocutores do investigador.
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Os recentes trabalhos de Almeida (1997) e de Cardeira da Silva (1999) parecem-nos ser dois bons exemplos do que j havamos encontrado na nossa investigao com professores em Portugal, a saber: existem nos contextos sociais estudados categorias particulares de actores sociais que se tornam "aliados scio-cognitivos" da investigao (no confundir com os informantes privilegiados no plano da informalizao da RSI), em virtude de haver uma estreita associao (evidenciada em menor ou maior grau e com maior ou menor "representatividade") entre a reflexividade problemtico-cientfico do investigador que interroga o objecto da investigao e a reflexividade problemticoinstitucional do cidado que interroga as origens e consequncias dos dilemas e ambiguidades do seu quotidiano, atravs da sua diferena cultural. esta categoria particular de "aliados" que exprime a possibilidade da cincia social, ainda no seu campo de aco prprio, ser um espao reflexivo que intercepta e transforma as relaes entre culturas (a cientfica e a do saber comum): o efeito hetero-formativo da reflexo intercultural, potenciado pela culturalizao da relao social de investigao. Esta possibilidade, de pensar a relao com o contexto estudado para alm da construo da informalidade, est evidenciada nos textos que apresentamos, atravs do uso das expresses "interveno negativa", "envolvncia" e "cooperao", e outras com sentidos anlogos.
4. As experincias etnogrficas
Tomando por base as experincias etnogrficas descritas nos vrios captulos, isto , a descrio do pensamento dos investigadores sobre o modo como o relacional e o sciocognitivo pode ser transposto para uma linguagem e registo cientficos, organizmos este livro por referncia a duas dimenses que consideramos essenciais para a expresso da reflexo intercultural em cincia. Cada uma destas dimenses corresponde, grosso modo, a uma parte do livro. Na
primeira parte (a construo scio-cognitiva) est enfatizada a reflexividade interactiva dos investigadores na sua "comunidade" (cientfica) de pertena e/ou referncia, facilitada pelos dados que exprimem a reflexividade institucional dos autctones sobre a sua diferena cultural. Assim encontramos como elementos mais relevantes desta dimenso:
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(1) as referncias auto-biogrficas, os valores e a caracterizao das relaes de implicao com o objecto em estudo; (2) as identidades (i)legtimas e as tomadas de posio face cultura disciplinarcientfica; (3) os conflitos scio-cognitivos, desencadeados pelos efeitos inesperados na relao entre teoria e reflexividade social, mediados pela escrita do dirio de campo e pelo debate na tradio terico-disciplinar. Na segunda parte do livro (a construo scio-terica) est enfatizada a reflexividade institucional dos investigadores no uso da teoria social para objectivarem a interaco no campo, facilitada pelos autctones pelo uso contextual da cincia na sua reflexividade interactiva. Assim encontramos como elementos mais relevantes desta dimenso: (1) a reconstextualizao da teoria social (como teoria auxiliar) para entender as expectativas, as imagens e as representaes dos "nativos" sobre a presena de um investigador em Cincias Sociais; (2) a identificao e explicao das assimetrias na relao social de investigao, limitadoras das trocas e da construo de um sentido comum contextual; (3) as estratgias de aco capazes de actuar sobre as estruturas de desigualdade de modo a criar outros efeitos de sentido, no to limitadas pelas relaes de poder. Pensamos que a primeira dimenso do trabalho etnogrfico permite identificar e
pormenorizar o sentido interpretativo, de natureza terico-epistemolgica, da etnografia em Cincias Sociais, enquanto a segunda dimenso permite identificar e pormenorizar o sentido estratgico, de natureza terico-tcnica (cf. Caria, 2001). Sobre a sequncia dos captulos, poderemos assinalar que: (1) cada uma partes do livro iniciada com captulos que pem em relevo as notas de campo e o seu papel reflexivo e racionalizador; (2) de seguida, na primeira parte, surgem os dois captulos que, de
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incio, esto mais relacionados com identidades e culturas disciplinares, ainda que tambm desenvolvam outros aspectos; (3) no final da primeira parte, surge o captulo que d mais nfase aos aspectos relacionados com os valores e as construes e conflitos scio-cognitivos; (4) na segunda parte, depois do primeiro captulo, surgem outros que, por ordem de distncia cultural e geogrfica relativamente a Portugal e aos grupos sociais dominantes, tratam mais especificamente a interaco social no campo com os sujeitos/objectos da investigao.
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