O Menino Que Fui Volta Sempre em Dezembro

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O menino que fui volta sempre em dezembro No sei se dezembro mexe com vocs como mexe comigo.

Provavelmente no. Amar dezembro como eu o amo, esper-lo como eu o espero, senti-lo como eu o sinto, reconheo que parece coisa de criana. E . s vezes, o menino que eu fui h tanto tempo volta e assume a direo do homem maduro que eu j deveria ser. Em dezembro o menino sempre vem. Vem e altera minha vida. Logo nos primeiros dias do ms, j acordo diferente. As notcias do rdio, da TV e do jornal so aquelas de sempre: doena, misria, fome, tragdia, desgraa, destruio. H quem mata por nada. H gente humilhada, gente ofendida, gente espezinhada, gente ressentida. Pessoas que acham o otimismo um escrnio e consideram a felicidade s uma palavra longa, sem nenhum significado. Gente que sofre em dezembro tanto quanto sofre todo ms, de janeiro a novembro. Eu sei. Mas em dezembro eu sempre acredito que nem tudo esta perdido, que alguma coisa pode mudar. Defeito? Acho que sim. Ingenuidade? Creio que . E tenho certeza de que herdei os dois, o defeito e a ingenuidade, de minha me. Quando chegava dezembro, minha me esquecia as mgoas, fingia no estar sentindo mais a sinusite que atormentava os seus dias e concentrava-se toda nos preparativos para o Natal. O Natal, para ela, eram os presentes, a rvore, os enfeites, a ceia, as nozes, o doce de semente de papoula cuja receita, uma preciosidade, tinha atravessado o mar e chegado com a famlia ao Brasil. O Natal era isso tudo e, mais importante, eram os filhos reunidos todos em volta da mesa, tentando esconder as lgrimas trazidas pela simples, mas comovente Noite Feliz. Chorvamos todos, no Natal, e sabamos muito bem por qu. Chorvamos porque pressentamos que um dia nos faltaria at aquele raro momento de comunho, aquele instante nico no ano, fruto da tenacidade daquela mulher que, chorando mais do que todos ns, dava graas a Deus por ter conseguido de novo, pelo menos por uma noite, colar os estilhaos de sua famlia. Ela procurava nos ensinar, Natal aps Natal, que tnhamos nascido para viver juntos. E ns sabamos que passados aqueles instantes mgicos, voltaramos a nos estranhar, a nos maldizer, a nos afastar. Sabamos que, um dia, no pousariam mais sobre ns aqueles olhos azuis, que no nos reuniramos mais sob o irresistvel apelo daquela doce voz. Minha me amava dezembro porque dezembro era o ms do Natal e porque acreditava que, na poca do Natal, as pessoas se tornavam melhores e os milagres se tornavam possveis. De janeiro a novembro, pedir-lhe algo que no pudesse dar era deix-la triste. Em dezembro, era deix-la arrasada. Ela sempre achou, at o fim, que no ms do nascimento de Jesus, no se devia negar nada a ningum. Conhecendo essa fraqueza do seu corao, eu lhe pedi uma vez, num longnquo dezembro, que ela me trouxesse do centro, onde ia fazer as ltimas compras para o Natal, um almanaque de histrias em quadrinhos. Foi pura maldade do menino que eu era. O almanaque era caro e eu no ignorava que o dinheiro para a ceia do dia 24, arrancado com tanto sacrifcio do meu pai, estava bem mais curto do que em outros anos. Foi o que ela me disse. Insisti, bati o p, chorei. Quando saiu, ela estava quase chorando tambm. Algumas horas depois, quando ela voltou e comeou a colocar os pacotes em cima da mesa, eu no lhe dei tempo nem de tomar gua. Quis logo saber se havia comprado o que eu tinha pedido. Suspirando, ela, do fundo de uma sacolinha, puxou o almanaque. S ento eu notei que suas mos e seus braos estavam feridos. Baixando os olhos, vi tambm dois machucados enormes nos joelhos. Perguntei o que tinha acontecido e minha me me contou que, quando o bonde tomado por ela na Praa da

rvore se ps em movimento, meu almanaque havia deslizado do seu colo e cado na rua. Prevendo que eu no ia acreditar naquilo, ela, desesperada, saltou do bonde e estatelou-se com os pacotes no cho. Por pouco no foi atropelada por um carro. O motorista, furioso, tinha xingado minha me de louca. Vendo-a desamassar cuidadosamente os pacotes, senti que o motorista no tinha errado ao xing-la. Ela era louca, sim. Louca de amor pelos filhos, pela famlia, pelo Natal. Desde esse remoto dia, toda vez que dezembro vem eu lamento no ter herdado um pouco mais dessa saudvel loucura, um pouco mais dessa bendita ingenuidade de minha me. Gostaria de sonhar, com a mesma intensidade com que ela sonhava, gostaria de acreditar, com a mesma intensidade com que ela acreditava, que em dezembro os milagres so possveis, que em dezembro tudo pode mudar. Raul Drewnick. (06/04/1994).

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