ARAP, Fauzi. A Paixão Segundo G.H
ARAP, Fauzi. A Paixão Segundo G.H
ARAP, Fauzi. A Paixão Segundo G.H
Cenrios
um canto do palco, vemos a mesada cozinha, onde a personagem toma seu caf, na primeira cena. Mas logo mesa e objetos devero desaparecer, quando a ao se transfere para o quarto da empregada, onde acontece a maior parte da histria. O quarto poder dispor de paredes mveis, capazesde ilustrar a viagem alucinatria da personagem. E o armrio do quarto, com sua barata invisvel, tambm dever ser mais que realista, permitindo assim algum truque ou revelao que acompanhe plasticamente o desenrolar dos fatos, ou da "ausncia de fatos". Durante o processo vivido por G. H., a luz dever pontuar toda a viagem. A certa altura, poder revelar, ao longe, o deserto e os escombros que formam o horizonte da viso que a personagem tem da janela do quarto, e que emoldura parte de sua experincia.
FALAR E DESISTE. POR ALGUNS MOMENTOS ELA ENCARA A PLATIA E FINALMENTE SE DECIDE.
G. H. ... estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender, tentando dar a algum o que vivi e no sei a quem, mas no quero ficar com o que vivi, eu no sei o que fazer do que vivi, eu tenho medo dessadesorganizao profunda. No quero me confirmar no que vivi, na confirmao de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que no tenho capacidade para outro. Eu no compreendo o que vi. E nem mesmo sei se vi, j que meus olhos acabaram no se diferenciando da coisa vista. S por um timo experimentei a morte, a fina morte que me fez manusear o proibido tecido da vida, e durante as horas de perdio eu tive a coragem de no compor nem organizar. E tive a coragem sobretudo, de no prever. Minhas previses sempre tiveram o tamanho de meus cuidados, elas sempre me fechavam o mundo. At que por
Cena 1 - A P cura ro
A LUZ REVELA UMA MULHER INQUIETA, CUJAS INICIAIS sAo G. H. ELA PARECE BUSCAR O QUE DIZER, PENSA EM
horas,eu desisti.E por Deus, tive o que eu no gostaria. Eu vi. Sei que vi porque no dei ao que vi o meu sentido. Sei que vi - porque no enten-
I.
A Paixo Segundo G H
j ~; ".' ?j
~-.
do. Seique vi - porque para nada serveo que vi e agoravou saberreconhecerna facecomum de algumaspessoas que elas esqueceram.E nem sabemmais que esqueceram que esqueceram o Como que se explica que o meu maior medo sejaexatamenteo de ir vivendo o que for sendo?Como que seexplica que eu no tolere ver, s porque a vida no o que eu pensava e sim outra - como se anteseu tivessesabido o queera? E porque que ver uma tal desorganizao? E uma desiluso. Mas desiluso de qu?... Talvezdesilusosejao medo de no pertencermais a um sistema. At agoraviver eraj ter uma idia de pessoae nessapessoaorganizada eu me encarnava...e nem ao menossentia o grandeesforode construoque era viver. Ontem, no entanto,
que vi. O que vi arrebenta com a minha vida diria. E eu vou ter que ter a coragem de usar um corao desprotegido e ir falando assim... para o nadae para ningum... como uma criana pensapara o nada. E correr o risco. Serpreciso coragempara dizer e me arriscar enorme surpresaque vou sentir com a pobrezada coisa dita. E eu vou ter logo de acrescentar: No! No isso, no bem isso! Mas preciso tambm no ter medo do ridculo, eu que semprepreferi o menos ao mais tambm por medo do ridculo. Que eu tenha coragemde resistir tentao de inventar uma forma, e a coragemde deixar que essa forma se forme sozinhacpmo uma crostaque por si mesmaseendurece,a nebulosa de fogo que se esfriaem terra. Vou criar o que me aconteceu.S porque
j
;
sinais.E falar nessa linguagem sonmbula que seeu estivesse acordada serialinguagem. no
Os sinais de telgrafo. O mundo eriado de antenas,e eu captando o sinal. Essacoisasobrenatural que viver. O viver que eu havia domesticadopara torn-lo familiar.
I
I
- queseido resto?
O restono existiu. Quem sabenada existiu?! Talvez o que me tenha acontecido seja uma compreenso e que, para eu ser verdadeira, tenho que continuar a no entend-Ia. Todacompreenso sbita se parecemuito com umaagudaincompreenso. No. Toda compreenso~bita fin~mente a revelaode uma :guda Incompreens~o. Tod? momento de achar e um perder-sea Si prprio. Talvez me tenha
I
, i
I '
~' .,;
j;~?
1;
!
:I
acontecido uma compreenso total quanto to umaignorncia, delaeuvenhaa sairintocada e e inocente comoantes.
Escuta,vou ter que falar porque no sei o que fazerde ter vivido. Pior ainda: no quero o
to! Tambm outroseu noexigiamaisque dos isso. Alm do maisa psicologia nuncame interessou. feito escultura Ter duranteum tempo,
tambm me dava um passado um presente,o e que fazia com que os outros sesituassem.
7
,c
sala preta
r
Foi ontem. Eram quasedez horas da manh, e h muito tempo meu apartamento no me pertencia tanto. No dia anterior, a empregada se despedira.Da mesa onde me demorei porque tinha tempo, eu olhava em torno enquanto meus dedos arredondavamo miolo do po. O mundo era um lugar. Que me servia para viver: no mundo eu podia ficar ali colando uma bolinha de miolo na outra, e assim com prazerir formando uma pirmide. No ter empregada,ia me dar o tipo de atividade que eu queria: o de arrumar. Sempregosteide arrumar, suponho que estaseja a minha nica vocao. Ordenando ascoisas,eu crio e entendo ao mesmo tempo. Na semanapassadaeu me diverti demais, freqentei demais, tive por demais de - tudo o que quis, e desejava agoraaqueledia exatamente como ontem ele seprometia: pesadoe bom e vazio. O prazerde arrumar a casame era to grande,que ainda sentada,eu j comearaa ter prazerno mero planejar.Comeariapelo fim do apartamento: o quarto da empregadadevia estarimundo, cheio de trapos,malasvelhas,jornais antigos e papeisde embrulho. Levantei-meenfim da mesado caf, essa mulher... e atravessei cozinha que d para a a reade servio.Ali, na rea,me encostei murada para acabarde fumar. Olhei pra baixo: treze andarescaiam do edifcio. Eu no sabiaque tudo aquilo j fazia parte do que ia acontecer. O bojo do edifcio era como uma usina. A miniatura da grandezade um panorama de gargantase canyons.Eu olhava a vista, como seestivesseno pico de uma montanha, com o mesmo olhar inexpressivo minhas fotografias.Eu de via o que aquilo dizia: aquilo no dizia nada. E eu recebiacom atenoesse nada.Aquilo tudo era de uma riqueza inanimada que lembrava a da natureza:tambm ali, porque no?tambm ali poder-se-iapesquisarurnio e dali poderia jorrar petrleo. Jogueio cigarro aceso para baixo, e recuei, esperandoque nenhum vizinho me associasse ao gesto proibido pela portaria. Depois, com uidado, avancei apenasa cabeae olhei: no podia adivinhar sequeronde o cigarro cara, o despenhadeiroo engolira em silncio. Depois me dirigi ao corredor escuroque finaliza o apartamento, onde na sombra, duas portas se defrontam: a da sadade servio e a do quarto de empregada. Abri a porta. H cercade seismeses o tempo que ela ficara comigo - eu no entrava ali. Esperava encontrar escurides, preparame ra para ter que abrir a janela e limpar com ar frescoo escuro mofado. O que eu no contara que ela, sem me dizer nada, tivessearrumado o quarto suamaneira, e numa ousadiade proprietria o tivesseespoliado de sua funo de depsito. Em vez da penumbra confusa,esbarrei na viso de um quarto que era um quadriltero de branca luz. (ELA FRANZE OS OLHOS, E TENTA PROTEG~-LOS COM UMA DAS MOS) Dois dos seus ngulos eram ligeiramente mais abertos,e embora fosse essa ~uarealidadematerial, ela me vinha como a se fosseminha viso que o deformasse. Durante seismeses sol permanentehavia empenado o o guardaroupa de pinho, e desnudava mais em branco ainda asparedes caiadas. foi numa deE Iasque vi o inesperadomural. Na paredecontgua porta - e por issoeu ainda no tinha visto - estavadesenhado,quaseem tamanho natural, o contorno a carvo de um homem nu, de uma mulher nua, e de um co, que era mais nu do que um co.Nos corposno estava desenhado o que a nudez revela,a nudez vinha apenas da ausncia tudo o que cobre. Eram os conde tornos de uma nudez vazia. O trao era grosso, feito de ponta quebradade carvo. E eu sorri... constrangida.Eu estavaprocurando sorrir. A lembranada empregadaausenteme coagia.Quis me lembrar de seu rosto e no consegui- de tal modo ela acabara me de excluir de minha prpria casa e olhando aquele desenho,de repente me ocorria que ela me odiara. O tempo todo, me odiara! De sbito, deixei vir a mim uma sensaoque durante aquelesseismeses,por neglignciaou desinteresse, no me deixarater: a do silenciosodio eu daquela mulher. O que me surpreendia que era uma espcie dio isento, o pior dio: o de
I"
, ..
indiferente. No um dio que me individualizasse apenasa falta de misericrdia. mas Havia anos que eu s era julgada pelos meusparese pelo meu prprio ambiente, que em suma,eram feitos de mim e para mim mesma. A empregada, Janair, era a primeira pessoa
gar nos ombros - o qu?.. O que, Santo Deus? No suportavacarregaro qu? Eu ainda no sabiaque j estava havendo os primeiros sinaisem mim do desabamento de cavernas subterrneas, que ruam sob o pesode camadas arqueolgicas estratificadas- e o peso
~'
I
r~
sala preta
Nada, no foi nada! procurei me apaziguar. Eu no esperava que numa casaminuciosamentedesinfetadacontra o meu nojo por baratas,aquele quarto tivesseescapado. No fora eu quem repelira o quarto, como havia sentido porta. O quarto, com suabaratasecreta, que me repelira. E agoraeu entendia que a baratae Janair, a empregada,eram os verdadeiroshabitantes daquele lugar. No, eu no arrumaria nada- sehavia baratas,no. A nova empregada que dedicasse primeiro dia de servioa... a... seu (ELA PENSA EM SAIR) Ao tentar a sada,tropecei entre o p da cama e o guarda-roupa- e foi o que me revelou que eu estavacom medo. Aquelas figuras moespalmada vigias de eram entrada de um... sarcfago.Do sarcfago,sim! E me ocorreu que eram "eles",eles,os do sarcfago que me impediam de sair. Paraconseguir, eu teria que fechar a porta! Minha mo rpida quis mover-separa fech-Iae abrir caminho mas recuou de novo. que l dentro a barata se movera. Fiquei quieta. Eu tinha agorauma sensao irde remedivel.Eu sabiaque tinha de admitir o perigo em que eu estava, mesmoconscientede que era loucura acreditar num perigo inexistente. Mas eu tinha que acreditar em mim - a vida
relutante foi aparecendo. chegarquasetoda At tona da abertura do armrio. Era parda, era hesitantecomo se fosseenorme de peso.Estava agora quasetoda visvel. Abaixei os olhos, tentando esconderda barata a astcia que me tomara - o coraome batia quasecomo numa alegria.O medo me aprofundavatoda. Voltada para dentro de mim, como um cegoauscultaa prpria ateno,eu estremecide extremo gozo, atentando grandezade um instinto que era ruim, total e infinitamente doce - como se enfim eu experimentasse, em mim mesma,uma e grandezamaior que eu. Eu me embriagavapela primeira vez de um dio lmpido, e me embriagavacomo desejo, justificadoou no,dematar. Toda uma vida de ateno - h quinze sculoseu no lutava, h quinze sculoseu no matava,h quinze sculoseu no morria - toda uma vida de atenoacuadareunia-seagoraem mim e batia como um sino mudo cujas vibraes eu no precisavaouvir, eu as reconhecia. Como se pela primeira vez enfim eu estivesse ao nvel da Natureza. Sem nenhum pudor, comovida com minha entrega, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu estava sendo a desconhecidaque eu era - s que desconhecer-me no me impediria mais, a verdade j me ultrapassara:levantei a mo como para um juramento, e num s golpe fechei a porta sobreo corpo meio emergido da barata. Com os olhos fechadoseu tremia de jbilo. Ter matado era to maior que eu, era da altura daquele quarto indelimitado. Ter matado abria a securadasareiasdo quarto at a umidade, enfim, como se eu tivessecavadoe cavado com dedosduros e vidos at encontrar em mim um fio bebvel de vida que era o de uma ~ morte. Abri devagaros olhos, em doura agora, em gratido e timidez, num pudor de glria. E vi a metadedo corpo da baratapara fora da porta. Mas viva! . Hesitei em compreender,foi s aospoucos que percebi que eu no havia empurrado a porta com bastantefora. Havia prendido, sim, a barata,masela continuavaviva. Faltavaainda,
toda eu estiveracomo todo mundo em perigo masagora para poder sair, eu tinha a responsabilidadealucinada de ter de saberdisso. Eu recuara o dorso para trs como, se mesmo na sua extrema lentido, a barata pudessedar um bote - eu j havia visto baratas que de sbito voam, a fauna alada.Fiquei imvel, calculando, atenta, eu estavatoda atenta. Em mim um sentimento de grande esperahavia crescido,e uma resignao: que nestaes peraatentaeu reconheciatodasasminhas esperas anteriores, eu reconheciaa atenode que tambm antesvivera, a atenoque nunca me abandonae que em ltima anlisetalvez sejaa coisa mais colada minha vida - quem sabe aquelaatenono era a minha prpria vida? Foi ento que a barata comeou a emergir do fundo. Antes o tremor anunciante das antenas.Depois, atrs dos fios secos,o corpo
\.
A Paixo Segundo H. G.
ento, um golpe final. Ergui a mo bem alto como se meu corpo todo, junto com o golpe do brao, tambm fosse cair em peso sobre a porta do guarda-roupa.Mas foi ento... foi ento que vi a carada barata. Era uma cara sem contorno. As antenas saiamem bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodesmexiam-se lentos e secos.Seusolhos pretosfacetadosolhavam. Era uma barata to velhacomo um peixe fossilizado. Era uma barata to velha como salamandrase quimeras e grifos e leviats.Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: l est;1va boca real. Eu nuna catinha visto a boca de uma barata.Eu na verdade,eu nunca tinha mesmo visto uma barata. S tivera repugnnciapela sua antiga e sempre presente existncia- Mas nunca a defrontara, nem mesmoem pensamento.E eis que eu descobria que, apesarde compacta, ela formada decascas cascas e pardas,finas como asde uma cebola,como se cada uma pudesse levantaser dapelaunha, e no entanto sempreaparece mais uma casca, mais uma. Talvez as cascas e fossem asasas, masento ela devia ser feita de camadas e camadas fInas de asas comprimidas at formar aquele corpo compacto.Olhei-a com aquelasua bocae seusolhos: pareciauma mulata morte. Mas os olhos eram radiosose negros.Olhos de noiva.Cada olho em si mesmopareciauma barata. O olho franjado, escuro,vivo e desempoeirado.E o outro olho igual. Duas baratasincrustadas barata, e cada olho reproduzia a na
"
dade. Era isso? era isso,ento! que na barata viva eu descobriraa identidade de minha vida mais profunda. Eu senti com susto e nojo que "eu ser" vem de uma fonte muito anterior humana, e com horror, muito maior que a humana.Abriuseem mim, .com uma lentido de portas de pedra, abriu-seem mim a larga vida do silncio, a mesmaque estno sol parado,a mesmaque est na barata. E que sera mesmaem mim! Se eu tiver coragemde abandonar...abandonarmeus sentimentos? eu tiver coragemde abandonar Se a esperana. - Perdoaeu te contar tudo isso, mas eu no quero isso pra mim, eu no quero ser uma pessoa viva! Tenho nojo e maravilhamento por mim, lama grossalentamente brotando. Eu sei, os regulamentose asleis, preciso no esquec-los, precisono esquecer sem que regulamentose leis tambm no haver a ordem, precisono esquecer defend-losseme pre, para nos defendere para nos proteger.Mas que eu j no podia mais me amarrar.A primeira ligao j se tinha partido, e eu me despregavada lei, e mesmo intuindo que eu iria entrar no inferno da matriViV- eu rinh que ir. Eu tinha que cair na danaode minha alma. A curiosidademe consumia... Ento abri de uma s vez os olhos! E vi em cheio a vastido indelimitada do quarto, aquelequarto que vibrava em silncio, laboratrio do inferno.
barata inteira.
Ali estava eu boquiaberta diante do ser
empoeirado que me olhava- e o que eu via com um constrangimentoto penosoe to espantado e to inocente, o que eu via era a VIDA me olhando. Como chamar de oUtro modo aquilo horrvel e cru, matria prima e plasmaseco,que ali estava,enquanto eu recuavapara dentro de mim em nuseaseca,eu caindo sculose sculos, dentro de uma lama - era lama, e nem sequer lama j seca,mas lama ainda mida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentido insuportvel asrazesde minha identi,
sala preta
~'
!
te explicar?Eu estavano deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamavacomo um cntico montono e remoto chama. Eu estava sendoseduzida.E ia para essa loucura promissora. E eu sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primria vida divina, es que eu, numa experinciaque no quero nunca mais,numa experinciapelaqual peo perdo a mim mesma, eu estava saindo do MEU mundo e entrando NO MUNDO. Eu no estava mais me vendo, estava VENDO. era Toda uma civilizaoque sehavia erguido, ten-
I
,
tou indo paraum infernodevidacrua...Eu sinto quetudo isso antigoe amplo,sinto no hierglifo da barata lenta a grafia do Extremo Oriente. E nessedeserto de grandessedues, ascriaturas:eu e a barataviva. A vida, meu amor, uma grandeseduo onde tudo o que existeseseduz.Aquele quarto que estava deserto e por isso primariamente
, j
.i
moso grito em segredo inviolvel.Seeu der o grito dealarme e~tar de viva,em mudeze dureza me arrastaro, pOIS arrastamos que saempara fora do mundo possvel,o ser excepcional arrastado, o ser gritante. Tudo se resume ferozmente em nunca dar um primeiro grito - um primeiro grito desencadeia todos os outros, o primeiro grito ao nascerdesencadeia uma vida, seeu gritasseacordariamilhares de seres gritantes que iniciariam pelos telhados um coro de gritos e horror. Se eu gritassedesencadearia a existncia- a existnciade qu?A existnciado mundo.
t
I
desenho mudo da caverna. To dentro dele comonum desenhoh trezentosmil anosnuma caverna. E eis que eu cabiadentro de mim, eis que eu estava mim mesmagravadana parede.A em passagem estreitafora pela barata difcil. E terminara tambm eu, toda imunda, por desembocaratravs dela para o meu passado era o que meu contnuo presentee o meu futuro contnuo - e que hoje e sempre est na parede, e meusquinze milhes de filhas, desdeento at eu, tambm l estavam. E eu compreendi que minha vida sempre fora to continua quanto a morte. A vida to contnua que n6s a dividimos em etapas,e uma delaschamamosmorte. Eu sempreestivera em vida, pouco importa que no eu propriamente dita, no isso a que convencionei chamar de eu. Sempre estive em vida. Eu corpo neutro de barata, eu com uma vida que finalmenteno me escapa pois enfim a vejo fora de mim - eu sou a barata, eu sou minha perna, e sou meus cabelos,e sou o trecho de luz mais brancano reboco da parede- sou cada pedao infernal de mim - a vida em mim to insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os pedaoscontinuaro estremecendoe se mexendo.Sou o silncio gravado a parede,e a borboletamais antiga esvoaa me defronta: a e mesma sempre.De nascerat morrer o que de eu me chamo de humana, e nunca propriamente morrerei. A parte coisa, matria do Deus, forte demaise tinha estado esperandopara me reivindicar. Ela pode solaparuma vida: se no lhe for dada a fora dela mesma,ento ela rebenta como um dique rebenta- e vem pura, semmistura nenhuma: puramente neutra. A vida estava se vingando de mim, e a vingana consistia apenas voltar, nada mais. em Mas isso no a eternidade, a danao! (ELA QUE TINHA SE ENCOSTADO NA FIGURA DA MULHER, SE AFASTA) SantaMaria, Me de Deus, eu ofereoa minha vida em troca de no serverdadeaquele momento de ontem. A barata com a matria
brancame olhava. No sei seela me via, no sei o que uma baratav. Mas ela e eu nos olhvamos, e tambm no sei o que uma mulher v. Mas seseusolhos no me viam, a existnciadela me existia - no mundo primrio onde eu entrara, os seres existemos outros como modo de severem. E nesse mundo que eu estavaconhecendo, h vrios modos que significam ver: um olhar o outro sem v-Io, um possuir o outro, um comer o outro, um apenasestarnum canto e o outro estar ali tambm: tudo isso tambm significa ver. A barata no me via diretamente, ela estavacomigo. A barata no me via com os olhos mas com o corpo.
acontecidode dia. s6 nasminhas noites que o mundo se revolvia lentamente. S6 que, aquilo que aconteciano escuroda noite, tambm me aconteciaao mesmo tempo nas minhas pr6prias entranhas,e o meu escurono se diferenciava do escuro de fora, e de manh, ao abrir os olhos, o mundo continuava sendouma superfcie: a vida secretada noite em brevese reduzia na bocaao gostode um pesadelo some.Mas que agora a vida estavaacontecendode dia. Inegvel e paraservista.A menosque eu desviasse os olhos. E eu ainda poderia desviaros olhos. - Mas que o inferno j me tomara, meu amor, o inferno da curiosidademals.Eu j estava vendendoa minha alma humana, porque ver j comearaa me consumir em prazer, eu vendia o meu futuro, eu vendia a minha salvao,eu nos vendia. Eu nunca havia experimentadoesse choque com o momento chamado "j". Hoje me exigehoje mesmo.Eu nunca souberaantesque a hora de viver tambm no tem palavra.A hora de viver que um ininterrupto lento rangido de portas que se abrem continuamente de par em par e nunca param de seabrir... E finalmente, meu amor, sucumbi. E tornou-se um agora. Era finalmente agora. Era simplesmente agora.Era assim:o pasestava em onze horas da manh. Superficialmente como um quintal que verde,da mais delicadasuperficialidade. Verde, verde - verde um
~ sala preta
quintal. Entre mim e o verde, a gua do ar. A verde guado ar. Vejo tudo atravsde um copo cheio. Nada seouve. No restoda casa, sombra a est toda inchada. A superficialidade madura. So onze horas da manh no Brasil. agora. Trata-seexatamentede agora.Agora o tempo inchado at os limites. Onze horasno tem pro-
de tudo o que deixara atrs dos portes. E talvez eu j soubesse que, a partir dali, no haveria mais diferena entre mim e a barata. Nem aos meus prprios olhos nem aos olhos do que Deus. Eu sabiaque entrar no pecado,mas arriscado como morrer. Sentia que o meu de dentro, apesarde matria fofa e branca, tinha
I
I
fundidade. Onzehorasestcheiodasonzehorasat asbordasdo copo verde. O tempo freme como um balo parado. O ar fertilizado e arfante. At que num hino nacional a badalada dasonze e meia corte asamarrasdo balo.E de repentens todos chegaremos meio dia. Que ao serverde como agora. Acordei de repente e no compreendi onde tinha ido parar o osisverdeonde por um
no entanto foraderebentar a meurostodeprata e beleza,adeusbelezado mundo. Pois o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano. E dei meus primeiros passos nada, abandono nando minha vida e indo em direo ... Vida. A vibrao do calor era como a de um oratrio cantado,s minha parte auricular sentia... Cntico de boca fechada, som vibrando surdo como o que estpresoe contido, amm,
amm,amm. Aqueleoratrioquenoeraprece, ele no pedia nada. Era um cntico de ao de graaspelo assassinato um ser por outro de ser. Olhei pra cima, pro teto, e descobri que com o jogo de feixesde luz, ele searredondarae se transformara numa abbada. E a vastido dentro do pequeno quarto foi aumentando, o
\
\
nha esperana amor. Talvezeu acheum oude tro nome, to mais cruel a princpio, e to mais ele-mesmo.Ou talvez no ache. Por um instante, ento senti uma espcie de abalada felicidadepor todo o corpo, um horrvel mal estar feliz em que as pernasme pareciam sumir, como sempreem que eram tocadas asrazes minha identidade desconhecida. de Eu j no queria fazernada pela baratae fui me libertando de minha moralidade - embora isso me desse medo, e curiosidadetambm, e fascnio,... e medo, muito medo. Seela no estives-
If~~'*i 111
A Paixo Segundo G. H.
sepresae fossemaior que eu, com neutro praler ocupadoela me mataria. Assim como o violento neutro de sua vida admitia que eu, por noestarpresae por ser maior que ela, que eu a matasse. Essaera a espciede tranqila ferocidadeneutra do desertoonde estvamos. esEu tavaali, quieta, e sabendoo que precisar,um precisar novo e semnenhuma piedadepelo meu
E atravsdessalembrana, a estranheza do quarto se tornou reconhecvel,como matria j vivida. Eu reconheci a familiaridade de tudo. As figuras na parede,eu asreconhecicom um novo modo de olhar, e tambm reconhecia viglia da barata.A viglia dela eravida vivendo, vida vivendo, a minha prpria vida vigilante se vivendo. Eu no poderia mais me escusaralesee conhecerao mundo a lei, que mesmoinalcanvel,no pode ser infringida, e ningum pode escusar-se dizendo que no a conhece. Pior: a baratae eu no estvamos diante de uma lei a que devamosobedincia: ns duas, ns ramosa prpria lei ignorada a que obedecamos. O pecadorenovadamenteoriginal este: tenho que cumprir a minha lei que ignoro, e se eu no cumprir a minha ignorncia, estareipecando originalmente contra a vida. De vez em quando, por um leve timo, a barata mexia as antenas.E os seusolhos continuavam monotonamente a me olhar, os dois ovrios neutros e frteis. - Me, eu s fiz querer matar, masolha s o que eu quebrei: quebrei um invlucro! Matar tambm proibido porque se quebra o invlucro duro e fica-secom a vida pastosa. De dentro do invlucro est saindo um corao grossoe branco e vivo como pus, me, bendita soisentre asbaratas,agorae na hora destatua... minha morte. (ELA SE DIRIGE AO PBLICO) Eu sei,eu sei, ruim, ruim ficar semar nessa mina desabada para onde eu te trouxe sem piedade por ti - masjuro que eu vou te tirar ainda vivo daqui - nem que eu minta, nem que eu minta o que meus olhos viram. No procura me entender,faz-meapenas companhia. Ontem eu s rezavapara poder pelo menos escaparviva. E no apenas viva - como estava apenas viva aqueIa barata primariamente monstruosa- mas organizadamente viva como uma pessoa. Ento uma nuvem cobriu o sol e vi o mesmoquarto, no escuro,masapenas semluz. Ento percebique ele existiapor si mesmo,que ele no era o calor do sol. O quarto era em si
_.8I_i._.
--",
8.111:
-saia preta
mesmo.
E eleeraa altamonotoniadeumaeter-
nidade que respira.E issoamedronta,o mundo s no amedronta quando a gente passa ser o a mundo. Quem o mundo, no tem mais
misterioso fogo mansodaquiloque um plasma - foi exatamentetirando de mim todos os atributos e indo apenascom minhas entranhas vivas. E para entrar nessa coisamonstruosaque essa neutralidadeviva, eu tive que abandonar a minha organizao humana. Meu nico consolo era saberque mesmo que eu no pudesse mais sair, mesmo assimo plasma de Deus continuaria presentena minha vida. O neutro, entende?O neutro. Estou falando do elementovital que liga ascoisas.No, eu no receio que no compreendas,mas que eu me compreendamal. Seeu no me compreender,morrerei daquilo de q';1e entanto vivo. no O neutro inexplicvel e vivo, procura me entender, assimcomo o protoplasma e a protena so de um neutro vivo, e eu me sentia incapaz de serto real quanto a realidadeque estava me alcanando. Porqueeu estava sendolevadapelo demonaco. Pois o inexpressivo diablico. Sea pessoano estivercomprometida com a esperana, ela vive o demonaco.Se a pessoativer a coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla
.
:
mesmoque existena barata,o mesmonosastros, o mesmo em si prprio - o demonaco ANTES do humano. E sea pessoa essa v atualidade, ela sequeima como sevisseDeus.A vida pr-humana divina de uma atualidade que queima.
!
I.
t
f.
r .
t f
Ii
A Paixo Segundo G. H.
coisas. Frui-se a coisade que sofeitas as coisas - esta a alegria crua da magia negra. Eu ia avanando sentia a alegria do inferno. E o ine ferno no a tortura da dor! a tortura de uma alegria.Eu estavatoda nova, como uma recminiciada. Era como se antes eu estivesse estado com o paladarviciado por sal e acar,e com a alma viciada por alegriase dores - e nunca tivesse sentido o gosto primeiro. E agorasentiao gostodo nada. Velozmenteeu me desviciava, e o gosto era novo, novo como o de leite materno que s tem gosto para boca de criana. E agoraeu sei que sentir este gosto, este gosto, desse quasenada, a alegriasecreta deuses... dos e a mais primeira alegria.
sas.As vezesmeus olhos se cansavamdo lago azul que talvez no passasse um pedao de de cu e iam repousarno desertonu e ardente,que pelo menosno tinha a durezade uma cor. Ah, eu quero voltar pra casa,eu pedi, eu quero voltar! Ali eu no teria nenhum momento de escuridoe lua, s o braseiro,o vento errante, e nem um cantil de gua e nenhuma vasilha de comida. Mas quem sabeno fim de tudo eu no faria um achado? Quem sabe...um clice de ouro? (QUASE EM SEGREDO, COMO SE FOSSE LOUCA) Pois era isso!Era isso!Eu estavaprocurando... um tesouro! (AINDA EM SEGREDO E UM POUCO LOUCA) O Rio, uma cidade de ouro e pedra, cujos habitantes ao sol eram seiscentos mil mendigos. E o tesouro poderia estar numa
das brechas do cascalho, mas qual, qual delas?
Para encontr-lo eu teria que escavar, cavocar, escavarmuito. E precisariade instrumentos picaretas,ps,cento e cinqenta ps,e tambm molinetes, mesmo que eu no soubesse propriamente o que era um, e tambm de vagespesados com eixosde aoe de uma forja, sim, porttil, alm de...de pregos...ebarbantes.E para minha fome, eu contaria com tmaras,tmaras de dez milhes de palmeiras, alm de amendoins e azeitonas. Ento me lembrei que os nmadeschamam o Saarade - o pas do medo, o Nada! E pensei no Mar Negro, e nos persasdescendo pelos desfiladeiros,mas tambm nisso encontrei apenasas infinitas sucesses sculosdo de mundo. Eu via a vastidodo desertoda Lbia, e diante dela eu j era capazde ver ao longe Damasco,a mais velha cidade da terra. (TOTALMENTE DELIRANTE E QUASE INFANTIL) O Sol est tanto no deserto da Lbia quanto ele estquente nele mesmo. E a terra o sol, como que no vi antes que a terra o sol? E no desertoda Lbia, baratase crocodilos... Eu s tenho nojo do rastejarde crocodilos porque no sou um crocodilo. Tenho horror do silncio cheio de escamas, mas o nojo me necessrio assimcomo a poluio das guas ne-
sala preta
cessria para procriar-seo que estnasguas.O nojo me guia e me fecunda. Atravs do nojo, vejo uma noite na Galileia. E ento vai acontecer- numa rocha nua e seca desertoda Lbia - vai acontecer amor do o de duas baratas.Eu agorasei como . Uma barata espera. Vejo o seusilncio de coisaparda. E agora - agora estou vendo outra barata avanando em direo rocha. Sobre a rocha, cujo dilvio h milnios j secou,duasbaratassecas. Uma o silncio da outra. Os matadoresque se encontram: o mundo extremamenterecproco. A vibrao de um estrdulo inteiramente mudo na rocha, e ns que chegamos hoje, aina da vibramos com ele. - Eu me prometo para um dia estemesmo silncio, eu nos prometo o que aprendi agora.S que para ns ter que ser de noite, pois somos seresmidos e salgados, somosseres guado mar e de lgrimas. de Eu juro, eu juro! Eu juro que assim o amor. Eu sei s porque estivesentadaali e estava sabendo.Foi preciso a barata me doer tanto como seme arrancasssem unhas- e entono as suportei mais a tortura e confessei, estoudelae tando. Sevoc puder saberatravsde mim, sem antesprecisarsertorturado, semantesserbipartido pela porta de um guarda-roupa,sem antes ter quebradosos seusinvlucros de medo que com o tempo vo secandoem invlucros de pedra - se voc puder...ento aprende de mim, que tive que ficar toda expostae perder todasas minhas malascom suasiniciais gravadas. E agora olhando a barata eu j sabia.Eu estiverao tempo todo semquererpensarno que j realmente pensara: que a barata comvel como uma lagosta,a barata um crustceo. Me adivinha, me adivinha, porque faz frio, perder os invlucros de lagostafaz frio. Me esquentacom a sua adivinhao de mim, me compreendeporque eu no estou me compreendendo, estou somente amando a barata. E um amor infernal. (DE NOVO, A LUZ ILUMINA A FIGURA DO HOMEM) Eu sei, eu sei que tens medo, que sempretiveste medo do ritual. Ns dois sempretivemos medo da minha solenida-
de e da tua. Pensvamos era uma solenidaque de de forma. E sempredisfarvamos que sao bamos: que viver sempre questo de vida e morte, da a solenidade... Mas quando se foi torturada atsechegara serum ncleo... Quando a pessoachega a ser o prprio ncleo, ela no tem mais divergncias. Assim como parase ter o incensoo nico meio queimar o incenso, ento ela a solenidadede si prpria e ela no tem mais medo de servir... O ritual no mais exterior, o ritual inerente. Mesmo a barata tem o seu ritual na sua clula. O ritual acreditaem mim porque acho que estou sabendo - o ritual a marca de Deus. E cadafilho j nascecom o seu.O nico destino com que nascemos o do ritual. Eu chamava"mscara"de mentira, e no era! Era a essencialmscarada solenidade.Paranos amarmos,tnhamos de por as mscaras! escaravelhos nascemcom a Os j mscara com que secumpriro. Pelopecadooriginal, ns... perdemosa nossa. Olhei: a barata era um escaravelho! Ela toda era apenasa sua prpria mscara. Atravs da sua profunda ausnciade riso eu percebiaa suaferocidadede guerreiro. Ela era mansa,mas sua funo era feroz. (HESITA) Eu sou mansa mas minha funo de viver feroz. Ah, o amor pr-humano me invade. Eu estou entendendo, eu estou entendendo. A forma de viver um segredoto secretoque ... o... rastejamentosilencioso de um segredo. Ah, seeu pudesse transmitir a lembrante a, s agora viva, do que ns dois j vivemos sem saber. que, quando amvamos,eu no sabia que o amor estava acontecendo muito mais exatamentequando no havia o que chamvamosde amor. O neutro do amor, era isso o que ns vivamos e desprezvamos. Estou falando de quando no acontecianada, e a esse nada ns chamvamos intervalo. Mas como de era esse intervalo?Era a enorme flor seabrindo, tudo inchado de si mesmo, minha viso toda grandee trmula. O que eu olhava,logo secoaguIava ao meu olhar e se tornava meu - mas no um cogulo permanente:se eu o apertasse nasmos,ele sedesmancharia novo em sande
.
i
1--"-:,0:'"
---
sala preta
uma vez o cavaloconduza o meu pensamento. De madrugadaeu nos verei exaustosjunto ao regato, sem saber que crimes cometemos at chegara madrugada.Na minha boca e nassuas patasa marca do sangue.E o que foi que imolamos? (RI UM POUCO LOUCA E SADICA.) Ao roubar o cavalo tive que matar o Rei, (QUASE RI DE NOVO) e ao assassin-Io roubei suamorte! E a alegriado assassinato conme someem prazer. Eu ficara enganchada pelo prazerque me tornava apenasinfernal. Eu era agora pior do que eu mesma.A tentao do prazer.A tentao comer direto na fonte, comer direto na lei. E o castigo no querer mais parar e comer a si prprio, comer-sea si prprio que sou matria igualmente comvel. Provao.Agora entendo o que . Provao: significa que a vida est me provando, massignifica que eu tambm estou provando. E provar pode se tornar numa
ci meu inferno a Deus, e minha crueldade,meu amor, minha crueldadeparou de sbito. Naquelasareiasdo deserto eu estavacomeando a ser de uma delicadezade primeira tmida oferenda,como a de uma flor. Oh, Deus, eu comecei a entender com enorme surpresa que minha orgia infernal era o prprio martrio humano. Como poderia eu ter adivinhado?Se no sabiaque no sofrimento se ria? que no sabiaque sesofria assim.Ento eu havia chamado de alegriao meu mais profundo sofrimento!? O Inferno pelo qual eu passara como te dizer?- fora o inferno que vem do amor. Ah, as pessoas pem a idia de pecado em sexo.Mas como inocente e infantil esse pecado,o inferno mesmo o do amor. Amor a experincia de um perigo maior - a experinciada lama e da degradao da alegria pior. Sexo o susto e de uma criana.Eu tivera que no dar valor humano vida para poder entender a largueza,
I.
A f'aixo Segundo G. H:
pedaode coisa, adorando infernalmente. O segredo fora era a fora, o segredodo amor da era o amor - e a jia do mundo um pedao opacode coisa.O segredodos faras.E por causa dessesegredoeu quase dera a minha vida. Mais, muito mais: para ter essesegredo, que mesmoagoraeu continuava a no entender,de novo eu daria a minha vida. Eu arriscarao mundo em busca da pergunta que posterior resposta.Uma resposta que continuava secreta,mesmo ao ser revelada a pergunta a que ela correspondia. Eu no havia encontrado uma respostahumana ao enigma. Mas muito mais, oh, muito mais! Encontrara o prprio enigma. Viver a vida em vez de viver a prpria vida, proibido! Entrar na matria divina, esse pecadotem uma punio irremedivel...A tentaopode fazer com que no se passepara a outra margem... Ah, eu odeio, eu odeio o que conseguiver. Eu no quero esse mundo feito de coisa. E porque no ficar dentro, sem tentar atravessar? Ficar dentro da coisa a loucura. No, eu no quero ficar dentro, senominha humanizaoanterior que foi to gradual, vai passar no ter mais sentido! Esperapor mim, a eu sei que estou indo para alguma coisaque di porqueestouperdendo outras - masespera que euainda continue um pouco. Disso tudo, quem sabepoder nascerum nome! Um nome sem palavra, mas que talvez enraze a verdade na minha formao humana. Ouve, por eu ter mergulhado no abismo que estoucomeandoa amar o abismo de que sou feita. A identidade pode se tornar perigosa por causado intenso prazer que pode se tornar apenas prazer.Mas agoraestou aceitandoamar a coisa!E no perigoso, juro que no perigoso.Poiso estadode graaexistepermanentemente: ns estamossempresalvos.Todo mundo estem estadode graa.A pessoa fulmis nada pela doura quando percebeque estem graa,sentir que seestem graa que o dom, e poucos arriscam a .conhecerisso em si. Mas no h o perigo de perdio, agoraeu sei: o estado de graa inerente.
Escuta. Eu estavahabituada somente a transcender.Esperana para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre e me havia organizado depressa em pessoaporque arriscadodemais perder-sea forma. Mas vejo agorao que na verdadeacontecia:eu tinha to pouca f que havia inventado apenaso futuro, eu acreditavato pouco no que existeque adiava a atualidade para uma promessae para um futuro. Mas descubroque no sequernecessrioter esperana. muito mais grave. Ah, sei que estou de novo mexendo no perigosoe que deveriacalar-mepara mim mesma. No se deve dizer que a esperana no necessria, pois isto pode vir a se transformar, j que sou fraca,em arma destruidora. E para ti mesmo, em arma utilitria de destruio. Eu poderia no entender,e tu poderiasno entender que prescindir da esperana na verdade, significa ao,e hoje. O presente a facehoje do Deus. O horror que sabemosque em vida mesmo que vemos Deus. com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte - por astcia, porque prefiro estar morta na hora de v-Io e assim penso que no O verei realmente, assim como s tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo. Eu sei que o que eu estou sentindo grave e pode me destruir. como se eu estivesse me dando a notcia de que o reino dos cusj . E eu no quero o reino dos cus,eu no o quero, s agento a sua promessa!Pois prescindir da esperana significa que eu tenho que passar a viver, e no apenas a me prometer a vida, como um adulto que no tem coragem de ver que j adulto e continua a se prometer a maturidade. Toda minha luta fraudulenta vinha de eu no querer assumira promessaque se cumpre: eu no queria a realidade.Poisserreal assumir a prpria promessae assumir a prpria inocncia. Ah, meu amor, as coisasso muito delicadas. gente pisa nelascom uma pata humaA na demais,com sentimentosdemais. S a deli-
.
I ,
sala preta
cadezada inocncia ou s6 a delicadezados iniciados que sente o seu gosto quasenulo. S que minha violncia tem que ser comigo mes-
mente se transforma no mesmo algo, apenas acrescentado mais uma gota idntica de temde po. E lembro que te disse:- Eu estou com um
1.
t
t
III~! 111
! I
A Paixo Segundo G. H.
realmente transcendermais. que a redenno odevia ser na prpria coisa, e a redenona prpria coisa seria eu botar na boca a massa brancada barata. S idia fechei os olhos com a fora de quemtrancaos dentes,e tanto apertei que mais um pouco e elesse quebrariam. Minhas entranhas diziam no! Minha massarejeitava a da barata.Eu no podia, eu no podia. S haveria um modo: se eu desse mim a mesmaum comando, um comando hipntico, e entoeu como que me adormeceria,e quando abrisseos olhos j "teria feito", sonambulicamente teria feito. O suor recomeara, dedosmeladosdos os psescorregavam dentro do chinelo, e a raiz de meuscabelosamolecia quela coisa que era o meusuor novo, um suor que eu no conheciae que tinha um cheiro igual ao que sai da terra ressecada primeiras chuvas. s Avancei um passo.Mas em vez de ir adiante,de repentevomitei. (RI UM RISO NERvaso E DE CONSCINCIA DO RIDfCULO.) Vomitei o leite e o po que havia comido no caf da manh. Desiludida comigo mesma, com minha falta de fora de cumprir o gesto quepareciasero nico capazde reunir meu corpo minha alma, agora eu ia ter de agir sem a ajuda da exaltaoanterior, eu havia vomitado a exaltao. Ento avancei.Avancei, sem mais adiar, avancei. E minha alegriae minha vergonha foi ao acordar do desmaio. No, no fora desmaio, fora mais uma vertigem, pois eu continuava de p, apoiando a mo no guarda-roupa. Eu no queria pensar mas sabia. Tinha medo de sentir na boca aquilo que estavasentindo, tinha medo de passara mo pelos lbios e percebervestgios...e medo de olhar a barata - que agoradevia ter menosmassa brancasobre o dorso opaco. Nunca mais eu ia saber como tinha feito - pois anteseu havia tirado de mim a participao,eu no tinha querido saber. Ento era assim? Alguma coisasempreteria que estar aparentementemorta para que o
vivo seprocessasse? tinha que no saberque Eu estava,que estou viva? O segredode jamais se escaparda vida maior era o de viver como um sonmbulo? "... porque no s frio nem quente, porque smorno, eu te vomitarei de minha boca..." - A frase do apocalipseme veio do fundo da memria..., a fraseque devia se referir a outras coisasme veio, e eu... crispei minhas unhas na paredeE ento comeceia cuspir, a cuspir furiosamenteaquelegosto de coisaalguma, gosto de um nadaque no entanto me pareciaquaseadocicado como o de certasptalas de flor, gosto de mim mesma- eu cuspiaa mim mesma,sem chegarjamais ao ponto de-sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda. At que meus olhos se encheram de lgrimas que s ardiam e no corriam, e eu parei espantada. Compreendi com surpresa que estava desfazendo tudo o que laboriosamentehavia feito. Mas mesmo no escorrendo,as lgrimas me serviam de companheiras, e como quem volta de uma viagem voltei a me sentar quieta na cama. Entendi ento que, de qualquer modo, viver uma grande bondade para com os outros. Bastaviver, e por si mesmo isto resu"lta na grandebondade.Quem vive totalmente estvivendo para os outros, quem vive a prpria larguezaestfazendouma ddiva, mesmoque sua vida se passe dentro da incomunicabilidade de uma c~la. Viver uma ddiva to grande que milharesde pessoas beneficiamcom cadavida se vivida. No. Eu no precisava tido a coragem ter de comer a massa barata.Entendi que eu no da estavame despojandocomo os santossedespojam, masestava novo querendoo acrscimo. de O acrscimo mais fcil de amar. E agora,precisoda suapresena no para que eu no tenha medo, maspara que voc no tenha medo. Seique acreditarem tudo issoser, no comeo, a sua grande solido. Mas chegar o instante em que voc tambm me dar a mo no mais por solido, mas como eu agora: por amor.
I I
--sala preta
Antes eu no sabiaque o que eu chamava de "eu" era um acrscimode mim. Mas agora, atravsde meu mais difcil espanto- estou enfim fazendoo caminho inverso, e vou em direo a destruio do que constru, e caminho enfim para uma espcie de... despersonalizao. A despersonalizao como a grandeobjetivao de si mesmo, a maior exteriorizaoa que se chega.Quem se atinge pela despersonalizao reconhecero outro sob qualquer disfarce: o primeiro passoem relao ao outro achar em si mesmo o homem de todos os homens. Assim como houve o momento em que vi que a barata a barata de todas as baratas,
nome. E eu tambm no tenho nome. E porque me despersonalizo ponto de no ter o meu a nome, respondo cada vez que algum disser: eu. E exatamenteatravsdo malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a prpria mudez e a dos outros e a das coisas,e aceit-Ia como a possvel linguagem. S ento minha natureza aceita, aceita com o seu suplcio espantado,onde a dor no algumacoisaque nos acontece,mas o que somos. E aceita a nossa condio como a nica possvel,j que ela o que existe,e no outra. E j que viv-Ia a nossa paixo. A condio humana a paixo de Cristo.
.
~
I'
de minha linguagemexistecomo um pensamento que no se pensa,mas por fatalidadefui e sou impelida a precisarsabero que o pensamento pensa.A realidadeantecedea voz que a procura, mas como a terra antecede rvore, mas como o mundo antecedeo homem, mas como o mar antecede viso do mar, a vida ana tecedeo amor, a matria do corpo antecedeo corpo, e por sua vez a linguagem um dia ter antecedidoa possedo silncio. Eu tenho a medida que designo- e este o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais a medida que no consigo designar.A realidade a matria prima, a linguagem o modo como vou busc-Iae como
I
r
por noter nomesa mudez pronuncia disso que me aproximo atravsda grandelargueza de deixar de me ser. No porque eu ento encontre o nome e torne concreto o impalpvel masporque designoo impalpvel como impalpvel, e ento o sopro recrudesce como na chama de uma vela. A gradual deseroizao si mesmo o de verdadeirotrabalho que selabora sob o aparente trabalho, a vida uma missosecreta.E to
f
t
j.
~
secreta a verdadeira quenema mim, que vida morro dela,mepodeserconfiada senha, a morro sem saberde qu. At que me sejaenfim revelado que a vida em mim no tem o meu
querer comear sabendo a vozdiz pouco, j que j comeando serdespessoal. existea por Pois
trajetria, e a trajetria no apenasum modo de ir, a trajetria somosns mesmos.Em mat-
f
f
1m
--
A Paixo SegundoH. G.
ria de viver, nunca se pode chegar antes. A via crucis no um descaminho, a passagem nica, no se chega seno atravs dela e com ela. A insistncia o nosso esforo, a desistncia o prmio. A este s se chega quando se experimentou o poder de construir, e apesar do gosto de poder, prefere-se a desistncia. A desistncia tem que ser uma escolha. Desistir a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir o verdadeiro instante humano. E s esta a glria prpria de minha condio. A desistncia uma
longe. E na mais ltima extremidade de mim eu podia enfim sorrir sem nem ao menos sorrir. O mundo independia de mim - esta era a confiana a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e no estou entendendo o que estou dizendo, nunca! Nunca mais compreen-
revelao.
1 Eu estava agora to maior que j no me via mais. To grande como uma paisagem ao
em 10 de dezembrode 95.
Revises em julho de 96 e em setembro de 200.
1 ,I