Revista Pergunte e Responderemos No. 008 - DEZEMBRO DE 1957

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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propoe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico • filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
Responderemos

DEZEMBRO 1957
ÍNDICE
Páginas
i. filosofía ic religiao
1) "Jesús Cristo eleve ser considerado um ¡nárlir, mu santo,
um profeta ou uní líder/" 3
IT. DOGMÁTICA
2) "Nao terá sido erro de Jesús ofcrecer o paraíso ao bom la-
drño no iiicsino dia cm que o próprio Jesús ia morrer para
deseer aos infcri'os c ¡á passar tres dias/
R, se Cristo deseen aos infernos, nao haverá salvacdo no
inferno/" 7
3) "Que neeessidade há de purgatorio/" 9
4) "A ¡(¡reja mío transformou a confissao de pecados públi
ca, como era realizada autrora (cf. Mt 18,15), cm confis
sao sigilosa, auricular, de uní individuo a outro/ 11, fasen-
do-o. nao visara objetivos políticos/
Que nao havia cojtfissao secreta, pessoal, parece evidente
pelo que. diz S. Paulo aos Corintios: " Examinc-se o ho~
vían a si e entilo coma desse pao e beba desse cálice"
(1.a cp. 11,28)" 12
5) "Se os padres té ni o poder apostólico de perdoar os peca
dos, porque nao tciu taiubém o poder apostólico de fazer
milaijrcs/" 17
6) "Como se explica que a culpa original passe para todo
liomcm ■'" 17
III. SAGRADA ESCRITURA
7) "lint Gen 30,37-42 narro a Biblia que Jaco influencian o
tipo da prole que nasccria de sitas cabras, propondo-llws
um estimulo externo no momento do coito. Ora, segundo
a Bioloí/ia, c inipossk'cl intervir desse modo no processo
generativa. Que dizer/" 20
8) " Qucira explicar o texto de Le 22,18, em que Jesús dia
que nao beberá mais do fruto da videira a ules que tenlw
viudo o Reino de Dcus" 22
IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO <
9) "Costaría de saber algo de mais exato sobre a lnquisiqao.
Se os "vellios lempos" Z'oltassem, a Igreja restauraría a
Inquisicdo/" 23
V. MORAL
10) ''Qitais os direitos do individuo anormal e do inonslro/" 33
11) "O hipnotismo pode acarretar algum mal/ Será licito ao
cristao deixar-se hipnotizar frcqiieiiteincnte pela inesma
pcssoa/ " ( 36
12) "Em caso de preuhez tubária, proibe a ¡greja o aborto
antes da ruptura da trompa/ Será cntao que cía nutre es
peranzas de inilagre/" ; 38
COM APROVAgAO ECLESIÁSTICA

— 2 —
Aos seus estimados correspondentes

a redacao de "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"

envía sinceros votos de Feliz Natal e de Ano Novo

iluminado por Aquéle que "é

O CAMINHO, A VERDADE E A VIDA

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
N.o 8 — Dezembro de 1957

I. FILOSOFÍA E RELIGIÁO

DELVAUX (Rio de Janeiro):

1) "Jesús Cristo deve ser considerado nm mártir, um santo,


um profeta ou um líder?"

A Jesús Cristo competem, scm dúvida, os títulos ácima; nao


bastam, porém, para explicar a sua personalidade. Os es
critos do Novo Testamento, assim como a Tradigáo crista, O
apresentam como verdadeiro liomem c verdadeiro Deus — Deus
feito homem.
Éste ensinamento poderá parecer produto da fantasía dos
primeiros discípulos. Que ncs garante a sua veracidade1.'
Em resposta, refutamos sobre um ou outro aspecto da his
toria de Cristo e do Cristianismo.
1. Até o séc. XVIII (ou seja, até o professor hambur
gués H. S. Reimarus, t 1768), excegáo feita de um ou outro
caso esporádico, ninguém negava que os Evangelhos dáo sufi
ciente testemunho da Divindade de Cristo. Nos dois últimos
séculos, porém, os críticos ptopuseram suas teorías, cancelando
os tragos da Divindade de Jesús nos Evangelhos, para só guar
dar os que O reduziam á categoría de um "Iluminado" ou "Lí
der" humano. Contudo a historia da crítica demonstrou o se-
guinte: as linhas que descrevem Jesús nos Evangelhos sao táo
ligadas entre si que nao se pode cancelar urna sem ter que
cancelar outras; chega-se assim a urna concepgáo de Jesús e
cía sua obra (o Cristianismo) táo depauperada e absurda que

3
os críticos mais recentes acabaram concebendo horror das teo-
rias dissecadoras do Evangelho e preferiram negar simples-
mente a existencia de Jesús. Tal é o caso do médico francés
Ccuchoud, que, nao querendo guardar a figura de um Jesús
histórico vago e monstruoso que lhe haviam consignado os
críticos seus antecessores, se tornou protagonista da tese de
"Jesus-mito" (veja-se a bibliografía indicada no fim desta ques-
tao). A experiencia, pois, parece ensinar que nao existe meio-
-térmo entre a fé no Senhor Jesús Dcus e Homem apregoado
pela Tradigáo e a fé na nao-existencia de Jesús ou fé em Jesus-
-mito.

Era esta a primeira ligáo da historia que nos importava


considerar. Passemos a outros dos seus ensinamentos.

2. Entre Jesús Cristo, que viveu na carne há vinte sé-


culos, e a nossa geracáo, a ponte é estabelecida pela Igreja de
Cristo. Pois bem; qual é o esteio desta sociedade? Que é que,
partindo de Jesús, a habilita a resistir aos embates de dezs-
neve séculos, quando tantas vézes {principalmente a partir
de 1799, ascensáo de Napoleáo Bonaparte) já se lhe predisss
a ruina?

A própria Igreja nos responde que há um elemento na


doutrina e na vida de Cristo sobre o qual repousa a sua fé,
elemento sem o qual desmoronariam por completo a crenga
e as energías dos cristños: tal elemento é a ressurreicao de
Jesús. Se nao fóra esta, o Rabino da Palestina nao diferiría
de qualquer fundador de alguma das varias religióes hoje
existentes (Buda, Confúcio, Lao-Tsé, Maomé...). Para a Igre
ja. é a ressurreigáo do Senhor que Lhe confere autoridade in-
confundível ou divina: "Se Cristo nao ressuscitou, vá é a nossa
pregagáo; vá é também a vossa fé" (1 Cor 15,14; cf. 17 e 19). A
énfase de Sao Paulo, ao escrever estas palavras, explica-se por
ser a ressurreicáo o testemunho máximo, o sél0 de autentici-
dade posto por Deus á pregagáo de Jesús.

Sendo assim, interessa-nos examinar se, de fato, Cristo


ressuscitou, como afirmam Sao Paulo e a Igreja, e, caso haja
ressuscitado, quais as verdades que a ressurreigáo de Cristo
confirmou e autenticou.

3. Quanto ao fato da ressurreicáo de Jesús, ele tem sido


atirmado pela Tradigáo crista desde os Apostólos até hoje nao
só mediante palavras, mas também mediante gestos heroicos

4
(o martirio!).. Sem que se queira exagerar o valor déste tes-
terrvunho, observa-se que difícilmente milhares e milhares de
pessoas, de todas as idades, épocas e regióes, dariam 0 sangue
por algo que nao lhes parecesse mais certo e valioso do que a
própria vida. Ademáis deve'-se notar que es Apostólos, pri-
meiros arautos dá ressurreicáo, estavam táo pouco dispostos
a inventá-la (por entusiasmo visionario ou por alucinacáo)
que foram os primeiros a tomar atitude cética logo que déla
tiveram noticia (haja vista o caso de Tomé). As autoridades
e o povo de Jerusalém teriam fácilmente desmascarado a frau
de dos primeiros discípulos caso estes quisessem incutir a fé
numa falsa ressurreicáo de Cristo. Quanto ao mundo greco-
-romano, sabe-se que a perspectiva de ressurreiijáo dos corpos
o horrorizava pois nao raro concebía o corpo como cárct're da
alma. Nao obstante, judeus e pagaos foram-se convertsndo,
abracando o código de moral ardua do Evangelho; té-lo-iam
feito, se a ressurreicáo de Cristo nao fósse um fato histórico
inelutável?

Em conclusáo: "Nada perdura senáo a verdade... Ao con


trario, o que é falso, desaparece. O falso nao tem base, ao passo
que o pequeño edificio da verdade é de ac,o e cresce sempre".
Sao palavras do racionalista E. Renán, que Daniel-Rops assim
comenta: "Pode parecer fraco, quanto aos seus alicerces, o pe
queño edificio dogmático da Ressurreigáo; mas há dois mil
anos que dura e que milhóes de espiritas humanos o aceitam,
apesar de todos os argumentos em contrario, pormenor éste
que nao se deve desprezar" (Daniel-Rops, Jesús no seu tempo.
Porto 1950,630).

4. Acrescentemos agora que a ressurreigáo de Jesús —


fa"tó comprovado — era por Cristo apres'entada como o sinal
por excelencia da veracidade de sua pregac,áo, "o sinal de
Joñas" (cf. Mt 16,4).

5. E qual o conteúdo da pregagáo que Jesús quería assim


autenticar?

Como verdade básica do Evangelho, Cristo ensinou ser Ele


"Filho do Homem" e '^"ilho de Deus", verdadeiro homem e
verdadeiro Deus.

Em particular, a sua Divindade, Jesús a afirmou


a) por palavras. Colocava-se em igualdade de condi§óes
com Deus, que Ele chamava "Pai" nao em sentido metafórico,
mas como quem participa da natureza do próprio Deus:

— 5 —
"Ninguém conhece o Fliho scnáo o Pai, e ninguém conhece o Pai aenáo
o Filho" (Mi 11.27).

Neste texto Jesús atribui a Si urna prerrogativa que só a


Deus toca: o conhecimento cabal da infinita Perfeigáo Di*
vina. A afirmacáo é corroborada por outros dizeres: "Eu e o
Püí somos um só (= urna só natureza, urna só substancia,
que se comunica entre duas pessoas)" (Jo 10,30); "Nao credes
que eu estou no Pai e o Pai está em Mim?" (Jo 14,10);
b) por suas atitudes. A Lei dada aos israelistas no Antigo
Testamento era tida como palavra do Senhor. Ora Jesús se
referia aos seus preceitos com absoluta senhoria, dando a en
tender que possuia a autoridade do próprio Legislador. Te-
nham-se em vista os seguintes dizeres: "

"O Filho do hornera é senhor mesmo do sábado" (Me 2.28).

Jesús jamáis se servia da fórmula habitual aos profetas:


"Eis o que diz o Senhor Deus..."; mas falava diretamente
em seu nome, opondo a Lei antiga á nova: "Ouvistes que foi
dito aos antigos: "Nao matarás" (£x 20,13)... Eu, porém, vos
digo: quem se irritar contra seu irmao..." (Mt 5,21s)". Antí-
tese ocorrente seis vézes consecutivas em Mt 5.
Os seus milagres, Jesús os realizava por autoridade pró-
pria: "Eu o quero: sé purificado (da lepra)" (Me 1,41); "Ta-
Htha kumi; jovem (defunta), eu te mando: levanta-te" (Me
5,41);"Ephpheta, abre-te", disse Jesús ao surdo-mudo em Me
7,34.

Considere-se também o episodio do paralítico, a quem


Jesús disse: "Teus pecados te sao perdoados!". Os judeus, ao
ouví-lo, acusaram-no de blasfemia ou de usurpadlo de um
poder que só a Deus compete. Longe de retroceder, Cristo se
dignou curar o paralítico em testemunhc de sua autoridade
divina, de sorte que a multidáo pode exclamar nunca ter visto
algo de semelhante (cf. Me 2,5-11).
Estes testemunhos, que se poderiam multiplicar, dáo a
ver que Jesús se apresentou realmente aos homens como vér-
dadeiro Deus. Mais tarde, por sua ressurreic,áo cenfirmou tais
af'rmagóes, Atualmente a subsistencia da Igreja nao é mais
do que o testemunho continuado da ressurreigáo e, por con-
seguinte, da Divindade de Cristo, vitoriosa sobre a morte e
as leis da decrepitude. Nao é sem razáo que se tem falado do

— 6 —
milagro da Igreja", da deu
tadora da Pa]avra
Igreja existente sempre vigorosa, por
Iuz e egtrutura J v.dagdos ^Por(
Que pensar dessa Igreja que diziam ter morrido? As temnés-
tades dos homens e das épocas se desencadearam sobre ela pa
ra traga-la. Como a arca, ela atrayessou o diluvio e, de cada
te» VcaSÍÍÍ°? "0V,as ParaSens Para ^escer mais amplamen-
te (Uardeal Suhard, Essor ou déclin de l'Eglise. París 1947,68).

BibUcana: J. Gui.lon. Jesús. Paris 19S7 (livro lamoso, que es.uda objetiva
monte as hipóleses modernas coneernentos a personalidade de
Jesús, e termina reafirmando a Tradlsáo).
H. Folder, Jesús de Nazaré. Voses de Petrópolis 1851.
K. Adam, Jésus le Christ. Mulhouse 1934.
Daniel-Rops, Jesús no seu lempo. Porto 1950.
G. Bicciotti, Vita di Gesu Cristo. Milano 1941.

II. DOGMÁTICA

BUBEM (Rio de Janeiro):

?) "Nao terá sido erro de Jesús oíerecer o paraíso «o bom


ladrao no mcsmo dia em que o próprio Jesús ia morrer para
descer aos infernos e I¿ passar
p tres dias?
das?

infero?" ^^^ deS°eU 8°S infcrnos' náo haverá salvacáo no


As dificuldades ácima se resolvem se se distinguem as duas
acepcoes do termo "inferno" na linguagem crfstá corrente
„. . .^er.n°" vem do Iatim "infernus", adjetivo derivado de
infra , abaixo. Designando 0 «lugar situado infra ou debai-
xo a palavra entrou no vocabulario dos cristáos com os «e-
gumtes matizes: "

1) "Infernus" pode equivaler ao termo hebraico "sheol"


Este desig-iava, segundo as concep?6es. dos antigos judeus um
lugar subterráneo para onde iam promiscuamente as almas
de todos os defuntos/, bons e maus. A teologia judaica, ñas
proximidades da era crista, distinguía n0 "sheol" diversas re-
gioes, entre as quais a des pecadores reprobos (cf Jud 6) e a
dos justos, também chamada «seio de Abraáo" (cf. Le 16 22)
i <faiS°o™0V0 Éd6n" (cf- Lc 23'43)' "tesouro das almas"'(cf'
1 Sam 25,29), regíáo situada "sob o trono de Deas" (cf Apc
6,9; vejam-se outrossim Sab 3.Í-5-10; 2 Mac 15, 12-15) _ Os
judeus tinham consciénda de que náo era possível passar de
urna dessas regióes para outra (cf. Lc 16,26).

— 7 —
2) A Revelagáo do Novo Testamento distingue com mais
clareza a sorte postuma dos justos e a dos pecadores. Aqueles
é atribuido o "céu", a bem-aventuranga celeste, ao passo que o
termo "inferno" (correspondente a "sheol") fica reservado para
designar o estado dos reprobos (já era esta, alias, a ten
dencia dos rabinos contemporáneos a Cristo). Note-se, porém,
que os conceitos cristáos de bem-aventuranga celeste e inferno
nao estáo presos a alguma topografía; designam primariamen
te um estado de alma, independente de determinada localiza-
gao geográfica (nao se queira elucubrar a geografía do Além).

Sendo assim, quando se diz que Cristo desceu aos infernos


no triduo após a sua morte (cf. 1 Pdr 3,19), entende-se que a
sua alma santíssima se manifestou aos justos do Antigo Tes
tamento que no "sheol" (seio de Abraác) aguardavam a Re-
dengáo; o Salvador lhes anunciou que esta já se dera e, por
conseguí nte, poderiam gozar da visáo de Deus na bem-aventu-
ranga celeste. — Manifestando-se aos fiéis, o Senhor nao apa-
receu aos reprobos, pois tal manifestagáo carecia dé razáo
de ser; nác há possibilidade de conversáo após esta vida (tf.
"Pergunte e Responderemos" 3/1957, qu. 5).

Ve-se, pois, que, quando se fala da descida de Jesús aos


infernos, éste último termo é tomado em sua acepgáo vétero-
-testamentária (a primeira ácima exposta). Quanto ao vocábulo
"descida", tem sentido metafórico, derivado da maneira de
falar popular dos hebreus; nao se poderia afirmar que a alma
de Jesús se tenha deslocado para regióes subterráneas. Costu-
ma-se dizer equivalentemente que "Jesús desceu ao limbo dos
País"; "limbo" (de "limbus", orla em latim) seria a parte su-"
perior das regióes subterráneas, a menos distanciada do céu.
Éste "limbo dos Pais", mansáo provisoria, deixou de existir,
como se compreende, desde que os justos do Antigo Testamen
to receberam a bem-aventuranga eterna. Hoje em día os teó
logos falam do "limbo" em outra acepgáo, ou seja, para desig
nar o estado postumo das criangas que morrem sem baüsmo.

Prometendo ao bom ladráo o paraíso para o mesmo dia,


Jesús nao quería dizer que éste justo arrependido O precedería
na bem-aventuranga celeste; á santíssima humanidade de Cris
to ressuscitado devia, sem dúvida, tocar a primazia da entra
da nos céus. Cristo, porém, dava certeza ao bom ladráo de que,

— 8 —
logo após a morte de cruz, a sua alma estaría com a de Cristo,
indo com esta ao "seio de Abraáo" ou ao paraíso (conforme a
terminolgia dos judeus) ou aínda á mansáo dos justos de-
funtos da Antigo Testamento, a fim de aguardar a ressurrei-
cáo do Senhor e a entrada na visáo de Deus. O simples fato,
porém, de estar inseparávelmente associada a Jesús já acarre-
taria suma felicidade para o pecador agraciado: "Estar com
Cristo é viver; por isso, onde se acha Cristo, ai se acha a vida,
ai se acha o reino. — Vita est enim esse cum Christo; ideo ubi
Christus, ibi vita, ibi regnum" (S. Ambrosio, Com. in Le, ed.
Migne 15,1834).

Sobre as notóos ácima, vejase E. Beltoncourl, "A vida que cometa com
a morie", 2.a ed. AGIR. Rio de Janeiro 1958, cap. XII 5 2: "Para entender o
Antigo Testamento", ibd. 1956. 190s.

3) "Que necessidade há de purgatorio?"

Em resposta, examinaremos sucessivamente em que con


siste o purgatorio e quais es fundamentos bíblicos desta dou-
trina.

1. Em que consiste o purgatorio.

A Sagrada Escritura ensina que o homem foi chamado a


ver a Deus face a face (cf. Mt 5,8; 1 Cor 13,lis; ] Jo 3,1-3).
E' claro, porém, que só pede conseguir tal fim o individuo
que, na hora de comparecer finalmente diante do Senhor, es
teja ñvre de qualquer tendencia desregrada, incompatível com
Deus, que é a Verdade e o Amor subsistentes.
. Ora mesmo os homens virtuosos nao raro terminam seus
dias trazendo na consciéncia pequeñas faltas e. no íntimo de
sua natureza, inclinac.5es mais ou menos desregradas (culpa
das, porque nao suficientemente combatidas).
Em tais condigóes, a criatura evidentemente nao é o re
ceptáculo ao qual Deus se possa comunicar num consorcio ple
no; é ontológicamente jmpossível a conciliacáo do impuro com
o Puro.
Em vista disto.Deus, que nao quer rejeitar a sua criatura,
lhe proporciona a ocasiáo postuma de se habilitar á plena co-
mjinháo com o Senhcr; tal é o purgatorio, favor gratuito e mi-
ve' icordioso do Criador.
E como se dá esta purificacáo?

9
A pena primaria do purgatorio é a chamada pena de dif
lacao. A vida terrestre constituí o período normal em que o
homem se deve preparar para ver a Deus face a face; termi
nada a peregrinado neste mundo, a criatura deveria, segun
dó a ordem reta das coisas, entrar ¡mediatamente no gozo do
seu Senhor. Ora a alma que, ao deixar o corpo, verifique nao
estar habilitada a isto por causa de sua negligencia em com-
bater as imperfeicóes, nao pode deixar de experimentar pro
funda dor por tal motivo; chegou-lhe o tempo de se encontrar
diretamente com o Divine Amigo, e eis que ela ainda nao pode
sustentar a visao ¡mediata désse Amigo! Separada do corpo, a
alma compreende muito melhor o valor imenso da visáo de
Deus face a face, assim como a hediondez que há'em todo peca-e
dc; toda leviandade. Em conseqüéncia, ela experimenta espon
táneamente a necessidade de se purificar, repudia as suas de-
sordens com generosidade nova; separa-se de sea amor próprio
para se identificar com a justiga de Deus, sofrendo a dilacera-
qáo e a dor daí conseqüentes. Esta dor vai mais e mais pene
trando a alma, libertando-a de todo o egoísmo que o pecado
e as más inclinacóes implicam; figuradamente dir-se-ia: vai
raspando, até a mais profunda carnada, toda a ferrugem que
adere as faculdades da criatura. As almas, portanto, sofrem
o seu purgatorio voluntariamente: sequiosas de ver a Deus,
nao sao menos sequiosas de se purificar em oportuno estágio.

Além da pena da dilaeño, que é espiritual, há no purga


torio urna pena física, que se costuma chamar o castigo do
fogo. Nao se poderia dizer precisamente em que consista (nem
é éste o aspecto do purgatorio que mais merega nossa atencáo).
Nao se pense em fogo igual ao déste mundo. Provávelmente,
trata-se de um estímulo físico que, por permissáo de Deus, age
sobre a alma impedindo-lhe o uso das faculdades — inteligen
cia e vontade — tal como ela o quisera; esta coibigáo, partindo
de urna criatura material, tem também o caráter de humilha-
cáo para o espirito humano.

2. Os fundamentos bíblicos, da doutrina

. A existencia do purgatorio decorre lógicamente das afir-


macóes bíblicas segundo as quais Deus exige do homem a ex-
piacáo pessoal de faltas cometidas. Com efeito, lé-se em mais
de urna passagem da Sagrada Escritura que o Senhor, mesmo

— 10 —
depois de perdoar a culpa do pecador, ainda lhe pediu reparasse
a ordem violada. Note-se que tal satisfago nao era, nem é, al->
go que Deus imponha arbitrariamente: já que todo pecado
consiste na. ruptura, mais ou menos violenta, da ordem reta das
coisas, ele nao pode ser cancelado, caso nao se dé a restaura-
gáo da harmonia por ele burlada. Eis os exemplos bíblicos mais
significativos:
Adáo foi certamente tirado ou absolvido do seu pecado (cf.
Sab 10.2); nao obstante, o Criador o quis submeter a graves
penas até o fim da vida (cf. Gen. 3,17s);
. . Moisés e Aaráo cederam á pouca fé em dado momento de
s-ua vida; por isto viram-se pelo Senhor privados de entrar na
Térra Prometida, embora nao haja dúvida de que a culpa lhes
tenha sido perdoada (cf. Núm 20,12s; 27,12-14; Dt 34,4s);
Davi, culpado de homicidio e adulterio, foi agraciado ao
reconhecer 0 delito; nao obstante, teve que sofrer a pena de
perder o. filho do adulterio (cf. 2 Sam 12,13s).
Em outros textos, o perdáo é estritamente ligado com
obras de expiado; cf. Tcb 4,lls; Dan 4,24; Jl 2,12s .
Além destas passagens, que manifestam o principio geral
segundo o qual Deus cancela o pecado, costumam-se citar
outros trechos diretamente alusivos ao purgatorio:

2 Mac. 12,39-46: Judas Macabeu (t 160 a.C.) descobriu,


debaixo das túnicas de seus soldados falecidos, pequeños ídolos,
objetos impuros dos quais se haviam apoderado no saque de
Jáninia. Em conseqüéncia, considerou a morte de seus homens
como castigo que Deus lhes infligirá. Nao obstante, Judas, tén-
do verificado que os prevaricadores haviam "morride piedosa-^
mente" (v. 45) (supunha, por conseguinte, se houvessem arre-
pendido de seus pecados), mandou arrecadar esmolas a fim
de se oferecer pelos defuntos um sacrificio expiatorio; julgava,
pois, que lhes ficavam aderéncias da culpa, mesmo depois de
haverem obtido o perdáo e terem passado para outra vida;
acreditava outrossim qué seriam purificados de tais resquicios
. e conseguiriam finalmente "a bela recompensa" (v. 45), se os
vivos, por seus sufragios, os ajudassem a prestar expiagáo.

Mt 5,25 (cf. Le 12,58s): Jesús recomenda aos seus discípu


los, percorram a caminhada desta vida em boa paz com os ir-
máos; em caso contrario, finda a peregrinaclo terrestre, teráo
que responder ao Juiz Supremo, que lhes imporá duro castigo

— 11 —
— duro castigo, porém, do qual seráo libertados depois de sa-
tisfazer á Justina.
1 Cor 3,10-16: Sao Paulo distingue entre operarios que no
reino de Deus trabalham zelosamente, produzindo a melhor
obra de que sao capazes, e outros que, sein deixar de trabalhar,
se mostram negligentes. Diz que os primeiros, no dia do juízo,
nada teráo a temer, ao passo que os outros (tipo dos homens
que Eervem a Deus ccm as tibiezas do pecado venial) se salva-
rao, mas após haver experimentado dores e penas devidas á
sua conduta imperfeita. Embora o Apostólo, como Jesús em Mt
5,25s, se sirva de expressóes figuradas, percebe-se com clareza
suficiente que sob as metáforas de Mt 5,25s e 1 Cor 3,10-15 es-
táo coñudas as idéias que definem a doutrina do purgatorio.
Vé-se destarte que o purgatorio, longe de ser invenc,áo hu
mana, é expressáo da santidade e da. misericordia de Deus,
que, mesmo fora do tempo normal, conciliando justiga e bon-
dade, sabe outorgar á criatura os meios de O possuir eterna
mente.

R. M. F. (Parnaíba):

4) "A Igreja nao transformou a confissao de pecados pú


blica, como era realizada outrora (cf. Mt 18,15), em confissao
sigilosa, auricular, de um individuo a outro? E, fazendo-o, nao
visava objetivos políticos?
Que nao havia confissao secreta, pessoal; parece evidente
pelo que diz Sao Paulo aos Corintios: "Exainine-se o homem a
si e entáo coma désse pao e beba désse cálice" (1.a ep. 11,28)".

A questáo ácima está fundada sobre certa confusáo. Para


elucidá-la, fixemos rápidamente alguns pontos referentes á
teologia e á historia do sacramento da Penitencia .

1. Primeiramente, qüanto ao dever que incumbe aos cris-


tíos, de confessar os pecados a um ministro de Deus, o artigo
de "Pergunte e Responderemos" 4/1957 qu. 3 expóe os fun
damentos bíblicos e teológicos desta obrigacáo; ei-lcs suma
riamente:
Jesús confiou aos seus Apostólos o poder de perdoar os pe
cados ou nao, em nome de Deus: "Recebei o Espirito Santo.
Aqueles a quem perdeardes os pecados, seráo perdoados; aque
les a quem os detiverdes (nao perdoardes), seráo detidos" (Jo

19
20,22s). Ora o juízo a ser exercido pelo ministro de Deus su-
póe da parte déste 0 conhecimento exato da causa respectiva,
conhecimento que só pode ser obtido mediante a acusacao feita
pelo penitente; sómente por esta é que o sacerdote avalia a si-i
tuacáo e as disposigóes do pecador. — Leve-se em conta, além
disto, que Deus quis sempre, e quer, distribuir a graga aos ho-
mens mediante ministros e sinais sensíveis, pois somos por na-
tureza sociais e dependentes das coisas visíveis; a vía normal
para a tiossa santificagáo é a via dos sacramentos. No tocan
te ao sacramento da Penitencia em particular, S. Agostinho o
ilustrava propondo aos seus fiéis a seguinte alegoría: Cristo
ressuscitou a Lázaro, mas quis que os discípulos o desatassem.
de suas faixas mortuárias e o restituíssem á liberdade (cf. Jo
11,14); assim, continuava ele, é o Senhor quem perdoa os pe
cados; para fazé-lo, porém, nao quer dispensar os'oficios de
seus ministros (In ps. 101 enarr. 2,3; serm. 195,2).

Do texto de Jo 20,23 nao se segué que a confissáo dos pe


cados deva ser pública; basta a acusagáo secreta. Tal conclu-
sáo nao sofre dificuldade da parte de Mt 18,15-18: Jesús ai tra-t
ta nao da reconciliagáo dos pecadores com Deus, mas da cha
mada "correcto fraterna"; diz que o irmáo que erra, deve pri-
meiramente ser admoestado por seu irmáo, de maneira secre
ta: "Se teu irmáo vier a pecar (o acréscimo contra ti nao é au
téntico), vai procurá-lo e repreende-o a sos" (Mt 18,15). Caso
esta admoestagáo particular fique sem efeito, manda Jesús
seia repetida em presenta de testemunhas, a fim de se tornar
mais eficiente; se mesmo assim o irmáo nao reconhecer a cul
pa, será tidó como pagáo e publicano, isto é, como alheio á co-
munidade fraterna. Vé-se bem que éste texto de Mt 18 visa
outra situagáo que nao a de Jo 20: trata-se em Mt 18 de susci
tar o arrependimento em um cristáo desviado e pouco dispostQ
a voltar á ordem, ao passo que em Jo 20 se tém em mira os
pecadores desejosos de se reconciliar com Deus e com a Igreja;
a rigor Mt 18 nao supóe confissáo, nem particular nem pú
blica, pois nao se trata aínda do processo de reconciliagáo.
Quanto ao texto de 1 Cor 11, Sao Paulo ai nao entende re
ferir o trámite da remissáo dos pecados; trata apenas da Eu
caristía e, em vista desta, contenta-se com inculcar o exame
cauteloso de consciéncia a fim de nao se profanar o corpo e o
sangue do Senhor; nao intenciona, porém, indicar o que o pe
cador, achando-se réu de culpa, deva.fazer para se reconciliar.

— 13 —
.2. Executando a ordem do Senhcr, a Igreja desde a ge-
ragáo apostólica exerceu o poder das chaves; o rito, porém, a
que recorría, era diferente do atual .Eis o que, segundo os me-'
Inores historiadores, se depreende dos documentos dos seis pri-
meiros séculos:

O ministro ordinario do sacramento da Penitencia era o


bispo, o qual também ccstumava administrar o Batismo c a
Eucaristía. Os presbíteros só o faziam por delegagáo e a título
extraordinario, ao mencs no Ocidente (cf. S. Cipriano, epist.
18,1; Concilio de Elvira, can. 32, nos séc. III e IV respectiva
mente). E' verdade que em Constantinopla no séc. IV havia
•sacerdotes "penitenciarios", isto é, especialmente incumbidos
do sacramento da Penitencia.

O primeiro passo para a reconciliagáo era a confissáo do


pecado ou dos pecados graves (as faltas leves costumavam ser
expiadas pela ccntrigáo e as boas obras, nao pelo sacramento
da Penitencia). A confissáo era tida por necessária mesmo
quando o pecado fóra público, pois era preciso que o pecador
se reconhecesse réu da culpa. A acusagáo se fazia geralmente
de maneira secreta'; a proclamagáo pública de pecados ocultos
era considerada grave abuso, a menos que se efeluasse es
porádicamente por fervor do penitente (muito significativa a
ésse propósito é a carta do Papa S. Leáo Magno aos bispos da
Campanha, datada de 6 de margo de 459; cf. Denziger. En-
chiridion 145).

Uma vez ouvida a confissáo, o bispo ou o sacerdote admoss-


tava o penitente ou públicamente (caso o pecado fósse pú
blico) ou particularmente. A seguir, impunha-lhe as máos,
agregando-o a uma classe própria de fiéis — a classe dos peni
tentes; a estes, assim como aos catecúmenos (candidatos ao
Batismo), só era lícito assistir a parte da Liturgia sagrada. Ao
penitente o bispo infligía outrcssim urna satisfagáo conveniente
a ser prestada por tempo mais cu menos consideravel (nao ra
ro durante os quarenta dias continuos da Quaresma); as vé-
zes, os cánones dos concilios (por exemplo, es de Ancira e Ni-
céia no séc. IV) estipulavam a penitencia devida a certas cul
pas; caso nada estivesse previsto, tocava ao bispo avaliar a
gravidade da culpa e o rigor da satisfagáo correspondente (a
qual podia ser mitigada em vista do fervor do penitente): ge-
raímente se impunham oragóes, jejuns e esmolas; es sacc-rdo-

— 14 —
tes e os fiéis eram intimados a se unir com os penitentes me
diante a oragáo, a fim de que agradáveis ao Senhor e frutuo-
sas se lhes tornassem as obras satisfatórias (ainda hoje no Mis-
sal Romano se encontra urna ora?áo pelos penitentes públicos;
cf. tabela, n.° 23)

Terminada a satisfago no prazo indicado, freqüentemen-


te na quinta-feira santa, concedia-se a reconciliaclo solene aos
penitentes, ou seja, a absolvigáo dos seus pecados. O bispo e
os presbíteros lhes impunham de novo as mács e por éles ora-
vam. Daí por diante o pecador era admitido á comunháo fra
terna e á participado da S. Eucaristía. Note-se que a absolvi-
cáo era diferida até que estivesse cumprida a satisfacjío tida
como justa e congrua; a antiga Igreja desejava ass'im que após
a absolvigáo nao ficasse ao penitente nem mesmo o débito de
pona ou reparacáo expiatoria; a absolvi?áo sacramental devia
por fim tanto á culpa como á pena devida á culpa

Acontecia, porém, que, mesmo após a reconciliac,áo, o pe


nitente permanecía sujeito a regime assaz rigoroso, que em
parte o assemelhava a um monge: nao se poderia casar nem
receber as ordens sacras; ficava-lhe vedado entrar no comercio,
nos cargos públicos e na milicia. Além do mais, a fim, de evitar
o perigo de laxismo ou rotina, nao se concedía o sacramento
da Penitencia pela segunda vez; aos reincidentes os bispos nao
tiravam em absoluto a esperanza de salvacáo. mas indicavam-
-lhes outra via para obter a reconciliagáo com Deus: a da peni
tencia privada e a das boas obras reparadoras (cf. S. Agostinho,
epist. 153,7). A conseqüéncia disto era que muitos, após haver
pecado gravemente, diferiam a penitencia sacramental até o
fim da vida a fim de nao perder talvez prematuramente a
única "chance" de receber tal sacramento; embora os bispos
récriminassem éste costume, ia-se difundindo.
Compreende-se que, com o tempo, se tenha mitigado a
praxe.

Muitos pecadores preferiram a tal trámite a "conversáo"


monástica: faziam-se mo'nges e passavam o resto da vida sob a
Regra de um mosteiro — o que era tido como equivalente a
prestar penitencia pública (os pecados seriam apagados por
efeito do amor a Deus traduzido na renuncia a todos os bens
temporais e á vontade própria; cf. 1 Pdr 4,7).

Conseqüentemente. a penitencia pública foi sendo cada


vez menos procurada pelos fiéis. Em seu lugar introduziu-se

— 15 —
aos poucos o costume de administrar mais vézcs o sacramento
da Penitencia sem se lhe dar o caráter público que antes tiJ
nha; o confessor (nao mais necessáriamente o bispo) concedía
a réconciliagáo ou absolvi^áo lego após a confissao, e impunha
uma satisfacáo (mais ou menos mitigada) a ser prestada pslo
penitente depois da reconciliacáo (á semelhanga do que hoje
sé dá). Tal abrandamenlo da praxe nao implicava mudanza
doutrináris nem derrogagáo á Justiga de Deus; a expiac,áo nao
prestada por imposicáo do confessor seria suprida ou pelo zélo
do penitente no decorrer desta vida ou entáo após a morte, no
purgatorio. Com esta mudanza de rito, abria-se o acesso do
sacramento a muitos fiéis que padeciam graves crises de cons-
ciéncia em virtude da praxe antiga.

Nao se saberia dizer exatamente nem quando nem onde a


mitigacáo comec,ou a ser praticada. O primeiro testemunho de
que estava em vigor a administracáo privada do sacramento
da Penitencia, se deve ao Concilio III de Toledo (Espanha), que
em 589 a denunciava como abuso e exigía a observancia da
tradigáo antiga (cf. Mansi, Conc. Ampl. col. IX 995), As auto
ridades eclesiásticas, porém, a foram reconhecendo. Muito cen-
correram para a implantacáo definitiva da nova praxe os mon-
ges irlandeses e escosseses (em particular, Sao Columbano),
que nos séc. VI/VII se disseminaram pelo continente europeu,
comunicando aos fiéis cristáos o costume monástico de abrir a
consciéncia, em caráter secreto, a um pai espiritual.

Por muito tempo, ou seja, até a Alta Idade Media (séc.


XIII), ainda ficou em vigor, ao lado da penitencia sacramen
tal secreta, a penitencia pública. O Concilio IV do Latráo
(1215) decretou que ao menos uma vez por ano os fiéis fariam
sua confissao sacramental auricular a um sacerdote. Na Idade
Media atribuia-se tanto valer á acusagáo (secreta que fósse)
das culpas que muitcs cristños, em caso de urgencia ou na im-
possibilidade de recorrer a um presbítero, se acusavam a um
leigo: éste é claro, nao lhes podia dar a absolvic,áo sacramen
tal, mas tornava-se-lhes ocasiáo de se humilharem e de excita-
rem uma contric,áo mais profunda, mais capaz de atrair o per-
dáo diretamente da parte de Deus. Ora é com referencia ao
mencionado canon do V Concilio do Latráo que se diz que os
padres introduziram o uso da confissao auricular entre es fiéis.
Ve-se com que fundamento (nulo, em verdade) se propala tal
rumor!

— 16 —
JOAQUIM NORONHA (Salvador):

5) "Se os padres tém o poder apostólico de perdoar os


pecados, porque nao tém também o poder apostólico de fazer
milagres?"

Tanto "perdoar pecados" como "fazer milagres" sao obras


que os homens só podem realizar por poder divino gratuita
mente comunicado as criaturas.

Ora, Deus quis que na sua Igreja a faculdade de perdoar


os pecados em nome do Todo-Poderoso ficasse habitualmente
associada a urna instituicáo, ou seja, á hierarquia sacerdotal
iniciada pelos Apostólos. Isto era, e é, necessário para que, con-
soante o plano divino, a grac.a santificante seja sempre trans
mitida aos fiéis pelos sacramentes.

Nác havia igual necessidade, segundo os designios do Cria


dor, de torrear habituáis cu cotidianos os milagres na Santa
Igreja. Estes sao dispensados por Deus em casos esporádicos,
em vista de finalidade extraordinaria a ser atingida. Os Após^-
tolos rtceberam, sim, o poder de fazer milagres, pois deviam
implantar pela primeira vez a fé crista, o paradoxo da cruz,
num mundo totalmente pagáo. Visto, porém. que os sucesso-
res dos Apóstoles, os bispos e os sacerdotes, pregam o Evan-
gelho em circunstancias mais benignas que as dos Apostólos,
o Senhor nao quis associar de maneira estável o poder tauma
turgo ao carátes. sacerdotal; tal poder é carisma esporádico,
nao institucional.

GUIMARAES (Altinópolis, S. P.):

6) "Como se explica que a culpa original passe para todo


homem?"

•Todo homem experimenta numerosas miserias físicas a


acometé-lo: a morte com seus precursores (a doenga, a fome,
o frió...). Mais importantes ainda sao os achaques espirituais:
a concupiscencia desregrada, a acentuada capacidade de errar
na procura da verdade, a debilidade do querer, etc. E, fora do
homem, que se verifica? A natureza nao raro parece revol-
tada; em vez de servir ao seu senhor, esmaga-o pelos flagelos
(secas e enchentes, terremotos, etc).

- 17 - I
1. Será que esta rodem de coisas é originaria, obra do
Autor mesmo da natureza? — Bem se poderia crer que nao,
dado o avultado número de males que afetam as criaturas (até
cerlo grau. as falhas e os desequilibrios nao chamariam a aten-
gao do filósofo, pois sao por si ine rentes á condigáo falível de
qualquer criatura). Alias, os povos primitivos ainda hoje exis
tentes costumam, em suas narrativas tradicionais, atribuir a
morte e as desgragas a urna violacáo do bem-estar inicial: os
primeiros individuos teriam desobedecido a Deus, acarretando
sobre si a triste serte que o género humano padece (vejam-se
tais narrativas no livro de E. Bettencourt, "Ciencia e Fé na his
toria dos Primordios", 3.a ed. AGIR, pág. 178-184).

Ora, a fé crista elucida ulteriormente estas observagóes:


ensina que o primeiro homem, Adáo, de fato pecou e que a
sua culpa repercutiu em seus descendentes, assim como em
• toda a natureza material, causando desordem.

O documento mais explícito a éste propósito é o texto de


Sao Paulo; Rom 5,12: o Apostólo afirma que, por obra de um
homem (o primeiro Adáo), o pecado (o Pecado personificado,
o Pecado enquanto é um estado que afeta o género humanG
inteiro) entrou no mundo. Como sangáo do pecado, entrou a
mortc, a qual também é universal, acometendo a todos indis
tintamente, "pois que, diz Sao Paulo, todos pecaram". Ora, já
que todos morrem, mas nem todos cometem pecado pessoal
(tenham-se em vista as criancinhas), a razáo pela qual lhes é
imposta tal sangáo há de ssr o pecado de Adáo transmitido a
seus descendentes juntamente com a natureza humana.

O Apostólo reafirma seu pensamento no v. 19: "Como pela


desobediencia de um só homem (Adáo), a multidáo (do genero
humano) foi constituida pecadora, assim pela obediencia de
um só (Cristo) a multidáo será justificada".
A idéia de um pecado impregnado na natureza humana
desde que esta seja concebida no seio materno, decorre outros-
sim de Ef 2,3: "Por natureza éramos filhos da ira".

2. Mas como sé há de entender que a Justina Divina


impute a todos os descendentes de Adáo um pecado que nao
cometeram pessoalmente?
O Criador, em seus designios eternos, houve por bem con-
ceber o género humano á semelhanga de grande corpo, solidá-

— 18 — "
rio de uma Cabeca, que era Adáo: "Omnes homines unub lió-:•'
mo", dizia S. Agostinho; o primeiro pai devia desempérihár
aos olhos de Deus o papel de compendio, no qual estava com-
preendida toda a estirpe humana e a sua respectiva sorte. Ora
Adáo recebeu do Criador a sua natureza humana ornada de
dons preternaturais e sobrenaturais, que, segundo o plano de
Deus, ele devia transmitir aos pósteros por via de gerac,áo, ca-\
so se mostrasse obediente á Palavra do Senhor (os filhos de
Adáo seriam também filhos de Deus, portadores da graca des
de o primeiro instante de sua existencia). Eis, porém, que Adáo
prtvaricou; conseqüentemente foi destituido dos privilegios pa
radisíacos; daí por .diante só podia gerar a natureza de um
pecador, natureza que, despojada dos dons de que o Criador
a revestirá, nao podia (nem pode) deixar de aparecer disfor*
me aos olhos do seu Autor. Assim todo individuo, pelo fato
mesmo de herdar a natureza de Adáo, traz em si uma nódoa,
que se chama "o pecado de origem" ou "original". Como. se. vé,
éste é um defeito que afeta primariamente a natureza huma
na como tal, mas nao deixa de ser imputado a cada individuo
em particular, visto que todos constituem com AdSo um único
corpo.

Exploremos um pouco mais esta figura, tirada dos escri


tos de S. Agostinho e S. Tomaz, para compreendermos melhor
a doutrina. Num organismo, diz-se que tal ato de tal membro
(da máo, per exemplo) é voluntario, tendo-se em vista nao a
vontade da máo, mas a vontade da alma que comunica á máo
a respectivo movimento. Caso se considere a máo separada
mente do corpo a que pertence, nao se lhe imputa como peca
do um homicidio que cometa; far-se-á, porém, a incriminacáo,
desde que se considere a máo qual parte do homem movida
pela vontade déste. Pois bem; algo de semelhante se dá no
corpo metafórico do género humano: a desordem, a hediondea
que se encontram em tal filho de Adáo, sao voluntarios e cul-
páveis nao por vontade désse descendente de Adáo, mas por
vontade do primeiro pai, que por via de geragáo move a todos
os que sao da sua linhagem (cf. S. Tomaz, Suma Teol. I/II
81, a.l). Está claro que toda comparacáo é. de certo modo,
manca; contudo a metáfora utilizada por S. Tomaz contribuí
para se ver que o pecado original em nos náó pede ser quali-
ficado de voluntario do mesmo modo que o pecado atual, o

— 19 —
qual depende diretamente da nossa vontade (nao é por von
tade da máo que o homicidio é cometido); mas é voluntario
de maneira mediata, mediante a vontade de Adáo, do qual "o
Criador nos quis fazer dependentes (a máo pertence a um or
ganismo dotado de vontade, vontade que comunica seu in-.
fluxo a qualquer dos órgáos do conjunto). Conceba-se, pois,
urna no§áo de voluntario intermediario entre o voluntario pes-
soal e o nao-voluntario. De passagem, seja lícito acrescentar
que quem morre com o pecado original apenas, nao é conde
nado como quem falece com o pecado atual (os teólogos cos-
tumam distinguir entre o limbo das crianzas, em que se goza
de bem-aventuran§a natural, e o inferno dos reprobos).

Como se vé, a transmissáo da culpa de Adáo a cada um de


nos é verdade baseada na Revelagáo Divina mais do que em
argumentos meramente racionáis. Decorre, em última aná-
lise, cía visáo que Deus tem a respeito do género humano, vi-
sáo que transcende (mas nao contradiz) nosso bom senso: ne-
nhum de nos foi concebido pelo Criador Coladamente, mas to
dos foram concebidos e amados como imagens do Filho de
Deus ou membros do Cristo Jesús, solidarios com Éste. Ora a
copia mais próxima do Senhor Jesús foi o primeiro Adáo (cf.
Rom 5,14); por isto vínculos de sr.lidariedade especial nos pren-
dem ao primeiro pai segundo os sabios designios de Deus.
Nossa uniáo cem Adáo, portanto, deve ser, em última instan
cia, entendida á* luz da nossa uniáo com Cristo e seu Corpo
Místico.

III. SAGRADA ESCRITURA

JOAO CARLOS (Ribeirao Préto):

7) "Em Gen 30,37^12 narra a Biblia que Jaco influenciou


o tipo da prole que nasceria de suas cabras, propondo-lhes um
estímulo externo no momento do coito. Ora, segundo a Biolo
gía, é impossível intervir désse modo no processo generativo.
Que dizer?"

Recordemos brevemente o artificio utilizado por Jaco para


obter cabras malhadas: quando os animáis estavam para en
trar em cópula, o Patriarca colocava diante dos seus olhos
varas de Falgueiro, amendoeira, plátano, ñas quais fizera in-
cisoes a fim de as tornar raiadas ou listradas de branco; a visáo

— 20 —
désses ramos devia, segundo estimava Jaco, influenciar a for-
mcgáo de embriáo, produzindo prole malhada.
Tal artificio estava muito em voga entre os antigos; jul-
gavam, como ainda hoje freqüentemente imagina o nosso po-
vo que certos objetos avistados durante a concepcáo ou a ges-
tacáo acarretam notas próprias na prole. Vejam--se os leste-
munhos de Opiano, De venatione I 327s; Plínio, Hist. nat. VII
10; Hipócrates, segundo S. Agostinho, Quaest. in Heptat. I 93;
Isidoro de Sevilha; Etymologiarum liber XII I 58-60. Nos tem-
pos de S. Jerónimo (séc. V), dizia-se que os espanhóis por meio
de tais artificios sabiam variegar a cor de seus cávalos (cf. S.
Jerónimo, Liber hebraicarum quaestionum in Genesin, ed:
Migne lat. 23,985).
A oiéncia genética moderna, possuidora de mais exatos co-
nhecimentos, tende a negar a possibilidade da influencia na
tural de tais fatores sobre o processo generativo.
Como quer que seja, o texto sagrado dá a entender que
nao foi o artificio de Jaco que, simplesmente por sua própria
eficacia, deu os resultados almejados pelo Patriarca; faz-noa
ver, antes ,que ele se tornou eficiente por especial intervengáo
de Deus. Esta terá sido, em última análise, a causa do éxito
do processo que por si mesmo talvez fósse váo. O expediente
usado por Jaco pode ter sido mera ocasiáo para que Deus o
beneficiasse.

Em confirmacáo do ácima dito, note-se a énfase com que


Jaco, depois de obter o sucesso, inculca ter sido especialmente
auxiliado por Deus; dizia ele a Raquel e Lia:

"Vejo no rosto do vosso pai qué ele nao me é lavorável como


anles, nvss o Deus de meu pai esléve ccmigo... Vonso pai burlou-se de
mim. e dez vczes mudou o meu salarlo; mas Deus nao pormiliu que me fi-
iesse mal. Todas as vózes que ele dizia: "A prole malhada será a lúa paga",
lodos os animáis davam á luz iilholos malhados; sompre que ele dizia: "A
prole raiada será a lúa paga" os animáis qeravam lilholesi raiados; Deus
tirov. a vosso pai o gado é o dou a mim"(Gén 30. 7-9).
No v. 16 respondem Raquel e Lia: "Slm: toda a riqueza que Deu 3 (ircu
de nosso pai perlence ce nos e a nossos iilhos".

Estes versículos indicam a causa profunda de um fenóme


no que vulgarmente se atribuía ao artificio utilizado por Jaco:
Deus se dignou corresponder gratuita e soberanamente á ex
pectativa do Patriarca, dando bom éxito ao seu precario expe
diente. Nao se invoque, pois, o texto de Gen 30 como testemu-
nho de tese científica falsamente atribuida á Biblia.

— 21 —
ANGLO-AMERICANO (Rio de Janeiro):

8) "Queira explicar o texto de Le 22,18, em que Jesús


diz que nao beberá mais do fruto da videira antes que lenha
vindo o Reino de Deus".

Antes do mais, eis na íntegra o texto e o contexto de que


se trata:

22.14 "Chegada a hora, pós-se desús) a mesa com os Apostólos, 15 e


Ihes disse: "Desojol ardentemente comer esta Páscoo convosco antes de so-
frer, 16 porque afirmo que nao mais a comerei até que se cunipra no Reino
de Deus". ¡
17 Tomando entáo um cálice, deu grajos e disse: "Tomtri-o e distri-
bu!-o entre vos, 18 pois vos digo, nao mais beberei do irvito da vSnha, até que
tenha vindo o Reino de Deus".
19 Depola, tomando o pao e dando «iracas, partiu-o e deu-o, dizendo-
-lhes: "Islo é o meu corpo. que será entregue por vés; fazel isto em memoria
de mim". .

20 Fez o mesmo com o cálice, no lim da cela, dizendo: "Éste cálice é a


Nova AHanca no meu sangue, que será derramado por vos".
i
Analisemos sumariamente o trecho ácima.
No v. 15 exprime Jesús o seu vivo desejo de comer com os
discípulos a sua última ceia de Páscoa, tal como era prescrita
pela Lei de Moisés; por ocasiáo dessa refeicáo, o Divino Mestre
tinha em vista instituir grandes coisas.
No v. 16 diz Jesús que nao mais comerá dessa ceia "até
que se cumpra no Reino de Deus". Considera assim o rito mo
saico como figura de uma realidade maior, plena, que é a ceia
do Reino de Deus. Esta se realiza em duas etapas:... de modo
incoativo na Eucaristía, refei^áo sobrenatural da Igreja, do
Reino de Deus iniciado na térra;... de modo perfeito, na pa
tria celeste, na visáo beatífica (Reino de Deus Consumado),
que Jesús em suas parábolas nao raro compara a urna grande
ceia (cf. Mt 8,11; 22,1-14; Le 13,15-24).
Depois destas premissas, os vv. 17 e 18 supóem a obser
vancia do ritual judaico, e aludem a um dos quatro cálices de
vinho que o presidente da mesa devia distribuir aos seus con
vivas, dando previamente gragas a Javé por ter libertado da
servidáo do Egito o seu povo. Reconhecidamente, nao se trata
de vinho eucarístico (faltam as palavras da consagrado).
Com referencia particular a ésse cálice judaico, afirma o Se-
nhor que é figura de uma realidade que estará consumada no
Reino de Deus, isto é (como ácima dito), na Igreja... na Igre-<
ja militante e peregrina, mediante a Eucaristía;... na Igreja

— 22 —
triunfante, mediante a visáo beatífica. Como se entende, Jesús
é conviva da ceia aucarística e da "ceia celeste" únicamente
por metáfora: o Cristo glorioso nao come nem bebe, mas se
entrega aos seus fiéis em uniáo íntima.
De resto, assim como os vv. 17 e 18 aludem particularmen
te ao vinho ritual judaico, pode-se crer que os vv. 15 e 16 se
referem de maneira especial ao cordeiro judaico.
Pois bem; aos símbobos o Senhor opóe, logo a seguir, a rea-
lidade simbolizada: paralelamente aos vv. 15 e 16 vem o v. 19,
segundo o qual Jesús entrega o pao eucarístico como sendo a
sua carne imolada, a carne do verdadeiro Cordeiro que tira
os pecados do mundo; paralelamente aos vv. 17 e 18 está o v.
20, em que Jesús distribuí o vinho eucarístico como sendo o
seu sangue derramado para selar nova Alianza, da qual a ali
anza mosaica era mero prenuncio.
Note-se agora a estrutura da passagem, tecida pelo para
lelismo dos versículos:

vv. 15 e 16 v. 19
(cordeiro "tipo") (cordeiro "antítipo")
vv. 17 e 18 v. 20
(cálice "tipo") (cálice "antítipo")

Destarte Sao Lucas nos referiu a instituicao da S. Euca


ristía colocando-a plenamente sobre o seu fundo mosaico e
fazendo ressaltar o seu caráter de consumagáo de realidades
alegóricas antigás. Sao Mateus (26,20) e Sao Marcos (14,25)
só depois das palavras da consagradlo (e nao antes, como faz
Sao Lucas) referiram a alusáo ao "reino de Deus no qual Jesús
bebería de um vinho novo". A ordem observada pelo terceiro
Evangelista parece corresponder melhor á serie dos aconteci-
mentos verificados na última ceia; Mt e Me neste ponto sao
sumarios e menos cronológicos.

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

DESCONFIADO (Petrópolis):

9) "Gostaria de saber alge de mais exato sobre a Inqui-


sicáo. Se os "velhos tempos" voltassem, a Igreja restaura
ría a Iriquisigáo?"

— 23 —
A Inquisi?áo nao foi criada de urna só vez nem proceden
sempre do mesmo modo no decorrer dos séculos. Por isto dis-
tinguem-se

1) a lnquisigáo Medieval, voltada contra as heresias ca


tara e valdense nos séc. XII/XIII e contra um falso misticis
mo do séc. XIV;

2) a Inquisigáo Espanhola, instituida em 1478 por inicia


tiva dos reis Fernando e Isabel; visando principalmente os ju-'
deus e os muc,ulmanos, tornou-se poderoso instrumento do ab-
soJutismo dos monarcas espanhois até o séc. XIX, a ponto de
quase nao poder ser considerada instituido eclesiástica (nao
raro a Inquisigao espanhola precedeu independentemente de
Roma, resistindo á intervengo da Santa Sé, porque o rei da
E<.panha a esta se opunha);

3) a Inquisicjío Romana. (também dita "o Santo Oficio"),


instituida em 1542 pelo Papa Paulo III, em vista do surto do
Protestantismo.

Apesar das modalidades de que se revestiu, a Inquisigao


medieval e romana foi movida por alguns principios e u'a men-
talidade característicos; é justamente a estes principios que
o historiador deve voltar a sua atenc,áo, a fim de poder for
mular um juízo sobre a famosa instituido. Conscientes disto,
examinaremos as origens da Inquisicjío, seus procedimentos
mais famigerados, para finalmente chegarmos a urna aprecia-"
§3o objetiva do acontecimento histórico.

1. Origens da Inquisicáo

No antigo Direito Romano, o juiz nao empreendia a pro


cura dos delituosos; só procedía ao julgamento depois que lhe
fósse apresentada a denuncia. Até a Alta Idade Media, o mes
mo se deu na Igreja: a autoridade eclesiástica nao procedia
contra os delitos se estes nao lhe fóssem previamente deferi
dos. No decorrer dos tempos, porém, esta praxe mostrou-se in
suficiente. Além disto, no séc. XI apareceu na Europa nova
forma de delito religioso, isto é, urna heresia fanática e revo
lucionaria, como nao houvera até entáo: o catarismo (do grego
katharós, puro) ou o movimento dos albigenses (de Albi, cida-
de da Franga meridional, onde os herejes tinham seu foco .prin-

— 24 —
cipal). Considerando a materia por si má, os cataros rejeita-
vam nao sómente a face visíwl da Igreja, mas também ins-
tituigóes básicas da vida civil — o matrimonio, a autoridade
governamental, o servigo militar — e enalteciám o suicidio.
Destarte constituiam grave ameaga nao sómente para a fé
crista, más lambém para a vida pública.
Em bandos fanáticos, ás vézes apoiados por nobres senho-
res, os cataros provocaram tumultos, ataques ás igrejas, etc.,
por todo o decorrer do séc. XI até 1150 aproximadamente, na
Franga, na Alemanha, nos Países-Baixos... O povo, com a sua
espontaneidade, e a autoridade civil se encarregaram de os re
primir com violencia: nao raro o poder regio da Franga, por
iniciativa própria e a contra-gósto des bispos, condenou á mor-
te pregadores albigenses, visto que solapavam os fundamentos
da ordem constituida. Foi o que se deu, por exemplo, em Orlé-
ans (1017) ■, onde o rei Roberto, informado de um surto de he-
reí-ia na cidade, compareceu pessoalmente, procedeu ao exame
dos herejes e os mandeu langar ao fogo; a causa da civiliza-
gáo e da ordem pública se identificava com a da fé! Entre men
tes a autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas espi-
rituais (excomunháo, interdito, etc.) aos albigenses, pois até
entáo nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido
combatida por violencia física; S. Agostinho (t 430) e antigos
bispos, S. Bernardo (t 1153), S. Norberto (t 1134) e outros mes-
tres medievais eram contrarios ao uso da fórga ("Sejam os
herejes conquistados nao pelas armas, mas pe,los argumen
tos", admoestava Sao Bernardo, In Cant serm. 64).

Nao sao casos ¡solados os scgulnlos: em 1144 ña cidade de Liáo o povo


quls punir violentamente um grupo de ¡novadores que ai se introduilia; o
clero, poiém, os salvou, desojando a sua conversó», e nao a suo morte. Em
1077 um hereje professou seus eiros dianle do blspo de Cambrala; a muí-
tidáo de populares lancou-se entáo sobre ele, som esperor o Juicamente;
cncerraram-no nuna cabana, a qual atearam o logo!

Contudo em meados do séc. XII a aparente indiferenca do


clero se mostrou insustentável: os magistrados e o povo exi-
giam colaboragao mais direta na repressáo do catarismo. Mui-
to significativo, por exerrfplo, é o episodio seguinte: o Papa Ale-
xandre III, em 1162, escreveu ao arcebispo de Reims e ao Con
de da Flándria, em cujo territorio os cataros provecavam de-
sórdens:

"Mais vale absolver culpados do que. por excossiva severldade, atacar


a vida de Inocentes... A mansidáo mais convém aos homens da Igreja do
quo a d:iroza".

— 25 —
Informado desta admoestagao pontificia, o rei Luís VII de
Franga, irmáo do referido arcebispo, enviou ao Papa um do
cumento em que o descontentamento e o respeito se traduziam
simultáneamente:

'Que vossa prudencia dé alencáo todo particular a essa peste (a hero


sia) e a suprima antes que poesa crescer. Suplico-vos pana hem da ié crista:
concedei todos os poderes nosto campo ao arcebispo (de Reims); ele destrui
rá os que assim se insurgem contra Deus; sua justo severidade será louva-
da por todos aqueles que nesta tena sao animados do verdadotra piedade.
Se procederdes de outro modo, as qucixas nao so acalmaráo {ácilraente e de-
sencadeareis contra a Iqroia Romana as violentas recrlminacóes di opiniáo
pública (Marlene, Amplissima Collecl'.o II 683s).

As conseqüéncias déste intercambio epistolar nao se fize-


ram esperar muito: o concilio regional de Tours em 1163, to
mando medidas repressivas a heresia, mandava inquirir (pro
curar) os seus agrupamentos secretos. Por fim, a assembléia
de Verona (Italia), á qual compareceram o Papa Lucio III, o
Imperador Frederico Barbarroxa, numerosos bispos, prelados e
príncipes, baixou em 1184 um decreto de grande importancia:
o poder eclesiástico e o civil, que até entáo haviam agido inde-
pendentemente um do outro (aquéle impondo penas espiritu-
ais, éste recorrendo á fórga física), deveriam combinar seus
esforgos em vista de mais eficientes resultados: os herejes se-
riam doravante nao sonriente punidos, mas também procurados
(inquiridos); cada bispo inspecionaria, por si ou por pessoas
de confianza, urna ou duas vézes por ano, as paróquias suspei-
tas; os condes, baróes e as demais autoridades civis es deve-
riam ajudar sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito
lanzado sobre as suas térras; os herejes depreendidos ou ab-
jurariam seus érros ou seriam entregues ao brago secular, que
lhes imporia a sangáo devida.
Assim era instituida a chamada "Inquisigáo episcopal", a
qual, como mostram os precedentes, atendía a necessidades reais
e a clamores exigentes tanto dos monarcas e magistrados c'vis
cerno do povo cristáo; independentemente da autoridade da
Igreja, já estava sendo praticada a repressáo física das heresias.
No decórrer do tempo, porém, percebeu-se que a Inquisi-í
gao episcopal ainda era insuficiente para deter os inovadores;
alguns bispos, principalmente no sul da Franga, eram tolej
rantes; além disto, tinham seu raio de agáo limitado as .respec
tivas dicceses, o que lhes vedava urna campanha eficiente. A
vista disto, os Papas, já em fins do séc. XII, comegaram a no-
mear legados especiáis, munidos de plenos poderes para proce-

— 26 —
der contra a heresia onde quer que fósse. Destarte surgiu a
"Inquisigáo pontificia" ou "legatina", que a principio ainda
funcionava ao lado da episcopal, aos poucos, porém, a tornou
desnecessária. A Inquisigáo papal recebeu seu caráter defini
tivo e STia organizado básica em 1233, quando o Papa Grego
rio IX confiou aos dominicanos a missáo de Inquisidores; ha-
veria doravante, para cada nagáo ou distrito inquisitorial, um
Inquisidor-Mor, que trabalharia com a assisténcia de nume-i
roses oficiáis subalternos (consultores, jurados, notarios...),
em geral independentemente do bispo em cuja diocese esti-
vesse instalado. As normas do procedimento inquisitorial fo->
ram sendo sucessivamente ditadas por bulas pontificias e de-
cisóes de concilios.
Enfréntenles a autoridade oivil contlnuava a aqli, com zélo surpreen-
denle (!), contra os sectarios. Chama a ate.icáo, por oxetnplo, a conduta
do Imperador Frederico II. um dos mais porigosos adversarlos que o Papado
teve no béc. XIII. Em 1220 éslo monarca exlglu de lodos os oficiaos do seu
go/érno. promelessem expulsar de suas Ierras os herejes reconhecidos pela
Igreja; declarou a heresla crime de lesa-ma¡estade, ■suieito a pena de moile
e mandón dar busca aos herejes. Em 1224 publlcou decreto mais severo "do
que quaíquer das leis editadas pelos reís ou Papas anterioros: as autorida
des cívis da Loir&ardla deveriam nao sómenlo enviar ao logo quem tivesse
side comprovado hereje pelo bispo, mas aínda corlar a lingua aos sedarlos
a quem, por razóos particulares, so houvesse conservado a vida. E' possível
que Frederico II visasse ¡nterésses próprios na campanha contra a heresia;
os bons confiscados redundarían! e.n proveilo da coroa.
Nao menos típica ó a alilude de Henriaue II, rei da Inglaterra: londo
entrado em lula contra o arceblspo Tomaz Becket, primaz de Cantuárla.
e o Papa Alexandre III, foi excomungado. Nao obslanle, mostrou-se um dos
mais ardorosos repressores da heresia no seu reino: em 1185, por exemplo,
alcuns herejes da Tlfindria tendo-se refugiado na Iriglaieitoj, o monarca
maedou prendé-los) marcá-los com ierro vermelho na testa e expó-los, assim
desfigurados, ao povo: além dislo, proibia aos seus súditos lhes dessem asilo
ou Ihes prestassem o mínimo servico.
Estes dois episodios, que nao sao únicos no seu género, bem mostram
que o proceder violento conira os herejes, longe do 1er sido serop'ré inspira
do pola suprema autorldado da Igroja, foi nao raro desencadeado indopen-
dentemente desta, por poderes que esiavam om confuto com a' própria Igiela.
A Inquisicáo. em toda a sua historia, se ressentiu dessa usurpacáo de direitos
ou da demasiada ingerencia den autoridades civis em questóes qus dependem
primariamente do loro eclesiástico.

Em conclusáo, o histórico das origens da Inquisigáo leva-


-nos a ver que esta nao foi concebida como órgáo de intransi
gencia odiosa, mas, sim, qual medida defensiva do bem co-
mum, religioso e civil. Consciente disto, o historiador distingue
entre a intengáo dos homens da Igreja que instituiram a Inqui
sigáo, e a conduta daqueles que a executaram, conduta que
passamos a analisar.

— 27 —
2. Alguns dos procedimcntos da Inquisicáo

As táticas utilizadas pelos Inquisidores sáo-nos hoje noto


rias, pois ainda se conservam Manuais de instrucoes práticas
entregues ao uso des referidos oficiáis. Quem le tais textos,
verifica que as autoridades visavam fazer dos juízes inqui-
sitoriais auténticos representantes da justica e da causa do
bem. Bernardo de Gui (séc. XIV), por exemplo, tido como um
dos mais severos Inquisidores, dava as seguintes normas aos
seus colegas:

"O Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zélo pelo verdade
religiosa, pela |ialva;áo das almas e pela extirpa;áo da» hereslas. Em meio
as diiiculdadcs permanecerá calmo, nunca cederá a cólera nem a Indigna-
gao... Nos casos duvidosos. ee\a circunspecto, nao de fácil crédito ao que
parece provável e mullas véies nao é verdade; tamben» nao rejeile obstina
damente a opiniáo contraria, pois o que parece impcovávol ireqüentemenle
acaba por ser comprovado como verdade... O' amor da verdade o a piedade,
que devem residir no coracero de um juiz, brilhem nos seus olhos, a fim do
que, suas decisóes lamáis pnssam parecer ditada? pela cupidez e a cruelda-
de" (Pratica VI p... ed. Douis 232s).

Já que mais de urna vez se encontram instru?6es tais nos


arquivos da Inquisicáo, nao se poderia crer que o apregoado
ideal do Juiz Inquisidor, ao mesmo tempo equitativo e bom, se
' realizou com mais freqüéncia do que comumente se pensa?
Nao se deve esquecer, porém, (como abaixo mais explícitamen
te se dirá) que as categorías pelas quais se afirmava a justica
na Idade Media, nao eram exatamente as da época moder-i
na... Além disto, levar-se-á em conta que o papel do juiz, sem-
pre difícil, era particularmente arduo nos casos da Inquisicáo:
o povo e as autoridades civis estavam profundamente interes-
sados no desfecho dos processos; pelo que, nao raro exerciam
pressáo para obter a sententja mais favorável a caprichos ou
a interésses temporais; as vézes, a populacáo obcecada aguar-
dava ansiosamente o dia em que o "veredictum" do juiz entre
garía ao braco secular os herejes comprovados. Em tais cir
cunstancias nao era fácil aos juízes manter a serenidade de-
seiável.
Dentre as táticas adotadas pelos Inquisidores, merectm
particular atengáo a tortura e a entrega ao poder secular (pe
na de morte).
A tortura estava em uso entre os gregos e romanos pré-
-cristáos que quisessem obrigar um escravo a confessar seu

— 28 —
delito. Certos povos germánicos também a praticavam. Em
866, porém, dirigindo-se aos búlgaros, o Papa Nicolau I a. conT
denou formalmente. «,
Nao obstante, a tortura foi de novo adotada pelos tribu-
nais civis da Idade Media nos inicios do séc. XIII, dado o re-
nascimento de Direito Romano. Nos processos inquisitoriais,!
o Papa Inocencio IV acabou por introduzí-la em 1252, com a
cláusula: "Nao haja mutilacáo de membro nem perigo de mor-
te" para o réu. O Pontífice, permitindo tal praxe, dizia confoH
mar-se aos costumes vigentes em seu tempo (Bullarum am-
plissima collectio II 326).
Os Papas subseqüentes, assim como os Manuais dos In
quisidores, procuraram restringir a aplicaQáo da tortura: só
seria lícita depois de esgotados os outros recursos para inves
tigar a culpa e apenas nos casos em que já houvesse meia-pro-
va do delito oa, como dizia a linguagem técnica, dois "índices
veementes" déste, a saber: o depoimento de testemunhas fi
dedignas, de um lado, e, de outro lado, a má fama, os maus cos-(
turnes ou tentativas de fuga do réu. O concilio de Viena (Fran
ca) em 1311 mandou outrossim que os Inquisidores só recor-
ressem á tortura depois que urna comissáo julgadora e o bispo
diocesano a houvessem aprovado para cada caso em particular.
— Apesar de tudo que a tortura apresenta de horroroso,
ela tem sido conciliada com á mentalidade do mundo moder
no...: ainda esta va oficialmente em uso na Franga do séc.
XVIII e tem sido aplicada até mesmo em nosscs dias...
Quanto á pena de morte, reconhecida pelo antigo Direito
Romano, estava em vigor na jurisprudencia civil da Idade Me
dia. Sabe-se, porém, que as autoridades eclesiásticas eram con1
trárias á sua aplicagáo em casos de lesa-religiáo. Contudo, após
o üurto do catarismo (séc. XII), alguns canonistas comsgaram
a julgá-la oportuna, apelando para o exemplo do Imperador
Justiniano, que no sécr VI a infligirá aos maniqueus. Em 1199
o Papa Inocencio III dirigia-se aos magistrados de Viterbo nos
seguintes termos:

''Conforme a lei civil, os réus de loga-majestado sao punidos com a pena


capital c seus bons sao confiscados... Com multo mais razáo, portanto, oque--
les que, desellando a ié, ofendem a Jesús, o Filho do Senhor Deas, devem
ser separados da comunháo crista e despojados de seus bens, pois milito mais
grave ó ofender a Majsslade Divina do que losar a maieslade humana" (eplst. 2.1).

— 29 —
Como se vé, o Sumo Pontífice com essas palavras desejava
apenas justificar a excomunháo e a confiscacáo de bens dos
herejes; estabelecia, porém, urna comparacáo que daría oca-
silo a nova praxe... O Imperador Frederico II soube deduzir-
-lhe as últimas conseqüéncias: tendo lembrado numa constitui-
gáo de 1220 a frase final de Inocencio III, o monarca, em 1224,
decretava francamente para a Lombardia a pena de morte con
tra os herejes e, já que o Direito antigo assinalava o fogo em
tais casos, o Imperador os condenava a ser queimadcs vivos.
Em 1230 o dominicano Guala, tendo subido á cátedra'episco
pal de Bréscia (Italia), fez aplicacáo da lei imperial na su a
diocesse. Por fim, o Papa Gregorio IX, que tinha intercambio
freqüente com Guala, adotou o modo de ver déste bispo: trans-
creveu em 1230 ou 1231 a constituido imperial de 1224 para
o Registre das cartas pontificias e em breve editcu urna lei pela
qual mandava que os herejes reconhecidos pela Inquisigáo fós-
sem abandonados ao poder civil, para receber o devido castigo,
castigo que, segundo a legislado de Frederico II, seria a morte
pelo fogo.
Os teólogos e canonistas da época se empenharam por jus
tificar a nova praxe; eis cerno o fazia S. Tomaz de Aquino:

"E" mullo mais grave corrompor a lé. que é a vida da alma, do que ial-
ilflcar a moeda, que é um meló de piover á vida temporal. Se. pois. os fal
sificadores de moedas e oulros malieilores sao. a bom direilo. condenados
a moría peles príncipes seculares, com .multo mais raías os .herejes.' desde
que sejam comprovados tais, podem nao sámente ser excomungados, mai
lambém em toda justica ser condenados a morte" (Suma Teológica II/I1 11,3c).

A argumentado do S. Doutor procede do principio (sem


dúvida, auténtico em si, mas pouco significativo para o mundo
moderno) de que a vida da alma mais vale do que a do corpo;
se, pois, alguém pela heresia ameac.a a vida espiritual do pro
ximo, comete maior mal do que qaem assalta a vida corporal;
o bem comum entáo exige a remocáo do grave perieo (veia-se
também S. Teol. II/II 11,4c).

Contudo as execucóes capitais nao loram tño numerosas quanto se po


derla crer. Infelizmente ialtam-nos estatístlcas completas sobre o assunto; consta,
porém, que o' tribunal de Pamlors, de 1308 a 1324, pronunciou 75 senteucaa
-condenatorias, das quais oponas cinco mandavam entregar o réu ao poder
civil (o que equivalía a morte); o Inquisidor Bernardo de Gui em Tolosa,
de 1308 a 1323, proferiu 930 sentengas, das quais 42 eram capitals; no primeiro
caso, a proporcáo é de 1/15; no segundo caso, de 1/22.

— 30 —
Nao se poderia negar, porém, que houve injusticas e abu
sos da autoridade por parte dos juízes inquisitoriais. Tais ma
les se devem á conduta de pessoas que, em virtude da fraque-1
za humana, nao foram sempre fiéis cumpridoras da sua mis-
sáo. Os Inquisidores trabalhavam a distancias mais ou menos
consideráveis de Roma, numa época em que, dada a precarie-
dade de correios e comunicac.óes, nao podiam ser asiduamen
te controlados pela suprema autoridade da Igreja. Esta, porém,
nao deixava de os censurar devidamente, quando recebia no
ticia de algum desmando verificado em tal ou tal regiáo .

Famoso.' por oxemplo, é o caso de Roberto o Buqro, Inqulsidor-Mor de


Franca no séc XIII. O Papa Gregorio IX a principio muilo o ielicilava por
' seu zélo. Roberto, porém, tenáo gderido outrora a heresia, mostrava-so exces-
sivamente violento na repreqsao da mosma. Informado dos desmandos prali-
cados pelo Inquisidor, o Papa o destituju de suas fun;5es e mandou encar-
cerar. — Inocencio IV, o mesuro Pontífice quo pernütiu a tortura nos procés
eos da Inquisicáo. e Alex'andre IV. respectivamente em 1246 o 1256. mandaram
aos Padres ProvinciaU o Gerals dos Dominicanos e Franciscanos, depusesssm
as Inquisidores de sua Ordem que se Ihes tornassem notorios por sua cmel-
dade. - I
O Papa Bonifacio VIH (1294-1303). famoso pela tenacidade e ■ instranui-
gor.cia de suas atitudes, ioi um dos que mais roprkniram 03 ex^e-^os do? In
quisidores, mandando examinar, ou sSaiplesmente anulando, sentencas pro
feridas por estes. >
O concilio regional de Narbona (Franca) em 1243 promulgou 29 artigos
que v¡savU:n impedir abusos do poder. Ent"? outras normas, prescrev'a aos -
Inquisidores só profcrissem sentenca condenatoria nos casos em que, com se
guranza, tivessem apurado alguna falta, "pols mais vale deixar uir. culpado\
Impune do quo condena um inocente" (can. 23).
Dirigindo-se o» Impensdor Fredor'ca II, pioneiro dos métodos inqutalto-
riais, o Papa Gregorio IX aos 15 do )ulho de 1233 ihe lembrava que "a arma
manejada pelo Imperador nao devia servir para satlsfaier eos bous rancores
pessoais, com grande escándalo dan populacóes, com detrimento da verdade
e da dlgnidade imperial" (ep. saec. XIII 538.550).

Conclusáo

Procuremos agora formular um juízo sobre a Inquisigáo


medieval. .
Nao é necessário ao católico justificar tudo que, em nome
desta, foi feito. E' preciso, porém, que se entendam as inten§5es
e a mentalidade que moveram a autoridade eclesiástica a ins
tituir a Inquisicáo. Estas intenses, dentro do quadro de pen-
samento da Idade Media, eram legítimas; diríamos até: de-
viam parecer aos medievais inspiradas por santo zélo. Podem-se
reduzir a tjuatro os fatores que influiram decisivamente no
surto e no andamento da Inquisicáo: -
1) os medievais tinham profunda consciéncia do valor da
alma e dos bens espirituais (consciéncia que hoje em dia se

— 31 —
acha muito atenuada). Táo grande era o amor á fé (esteio da
vida espiritual) que se considerava a deturpac,áo da fé pela
heresia como um dos maiores crimes que'o homem pudesse
cometer (notem-se os textos de S. Tomaz e do Imperador Fre-
derico I ácima citados); essa fé era táo viva e espontánea que
difícilmente se admitiría viesse alguém a negar com boas m-
tencóes um só dos artigos do credo.

2) As categorías de justiga na Idade Media eram um


tanto diferentes das nossas: havia muito mais espontaneidade
(que as vézes equivalia a rudez) na defesa des direitos. Pode-se
di?er que os medievais, no caso, seguiam mais o rigor da lógica
do que a ternura do sentimento; o raciocinio abstrato e rígido
neles prevalecia por vézes sobre o senso psicológico (nos tem-
pos atuais verifica-se quase o contrario: muito se apela para
a psicología e o sentimento, pouco se segué a lógica; os ho-
mens modernos nao acreditam muito em principios perenes;
tendem a tudo julgar segundo criterios relativos e relativistas,
criterios de moda e de preferencia subjetiva).

3) A intcrvenc.áo do poder secular excrceu profunda in


fluencia do desenvolvimento da Inquisicáo. As autoridades ci-
vis anteciparam-se na aplicagáo da fórca física e da pena de
morte aos herejes; instigaram a autoridade eclesiástica para
que agisse enérgicamente; provocaram certos abusos motiva
dos pela cobica de vantagens políticas ou materiais. De resto,
o poder espiritual e o temporal na Idade Media estavam, ao
menos em tese, táo unidos entre si que lhes parecía normal,
recorressem um ao outro em tudo que dissesse respeito ao bem
comum. A partir dos inicios do séc. XIV a Inquisicáo foi sendo
mais e mais explorada pelos monarcas, que déla se serviam
para promover seus interésses particulares, subtraindo-a as di-
rtivas do poder eclesiástico, até mesmo encaminhando-a contra
éste; é o que aparece claramente no processo inquisitorio
dos Templarios, movido por Filipe o Belo da Franca (1285-
1314) á revelia do Papa Clemente V; cf. "P.R." 15/1959, qu. 7
(Templarios).

4) Nao se negará a íraqueza humana de Inquisidores e


de oficiáis seus colaboradores. Nao sería lícito, porém, dizer
que a suprema autoridade da Igreja tenha pactuado com ésses
atos de fraqueza; ao contrario, tem-se o testemunho de nume
rosos protestos enviados pelos Papas e concilios a tais ou tais
oficiáis, contra tais leis e tais atitudes inquisitoriais. As de
clarares oficiáis da Igreja concernéntes á Inquisicáo se en-
quadram bem dentro das categorias da justi$a medieval; a
injustica se verificou na execugáo concreta das Jéis.
Diz-se, de resto, que cada época da historia apresenta ao
observador um enigma próprio: na antigüidade remota, o que
surpreende sao os desumanos procedimentos de guerra. No
Imperio "Romano, é a mentalidade dos cidadáos, que nao con-
cebiam o mundo sem o seu Imperio (oikouméne ■■= orbe habi
tado = Imperium). nem concebiam o Imperio sem a osera-
vatura. Na época contemporánea, é o relativismo ou ceticismo
público; é a utilizado dos requintes da técnica para "lavar o
cránio". uesfazer a personalidade, fomentar o odio e a paixác.
Nao seria entáo possível que es medievais, com boa fé na cons-
ciéncia, tenham recorrido a medidas repressivas do mal que o
homem moderno, com razáo. julga demasiado violentas?
Quanto á Inquisicáo Romana, instituida no séc. XVI, era
herdeira das leis e da mentalidade da Inquisigáo medieval. No
tocante á Inquisigáo espanhola, sabe-se que agiu mais por in
fluencia dos monarcas de Espanha do que sob a responsabili-
dade da suprema autoridade da Igreja.

V. MORAL

M. L. S. P. (Rio de Janeiro):

10) "Quais os direitos do individuo anormal e do mons-


tro?"

Em vista de clareza no assunto, devemos distinguir entre


o anormal psíquico e o anormal físico. Muito mais importante
é o primeiro caso, do qual passamos a tratar.

1. Todo individuo descendente de auténtica linhagem


humana tem alma espiritual, dotada de inteligencia e von-
tade. Como se sabe (cf. "Pergunte e Responderemos"
3/1957, qu. 1). a alma, embora destinada a se unir a tal corpo,
nao depende déste em sua existencia; é criada diretamente por
Deus e sobrevive fora do corpo. Contudo, destinada a se unir
a um corpo e com éste chegar á sua perfeic,áo, ela nao pode
exercer as suas atividades, nem mesmo as mais elevadas (que

— 33 —
sao as da inteligencia e da vontade), caso nao receba do corpo
ou dos sentidos os objetos ou o "material" a serem elaborados
pelo intelecto. "Nada há no intelecto que nao tenha estado
primeiramente nos sentidos", já dizia o filósofo grego Aristó
teles. E note-se que neste adagio nao se trata apenas dos sen
tidos externos (olhar, audicáo, gósto, olfato, tato), mas tam-
bém dos internos (a memoria sensitiva, a fantasía ou imagi-
nacáo, a estimativa e o sentido comum). Ora os sentidos estáo
localizados em determinado órgáo corpóreo e funcionam todos
em relac,áo direta ou indireta cora o cerebro. Disto se segué que,
quando o cerebro do individuo é afetado por alguma molestia
ou lesáo, a vida sensitiva sofre daño total ou parcial — o que
impede ou dificulta o exercício da inteligencia humana. Acon
tece entáo que o doente, embora possua verdadeira alma espi
ritual ou intelectiva, nao a possa manifestar; jamáis raciocina
ou só raciocina com intermitencia e imperfeitamente. E' o ca-«
so das pessoas que nascem psíquicamente taradas e em idade
alguma chegam ao pleno uso da razáo, assim como o daque-
las que, em virtude de doengas, perdem o uso normal da razáo;
ésses anormais vivem como se nao tivessem inteligencia, quan
do de fato a tém, mas nao a podem exprimir, porque o corpo
nao lhes fornece os dados necessários ao seu funcionamento. ■ —
Note-se que a criancinha sadia se acha em condicoes análogas,
enquanto os seus órgáos sensitivos nao estáo suficientemente
desenvolvidos, ou seja, até a chamada "idade da razáo".

Todos os alienados, pelo fato de possuir alma intelectiva,


gozam de personalidade humana e sao por Deus destinados a
um fim transcendente cu sobrenatural. Possuem, em conse-
qüéncia, certos direitos intransferíveis ou, se quisermos, Deus
ncles possui direitos intangíveis; tais sao:

a) o direito de viver. A vida humana é dom do Criador,


do qual nao é lícito, nem ao individuo nem á sociedade, disppr
soberanamente. Portanto nao é permitido praticar o aborto,
eliminar crianzas ou adultos que sejam debéis mentáis ou ali
enados. O individuo humano, nác sendo feito simplesmente
para a sociedade nem para éste mundo, tem o direito de ser
sustentadopelos seus semelhantes, mesmo quando de modo
nenhum possa trabalhar e produzir.

b) No piano religioso, tém direit0 ao sacramento do ba-

— 34 —
üsmo, como o feto e a criancinha normáis o tém, direito ao
qual corresponde da parte da sociedade o dever de prover ao
batismo, a fim de que a alma existente no individuo irrespon-
sável seja salva.

c) Quanto á recepcáo dos demais sacramentos, fica su


bordinada ao uso da razáo de que tais^ pessoas gozem. Se nun
ca chegam a tal, permanecem abaixo da ordem moral, irres-
ponsáveis como as criancas inconscientes, por isto também
incapazes de pecar, de se confessar, de receber a santa Comu-
nháo, de contrair vínculo matrimonial, etc. Se possuem luci
dez mental ccm intermitencia, tém o direito de receber os sa
cramentos de que precisem para sua santificado, desde, po-
rém, que tenham a devida instruijáo e as- disposi^óes conveni
entes. No tocante ao matrimonio, S. Tomaz ensina que os que
gozam de períodos de lucidez sao capazes de consentimento
• matrimonial, mas que nao convém admití-los ao casamento,
"porque nao poderiam educar seus filhos" (S. Teol., Supl. 58,8).

Está claro que os alienados só seráo julgados por Deus na


medida em que sao responsáveis por seus atos (medida cujas
proporcóes escapam ao observador humano) e segundo os cri
terios brandos exigidos por seu estado mais ou menos mórbido.
Quem enlouqueca definitivamente depois de ter gozado do uso
da razáo. é julgado na base do seu último período de lucidez;
quem a intervalos recupera o uso da razáo, é julgado na base
dos últimos atos que pratique de maneira consciente e re?-
ponsável.

2. Os individuos psíquicamente saos, mas afetados de


doenga contagiosa ou dcfeito físico, seja por hereditariedade,
seja por acídente pessoal. gozam naturalmente dos direitos de
personalidade ácima descritos. Por conseguinte, nao é lícito
exterminá-los, nem submeté-lcs á esterilizagá0 nem reduzí-los
á categoria de meros objetos de experiencias médicas (cobaias).

Em particular, a Moral crista, tendo em vistas teorías so


ciológicas modernas, insiste no direito que a tais pesscas assis-
te. de contrair matrimonio. Caso se preveja que gerará0 filhcs
doentes (previsáo por vézes assaz hipotética), poder-se-á, no
máximo, aconselhar-Ihcs o celibato. E' o que Pió XI, repetindo

— 35 —
a doutrina tradicional da Igreja, inculcou nos seguintes ter
mos:

"Hó alguns que, demasiado solícitos com a eugenesia, nao se contentáis


com dar canselhos oportunos para prover mais seguramente a saúde e ao
vigor da prole lutura... roas querem que a autoridade pública proibo o ma
trimonio a todas as pessoas das quais julgam. segundo as normas c conje
turas de sua ciencia, háo de nascer filhos defeiluosos por transmissáo here-
ditáiia. embora essas mismas pessoas seiam por si aptas a contrair matrimo
nio. Querem 'mesmo que. por fórca la lei, esf.rs pessoas seiam. mediante
intervencáo médica e contra a sua vontade. destituidas do direito natural de
pe casar .. Alribuem aos magistrados civis. contra todo direito e legiümi-
dade. um poder que nunca tiverair. nem podem legítimamente ter.
Os que déste modo procedem, esquecem perversamente que a familia é
mais santa do que o Estado e que os homens sao primaciamente gerados nao
para a Torra e o tempo. mas para o Céu e a eternidade. De modo nenhum
é lícito incriminar por se casarem, homens que por si sao engaza de se casar,
embora se provoia que, nao obstante todo o cuidado e diligencia, háo de gerar
prole defeituosa. Verdade é que muitas vézcs a ésses tais se de verá dosaconse-
lhar o matrimonio" (Ene. "Casti connubii". em "Acta Apcstollcae Sedis"
22 [1930] 564s).

Pió XI, doutro lado, insiste na mesma encíclica sobre a


grave responsabilidade que, perante Deus, a sociedade e a fu
tura prole, assumem os individuos doenles que contraem ma
trimonio.
Em suma, a doutrina católica concernente aos direitos dos
individuos anormais consiste em inculcar que sagrada e in-
tangível é a personalidade humana.

MARÍA CLAUDIA (Rio de Janeiro):

11) "O hipnotismo pode acarretar algum mal? Será lí


cito ao cristáo deixar-sc hipnotizar freqiientemente pela mes
ma pessoa?"

A hipnose é um estado de sonó em que 0 paciente


fica sujeito as sugestóes ou á vontade de um operador (poden-
do perdurar a influencia déste, mesmo depois de cessado o tran
se). Em estado de hipnose, portante, o individuo perde a sua per
sonalidade em grau maior cu menor, pois é, até certo ponto,
destituido da sua faculdade de raciocinar « da suri vontade
própria. Em tais circunstancias, arrisca-se a cometer atos que
nao cometería em estado de lucidez. Tem sido muito debatida
a questáo: será que o hipnotizador possui poder sugestivo ne-
cessáric para obrigar o paciente a realizar até mesmo acóés
que contrariem a sua consciéncia?

— 36 —
O Dr. Julio Camino (Como se hipnotiza. Madrid), médico
que tem a experiencia de milhares de casos de hipnotismo, afir
ma categóricamente que o hipnotizador pode induzir o pacien
te a crimes gravíssimos. Cita, por exemplo, o caso de urna se-»
nhora hipnotizada a quem ele sugeriu que no dia seguinte en-
venenasse toda a sua familia, lanzando na respectiva comida
um pó que o hipnotizador Ihe consignou (e que naturalmente
era inofensivo). Pois bem; chegada a hora prevista, a senhora,
já libsrta da hipnose, julgandc que ninguém a vía, atirou nos
alimentos de seus familiares o presumido veneno; entrementcn
os interessados e o médico as ocultas a espreitavam! — Nao
todos os autores sao do parecer do Dr. Camino; há quem asse-
gure que o ccnflito psíquico provocado no paciente por urna
ordem imoral pode chegar a despestá-lo do sonó hipnótico.
Contado a tese de Camino parece demais comprovada pelos
fatos para que déla se possa duvidar.

Além disso, sabe-se que a hipnose tem ccnseqüéncias psí


quicas e físicas daninhas para o paciente: pode deformar-lhe a
personalidade, reduzir-lhe a liberdade de arbitrio, excitar-lhe
paixóes para ccm o hipnotizador, assim como influir nociva
mente sobre o coragáo e as grandes arterias d0 organismo.

Tais efeitos justificam as graves restricóes que a Moral


crista faz ao uso da hipnose. Nao é lícito ao homem alheiar-^e
á sua responsabilidade e colocar-se abaixo do nivel da mora-
lidade, pois Deus, tendo feito o homem animal racional, dese-
ja que ele proceda como ser racional e consciente. Sem razóes
imperiosas nao se justifica que alguém se arrisque a cometer
atos degradantes ou a servir aos interésses pecaminosos de
outrem, manifestando segredos, revelando nomes que dever.iam
ficar ocultos, etc.

A consciéncia crista veda, por conseguinte, a hipnotizagáo


praticada a título de mero divertimento. Nao se Ihe opóe, po-
rém, desde que se tenha em mira curar ou aliviar um caso
patológico, como a alucinagáo, a loucura, a insónia, a neuras
tenia, as dores resultantes de intervengáo cirúrgica.
Em tais casos, devidamente diagnosticados, o cuidado el?
hipnotizar só poderá ser confiado a médico perito, comprova-
damente honeste, que trabalha em presenta de testemunhas
moralmente idóneas e com o consentimento do paciente cu de
seus responsáveis.

A liceidade da hipnotizagáo nessas circunstancias fci r£-

— 37 —
conhecida por declaracóes do Santo Oficio promulgadas em
1840, 1847 e 1899, as quais ao mesmo tempo nao deixavam de
chamar a atencáo para os perigos da dita praxe. O Santo Pa
dre Pió XII, aos 24 de fevereiro de 1957, num discurso dirigido
a médicos, pronunciou-se sobre a anestesia em geral, conside
rando explícitamente a hipnose; eis um dos trechos que aquí
nos interessam:

"Pretendo-se obter urna baixa da consciéncia e, por mcio déla, das la-
cuidados superiores, de maneira que se paralísem os mecanismos psíquicos
de dominio utilizados constantemente pelo homem para se governar e dirigir;
éste abandonase enlao sem resistencia ao iógo das associacóes de idéias.
dos sentimentos e impulsos volitivos. Os perigos de tal estado sao evidentes:
pode acontecer que se libertem assim impulsos instintivos imorais... Suspen
der os dispositivos de dominio lomase especialmente perigoso, quando se
choga a provocar a revelacáo dos segredos da vida privada, pessoal ou faroi-
liat, e da vida social. .. Há certos segredos que se nao deven» revelar a nin-
guém, nem sequer. como diz urca lórmula técnica, uní viro prudenü o! silontii
ter.cci... Por isto nao se pode deixar de aprovar o uso de narcóticos na mí-
dicacao pré-operalória, para evitar tais inconvenientes. .,
Nao queremos que se estenda pura e simplesmente a hipnose em geral
o que diiemos da hipnose a servico do médico. Corr. eieito. esta, como objeto
de investigacáo científica, nao pode ser esludada por quem quer que soja, mas
só por um sabio serio e dentro dos limites moráis que valem para toda ati-
vidode cisntílica. Nao é éste o caso de qualquer círculo de leigos ou eclesiás
ticos oue ce pratieassem como coisa intotessante, a título de pura experiencia
ou mesmo por simples passa-tempo" (texto transcrito da "Revista Eclesiástica
Brasíleira" XVII [1957] 477s).

JUCISTA (Ribeirao Préto):

12) "Km casos ele prentiez tubaria. puaibe a igreja o


aborto antes da ruptura da trompa? Será entáo que cía nutre
esperanzas de milagre?"

A prenhez tubária se dá quando o feto humano se localiza


e desenvolve fora do lugar normal, ou seja, na trompa (donde
o nome de "prenhez ectópica" em sentido largo, que também
lhe é dado).

Em tais casos, muito precarias se tornam as probabilidades


do sobrevivencia tanto da máe como da crianca: as vilosida-
des da placenta, em vista de captar o sangue necessário á exis
tencia do feto, váo corroendo as paredes da trompa, tendendo
a provocar graves hemorragias e ruptura da trompa, fatais
para a vida materna.

Verifica-se, porém, nao ser impossível o desenvolvimenlo


do feto assim localizado ató o sexto mes de gestacáo; isto de-

— 38 —
penderá da posigáo precisa do embriáo (quanto mais próximo
estiver do útero, tanto menos provável será a sua subsistencia).
Está claro que, se a prole crescer até atingir o seu sexto mes,
poderá ser extraída mediante intervencáo cirurgica, salvando-
-se entáo tanto a vida materna quanto a do pequenino. O mé
dico Dr. Clement no seu estudo "Derecho del niño a nascer",
pág. 61 nota 41, refere os seguintes dados estatísticos colhidos
entre especialistas: Orillard registrou 61 casos de embaraces
ectópicos em que o feto chegou a bom termo; Brown, alguns
mais; Lecene, urna centena; Werder, 148.
Diante disto, a Moral crista costuma hoje recomendar o
seguinte procedimento:
Quandc o médico verifica um caso de gravidez tubária tal
que nao se preveja perigo próximo para a gestante, proporcio
ne a esta vigilancia médica serr. operagáo cirurgica imediata,
a fim de tentar, de um lado, salvar o feto, e, de outro lado,
poder intervir imediatamente em caso de ruptura da trompa, ■
garantindo assim a sobrevivencia da gestante.
Caso, porém, o feto nao se aprésente de modo algum viá-
vel ou nao haja possibilidade de colocar a máe sob inspecáo
médica, nao é ilícita a intervencáo cirurgica: o operador po
derá extrair a trompa como extrai um órgáo doente a fim de
salvar a vida da paciente (nao negligenciando, porém, a obri-
gacáo de batizar o feto). A intervencáo em tais casos nao visa
diretamente eliminar o embriáo (como nos casos de aborto),
mas visa remover um órgáo que, por estar mórbido, se tornou
pernicioso ou fatal. Nao há dúvida, tal órgáo é portador de um
feto que, em conseqüéncia da intervengáo, perecerá; a morte
do pequenino, porém, nao é o objetivo intencionado pelo ci-
rurgiáo. mas apenas efeito permitido ou tolerado. Equipara-se
assim o caso ao de um útero canceroso, que é sempre lícito
extrair a fim de preservar a vida materna.
Com efeito. a trompa sujeita a hemorragias e ruptura por
corrosáo de suas paredes pede muito bem ser considerada um
órgáo doente. E' éste o ponto preciso sobre o qual se apoia a
declarado de que a operac,áo em tais casos é lícita. Tal ponto
nao era táo nítidamente ponderado em fins do século passa-
do ou no inicio do presente, de sorte que muitos moralistas
equiparavam a intervengo cirurgica em casos de gravidez tu
bária a um aborto — o que nao é exato: ao passo que no aborto
nao há própriamente órgáo doente a ameagar a vida da mu-
lher (cf. "Pergunte e Responderemos" 6/1957, qu. 9, onde se
trata do chamado "aborto terapéutico"), no caso da prenhez
tubária existe tal elemento. Esta distingo fci nos últimos de
cenios propugnada com aprovac.áo eclesiástica por obra prin-
i

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cipalmente do Pe. Lincoln Buscaren S. J., cujo tratado "Ethics
of Ectopic Operaticn" saiu em segunda edigáo no ano de 1944
(Editora "The Bruce Publishing Compagny", Milwaukee Wis-
consin, U. S. A.) •
Observe-se, porém, que, para extrair a trompa aoente, o
médico deverá ter razóes serias que o levem a julgar grave o
perigo de morte para a gestante em caso de náo-intervencáo
cirúrgica...

Bibliografía: S. Navarro. Problemas médico-morales. Madrid 1954, 358-36S.


P. Tiberghier. Médecine el Morale. París 1952, 172-174.
A. Bonnar The Catholic Dodor, em Iraducáo caslelhana "El
medico católico" Buenos Aires 90-92.

D. Estéváo Bettencourt O.S.B.

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