Eternos questionamentos de canto

Falar sobre Srgio Ferro at hoje provoca as mais diversas reaes entre os arquitetos. Sua anlise do processo de produo da arquitetura sob o ponto de vista marxista instiga qualquer um por denunciar as contradies existentes desde o poder envolvido na concepo do projeto at a explorao e a violncia existente no canteiro de obras. Sua militncia durante a ditadura culminou em sua priso no ano de 1970. Assim, impedido de lecionar, demitido no ano seguinte porabandono de cargo. A demisso justificada pelo excesso de faltas, fato at hoje sem retratao oficial por parte da FAU-USP. Durante o perodo em que foi professor desta escola, Sergio Ferro teve publicado pelo GFAU textos como Proposta inicial para um debate: possibilidades de atuao (escrito com Rodrigo Lefvre) em 1963, Casa Popular em 1972 e Arquitetura Nova em 1975, alm de outros artigos e entrevistas nas revistas OU... e Caramelo. natural que a iniciativa de trazer de novo Srgio Ferro para falar na FAU tenha partido dos estudantes. O afastamento de Sergio Ferro no impediu que novas propostas levantassem questionamentos prximos aos colocados pela Arquitetura Nova. Na FAU, a implementao de um canteiro experimental, o surgimento do Laboratrio de Habitao do Grmio dos estudantes ou do Laboratrio de Habitao do Departamento de Projeto, so alguns exemplos desse tipo de iniciativa.

Aps 32 anos de seu afastamento, Sergio Ferro foi convidado por um grupo de estudantes da FAU para uma conversa aberta que ocorreu no dia 27 de fevereiro de 2002. Esta publicao, assim como o vdeo, so o registro dessa conversa, um dos poucos testemunhos dados por Srgio desde o perodo que deixou de ser professor da escola. Este texto o resultado da transcrio das fitas, e na passagem da linguagem falada para a linguagem escrita, foram feitos ajustes com o intuito de facilitar a leitura. No entanto, como lembrou o prprio Srgio na reviso final:uma transcrio sempre problemtica, se corrige muito, soa falso demais, e se corrige de menos, revela todas as falhas da fala. Esta uma contribuio para o resgate de questes que permanecem margem no debate da arquitetura. Em meio a textos de difcil leitura e claras intenes de esquecimento, o debate levantado pelo grupo Arquitetura Nova se encontra no canto da pgina perigando cair e at sumir. Uma iniciativa como esta revela a vontade de que tais questes sejam sempre retomadas e debatidas, como eternos questionamentos de canto que colocam perguntas para o trabalho do arquiteto e buscam uma outra produo da arquitetura.

Ariane Stolfi, Daniela Gomes Rezende e Tatiana Morita Nobre estudantes da FAU USP

Conversa com Srgio Ferro

Srgio Ferro Eu peo desculpas a vocs por duas ou trs coisas. A primeira: h 30 anos eu ensino em francs, e o meu portugus de vez em quando capenga por falta de treino. Me desculpem de antemo. Haver fatalmente alguns galicismos no meio do que eu disser, alguns erros de gramtica. Segundo: no ser uma conferncia porque me pegaram de surpresa ontem e disseram vamos l e no tive tempo para preparar nenhuma conferncia. Vou falar um pouquinho s e depois pediria que conversssemos realmente, como est no cartaz. Uma conversa, n? No uma conferncia com discusses e debates, uma conver-sinha um pouco mais livre. Apesar da histria e das origens no explicarem muito, vou comear situando o meu trabalho em teoria e crtica da arquitetura. Eu fui, como vocs todos aqui, aluno da FAU1, quando esta ainda era na Rua Maranho. Logo me tornei professor, fui assistente de Flvio Motta2. Naquela poca os estudantes faziam arquitetura muito cedo. Desde o 2 ano de escola eu tinha um escritrio3 junto com o Rodrigo Lefvre4 e, mais tarde, com o Flvio Imprio5. Ns j fazamos projetos, s vezes bastante grandes. Neste ano eu fiz vrios prdios, por exemplo, em Braslia. Prdios horrorosos, enormes, que no esto em nenhum currculo, sempre seguindo aqueles gabaritos do Niemeyer. Naquele tempo o arquiteto ia bastante ao canteiro de obras, o papel do arquiteto era muito mais vasto do que hoje em dia. Em 1958, 59, 60, 61 eu ia freqentemente Braslia e assisti um pouco ao nascimento da capital. No tanto o plano, o desenho do Lcio, mas o levantar, o sair do cho. E saa daqui com a escola, com arquitetos cheios de discursos bons para a sociedade brasileira. Era o perodo do desenvolvimentismo: ns havamos de modificar o

Sergio Ferro ingressa na FAU em 1957, junto com Rodrigo Lefvre. Sergio Ferro torna-se professor de Historia da Arte na FAU e assistente de Flvio Motta em 1962. Desde 1959, Sergio Ferro e Rodrigo Lefvre trabalham conjuntamente em diversos projetos. Em 1960, ambos ingressam para o Partido Comunista. Nesta poca montam um escritrio na rua Haddock Lobo, que mais tarde ir ser transferido para a rua Marques de Paranagu. Flvio Imprio junta-se a eles em 1961. Rodrigo Lefvre, arquiteto e professor do Departamento de Histria da FAU-USP de 1962 at sua priso em 1970. Flvio Imprio, arquiteto e cengrafo, professor de Comunicao Visual da FAU-USP de 1962 at 1977.

Brasil, construir um Brasil novo, industrializar esse troo aqui. E tudo com uma perspectiva social anunciada tambm muito bonita. S que, ao chegar em Braslia, via aqueles desenhos lindos do Niemeyer, perfeitos, brancos, purssimos, mas com uma massa de gente ultramiservel, ultra-explorada, construindo aquilo. Um horror as condies de trabalho. Vinham trabalhadores do Brasil inteiro, que se agrupavam debaixo daquelas igrejinhas bonitinhas do Niemeyer parecidas com um tringulo e ficavam esperando passar ali os caminhes que os contratavam. Depois os operrios iam para o canteiro de obras, freqentemente cercado, como na Idade Mdia. As greves eram reprimidas da maneira mais violenta possvel, com mortes, assassinatos. Mais tarde, quando estive preso, alguns operrios que participaram da construo de Braslia me contaram os problemas da vida cotidiana

de fome, de misria, de comida podre, naquele lugar totalmente afastado. Ento, para mim, desde o 2, 3 ano de escola foi um grande, enorme contraste ver como era produzida a arquitetura: o nosso desenho, teoricamente quase sempre carregado com as melhores intenes, intenes sociais abertas e muito bonitas, chegando do outro lado, era realizado nas piores condies que se possa imaginar. A explorao do trabalho, a misria dos trabalhadores era gigantesca, escandalosa como at hoje, alis. Isso quebrava um pouco o nosso sonho de arquiteto, a nossa esperana de arquiteto, o arquiteto transformando a sociedade, a viso social do arquiteto que, naquele perodo agitado dos anos 60, eram constantemente debatidos aqui na escola, ou melhor, na rua Maranho. Eu, por outro lado, fazia parte, fao parte ainda de uma famlia burguesa, paulistana, aquela coisa toda. O meu pai fazia poltica e era do PSD6 na poca, isto , aliado do Juscelino, do

Tancredo, do Ulisses. Esse pessoal ia muito l em casa, na casa do meu pai, e eu assistia atrs da porta s reunies deles no podia, j era de esquerda. E a o outro contraste, terrvel, entre os discursos ntimos deles, o que eles queriam para Braslia, para o Brasil, e o que meia hora depois eles iam dizer em rdios, em televises e jornais, um contraste brutal. E eu, atravs de uma espcie de privilgio, fiquei em cima do muro, vendo de um lado os discursos do poder, do Juscelino, do Tancredo, do Ulisses, e, do outro, os reais planos deles. No os anunciados, mas os reais. E, ainda, sendo arquiteto, com aquele sonho maravilhoso de fazer uma arquitetura para o povo, para a sociedade, mas vendo esse massacre, essa violncia embaixo da produo.

PSD, Partido Social Democrtico, criado por Getlio Vargas em 1945.

A partir desse perodo ns comeamos, sobretudo Rodrigo e eu, a nos inquietar um pouco com essa dualidade, com essa impossibilidade quase que humana de suportar a contradio entre o discurso cheio de boas intenes e a queda dessas intenes numa realidade das mais difceis. Desde aquele tempo at hoje, no s no Brasil, mas na Europa tambm, o canteiro de obras um dos lugares privilegiados da explorao, da violncia. Os operrios at hoje tm os menores salrios, as maiores jornadas de trabalho, as piores doenas do mundo do trabalho (a silicose, que vem do cimento, por exemplo), a maior quantidade de acidentes. Isto continua e vlido praticamente no mundo inteiro at hoje. A violncia social bastante grande neste setor: difcil explicar porque ela se concentrava tanto no nosso domnio. H outras produes, h outros campos de realizaes, mas isso ela se concentra de maneira especfica na arquitetura. Estudando O Capital, Marx, pouco a pouco fomos vendo que, no fundo, a arquitetura produzida de uma maneira bastante elementar, uma manufatura cuja lgica data do sculo XV na Europa, mas que at hoje se mantm sem grandes transformaes, apesar dos esforos dos que procuram a industrializao da construo. At hoje continua a manufatura

dominando. O processo de produo simplssimo, so dez a doze tipos de qualificao do trabalho: pedreiro, marceneiro, pintor, etc. Estes operrios executam tarefas no limite bastante simples, realizveis com instrumentos primrios e com conhecimentos facilmente disponveis. Sem falar em obras muito complicadas possvel sempre fazer arquitetura de uma maneira simples. Entretanto, para que o capital possa explorar o setor da construo preciso exatamente redobrar a violncia direta e redobrar as sofisticaes intelectuais de dominao. E a comeava uma dorzinha maior para ns, os arquitetos, vendo que o desenho de arquitetura, o projeto de arquitetura faz parte desses instrumentos de dominao. Eu vou contar outras historinhas porque fica mais simples. Brunelleschi, j mesmo no fim do perodo gtico, na Itlia, comea a instalar a manufatura da construo civil. Ele foi um dos primeiros, estou dando nomes para situar, evidentemente. O que ele faz? Qual a primeira medida dele diante do mundo do trabalho? Ele tinha trabalhadores magnficos, artesos da maior capacidade que tinham feito, praticamente sem arquiteto, as igrejas romnicas, as primeiras igrejas gticas. Existia ento uma figura, um proto-arquiteto, que era uma espcie de chefe, um grande chefe do canteiro organizando aqueles 30, 40, 50 homens e o trabalho

deles, mas no havia distncia social nenhuma. Freqentemente esse proto-arquiteto variava de canteiro em canteiro: aqui era o tal cortador de pedra que fazia a figura de chefe, mas no outro canteiro da mesma equipe podia ser outro que tomava as decises mais difceis nessa posio de organizador, de distribuidor de trabalho. A primeira coisa que o Brunelleschi faz mudar as regras do desenho de arquitetura. Eles estavam acostumados, esses pedreiros vocs conhecem as imagens de Deus na Idade Mdia com aquele bruta compasso... Deus traando o mundo o chefe de canteiro. Os chefes passeavam com grandes compassos, grandes rguas, faziam desenhinhos esquemticos. Depois, no canteiro, eles iam descendo, traando as propores e os desenhos com aquele compasso magnfico diretamente na construo. Aquilo produzia as maravilhas que vocs conhecem, por exemplo, a catedral de Chartres, entre outras. A poca de Brunelleschi coincide com o final de um perodo muito agitado em Florena e na Europa em geral, com diversas revolues sociais: a luta dos ciompi7 e dos Ongle bleu8. Depois desse perodo de grande agitao, vem uma nova poltica. A manufatura j existia nas indstrias de tecido e estas chamaram Brunelleschi para fazer a cpula da Santa Maria de Fiori. Brunelleschi comea adotando

uma outra linguagem, totalmente diferente: as ordens clssicas, o drico, etc., todo o classicismo da Renascena. Ele vai buscar l atrs uma linguagem que tinha sido esquecida, que tinha sido abandonada, que no era mais a linguagem dos operrios que estavam ali. E muda a linguagem: bota coluninha, bota capitel, bota coluna grega... Isto , ele vai introduzir um desenho que no o desenho dos operrios, que no o desenho que est disposio do conhecimento deles. A partir da at o sculo XIX, mais ou menos, a arquitetura dupla como quase toda a arquitetura dessa poca. De um lado uma estrutura massiva de tijolo, que sustentava o edifcio realmente e, na frente, esculpidos, coluninhas, arquitraves, frontes, etc. A arquitetura partiase em duas: uma que os antigos operrios ainda faziam, mas era cuidadosamente escondida; outra o desenho de decorao que se aplicava em cima. A explorao do canteiro, a reduo de salrios, tudo isso j se fazia presente, mas uma das entradas importantes para inverter a autonomia produtiva que existia antes foi mudar o desenho, extrair o desenho do canteiro e transform-lo em algo autnomo, independente, que falava uma linguagem que no era a linguagem da produo. Isso ainda continua: so rarssimos os desenhos dos arquitetos que realmente so da produo, que so o desenho

Os ciompi eram os trabalhadores da industria txtil, de baixa condio social e econmica, e carentes de qualquer especializao. Em 1378 uma revolta popular levou as classes mais baixas ao poder de Florena, na Itlia. Literalmente, unhas azuis. Trabalhadores sem qualificao das indstrias txteis.

dos produtores, um desenho do fazer. Quase toda a arquitetura at hoje um travestimento, uma decorao, encobrimento daquilo que a verdadeira linguagem, verdadeira prtica construtiva. Parece assim meio fantasmagrico, mas tudo isso necessrio exatamente para poder diminuir, tirar dos trabalhadores a autonomia produtiva. Eu repito: a manufatura muito simples e seria muito fcil que os prprios operrios, com a ajuda dos arquitetos, pudessem assumir o controle total dos processos produtivos, de A a Z, sem nenhuma interferncia maior. Alm de todos outros recursos da dominao dominao econmica, jogar o sujeito sem trabalho no mercado de trabalho no campo especfico da construo civil h a ajuda do desenho de arquitetura, que mortalmente ofensivo em relao aos trabalhadores, aos produtores. Vocs podem ter um bom exemplo disso aqui no Brasil: ainda hoje de manh visitei a belssima Pinacoteca do Estado, que o Paulinho9 reformou. Ali, na arquitetura do Ramos de Azevedo, agora visvel em tijolinho, o que vocs vem? O que est sustentando aquelas paredes so macios, blocos enormes de tijolos e, desenhado na fachadinha, colunas, arquitraves, arcos. Nada daquilo funciona, nada daquilo operativo materialmente, e s est feito para encobrir, tampar, esconder o que seria uma arquitetura

direta, de expresso do canteiro. Nos anos 60, eu e o Rodrigo Lefvre, com muita dificuldade e discusso, pouco a pouco fomos formulando nossas hipteses de trabalho. Por volta de 1967, expusemos pela primeira vez nossas teses na FAU, por mim resumidas no livro O Canteiro e o Desenho10. Esse trabalho foi apresentado em condies bastante difceis. Eu me lembro que numa dessas salas aqui ao lado, onde eu dava aula, havia sempre a presena de um oficial da polcia que vinha gravar aulinhas e escutar os alunos. J estavam um pouco atrs de mim pela participao na revista Teoria e Prtica11. Eu j fazia parte da ALN e da VPR12, ento a barra era meio pesadinha. Tinha um cidado l com gravador e ns, no s eu, mas outros professores, adquirimos o hbito de falar de uma maneira bastante complicada para que o cidado no pescasse absolutamente nada. Os alunos entendiam, eles sabiam que estvamos falando num semicdigo e sabiam que tinham que interpretar o que era dito ali num outro registro, numa espcie de aula anagnica, com vrias camadas de significao. Esse vcio pegou e eu sei que o meu livro O Canteiro e o Desenho at hoje bastante difcil de ser lido, se que ele lido ainda, no tenho a menor idia. Ele todo rebuscado, complicado, cheio de frases que vo e vem. Um pouco vcio da juventude e muito efeito da censura

Paulo Mendes da Rocha, arquiteto, formado pela FAU Mackenzie, foi professor-doutor da FAU USP, compulsoriamente aposentado. Sergio Ferro, O Canteiro e o desenho. So Paulo. Revista Projeto, 1979. A revista Teoria e Prtica existiu durante os anos de 1967 e 1968 e chegou apenas ao terceiro nmero. Ela foi interrompida devido represso que a Universidade recebeu do Regime Militar no ps-68. O coletivo da revista era formado por professores e alunos da Faculdade de Filosofia da USP (como Emir Sader, Roberto Schwarz e Ruy Fausto), ligados ao grupo de discusses do Capital conhecido como Seminrio Marx. Sergio Ferro foi seu diretor. No nmero 1 da revista foi publicado seu texto Arquitetura Nova. Respectivamente Ao Libertadora Nacional e Vanguarda Popular Revolucionria, grupos de luta armada formados em 1967, na qual Rodrigo Lefvre e Sergio Ferro iro ingressar no mesmo ano.

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que ficava marcada na nossa maneira de expor os trabalhos. Pudemos fazer aqui em So Paulo - o Rodrigo mais do que ns todos, eu pouco, o Flvio um pouco - algumas experincias graas a professores da universidade dos quais ns explorvamos a amizade, aceitando que fizssemos um pouco de experincia nas casinhas deles. Ento na casa do Bris Fausto, na casa do Bernardo Issler e mais tarde na do Jurez Brando Lopes13, fazamos nossas experincias. Algumas funcionavam, outras coitadas no funcionavam to bem, mas eles foram bastante simpticos para sempre aceitar que as fizssemos s custas deles. Indo para a Europa14 no me foi mais possvel fazer arquitetura, apesar de ter tentado vrias vezes; primeiro porque nosso ttulo de arquiteto no reconhecido l, no h reconhecimento recproco de ttulo, o que uma

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Respectivamente historiador, educador e socilogo, professores da USP durante este perodo.

barbaridade, uma estupidez, mas assim. Para poder exercer arquitetura na Frana havia duas maneiras: uma era refazer o curso de arquitetura, mas eu j estava ensinando na escola de arquitetura, ficava chato eu dar aula para mim mesmo. E a outra maneira de ser arquiteto na Frana, sendo brasileiro, era se chamar Oscar Niemeyer. O Niemeyer obteve um decreto especial do De Gaulle, que permitiu que ele fizesse arquitetura, e fez obras belssimas l: a sede do Partido Comunista, a sede do jornal LHumanit e outras mais. Tentei fazer algumas experinciazinhas na escola de arquitetura de Grenoble. Ali fizemos o trabalho mais terico, fundamos um laboratrio de pesquisa em Histria da Arquitetura, Dessin et Chantier, Desenho e Canteiro, com vrios membros, oficialmente reconhecido pelo ministrio da Construo. Publicamos vrios livros, artigos e teses. Eu desenvolvi particularmente um trabalho de Histria da Arquitetura, a histria do Projeto, a histria da descolao entre o desenho e o canteiro. Eu tentei fazer uma Histria da Arquitetura de cabea para
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baixo, olhando a arquitetura de baixo para cima, do canteiro de obras para o desenho e no o contrrio. impressionante como assim pode-se ir virando as concepes que habitualmente temos de Histria da Arquitetura. O que parece ser revoluo de formas, de estilos, quando cutucamos por baixo, so momentos de conflitos sociais, de luta de classe no canteiro. Exemplos: a ordem clssica vai do sculo XV ao sculo XIX e termina com uma enorme hecatombe, um desastre no mundo operrio, que a Revoluo Francesa. S para vermos como as idias abstratas de liberdade s vezes podem cair no absurdo: em nome da liberdade o governo da Revoluo Francesa impediu e proibiu toda e qualquer associao operria. Resultado: o mundo operrio e o da construo civil se esfacelaram, no foi possvel nenhuma resistncia organizada. E, com isso, curiosamente, no mais necessria aquela duplicidade qual me referi anteriormente. No necessrio tentar haver esse refinamento da dominao no canteiro porque os operrios j esto dominados de cara, no tinha escolha. Comeam a os neos: neoclssico, neo-romnticos, neogticos, neo-romnico, etc., porque no havia mais a necessidade de um aparelho de dominao constante. Mais tarde, no fim do sculo XIX se passou algo

Sergio Ferro preso em 1970 e demitido no ano seguinte pela FAU por abandono de cargo. Neste mesmo ano ele sai da priso e muda-se para a Frana, quando ir tornar-se professor da Escola de Arquitetura de Grenoble.

quase que inverso: h um movimento operrio fortssimo na Europa, quando comeam os sindicatos. Um deles, sobretudo, comea muito forte, meio anarquista, mas muito dominado pelos trabalhadores da construo civil. Estes pedem no mais salrios, nem folgas, nem frias, nem cinco minutos a mais para o almoo, mas pedem simplesmente o controle da produo. Eles querem que a produo da arquitetura seja dominada e conduzida por eles do comeo ao fim: a destinao do projeto, a destinao do objeto e at as condies de produo, reivindicaes estas evidentemente impossveis. Os sindicatos mais fortes na Frana, nesta poca, eram os sindicatos dos trabalhadores de madeira, dos trabalhadores em pedra: ento no toa que nesse mesmo perodo se mudam os materiais. No por acaso que a arquitetura muda de materiais fundamentalmente, passa para o concreto e para o ferro, destruindo, tirando a fora desse pessoal dentro do canteiro. Comea a gloriosa arquitetura contempornea, mudando de linguagem, mudando fundamentalmente a decorao no momento em que os operrios esto fortes. H um perodo em que os arquitetos se aproximam bastante deles: durante o Ecletismo at hoje menosprezado na histria oficial da arquitetura quando a tcnica de construo aparece variada em si e se torna aparente. Houve um grande perigo para o sistema com a arquitetura ecltica, quando a

tcnica est nas mos dos operrios, tcnica que eles dominam, e que transparece diretamente na arquitetura. Estou exagerando, me perdoem pela caricatura, mas de uma certa maneira a arquitetura moderna que vem em seguida - aquelas casas brancas e lisas do primeiro Le Corbusier, do Adolf Loos, etc., so uma resposta a tudo isso. Transparece ali a necessidade de mudar completamente os materiais que estavam nas mos de sindicatos poderosssimos e fazer um outro tipo de decr. O Loos ataca qualquer ornamento como crime15, mas no h ningum que tenha feito cobertura de bolo de uma maneira mais perfeita que ele: uma decorao purista que disfara a arquitetura em quadro puritano. Em 1920, cai esse sindicalismo forte, comea o sindicalismo mais preocupado com salrio, frias, no vou entrar em detalhes sobre isso. Durante mais ou menos 25 anos, ns ficamos estudando arquitetura, a histria da arquitetura por esse outro ngulo, essa outra perspectiva. H poderosas pistas de trabalho quando se inverte a leitura. Daniela Gomes Rezende, estudante de arquitetura Voc colocava a questo do Ecletismo, que me fez lembrar do livro sobre a casa da Dona Yay16, que fala daquela poca em que em So Paulo as casa eram construdas pelos

capomastris. Gostaria ento que voc falasse um pouco disso. Sergio Ferro Esse pessoal que veio construir aqui em So Paulo no comeo do sculo, os italianos sobretudo, vieram para c por dificuldades polticas, perseguies. Eles faziam parte do sindicalismo anarquista na Europa, o qual chamamos sindicalismo revolucionrio. Aqui comearam um movimento muito forte, publicaram jornais importantes como o Avanti17, mas infelizmente eles ficaram muito ligados Itlia e a sua atuao maior foi em relao a ela. Eles no implantaram um movimento a longo prazo aqui no Brasil, mas eram magnficos, no precisavam de ningum, tinham tcnica, tinham um saber. Quero insistir: nada disso elimina ou dispensa o arquiteto. Isso simplesmente impe um outro contato do arquiteto com a realidade produtiva, impe um arquiteto que no seja colocado contra o canteiro, contra os produtores, mas que ao contrrio, colabore com esses produtores, colabore com esse saber. Todo esse pessoal magnfico, que tinha realmente uma tecnologia total na mo, foi cuidadosamente destrudo alguns anos depois. Primeiro com a guerra, evidentemente, e em seguida, j em 1920, o sindicalismo muda

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Ver Adolf Loos: Ornamento y delito: y otros escritos, Barcelona: Editora Gustavo Gilli, 1972. A Casa de Dona Yay, localizada na esquina das ruas Major Diogo e Heloisa, na Bela Vista, foi construda no sculo XIX, e atualmente patrimnio da USP. Avanti, jornal operrio italiano.

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bastante de figura. Por influncia da CGT Francesa18, o sindicato brasileiro tambm se adapta nessa poca - h um outro tipo de reivindicao, eles no pedem mais para fazer obras, saber o que estavam fazendo ou para quem. Eles mudam completamente a reivindicao e de uma certa maneira se adaptam coisa, aceitam a posio de trabalhadores da construo civil. As grandes reivindicaes operrias desaparecem pouco a pouco, pelo menos no campo da construo civil. claro que a histria no to simples e linear assim, mas digamos, nunca mais houve um perodo to nitidamente afirmativo como entre 1890 e a 1 Guerra Mundial. A relao disso com a origem da arquitetura contempornea na Europa, pelo menos, clarssima, evidentssima, totalmente explcita. D para seguir direitinho, passo a passo, a mudana do desenho, a mudana do material e a relao com a perda de um saber. Devo salientar que tudo isso parece ser conto de fada dramtico, histria de lobo mal e tudo, mas preciso prestar ateno nisso, pois a construo civil representa na economia um papel enorme. Uma parte importantssima do produto interno bruto de cada pas vai
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para a construo civil em termos de estrada, barragem, casinha, fbrica, usina, etc., uma massa de dinheiro gigantesca. Essa massa de dinheiro produzida na manufatura, no d para entrar em detalhes muito tcnicos, mas isto significa que a possibilidade de coleta de mais-valia muito maior, d para pegar uma massa de dinheiro extraordinria, e isso tem um papel fundamental na economia. A Crtica Razo Dualista19 fala sobre isso - alimentar os setores mais produtivos com uma taxa de lucro menor. Quase poderamos dizer que a construo civil vai sustentar as indstrias de ponta e no o contrrio. Isso importantssimo hoje em dia, porque ns vamos entrar num outro perodo desse tipo, me corrijam se eu estiver enganado. Eu tenho a impresso que as indstrias, os setores produtivos de ponta, esto exigindo uma massa enorme de capital por uma taxinha de lucro desse tamanhinho assim. Vai ser necessrio fazer carradas de caminhes de mais-valia, sobretudo aqui, na nossa rea, na rea da construo. A histria dentro de cada canteiro parece idiota e boba, mas somando tudo isso, vendo tudo o que se constri, o que se produz em So Paulo... Tudo isso vai, se escoa; uma
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transferncia de valor de um setor para o outro, constantemente. Alexandre Benoit, estudante de arquitetura Me parece que o seu livro O Canteiro e o Desenho, escrito h 30 anos, tem uma grande influncia da obra de Marx, O Capital. Eu queria saber como voc v essa influncia hoje, assim como o que escreveu l. Essa colocao que voc faz sobre a histria, seria possvel t-la como mtodo pedaggico numa escola? Seria muito rico para a FAU. O material que se conhece do Srgio Ferro acaba em 1977 com O Canteiro e o Desenho, e de l para c no tem mais nada. Inclusive, acho que se no fossem os grmios desse perodo, teramos muito pouco - so muito valorosos os cadernos que o GFAU publicou sobre as suas obras. A idia de um arquiteto criando uma nova relao com o operrio seria possvel no capitalismo ou seria necessria a sua superao? A experincia da Bauhaus teria alguma relao com isso? Denise Invamoto, estudante de arquitetura Gostaria que o senhor comentasse uma prtica que comeou a acontecer quando no estava mais no Brasil: os mutires por autogesto e o cooperativismo em So Paulo. Dentro da sua leitura, essa uma prtica que pode transformar a sociedade ou no? Aqui na FAU a sua obra ainda bastante marginal, temos poucos professores que a comentam. A maioria dos alunos tem contato com

Confederation Generale ds Travalleurs Frana, Central Geral dos Trabalhadores Brasil.

Ver Francisco de Oliveira, A economia brasileira: crtica razo dualista. Selees CEBRAP, n 1, 1975.

ela atravs de iniciativas individuais ou de grupos, como o LABHAB GFAU, que um laboratrio de estudantes que se prope justamente a resgatar uma reflexo e uma atuao do arquiteto mais voltada para o canteiro e para o contato com os movimentos sociais... Mas isso uma coisa que fica margem do ensino, ento eu gostaria que voc comentasse o ensino hoje da FAU. Srgio Ferro Marx, sem dvida, o inspi-rador constante dentro da minha obra. Eu sigo as anlises do Capital, com a minha pouca capacidade, mas religiosamente quase. Marx de fundo. Acho que at hoje as suas colocaes so absolutamente vlidas, assim como as anlises que eu fao a partir delas. No creio que em 1989, o Marx tenha falecido com o falecimento da Unio Sovitica e dos pases ditos socialistas. Aquilo l ao meu ver era uma grande caricatura de socialismo com alguns pequenos avancinhos, mas com uma quantidade de merda muito maior do que de progresso. As anlises que Marx faz da nossa sociedade nunca foram to vlidas quanto hoje. Quanto a isso que se chama globalizao, basta pegar o 3 volume do Capital20, puxar um pouquinho mais adiante e j est l. Ele no conheceu esse fenmeno exatamente, mas a extenso de suas anlises perfeitamente possvel, as suas

interpretaes so vlidas. Hoje no mundo se v: concentrao, desigualdade, infantilidade do processo, um sujeito automtico que ningum consegue frear... Nenhuma boa vontade, nenhum rosrio de boas intenes consegue parar essa mquina infernal que o capital girando em torno de si mesmo, se autoproduzindo constantemente, indiferente a qualquer injustia social, indiferente a qualquer reivindicao de humanismo, que seja. Acho que, quanto mais a nossa sociedade avana, mais as teses do Marx ficam vlidas e radicalizadas. O que ele diz a respeito da industrializao crescente, o aumento do capital fixo, do capital constante, a diminuio da taxa de lucro, a dificuldade cada vez maior que tem o capital para obter as suas prprias taxas de lucro, isso aparece cotidianamente hoje. Acho tambm que uma das teses do Volume 3 continua sendo importantssima para ns. Nele, Marx fala dessa tendncia da taxa de lucro cair, diz que uma da maneiras de contrabalanar isso explorando ativamente setores ditos atrasados da economia. Um desses setores o nosso, a construo civil. Cada vez mais, para equilibrar essa queda violenta da possibilidade de lucro do sistema, vai ser necessrio recor20

rer a esses imensos canteiros de obras, a essas imensas obras faranicas, e, de uma maneira ou de outra, quase que desesperadamente, vamos ainda continuar contribuindo para reter essa queda da taxa de lucro. Por isso, acho que a anlise do Marx, em vez de envelhecer, se rejuvenesce cada dia mais. As propostas que fazamos para a arquitetura evidentemente no podem ser levadas at o fim sem modificaes radicais nas relaes de produo, sem modificaes fundamentais e estruturais. E isso bsico: no h a menor possibilidade de supor o trabalhador livre quando na situao social ele no livre. No h como supor o trabalhador participando com igualdade, como um sujeito autnomo, quando sua situao fundamentalmente desigual, quando ele vendeu sua fora de trabalho. Entretanto nada disso nos impede, ao contrrio, tudo nos obriga a avanar nesse sentido fazer pesquisas, fazer estudos, fazer ensaios sabendo que todos eles sero meio capengas, no h dvidas, mas a meu ver isto fundamental. Hoje em dia, existe a possibilidade de nos aproximarmos de um outro tipo de relao social que permitiria uma outra relao da arquitetura com o canteiro de obras. Penso em certos bolses que surgem pouco a pouco na Amrica e em certos territrios, em certas

O Volume 3 trata especificamente da questo da renda da terra.

regies mais ou menos controladas ou dirigidas por movimentos como o MST, onde h possibilidades de uma outra prtica. Se as anlises dos grandes economistas funcionam, as reas de misria e de abandono vo crescer cada vez mais. A frica, por exemplo, j est sendo esquecida, deixa para l, porcaria, est apodrecendo, est morrendo, d um pouquinho de remdio para a AIDS para eles calarem a boca, mas deixa afundar esse pessoal. Pelo menos esta a posio da economia dominante. Mas na frica vai continuar a existir gente, que vai continuar a precisar de trabalho e nesses pases, nessas regies, que pode se comear uma outra prtica. Acho que no Brasil j h, aqui e ali, algumas possibilidades, pequenas regies onde a experincia j pode ser bastante aprofundada. Quero insistir numa outra coisa que me parece mais importante: na Unio Sovitica, teoricamente, fez-se uma revoluo socialista, isto , foi dito que todos os meios de produo eram juridicamente da populao, no havia mais propriedade privada dos meios de produo. Mas continuaram a produzir, fazer arquitetura e fazer toda a produo social exatamente como ns fazemos aqui. O canteiro de obras na Unio Sovitica era igual ou mais duro, mais difcil do que o daqui, pois a relao hierrquica e a dominao eram iguais, e deu no que deu.

Eu no acredito que possa haver uma revoluo eficaz, uma transformao social positiva e forte sem que as relaes de produo concretas sejam alteradas no a posio s minha, posio da Rosa Luxemburgo21 e de uma srie de outras pessoas. necessrio pensarmos desde hoje numa transformao social eficaz; desde hoje comear a tentar transformar as relaes de produo, pois se no mudarmos essa relao de dominao, ser impossvel, ao meu ver, qualquer perspectiva humana mais aberta. Sobre a questo de transformar efetivamente as relaes de produo, o nosso campo hiper favorvel, por aquilo que eu disse no comeo um campo simples. Salvo barragens e algumas obras mais complicadas, com toneladas de ao sendo carregadas de um lado para o outro, 99% delas so coisas simples, de uma tecnologia que est ali. As relaes de produo nesses bolses podem ser facilmente transformadas desde j, e se en-

caminham para um outro tipo de sociedade. Eu acho isso bsico, fundamental, e isso se relaciona com os mutires e outras experincias desse tipo. Mesmo que eles existam por necessidade, h que mudar desde j as relaes de produo. Sem sonho, por enquanto impossvel parar a venda da fora de trabalho enquanto a economia for dominada pelo valor. Por conta do valor tudo isso vai estar bloqueado, vai estar precisando de muletas. Mesmo sabendo que tudo isso relativizado, precrio, no h como esperar as transformaes sociais acontecerem anjos descendo do cu tocando trombetas, anunciando que o amanh est a se ns no prepararmos docemente essa transformao, todo dia. O outro l dizia que, para andar 20 lguas, o sujeito precisa dar um passo e depois outro. Sobre o ensino na FAU, eu no diria absolutamente nada. Eu sa dessa escola h 30 anos atrs. Uma escola excelente, me parece que ela continua sendo uma das melhores escolas de arquitetura do pas, mas no tenho nenhum direito, nenhuma possibilidade, nenhuma competncia para fazer a menor discusso sobre o ensino na FAU atualmente. Maria Ruth Amaral de Sampaio, diretora da FAU-USP de 1998 a 2002 Uma questo muito presente nas suas pesquisas sempre foi a da dominao. Hoje em dia voc um pintor dos

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Militante do Partido Social-Democrata Alemo e fundadora da Liga Spartakista, publicou importantes reflexes sobre o movimento operrio internacional. Autora do texto Reforma ou revoluo, A questo da organizao da social-democracia russa, de 1904, Greve de massas, partido e sindicato, de 1906 e A acumulao do capital, de 1912, entre outros.

mais renomados deste pas. Eu at o considero como um pintor renascentista, de coisas to lindas que voc faz. Ento eu pergunto: essa opo pela pintura foi por voc encontrar nela uma ausncia de dominao? Sergio Ferro Na pintura o mesmo combate, a mesma coisa. Apesar de falar em economia, dinheiro, valor, a questo que mais me interessa e mais fundo me toca, a questo da arte, da produo da arte. Seja no campo da arquitetura, seja no campo da pintura, a questo da arte e do desenho sempre foram centrais para mim. A questo da pintura, eu tento colocar da mesma maneira que a questo da arquitetura. O que a pintura para mim? Comeo sempre como ensinava Marx, caracterizando a

maneira de produo. Se na arquitetura temos uma manufatura, que no uma indstria, a pintura se transformou desde a Renascena num artesanato. O pintorzi-nho pinta na tela, faz o desenho, a figurinha, o que ele quiser fazer. um sozinho, um arteso diante de um produto que ele, de uma certa maneira, domina completamente. Mas o estranho que, exatamente porque voc tem este domnio, que a pintura resiste, ela de uma fora de resistncia enorme. preciso trabalhar com ela com a mesma humildade, com a mesma entrega que eu peo para os arquitetos que trabalham com a construo civil. Arte, no fundo, o qu? Eu considero a melhor definio de arte a do William Morris22, o meu santo padroeiro, que eu j repeti quando ensi-

nava aqui e repito a cada cinco minutos todos os dias: arte a manifestao da alegria no trabalho. E eu continuo achando esta definio vlida. uma definio cheia de ambigidades, cheia de entradas porque poderia ser entendida como a arte manifestao da alegria no trabalho artstico. Mas o Morris no diz isso, diz: arte manifestao da alegria no trabalho, insistindo, como ele sempre insistiu, que qualquer atividade humana feita com liberdade, responsabilidade e alegria necessrias, pode e deve ser arte. Por isso ele fazia papel de parede, bordava, fazia travesseiro, fazia tric, fazia croch, cozinhava, um monte de atividades desse tipo, tentando mostrar que cada uma delas pode ser fertilssima em arte. Evidentemente que muito mais simples pensarmos assim quanto s atividades artesa-

nais ou manufatureiras do que em relao s atividades industriais, mas a prpria Bauhaus tentou mostrar que tambm nesse caso tambm seria possvel. O essencial sempre o mesmo ponto: como que se faz arte? Arte homem vs. matria, homem vs. mundo, mozinha vs. argila. Eu vou l, mexo na argila e fao um boneco. Nesse fazer, eu me projeto na matria, e a matria me responde; eu sou fruto histrico, nasci em tal ano, me eduquei em tal situao, mas o barro tambm . Porque o barro que eu trabalho hoje veio de uma tal olaria, com seus empregados, passou no trajeto tal com o caminho e foi vendido na rua Teodoro Sampaio. Esse material tambm est carregado de histria, so duas histrias que se encontram. O

Marx falava, inspirado no Hegel23, do esprito objetivo toda humanidade e toda a histria humana est concentrada nos materiais diante de mim e em mim fao. De uma certa maneira, trabalho artstico nada mais do que acordar, revelar, estar escuta desse esprito objetivo que j est na matria, est impresso, est impregnado na matria, no saber, no fazer, na tecnologia, respondendo quilo que j est l. pr esse movimento em vida e em funcionamento. Essa relao a relao fundamental do trabalho, mo x matria que pode e deve ser o fundamento, ncleo, centro da arte. A minha pintura que ao contrrio do que foi dito, muito maltratadinha pela crtica nacional s isso: ver qual o material que tenho na mo. Eu tenho tela, pincel, cores em

tubo, etc., mas tenho tambm minha disposio toda a Histria da Arte, da pr-histria at hoje. Posso usar essa Histria da Arte como material que est sempre vivo, que est sempre ativo. Por que no ir procurar, pescar o que h de bom nessa histria? O Hegel dizia que a histria est sempre toda escrita no presente, que a nossa cabea guarda ainda traos da Prhistria, guarda traos da nossa histria. Eu utilizo a Histria da Arte e todos os materiais que esto disposio com toda a liberdade. Procurando sempre ser todo mundo me xinga por isso e eu adoro o mais respeitvel dos artesos. Eu pinto e respeito as regrinhas do artesanato, aquele coisa toda, de provocao, j que a pintura artesanato, vamos fazer, vamos pegar esse artesanato de frente.

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William Morris (1834-1896), desenhista, poeta, pintor, ensasta, socialista ingls, foi um dos tericos do movimento Arts & Crafts e autor dos textos Arte e sociedade industrial e Contra a arte de elite, entre outros. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filosofo alemo, autor dos textos A fenomenologia do esprito e A lgica, entre outros.

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Pintor uma coisa limitada, pequenina, um a um. Se isto transposto para a arquitetura, ento ela vira a maior, a principal de todas as artes, a mais extraordinria. Quando visitamos Chartres ou uma daquelas catedrais, vemos o que pode ser, o que deveria ser arquitetura: sempre essa qualidade de expresso humana, essa quantidade de fuso humana. a mesma coisa: cada tipo de trabalho, se respeitada a sua historicidade, a sua contemporaneidade, revela todo o esprito social que est dentro desse material. Se o produtor, o arteso, pedreiro, marceneiro, que tambm so fruto social, com todo o seu saber fazer, com a tcnica mais atual, trabalharem esse material, o revelarem com o mximo de racionalidade possvel isso pode parecer contraditrio eles atingem ao mesmo tempo o mximo de liberdade possvel. E com essa liberdade, que pode vir a expresso humana. A expresso humana na arte sempre isso: pegar a necessidade histrica que est no material, que est no pintor, e trabalh-la at o fundo. Quando essa necessidade trabalhada at o fundo, ela vira liberdade. A definio que o Hegel d de liberdade e de necessidade absolutamente a mesma liberdade tem todas as suas razes de ser em si mesma e necessidade aquilo que tem suas razes de ser em si mesma. Dessa liberdade e necessidade nasce a grande

produo humana na qual os arquitetos, como os organizadores do conjunto e de cada parte desse conjunto, poderiam se expressar com a mesma totalidade, com a mesma voluptuosidade, com a mesma radicalidade do sujeito. Eu tenho uma mania tambm, eu estudo semitica, que um troo mais chato ainda, mas certas coisas desse campo so importantssimas. S h uma maneira, nas artes plsticas, do sujeito humano aparecer, que atravs das marcas e das impresses do trabalho no material. o ndice do Pierce24. No h nenhuma outra possibilidade de manifestar a presena do sujeito no espao, se no passar pelo ndice, se no passar por essa espcie de manipulao do material pelo trabalhador, pelo o que ele fez. Hoje em dia, cada trabalhador obrigado a falsear a prpria mo, falsear o prprio material, para transportar tudo isso na linguagem de um outro que no ele mesmo. Freqentemente essa linguagem do outro desconhece totalmente as possibilidades vivas, racionais, prprias de cada material, de cada tecnologia, de cada saber. Tenho impresso que a arte (por isso eu fao tanta pintura), foi praticamente excluda do campo da arquitetura hoje, exatamente porque no h mais isso, essa possibilidade de trabalho entre o material e aquele que sabe.

Dessa relao entre os dois que pode se revelar o que estiver mais presente, mais atual, mais prometedor, que est ali dentro ainda em estado de nascena. O produzir fazer nascer aquilo que j est ali h praticamente oito meses engravidando. Trazer ao mundo. Gerar. Fazer parir o trabalho que o material j contm em si. Mas isso no se faz sem a liberdade, sem o canteiro autnomo, sem condies de liberdade total, de A a Z, do primeiro ao ltimo dos produtores. O desenho de arquitetura, que eu procuro e que ensinei l em Grenoble no desaparece. Ao contrrio, ele se torna hiper exigente, muito mais complicado que o desenho de hoje em dia. Porque nenhuma gratuidade formal passa, nenhum trao da mo trmula do gnio deve se transformar em parede. Ao contrrio, o projeto se transforma num exerccio, numa racionalidade hiper exigente. E, ao mesmo tempo em que traz essa racionalidade, abre para cada mtier a possibilidade da prpria expresso, da prpria autonomia, da prpria liberdade dentro do campo de cada um. um desenho ao mesmo tempo muito mais exigente, complexo e preciso do que ns habitualmente utilizamos em arquitetura. Pode parecer contraditrio, mas no ,
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Charles Sanders Pierce, semilogo norte-americano.

muito mais aberto. O desenho pode ser ainda modificado no canteiro de obras, transformado no canteiro de obras, atravs da liberdade dos que esto fazendo. A questo do ndice na arquitetura, da manifestao do trabalho nas artes plsticas uma dimenso sem a qual jamais teremos a presena do sujeito no espao, jamais teremos aquilo que chamvamos antes de um espao humano, de um espao da dimenso do homem. A dimenso do homem no Modulor, no medida fsica, no metro. A dimenso do homem toda essa profundidade, essa totalidade do que ele . Arquitetura a arte das artes, a primeira, a nica. a nica arte que no pode ser como pintura: crtica, de denncia, triste. Toda arquitetura boa ou no ou , ou positiva ou no , ou grandiosa e prometedora ou no . E, como eu no posso fazer arquitetura, eu me resumo, me volto, me limito pintura que tambm uma arte muito bonita, mas muito limitada, muito mais pequenininha, muito mais individual, com ressonncias sociais muito menos graves e importantes. O arquiteto, crente que livre, dominado pela lgica do valor. O desenho que ele cr ser livre um desenho totalmente determinado pelas mesmas regras de funcionamento, como se o desenho dele tivesse que, necessariamente, dominar. Mas esse acordar si-

multneo, volta da arte e arquitetura, volta da autonomia no canteiro, da produo livre e da racionalidade total, podemos e devemos j comear a ensaiar aqui, nas condies atuais de produo. A Bauhaus foi um pouco uma experincia desse tipo. Mas, se ns lermos os trabalhinhos do Gropius a fundo percebemos que j existia, mesmo na formao da Bauhaus, a separao entre alguns que deveriam parar no nvel do artesanato e outros que deveriam continuar no nvel dos grandes artistas, numa espcie de hierarquia disfarada. E o problema fundamental da Alemanha nesse tempo no era a arte, nem o povo, nem a liberdade, era simplesmente o fato de que ela tinha sido excluda do mercado mundial. Ela no possua colnia nenhuma e precisava entrar nesse mercado de uma outra maneira, e escolheu a qualidade do produto, escolheu o refinamento do produto. Passou a ter a linha de produo como uma arma para vencer os privilgios que a Frana, os Estados Unidos da Amrica e a Inglaterra tinham com suas colnias, e assim por diante. Por trs da Bauhaus est uma guerra econmica muito forte. a lgica do capital bem elaborada por gente maravilhosa. O Paul Klee, por exemplo, um dos pintores que eu mais admiro por essa constante passagem da pintura teoria da arte. Quando a Bauhaus foi excluda, muita gente foi para um lado e muita gente foi para outro. Eu

estou fazendo caricatura, no simples assim. Mas posso dizer que h muita ambigidade na Bauhaus. Temos que analisar com bastante cuidado, com bastante detalhe. H coisas lindas e, ao mesmo tempo, por debaixo do pano, h toda a problemtica da Deutsche Werkebund25, que uma espcie de FIESP daquele tempo. Guilherme Wisnik, arquiteto Lembrando das experincias com tijolo usados tanto para vedos como para as abbadas e com painis pr-fabricados, eu queria que voc comentasse sobre as escolhas da tecnologia e dos materiais na construo, e de que maneira elas engendrariam as relaes de explorao do canteiro, particularmente o caso do concreto no Brasil. Passado tanto tempo da publicao, no Brasil, de seus textos sobre arquitetura, e mais tempo ainda em relao quele perodo otimista do desenvolvimen-tismo e da industrializao, voc ainda acha que existe um horizonte de emancipao possvel atravs da industrializao da construo no Brasil de hoje? Em que moldes isso se daria? Ou o canteiro autnomo e partici-pativo teria que ser feito nos moldes de uma tentativa de traduo histrica daquele canteiro medieval, apontando para uma relao mais artesanal da produo? Francisco Barros, estudante de arquitetura A minha a pergunta sobre esse silncio que a gente sente aqui na FAU. Para ns, que ainda estamos

estudando aqui, h um silncio muito grande a respeito do senhor e do que aconteceu depois da sua sada da faculdade. E ns, que estamos aqui dentro, vivendo hoje essa falta, no temos mais notcias. Isso porque as pessoas que nos ensinam aqui dentro, salvo raras excees, no falam sobre isso. um tabu. Andria Yuri Flores Urushima, arquiteta Hoje em dia existe uma variedade muito grande de canteiros, tanto em escala como em organizao. Por exemplo, existe uma grande diferena entre a forma do arquiteto lidar com a reforma do tio e com as grandes obras, que hoje em dia chegam a uma complexidade que nem mesmo o arquiteto tem domnio, uma vez que as vrias obras so baseadas completamente no instrumento tecnolgico do computador. Isto ultrapassa a possibilidade do arquiteto ter domnio at sobre o desenho. Ser que numa sociedade sem a mais-valia, essas construes gigantes e baseadas no instrumento tecnolgico no seriam realizadas? Elas no seriam uma forma de experimentao muito vlida de discusso tecnolgica, esttica, e at mesmo sobre a gesto do canteiro? Sistemas desse grau de complexidade no teriam que ser hierarquizados, organizados de alguma
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forma? Eduardo Galli, estudante de arquitetura Eu queria pedir para voc discorrer sobre as relaes de trabalho a que um operrio est sujeito num canteiro, como no canteiro do Zezinho Magalhes26, ou no canteiro do Centre Georges Pompidou, ou ento, sobre um tipo de arquitetura que se desenvolvesse em cima de um sistema aberto de subveno. Luiz Imenes, estudante de arquitetura Voc dedicou boa parte da sua vida a estudar a relaes de trabalho no canteiro. Tambm foi professor desde que se formou. Eu gostaria que voc comentasse, no especificamente sobre a sua experincia na FAU, mas sobre a atividade de ser professor, de ensinar, da relao professor - aluno, de como voc v o ensinar como militncia. Sergio Ferro Quando comeamos a estudar O Capital e sua crtica, comeamos a elaborar a hiptese do que seria a arquitetura como manufatura. O Capital distingue dois tipos de manufaturas diferentes: uma chamada serial e outra chamada heterognea. Na serial voc faz quase tudo no canteiro: faz uma camada, e depois faz outra, e depois faz outra, e depois faz outra. E aquilo vai somando, no fim, a casinha est pronta. E na heterognea voc traz peas que so feitas em usinas ou em depsitos, que

so trazidas e montadas no canteiro. As duas so manufaturas. A pr-fabricao no canteiro no indstria. A industrializao dos componentes no tem nada a ver com a industrializao do canteiro, so coisas bastante diferentes. Voc pode ter produtos os mais sofisticados no canteiro. E esses produtos mais sofisticados de indstria de ponta entraro na manufatura dominante, na estrutura dominante.
Naquele momento, tnhamos duas hipteses e passamos a tentar as duas. Eu fiz duas casinhas ao mesmo tempo, para dois professores. Uma para o Bernardo Issler, l em Cotia, e a outra para o Bris Fausto, aqui na entrada da Cidade Universitria27. E tentei uma hiptese numa casa e uma hiptese na outra: na do Bernardo Issler, a manufatura serial, e na do Bris Fausto, a manufatura heterognea. Naquela poca, eu queria saber qual seria o tipo de manufatura mais pertinente, mais adaptado, mais empregado nas condies de produo do Brasil. A casinha do Bernardo Issler deu muito certo com a tentativa de manufatura serial e tudo feito, montado no local. No entanto, a casa do Bris Fausto apresentou muitos problemas. Naquele tempo as placas pr-moldadas eram uma merda, eu tive muitos problemas com aquelas plaquinhas, principalmente com as juntas. A primeira daquelas boas chuvas paulistanas me levou tudo embora. Foi um trauma.

A Deuscht Werkebund era uma associao de industriais e artistas para a renovao das artes aplicadas na Alemanha e foi precursora da Bauhaus.

E, a partir de uma experincia eficaz, outra totalmente negativa, ns continuamos a desenvolver mais, evidentemente, a hiptese de manufatura serial, que ainda hoje me parece a forma de manufatura mais adaptada s condies mais simples, mais elementares. Acho que j existe elaborao de pr-fabricados com outras qualidades que podem permitir uma maior presena de manufatura heterognea. A grande diferena entre a construo no Brasil e na Europa, na minha perspectiva, que aqui a dominante manufatura serial e, na Europa, a dominante a manufatura heterognea. Os materiais, evidentemente, se adaptam a uma e outra hiptese. Os materiais prprios para a pr-fabricao, transporte e montagem no so os mesmos dos que so adaptados acumulao no canteiro. Logo, a escolha dos materiais est muito ligada hiptese terica do desenvolvimento. No vejo nenhuma necessidade de ficar com a tecnolo-gia simples. Hoje h progressos em diversos nveis, em diversos setores. E seria um escndalo, um absurdo total jogar tudo isso pela janela. Que se faa uma crtica a certos instrumentos, sim. Que se faa uma utilizao diferente de certos elementos de tecnologia, de direo de canteiro, de previso de canteiro, e de logstica. Mas no devemos abandonar os canteiros mais complexos, dependendo evidentemente da situao. Creio, entretanto, que hoje, no

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Zezinho Magalhes Prado, conjunto habitacional construdo em Guarulhos por iniciativa da CECAP, em 1967. Projetado por Vilanova Artigas, Fabio Penteado e Paulo Mendes da Rocha para ser construdo em sistema pr-fabricado, industria incipiente na poca, acabou sendo construdo de forma tradicional e com menos edifcios que o previsto (ver Sylvia Fischer, Subsdios para um estudo do Conjunto Zezinho Magalhes. TGI, FAU-USP, 1972). Projetadas entre 1961-62, ambas partem do mesmo principio estrutural, a abbada. Ela permitiria valorizar o trabalho do operrio no canteiro. Erguida facilmente em poucos dias, ela protege os trabalhadores das intempries, dando condies adequadas para que cada um desenvolva melhor seu ofcio (...) Por trabalhar apenas em compresso, a abbada espe-

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cialmente econmica, pois o caro numa estrutura o controle da trao, que depende de materiais opinados, como o ao. A compresso, ao contrrio, pode ser realizada por materiais comuns e baratos (...) Alm da inveno estrutural, a casa em abbada instiga uma interpretao simblica: pode-se dizer que ela, enquanto superfcie cncava que protege seu morador, uma expresso do habitat humano primordial, uma cobertura-abrigo que reproduz uma especialidade cavernosa. Uma gruta reinventada (...) A abbada tambm uma forma irm da oca indgena brasileira, cuja sabedoria estrutural produziu uma cobertura leve e simples que se mantm em p com naturalidade.(Pedro Fiori Arantes, Arquitetura Nova: Sergio Ferro, Flvio Imprio e Rodrigo Lefvre, de Artigas aos mutires, S.Paulo: Editora 34, 2002).

Brasil, em se tratando de reas liberadas pelos pobres e sem-terras, provavelmente os materiais simples, elementares, sero muitos mais fceis de serem utilizados, muito mais disponveis. Mas isso tambm depende tanto da situao quanto do contexto. Qualquer hiptese de previso difcil. No creio tambm que nenhuma transformao social possa dizer: Vamos fazer casinha pequenininha ou vamos fazer s coisa grande. S grandes e complexos ou pequenos. Detesto brincar de feiticeiro do futuro, porque nunca fui capaz de adivinhar grande coisa na minha frente. Mas acho que

deve se deixar abertura para qualquer uma das possibilidades. Entretanto, eu sei que a complexidade e o tamanho de um canteiro no so obstculos para uma outra lgica das relaes de trabalho.
O prprio Rodrigo Lefvre fez um trabalho, o Hospital das Clnicas28, com aqueles painis inclinados, que pouca gente sabe que dele. Uma experincia capenga e limitada, como todos ns fizemos. Ele trabalhava com o Maksoud29 nesse perodo e no podia assinar a planta. Mas o

Rodrigo organizou aquele projeto, que complicadssimo, tem trinta redes de lquidos, de fludos como oxignio e gua. um processo de alta complexidade tcnica. Entretanto, ele tentou, e fez o desenho. E, at onde ele pde ir, ele abriu a ordenao do projeto a esse tipo de lgica que ns tentvamos desenvolver. No entanto, no pde ir at o canteiro, porque o Rodrigo naquela poca tinha acabado de sair da cadeia, e ningum queria que ele tivesse contato com operrio nenhum. Ele era cuidadosamente fiscalizado. E nos canteiros do Maksoud a coisa era bem dividida, tinha aquela proibio de entrada. Evidentemente, os operrios no podiam sair do que estavam fazendo, e esta regra era vlida tambm para os arquitetos. Uma vez que o plano descia da arquitetura para a gesto de canteiros, os chefes eram outros, e os poderes eram outros. E, no se esqueam nunca como aquelas maravilhas como a Catedral de Chartres e vrios outros edifcios gigantescos, com tecnologia altamente complicada, e estruturas refina-dssima foram feitos. o tipo de estrutura produtiva que o Marx chama de cooperao simples, no o que pretendemos fazer, mas era um tipo autnomo de organizao da produo, muito mais livre, com condies de igualdade. No entanto, eu sempre fui acusado de arquiteto de tijolo e areia, retrgrado, contra o desenho.

E, sobretudo agora em minha pintura, dizem que eu fao bundinha de renascena, pezinho de maneirice. Eu estou com a impresso que sou o pregador da volta pr-histria. Mas de jeito nenhum, de maneira alguma. Detesto jogar no lixo as coisas, temos que aproveitar toda a herana que ns temos, de A a Z, da arquitetura das cavernas at o Renzo Piano. Entretanto, essa tecnologia tem que ser repensada, recolocada, reexaminada. s vezes, ela est de cabea para baixo e voc v o inverso daquilo que ela poderia servir.

Recentemente eu fiz um estudo sobre o prdio do Renzo Piano em Tquio, uma loja para o Herms, que faz lenos carssimos, um sellier30 l de Paris. O prdio uma lindeza, uma maravilha: uma torre de blocos de vidros, absolutamente perfeita em todos os detalhes. Uma maravilha. Visitei tambm o banco de Hong Kong31, que tambm outra perfeio tecnolgica. Parece que um relgio foi aberto e se est olhando aquelas coisinhas lindas de dentro, de to perfeito que . E, nesses dois casos, a tecnologia foi levada ao mximo das possibilidades, perfeita. No h grandes fantasias de formas, so absolutamente racionais. Nesse caso de maior tecnologia, simplesmente todo o saber foi para cima, para a mo do arquiteto, e todo o fazer ficou completamente automatizado. Os operrios do Piano, e de outros arquitetos

desse tipo, devem se transformar em pequenas maquininhas. Eu estava na Frana quando ele fez aqueles canos do Beaubourg32, que tem painis de tijolos, mas assentados de uma maneira falsa. Ele tinha modulado precisamente, o tijolo devia ter 21,2 centmetros, mas quando chegou da olaria no estava com a dimenso correta. Ento ele fez os operrios limarem tijolo por tijolo, para passarem de 22,3 centmetros para 21,2 centmetros, no permitiu de jeito nenhum que os tijolos fossem utilizados de outra forma. Qualquer arquiteto um pouco safadinho faria a fieira toda e disfararia na ltima, ou colocaria um pouquinho mais ou um pouquinho menos de argamassa numa fieira s. Ele, na preciso dele, mandou que todos os tijolos fossem lixados. Coisa que o Mies j tinha feito no M.I.T., no exatamente lixando, mas medindo tijolo por tijolo e selecionando apenas os que tinham

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Srgio Ferro se refere ao Edifcio dos Ambulatrios do Hospital das Clnicas, projeto realizado em 1975 sob coordenao de Rodrigo Lefvre na Hidroservice. Henri Maksoud, proprietrio da Hidroservice, na qual Rodrigo Lefvre trabalha de 1972 a 1984. Neste mesmo ano morre Rodrigo, vtima de um acidente automobilstico fatal em Guin-Bissau, onde elaborava um projeto de ampliao dos servios de sade daquele pas. Joalheiro.

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medida centimetrada. Isto um caso caricato, a tecnologia na arquitetura no pode ser desprezada, mas desde que no seja utilizada para mais um massacre. Voc obrigado a se transformar naquela fora de trabalho abstrata que no tem mais uma gota de sangue para realizar aquela aplicao precisa do seu prprio desaparecimento na obra do outro. Esses arquitetos high-tech, que so fabulosos de certa maneira, so terrivelmente enganosos nesse sentido; eles parecem respeitar a tcnica, mas em tudo aquilo que a tcnica tem de desumano, de desconsiderao ao trabalho, exigindo uma preciso absolutamente mecnica e voltada contra as possibilidades do trabalho, contra a humanidade que constri. No toa que eles se transformam, por exemplo, em arquitetos de museu, em arquitetos de Herms, duas casas de tesouros. A arte hoje se transforma numa safadeza em que o quadro, a obra de arte, mesmo quando feita nas melhores condies, se transforma em

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Hong Kong and Shanghai Bank, em Hong Kong, China. Norman Foster, 1979. Museu Nacional de Arte Moderna (Centre George Pompidou), Paris, Frana.

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tesouro, em reserva de dinheiro. O proprietrio ou colecionador compra, bota na sala de jantar e guarda l. Quando o banco reclamar uma dvida que ele no pode pagar, vende o quadro e paga. Uma reserva de dinheiro que s funciona assim. o mercado de arte hoje em dia. O Beaubourg guarda alguns tesouros e o Herms guarda outros tesouros. E o curioso que o Herms, que um sellier de luxo, dos mais refinados, dos mais caros, age exatamente como o Renzo Piano. Ele vem aqui na Floresta Amaznica e no Peru para ver como os ndios trabalham com a borracha, conhecer aquelas tcnicas com a palha. Mandam tcnicos de alto nvel cientfico estudar, trabalhar e se fantasiarem de ndio durante uma semana. Pegam tudo, voltam para casa: tecnologia popular sofisticadssima sendo reutilizada. Tecnologia popular se transformando exatamente no inverso, em altssimo luxo. Esta questo da tecnologia, como tudo, alis, tem uma extrema ambigidade. Jamais se deve abandonar a conquista da razo, do saber, do pensamento humano, que so fundamentais. Mas, cada um desses saberes, como foram criados para o capital e pelo capital, para a explorao, trazem sempre algo perigoso, traioeiro e escorregadio escondido dentro do bolso. preciso, ento, em cada caso, fazer a anlise, a crtica, o detalhe, e a reutilizao

com outro sentido. Um prdio como o do Piano em Tquio poderia perfeitamente ser feito em outras condies de projeto, mesmo que essa preciso matemtica desaparecesse e ele fosse um pouco diferente. O silncio? Eu no acho nada estranho que no falem de mim e que me escamoteiem. Desde quando comeamos a falar disso, aos 20 e poucos anos, assim. No do agrado de nenhum arquiteto ouvir que ele colabora para a explorao do operariado, daquele mesmo operariado que ele est tentando defender ao pensar em casa popular, escolas, creches. muito difcil aceitar a acusao de ser colaborador da explorao daqueles mesmos que eles querem defender, muito angustiante, muito triste, muito pesado. Sobretudo porque a participao dos arquitetos no processo de explorao totalmente inconsciente. No se fala disso, ningum fala disso. No h nenhum curso de economia poltica na escola de arquitetura. Ningum analisa o canteiro em termos das relaes de produo. Um silncio absoluto, total. Todo mundo formado nesse silncio, e de repente ouve falar disso. Logo, somos chatos, grosseiros, mal-educados. Arquiteto gente fina, desenha... De repente, dizer que ele parte de um sistema de explorao dos mais vergonhosos... Ento eu no acho estranho que os arquitetos no consigam

imaginar isso de jeito nenhum. Continuo nesta luta at hoje e vou continuar. Est difcil, por enquanto. Eu ainda estou vivo, falo de vez em quando, mas daqui a um pouquinho j estou no canto da pgina, caio da pgina e isso some. No tenho nem dvida disso. Alm do mais, eu me coloquei numa posio quase suicida fazendo essa crtica ao canteiro e tendo a oportunidade de fazer s algumas experincias. Graas organizao do canteiro, aplicao da manufatura, junto com os operrios, a partir do saber deles, nas experincias, obtnhamos grandes economias, uma fabulosa economia, de 25 e 30%. Mas s em uma delas eu pude reverter essa economia em salrios para os operrios. Nessa obra eu era o arquiteto, o chefe de canteiro, o empregador, o comprador de material, era tudo. Mas em todas as outras, no deu. Chegou numa situao absurda, totalmente absurda. Eu estava, de uma certa maneira, fazendo o inverso do que queria, aperfeioando a explorao do prprio operariado. Era muito ambguo. No dava para continuar, a no ser criando canteiros de experincia na universidade, mas isso no aconteceu.

Criar centros de experimentao e arquitetura realmente uma obrigao, um dever, uma opo grandiosa. Acabamos de criar um na Frana h alguns anos. O ministrio deixou

fazer este centro, um centro experimental de arquitetura, mas que se transformou em algo curioso: os que experimentam fazem papagaio, fazem bicicleta, mas arquitetura experimental de jeito nenhum. Ento eu parei a minha produo. H 30 anos, mais ou menos, que eu fechei a torneira, moralmente incapacitado, moralmente proibido de continuar fazendo arquitetura nessas condies. S me autorizei a fazer um pouco de arquitetura em condies experimentais. As experincias eram rarssimas na Frana. Nunca consegui nenhuma, s pequenininhas. Eu me tornei um suicida do mtier e o mtier me trata como morto. Popularmente o pintor um sujeito meio sujo, bebe de noite, no dorme, acorda de manh com ressaca, pinta assim. um marginal. E no sabe nem falar, s sabe pintar. O De Kooning, que um dos maiores pintores do sculo XX, foi proibido pela filha de falar nos jornais. No que ele fale besteira, ao contrrio; ele disse que os quadros dele eram muito caros e a filha ficou p. da vida, abriu um processo que obrigou ele a calar a boca. No h atividade intelectual mais exigente, profunda, rigorosa do que a atividade artstica. Volto ao comeo. Arte trabalho, arte transformar matria com o prprio saber. Ela parte do pressuposto de algum que conhece aquele setor produtivo, conhece as possibilidades do

material, seu nvel de histria... Algum que conhece as relaes entre os dois e que sabe porque est fazendo. Se vocs gostarem de brincar de filosofia, peguem, por exemplo, o que o Hegel diz no fim da Lgica33 sobre o conceito, o que o conceito, sobretudo o que a idia. Idia aquela coisa espiritual, profunda, que no s est aqui, na minha cabea, mas est ali, na realidade. E a idia exatamente a identidade da diferena entre a idia daqui, da cabea, e a idia no mundo. E o que a arte seno exatamente isso? Voc, atravs do seu trabalho, conseguir revelar, expor, acordar a idia no mundo. E essa idia no mundo no nada mais do que voc no mundo, voc coletivo, voc sociedade. Voc no mundo que se acorda e se v. O Hegel faz uma ginstica mirabolante, usa um vocabulrio terrvel, horroroso, para conseguir falar do conceito. E torce o vocabulrio. Faz frases que voc l e voc acha que no tem p nem cabea. 38 vezes a palavra se, a palavra para. Tanto que raramente lido at o fim. Em arte, entretanto, isto a coisa mais evidente para voc fazer. Voc faz com a mo, a ternura do fazer. Tudo daquilo que est aqui, passa imediatamente para l. E l voc se v. E, voc se vendo l, l j outro porque voc j se viu l. E volta a fazer. Essa vida da idia, vida do

esprito, vida do conceito a essncia, o sangue, o ncleo, o cerne da arte. Uma coisa das mais sofisticadas. Vai l na Maria Antnia, que agora o prdio da filosofia, pede para o Ruy Fausto, o Bentinho34 falar do conceito do Hegel e vocs vo ver o vocabulrio que eles so obrigados a torcer, suar, para traduzir aquilo em palavras, em frases. E, ns fazemos isso tudo na prtica, todos os dias. Os matemticos tm a maior dificuldade de somar elefantes com bananas, eles dizem que no pode. Qualquer pintor consegue equilibrar o tom vermelho carmim com mulher, com passarinho ou com mais um rasgo na tela. A cabea do artista totalmente heterotpica. A gente consegue resumir, reunir universos totalmente dspares, separados em gavetinhas nas nossas universidades, no nosso saber. Tudo isso a riqueza extraordinria e imensa da arquitetura, que deveria ser a maior das profisses e no . O Kant35 no podia admitir que a arte era trabalho, no podia ser trabalho. Trabalho coisa de gente baixa, de gente que fica na cozinha. Arte outra coisa, coisa de gnio. Mas se arte coisa de gnio, eu posso explicar. Se eu no posso explicar a arte pelo trabalho, no d para
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A cincia da Lgica, publicada pela primeira vez em 1812.

explicar; ento tem que explicar a arte por nada. A inveno do gnio dele curiosa. Gnio um ser extraordinrio, iluminado, parece que recebeu uma pancada divina na nuca e cospe a alma divina, mas ele no sabe o porqu. Ele um cano de gua, entra por aqui e sai por l. Isto o gnio. Esse mito do gnio inspirado, cheio de fuses, entrou na nossa tradio filosfica e foi aproveitadssimo por toda a tradio romntica. O maior telefone direto com Deus, para os romnticos, o artista. E isso continua at hoje: depois do Van Gogh, Picasso, Andy Warholl, todos continuaram desesperados mantendo esse mito do artista, que excelente para o mercado. Isso rende bea. Cada pancada divina dessas se transforma em milhes de dlares. E a arte simplesmente uma das dimenses do trabalho livre, no nada mais do que isso. A arte a dimenso fundamental do trabalho livre. aquele momento em que voc faz uma pintura, tudo certinho. E voc comea a ficar contente consigo mesmo, comea a cantar e assobiar. A voc d aquela ltima coisinha assim, at um pouco a mais do puramente necessrio, um pouco alm do exatamente preciso. E isso que a histria da arte conhecia antigamente com o nome de ornamento. Simplesmente esse pequeno gesto a mais, essa pequena escapadela alm do puro gesto tcnico, mas que nada mais do que essa pequena alegria, esse rir, esse

entusiasmo. Voc no quer parar, diabo, est to bom fazer aquilo que voc vai em frente, continua um pouquinho mais. Depois voc quer que o outro veja direitinho como sabe fazer bem. Ento voc didatiza, exagera um pouquinho para ficar mais explcito. Isso em qualquer trabalho pode ser feito. Isso arte, esse trabalho livre que o sujeito faz com total autonomia, com total liberdade. Essa liberdade canta com ela mesma e vira um ornamento, aquela coisa totalmente proibida pelo Loos, pelos bons arquitetos. Exatamente esse canto operrio do trabalho que no pode ser aceito. Tudo isso saber, tudo isso palavra, tudo isso ensino. O Walter Benjamin36 dizia que todo bom romance e toda obra de arte devem ensinar a fazer outra. No h um artista que no seja imediatamente, de uma maneira ou de outra, professor ou pesquisador, ou qualquer coisa desse tipo. No obrigatoriamente se tem um contrato com a FAU, mas se professor nos vrios sentidos. Cada canteiro de obra livre uma universidade. Eu no sei se respondi tudo. Beatriz Tone, estudante de arquitetura Como voc falou, os problemas e os fatos de que estamos tratando aqui, esto presentes no mundo todo. Voc que d aula na Frana e deve ter conhecimento de outras faculdades: eu queria saber a quantas andam essas discusses entre
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Ruy Fausto e Bento Prado Jr., participantes do grupo de leitura e discusso do Capital conhecido como Seminrio Marx, formado na dcada de 60, do qual Sergio Ferro ir tambm participar. Immanuel Kant (1724-1804), filsofo alemo.

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os estudantes, os trabalhadores. Mariana Fix, arquiteta Voc j passou por questes fundamentais, eu queria s colocar mais uma. Estive recentemente em uma avaliao sobre o II Frum Social Mundial na qual estiveram estudantes que participaram do acampamento da juventude. Dali surgiu uma crtica sobre a organizao formal do Frum, que foi realizado no prdio da PUC em Porto Alegre, campus com boa infra-estrutura, com boas salas, com escada rolante, auditrios, teles, enfim, com toda a parafernlia, mas organizado nos moldes de um shopping center, segundo eles. Questionou-se como a prpria organizao do espao e da forma faziam com que as atividades acontecessem de maneira formal, e todos os outros problemas que decorriam disso. Contrapunha-se a isso o acampamento da juventude: mesmo reconhecendo toda a sua precariedade, o acampamento experimentava a proposta, tenha ela se realizado ou no, de viver agora o que ser uma transformao. Ento, peo para voc comentar essa avaliao sobre o Frum: se for para pensar um

outro mundo, necessrio tambm pensar um outro espao? Andrei de Almeida, estudante de arquitetura Eu tenho duas perguntas: uma era sobre esses espaos de experimentao de utopias para a produo atravs da matria disponvel que vem de outros espaos. Ou seja, no caso do MST, pensando no canteiro experimental, inovador, qual era a possibilidade de criar esse espao de utopia dentro de uma sociedade capitalista? Por mais que voc diga que vai ser capenga, que vai ser sempre um pouco capenga, quais so as vantagens desse avano? A outra questo sobre o artista obrigatoriamente ser professor, como pensar justamente na funo do professor, na relao dele com o aluno, luz desses estudos sobre a relao de trabalho? Como isto est a favor ou contra a dominao do sujeito que aprende? No caso, como o professor que ensina para o aluno e tambm o arquiteto que ensina para o pedreiro e para os outros trabalhadores do canteiro de obras. Lus Florence, estudante de arquitetura Esteve aqui, h algum tempo atrs, o arquiteto Lel. Ele criou esse canteiro de obras junto com vrios tcnicos, que, como ele mesmo diz, complementam o trabalho dele na parte tecnolgica, na parte da gesto do trabalho. Queria que voc

comentasse esse tipo de canteiro no vis do mercado capitalista de produo civil, principalmente no que se refere interveno do Estado, porque ele no seria realizado sem essa interveno. Queria perguntar tambm se existe alguma vontade de algum dia voltar ao Brasil. Reginaldo Ronconi, professor da FAU-USP Em primeiro lugar, queria te convidar, no sei at quando voc fica aqui, a conhecer o nosso canteiro experimental. H cinco anos a gente vem trabalhando aqui para construir um vetor. pequenininho, fraco ainda na escola, mas um vetor para discutir a formao do arquiteto com o ponto de vista muito parecido com os quais voc tem discutido conosco aqui e tem discutido todos esses anos atravs dos seus textos. S para fundamentar o que eu quero colocar, a gente tem essa esquizofrnica posio do arquiteto que vai para o canteiro quase como um representante do capital, que est produzindo o prprio canteiro. Muitas vezes se esquece que empregado do prprio capital e trata a mo-deobra como seus prprios empregados, no pior sentido do termo. Mas tambm vive uma outra dimenso esquizofrnica. Se a gente perguntasse para os estudantes que esto fazendo um estgio hoje, ou para os colegas, quem est trabalhando hoje, acho que muitos levantariam a mo. quase

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Walter Benjamin (1892-1940), filsofo de esttica alemo, pertenceu primeira gerao da Escola de Frankfurt, foi um dos pioneiros no estudo crtico das tcnicas de reproduo em massa da obra de arte. Autor de Via de mo nica, de 1928, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica, de 1936.

um risco fazer essa pergunta. Mas a gente poderia terminar com outra, perguntando quem tem a sua atividade profissional legalmente regulamentada. E a, acho que muitas mos se abaixariam. uma hipocrisia o que um arquiteto impinge a outro arquiteto, com todas as desculpas e problemas que todos enfrentamos da legislao trabalhista. Esse arquiteto ento um ser que vive numa tenso brutal para poder se colocar como aquele libertador, aquele humanista que pretende projetos interessantes. Na escola esse pequeno vetorzinho prope uma mudana, uma transformao no carter da formao desse arquiteto para que ele possa conviver com espaos que no so ainda admitidos legalmente nesse mercado. O MST e o Movimento dos Sem-Teto se configuram como um dos agentes desse espao. A gente pde observar na primeira gesto do PT nessa cidade surgirem em torno de 21 escritrios sem fins lucrativos que trabalhavam com esse novo arquiteto. O sonho que realmente a gente pde constituir. Na verdade, a direo do trabalho e do canteiro presume que ele seja uma ferramenta importante para essa transformao. Assim como algo que organize o ensino, um deslocamento para o canteiro, sem desmerecer nem o projeto, nem a construo. Dentro desse panorama, como voc pode compartilhar com a gente a experincia do canteiro e como isso contribui nesse novo desenho do arquiteto.

Pedro Arantes, arquiteto Queria saber do Srgio o que seria a transposio da sua crtica do canteiro para a cidade. Se ns estamos aqui pensando em outras relaes de trabalho no canteiro e a cidade mais que uma soma de canteiros, o que seria a democratizao da gesto e do uso na cidade? Sergio Ferro De vez em quando, eu recebo alguns alunos de arquitetura que querem fazer doutorado l na Europa, em algumas matrias muito especficas, sobre o canteiro, por exemplo. Eu geralmente desaconselho. O ensino de arquitetura no Brasil, apesar de tudo, bom e vocs no imaginam como o ensino l fora s vezes capengussimo, horrvel. No h como mitificar o que feito l fora. Me perguntaram sobre a questo do canteiro l. Uma revista francesa publicou uma espcie de abecedrio de termos de arquitetura, ensino, etc., na Frana. Tem todos os termos bonitinhos, vai de A a Z e quando chega no C de chantier canteiro de obra - a notcia bem pequenininha e diz o seguinte: s em Grenoble, no curso de Srgio Ferro fala-se em canteiro. A, eles passam para outra palavra. No pensem que l fora diferente daqui no. Voc falou que est fazendo um centro experimental aqui. Ns tentamos fazer um centro experimental l, bastante grande. O ministrio

s deu o financiamento necessrio quando se esvaziou totalmente o programa e o sentido da experimentao, e olha que ministrio de esquerda, socialista. Ento, a experimentao virou experimentao bobinha, de fazer papagaio, bicicleta, esqui, um negcio que no tem nem p, nem cabea; a sim eles aprovaram. Mas, quando escrevi o programa, para que experincias sobre relaes de produo pudessem ser feitas, eles ficaram rodando, rodando, rodando, at que esse programa foi posto de lado e transformado em outra coisa. O capital to forte, talvez at mais l fora do que aqui. L tem muito menos buraco no capital, o sisteminha est bem azeitado.

a maior admirao. Cabe muito mais a vocs nos instruir, falar para ns. Mas acompanho, vejo a arquitetura que foi feita nesse sentido, so realmente obras muito bonitas, algumas com xito outras no, mas todas grandes experincias. Ento, em relao a isso, sou eu que peo para poder vir um dia escutar uma palestra nesse sentido. Sobre a relao de ensino e dominao, h um excelente texto do Foucault. Ele terrvel. Basta estar com o microfone na mo, de uma maneira direta ou indireta, que h uma relao de dominao implcita. Eu ainda sou simpati-quinho, de esquerda, posso enganar um pouco, mas isso pode reverter totalmente em outro sentido. Ns estudvamos isso, em 68. Mas hoje desapareceu a moda. A gente brigava para mudar: o professor dava aula l e o aluno ficava aqui. Ns trocvamos as mesas de lugar, embaralhvamos as cadeiras para conseguir cortar exatamente essas manifestaes sutis, mas muito poderosas de dominao, que esto sempre implcitas no ensino. No entanto, no h como abolir o ensino. preciso que a herana cultural
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Acho que as oportunidades existem aqui hoje em dia, com esses bolses, com essas reas, com o MST, com o movimento dos sem-teto, por exemplo. H possibilidades de experimentao no Brasil que eu acho maiores do que as de l. O mtier de arquiteto e o trabalho de arquitetura esto horrivelmente estabelecidos, exigem essas qualificaes de que voc falou ainda h pouco. Essa regulamentao to exigente e precisa que o campo est extremamente limitado. Comeam a aparecer campos de misria na Europa tambm, os sem-teto comeam a aparecer na Frana. A misria est comeando a ficar mais escandalosa atualmente. Os

mesmos guetos esto comeando aparecer em Nova York, na Frana, etc. E no h, mesmo que de longe, algo que possa ser comparado com o movimento do MST ou dos sem-teto no Brasil. Neste sentido, acho que o Brasil que est na frente. Essas possibilidades de experimentao, de criao, essa maleabili-dade das zonas marginais pode ser utilizada, j que ningum se interessa por elas. Eu no participei dessas experincias dentro do governo da Erundina, da Maricato37. Foram feitas coisas lindas, lindssimas aqui no Brasil. Se eu no falo disso simplesmente porque eu no participei, no conheci de perto, mas tenho

Luiza Erundina foi prefeita de So Paulo entre os anos 1989 e 1992, perodo no qual Ermnia Maricato foi secretria da Habitao. Esta foi a primeira gesto do Partido dos Trabalhadores (PT) na cidade de So Paulo.

se transmita de gerao em gerao. Pode e deve ser feito atravs de relaes mais claras e abertas possveis, e as formas universitrias de relao no so as mais claras. No estou criticando a FAU, nem as outras escolas, mas a Universidade em geral. O professor sentado em cima da sua tese de doutorado, grande autoridade jogando palavras. Em tudo isso implicitamente h uma manipulao, uma dominao com a qual preciso ser muito cuidadoso. Essas so coisas perigosssimas porque somos formados assim, temos a tendncia a reproduzir isso depois, mesmo no canteiro de obra. A coisa mais difcil a escuta no canteiro de obra, porque a palavra vem difcil, atrapalhada. D uma vontade doida de pr a palavra na boca do outro e escutar o discurso que a gente quer ouvir. Repito, em 68 havia muita literatura, muito estudo sobre a forma da mesa, do seminrio. Mas com a recuada enorme em termos de esperana social tudo isso desapareceu e hoje est praticamente nas gavetas, nas prateleiras mais empoeiradas das nossas bibliotecas. O Lel... Eu adoro o Lel. um arquiteto de primeira e sobretudo um dos mais generosos arquitetos brasileiros. O trabalho que ele fez em Salvador, na Bahia, com o esgoto, com equipamento pblico, tudo isso uma maravilha. Poucos arquitetos tiveram coragem de enfren-

tar tais problemas. de uma beleza enorme. Os pr-moldados que ele faz em Salvador tm tambm, ao mesmo tempo, uma habilidade tcnica muito grande, e uma capacidade de apreenso imediata pelo prprio trabalhador. uma tecnologia simples, mas tudo isso infelizmente tem curta durao. Agora o Lel um arquiteto que est ganhando prmios por a, mas boa parte das obras dele vai ser posta de escanteio, pouco a pouco. Na Bahia, por exemplo, fiquei tristssimo, aqueles belssimos abrigos de nibus esto sendo substitudos agora por mobilirio francs, de ao inoxidvel, high-tech. Tenho o maior respeito pelo Lel. Quando eu era estudante de arquitetura, um dos prdios mais bonitos que eu vi foi a faculdade de arquitetura de Braslia. Um prdio que no era de arquiteto, era do Lel. Foi fabricado de modo muito simples, todo aberto. Braslia era nova ainda. O prdio no tinha nem janela, nem nada. A gente dava aula e via as plantas. Uma liberdade incrvel. realmente um dos prdios mais simples e mais bonitos que eu j vi at hoje. Naquele momento a gente estava largando brasa no governo, ento o clima tambm era muito bom.
Em relao ao Brasil, eu vou ficar neste pingpong. Eu estou me aposentando, eu preciso. Nesse ano vai fazer quarenta anos que eu digo

besteira na frente de aluno, est na hora de parar. Colaborar sim, aqui, ali, discutir, fazer seminrios e coisas desse tipo, mas manter uma presena maior impossvel, estou bem velhinho e cansadinho para isso. Sobre as cidades, vocs no devem fazer pergunta sobre isso coisa nenhuma. O trabalho do Pedro Arantes uma resposta muito mais bonita que qualquer resposta que eu possa dar aqui, a arquitetura que sai do canteiro e vai ao espao urbano. Hoje em dia, vocs tm coisas sendo estudadas, de uma fertilidade muito maior do que as pequenas experincias que foram feitas l na Europa. evidente que o arquiteto no pode ficar no canteiro de obras. Ele deve sair na cidade, ocupar a cidade. Mas talvez, so vocs aqui que esto tendo algumas experincias muito mais interessantes, no caso do MST, e outras. Outra pergunta feita sobre a anarquia urbana, que um termo que custo a aceitar. O que vemos no canteiro de obras a irracionalidade, anarquia, baguna, que so voluntariamente introduzidas. Parte do curso de alguns professores na Frana sobre como criar conflitos no canteiro, desordem, baguna. A anarquia que vemos nos canteiros no to anrquica assim, bem planejadinha, mesmo quando voc v cidades, zoneamentos, zonas recuperadas,

zonas em decadncia. Eu acho difcil pensar que os nossos grandes planejadores urbanos, como Bruno Zevi, no saibam o que esto fazendo e no tenham conscincia direitinho de onde se deve introduzir uma avenida reta com aparncia de ordem e onde se deve deixar a coisa ir para o brejo. A anarquia urbana: tenho a impresso que est bem planejada e tem muita conseqncia excelente. Para voltar e fechar com Braslia, eu me lembro que ainda na construo, j existiam as cidades satlites. Era um faroeste, uma zona, lama. Tinha botequim, puteiro, cabar, luz vermelhas. Aquilo tudo era uma mistura. Era uma beleza, faroeste desses filmes de Srgio Leone38. Essa baguna era til. Juscelino morava pertinho, e de vez em quando passava por l, sorria, dava um abrao, um carinho. Tinha que inaugurar em 1960. Inaugurou. Arrasaram as cidades satlites. Todo mundo foi parar a mais de 50 quilmetros de distncia. Acabou essa farra. Voc vai para longe, pega o nibus, chega cansado
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no trabalho, volta cansado para sua casa. Assim, voc no faz reunio sindical, no vai pensar besteiras. Nada disso acaso. Evidentemente h um pouco de anarquia, um pouco. Isso tambm aparece muito na Lgica do Hegel: tudo que a gente v como acaso, acontecimento, surpresa, milagre, olhando com um pouco mais de distncia, de uma raciona-lidade, de uma lgica perfeita. Os trabalhadores no devem ter casa e devem morar mal, nas piores zonas. Se no for assim, o salrio dele tem que aumentar, isso evidente. assim, planejado, lgico.

Eu agradeo imensamente a vocs e repito: foi a primeira vez que eu subi aqui, nesse andar, desde aquele tempo. Eu dava tanta aula h trinta e tantos anos, e agora o contato com vocs de novo aqui, aonde todas as teoriazinhas nasceram...Voltar aqui e discutir sobre elas, mesmo trinta e tantos anos depois, absolutamente reconfortante e comovente. Eu agradeo a vocs muito, muito mesmo.

Sergio Leone, cineasta italiano.

Executado pelas mos de : Introduo Ariane Stolfi Daniela Gomes Rezende Tatiana Morita Nobre Transcrio e reviso Daniela Gomes Rezende Denise Invamoto Luciana Ceron Tatiana Morita Nobre Notas e reviso final Daniela Gomes Rezende Tatiana Morita Nobre Pesquisa iconogrfica Ariane Stolfi Daniela Gomes Rezende Diego Beja Joo C. Amaral Yamamoto Luis Felipe Chammas Imagens em vdeo Silvio Cordeiro Capa Ariane Stolfi Daniela Gomes Rezende Joo C. Amaral Yamamoto Silvio Cordeiro Programao visual e diagramao Ariane Stolfi Joo C. Amaral Yamamoto Fotolito FAU USP Impresso Grfica FAU USP Colaboradores Eduardo Galli GFAU LAB HAB GFAU Rodrigo Vicino

Agradecimentos especiais Srgio Ferro, que nos cedeu os direitos da publicao, ao cineasta Wladimir Carvalho, pelo uso das imagens do filme Conterrneos Velhos de Guerra e para o arquiteto Pedro Fiori Arantes pela colaborao e incentivo durante todo o processo de publicao deste testemunho.