CICLO V 13/05/09 LAERTE ALVES DE PAULA

CONTRATRANSFERNCIA: OBSTCULO E INSTRUMENTO

Uma compreenso a partir da divergncia.

INTRODUO O presente artigo surgiu da curiosidade e do reconhecimento da importncia de uma abrangente avaliao da contratransferncia, embora tal tarefa requeira espao e esforo maiores. Para promover um dilogo que interesse prtica clnica, uma pesquisa preliminar que desse conta de sua conceituao, e das posies tomadas em relao a ela, foi realizada, buscando colher em diversos autores partindo da abordagem de Freud elementos que fomentassem a discusso. Mas antes mesmo de sequer conceituar a contratransferncia, proponho que a situemos no contexto psicanaltico, pois s assim podemos almejar posicionarmo-nos diante do tema. Para um possvel questionamento quanto ao manejo da contratransferncia no trabalho analtico, devemos definir as premissas do prprio trabalho analtico. O trabalho analtico visa a uma revelao de elementos inconscientes ao paciente. Este trabalho, feito a partir da fala do paciente e da escuta do analista, busca a construo de sentidos conscientes que integrem desejos e fantasias recalcados. Freud diz que este processo procura rastrear a libido, tornla acessvel conscincia e, enfim, til realidade1. Assim, por mais que a anlise remeta ao desvelamento de desejos inconscientes, estes buscam um acordo entre instncias, atravs de uma relao possvel entre Princpio do prazer e Princpio de realidade. Mas retorno ao raciocnio, tal empreendimento analtico encontra obstculos em ambos os envolvidos no setting: paciente e analista. Por parte do paciente, a tudo o que nos atos e palavras do analisando, durante o tratamento psicanaltico, se ope ao acesso deste ao seu inconsciente2, chamamos de resistncia. Estas podem ser da ordem da transferncia, do superego, dos mecanismos de defesa do ego, mas no objetivo deste trabalho se dedicar a tais resistncias. Pois o analista possui tambm obstculos que podem imped-lo de escutar o inconsciente do paciente. Um destes empecilhos de mbito terico, ou seja, para realizar seu trabalho o analista deve acumular uma determinada carga terica. Um segundo obstculo diz respeito s suas prprias questes neurticas, que podem interferir no processo. Se aplicarmos o conceito de resistncia supracitado ao analista, tudo o que em seus prprios atos e palavras se opuser ao acesso do inconsciente do analisando, tambm ser chamado de resistncia. Mas para iniciarmos uma reflexo sobre de que maneira a contratransferncia se situa no trabalho analtico proponho que antes tenhamos elementos para uma conceituao do termo. Definiremos a noo de transferncia primeiro, para que ento a contratransferncia adquira uma lgica em relao quela. Segundo o Vocabulrio da Psicanlise, a transferncia trata do processo

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FREUD, S. (1912) A dinmica da transferncia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, Volume XII. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J-B. (2001) Vocabulrio da psicanlise. So Paulo: Martins Fontes. p.458

(...) de uma repetio de prottipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada 3. Laplanche e Pontalis dizem que atravs da transferncia que um paciente atualiza seus desejos inconscientes sobre a figura do analista, repetindo suas primeiras relaes objetais como atualizadas no presente. Segundo os autores, a contratransferncia seria, ento, o conjunto das reaes inconscientes do analista pessoa do analisando e, mais particularmente, transferncia deste4. Vemos aqui a contratransferncia designada como a contraparte de um processo.

SURGIMENTO DO CONCEITO Pensando em um debate com as correntes atuais, proponho retornarmos agora ao que disse Freud sobre o termo. Quando o usou pela primeira vez, em 1910, Freud afirmou que a contratransferncia surge como resultado da influncia do paciente sobre os seus sentimentos inconscientes 5. E logo em seguida j se posiciona diante do tema afirmando que estamos quase inclinados a insistir que ele (o analista) reconhecer a contratransferncia, em si mesmo, e a sobrepujar 6. Temos aqui uma primeira definio, que aponta a contratransferncia como um efeito do paciente sobre o analista. Um efeito no inconsciente. Freud diz que este efeito deve ser superado. Dois anos depois Freud afirmaria que uma das maneiras pela qual o analista poder se desvencilhar da sua contratransferncia atravs de uma purificao psicanaltica, pela qual o analista deve ter ficado ciente daqueles complexos seus que poderiam interferir na compreenso do que o paciente lhe diz. (...) Toda represso no solucionada nele constitui (...) um ponto cego em sua percepo analtica7. Esta purificao refere-se aos processos que sero compreendidos como a anlise pessoal (ou didtica) e superviso. Podemos entender a partir disso que a contratransferncia um efeito inevitvel causado no analista. Quanto mais analisado ele for, entretanto, menos ele sucumbir aos efeitos contratransferenciais. Uma breve contextualizao: Freud mostra nestes textos uma preocupao com a transmisso do mtodo psicanaltico por ele criado a novos analistas em formao. O trabalho As Perspectivas Futuras da Teraputica Psicanaltica foi apresentado em 1910 no 2 Congresso de Psicanlise, mesma ocasio em que a IPA (International Psychoanalitic Association) foi criada. O Congresso era dedicado no apenas s discusses sobre o mtodo analtico, mas tambm (...) aos meios de luta

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Ibid, pg.514 Ibid, pg.102 5 FREUD, S. (1910) As perspectivas futuras da teraputica psicanaltica. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, Volume XI. 6 Ibid. 7 FREUD, S. (1912) Recomendaes aos mdicos que exercem a psicanlise. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, Volume XII

empregados para a difuso cultural da psicanlise 8. , portanto, com vistas ao fortalecimento e crescimento do movimento psicanaltico que Freud discute o papel do analista. Nasio diz que, quando concebeu o termo, Freud reconhecia duas formas tpicas de contratransferncia: o amor mal concedido e o saber excessivamente aplicado9. O primeiro referia-se a amar de volta o paciente, afetiva ou eroticamente, enquanto o segundo referia-se aos recalques do analista que influenciariam a escolha do material do paciente a ser analisado e interpretado. Aqui cabe uma segunda contextualizao. Freud temia, pelos exemplos que ouvia, que os analistas se deixassem seduzir amorosamente por suas pacientes vide casos de Jung e Ferenczi. Seus artigos prestaram-se a sustentar a posio da psicanlise como em absoluto desacordo com tais atitudes. Afirmaria em um de seus artigos que a irrupo de uma apaixonada exigncia de amor , em grande parte, trabalho da resistncia10. Sustenta que se o analista atender a esta exigncia, estar compactuando com a resistncia anlise. Em outras palavras, se o analista agir contratransferencialmente, estar fugindo dos princpios psicanalticos. Temos, portanto, como riscos contratransferenciais ao tratamento. uma escuta seletiva influenciada pelos recalques do analista, e o segundo risco como a possibilidade do analista deixar-se seduzir pela(o) paciente. V-se que para ambos os casos a conceituao da contratransferncia surgiu da necessidade de realizar um alerta a obstculos analticos. O material colhido em Freud nos habilita a fazer um primeiro recorte, ainda parcial. Um analista no deve deixar seus sentimentos interferirem no propsito do trabalho analtico, configurado pelos seguintes ditames, a saber, a escuta do inconsciente, o manejo da transferncia e o trabalho contra as resistncias. Ainda, a contratransferncia prejudica o trabalho analtico, e o analista deve super-la. Embora os artigos de Freud tenham servido possivelmente como recados dirigidos prpria comunidade analtica, e tenham sido exemplificados atravs de situaes de seduo sexual somente, o objetivo desta investigao mais amplo.

DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO Aps Freud o tema adquiriu novos contornos tericos e novos aspectos clnicos a serem considerados. O que priori parecia tratar-se de um tema nico sobre o qual existiam divergncias, na verdade dizia respeito a diferentes nveis ou ngulos de enfoque, com desdobramentos possveis. Relacionei trs nveis de discusso sobre o tema:

KUPERMANN, D. (1996) Transferncias Cruzadas uma histria da psicanlise e suas instituies. Rio de Janeiro: Editora Revan. p.50 9 NASIO, J.-D. (1999) Como Trabalha um Psicanalista? Editor Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 110 10 FREUD, S. (1912) Observaes sobre o amor transferencial. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, Volume XII

1) Que sentimentos a contratransferncia engloba?

2) A contratransferncia instrumento til ou um obstculo ao trabalho analtico?

3) Ainda, se til ao trabalho, deve ou no ser comunicada ao paciente? Para prosseguir a investigao, fao uma diviso aqui para expor duas correntes diferentes no entendimento da contratransferncia. A partir desta diviso torna-se possvel buscar em cada uma elementos que ampliem os limites do tema. Estes diferentes entendimentos continuam at hoje, e sero reunidos novamente ao final deste trabalho. A primeira corrente a que entende a contratransferncia como um obstculo, enquanto a segunda corrente entende a contratransferncia como instrumento de trabalho.

A CONTRATRANSFERNCIA COMO OBSTCULO A primeira corrente, que podemos denominar como lacaniana, foi defendida pelo prprio Lacan e corroborada no artigo pelos autores Denise Maurano e J. D. Nasio. Ambos discutem a contratransferncia sob o enfoque da posio que o analista deve ocupar na relao analtica. Maurano diz que fundamental que o analista saiba em que lugar est sendo colocado pelo analisando. (...) da posio que lhe dada pela transferncia que o analista pode analisar, interpretar, enfim, intervir sobre a prpria transferncia11. Ela recorre ao termo desejo do analista como a garantia de um trabalho possvel: o desejo do analista o que habilita-o a manejar a transferncia para coloc-la a servio do trabalho analtico, e, portanto, vencer as resistncias que tentam obstaculizar o processo, j que a transferncia tem duas faces: facilitao e impedimento12. Diferentemente da maneira como foi pensado por Freud, Nasio diz que o termo contratransferncia se define no no interior da relao do psicanalista com seu paciente, mas no interior da relao do psicanalista com o lugar do objeto 13. Diante de uma postura em relao a esta posio, Nasio bastante objetivo: definimos a contratransferncia como o conjunto das produes imaginrias do analista, que o impedem de ocupar o seu lugar de objeto, de objeto atrator na transferncia 14. Este lugar, ora chamado de lugar de objeto atrator, ora de objeto de pulso, ambos autores chamamno de lugar de desejo do analista. Embora o termo favorea o entendimento de um desejo especfico, diz mais sobre um lugar, uma funo, que sobre um desejo. Trata-se, segundo Nasio, de uma posio que fomente a neurose de transferncia do paciente, ou seja, a posio onde o analista de

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MAURANO, Denise (2006) A Transferncia: uma viagem rumo ao continente negro. Editor Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p.24 12 Ibid. p.34 13 NASIO, J.-D. Op. cit.. p.106 14 Ibid. p.106

fato pode operar como analista, interpretando, percebendo e causando o inconsciente do paciente. L-se aqui a contratransferncia como um obstculo ao livre curso da transferncia do paciente. Se, como diz Maurano, a transferncia tem duas faces, podemos nos perguntar se o mesmo pode ser aplicado contratransferncia, ou seja, se ela prpria pode ser facilitadora e impedidora no processo. No o que diz Nasio: se o desejo do analista designa o fato de ocupar efetivamente o lugar de objeto, a contratransferncia designa tudo o que se ope a isso15. Para ele a contratransferncia no pode ser entendida como facilitadora. Nesta teoria, conclumos que a contratransferncia no tem carter de contra-parte, diferente de nossa primeira classificao. Maurano fornece um argumento que ilumina a compreenso do lugar de analista: Atuando sua prpria transferncia, o analista se coloca equivocadamente como sujeito, em vez de ser instrumento nesse processo objeto portanto16. Diz mais adiante: o analista no est em posio de simetria frente a seu analisando. (...) O analista pago para que se lembre disso. O dinheiro que ele recebe tambm uma compensao por sua absteno subjetiva, recompensa por ter deixado de lado o Eu17. Para estes autores, esta absteno subjetiva sustenta uma postura tica que se refere a uma falta que permitir ao analisando subjetivar-se. O analista sustenta esta falta. O tema, por si s, merece trabalho parte, para alm dos limites deste texto. Ao final do captulo em que comenta a contratransferncia, porm, Nasio reconhece as manifestaes contratransferenciais, segundo sua teoria, justamente como um sinal de proximidade do inconsciente. Mais precisamente como proximidade posio do analista. Ainda que seja um obstculo, portanto, ela tambm um indcio de um caminho certo no contato com o insconsciente.

A CONTRATRANSFERNCIA COMO INSTRUMENTO DE TRABALHO Nesta segunda corrente, que chamo de rackeriana (a partir de Heinrich Racker), diversos autores produziram estudos com um novo escopo para o termo, diferente de Freud e da corrente lacaniana. Esta corrente pensa que no exatamente a contratransferncia que constitui o obstculo ao tratamento, mas a postura do analista em relao a ela. A contratransferncia em si vista como ferramenta, guia, fonte de interpretao, mas, se subestimada, recalcada ou mesmo comunicada ao paciente de forma indevida, pode ir contra os preceitos analticos. Segundo nos diz Zimerman, a contratransferncia considerada o resultado de uma interao mediante a qual o inconsciente do analista pe-se em comunicao com o inconsciente do analisando18. A contratransferncia aqui, pois, fruto de uma interao.

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Ibid. p.106 MAURANO, D. Op. cit. p.35 17 Ibid. p.36 18 ZIMERMAN, David E. (2003) Manual de tcnica psicanaltica. Porto Alegre: Artmed. p.144
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H. Racker, um dos analistas que mais se dedicaram ao estudo do tema, afirma que atravs dela (da contratransferncia) que sentimos e compreendemos o que o paciente sente e faz na relao com o analista e ante seus instintos e sentimentos para com o analista19. Diz tambm que a transferncia leva a uma conduta real ante o analista e seu trabalho, o qual (...) responde com sentimentos, angstias, defesas e desejos igualmente reais20. Esta resposta do analista a contratransferncia. Mesmo W. Reich, um analista inicialmente admirado por Freud, mas posteriormente expulso da IPA, estudou por muitos anos a contratransferncia e parece fazer coro com a afimao de Racker: (...) mas esta intelectualizao no deve ser imputada ao prprio trabalho analtico, cujo sucesso depende em grande parte da compreenso intuitiva e da ao21. Aqui temos uma importante mudana de concepo em relao a Freud: a contratransferncia agora entendida, tambm, como fonte de compreenso para o processo analtico. O que Racker e Reich nos dizem que justamente atravs de uma sensibilidade, de algo da ordem da sua subjetividade, que o analista pode operar seu trabalho. Esta assertiva faz ainda mais sentido se entendermos que um analista plenamente analisado um conceito, um ideal a ser buscado, mas na realidade nunca alcanado j que, na prtica, todos analistas possuem recalques, pontos cegos, que podem configurar dificuldades ao processo analtico. Avanando a compreenso de quais sentimentos a contratransferncia englobaria, damos mais um passo nesta tarefa com a sntese de Zimerman: as reaes contratransferenciais manifestam-se como percepes fsicas, emocionais e somatossensoriais22. Entende-se desta afirmao que sensaes como tdio, sono, dio, paixo, amor, alm de manifestaes somticas como dores ou cansao, por exemplo mesmo sonhos , podem ser manifestaes contratransferenciais. Mas Zimerman alerta logo em seguida: nem tudo que o analista sente ou pensa deve ser significado como sendo uma contratransferncia promovida pelo paciente23. Este alerta procura chamar a ateno dos analistas para no incorrerem no equvoco de atribur contratransferncia e portanto ao paciente todos os seus sentimentos durante a sesso. Agrego discusso um recorte que Lcia Helena Navarro traz de um questionamento de Pierre Fdida sobre esta compreenso do analista: No seria (...) atravs de uma apropriao subjetiva do efeito do afeto que o analista adquire os meios para pensar uma implicao inconsciente do cenrio do paciente e no seria desta maneira que se forma nele uma interpretao possvel que ser ou no comunicada?24.
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RACKER, H. (1982) Estudos sobre a tcnica psicanaltica. Porto Alegre: Artes Mdicas. p.56 Ibid. p.56 21 REICH, W. (1945) Anlise do carter. Viseu: Martins Fontes. p.177 22 ZIMERMAN, David E. (2003) Manual de tcnica psicanaltica. Porto Alegre: Artmed. p.151 23 Ibid. p.151 24 FDIDA, P. apud NAVARRO, Lcia Helena R. (2003) Monografia: Da contratransferncia em direo questes relativas regresso. p.5

Comentrio similar o que feito por Bion em um detalhado compndio elaborado por Zimerman:
O analista que tentar (...) o tratamento de tais pacientes, precisa estar preparado para descobrir que, durante uma grande parte do tempo, a nica evidncia na qual uma interpretao pode se basear ser naquela que a contratransferncia pode lhe propiciar 25.

Para estes autores parece no haver dvida de que a subjetividade do analista tem papel ativo em sua escuta e seu trabalho analtico. A contratransferncia passa a ser percebida como corolrio da posio analtica. Ora, a busca que nos cabe aqui ento entender o que o analista deve fazer a partir desta nova posio, de compreenso intuitiva. Em uma declarao que julgo crucial para a compreenso de sua teorizao, Racker aconselha o analista a uma s dissociao (...) que sugere ao analista dividir o seu ego em algum vivencial, irracional e em algum racional, observador26. Podemos buscar respaldo a esta afirmao em um psicanalista contemporneo de Freud, Ferenczi:
pouco a pouco, vai-se percebendo at que ponto o trabalho psquico desenvolvido pelo analista , na verdade, complicado. Deixam-se agir sobre si as associaes livres do paciente e, ao mesmo tempo, deixa-se a sua prpria imaginao brincar com esse material associativo: nesse meio tempo, comparam-se as novas conexes com os resultados anteriores da anlise, sem negligenciar, por um instante sequer, o exame e a crtica de suas prprias tendncias. De fato, quase poderamos falar de uma oscilao perptua entre sentir com', auto-observao e atividade de julgamento 27.

Curiosamente Nasio, autor de uma corrente divergente, tambm fornece uma citao de Ferenczi que ajuda a clarear esta questo: sua oscilao libidinal (a do analista) mostra um movimento pendular, que o faz ir e vir entre uma identificao e um controle exercido sobre si mesmo28.

Racker corrobora ambas citaes de Ferenczi em uma construo interessante, referente ao setting: no exigir ou proibir, mas realizar, muito rapidamente, o papel induzido pelo paciente, para analisar, em seguida, o sucedido e atuado29. Em outro trecho, Racker ainda mais explcito sobre o funciomamento do analista:
a objetividade do analista consiste (...) numa determinada posio tomada ante a prpria subjetividade, a contratransferncia. (...) A verdadeira objetividade baseia-se numa forma de desdobramento interno que capacite o analista a tomar-se (...) como
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BION, W. apud MATTOS, J. apud ZIMERMAN, David E. (2004) Bion: da teoria prtica. p.268 RACKER, H. Op. cit. p.57 27 FERENCZI, S, apud NAVARRO, Lcia Helena R. Op. cit. p.2 28 NASIO, J.-D. Op. cit. p.106 29 RACKER, H. Op. cit. p.62

objeto de sua observao e anlise contnuas. Esta posio capacita-o, tambm, a ser relativamente objetivo com o paciente 30.

Surgem nestas citaes a viso de contratransferncia como um processo identificatrio. Pois Racker amplia esta noo fazendo ainda uma possvel subdiviso da contratransferncia em duas partes: uma parte resultante da identificao do analista com o ego e o id do paciente (identificao concordante), e outra parte que resultante da identificao do analista com os objetos internos do paciente (identificao complementar)31. Apesar de no ser possvel aprofundar cada desdobramento terico neste artigo, no deixa de ser prova da evidente complexidade do tema.

O que todos estes autores trazem discusso o esforo do analista a partir de um modo particular de funcionamento, ora identificado, intuitivo, aberto a surpresas como diria Freud , ora racional, crtico e objetivo.

At aqui foi dito de que modo a contratransferncia surge no setting. Falemos agora sobre qual o uso que o analista faz dos elementos contratransferenciais. Ser com Paula Heimann, citada por Racker, que obteremos um primeiro enfoque:

Paula Heimann enfoca a contratransferncia como instrumento para a compreenso do paciente. (...) Esta relao profunda chega superfcie na forma de sentimentos que o analista percebe em resposta ao seu paciente, na contratransferncia. Esta resposta emocional do analista est frequentemente mais perto da realidade psicolgica do paciente que a opinio consciente do analista sobre a mesma situao32.

Mais uma vez o que se v aqui o movimento pendular proposto por Ferenczi. Porm Racker faz um alerta sobre a elasticidade da contratransferncia, sobre os limites dessa instrumentalizao: creio que seria (...) um erro ver nas reaes contratransferenciais um orculo, esperando delas, com f cega, a verdade pura sobre as situaes psicolgicas do paciente33. claro aqui que a contratransferncia no deve ser tomada como fonte absoluta ou exclusiva de compreenso do mundo psquico do paciente. Tanto Racker quanto Heimann entendem a contratransferncia como fonte de compreenso. Navarro traz uma leitura de Heimann muito pertinente:
O que ela prope (P. Heimann) que o analista utilize a sua resposta emocional, dentro da situao analtica como um guia, um instrumento de investigao do inconsciente do paciente. Assim o que possibilitaria o uso positivo da

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Ibid. p.125 Ibid. p.57 32 HEIMANN, P. apud RACKER, H. Op. cit. p.121 33 Ibid. p.155

contratransferncia, seria a capacidade do analista de suportar os sentimentos que so suscitados na transferncia, sem descarreg-los34.

Fica explcito um particular entendimento da contratransferncia como algo til ao trabalho analtico, um valioso recurso com o qual o analista deve contar, uma parte integrante da sua capacidade de escuta do inconsciente, tanto do paciente quanto o seu prprio.

Por ltimo, podemos tentar responder questo de comunicar ou no ao paciente elementos contratransferenciais. Em sua monografia, Navarro afirma que Paula Heimann discorda (...) de expressar abertamente ao paciente, em certas oportunidades, os sentimentos que o analista experimenta em relao a ele. (...) Entende (...) que este uso da contratranferncia sobrecarrega o paciente35. E diz logo a seguir: a resposta emocional do analista, se intensa, frustrar sua finalidade36. Aps este intenso, porm breve, levantamento das principais diretrizes sobre a contratransferncia, e ciente da extrema complexidade que envolve o assunto, no posso deixar de considerar o ponto de vista de Racker sobre esta ltima questo como o mais maduro: se o analista deve ou no comunicar ao paciente alguma coisa de sua contratransferncia (...), naturalmente, muito dependeria tambm de que, quando, como, a quem, para que e em que estado o analista falaria de sua prpria contratransferncia37. Qualquer questo que aluda postura analtica como esta ltima faz deve ser formulada sempre a partir dos propsitos do tratamento analtico.

CONCLUSO Podemos concluir dois aspectos importantes deste trabalho:

1) As duas correntes no divergem quanto direo do tratamento analtico. Ambas fazem

integral reconhecimento dos conceitos psicanalticos inconsciente, transferncia, resistncia e seus papis no tratamento.

2) No podemos dizer que ambas correntes discordam quanto ao manejo da contratransferncia

porque ambas entendem o conceito de maneiras diferentes. Poder-se-ia dizer que cada entendimento mereceria um termo diferente, pois referem-se a campos distintos, ambos presentes na clnica.

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NAVARRO, Lcia Helena R. Op. cit. p.2 HEIMANN, P, apud NAVARRO, Lcia Helena R. Op. cit. p.3 36 Ibid. p.3 37 RACKER, H. Op. cit. p.157

A corrente lacaniana pensa a contratransferncia como aquilo que impede o analista de desempenhar seu trabalho, ou sua funo.

A corrente rackeriana pensa a contratransferncia como um recurso (no-absoluto e no-exclusivo) ao analista para desempenhar seu trabalho.

Apesar de paradoxais, no posso deixar de encarar como saudvel e perfeitamente cabvel a compreenso dialtica de ambas correntes para o pensamento da psicanlise. Se pensarmos um cenrio de coexistncia das diferentes formas de problematizao da contratransferncia, a viso de Zimerman sobre o atual panorama satisfaz a pretenso deste trabalho com uma viso objetiva e no encerrada: na atualidade predomina entre os psicanalistas a aceitao do trplice aspecto da contratransferncia: como obstculo, como instrumento tcnico e como um campo, no qual o paciente pode reviver as fortes experincias emocionais que originalmente teve38. Como mencionado no incio do trabalho, busquei congregar nesta anlise os diferentes enfoques da contratransferncia ao longo da histria do movimento psicanaltico. As vises apresentadas so mais complementares que divergentes, visto que ambas sustentam as premissas do trabalho psicanaltico. Pode-se dizer que justamente por causa desta divergncia, ou a partir dela, que temos diferentes correntes de pensamento altamente ricas em contedos para pensarmos tanto a tcnica quanto a clnica psicanaltica.

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ZIMERMAN, David E. (2003) Manual de tcnica psicanaltica. Porto Alegre: Artmed. p.144

BIBLIOGRAFIA FREUD, S. (1910) As perspectivas futuras da teraputica psicanaltica. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, Volume XI.

______. (1912) A dinmica da trasferncia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, Volume XII ______. (1912) Observaes sobre o amor transferencial. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago,
Volume XII

______. (1912) Recomendaes aos mdicos que exercem a psicanlise. Obras Completas. Rio de
Janeiro: Imago, Volume XII KUPERMANN, D. (1996) Transferncias cruzadas uma histria da psicanlise e suas instituies. Rio de Janeiro: Editora Revan. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J-B. (2001) Vocabulrio da psicanlise. So Paulo: Martins Fontes. MAURANO, Denise (2006) A transferncia: uma viagem rumo ao continente negro. Editor Rio de Janeiro: Jorge Zahar. NASIO, J.-D. (1999) Como trabalha um psicanalista? Editor Rio de Janeiro: Jorge Zahar. NAVARRO, Lcia Helena R. (2003) Monografia: Da contratransferncia em direo questes relativas regresso. RACKER, H. (1982) Estudos sobre a tcnica psicanaltica. Porto Alegre: Artes Mdicas. REICH, W. (1945) Anlise do carter. Viseu: Martins Fontes. ZIMERMAN, David E. (2004) Bion: da Teoria Prtica. Porto Alegre: Artmed.

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