07 (1) .2.1 - Procedimentos Administrativos
07 (1) .2.1 - Procedimentos Administrativos
07 (1) .2.1 - Procedimentos Administrativos
COM
Do procedimento administrativo
ALVARO LAZZARINI
SUMÁRIO
1. Introdução
É recomendável a instauração de procedi-
mento administrativo adequado, como mais
adiante se verá, toda vez que seja verificada a
ocorrência, mesmo em tese, de uma falta disci-
plinar. A providência documenta que o órgão
superior não está inerte, que não coonesta even-
tual quebra de deveres funcionais de seus
subordinados; documenta, enfim, que o órgão
Alvaro Lazzarini é Desembargador do Tribunal superior busca a moralidade administrativa.
de Justiça do Estado de São Paulo, Professor de Essa providência demonstra que a Admi-
Direito Administrativo na Escola Paulista da nistração Pública está vigilante sobre as ativi-
Magistratura e na Academia de Polícia Militar do dades dos seus órgãos inferiores, exercendo uma
Barro Branco, sócio do Instituto dos Advogados de
São Paulo e da Associação Brasileira dos Constitu- fiscalização constante, ou seja, a fiscalização
cionalistas – “Instituto Pimenta Bueno”, membro da ordinária, como fator fundamental de harmonia
“International Association of Chiefs of Police” no funcionamento da Administração.
(USA). Enfim, faz retomar a confiança que o
Roteiro de Palestra sobre o tema na I Jornada de administrado deve ter da Administração
Estudos Jurídicos da Polícia Militar do Distrito Pública, como fator de inequívoco equilíbrio
Federal. Brasília-DF, 20 de março de 1997. social. Há, como sabido, descontentamento
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 125
popular, quando não mais acreditam, não a imposição de pena é obrigatória, pois é delito,
confiam nas autoridades públicas que, com definido como de condescendência criminosa
paternalismo ou não, procuram acobertar seus (artigo 320 do Código Penal e artigo 322 do
servidores que se envolvem em atos menos Código Penal Militar), deixar o funcionário,
dignos, com evidente quebra de deveres fun- no caso o superior hierárquico competente, por
cionais. indulgência, de responsabilizar subordinado
Não podemos esquecer que o cumprimento que cometeu infração no exercício do cargo ou,
normal e corrente dos deveres corresponde à quando lhe faltar competência, não levar o fato
rotina funcional desenvolvida pelos servidores ao conhecimento da autoridade competente.
públicos em geral. Há, porém, aqueles que se Daí a importância de que se conheça o
mostram exemplares no cumprimento de seus devido processo legal, no âmbito do Direito
deveres funcionais. Destacam-se, positivamente, Administrativo, para que se possa usar conve-
porque desempenham ditos deveres com nientemente o poder disciplinar, como instru-
consciência e boa-vontade, procurando melhorar mento adequado para o aperfeiçoamento
os métodos de trabalho, para melhor alcançar progressivo do serviço público1.
os objetivos comuns da sua repartição. Quem
assim se houver é digno de recompensas, como 2. Processo administrativo
louvores, elogios, medalhas, prêmios pecu-
niários, promoção por merecimento, etc. ou procedimento administrativo
Ao contrário, há os que se destacam nega- Surge, agora, velha disputa em saber-se qual
tivamente, isto é, aqueles que se tem com quebra a locução correta, ou seja, se há um verdadeiro
no cumprimento dos seus deveres funcionais, processo administrativo ou um procedimento
fazendo surgir, então, a infração disciplinar, a administrativo.
transgressão disciplinar, a falta disciplinar, o Hely Lopes Meirelles, cuidando da questão,
ilícito disciplinar, como quer que se denomine atesta ter sido Aldo M. Sandulli, no seu Il
tal quebra do dever, a ser reprimida pelo Procedimento Amministrativo, o sistematizador
detentor do “Poder Disciplinar”, mediante da “teoria do procedimento administrativo”,
sanções, ou seja, penas ou punições, a serem lembrando também que “os autores de língua
impostas, em regra, por meio de regular proce- castelhana ora empregam a palavra ‘procedi-
dimento administrativo disciplinar. mento’ no sentido de processo administrativo,
Mas, cumpre ressaltar, mormente para os ora no de procedimento administrativo propria-
espíritos mais desavisados, que a disciplina não mente dito, o que exige do leitor a devida
se mantém, tão-só, com a aplicação de sanções atenção para fazer a distinção necessária, uma
disciplinares. O exemplo do chefe que dá tudo vez que para nós processo e procedimento têm
de si para o exato desempenho da repartição é significado jurídico diverso”2.
fator importante para ter subordinados coesos Por sua vez, José Cretella Júnior3 salienta
e eficientes em suas atividades funcionais. Em que “processo designa entidade que, em natu-
outras palavras, serão funcionários dedicados reza, ontologicamente, nada difere da que for
ao serviço público, como tal disciplinados. procedimento, podendo-se, quando muito,
De outra parte, não pode ser esquecida a quantitativamente, empregar aquele para
lição de administrativistas ilustres – e que tem mostrar o conjunto de todos os atos, e este para
paralelo nos ensinamentos da psicologia –, designar cada um desses atos: processo é o todo,
segundo a qual recompensas e sanções disci- procedimento as diferentes operações que
plinares são os meios clássicos para manter a integram esse todo”.
disciplina em qualquer instituição.
1
CAETANO, Marcelo. Do poder disciplinar.
Mas, de qualquer modo, deve ser lembrado Coimbra : Imprensa da Universidade, 1932.
nesta oportunidade que, enquanto recompensas 2
ficam à discrição do administrador, ou seja, do MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Adminis-
seu poder discricionário, a aplicação de sanção trativo Brasileiro. 21. ed. atual. por Eurico de
disciplinar, não significa, em absoluto, a Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José
Emmanuel Burle Filho. São Paulo : Malheiros, 1996.
possibilidade de deixar de punir o faltoso, o p. 139, nota 14.
transgressor dos deveres funcionais. 3
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito
Ao faltoso, como tal considerado o servidor Administrativo. 10. ed. Rio de Janeiro : Forense,
que praticou o ilícito administrativo disciplinar, 1989. p. 565.
126 Revista de Informação Legislativa
Bem por isso, Edmir Netto Araújo4 afirma noção de processo e da idéia da existência
que José Cretella Júnior de processualidade no exercício de todos
“não atribui maior importância à distin- os poderes estatais. Essa evolução
ção entre ‘processo’ e ‘procedimento’”, culmina, principalmente, na concepção
e, após examinar o tema, deu a sua do procedimento-gênero, como represen-
posição no sentido de que, no “campo tação da passagem do poder em ato.
específico do ilícito administrativo e seu Nesse enfoque, o procedimento consiste
processo, e em sentido estrito, preferimos na sucessão necessária de atos enca-
denominar processo aquele procedimento deados entre si, que antecede e prepara
que prevê, em sua estrutura, o diálogo um ato final. O procedimento se expressa
manifestado pelo contraditório, que é a também na cooperação de sujeitos, sob
bilateralidade de audiência, ou a ciência prisma contraditório. (...) A despeito do
bilateral dos atos do processo e a possi- difundido uso do termo ‘procedimento’
bilidade de impugná-los. Por sua vez, no âmbito da atividade administrativa –
seriam procedimentos as formalizações continua Odete Medauar –, mais adequada
de passos escalados em seqüência lógica, se mostra a expressão ‘processo admi-
em direção ao objetivo formal (‘produto’ nistrativo’. A resistência ao uso do
formal, ‘provimento’ formal) visado, sem vocábulo ‘processo’ no campo da Admi-
a previsão do contraditório na respectiva nistração Pública, explicada pelo receio
estrutura. Como se vê – concluiu Edmir de confusão com o processo jurisdicional,
Netto de Araújo –, esse sentido estrito deixa de ter consistência no momento em
de processo administrativo enquadra que se acolhe a processualidade ampla,
quase que somente o processo adminis- isto é, a processualidade associada ao
trativo disciplinar (ou funcional), pelo exercício de qualquer poder estatal. Em
qual são apresentados os ilícitos admi- decorrência, há processo jurisdicional,
nistrativos de maior gravidade, consti- processo legislativo, processo adminis-
tuindo simples procedimentos os demais trativo; ou seja, o processo recebe a
meios de verificação”5. adjetivação provinda do poder ou função
de que é instrumento. A adjetivação,
Sistematizando, no Brasil, a temática em dessa forma, permite especificar a que
exame, ou seja, a controvérsia terminológica e
âmbito de atividade se refere determi-
substancial do “processo ou procedimento
administrativo”, Odete Medauar, em monografia nado processo. (...) No ordenamento
específica sobre “A Processualidade no Direito pátrio – finaliza Odete Medauar – a
Administrativo”6, após estudar os critérios da Constituição Federal de 1988 adotou a
amplitude, da complexidade, do interesse, do expressão ‘processo administrativo’ ou
concreto e do abstrato, da lide, da controvérsia, utilizou o termo ‘processo’, o que signi-
do teleológico e do formal, do ato e da função, fica não só escolha terminológica, mas
do procedimento como gênero e processo como sobretudo reconhecimento do processo
espécie, da colaboração dos interessados, e do nas atividades da Administração Pública,
contraditório, com isso, demonstra que como demonstram, de forma clara,
“O rol dos critérios comumente quatro dispositivos, principalmente o inc.
invocados para distinguir procedimento LV do art. 5º: ‘Aos litigantes, em
e processo revela não só o empenho processo judicial ou administrativo, e
científico de administrativistas e proces- aos acusados, em geral, são assegurados
sualistas na caracterização de cada uma o contraditório e a ampla defesa, com os
das figuras, mas também a própria meios e recursos a ela inerentes’; o inc.
evolução da matéria, no rumo da valori- LXXII do art. 5º: ‘conceder-se-á habeas
zação procedimental, da mais precisa data... b) para retificação de dados
4
quando não se prefira fazê-lo por
ARAÚJO, Edmir Netto de. O ilícito adminis- processo sigiloso judicial ou administra-
trativo e seu processo. São Paulo : Revista dos tivo; o inc. XXI do art. 37: ‘ressalvados
Tribunais, 1994. p. 127.
5
Ibidem, p. 128.
os casos especificados na legislação, as
6
MEDAUAR, Odete. A processualidade no obras, serviços, compras e alienações
direito administrativo. Revista dos Tribunais, 1993. serão contratados mediante processo de
p. 29-42. licitação pública...’, o § 1º do art. 41: ‘O
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servidor público estável só perderá o car- vez, lembra que
go em virtude de sentença judicial tran- “O ordenamento coloca à disposição
sitada em julgado ou mediante processo da Administração meios ‘mais formais’
administrativo em que lhe seja assegu- e ‘menos formais’ para a apuração do
rada ampla defesa’”. ilícito administrativo, cuja utilização se
Sem embargo dessa escolha pelo consti- relaciona diretamente com a gravidade
tuinte federal de 1988, o constituinte paulista da falta e da correspondente penalidade.
de 1989, por sua vez, optou pelo termo “proce- Esses meios devem ser utilizados, garan-
dimento”, embora utilize também “processo”, tindo-se a ampla defesa ao indiciado, pois
quando, no seu artigo 4º, dispôs que ‘ninguém pode ser condenado sem ser
“Nos procedimentos administrativos, ouvido’, sem que lhe seja proporcionada
qualquer que seja o objeto, observar- oportunidade de defesa”.
se-ão, entre outros requisitos de validade,
a igualdade entre os administrados e o 2.1. Estrutura
devido processo legal, especialmente
quanto à exigência da publicidade, do Quanto à sua estrutura, e no dizer autorizado
contraditório, da ampla defesa e do de Odete Medauar9, todo processo administra-
despacho ou decisão motivados”. tivo, dentre outras que não interessam ao
Como se verifica, conquanto não haja óbice presente exame, tem uma “fase introdutória ou
científico ao uso do termo “processo adminis- inicial, integrada por atos que desencadeiam o
trativo”, mais difundido está o uso do termo procedimento; o processo administrativo pode
“procedimento administrativo”, como gênero iniciar-se de ofício ou por iniciativa de interes-
do qual, em matéria disciplinar, há espécies sados (particulares, individualmente ou em
como o “processo administrativo” para apuração grupo, e servidores para pleitear direitos, por
das faltas disciplinares mais graves – no regime exemplo)”, mesmo porque o procedimento
jurídico dos militares, tem o nome de “Conselho administrativo está jurisdicionalizado. Vale
de Justificação” (para oficiais) e “Conselho de dizer que o
Disciplina” (para praças) – e Inquéritos Adminis- “procedimento administrativo disciplinar,
trativos, Sindicâncias, Averiguações, etc., para atualmente, está jurisdicionalizado, isto
as faltas disciplinares menos graves. é, o poder disciplinar deve exercer-se
Daí por que, sem maior preocupação de dentro de determinadas formalidades,
tecnicismo processual, usaremos os vocábulos como sejam, o contraditório, o direito de
“procedimento administrativo”, “procedimento defesa, a motivação da pena, a compe-
administrativo disciplinar” ou, simplesmente, tência do julgador, a proibição de casti-
“procedimento disciplinar”, lembrando, final- gar-se tendo por base documentos secre-
mente, que a Escola Paulista da Magistratura, tos, enfim tudo que possa ferir a garantia
órgão do Poder Judiciário do Estado de São Paulo, constitucional, no que toca à apenação
optou por “procedimento administrativo” no de qualquer indivíduo”10.
curso de iniciação funcional dos novos juízes A aplicação da pena disciplinar, já se disse
substitutos aprovados no 167º Concurso de anteriormente, sujeita-se a um procedimento
Ingresso à Magistratura do Estado de São Paulo. administrativo, qualificado de disciplinar,
Mas, de qualquer modo, é necessário, porque deve haver um encadeamento de
novamente, invocar Odete Medauar ao concluir operações ordenadas que objetivam a regular
sobre “A Processualidade no Direito Adminis- apuração da conduta do faltoso, como também,
trativo” que em sendo o caso, a sua apenação disciplinar.
“O processo administrativo representa
garantia de direitos ou direito instrumental 2.2. Jurisdicionalização
quanto ao indivíduo (...). Além do mais, Tal procedimento disciplinar envolve uma
associa-se à concepção de Estado demo- verdadeira jurisdicionalização, ou seja, deve
crático de direito e aos princípios ser exercido dentro de determinadas formali-
constitucionais da Administração, como dades, como, por exemplo, a observância do
corolário e veículo de sua expressão”7, 9
como também Edmir Netto de Araújo8, por sua MEDAUAR, op. cit., p. 142.
10
LAZZARINI, Alvaro. Estudos de Direito
7
Ibidem, p. 160. Administrativo. 1. ed. 2. tir. São Paulo : Revista dos
8
ARAÚJO, op. cit., p. 288. Tribunais, p. 404.
128 Revista de Informação Legislativa
direito de defesa, com vistas ao contraditório, tuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado
a motivação de pena disciplinar, como anterior- de São Paulo. Porém, mesmo assim, não podiam
mente focalizada, a proibição de castigar-se ser esquecidos os princípios da jurisdicionali-
tendo por base documentos secretos, enfim, zação, sob pena de, eventualmente, vir a ser
todas aquelas formalidades que possam fazer anulada a sanção disciplinar, como, por
prevalecer as garantias constitucionais refe- exemplo, quando houvesse preterição do direito
rentes à apenação de qualquer indivíduo. de defesa. Predomina hoje o entendimento,
entre os estudiosos do Poder Disciplinar, de
Essa jurisdicionalização deve estar presente estar vedado a aplicação de sanção disciplinar
em qualquer das modalidades de procedimentos pela “verdade sabida”, diante da norma
disciplinares, solenes ou sumários. constitucional do artigo 5º, inciso LV, da Cons-
São solenes o processo administrativo tituição da República, que assegura e exige que,
(também, conhecido por inquérito administra- nos processos administrativos, ao acusado em
tivo), a que se sujeita o funcionário civil toda geral sejam deferidos o contraditório e a ampla
vez que a pena demissória seja a prevista para defesa, com os meios e recursos a ela inerentes,
a sua falta, e o denominado conselho de disci- com o que se desnaturou, por completo, a
plina, previsto para as praças das corporações “verdade sabida”.
militares para apurar se o acusado, por seu
comportamento, está ou não moralmente inca-
pacitado para continuar a servir em suas 3. Do direito à ampla defesa
fileiras. Essa modalidade não admite a no procedimento administrativo
preterição de formalidades previstas na lei ou Como se verifica, o artigo 5º, inciso LV, da
regulamento que estabeleça o regime jurídico Constituição da República, pondo fim à antiga
disciplinar, sob pena de levar à irremediável discussão que existia ao tempo do artigo 153,
nulidade do ato sancionador final, salvo se não § 15, da revogada Constituição da República
houver influído na apuração da verdade subs- (1969), previu, expressamente, o “direito de
tancial ou, diretamente, na decisão do procedi- defesa” nos processos administrativos em geral.
mento, o que será sempre uma incógnita a ser
decidida, em última instância, pelo Poder Dessa forma, podemos dizer que esse direito
Judiciário. de defesa é o fulcro, o cerne de todo procedi-
mento disciplinar.
São sumários aqueles procedimentos disci-
plinares que independem de maior solenidade É a faculdade do acusado ter vista, ter
na apuração da conduta faltosa, como sejam as conhecimento da acusação, podendo rebatê-la,
produzindo prova pertinente. Realmente, tem
sindicâncias ou a aplicação da penalidade pela o servidor tido por faltoso, o direito público
denominada “verdade sabida”. A apuração subjetivo de, diante de uma acusação, apre-
sumária não tem forma nem figura de juízo, sentar, em querendo, defesa ampla, na qual
embora tudo recomende a observância, ainda que poderá valer-se dos meios de prova pertinentes,
mitigada, do iter legal previsto para o outro isto é, que sejam aptas a demonstrar aquilo que
procedimento, com o quê garantida estará a sua venha a alegar em prol dos seus direitos e
jurisdicionalização para o exato exercício do interesses.
“Poder Disciplinar”, tudo sem se esquecer da Como pondera Hely Lopes Meirelles, não
natureza sumária da apuração da conduta faltosa. basta o acusado ser ouvido em simples decla-
ração para dizer-se observado o direito de
2.3.1. VERDADE SABIDA defesa.
Essa declaração, via de regra, reduzida a
Merece maior apreciação a aplicação de sua termo, quase sempre inibe psicologicamente o
disciplinar pelo que se convencionou dizer de acusado, que se vê frente a frente com superiores
“verdade sabida”. Na realidade, tratava-se de hierárquicos, dentro de salas onde reina auste-
um procedimento mais que sumário, sumarís- ridade amedrontante, onde nem sempre aquilo
simo, pois a legislação autorizava que o faltoso que foi declarado fica registrado corretamente
fosse punido disciplinarmente, desde que a no termo que esteja sendo lavrado.
autoridade competente tivesse conhecimento Há o temor reverencial em grande parte das
pessoal e direto da falta de que deverá decorrer situações. O acusado declara o que não devia
a pena disciplinar, como, em outras palavras, declarar, confunde-se em respostas onde não
define o artigo 271, parágrafo único, do Esta- devia confundir-se; enfim, pode ser levado a
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 129
responder, pode ser conduzido, induzido a esfera criminal, podendo-se fazer correlação,
declarar ou a seu favor ou, então, a seu desfavor. de modo que o inquérito está para a sindicância
Daí por que mister se torna dar ao acusado assim como o processo administrativo está para
a oportunidade e liberdade de produzir defesa a ação penal”11.
escrita, com prazo razoável para arquitetá-la Rui Stoco, em outra passagem da sua citada
como entenda de seu interesse e direito. Só obra, na p. 27 advertiu que
então poderá ser dito que ao acusado foi dada a
possibilidade de ampla defesa. “A portaria está para o processo
administrativo como a denúncia está para
E note-se que, nem por isso, estará o detentor o processo criminal. Deve conter todos
do “Poder Disciplinar” inibido de apurar a os dados de qualificação do agente
verdade real. O superior hierárquico, com efeito, infrator, os fatos e suas circunstâncias e
tem todos os meios ao seu alcance – muito mais o fundamento legal. Arrolará as teste-
do que o acusado, bastando querê-lo – para bem munhas de acusação e, se houver, o nome
apurar a conduta faltosa. de quem denunciou o servidor, para que,
Basta pôr em funcionamento o instrumental também este, seja ouvido em audiência”.
administrativo que tem em mãos, e certamente O Egrégio Órgão Especial do Tribunal de
apurará a verdade real, aceitando ou não a Justiça de São Paulo, em 9 de outubro de 1991,
versão do acusado. Basta, portanto, que não se sendo relator o eminente Desembargador Ney
contente com a verdade formal, aprofun- Almada, em julgamento de Mandado de Segu-
dando-se, pois, na pesquisa do ocorrido. rança nº 13.213-0/2, de São Paulo, decidiu que
“A sindicância ou o processo disci-
3.1. Portaria inicial no procedimento plinar para a apuração de falta cometida
pelo servidor público deve iniciar-se
administrativo e a ampla defesa através de portaria de autoridade admi-
A portaria inicial é essencial ao regular nistrativa, pois trata-se de formalidade
exercício do Poder Disciplinar. Na sua falta, obrigatória cuja omissão importa nuli-
viciado fica o “procedimento administrativo dade dos atos praticados por afronta aos
disciplinar”, hoje jurisdicionalizado a teor do princípios do contraditório e da ampla
artigo 5º, inciso LV, da Constituição da Repú- defesa” (Revista dos Tribunais, São
blica. Paulo, v. 674, p. 97-101).
Sob pena de nulidade da sanção adminis- O venerando acórdão tem a sua ementa
trativa, exige-se uma formal portaria de iniciação transcrita por Rui Stoco, quando cuida da
do procedimento administrativo disciplinar. Portaria – Formalidade obrigatória para início
Isso evidencia, em sede de procedimento do procedimento (op. cit., p. 159).
administrativo, o mesmo que ocorre com a Dele consta, também, voto vencedor do
petição inicial do processo civil e com a eminente Desembargador Alves Braga que, em
denúncia do processo criminal, ou seja, a peça excelente e fundamentado estudo envolvendo
vestibular há de existir formalmente, sob pena servidor cartorário extrajudicial – o mandado
de segurança foi impetrado contra ato do
de não-atendimento da prerrogativa de toda e
Corregedor Geral da Justiça –, afirmou que
qualquer pessoa em saber do que, oficialmente,
está sendo acusada para defender-se e promover “A sindicância, ou o processo disci-
o contraditório, como previsto no art. 5º, inciso plinar, deve se iniciar com a portaria da
LV, da vigente Constituição de 1988 e art. 4º autoridade administrativa, não suprindo
da vigente Constituição Estadual de São Paulo sua falta a menção a representação escrita
de 1989. do terceiro que pede providências e
menos ainda o termo de declarações por
Tanto isso é verdade que a Escola Paulista ela prestadas. A ausência dessa peça
da Magistratura editou a obra Procedimento inicial, que dá existência legal à sindi-
Administrativo Disciplinar no Poder Judi- cância ou processo disciplinar, não é
ciário – Teoria e Prática, de autoria do expe-
riente jurista e magistrado Rui Stoco e na qual 11
STOCO, Rui. Procedimento administrativo
enfatizado ficou, por mais de uma vez, que disciplinar : teoria e prática. Coordenação de Yussef
“Exige-se que se instaure o procedimento Said Cahali. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1995.
principal através de portaria, como ocorre na p. 34. Coletânea Jurídica da Magistratura.
130 Revista de Informação Legislativa
mera irregularidade. Afronta o princípio itens à temática clássica”.
do devido processo legal e, conseqüen- Não basta, portanto, como exemplo, uma
temente, implica em nulidade dos atos representação em si. Diante dela, a autoridade
praticados. O princípio se insere nas competente, com atribuição do que se denomina
garantias constitucionais. de ação disciplinar, para a apuração, deve
Vale aqui a advertência deste E. expedir a regular portaria, dando início à ave-
Plenário – continuou o eminente Desem- riguação dos fatos, em regular procedimento
bargador Alves Braga naquele seu voto administrativo disciplinar.
vencedor – no MS 213.314, relatado pelo Lembremos, agora no plano da Lei de
Des. Acácio Rebouças. Transcrevo as Abuso de Autoridade (Lei nº 4.898, de 9 de
palavras de S. Exª.: ‘Deviam os juízes dezembro de 1965), que regula o Direito de
ter excepcional cuidado quando se aven- Representação e o Processo de Responsabili-
turam pelo Direito Administrativo, dade Administrativa, Civil e Penal, que o seu
porque facilmente se convertem em art. 7º deixa bem certo que
contestador das garantias constitucionais
e, se não for criticado e escandido, logo “Recebida a representação em que for
porá por terra todas as garantias demo- solicitada a aplicação de sanção admi-
cráticas’. Quando as garantias constitu- nistrativa, a autoridade civil ou militar
cionais entram em jogo – são discutidas competente determinará a instauração de
e minimizadas entre sorrisos céticos e inquérito para apurar o fato”.
novidades doutrinárias, – deviam os Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passos
juízes advertirem-se do perigo que repre- de Freitas, no clássico comentário a essa lei,
senta o administrativista improvisado e lembram que “O inquérito administrativo será
sua ardorosa preocupação de dar sempre iniciado por Portaria”13.
cobertura jurídica a todos os atos da Não seria, assim, um mero despacho de
Administração”. expediente: “Solicitem-se informações ao acu-
O moderno Direito Administrativo, com sado”, como já se viu diante da representação.
efeito, não mais se preocupa em “dar sempre Necessário era que ato formal determinasse
cobertura jurídica a todos os atos da Adminis- a instauração do devido procedimento admi-
tração”, salvo se o for por administrativista nistrativo disciplinar, ou seja, do devido
improvisado. processo administrativo legal, em face da
Na sua excelente obra, O direito adminis- representação.
trativo em evolução, Odete Medauar12 conclui Oferecidas as informações do acusado,
que o cumpria à autoridade competente decidir se
“Momento revela mudanças que vêm instaurava ou não o devido e legal procedimento
se realizando no Direito Administrativo administrativo disciplinar, delimitando em
no sentido de sua atualização e revitali- regular e formal portaria a acusação, como
zação, para que entre em sintonia com o ocorre, insisto, em qualquer procedimento
cenário atual da sociedade e do Estado. disciplinar envolvendo servidores públicos civis.
Algumas tendências podem ser extraídas: Aliás, e a título de argumentação, quanto
a) desvencilhamento de resquícios abso- aos servidores públicos militares estaduais, após
lutistas, sobretudo no aspecto da vontade inúmeras anulações de sanções disciplinares
da autoridade impondo-se imponente; b) por parte do Egrégio Tribunal de Justiça, a
absorção de valores e princípios do Administração Policial Militar de São Paulo
ordenamento consagrados na Consti- orientou-se no sentido de que, quando a conduta
tuição; c) assimilação da nova realidade faltosa não seja apontada em regular comuni-
do relacionamento Estado-sociedade; d) cação de superior hierárquico militar, há
abertura para o cenário sócio-político- necessidade de ato formal para a instauração
econômico em que se situa; e) abertura do devido procedimento administrativo disci-
para conexões científicas inter-discipli- plinar e isto após as informações escritas dos
nares; f) disposição de acrescentar novos acusados, tudo para compatibilizar os seus
12 13
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo FREITAS, Gilberto Passos de e Vladimir
em evolução. São Paulo : Revista dos Tribunais, Passos de. Abuso de autoridade. São Paulo : Revista
1992. p. 227. dos Tribunais, 1979. p. 78.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 131
regulamentos disciplinares – há o dos policiais disciplinar.
militares e o das policiais femininas – ao novo A ação disciplinar é faculdade de promover
ordenamento jurídico constitucional de 1988, a averiguação dos fatos, para eventual repressão
conforme orientação jurisprudencial do disciplinar. Quase sempre se exaure com o
Tribunal de Justiça de São Paulo, do Superior relatório do órgão, propondo, de modo não
Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal vinculativo, a aplicação ou não da sanção
Federal. disciplinar.
Os procedimentos, aliás, estão disciplinados O órgão que tenha o poder sancionador,
nas Instruções do Processo Administrativo da isto é, a competência para aplicar as sanções, é
Polícia Militar, ou seja, no I-16-PM da Corpo- que tem a atribuição de decidir a respeito. Aliás,
ração, aprovado por ato de 2 de dezembro de essa competência poderá pertencer a outro
1993 do Comandante-Geral, considerando-se superior de maior grau hierárquico.
pública a instauração de sindicância só “após O Excelso Pretório, no Recurso Extraordi-
publicação da portaria em boletim ou afixação, nário nº 70.566, de São Paulo, relatado pelo
por três dias consecutivos, no quadro principal saudoso Ministro Aliomar Baleeiro, examinando
de avisos da OPM” (Organização Policial exclusão disciplinar de aluno do Centro de
Militar), nos termos do seu art. 68, parágrafo 2º. Preparação de Oficiais da Reserva de São
Quanto ao processo disciplinar sumário, Paulo – CPOR/SP, por ato do Comandante da
igualmente, exige-se portaria (art. 139, pará- Segunda Região Militar, afirmou a tese de que
grafos 1º e 2º), sendo que esse ato administra- a autoridade militar superior pode impor pena
tivo para os Conselhos de Disciplina, destinado disciplinar, ainda que o regulamento mencione,
às praças, por força de norma legal, tem o nome para esse fim, a inferior (Revista Trimestral de
de Ofício de Convocação, enquanto que nos Jurisprudência, v. 71, p. 721).
Conselhos de Justificação, destinado aos Porém, o inverso não foi tido por legal, isto
oficiais, a acusação é do Comandante Geral e é, o Tribunal de Justiça de São Paulo, na
deve ser formalizada em representação contra Apelação Cível nº 204.678, de São Paulo, de
o oficial (art. 211, parágrafo 1º). que foi relator o Desembargador Souza Lima,
concluiu pela nulidade da exclusão de policial
3.2. Da competência no procedimento militar a bem da disciplina, pois o ato fora
administrativo e a ampla defesa praticado pelo chefe do Estado-Maior da
A competência para a prática do ato Corporação, autoridade incompetente, em nada
punitivo deve resultar da lei, sendo por ela importando que esse ato punitivo tenha sido
delimitada. Já se disse que competente para a de orientação do Comandante-Geral da Polícia
prática de um ato administrativo é quem a lei Militar, autoridade essa que, ao depois, teria
assim o indique e não aquele que se julgue ratificado o mesmo ato no Boletim Geral,
competente14. órgão que publica os atos oficiais da aludida
Corporação.
Lembre-se que competência, como requi-
sito de validade do ato administrativo, é o Em matéria de competência, atualmente há
somatório de poderes atribuídos ao agente o tema da vitaliciedade das Polícias Militares
público para o regular desempenho de suas e dos Corpos de Bombeiros Militares, prevista
funções específicas. Em matéria disciplinar, no artigo 125, § 4º, da Constituição da Repú-
será sempre do órgão, singular ou coletivo, blica e sobre a qual vitaliciedade, na esteira da
previsto em lei ou regulamento disciplinar. jurisprudência firme do Supremo Tribunal
Federal, discorremos longamente em diversa
O órgão poderá ter mera ação disciplinar, dissertação sobre o tema15.
como, por exemplo, as comissões sindicantes
ou processantes, os conselhos de disciplina, etc. 15
LAZZARINI, Alvaro. Vitaliciedade de servi-
Poderá, ainda, ter o verdadeiro poder sancio- dores militares estaduais. Revista de Direito Admi-
nador, isto é, o poder-dever de aplicar a sanção nistrativo, Rio de Janeiro, v. 205, p. 95-108; jul./
set. 1996. idem Revista de Doutrina e Jurispru-
14
TACITO, Caio. O abuso ao poder administra- dência do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá,
tivo no Brasil : conceito e remédios. Rio de Janeiro : n. 7, p. 13-40; jan./abr. 1996. BDA – Boletim de
Departamento Administrativo do Serviço Público : Direito Administrativo. São Paulo, n. 12, p. 742-
Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas, 744, dez. 1994. idem Tribuna da Magistratura, São
1959. p. 27. Paulo, p. 60-64. ago. 1996. Caderno de doutrina.
132 Revista de Informação Legislativa
3.2.1. INDELEGABILIDADE DA COMPETÊNCIA Poder Disciplinar ser argüido de suspeito? Pode
ele jurar suspeição?
Com certeza, não se delega competência
punitiva, isto é, poder sancionador, por simples Controvertidos são os entendimentos.
Contudo, não é demais lembrar que, juridica-
ato administrativo, salvo, é lógico, quando tal
mente, suspeição importa na imputação de certa
delegação esteja expressa na lei disciplinar. qualidade, de que geram desconfianças ou
Mesmo assim, essa exceção, que venha expres- suposições capazes de autorizarem justas
samente prevista, haverá de ser interpretada prevenções contra o suspeito17, que, no caso,
restritivamente, sem ampliações. seria o superior detentor do “Poder Disciplinar”.
O faltoso tem direito subjetivo público de De outro lado, não se pode desconhecer que
ser apenado só por aquela autoridade que a lei, o superior está amarrado ao princípio da lega-
expressamente, designe. A delegação só será lidade, que é básico para a Administração
viável se a lei o prever ou, então, para o Pública, vale dizer, que ele nada poderá fazer
exercício da ação disciplinar, na apuração dos ou deixar de fazer que não esteja, expressa ou
fatos. E isso é valido para os servidores civis e implicitamente, previsto em lei. Ao certo, não
militares. se é de presumir que o superior irá prevaricar.
Daí por que só se torna possível dizer de
3.2.2. DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA suspeição em matéria disciplinar quando
houver norma legal expressa. Aliás, julgado do
Ainda no que toca à competência, surge a Tribunal de Justiça de São Paulo proclamou,
questão do deslocamento seu. Em outras com acerto, ser impossível transpor a exceção
palavras, e exemplificando, o servidor pratica de suspeição prevista para o campo limitado
falta disciplinar na repartição “X”. Antes de da jurisdição civil, para a esfera do processo
ela ser descoberta, ele é movimentado para a administrativo, que de tal remédio não cogita
repartição “Y”, de linha hierárquica diversa, (Revista dos Tribunais, v. 389, p. 217).
de modo que, vindo à luz a sua conduta anterior,
resta saber qual autoridade tem competência 3.4. Afastamento preventivo no procedimento
disciplinar, isto é, a da repartição “X” ou a da administrativo e ampla defesa
“Y”. A questão é polêmica, com argumentos
bons de ambos os lados. No entanto, como Outro ponto que, no estudo do procedimento
afirma Marcelo Caetano16, quer teórica, quer disciplinar, merece destaque é o relativo ao
praticamente, a solução aconselhada nestes afastamento preventivo do funcionário acusado
casos será a da repartição de serviço, da qual de transgressão disciplinar. Essa medida
saiu o funcionário, remeter a documentação cautelar é possível e, via de regra, está expressa
pertinente ao ocorrido à repartição a que passou na legislação disciplinar, em várias linguagens.
o faltoso a ter exercício, a fim de que o seu O entendimento, mesmo quando exista uma
novo superior hierárquico possa decidir como linguagem imperativa determinando o afasta-
oportuno, conveniente e justo. Enfim, é esse mento do acusado, é o de que não há essa
novo superior que passou a deter todo o “Poder imperatividade, isto é, o afastamento preventivo
Disciplinar”; o anterior, desde o desligamento dar-se-á, se assim o entender oportuno e
do faltoso de sua repartição, não mais o detém. conveniente o detentor do “Poder Disciplinar”,
para resguardar os interesses na apuração dos
3.3. Suspeição no Procedimento fatos, sem que isso implique em cerceamento
administrativo e ampla defesa de defesa para o acusado.
É de indagar-se a respeito do direito de Mas, decretado o afastamento preventivo,
defesa quando a autoridade administrativa seja por suspeição ou prisão disciplinar, mister
competente incorrer em hipótese de suspeição se torna, desde logo, a sua limitação no tempo,
não prevista na lei disciplinar de regência, evitando-se, destarte, afastamentos demorados
embora prevista no ordenamento processual e, assim, arbitrários, que mais se confundem
civil ou penal. com uma pena demissória do faltoso.
Pode, em outras palavras, o detentor do Como medida cautelar que é, pode o afas-
16
tamento preventivo ser revogado a qualquer
CAETANO, Marcelo, Manual de Direito
17
Administrativo. 8. ed. Lisboa : Coimbra Ed. 1969. SILVA, De Plácito e. Vocabulário Jurídico. v.
v. 2, p. 767. 4, verbete: suspeição.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 133
tempo. Como visto, o seu objetivo é o de possi- obra Infrações e Sanções Administrativas18,
bilitar uma melhor investigação da conduta sustenta, ainda no plano da jurisdicionalização
faltosa, impossibilitando que este possa influir, do procedimento administrativo, que “A
por meios escusos, na apuração da verdade. Administração Pública perde o poder de
Assim, colhidas as provas necessárias, se o sancionar pela prescrição e pela decadência”.
entender possível, oportuno e conveniente, nada Mas, como o adverte Edmir Netto de
impede que se permita o retorno do funcionário, Araújo19 e vimos ocorrer,
que esteja afastado preventivamente, do serviço. “O problema mais relevante relativo
E, de qualquer modo, o tempo em que ele à prescrição ‘interna’, na esfera admi-
esteve afastado deverá ser computado, quando nistrativa, é o da fixação do dies a quo,
da eventual sanção final, como ocorre com a ou seja, do prazo em que começa a fluir
prisão preventiva, no âmbito do direito o lapso prescricional. Quando a falta é
criminal. também crime, prescreve juntamente
3.5. Da prescrição no procedimento com este, mas quando se trata de ilícito
administrativo, as leis administrativas
administrativo e a ampla defesa estabelecem o início do prazo a contar
Não aceitar prescrição da falta disciplinar da ciência do fato pela autoridade
prevista na lei disciplinar atenta contra o administrativa, com a abertura do
“direito de defesa”, que assim fica inevitavel- processo administrativo ou mesmo do
mente cerceado. inquérito policial, interrompendo a pres-
Nesse tema, duas são as correntes que crição, ao contrário da esfera penal,
disputam a questão principal de saber a partir quando o lapso prescricional se inicia na
de quando passa a fluir o prazo prescricional. data do fato, não se interrompendo com
o procedimento administrativo ou com
Uma estabelece que tal prazo começa a a instauração do inquérito policial. Além
partir da conduta faltosa, a exemplo da pres- de injusto – conclui o ilustre adminis-
crição em matéria criminal, na qual se leva em
conta a data do ilícito penal. Outra, a partir do trativista –, isto constitui aberração no
conhecimento, pela Administração Pública, da nosso sistema jurídico, conduzindo, na
falta disciplinar. prática, à imprescritibilidade de penas
disciplinares”.
Esta última é a que melhor atende aos
superiores interesses da Administração Pública 3.6. Dos recursos inerentes à ampla defesa no
e da própria coletividade administrada. É procedimento administrativo
defendida, entre outros, por Caio Tácito, em
parecer inserto na Revista de Direito Adminis- Apenado, o servidor tem direito de pedir
trativo (v. 45, p. 48). Está no sentido de que a ao órgão superior o reexame do ato punitivo,
prescrição da falta disciplinar começa correr a praticado pelo inferior, em tudo observado o
partir de sua ciência pela Administração. estabelecido na lei disciplinar (artigo 5º, inciso
A prescrição, como sabido, depende de LV, da Constituição da República).
um prazo, previsto em lei, como da inércia
do titular do direito nesse prazo. Porém, 3.6.1. RECURSO E RECONSIDERAÇÃO. DIFERENÇA
desde que, pelas circunstâncias, a violação
do dever funcional se acoberte no sigilo, sub- Note-se que a regra é não se confundirem
traindo-se ao conhecimento normal da recurso e pedido de reconsideração. Aquele é
Administração, não se configura a noção de pedido de reexame dirigido ao órgão superior
inércia no uso do Poder Disciplinar, que ao que praticou o ato punitivo; este é dirigido
caracteriza a prescrição. ao mesmo órgão que o praticou, com pretensão
de reexame do ato. Pedido de reconsideração
Aliás, no Estado de São Paulo, a Lei Com- não suspende nem interrompe o prazo para a
plementar nº 61, de 21 de agosto de 1972, manifestação de regular recurso, ao órgão
adotou esse entendimento, ao alterar o artigo
261 e seu parágrafo único, da Lei nº 10.261, superior competente.
de 28 de outubro de 1968, ou seja, do Estatuto 18
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e
dos Funcionários Públicos Civis do Estado de sanções administrativas. São Paulo : Revista dos
São Paulo. Tribunais, 1985. p. 111.
É Regis Fernandes de Oliveira que, em sua 19
ARAÚJO, op. cit., p. 290.
134 Revista de Informação Legislativa
3.6.2. EFEITOS DO RECURSO julgado. Mas, mesmo assim, deve ser eviden-
E DA RECONSIDERAÇÃO ciado que tal decisão tenha sido contrária ao
texto expresso em lei ou à evidência dos autos,
A regra é não terem os recursos e os pedidos quando ela se fundar em depoimento, exame
de reconsideração efeito suspensivo. Vale dizer, ou documento, comprovadamente falsos ou
o efeito será meramente devolutivo, não alte- errados e que, após a sua prolação, descobri-
rando, portanto, a plena eficácia, a plena rem-se novas provas da inocência do punido
execução do ato punitivo. Em outras palavras, ou de circunstâncias que autorizem pena mais
o recurso ou o pedido de reconsideração não branda.
suspendem a execução do ato punitivo, salvo Pedido de revisão que não se enquadre em
se, ao contrário, dispuser a lei disciplinar. qualquer uma dessas hipóteses é incabível e
Porém, providos que sejam, darão, então, autoriza o seu liminar indeferimento.
lugar às retificações necessárias, retroagindo
os seus efeitos à data do ato impugnado, desde No âmbito do Regime Jurídico Único dos
que outra providência não determine a autori- Servidores Públicos Civis da União (Lei nº
dade quanto aos efeitos relativos ao passado, 8.112, de 11 de dezembro de 1990), o pedido
tomadas à luz da legislação pertinente. revisional tem tratamento específico nos artigos
174 a 182, prevendo-se que o processo disci-
3.6.3. REFORMATIO IN PEJUS – IMPOSSIBILIDADE plinar poderá ser revisto, a qualquer tempo, a
Indagação que merece ser examinada é a pedido ou de ofício, quando aduzirem fatos
da possibilidade da reformatio in pejus. Muitos, novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar
inclusive doutrinadores de renome, admitem-na. a inocência do punido ou a inadequação da
penalidade aplicada; certo que, em caso de
Todavia, com a devida vênia, deve ser com- falecimento, ausência ou desaparecimento do
batida essa tendência, pois fere o senso de servidor, qualquer pessoa da família poderá
justiça. Com efeito, se o apenado recorreu ou requerer a revisão do processo e, no caso de
pediu reconsideração de ato, na verdade, é incapacidade mental do servidor, a revisão será
porque, pelo menos, quer ver abrandado o ato requerida pelo respectivo curador (artigo 174).
punitivo, mitigada a sua situação disciplinar.
Em absoluto, não mostra o seu inconformismo Em qualquer das hipóteses, será do reque-
para ver agravada a sua pena disciplinar. Não rente o ônus da prova (artigo 175).
é a agravação da penalidade disciplinar que o O pedido de revisão será, no âmbito federal,
legislador, inclusive o constituinte, há de ter dirigido ao Ministro de Estado ou autoridade
querido quando previu a existência de recursos equivalente, que, se autorizar a revisão, enca-
inerentes à ampla defesa. minha-lo-á ao dirigente do órgão ou entidade
onde se organizou o processo disciplinar para,
3.6.4. REVISÃO deferida a petição, providenciar a constituição
de comissão, como prevista na mesma lei
Enquanto recurso e pedido de reconside- (artigos 177 e 149).
ração sejam modalidades de demonstrar incon- Ultimados os trabalhos da Comissão, o
formismo contra ato punitivo não transitado em julgamento caberá à autoridade que aplicou a
julgado, ocorrendo este, isto é, o trânsito em penalidade (artigo 184) e, julgada procedente
julgado administrativo, surge a revisão da pena a revisão, será declarada sem efeito a penali-
disciplinar. dade aplicada, restabelecendo-se todos os
A revisão, em matéria disciplinar, é conhe- direitos do servidor, exceto em relação à desti-
cida na doutrina e contemplada, como regra, tuição de cargo em comissão, que será conver-
tida em exoneração, certo que, da revisão do
na generalidade das leis disciplinares. O Esta- processo, não poderá resultar agravamento de
tuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado penalidade (artigo 182).
de São Paulo a prevê nos artigos 312 e
seguintes. Enfim, como se verifica, embora a Consti-
A revisão poderá verificar-se em qualquer tuição da República, no artigo 5º, inciso LV,
tempo e não autoriza a agravação da pena, isto refira-se a recursos inerentes à ampla defesa,
não podemos descartar, também, as hipóteses
é, a condenada reformatio in pejus.
de reexame conhecidas por “pedido de recon-
Cabe revisão só dos processos findos, ou sideração” e “pedido de revisão” em matéria
seja, com decisão administrativa transitada em disciplinar.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 135
4. Conclusão prova pertinente, no contraditório instaurado.
4.3. Por “recurso inerente à ampla defesa”,
Podemos assim concluir este estudo, afir- devemos entender não só o recurso propriamente
mando que: dito, como pedido de reexame dirigido à auto-
4.1. Não há possibilidade de aplicação de ridade superior à que praticou o ato punitivo,
sanção disciplinar sem o devido processo legal como também as figuras do “pedido de recon-
administrativo. sideração” e do “pedido de revisão”, aquele
4.2. Deve o acusado em geral ter oportuni- como pedido de reexame dirigido à própria
dade à “ampla defesa”, que como cerne de todo autoridade administrativa que apenou o acusa-
procedimento administrativo, de natureza do, e este só admissível após o trânsito em
disciplinar, encerra o inafastável “direito de julgado da decisão administrativa punitiva para
defesa” de o acusado ter vista, ter conhecimento o reexame, a qualquer tempo, do processo
da acusação, para poder rebatê-la, produzindo disciplinar nas hipóteses em lei previstas.