''Ensaios Coligidos'', de José Ortega y Gasset
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Os Ensaios
Sobre o Estudar e o Estudante Apontamentos para uma educao para o futuro Para uma Psicologia do Homem Interessante Pedagogia da Contaminao
ii
Ensaio
Espero que durante este curso venham a entender perfeitamente a frase que, depois desta, vou pronunciar. A frase esta: vamos estudar Metafsica e isso que vamos fazer uma falsidade. Trata-se de uma a rmao primeira vista chocante, mas a perplexidade que produz no lhe retira a dose de verdade que possui. Note-se que, nesta frase, no se diz que a Metafsica seja uma falsidade: a falsidade atribuda, no Metafsica, mas ao fato de nos pormos a estud-la. No se trata pois da falsidade de um ou de muitos dos nosso pensamentos, mas da falsidade de um fazer nosso, da falsidade daquilo que agora vamos fazer: estudar uma disciplina. Na verdade, uma tal a rmao no vale apenas para a Metafsica, se bem que valha eminentemente para ela. O que essa a rmao quer signi car que todo o estudar , em geral, uma falsidade. No parece que uma frase e uma tese como esta sejam as mais oportunas para serem ditas por um professor aos seus alunos, sobretudo no incio de um curso. Dir-se- que equivalem a recomendar a ausncia, a fuga; que constituem um convite para que os alunos se vo embora, para que no voltem. Veremos daqui a pouco se isso acontece: se vos ides embora, se no regressais
Este texto, publicado autonomamente em La Nation de Buenos Aires em (ttulo em que gura nas Obras Completas de Ortega y Gasset, cf. adiante, Origem dos textos, p. ), constitui a primeira parte da primeira aula de um curso de Metafsica ministrado por Ortega y Gasset na Universidade de Madrid em - e cuja edio s postumamente foi publicada sob o ttulo Unas Lecciones de Meta sica (Madrid: Alianza Editorial, ). Em Apndice, apresentam-se as pginas que, a, lhe davam continuidade, cando assim integralmente traduzido o texto da primeira lio. (N.T.)
em conseqncia de eu ter comeado por enunciar uma tamanha enormidade pedaggica. Talvez acontea o contrrio, talvez que esta inaudita a rmao vos interesse. Entretanto, quer decidam ir-se embora, quer resolvam car, vou tentar aclarar o seu signi cado. Eu no disse que estudar fosse inteiramente uma falsidade. possvel que estudar contenha facetas, aspectos, ingredientes que no sejam falsos. No entanto, basta que alguma dessas facetas, aspectos, ou ingredientes constitutivos do estudar sejam falsos para que o meu enunciado seja verdadeiro. Ora, esta ltima considerao parece-me indiscutvel. Por uma simples razo. As disciplinas, seja a Metafsica ou a Geometria, existem, esto a, porque alguns homens as criaram merc de um grande esforo e, se se esforaram, porque necessitavam delas, porque sentiam a sua falta. As verdades que essas disciplinas contm foram originariamente encontradas por um determinado homem, e depois, repensadas e reencontradas por muitos outros que adicionaram o seu esforo ao dos primeiros. Se esses homens as encontraram foi porque as procuraram e, se as procuraram, foi porque necessitavam delas, porque, por uma qualquer razo, no podiam prescindir delas. Se no as tivessem encontrado, teriam considerado as suas vidas como fracassadas. Inversamente, se encontraram o que procuravam, porque isso que encontraram se adequava a uma necessidade que sentiam. Trata-se de algo rebuscado, mas que, no entanto, muito importante. Dizemos que encontramos uma verdade quando alcanamos um pensamento que satisfaz uma necessidade intelectual previamente sentida por ns. Se no sentimos falta desse pensamento, ele no ser para ns uma verdade. Dito de outro modo, verdade aquilo que aquieta uma inquietude da nossa inteligncia. Sem esta inquietude, no se d aquele aquietamento. De forma semelhante, dizemos que encontramos uma chave quando temos nas nossas mos um objeto que nos serve para abrir um armrio que necessitvamos abrir. A procura aquieta-se com o encontrar: este a funo daquela. Generalizando, diremos que uma verdade s existe propriamente para quem dela tem falta, que uma cincia no cincia seno para quem empenhadamente a procura; en m, que a Metafsica no Metafsica seno para quem dela necessita. Para quem dela no necessita, para quem no a procura, a Metafsica uma srie de palavras, ou, se se preferir, de idias; idias que, embora possamos julgar t-las entendido, carecem de nitivamente de sentido. Isto , para entender verdadeiramente algo, e sobretudo a Metafsica, no faz falta ter isso a que se chama talento nem possuir grandes sabedorias prvias. O que faz falta uma condio elementar mas fundamental: o que faz falta necessitar dela.
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H certamente diversas formas de necessidade, de falta. Se algum inexoravelmente me obriga a fazer alguma coisa, f-lo-ei necessariamente e, no entanto, a necessidade deste meu fazer no minha, no surgiu em mim, antes me foi imposta a partir de fora. Pelo contrrio, se, por exemplo, sinto necessidade de passear, ento esta necessidade minha, brota de mim o que no quer dizer que seja um capricho, uma fantasia. No! uma necessidade que, tendo embora o carter de uma imposio, no se origina minha revelia. -me imposta a partir de dentro do meu ser, razo pela qual a sinto efetivamente como necessidade minha. Porm, se, ao sair para passear, um polcia de trnsito me obriga a seguir numa determinada direo, sou confrontado com um outro tipo de necessidade, necessidade que j no minha mas que, pelo contrrio, me imposta do exterior e face qual, o mais que posso fazer, convencer-me por re exo das suas vantagens e, em conseqncia, aceit-la. Mas, aceitar uma necessidade, reconhec-la, no senti-la, perceb-la imediatamente como uma necessidade minha; antes uma necessidade que provm das coisas, que me vem delas, forasteira, estranha. Design-la-emos por necessidade mediata por oposio necessidade nascida de mim, que tem em mim as suas razes, indgena, autctone, autntica. H uma expresso de So Francisco de Assis na qual estas duas formas de necessidade aparecem sutilmente contrapostas. So Francisco costumava dizer: Eu necessito de pouco e, desse pouco, necessito muito pouco. Na primeira parte da frase, So Francisco alude s necessidade exteriores ou mediatas; na segunda, s necessidades ntima, autnticas e imediatas. Como todos os seres vivos, So Francisco necessitava de comer para viver. Mas, nele, esta necessidade exterior era muito fraca. Isto , materialmente falando, So Francisco necessitava de comer muito pouco para viver. Alm disso, fazia parte de sua atitude ntima no sentir grande necessidade de viver, ter pouco apego efetivo vida, razo pela qual sentia pouca necessidade ntima da necessidade externa de se alimentar. Mas, continuemos. Quando o homem se v obrigado a aceitar uma necessidade externa, mediata, ca colocado numa situao equvoca, bivalente, que equivale a ser convidado a fazer sua ou seja, aceitar uma necessidade que no sua. Quer queira quer no, tem de comportar-se como se fosse sua. assim convidado para uma co, para uma falsidade. E, mesmo que ponha toda a sua boa vontade em conseguir sentir como sua essa necessidade, no est garantido, nem sequer provvel, que o consiga. Feito este esclarecimento, procuremos determinar em que consiste essa situao normal do homem a que se chama estudar. Como usamos o vocbulo estudar no sentido do estudar prprio do estudante, tal equivale a pergun-
tarmo-nos o que o estudante. Encontramo-nos ento com uma a rmao to surpreendente como aquela frase escandalosa com que iniciei este curso. Damo-nos conta de que o estudante um ser humano, masculino ou feminino, a quem a vida impe a necessidade de estudar cincias sem delas ter sentido uma imediata e autntica necessidade. Se deixarmos de lado alguns casos excepcionais, reconheceremos que, na melhor das hipteses, o estudante sente uma necessidade sincera, embora vaga, de estudar algo, algo in genere, isto , de saber, de se instruir. Mas o carter vago deste desejo revelador da sua frgil autenticidade. evidente que este estado de esprito nunca conduziu criao de nenhum saber porque o saber sempre um saber concreto, um saber precisamente isto ou precisamente aquilo, e, de acordo com a lei que tenho vindo a sugerir a lei da funcionalidade entre o procurar e o encontrar, entre a necessidade e a satisfao aqueles que criaram um saber sentiram, no um vago desejo de saber, mas uma concretssima necessidade de averiguar uma determinada coisa. Daqui decorre que, na melhor das hipteses e, repito, salvas as devidas excees o desejo de saber que o bom estudante possa sentir completamente heterogneo, talvez mesmo antagnico, com o estado de esprito que levou criao do saber. A situao do estudante perante a cincia oposta do criador. Seno vejamos: a cincia no existe antes do seu criador. O criador no se encontrou primeiro diante da cincia tendo, posteriormente, sentido necessidade de a possuir. O que aconteceu foi que o criador comeou por sentir uma necessidade vital e no cient ca, procurou a sua satisfao e, ao encontr-la em determinadas idias, resultou que estas eram a cincia. Pelo contrrio, o estudante encontra-se desde logo com a cincia: j feita, semelhante a uma serrania que se levanta sua frente e lhe barra o seu caminho vital. Na melhor das hipteses, repito, o estudante gosta da serrania da cincia, atrado por ela, acha-a bonita, ela promete-lhe triunfos na vida. Mas, nada disto tem a ver com a necessidade autntica que est na origem da criao da cincia. A prova est em que esse desejo geral de saber incapaz, por si s, de se concretizar num saber determinado. Alm disso, repito, no propriamente o desejo que est na origem do saber mas a necessidade. O desejo no existe se, previamente, no existir a coisa desejada, seja na realidade, seja pelo menos na imaginao. Aquilo que no existe ainda, no pode provocar desejo. Os nossos desejos so desencadeados pelo contato com o que j est a. Em contrapartida, a necessidade autntica existe sem que aquilo que poderia satisfaz-la tenha que lhe preexistir, ao menos em imaginao. Necessita-se precisamente daquilo que no se tem, do que falta, do que no existe. E a necessidade, a falta, so-no tanto mais quanto menos se tenha, quanto menos
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exista aquilo que se necessita. No necessrio sair do nosso tema para esclarecermos este ponto: basta comparar o modo de aproximao cincia j feita de quem apenas a vai estudar com o de quem dela sente uma autntica e sincera necessidade. O primeiro, tender a no questionar o contedo da cincia, a no a criticar. Tender mesmo a reconfortar-se, pensando que o contedo da cincia j feita tem um valor de nitivo, a verdade pura. Procurar, isso sim, assimil-la tal como ela j est a. Por seu lado, aquele que sente falta de uma cincia, aquele que sente uma profunda necessidade de verdade, aproximar-se- de forma cautelosa do saber j feito, cheio de descon ana, submetendo-o critica; muito provavelmente, partindo mesmo do pressuposto de que aquilo que os livros ensinam no verdade. Em suma, precisamente porque sente com radical angstia a necessidade de um saber, pensar que esse saber no existe ainda e procurar desfazer o que lhe apresenta como j feito. So assim os homens que constantemente corrigem, renovam, recriam a cincia. Ora, no este o sentido normal do estudar do estudante. Se a cincia no estivesse j a, o bom estudante no sentiria qualquer necessidade dela, quer dizer, no seria estudante. Estudar para ele uma necessidade externa, que lhe imposta. Portanto, ao colocar o homem na situao de estudante, este obrigado a fazer algo de falso, a ngir uma necessidade que no sente. Vrias objees so aqui possveis. Dir-se-, por exemplo, que h estudantes que sentem profundamente a necessidade de resolver determinados problemas constitutivos desta ou daquela cincia. verdade que os h. Mas imprprio design-los por estudantes. Imprprio e injusti cado. Trata-se de casos excepcionais, criaturas que, mesmo que no existissem estudos ou cincias, invent-los-iam por si mesmos, sozinhos, melhor ou pior; criaturas que, por uma inexorvel vocao, dedicariam todo o seu esforo a investigar. Mas, e os outros? E a imensa maioria normal? So estes e no aqueles que realizam o verdadeiro sentido no utpico das palavras estudar e estudante. So estes que injusto no reconhecer como os verdadeiros estudantes. pois em relao a estes que se deve colocar o problema de saber o que estudar enquanto forma e tipo do fazer humano. um imperativo do nosso tempo cujas graves razes exporei um dia, neste curso sentirmo-nos obrigados a pensar as coisas no seu ser desnudado, efetivo e dramtico. essa a nica maneira de nos enfrentarmos verdadeiramente com elas. Seria encantador que, ser estudante, signi casse sentir uma vivssima urgncia por este ou por aquele saber. Mas, a verdade, estritamente o contrrio: ser estudante ver-se algum obrigado a interessar-se diretamente por aquilo que no o interessa ou que, em ltima anlise, o interessa apenas
de forma vaga, genrica ou indireta. A outra objeo que se pode colocar ao que acima foi dito consiste em recordar o fato indiscutvel de que os jovens tm uma curiosidade sincera e inclinaes peculiares. O estudante, dir-se-, no um estudante em geral; estuda cincia ou letras, o que supe j uma predeterminao do seu esprito, uma apetncia menos vaga e que no imposta a partir de fora. Creio que no sculo XIX se deu demasiada importncia curiosidade e s inclinaes, pretendo nelas fundar coisas demasiado graves, quer dizer, demasiado importantes para que possam ser sustentadas por entidades to pouco srias como a curiosidade e as inclinaes. A palavra curiosidade, como tantas outras, tem um duplo sentido: um, primrio e substancial; outro, pejorativo e por excesso. O mesmo se passa com a palavra amador, a qual tanto signi ca aquele que ama verdadeiramente alguma coisa, como aquele que apenas um amateur . O sentido prprio da palavra curiosidade vem da raiz latina (para a qual Heidegger chamou recentemente a ateno) cura, cuidado, a io, aquilo a que chama preocupao. De cura vem curiosidade. Assim se explica que, na linguagem vulgar, um homem curioso seja um homem cuidadoso, quer dizer, um homem que faz o que tem a fazer com ateno, rigor extremo e beleza, que no se despreocupa daquilo que o ocupa; que, pelo contrrio, se preocupa com a sua ocupao. No espanhol antigo, cuidar era preocupar-se, curare. Este sentido originrio de cura conserva-se ainda hoje nas palavras curador, procurador, procurar, curar e mesmo na palavra cura enquanto sacerdote, algum que tem por misso curar as almas. Curiosidade pois cuidadosidade, preocupao. Inversamente, incria signi ca descuido, despreocupao e a palavra segurana, securitas, signi ca ausncia de cuidados e de preocupaes. Se, por exemplo, procuro as chaves, porque me preocupo com elas e, se me preocupo com elas, porque necessito delas para fazer alguma coisa, para me ocupar. Quando esta preocupao se exerce mecanicamente, insinceramente, sem motivo su ciente, degenera em indiscrio. Estamos ento perante um vcio humano que consiste em ngir cuidado por aquilo que, em rigor, no nos d cuidado, uma falsa preocupao com coisas que, na verdade, no nos vo ocupar e, portanto, a incapacidade de uma autntica preocupao. isto que signi cam os vocbulos curiosidade e ser um curioso se usados de forma pejorativa. Da que, quando se diz que a curiosidade leva cincia, das duas uma: ou nos referimos quela sincera preocupao pela cincia, aquilo a que antes chaEm francs no original. (N.T.)
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mei necessidade imediata e autnoma a qual, como tambm reconhecemos, no pode ser sentida pelo estudante de quem quer meter o nariz em todas as coisas, o que no creio que possa servir para fazer de algum um homem de cincia. Estas objees so no entanto vs. Deixemo-nos de idealizaes acerca da rude realidade, de posies beatas que nos conduzem a diminuir, esfumar adoar os problemas, a limpar as suas mais agudas cruezas. O fato que o estudante-tipo um homem que no sente necessidade direta da cincia, que no est preocupado com ela e que, no entanto, se v forado a ocupar-se dela. Aqui se manifesta desde logo a falsidade geral do estudar. Em seguida, vem a necessidade de uma concretizao quase perversa pelo particular: o estudante obrigado, no a estudar em geral, mas sim a confrontar-se com uma situao em que, quer queira quer no, o estudar lhe aparece dissociado em cursos especiais, cada qual constitudo por disciplinas singulares, por esta ou aquela cincia. E quem poder pretender que um jovem, num certo momento da sua vida, possa sentir uma efetiva necessidade por uma cincia determinada inventada um belo dia pelos seus antecessores? Daquilo que, para os criadores da cincia, foi uma necessidade to autntica e viva que a ela dedicaram toda a sua vida, faz-se agora uma necessidade morta e um falso saber. No tenhamos iluses: com um tal estado de esprito, no se pode chegar a saber o saber humano. Estudar pois algo constitutivamente contraditrio e falso. O estudante uma falsi cao do homem. Ser homem ser propriamente s o que se autenticamente, por ntima e inexorvel necessidade. Ser homem no ser ou, o que o mesmo fazer qualquer coisa, mas ser o que irremediavelmente se . H muitos modos distintos e igualmente autnticos de ser homem. O homem pode ser homem de cincia, homem de negcios, homem poltico, homem religioso porque todas estas coisas so, como veremos, necessidades constitutivas e imediatas da condio humana. Mas, por si mesmo, o homem nunca seria estudante, da mesma maneira que, por si mesmo, o homem nunca seria contribuinte. Tem que pagar contribuies, tem que estudar, mas no , nem contribuinte, nem estudante. Ser estudante, tal como ser contribuinte, algo arti cial que o homem se v obrigado a ser. Estamos perante uma a rmao que, podendo de incio ser chocante, consubstancia a nal a tragdia constitutiva da pedagogia. porm deste paradoxo to cruel que, em minha opinio, deve partir a reforma da educao. Tendo em vista que a atividade, o fazer que a pedagogia regula e a que chamamos estudar, , em si mesmo, algo de humanamente falso, nunca ser demais sublinhar que, mais do que em qualquer outra ordem da vida, no
ensino que a a falsidade mais tolerada, constante e habitual. Todos sabemos que tambm h uma falsa justia, que se cometem abusos nos julgamentos e nas audincias. Mas, cada um dos que me escuta poder perceber pela sua prpria experincia que nos daramos por muito contentes se, na realidade do ensino, no existissem mais insu cincias, falsidades e abusos do que os que ocorrem na ordem jurdica. Na verdade, o que a se considera como abuso intolervel a saber, que no seja feita justia quase a ordem do dia no ensino: o estudante no estuda e, se estuda, pondo nisso toda a sua boa vontade, no aprende. Claro que, se o estudante no aprende, seja por que razo for, o professor no poder dizer que ensina. No mximo, poder dizer que tenta ensinar mas que no consegue. Entretanto, amontoa-se gigantescamente, gerao aps gerao, a mole pavorosa dos saberes humanos que o estudante tem que assimilar, tem que estudar. Quanto mais o saber aumenta, quanto mais se enriquece e especializa, mais longnqua ser a possibilidade de que o estudante sinta uma necessidade imediata e autntica desse saber. Quer isto dizer que cada vez haver menor congruncia entre esse triste fazer humano que estudar e o admirvel fazer humano que o verdadeiro saber. Trata-se de uma situao que ir aumentar ainda mais a terrvel dissociao, iniciada pelo menos h um sculo, entre a cultura viva, o saber autntico, e o homem mdio. Como a cultura, ou o saber, s tem realidade se responde e satisfaz, em qualquer medida, necessidades efetivamente sentidas e, como a forma de transmitir a cultura o estudar, o qual no implica que essas necessidades sejam sentidas, o que acontece que a cultura, ou o saber, vai cando a pairar no ar, sem razes de sinceridade no homem mdio, obrigado apenas a ingurgit-la, a engoli-la. Introduz-se na mente humana um corpo estranho, um repertrio de idias mortas, no assimilveis, ou, o que o mesmo, mortas. Esta cultura sem razes no homem, que no brota espontaneamente dele, no autctone ou indgena; antes algo de imposto, extrnseco, estranho, estrangeiro, ininteligvel, em suma, irreal. Sob a cultura recebida mas no autenticamente assimilada, o homem car intacto, quer dizer, car inculto: quer dizer, car brbaro. Quando o saber era menor, mais elementar e mais orgnico, era mais fcil poder ser verdadeiramente sentido pelo homem mdio que ento o assimilava, o recriava e revitalizava dentro de si. Assim se explica o paradoxo colossal destes ltimos decnios: o fato de um gigantesco progresso da cultura ter produzido um tipo de homem como o atual, indiscutivelmente mais brbaro que o de h cem anos. Assim se explica tambm que a aculturao ou acumulao da cultura esteja a produzir, de forma paradoxal mas automtica, uma rebarbarizao da humanidade. No entanto, como todos compreendero, no se resolve este problema di-
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zendo: Pois bem, se estudar uma falsidade do homem e, alm disso, leva, ou pode levar, a tais conseqncias, ento que no se estude!. Dizer isto no seria resolver o problema, mas antes ignor-lo de forma simplista. Estudar e ser estudante sempre, e sobretudo hoje, uma necessidade inexorvel do homem. Quer queira quer no, o homem tem que assimilar o saber acumulado, sob pena de sucumbir individual e coletivamente. Se uma gerao deixasse de estudar, nove dcimos da humanidade atual morreria fulminantemente. O nmero de homens que hoje esto vivos s pode subsistir merc da tcnica superior de aproveitamento do planeta que as cincias tornaram possvel. certo que as tcnicas vivem do saber e, se este no puder ser ensinado, chegar a hora em que tambm as tcnicas sucumbiro. H pois que estudar! Estudar , repito, uma necessidade do homem, ainda que uma necessidade externa, mediata, como o para mim seguir pela direita se a isso sou obrigado pelo polcia de trnsito quando sinto necessidade de passear. H porm uma diferena essencial entre estas duas necessidades externas o estudar e o seguir pela direita e essa diferena que transforma o estudar num problema substancial. Para que a circulao funcione perfeitamente, no preciso que eu sinta uma necessidade ntima de seguir pela direita. Basta que, de fato, siga por essa direo, basta que aceite, que nja sentir essa necessidade. Com o estudar, porm, no acontece o mesmo: para que eu entenda verdadeiramente uma cincia no basta que nja existir em mim a necessidade dela, ou, o que a mesma coisa, no basta que tenha vontade de a aceitar; numa palavra, no basta que estude. Para alm disso, necessrio que eu sinta autenticamente necessidade dessa cincia, que as suas questes me preocupem espontnea e verdadeiramente. S assim entenderei as solues que ela d, ou pretende dar, a essas questes. Ningum pode entender uma resposta sem previamente ter sentido a pergunta a que ela responde. O estudar pois diferente do caminhar pela direita. Neste caso, su ciente que eu desempenhe bem a minha obrigao para que o efeito desejado se veri que. Naquele, no. No basta que eu seja um bom estudante para que consiga assimilar a cincia. O estudar , portanto, um fazer humano que se nega a si mesmo, que simultaneamente verdade a necessidade e a inutilidade que o estudar um problema. Um problema sempre uma contradio que a inteligncia encontra sua frente, que a atrai para duas direes opostas e que ameaa lev-la a perder-se. A soluo para um problema to cruel e dilacerante decorre de tudo o que se disse atrs. Ela no consiste em decretar que no se estude, mas em reformar profundamente esse fazer humano que estudar e, conseqentemente, o ser
do estudante. Para isso, necessrio virar o ensino do avesso e dizer: ensinar primria e fundamentalmente ensinar a necessidade de uma cincia e no ensinar uma cincia cuja necessidade seja impossvel fazer sentir ao estudante.
A
Mas, talvez que alguns de vs estejam neste momento a perguntar: que tem tudo isto a ver com um curso sobre Metafsica? Como disse logo de incio, espero que durante este curso venham a entender, no s que o que atrs se disse tem a ver com a Metafsica, como tambm que j estamos nela. Para j, vou dar uma justi cao mais clara do fato de assim ter comeado, antecipando para tal uma primeira de nio de Metafsica, to modesta que ningum se atreva a p-la em dvida. Digamos que a Metafsica alguma coisa que o homem faz, ou, pelo menos, que alguns homens fazem. Veremos, daqui a pouco, que todos a fazem ainda que disso se no dem conta. Mas, esta de nio no su ciente porque o homem faz muitas coisas e no apenas Metafsica. Mais ainda, o homem faz agricultura, faz poltica, faz indstria, faz versos, faz cincia, faz pacincia, e mesmo quando parece que nada faz, espera, e esperar a vossa experincia o con rmar por vezes um terrvel e angustioso fazer: fazer tempo. E aquele que nem sequer espera, aquele que no faz verdadeiramente nada, o faitnant , esse, faz o nada, quer dizer, sustm e suporta o nada de si mesmo, o terrvel vazio vital a que chamamos aborrecimento, spleen , desespero. Quem no espera, desespera. Trata-se ento de um fazer horrvel, que implica um duro esforo, um dos esforos que o homem menos consegue aguentar e que o pode levar a fazer o nada efetivo e absoluto aniquilar-se, suicidar-se. Entre tantos e to variados fazeres humanos, como reconhecer ento o fazer peculiar da Metafsica? Para isso, terei que antecipar uma segunda de nio, mais determinada: o homem faz Metafsica quando busca uma orientao radical para a sua situao. Mas, qual a situao do homem? O homem encontra-se, no em uma, mas em muitas situaes distintas. Por exemplo, cada um de vs, neste momento, encontra-se numa situao que, por acaso, consiste em estar a comear a estudar Metafsica, tal como, h duas horas atrs, se encontrava noutra situao e, amanh, se encontrar numa outra. Ora bem, todas essas situaes, por diferentes que sejam, coincidem em ser parcelas da vossa vida. Quero eu
Cf. atrs, nota . Em francs no original (N.T.) Em ingls no original (N.T.)
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dizer com isto que a vida do homem se compe de situaes, assim como a matria se compe de tomos. Sempre que se vive, vive-se numa determinada situao. Mas, evidente que nessas situaes vitais, por muito distintas que sejam, haver um estrutura elementar, fundamental, que faz com todas elas sejam situaes do homem. Essa estrutura genrica ser aquilo que elas tm essencialmente de vida humana. Dito de outro modo, quaisquer que sejam os ingredientes variveis que formam a situao em que me encontro, evidente que essa situao um viver. Podemos pois concluir: a situao do homem a vida, viver. Dizemos que a Metafsica consiste na procura pelo homem de uma orientao radical para sua situao. Mas, isto supe que a situao do homem isto , a sua vida consiste numa radical desorientao. No que o homem, na sua vida, se encontre desorientado de forma parcial, neste ou naquele aspecto, nos seus negcios, no seu caminhar pela paisagem, na poltica. Aquele que se desorienta no meio de um campo, procura um mapa, uma bssola, ou pergunta a um transeunte, e isto basta para se orientar. A nossa de nio pressupe, pelo contrrio, uma desorientao total, radical, quer dizer, no que acontea ao homem desorientar-se, perder-se na sua vida, mas que a situao do homem, a vida, desorientao, estar perdido e, por isso existe a Metafsica.
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que a Junta chama a diversidade histrica do nosso tempo. Isto leva-a, no a recti car, mas sim a suspender o seu raciocnio anterior, convencida de que impossvel clari car esta questo, as suas causas e consequncias para a educao, antes de prosseguir a trajetria que comeou a traar. Por tudo isto, prope-nos que nos ocupemos dela. Se nos recordarmos agora qual foi o ponto de partida, descobrimos que chegamos a uma situao pedaggica e que teoricamente pareceria uma contradio, pois comeamos por dizer que o problema primrio no progresso da educao era o esclarecimento da loso a da educao, mas constatamos que, antes desse problema primrio, existe outro ao qual no chegamos pela via da razo, mas que nos chegou sob a forma de facto bruto: a diversidade los ca do nosso tempo. Era um erro chamar quele, problema primrio, para quem quer trabalhar no progresso da educao? Creio que no; estava bem denominado assim, porque em boa ordem terica, era o primeiro. No entanto, antes de toda a teoria, o homem depara-se sempre com um problema realmente anterior a todos os demais, problema a que chamaremos prvio. Com efeito, o homem encontra-se sempre com um problema prvio que o seu tempo, o tempo em que vive, cujas caractersticas so sempre diferentes das de todos os outros tempos. O carcter histrico da realidade humana faz do homem, um servo inexorvel do senhor (no original gleba) que o nosso tempo. H momentos em que esse problema prvio apenas apercebido, um mero pormenor, mas h outros em que o nosso tempo se interpe angustiosamente entre ns e tudo o que queremos fazer ou ser. Encontramo-nos hoje numa etapa desta ltima classe e, por isso, a Junta, ao querer comear a andar, teve que tropear com o nosso tempo no aspecto do que chama diversidade los ca do presente. Somos convidados a estudar essa diversidade los ca, cada um segundo a perspectiva que lhe parea mais importante. O que acabo de dizer indica qual a perspectiva que vou considerar nas conversas destes dias e que pode formular-se do seguinte modo: muitas vezes na nossa Histria, houve diversidade los ca mas, apesar de ter sido sempre um estorvo educao, nunca ameaou constituir-se como uma di culdade to grave como agora acontece. No presente, a diversidade los ca mostra pois sinais de uma gravidade inslita, talvez nica. Graves sinais que se originam na inslita situao global em que o homem se encontra hoje a qual s se pode clari car se se tiverem em conta todos os traos particulares do nosso tempo. Com isto, surge antecipado o meu juzo sobre a nova Instituio que a Junta projeta. Esta dever ser, na minha opinio, completamente distinta de todas as que existem, pois no parece haver necessidade de criar um outro or-
ganismo que continue a cultivar as disciplinas tradicionais, mas tem um problema enorme, urgente e angustioso que espera ser estudado a fundo, por uma equipa de pessoas capacitadas. o problema do nosso tempo. Como se poder realizar isto concretamente, algo que se tentar sugerir nas prximas sesses. A organizao de uma Instituio intelectual, se esta autntica, justi cada e original, vem dada pela peculiaridade do prprio problema que se lhe destina.
II
Comeo por supor que a Junta entende por loso a, segundo o uso que a palavra tem na lngua comum da Amrica, toda a ideia ou interpretao geral do mundo e do homem. Neste sentido, uma religio uma loso a, apesar de existirem loso as que no so religies, mas sim corpos doutrinais que so, ou pretendem ser, cient cos. Diversidade los ca signi caria que, numa colectividade, sociedade, povo, nao ou como se lhe queira chamar, existe uma pluralidade de tais interpretaes do mundo e do homem. Neste sentido, a diversidade los ca existiu quase sempre, pois em todas as partes, ao longo da histria costumavam haver alguns indivduos que pensavam sobre o homem e o mundo de forma distinta dos demais. Mas entendida assim, a diversidade los ca, no interessa ao nosso propsito. S comea a interessar-nos quando cada uma dessas loso as foi adotada e apoiada por uma poro signi cativa do grupo social. Ento, a diversidade los ca representa um indicador do estado de dissociao; de insu ciente coeso no grupo social. Isto j mais grave que uma simples divergncia nas maneiras de pensar. Vista assim, no seu contexto histrico, a diversidade histrica, apresentase com duas dimenses: uma, a extenso de cada uma das loso as dentro do grupo social; outra, o grau de divergncia e, portanto, de incompatibilidade entre elas. Estas duas magnitudes permitem-nos equacionar a importncia que, em cada momento da histria, teve a diversidade los ca. Na Europa, at Reforma, essas duas magnitudes, a saber: a incompatibilidade e a extenso das diversas loso as, no tiveram verdadeira importncia. O caso mais agudo, apesar de breve no tempo e reduzido territorialmente, foi a heresia albigense. Mas a Reforma dividiu em duas faces vrias naes da Europa e isto, no que dizia respeito a duas loso as que tinham base comum o Cristianismo. No obstante, a ciso dos grupos sociais foi to profunda que originou a poca denominada guerras de religio. O cansao da luta trouxe consigo que, pela
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primeira vez, surgisse na Europa o princpio da tolerncia; ao qual o lsofo Locke deu expresso terica. No entanto, a tolerncia, por sua vez, tornou possvel que se expandisse por todo o Ocidente uma nova loso a, que no era religiosa: o racionalismo do sculo XVIII. Esta loso a transportava em si uma necessidade que at ento no tinha tomado parte na histria: a necessidade de reformar. Sempre se tinham feito reformas num determinado ponto da legislao e, por vezes, a reforma tinha sido de grandes propores, mas nunca se tinha sido reformista. Isto , nunca se tinha reformado por princpio e com vontade formal de reformar. Mais, as maiores reformas no tinham sido premeditadas, apesar de terem melhores resultados. A maior mudana na histria antiga a transformao da Repblica romana em Imprio romano no foi realizada segundo uma ideia preconcebida. A verdade que ningum, nem mesmo Csar e menos ainda Augusto, quis antecipadamente a estranha forma de Estado que foi o Imprio romano. Isto a tal ponto verdade que quando hoje, retrospectivamente e com todos os factos vista, tentamos de ni-lo como instituio jurdica, no nos possvel. Foi um feito gigantesco que no foi nunca um direito. O racionalismo do sculo XVIII propunha-se reformar radicalmente o Estado. Este propsito era em si mesmo revolucionrio, pois equivalia a romper na ordem poltica toda a continuidade com o passado. Tal desejo tinha que resultar, por fora, no terrvel acontecimento que foi a Revoluo francesa e nos outros, menores em aparncia trgica, mas com o mesmo sentido, que se produziram em todas as naes do continente europeu. Este racionalismo reformista era menos compatvel com as religies tradicionais que estas entre si. Por isso, a Revoluo deixou mais profundamente fraccionado o corpo social, em cada nao, que as guerras de religio. Esta diviso perpetuou-se at aos dias de hoje. De qualquer forma, por muito divergente que tivesse sido o racionalismo reformista das loso as religiosas, antes reinantes, a incompatibilidade no era extrema. Sob as suas profundas diferenas jazia, todavia, um subsolo de crenas comuns ao qual, em luta, se podia recorrer. Destas crenas comuns podem resumir-se trs. Primeira, todos acreditavam na cultura, nas cincias, letras, artes e tcnica; ainda que com algumas reservas, as religies mantinhamse solidrias com isto a que acabo de chamar cultura. A segunda consistia na aceitao das normas morais que, nos sculos precedentes, se haviam estabelecido. A terceira crena era a ideia de ptria. Esta base comum, depois da turbulncia revolucionria, permaneceu destacada e como que em primeiro plano, compensando a diviso efetiva que vinha existindo em cada povo. As-
sim foram possveis as etapas de calma interior que as naes gozaram durante o sculo XIX. O panorama at aqui traado, no tem outra inteno que no seja tornar possvel, por contraste, caracterizar em pouqussimas palavras a diversidade los ca atual.
III
Que traos saltam mais vista quando se querem hoje buscar as bases para uma loso a da educao? O racionalismo reformista era radical na execuo do seu programa, mas o programa das suas ideias, pode dizer-se, a sua loso a, no era radical pois, como foi dito, conservava uma base que era comum com as outras loso as. A dissociao do corpo colectivo realizou-se profundamente; por assim dizer, os dois segmentos da nao permaneciam separados at ao solo, mas continuavam unidos no subsolo: na f, na cultura, na adeso a uma moral comum, na delidade ptria. Comecemos pelo sculo XX, a expanso do socialismo inicia uma situao nova. O socialismo e re ro-me loso a socialista no reconhece os valores da cultura. No aceita a cincia, a no ser na forma em que se pe ao servio da classe proletria e adota uma atitude anloga frente s letras e s artes. Tambm no se inclina perante a ideia de ptria. Pelo contrrio, pede aos trabalhadores que se dissociem totalmente do resto da sua nao e se unam aos trabalhadores dos outros pases. Com a agudizao do socialismo, na forma do comunismo, d-se o ltimo passo no fraccionamento. O comunismo ataca inteiramente a moral estabelecida, substituindo-a por outra que lhe contrria. Por exemplo, o lho tem a obrigao de denunciar o seu pai. Com isto, desapareceu por completo aquele subsolo comum sobre o qual as naes do Ocidente e re ro-me especialmente ao continente podiam viver com um resduo de unidade interior. Agora, a incompatibilidade das loso as tornou-se extrema. Podemos agora perceber o primeiro trao caracterstico da diversidade los ca no nosso tempo, a saber: o extremismo. Porque, inevitavelmente, o extremismo comunista motivou que as outras loso as se tornassem extremistas. A negao extrema da ideia de ptria suscitou as loso as nacionalistas, no menos extremistas e, inclusivamente, as religies tradicionais comeam a adotar atitudes extremistas, onde quer que o poder pblico lhes seja favorvel. No , contudo, o extremismo a que acabo de referir-me o aspecto que me parece mais grave, apesar de ser muito [grave], na atual diversidade los ca.
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H outro lado deste ingente fenmeno que nos deve preocupar mais. At ao comeo deste sculo, o sistema de valores e de normas a que chamamos cultura ocidental, havia atuado como um travo que impedia as atitudes extremas. A cultura representava um reportrio de instncias ltimas, a que era possvel recorrer com a con ana de que impunha a sua autoridade sobre as almas. Por exemplo: o homem ocidental tinha f na razo e fazia desta, uma instncia suprema qual devia submeter as contendas e as discrepncias. Mas o predomnio que adquiriram, em amplas propores, os extremismos do mundo ocidental, demonstra que o travo da cultura se debilitou. Isto no poderia ter acontecido se a cultura ocidental, ela mesma, no se encontrasse num estado anormal. Por isso, parece-me difcil estudar adequadamente a atual diversidade los ca se no se contempla esse estado anormal da nossa cultura, porque em todas as suas dimenses surgem fenmenos inquietadores desde h trinta ou quarenta anos. Basta recordar o que hoje a pintura, a msica ou a literatura. No est em causa a apreciao pessoal meream, o carcter inquestionavelmente estranho que ostentam, carcter onde se manifesta uma vontade de ruptura com a continuidade cultural, no s do Ocidente, mas talvez de toda a cultura conhecida. A questo grave porque a arte, merc de ser um elemento muito tnue, costuma ser a produo humana que mais rapidamente acusa as tendncias profundas que germinam na humanidade, como o fumo das chamins anuncia a mudana dos ventos. O que menos se pode dizer que a arte do nosso tempo o problema e que nela se manifesta tambm a condio de extremista; como se a arte houvesse chegado ao seu extremo. O mesmo acontece com a tcnica. O seu prodigioso avano deu lugar a inventos nos quais o homem, pela primeira vez, cai aterrado com a sua prpria criao. Em nada como aqui, aparece clara a situao atual do homem: como se tivesse chegado fronteira de si mesmo. A tcnica que foi criando e cultivando para resolver os problemas sobretudo materiais da sua vida, converteu-se, ela mesma, prontamente, num angustioso problema para o homem. Por m, se dirigirmos o nosso olhar para as fundaes mais ntimas das cincias fundamentais Fsica, Matemtica e Lgica que so como barras de ouro que garantiam o crdito da nossa cultura, descobriremos sintomas em algo parecidos aos mais visveis e grosseiros que acabo de recordar. Neste caso e ele mais uma prova do carcter exemplar destas cincias esses sintomas de falta de amadurecimento no procedem de uma decadncia das disciplinas citadas ou de que sejam cultivadas defeituosamente, antes pelo contrrio. Foi o glorioso progresso que aquelas cincias produziram nos ltimos tempos que
produziu o fenmeno que se comea a chamar a crise dos princpios na Fsica, Matemtica e Lgica. Da maneira mais sublinhada, quis acolher o que neste caso se manifesta com perfeita claridade, a saber, que a situao difcil a que uma atividade humana chega, no signi ca, forosamente, defeito ou degenerao, mas que pode ter-se originado no prprio progresso dessa atividade. Pela minha parte, generalizo esta advertncia, extendendo-a a tudo o que disse antes. O inventrio de caracteres problemticos, que z, aludindo a fenmenos sobejamente conhecidos por todos, no implica pois uma viso pessimista do nosso tempo, mas leva, isso sim, inteno de fazer notar o seguinte. A di culdade extrema, na atual diversidade los ca, em elaborar uma slida loso a da educao que oriente um importante progresso da educao no parece poder ser tratada de forma frtil e rme, se no se zer antes um estudo profundo da situao humana, no nosso tempo. De tal modo esta nova e problemtica, que no pode ser interpretada e entendida, olhando-a desde o passado, com os conceitos j estabelecidos e mais ou menos tradicionais, mas exige ser considerada como um ingente problema de novo estilo. E o que surpreende existirem tantos homens que tm clara conscincia do problema do nosso tempo que se sentem, na sua vida prtica, desorientados e, com frequncia, gravemente angustiados, e no se ter tentado nunca estudar energicamente e em ampla colaborao o que , no entanto, e porque assim o nosso tempo. No creio que haja questo mais importante nem mais digna para ocupar a ateno de um organismo dedicado a tentar resolver o progresso da educao.
IV
O Comit da Junta manifesta a sua convico de que seria necessrio criar uma nova instituio, com a nalidade de estudar a fundo todas as questes que necessrio esclarecer, se se quer constituir uma slida loso a da educao. Tanto no relatrio do Comit, como noutras comunicaes aparece, em muitas das formulaes empregues, uma conscincia muito viva de que nos encontramos numa situao de ideias que impede a prossecuo, por si s, da elaborao de uma loso a da educao. Mas, por outro lado, o Comit parece dirigir o seu projeto na gura da Royal Society e isto, no meu juzo, modi ca por completo o sentido daquelas formulaes. A criao da Royal Society no encontrou ante si uma situao confusa de ideias e atitudes mas, muito pelo contrrio, uma f precisa e clara na convenincia de fomentar o cultivo de certas disciplinas cient cas que, durante o sculo anterior se tinham iniciado, e
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que, com efeito, viriam a ser, numa magn ca expanso, o tesouro mais caracterstico da cultura ocidental na poca moderna. Nem a Universidade, tal e como era ento, nem fora da Universidade existiam organismos encarregados da investigao no sentido das novas cincias. Motivo semelhante levou instaurao do Collge de France. Este propunha estudar as novas disciplinas humanistas, frente Sorbonne que perpetuava as tradies intelectuais da Idade Mdia. Nesta ordem de ideias chegaramos a que a Instituio projetada fosse apenas mais um entre outros organismos, hoje existentes, que se ocupam das cincias, j tradicionais para ns, e das suas crescentes especializaes. Sem dvida, adicionar s j existentes uma outra Instituio deste tipo, uma obra estimvel, mas no parece que a sua criao e funcionamento modi cassem, em medida aprecivel, a con gurao do nosso estado cultural. Reconheamos pois a evidncia bastante patente que vivemos numa conjuntura cultural, aproximadamente inversa que inspirou aquelas ilustres instituies. No hoje urgente criar um novo organismo para estimular, suportar e dar estado investigao cient ca, pois h muitos que servem esta funo. sim urgente, por outro lado, como diz o relatrio, um esclarecimento das ideias e conceitos bsicos da cultura ocidental. Este tema, devidamente especi cado, sim, uma matria de grande magnitude histrica que no foi nunca estudada cooperativamente e cuja clari cao, seria uma das profundas consequncias para o futuro prximo. Ter tido a conscincia e a vontade de empreender a tarefa, bastaria para enaltecer o esprito na Junta. No entanto, preciso no confundir esse magn co tema com o que habitualmente consiste no progresso das cincias. Este progresso bem sustentado e o que, por outro lado, se mostra cada dia mais necessrio e urgente, um progresso na claridade sobre a situao presente do homem ocidental. Devamos surpreender-nos mais que no se tenha feito qualquer tentativa para reunir uns quantos homens de mentalidade adequada, para trabalharem colectiva e continuadamente sobre esta questo. Como se explica a falta de tal vontade? Talvez proceda de vrias causas, mas h uma que me interessa designar. Nas cincias e nos homens que se interessam em foment-las, existe uma tendncia a no reconhecer como problemas que podem e devem ser cienti camente estudados seno aqueles que surgem dentro do progresso interior de cada cincia. Um problema humano que sentimos atuar gravemente sobre as nossas vidas, mas que no se apresenta com um per l que permita atribu-lo a uma cincia determinada, ca fora de todo o tratamento intelectual rigoroso. Mas o caso que as cincias modernas e algo semelhante caberia dizer
das iniciadas na Grcia nasceram da resoluo que alguns homens tomaram de re etir sobre problemas que no gozavam de prvia consagrao terica, mas que eram problemas da prtica humana. Recorde-se Galileu, jovem, ocupando-se das gruas, cabrestantes e roldanas do porto. Ali surgiu a Fsica. A Biologia, que at muito tarde no sculo XVIII consistia quase exclusivamente em Anatomia e Taxonomia, ps-se em movimento para ser uma cincia completa, graas ao esforo dos mdicos no os tericos de Zoologia ou Botnica para curarem os seus doentes, decidirem avanar hipteses e investigaes, das quais nasceu a Fisiologia e, com ela, o enorme desenvolvimento das disciplinas que estudam os corpos orgnicos. Adiro completamente ao relatrio do Comit quando diz que o esclarecimento do pensamento educativo depende de um esclarecimento to amplo e profundo como a esfera de todas as ideias fundamentais. No entanto, este empreendimento to extenso que ameaa com o perigo de que a nova Instituio se perca no seu vasto horizonte. , pois, preciso proceder passo a passo e representar o trabalho que naquela se h de fazer, dividido em etapas sucessivas. Por isso penso que o mtodo prtico para chegar a uma loso a da educao, no comear por obter esse esclarecimento los co, cujo per l de questes difcil precisar de antemo. O primeiro, no meu juzo, alcanar uma viso clara da gura concreta que tem hoje a vida do homem ocidental. No convm perder de vista a inteno original que a educao. Trata-se de constituir um sistema educativo para as prximas geraes. No inelutvel sentir-se na posse de uma ideia clara sobre qual vai ser, nas suas linhas gerais, a estrutura da vida dentro da qual vo formar-se essas geraes? Se acreditarmos que no presente predominam os traos tradicionais do que foi a existncia para o homem ocidental, talvez pudssemos no nos preocuparmos em fazer prognsticos para o futuro prximo. Mas a realidade que o prprio presente nos problemtico. Isto obriga a estud-lo o mais profundamente possvel, porque o futuro fermenta no presente, de tal forma que, se se faz um srio diagnstico da hora em que vivemos, h grandes probabilidades de que possamos formar um prognstico acertado. No bastam as instituies fragmentrias deste ou daquele pensador individual, nem nos cabe contentarmo-nos com a sionomia super cial do nosso tempo que os factos vista oferecem. H que proceder com rigor e amplitude ao seu estudo. Por no se seguir este mtodo, se fez quase constitutivo da pedagogia moderna um tenaz anacronismo (que, caso tenha ocasio, referirei nas nossas conversas) razo pela qual, ultimamente, as ideias educativas esto quase sem-
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pre atrasadas em respeito s formas de vida imperantes. Esquece-se que a educao consiste em preparar no presente, vidas futuras. Pensando assim, representaria desta maneira a nova Instituio: ) Comear-se-ia por reunir um grupo de umas quantas pessoas de superior capacidade, cuja primeira ocupao seria chegar, aproximadamente, a um acordo sobre quais so as caractersticas do nosso tempo, mais inquietantes e problemticos. ) Uma vez conseguido isso, o grupo inicial, juntamente com o Comit da Junta, encarregaria equipas de homens adequados de estudar, a fundo, cada uma dessas caractersticas.
Ensaio
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simplesmente a diferenas de con gurao da interioridade, e apontam para a construo de uma anatomia psicolgica. Compreende-se que a alma de uma criana tenha forosamente uma estrutura distinta da alma de um ancio, e que um ambicioso possua uma gura anmica diferente de um sonhador. Este estudo, realizado de forma sistemtica, levar-nos-ia a uma urgente caracterologia de novo estilo, que nos permitiria descrever com insuspeita delicadeza as variedades da intimidade humana. Entre elas estaria o homem interessante, tal como o entende a mulher. com grande receio que entro a fundo na sua anlise, j que nos embrenhamos numa selva de problemas. O que de primeiro e mais bvio se pode dizer do homem interessante isto: o homem interessante o homem por quem as mulheres se apaixonam. Mas j isto nos perde, lanando-nos para o meio dos maiores perigos. Camos em plena selva de amor. E a questo que no h em toda a topogra a humana paisagem menos explorada que a dos amores. Pode dizer-se que est tudo por dizer; melhor, que est tudo por pensar. H um repertrio de ideais incipientes instalado na cabea das pessoas que as impede de ver os fatos com razovel clareza. Est tudo confundido e tergiversado. Existem inmeras razes para que assim seja. Em primeiro lugar, os amores so, por essncia, parte da nossa vida secreta. Um amor no se pode contar: ao comunic-lo perde os seus contornos ou volatiliza-se. Cada qual tem de se ater sua experincia pessoal, quase sempre pobre, e no fcil tirar algum proveito da experincia dos outros. E, no entanto, que teria sido da fsica se cada fsico dispusesse apenas das suas observaes pessoais? Em segundo lugar, acontece que os homens mais capazes de pensar sobre o amor so os que menos o viveram, e os que o viveram so normalmente incapazes de pensar sobre ele, de analisar com sutileza a sua plumagem iridescente e sempre equvoca. Por ltimo, um ensaio sobre o amor tarefa extremamente ingrata. Se um mdico fala sobre a digesto, as pessoas escutam com modstia e curiosidade. Mas se um psiclogo fala do amor, todos o ouvem com indiferena, ou melhor, no o ouvem, no se do sequer ao trabalho de saber o que tem a dizer, porque todos se creem doutores na matria. Em poucas coisas to manifesta a estupidez habitual das pessoas. Como se o amor no fosse, em ltima anlise, um tema terico da mesma espcie que os demais e, portanto, hermtico para quem no o aborde com instrumentos intelectuais apropriados! Passa-se o mesmo com Don Juan. Toda a gente acha que sabe tudo sobre Don Juan, o problema mais obscuro, abstruso e delicado do nosso tempo. que, com poucas excees, os homens podem dividir-se em trs classes: os que se creem Don Juan, os que acreditam t-lo sido e os que acreditam que
poderiam ter sido, mas no quiseram. Estes ltimos so os que propendem, com benemrita inteno, a atacar Don Juan e at a decretar a sua destituio. Existem, pois, razes de sobra para que as questes que toda a gente tem a presuno de entender amor e poltica sejam aquelas em que houve menor evoluo. S para no terem de ouvir as trivialidades que as pessoas ignorantes se apressam a proferir assim que se aborda alguma delas, preferiram calar-se os que melhor teriam falado. Convm, pois, fazer constar que nem os Don Juan nem os apaixonados sabem grande coisa sobre Don Juan nem sobre o amor. Provavelmente, s falar com rigor destas matrias que viva distante delas, mas atento e curioso, como faz o astrnomo com o Sol. Conhece as coisas no s-las; nem s-las, conhec-las. Para ver uma coisa necessrio que nos afastemos dela, e a distncia converte-a de realidade vivida em objeto de conhecimento. Qualquer outra viso levar-nos-ia a pensar que o zologo, para estudar as avestruzes se teria de transformar em avestruz, que aquilo em que se torna Don Juan quando fala de si prprio. Pela minha parte, posso dizer que no consegui chegar a concluses satisfatrias sobre estes grandes temas, apesar de ter pensado muito sobre eles. Felizmente, no h porque falar agora de Don Juan. Talvez fosse necessrio dizer que Don Juan sempre um homem interessante, ao contrrio daquilo que nos querem fazer crer os seus inimigos. Mas evidente que nem todo homem interessante um Don Juan, o que basta para que eliminemos destas notas o seu perigoso per l. Quanto ao amor, ser menos fcil evitar a sua intromisso no nosso tema. Ver-me-ei, pois, forado a formular com aparente dogmatismo, sem discusso nem prova, alguns dos meus pensamentos sobre o amor, que diferem sobremaneira das idias vigentes. O leitor dever tom-las apenas como clari cao imprescindvel daquilo que eu tenho a dizer sobre o homem interessante e no insistir muito, por agora, em dizer se so ou no razoveis.
II
E, tal como antes sugeri, a primeira coisa que dele poderemos dizer que o homem por quem as mulheres se apaixonam. Mas poder-se- contrapor ento que todos os homens normais conseguem o amor de uma mulher, e, consequentemente, todos sero interessantes. Ao que eu teria de responder peremptoriamente estas duas coisas. A primeira: que pelo homem interessante no se apaixona uma mulher, mas muitas. Quantas? As estatsticas no importam, porque o que decisivo este segundo aspecto: pelo homem no
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interessante no se apaixona nenhuma mulher. O tudo e o nada, o muitas e o nenhuma devem entender-se como exageros de simpli cao que no optam pela exatido. A exatido em qualquer problema da vida seria o mais inexato, e os juzos quantitativos servem para exprimir situaes tpicas, normas, tendncias. A crena de que o amor operao comum e banal um dos grandes obstculos compreenso dos fenmenos erticos e resulta de um enorme equvoco. Com a mesma palavra amor designamos os fatos psicolgicos mais diversos e, assim, os nossos conceitos e generalizaes nunca tm correspondncia com a realidade. O que certo para o amor num sentido da palavra no o para outro, e a nossa observao, talvez certeira num determinado crculo do erotismo, torna-se falsa quando estendida a outros. A origem do equvoco no duvidosa. Os atos sociais e privados em que se manifestam as mais diferentes atraes entre homem e mulher formam, nas suas grandes linhas, um repertrio limitado. O homem que aprecia o corpo de uma mulher, aquele que, por vaidade, se interessa pela sua pessoa, o que chega a perder a cabea vtima do efeito mecnico que uma mulher pode produzir com uma ttica certeira de atrao e desdm, o que simplesmente se liga a uma mulher por ternura, lealdade, simpatia, afeio, aquele que cai num estado passional, e, nalmente, aquele que ama com verdadeira paixo, comportamse de forma pouco mais ou menos idntica. Quem de longe observa os seus atos no se xa nesse pouco mais ou menos e, atendendo apenas ao padro manifesto da conduta, julga que esta no diferente e, portanto, to pouco o sentimento que a inspira. Mas bastaria observ-las de perto com uma lupa para veri car que as aes se parecem apenas nas suas grandes linhas, e que h entre elas enormes variaes. um erro muito grande interpretar um amor pelos seus atos e palavras: geralmente, nem uns nem outras re etem o amor, mas constituem um repertrio de grandes gestos, rituais e frmulas criados pela sociedade, que o sentimento tem sua disposio e se v obrigado a usar, como se de um equipamento se tratasse. S o pequeno gesto original, o tom e o sentido mais profundo da conduta nos permitem diferenciar os vrios tipos de amores. Referir-me-ei aqui apenas ao pleno amor do enamoramento, que radicalmente distinto do ardor sensual, do amour-vanit [amor-ftil], do envolvimento maquinal, da afeio, da paixo. H toda uma fauna amorosa que seria sugestiva liar no seu contexto multiforme. O amor do enamoramento que , na minha opinio, o prottipo e expoente mximo de todos os erotismos caracteriza-se por conter, ao mesmo tempo, estes dois ingredientes: o sentimento de encanto por outro ser que
provoca em ns uma iluso completa e o sentimento de se estar absorvido por ele at a raiz da nossa pessoa, como se nos houvesse arrancado do nosso prprio fundo vital e tivssemos transplantado nele as nossas razes vitais. O mesmo ser dizer que o apaixonado se sente completamente entregue queles que ama; e por isso no importa que a entregue corporal ou espiritual se tenha cumprido ou no. Mais ainda, possvel que a vontade do apaixonado consiga impedir a sua prpria entrega a quem ama em virtude de consideraes re exivas decoro social, moral, di culdades de qualquer outra ordem. O essencial que se sinta entregue ao outro, seja qual for a deciso da sua vontade. E no h nisto contradio, porque a entrega fundamental na se efetua ao nvel da vontade mas a um nvel muito mais profundo e radical. No um querer entregar-se: um entregar-se sem querer. E seja onde for que a vontade nos leve, vamos irremediavelmente entregues ao ser amado, mesmo quando nos leva ao outro lado do mundo para nos afastar dele . Este caso extremo de dissociao, de antagonismo entre a vontade e o amor, serve para sublinhar a peculiaridade deste ltimo, e deve ser tido em conta como uma compilao possvel, embora, certamente, pouco provvel. muito difcil que uma alma autenticamente apaixonada sinta necessidade de se defender do seu apaixonado. A tal ponto que, na prtica, ver que na pessoa amada a vontade funciona, que re ete, que encontra motivos muito respeitveis para no amar ou amar menos, costuma ser o sintoma mais inequvoco de que, com efeito, no ama. Aquela alma sente-se vagamente atrada pela outra, mas no foi arrancada de si mesma; isto , no ama. , pois, essencial no amor de que falamos a combinao dos dois elementos acima referidos: o encantamento e a entrega. A sua combinao no acidental, nem mera coexistncia, um nasce e alimenta-se do outro. a entrega por encantamento. A me entrega-se ao lho, o amigo ao amigo, mas no por iluso ou encanto; a me f-lo por instinto radical quase alheio sua espiritualidade. O amigo entrega-se por clara deciso de sua vontade; leal, uma virtude, por natureza, re exiva. Dir-se-ia que o amigo se entrega por iniciativa prpria No amor, a alma escapa-se-nos da mo e absorvida pela outra. Esto suco que a personalidade alheia exerce sobre a nossa vida mantm-na em estado de levitao, desarreiga-a e transplanta-a para o ser amado, onde as razes primitivas parecem voltar a prender, como mas outro, como em nova terra. Graas a isto o apaixonado vive, no de si mesmo, mas do outro, como a criana, antes de
No meu ensaio Vitalidade, alma, esprito, discute-se o fundamento psicolgico desta diferena entre alma e vontade. (El Espectador, V.)
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nascer, vive corporalmente da me, em cujas entranhas est plantada e imersa. Esta absoro do amante pelo amado no seno o efeito do encantamento. H outro ser que nos encanta, e esse encanto sentimo-lo intimamente sob forma de tiro contnuo e suavemente elstico. A palavra encanto, to trivializada, , no obstante, a que melhor exprime a espcie de atrao que o amado exerce sobre aquele que ama. Deveramos, pois, reabilit-la ressuscitando o sentido mgico que teve na sua origem. Na atrao sexual no h propriamente atrao. Um corpo atraente excita um apetite, um desejo de si. Mas o desejo no nos incita a ir ao encontro do desejado, , pelo contrrio, a nossa alma que atrai o desejado at si. Por isso se diz muito certeiramente que o objeto desperta um desejo, signi cando que no desejar ele no intervm, que o seu papel terminou ao estimular o desejo, deixando o resto por nossa conta. O fenmeno psicolgico do desejo e o do encantamento produzem reaes contrrios. No primeiro, tendo a absorver o objeto, no segundo, sou eu o absorvido. Da que no apetite na haja entrega do meu ser, mas, pelo contrrio, captura do objeto . Tambm no h entrega verdadeira na paixo. Nos ltimos tempos concedeu-se a esta forma inferior de amor um mrito e um favor decididamente indevidos. H quem pense que se ama mais e melhor na medida em que se esteja perto do suicdio ou do assassinato, de Werther ou de Otelo, e insinue que qualquer outra forma de amor ctcia e cerebral. Eu creio, pelo contrrio, que urge devolver ao vocbulo paixo o seu antigo sentido pejorativo. Dar um tiro em si mesmo ou matar no garantem de forma alguma a qualidade ou a quantidade de um sentimento. A paixo um estado patolgico que implica a deformao de uma alma. A pessoa que cede facilmente ao mecanismo da obsesso, ou de estrutura muito simples e grosseira, convertir em paixo, isto , em mania, todo o germe de sentimento que nela caia . Desmontemos o adereo romntico com que ornamentamos a paixo. Deixemos de avaliar
Este velho termo apetite inclui um erro de descrio psicolgica que , no entanto, muito comum. Confunde o fenmeno psquico que pretende denominar com as suas consequncias frequentes. porque desejo alguma coisa que procuro mover-me na sua direo, o meu objetivo captur-la. Este movimento na direo de petere o meio que o desejo encontra para se satisfazer, mas no o prprio desejo. Em contrapartida, o fato ltimo, a apreenso do objeto, o atrair a mim, incluir em mim o objeto, a manifestao original do desejo. O hbito de confundir o amor com as suas consequncias obscureceu tambm a sua descrio. O sentimento amoroso, o mais fecundo da vida psquica, suscita inmeros atos que o acompanham, como ao patrcio romano os seus clientes. Assim, de todo amor nascem desejos pelo amado; mas esses desejos no so o amor, elo, contrrio, pressupem-no porque nascem dele. Aquele que mata ou se mata por amor f-lo-ia igualmente por qualquer outra razo: uma disputa, a perda de uma fortuna, etc.
a paixo do homem pelo seu grau de estupidi cao ou pela prontido que revela em fazer disparates. Longe disso, seria bom estabelecer como princpio geral da psicologia do amor este aforismo: Sendo o amor o ato mais delicado e total de uma alma, re etir a sua condio e natureza. As caractersticas da pessoa que ama no devem ser atribudas ao amor. Se esta pouco perspicaz, como poder ser arguto o seu amor? Se pouco profunda, como poder ser profundo o seu amor? Segundo se , assim se ama. Por esta razo, temos no amor o sintoma mais decisivo daquilo que uma pessoa . Todos os outros atos e aparncias podem enganar-nos sobre a sua verdadeira natureza: os seus amores revelar-nos-o o segredo do seu ser, to cuidadosamente recatado. E, sobretudo, a escolha do amado. Em nada como na nossa preferncia ertica se declara o nosso carter mais ntimo. Com frequncia ouvimos dizer que as mulheres inteligentes se apaixonam por homens tontos, e, vice-versa, por mulheres nscias os homens perspicazes. Eu confesso que, embora tendo-o ouvido dizer muitas vezes, nunca acreditei, e sempre que me foi dado aproximar-me e usar a lupa psicolgica, veri quei que aqueles homens e aquelas mulheres no eram, na verdade, inteligentes, ou no eram tontos os escolhidos. A paixo no , pois, o culminar do sentimento amoroso, mas, pelo contrrio, a sua degenerao em almas inferiores. Nela no h ou, pelo menos, no tem de haver nem encanto nem entrega. Os psiquiatras sabem que o obsessivo luta contra a sua obsesso, que no a aceita, e, no entanto, ela domina-o. O mesmo pode acontecer com uma grande paixo sem contedo aprecivel de amor. Isto mostra ao leitor que a minha interpretao do fenmeno amoroso se ope falta mitologia que faz da paixo uma fora elementar e primitiva que gerada no seio obscuro da animalidade humana e se apodera brutalmente da pessoa, sem deixar interveno aos nveis superiores e mais delicados da alma. Ignorando agora a possvel conexo entre o amor e certos instintos csmicos latentes no nosso ser, creio que o amor exatamente o contrrio de uma fora elementar. Eu diria quase embora ciente da margem de erro que nisto possa haver que o amor, mais que uma fora elementar, parece um gnero literrio. Frmula que naturalmente indignar mais do que um leitor, antes naturalmente de ter meditado sobre ela. E claro est que seria excessiva e inaceitvel se pretendesse ser de nitiva, mas eu no pretendo com ela seno sugerir que o amor, mais do que um instinto, uma criao, nada primitiva no homem. O selvagem no o suspeita, o chins e o indiano no a conhecem, o grego do tempo de Pricles apenas a pressente . Digam-me se
Plato tem perfeita conscincia deste sentimento e descreve-o magni camente, mas nunca
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estas duas caractersticas: ser uma criao espiritual e surgir apenas em determinadas etapas e formas da cultura humana, cariam mal na de nio de um gnero literrio. Podemos separar claramente o amor das suas outras pseudomorfoses, como o ardor sensual ou a paixo. Assim como daquilo a que chamei afeio. Na afeio que costuma ser no melhor dos casos, a forma do amor matrimonial duas pessoas sentem mtua simpatia, delidade, adeso, mas no h encantamento nem entrega. Cada qual vive absorvido em si mesmo, sem enlevo, e partir de si mesmo envia ao outro e vios suaves de estima, benevolncia, corroborao. O que foi dito basta para dar algum sentido para j, no pretendo outra coisa a esta a rmao: se se pretende ver com clareza o fenmeno do amor, preciso, antes de mais, que nos libertemos da ideia vulgar que v nele um sentimento universal, que todos ou quase todos so capazes de sentir e se produz permanentemente nossa volta, qualquer que seja a sociedade, raa, povo ou poca em que vivamos. As distines que as pginas precedentes esboam, reduzem consideravelmente a frequncia do amor, afastando da sua esfera muitas coisas que erroneamente se incluem nela. Um passo mais e poderemos dizer sem excessiva extravagncia que o amor um fato pouco frequente e um sentimento que s certas almas podem chegar a sentir; em rigor, um talento espec co que alguns seres possuem, e que se d geralmente unido a outros talentos, mas que pode ocorrer independentemente deles. Sim; apaixonar-se um talento maravilhoso que algumas criaturas possuem, como o dom de fazer versos, como o esprito de sacrifcio, como a inspirao meldica, como a valentia pessoal, como saber mandar. Nem toda a gente se apaixona e aqueles que tm essa capacidade no se apaixonam por qualquer um. O divino acontecimento ocorre apenas quando se renem certas e rigorosas condies no sujeito e no objeto. Muito poucos podem ser amantes e muito poucos amados. O amor tem a sua ratio, a sua lei, a sua essncia unitria, sempre idntica, que no exclui do seu exergo as abundncias da casustica e a mais frtil variabilidade .
lhe ocorreria que se pudesse confundir com aquilo que um grego do seu tempo sentia por uma mulher. O amor em Plato o amor do enamoramento e talvez a sua primeira apario na histria. Mas o amor do homem maduro e cultivado pelo jovem belo e discreto. Plato v, sem hesitar, neste amor um privilgio da cultura grega, uma inveno espiritual, mais ainda, uma instituio central da nova vida humana. A ns repugna-nos gravemente e com razes de sobra esta forma drica do amor, mas a verdade pura obriga-nos a reconhecer nele uma das razes histricas desta admirvel inveno ocidental do amor pela mulher. Se o leitor pensar um pouco compreender que as coisas so mais complexas e sutis do que se cr habitualmente, e achar menos extravagante esta comparao do amor a um gnero literrio. Existe hoje no mundo um grupo de homens, ao qual me orgulho de pertencer, que se ope
III
Basta enumerar algumas das condies e pressupostos do enamoramento para que se torne altamente verossmil a sua extraordinria infrequncia. Sem pretender com isto ser conclusivo, poderia dizer que essas condies so de trs ordens, como so trs as grandes componentes do amor: condies de percepo para ver a pessoa que vai ser amada, condies de emoo com que respondemos sentimentalmente a essa viso do amvel e condies de constituio do nosso ser, a natureza da alma na sua totalidade. Embora a percepo e a emoo possam funcionar corretamente, o amor no poder arrastar, invadir ou moldar o nosso carter se a constituio da nossa alma for pouco slida e exvel, dispersa ou sem recursos vigorosos. Insinuemos breves sugestes sobre cada uma destas ordens. Para que nos encantamentos preciso antes de mais que sejamos capazes de ver outras pessoas, e para isso no basta abrir os olhos . preciso uma curiosidade prvia, de um tipo peculiar, muito mais ampla, integral e radical do que a mera curiosidade sobre as coisas (como a cient ca, a tcnica, a turstica, a curiosidade de ver o mundo, etc.), ou sobre os atos particulares das pessoas (por exemplo, a bisbilhotice). preciso ter uma curiosidade vital sobre a humanidade, e por esta na sua forma mais concreto: a pessoa como totalidade viva, como mdulo individual de existncia. Sem esta curiosidade, passaro por ns as criaturas mais sublimes e no daremos por elas. A lmpada sempre acesa das virgens evanglicas o smbolo desta virtude que constitui uma espcie de limiar do amor. Mas note-se que tal curiosidade supe, por sua vez, muitas outras coisas. um luxo vital que s organismos com um alto nvel de vitalidade podem possuir. Um indivduo fraco incapaz dessa ateno desinteressada e prvia ao que possa acontecer fora dele. Teme o inesperado que a vida possa trazer envolta nas pregas do seu fecundo manto, e torna-se hermtico a tudo o que
tradio empirista, segundo a qual tudo acontece por acaso e sem qualquer forma unitria, variando de poca para poca e de lugar para lugar, sem que importe descobrir outra lei das coisas para alm do mais ou menos da induo estatstica. Em oposio a to vasta anarquia retomamos a tradio mais antiga e profunda da loso a perene que busca em tudo a essncia, o modo nico. Claro est que seria muito mais simples e cmodo pensar que o amor tem formas in nitas, que difere de caso para caso, etc. Eu espero estar sempre acima do rebaixamento intelectual que suscita esse modo de pensar e tanto lisonjeia as mentes inertes. A misso ltima do intelecto ser sempre a de perseguir a essncia, isto , o modo nico de ser de cada realidade. Sobre este grande enigma da forma como vemos as outras pessoas, remeto o leitor para dois ensaios meus: La percepcin del prjimo e Sobre la expresin, fenmeno csmico, El Espectador, VII.
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no se relacione de forma imediata com o seu interesse subjetivo. Este paradoxo do interesse desinteressado penetra no amor em todas as suas ordens e funes, como o o vermelho includo em todos os cabos da Marinha Real inglesa. Simmel seguindo Nietzsche disse que a essncia da vida consiste precisamente em desejar mais vida. Viver viver sempre mais, desejo de aumentar as nossas prprias pulsaes. Quando no assim, a vida est doente e, pela sua prpria medida, no vida. A aptido que possamos ter para nos interessarmos por uma coisa pelo que ela em si mesma e no pelo proveito que nos possa trazer o magn co dom de generosidade que oresce apenas nos picos de maior altitude vital. Que um corpo seja fraco do ponto de vista mdico no lhe confere, sem mais, uma de cincia de vitalidade, tal como, em sentido inverso, um fsico hercleo no garantia de energia orgnica (o que ocorre muito frequentemente entre os atletas). Quase todos os homens e mulheres vivem submersos na esfera dos seus interesses subjetivos, alguns, sem dvida, belos ou respeitveis, e so incapazes de sentir o desejo de emigrar para aquilo que existe fora de si mesmos. Felizes ou maltratados pela paisagem que os rodeia, vivem, em de nitivo, satisfeitos com a linha do seu horizonte e no sentem sequer a falta das vagas possibilidades que s a custo entreveem. Semelhante tessitura incompatvel com a curiosidade radical, que , em ltima anlise, um incansvel instinto de emigrao, um desejo selvagem de ir de si mesmo ao outro . Por isso to difcil que o petit bourgeois e a petite bourgeoise se apaixonem de forma autntica; para eles a vida precisamente um insistir sobre aquilo que conhecido e habitual, uma satisfao inabalvel dentro do repertrio consuetudinrio. Esta curiosidade, que simultaneamente uma nsia de vida, s pode dar-se em almas permeveis onde circule o ar livre o ar csmico carregado de poeira de estrelas remotas, no con nado por nenhum muro de limitao. Mas isso no basta para que vejamos essa delicada e complexssima entidade que uma pessoa. A curiosidade predispe o olhar, mas a viso tem de ser perspicaz. E tal perspiccia j o primeiro talento e dote extraordinrio que atua,
Em cada sociedade, raa e poca, a possibilidade frequente de amor falha por de cincia de uma ou outra condio. Na Espanha no preciso ir mais longe para explicar a razo da raridade com que se d o fato ertico, porque falta logo o primeiro pressuposto. So muito poucos os espanhis, sobretudo as espanholas, dotadas de curiosidade, e difcil encontrar algum que sinta o desejo de assomar vida para ver o que esta tem para lhe oferecer. curioso assistir a uma reunio de sociedade no nosso pas: a falta de animao no dilogo e nos gestos revela imediatamente que se est entre gente inerte os bilogos chamam vita minima modorra invernal de certas espcies. No exigem nada hora que passa, nem esperam nada uns dos outros, nem, em geral, da existncia. Do meu ponto de vista, imoral que um ser no se esforce por tornar cada instante de sua vida o mais intenso possvel.
como ingrediente, no amor. Trata-se de uma intuio especial que nos permite descobrir rapidamente a intimidade de outros homens, a natureza da sua alma em unio com o sentido expresso pelo seu corpo. Graas a ela podemos distinguir as pessoas, apreciar a sua qualidade, a sua trivialidade ou a sua superioridade, em suma, o seu grau de perfeio vital. No se creia com isto que pretendo intelectualizar o sentimento de amor. Esta perspiccia nada tem a ver com a inteligncia, e embora seja mais provvel que a encontremos em criaturas de mente clara, pode existir isolada, como o dom potico que tantas vezes vem alojar-se em homens quase imbecis. De fato, o mais provvel que a encontremos apenas em pessoas dotadas de alguma agudeza intelectual, mas o seu grau de discernimento no depende da inteligncia. Esta intuio , assim, relativamente mais frequente na mulher do que no homem, ao contrrio do dom intelectual, to sexuado de virilidade . Aqueles que imaginam o amor como um efeito entre o mgico e o mecnico, acharo repugnante que se faa da perspiccia um dos seus atributos essenciais. Na sua perspectiva, o amor nasce sempre sem razo, ilgico, anti-racional e exclui, de fato, toda a perspiccia. Este um dos pontos capitais em que me vejo obrigado a discordar resolutamente das ideias vigentes. Dizemos que um pensamento lgico quando no surge do nada; mas, pelo contrrio, vemo-lo manar e sustentar-se de outro pensamento nosso que a sua fonte psquica. O exemplo clssico a concluso. Porque pensamos as premissas, aceitamos a consequncia: se aquelas so postas em dvida, a consequncia ca em suspenso, deixamos de acreditar nela. O porqu o fundamento, a prova, a razo, o logos, em suma, que confere racionalidade ao pensamento. Mas, ao mesmo tempo, o pensamento o manancial psicolgico que produz a racionalidade, a fora real que o suscita e mantm no esprito. O amor, embora nada tenha de operao intelectual, parece-se com o raciocnio porque no nasce em seco e, por assim dizer, ex nihilo [do nada], mas tem a sua fonte psquica nas qualidades do objeto amado. A presena destas engendra e nutre o amor; dito de outro modo, ningum ama sem razo; todo aquele que ama tem, ao mesmo tempo, a convico de que o seu amor justi cado: mais ainda, amar crer (sentir) que o amado , com efeito, amvel em si mesmo, como pensar crer que as coisas so, na realidade, tal como pensamos que so. possvel que num e noutro caso nos enganemos, que nem o amvel seja como o sentimos, nem real o real tal como o pensamos; mas a verdade que amamos e pensamos enquanto essa a nossa convico. O caToda a funo biolgica ao contrrio dos fenmenos fsico-qumicos apresenta paralelamente sua norma as suas anomalias. Assim no amor. Quando se renem as restantes condies para que o amor nasa e a perspiccia insu ciente ou nula, temos um caso de patologia sentimental, de amor anmalo.
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rter lgico do pensamento consiste nesta propriedade de se sentir justi cado e viver precisamente dessa justi cao, alimentando-se dela a todo o instante, corroborando-se na evidncia da sua razo. Leibniz exprime isso mesmo dizendo que o pensamento no cego, mas que pensa uma coisa porque a v tal como a pensa. Do mesmo modo, o amor ama porque v que o objeto amvel, e assim resulta para o amante a atitude inevitvel, a nica que pode assumir perante o objeto, e no compreende que os outros o no amem origem dos cimes que, em certo sentido e medida, so consubstanciais ao amor. O amor no , portanto, ilgico nem anti-racional. Ser, sem dvida, algico e irracional, j que logos e ratio se referem exclusivamente relao entre conceitos. Mas h um uso mais amplo do termo razo, que inclui tudo o que no cego, tudo o que tem sentido, nous. No meu juzo, todo o amor normal tem sentido, bem fundamentado e, consequentemente, logoide. Sinto-me cada vez mais longe da tendncia contempornea para acreditar que as coisas carecem de sentido, de nous, e procedem cegamente, como os movimentos dos tomos, que um mecanismo devastador elevou a prottipo de toda a realidade . Por isso considero imprescindvel a um amor autntico esse momento de discernimento que nos revela o carter daquele em quem o sentimento encontra razo para nascer e prosperar. Esta perspiccia pode ser maior ou menor, vulgar ou genial. Embora no seja a mais importante, uma das razes que me levam a quali car o amor como um talento sui generis, que admite todas as gradaes at genialidade. Mas claro est que tambm partilha com a viso corporal e a inteligncia o destino de poder errar. O que mecnico e cego no erra nunca. Muitos casos de anomalia amorosa reduzem-se a confuses na percepo da pessoa amada: iluses pticas e miragens nem mais estranhas nem menos explicveis do que aquelas que acometem com frequncia os nossos olhos, sem que por isso nos consideremos cegos. Precisamente porque o amor se engana s vezes embora com muito menos frequncia do que se julga teremos de lhe restituir o atributo da viso, como pretendia Pascal: Les potes nont pas de raison de nous dpeindre lamour comme un aveugle: il faut lui oter son bandeau et lui rendre dsormais la jouissance de ses yeux. (Sur les passions de lamour.) Revista de Occidente, Julho de .
Entenda-se que repudio a extenso ilimitada do mecanismo, no porque seja devastadora, mas porque falsa, e, para alm de falsa, devasta o mundo. [Na primeira edio deste ensaio dizia-se no nal: (Continua), mas esta promessa no se cumpriu.]
Ensaio
Pedagogia da Contaminao
O que iras ouvir no uma aula, no uma lio. Dia a dia cresce em mim a suspeita de que nada do que realmente merea ser aprendido possa, de fato, ser ensinado. Por maiores que sejam os cuidados do mestre haver sempre um ltimo acerto, um derradeiro esclarecimento, uma ltima e mais saborosa gota do caldo cient co ou artstico que no nos poder ser transmitido e que teremos que conquistar com nosso prprio e doloroso esforo. E esse ltimo acerto, essa derradeira iluminao, essa gota mais saborosa e essencial, representa tudo na cincia, na arte e na vida. As outras coisas esto a apenas como recipiente e artifcio para evitar que o valor essencial evapore e se desvanea. Flui por toda a pedagogia, especialmente pela contempornea, uma triste e deselegante hipocrisia com a qual quem fez do pacto uma norma de conduta pode pactuar mas que, a um nimo indcil, s desdm pode causar. O que entendem nossas escolas por ensinar cincia? Despejar sobre a alma dos discpulos um lastro de doutrinas cient cas j prontas ou, na melhor das hipteses, um doutrinrio j estabelecido de mtodos de pesquisa. Mansa, beata labor! O essencial da cincia, porm, escapa, atravs de um tnue tecido, como a gua de uma cesta, deixando, na alma do discpulo, exatamente o oposta da cincia: o dogmatismo. Pois o real e o concreto da cincia a incansvel atividade do intelecto que enfrenta valorosamente, perigosamente, os problemas e luta com eles em busca de uma soluo. E, como ao chegarmos a essa nova soluo ela far aumentar, de forma anloga ao que ocorre quando chegamos a um cume mais alto, o crculo de problemas, essa soluo ir, por sua vez, necessitar de uma correo para qual servir apenas como ponto de
Texto indito do manuscrito preparatrio de uma conferncia na Escuela Superior de Magistrio, em .
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apoio, da mesma forma que a terra serve de apoio ao calcanhar quando vamos iniciar um novo passo. Quando o fsico acaba de escrever a ltima pgina do seu tratado de fsica, j no pensa da fsica o que disse em seu tratado, seu pensamento j avanou em relao a aquela momentnea cristalizao de seu esforo, j problema aberto muito do que em sua obra impressa aparece como soluo fechada e a proa inquieta de sua mente vivaz j est direcionada rumo a novas costas distantes e confusas. Se, sem ironia, considerarmos como cincia a cincia do livro, concluda e petri cada, estaremos considerando como cincia exatamente o oposto da cincia verdadeira que no feita de concluses, que a ao intelectualmente uida em perptua superao de si mesma. A cincia ui, atravs dos livros de cincias, como ui um rio, lquido e mvel, pe seu leito slido e quieto. O que se ensina nas escolas modernas de todo o mundo cincia congelada, imobilizada, superada, dogmatizada um leito seco e estril por onde no transitam as gotas essenciais. Devemos dar graas ao fato de sempre ter havido homens que, apesar da escola e, as vezes, fora da escola, foram capazes de sentir brotar dentro de si a curiosidade cient ca. Espero no encontrar a objeo de que a escola moderna pretende ensinar, mais do que um sistema doutrinrio, os mtodos da pesquisa cient ca e portanto, a fazer cincia. Esse tpico contemporneo uma puerilidade: os mtodos de pesquisa no so mais que resultados do sistema de doutrinas da cincia e somente no interior dela fazem sentido. Ao variar os princpios da doutrina, variam os mtodos de pesquisa. Sua aparncia impessoal, automtica e imparcial leva a pensar que muitos trabalhadores se considerem dispensados de entender o que a cincia e ao fazer funcionar seus equipamentos percam sua vida em vo como abelhas alojadas em alvolos de uma colmeia inexistente. Veis pois que da pedagogia em uso escapa volatilizado o contedo essencial da cincia, isto , o mover do pensamento utuando numa atmosfera de problemas. Com toda nura repete-se na histria intelectual a metfora do caador, smbolo do cientista: segundo Plato; venator segundo So oms. A cincia no tarefa tranquila que pode se fazer abrigado em uma doutrina conhecida. Cincia aprendida, contadictio: quem deseja, srio, a dignidade de cientista tem que ostentar o valor permanentemente em intemprie espiritual, como um bom caador. O fato de que a sociedade contempornea parea, em todo o mundo, to satisfeita com os centros de ensino superior, apesar de no se ensinar neles o que faz da cincia, cincia, revela simplesmente, dito sem hipocrisias, que a cincia no interessa a sociedade contempornea e ela nem mesmo sabe o
que isso. Queremos receita e no sabedoria: receitas para fabricar veculos de locomoo, alcaloides e soros. Quando falam de cultura devemos entender conforto: progresso na rapidez dos veculos e no alvio das dores corporais. Dir-me-eis que sempre foi assim, que o mostro de mil cabeas que chamamos gente tem sido sempre cego e surdo para todo o essencial da vida e s deseja o que atenda bem ao milho de faces do milho de cabeas. Isso correto; porm em outras pocas essa gente no exercia o papel de protagonista que tem em nosso tempo, vivia mais ou menos relegada a um segundo plano e permitia que sobre a Europa ressonasse a voz da opinio seleta, abafada hoje pelo torrencial alarido da opinio pblica. inevitvel e at justo que a opinio pblica, para quem a cincia real no tem existncia, pea somente receitas, porm essa preocupao em informar e administrar o ensino trouxe e ainda trar consigo uma mngua do verdadeiro potencial da cincia e chegar uma hora em que nem mais receitas haver. Provavelmente em nenhuma outra poca se tenha falado tanto em cincia como na nossa; por isso peremptrio chamar a ateno para o fato de que a cincia que essa gente fala e se interessa no a cincia como saber, a cincia petri cada, materializada em utilidade. Tempos atrs se falava muito menos em cincia porm os que falavam sabiam o que estavam falando e ningum abusava do signi cado equvoco dessa palavra para ngir-se interessado no que ou lhe era indiferente ou odioso. Hipocrisias dessa ndole so caractersticas da conscincia contempornea e conveniente de tempos em tempos delat-las. O que sabe e at mesmo o que importa ao bom burgus ou ao bom operrio o saber, esse drama sutil e permanente do intelecto que vive sempre duvidando de si mesmo, em luta sem trgua, de maneira que xar-se a uma concluso ou a uma doutrina perecer? Quando vejo um desses homens com um livro na mo dizia Leonardo tenho a expectativa que faam como os macacos que se lo mettino al naso e si demandan se sia cosa mangiativa. Pois bem. Onde haver lugar na pedagogia contempornea, que pretende mecanizar o ensino como a rma seu clssico Pestalozzi, para ensinar isso que no pode ser ensinado mecanicamente, essa realidade nica da cincia que a trgica atitude do pensamento criando-se a si mesmo em crudelssimo esforo e negando-se a receb-lo por herana, tradio ou autoridade? Onde mais claramente se v a incapacidade de nossa educao no domnio da arte. Diante da arte, a opinio pblica mais sincera. Sendo a arte to evidentemente intil, a opinio pblica a declara absolutamente supr ua. Mais por inrcia do que por qualquer outra razo deixa que as academias e instituies artsticas sobrevivam e, nos centros de ensino, deixa que se desenque o levem ao nariz para ver se coisa de comer (N. T.)
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volvam a histria da literatura e das artes. Existe porm algum lugar onde se ensine, mesmo remotamente a sublime emoo esttica? No se ensina nem a usufruir nem a criar arte pois nenhuma dessas delicadas funes humanas pode ser ensinada de maneira mecnica. Ser artista fazer a alma soar em uma modulao original nunca antes ouvida: libertar-se heroicamente dos estilos usados e ensaiar alguns novos, em resumo, adicionar um elemento inesperado auta de Pan capriforme. As escolas nos prometem ensinar moral, isto , ensinar-nos a viver. No entanto, a vida faz em cada indivduo o ensaio de uma nova gura e sionomia de homem. Hebbel costumava dizer: eu vivo, isto , me diferencio de todos os outros. Cada um de ns um projeto, um grmen de personalidade nica, com intenes prprias, desejos nicos, necessidades incomparveis e deveres originais. E o mestre s nos pode ensinar maneiras lgicas, gostos genricos, ideais e deveres vagos; ir somente desvirtuar nossas possibilidades habituando-nos a repercutir a vida de outros, a ser espectros e sombras de outros; portanto pode somente nos ensinar a enterrarmos nossa vida pessoal prpria, a destru-la. Quantos se-o os afortunados que ao sair dos anos de educao levam cravada em sua conscincia a ideia de que fortes ou fracos, mais dotados ou menos dotados, encerram em seu ser a delicadssima possibilidade de algo novo, belo e fecundo e que sua vida deve ser para eles o mais harmonioso espetculo e o mais valoroso experimento? Pensai na enorme quantidade de energias individuais que so perdidas pela humanidade, desperdiadas e paralisadas, por pretenderem os pedagogos do gosto usual, ensinar aos homens moral, isto , como cada um deve viver. Veis pois que essas trs coisas supremas: cincia, arte e moral no podem ser ensinadas mecanicamente, como se pretende, e que se a opinio pblica est satisfeita com o que se ensina porque a opinio pblica ca apenas com essas trs palavras e renuncia de antemo os conceitos que elas encerram. Basta um mnimo desvio para que essas sutis realidades se transformem em seus contrrios ou pelo menos em vocbulos cncavos e ocos. to fcil a impostura! As palavras, senhores, so bolhazinhas msticas e incorpreas que se desprendem do interior da alma e, s vezes, a vibrao do ar as rompe liberando seu licor. No me parece que haveria nenhum mal se o bom burgus, o bom trabalhador, o bom advogado e o bom mdico, o bom industrial e o bom poltico jamais falassem da cincia, da arte, da moral, em resumo, da cultura. Nada mal me pareceria; me pareceria at mesmo proveitoso. O mal, o grave o que pode fazer correr perigo o seu futuro que se falsi que o seu signi cado, que
se a desvirtue e a defraude. Tem direito a dizer isso todo homem consciente que haja assistido aos primeiros tempos desta guerra quando uma cortina de fogo se espalhava at incendiar toda a linha do horizonte. E no, certamente pela prpria guerra que ao contrrio uma profunda realidade e portanto um gigantesco problema da cultura, mas pelo que todos os dias tnhamos que ler em todos os jornais e ouvir de quase todos os lbios, aquela hipcrita surpresa de que a Europa culta se lanasse ao campo de batalha, aquelas lamentaes sobre o fracasso da cultura. No entanto, se alguma dvida se tinha, ento se tornou manifesto at que ponto era ctcia a adeso cultura, at que ponto a conscincia pblica desconhece o sentido desta. Viu-se ento que a ideia que o europeu mdio tem da cultura que ela algo que no conhecemos bem e que a adquirimos, de uma vez para sempre, como uma dessas receitas tcnicas ou preceitos artsticos ou ainda prticas morais a que me referia anteriormente, algo que se recebe de fora e que podemos guardar no bolso no se necessitando, para conserv-la, um esforo sem trgua. O homem verdadeiramente culto, diante de um fenmeno como a guerra ou de outra emergncia grave em que se patenteie algum cruel defeito ou insu cincia da vida, sente aumentar sua f na cultura, v, com maior lucidez que nunca, o seu sentido e a sua radiante necessidade. Porque dar-se conta de um problema novo ou do recrudescer de um problema antigo , por sua vez, dar-se conta de uma nova tarefa para o esprito, da necessidade de se procurar uma nova soluo. A pedra no inculta por no acertar na soluo dos problemas mas sim por no ter conscincia deles. Os princpios de Galileu e de Newton, fundamentos ltimos da cincia natural moderna, hoje solapados por todos os lados, ameaam cair por terra ruidosamente. A democracia, ideia bsica em que se apoia transitoriamente o perene anelo de justia poltica, prisioneira de inmeras objees que no consegue transpor, se encontra a ponto de capitular. No improvvel que ns, que no somos muito velhos, venhamos a presenciar as quedas da fsica de Newton e Galileu e da democracia de Rousseau e Robespierre. Ser que no dia em que isso acontecer, nos ocorrer falar em fracasso da cultura? Tero essas idias sucumbido vtimas de alguma catstrofe telrica ou o seu desaparecimento se dever a falta de uma viso mais ampla e mais adequada dos problemas que, a sua hora, elas pretenderam resolver e portanto de uma sensibilidade mais na dos problemas e da exigncia de uma maior preciso em resolv-los e portanto de um novo triunfo da cultura? A cultura s se rende a uma cultura melhor que ela e da qual se possa dizer o que diz o poeta Shelley a sua amada: amiga, sois meu melhor eu. Se a opinio pblica europeia, em razo da guerra, ulula o fracasso da cul-
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tura que, por ela, entende a supresso dos problemas e portanto o oposto da cultura (com c ou com k, como se queira, porque agora no tenho nem tempo nem o mau gosto de me entreter com esses jogo de palavras sobretudo com um to pouco espirituoso que foi inventado e usado por Tolstoi a muitos decnios num momento em que se esqueceu da elegncia da sua alma). O bom listeu no quer a inquietao das questes e quando pede cultura devemos entender que est pedindo para voltar a ser pedra. No tenhamos iluses: falta nossa poca a conscincia da cultura, isto , daquilo que em aparncia mais a envaidece. Contribuiu para isso a expanso democrtica do ensino, que se preocupando mais em estender o uso do vocabulrio do que em se intensi car e puri car, em uma minoria seleta, a conscincia das idias. Em virtude disso aumentou-se o nmero de mdicos, de engenheiros, de advogados, de tcnicos, de leitores de jornais, cando de fora, os homens cultos. Causa ltima, sintoma de nitivo desta mngua padecer nossa poca de uma forma espec ca de incultura, exatamente o desconhecimento daquelas meditaes em que se esclarece o sentido da cultura e, em consequncia, o sentido da vida humana: a incultura do mdico sbio, do engenheiro sbio, do jurista sbio, a ignorncia que o sbio do especial tem do geral. No perodo que vai do sculo X at nossos dias o sculo XIX a poca que se caracteriza por sua incultura los ca, o sculo da especializao. A loso a, senhores, exatamente a conscincia da cultura. Por isso convm que, de quando em quando, falemos da loso a, apenas falemos dela, pois a loso a, alm de ser a cincia mais sutil, a que menos pode ser ensinada. A loso a, senhores, no se ensina; a loso a, na melhor das hipteses, se contamina. Em contraste com a pedagogia mecanizada, coloco como nica, verdadeira e, sem hipocrisias, a pedagogia da contaminao. No pretendo, portanto, ensinar-lhes nada de loso a e terei feito tudo se conseguir seduzi-los a ela. Como a gota vai arrastada pela turbulncia do rio, vai cada um de ns submerso nessa coisa imensa, turva e rpida que a vida. No oportuno que, de quando em quando, tentemos levantar a cabea sobre o caudal e ver para onde o rio nos leva? No comeo de sua tica, diz Aristteles com muita beleza: busca o arqueiro um alvo para suas echas. No necessitamos tambm de um para nossas vidas? Esprito signi ca precisamente a serenidade que nos faz, em meio ao torvelinho vital da multido de desejos fragmentados, de amarguras, de exultaes, manter uma direo, um sentido que orienta e quali ca toda essa turbulncia. A maior parte dos homens vive atenta apenas ao pequeno negcio, ao interesse que tem diante de si: se os deixssemos a ss a vida teria neles cada vez
menos pulsaes. O pequeno negcio seria cada vez mais, pequeno negcio: o campo visual, cada vez mais fechado e os coraes, cada vez mais estreitos. Por isso, a misso do intelectual e sobretudo do lsofo, proclamar fervorosamente, exasperadamente, a obrigao do esforo espiritual que dilata as almas e potencializa a vida. Diante do homem utilitrio ter ele que adotar uma absurda atitude de desinteresse e viver como fogo consumindo-se a si prprio. Esta tem que ser a atitude do lsofo e, por isso, quando aparece um verdadeiro lsofo a humanidade o sente como uma verdadeira ferroada. Nem preciso dizer que no pretendo ser esse verdadeiro lsofo, nem mesmo um lsofo qualquer. Somente por uma obrigao administrativa carrego o ttulo de professor de metafsica, uma coisa que no conheo bem e que, mesmo quando bem conhecida, no pode, a rigor, ser ensinada. Convido-os pois a se juntar a mim em no levar a srio este meu encargo administrativo. Minha pretenso incomparavelmente mais modesta: contentar-me-ia em andar ao lado de almas mais acomodadas que a minha e introduzir-lhes fermentos de dvida, ambio e esperana. Havereis notado que, ao estarmos na borda de um lago de guas paradas e observarmos a superfcie imvel, polida e indiferente, onde se re etem nuvens viajantes nuvens de abril, redondas e barrocas se apodera de ns uma inquietao e um desejo de romper esse polimento e essa calma ctcia que ocultam a vida efervescente no fundo lodoso. E, sem nos darmos conta, nossa mo apanha uma pedrinha e a atira na gua cujo cristal se quebra e vibra, trmulo e vivo, deixando escapar borbulhos que sobem do fundo como suspiros. Feito isso, nos afastamos ingenuamente satisfeitos. Agradar-me-ia fazer algo, no menos ingnuo, com as almas demasiadamente acomodadas minhas pretenses, como veis, se esgotam ao chegar a ser um professor de atirar pedrinhas em guas paradas.
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