Camille Flammarion - Narrações Do Infinito
Camille Flammarion - Narrações Do Infinito
Camille Flammarion - Narrações Do Infinito
COM
Primeira narrativa Segunda narrativa Terceira narrativa Quarta narrativa Quinta narrativa
Resurrectio praeteriti
Quaerens - Vs me haveis prometido, LUMN! fazer a narrativa dessa hora, estranha entre todas, que se seguiu ao vosso derradeiro suspiro,e descrever de que modo, por uma lei natural, embora mui singular, revistes o passado no presente, e penetrastes um mistrio que havia permanecido oculto at hoje. LUMN - Sim, meu velho amigo, vou cumprir a promessa, e, graas longa correspondncia de nossas Almas, espero compreendereis esse fenmeno estranho, conforme o classificastes. H contemplaes cuja fora o
olhar mortal no pode suportar. A morte que me libertou dos frgeis e fatigveis sentidos do corpo, ainda no vos tocou com a sua mo emancipadora. Pertenceis ao mundo dos vivos. Apesar do isolamento de ermo, nessas reais torres do arrabalde Saint-Jacques, onde o profano no vem perturbar vossas meditaes, fazeis, sem embargo disso, parte da existncia terrestre e das suas superficiais preocupaes. No vos admireis, pois, no instante de vos associar ao conhecimento do meu mistrio, do convite para que vos isoleis, mais ainda, dos rudos exteriores, e me presteis toda a - intensidade de ateno - de que o vosso Esprito seja capaz de concentrar nele prprio. Quaerens - Serei todo ouvidos, para vos escutar, LUMEN! e todo o meu Esprito estar concentrado em vos compreender. Falai, sem receio, nem circunlquio, e dignaivos de me fazer conhecedor das impresses, ignotas para mim, que sucedem cessao da vida. Lnnen - Por onde desejais comece a narrao ? Quaerens - Se bem recordardes, a partir do momento em que, mos trmulas, eu vos fechei os olhos. Gostaria que da partisse a vossa origem. LUMN - Oh! a separao do princpio pensante e do organismo nervoso no deixa na Alma nenhuma espcie de recordao. E como se as impresses do crebro, que constituem a harmonia da memria, se apagassem inteiramente e fossem logo restabelecidas sob outro modo. A primeira sensao de identidade que se experimenta depois da morte assemelha-se que se sente ao despertar, durante a vida, quando, acordando pouco a pouco, conscincia da
manh, ainda se est penetrado pelas vises da noite. Chamado pelo futuro e pelo passado, o Esprito busca, por seu turno, retomar a plena posse de si mesmo e deter as impresses fugitivas do sonho esvaecido, que passam ainda nele com o respectivo cortejo de quadros e acontecimentos. s vezes, absorvido em tal retrospeco de um sonho cativante, sente sob as plpebras, que de novo se fecham, os elos tnues da viso reatados, e o espetculo prosseguir; recai, ento, no sonho e numa espcie de meio-sono. Assim se balana nossa faculdade pensante ao sair desta vida, entre uma realidade que no compreende ainda e um sonho no desaparecido completamente. As mais diversas impresses se amalgamam e confundem, e se, sob o peso de sentimentos perecedouros, tem saudades da Terra de onde vem exilado, ento oprimida por um sentimento de tristeza indefinvel que pesa sobre nossos pensamentos, nos envolve de trevas e retarda a clarividncia. QuaerensExperimentastes essas sensaes imediatamente depois da morte? LUMN - Depois da morte? Mas no existe morte. O fato que designais sob tal nome, a separao do corpo e da Alma, no se efetua por assim dizer - sob uma forma dita material, comparvel separao qumica de elementos dissociados que se observa no mundo fsico. No se percebe essa separao definitiva, que vos parece to cruel, mais do que a pode perceber o recm-nascido, saindo do ventre materno. Somos verdadeiros nascidos para a vida celeste, tal qual o fomos para a existncia terrestre. Apenas, no estando a Alma envolta nas faixas corporais que revestem na Terra,
adquire ela mais prontamente a noo do seu estado e da sua personalidade. Tal faculdade de percepo varia todavia essencialmente - de uma para outra Alma. H as que durante o viver nunca se elevaram rumo do cu, nem sentiram o desejo de penetrar as leis da Criao. Essas, dominadas ainda pelos apetites corporais, permanecem longo tempo em estado de perturbao e de inconscincia. Outras existem, felizmente, que, desde esta vida, voaram com as suas aspiraes aladas rumo aos cimos do belo eterno. Estas, vem chegar com calma e serenidade o instante da separao; elas sabem que o progresso a lei da existncia, que entraram no Alm, numa vida superior de aqum; seguem, passo a passo, a letargia que sobe ao corao e, quando o ltimo movimento, vagaroso e insensvel, pra em seu curso, elas esto j acima do corpo e da j observaram o adormecimento. Libertando-se dos liames magnticos, sentem-se rapidamente arrebatadas por uma fora desconhecida rumo do ponto da Criao, a que as suas aspiraes, sentimentos e esperanas as atraem. Quaerens - A palestra que ora inauguro convosco, meu caro mestre, traz memria os dilogos de Plato sobre a imortalidade da Alma; e igual a Fedro que o solicitava a seu mestre, Scrates, no prprio dia em que este devia beber a cicuta - para obedecer inqua sentena dos Atenienses -; eu vos pergunto, vs, que haveis transposto o termo fatal, que diferena essencial distingue a Alma do corpo, de vez que este perece, enquanto que a primeira no morre jamais. LUMN - No darei a essa questo uma resposta metafsica, qual a de Scrates, nem uma soluo dogmtica,
qual a dos telogos, mas uma resposta cientfica, porque vs, tal qual eu, dais valor somente aos fatos constatados pelos mtodos positivos. Ora, pode-se distinguir no ser humano trs princpios diferentes, ainda que reunidos: 1:, o corpo material; 2., o corpo astral; 3, a Alma. Menciono-os nessa ordem para seguir o mtodo a posteriori. O corpo material uma associao de molculas, formadas elas prprias de agrupamentos de tomos. Os tomos so inertes, passivos, governados pela fora, e entram no organismo pela respirao e pelos alimentos, renovam incessantemente os tecidos, so substitudos por outros, e, eliminados, vo pertencer a outros corpos. Em alguns meses, o corpo humano totalmente renovado, e nem no sangue, nem na carne, nem no crebro, nem nos ossos resta mais um nico dos tomos que constituam o todo alguns meses antes. Por intermdio da atmosfera, principalmente, os tomos viajam sem cessar de um para outro corpo. A molcula de ferro sempre a mesma, quer esteja incorporada ao sangue que pulsa sob a tmpora de um homem ilustre, quer pertena a um vil fragmento enferrujado. A molcula de oxignio idntica, brilhe no olhar amoroso da noiva, ou, reunida ao hidrognio, projete sua flama em um dos mil luzeiros das noites parisienses, ou, ainda, tombe em gota de gua do alto das nuvens. Os corpos vivos atualmente so formados da cinza dos mortos, e, se todos os mortos ressuscitassem, faltariam aos vindos por ltimo muitos fragmentos pertencentes aos primeiros. E, durante a vida mesmo, numerosas mudanas ocorrem, entre amigos e inimigos, entre homens, animais, plantas, trocas que causariam
singular espanto ao olhar analisador. Quanto respirais, comeis ou bebeis, j foi respirado, bebido ou comido milhares de vezes. Tal o corpo: um complexo de molculas materiais que se renovam constantemente. O corpo astral , por assim dizer, imaterial, etreo, fludico. E' por ele que o Esprito est associado ao corpo material; o envelope da Alma, a substncia fsica do Esprito. Pela energia vital, a Alma grupa as molculas, seguindo certa forma, e constitui os organismos. A fora rege os tomos passivos - incapazes de se conduzirem eles prprios, inertes; a fora os chama, faz que lhe obedeam, toma-os, coloca-os, dispem todos conforme certas regras e forma esses corpos to maravilhosamente organizados que o anatomista e o fisiologista contemplam. Os tomos so permanentes; a fora vital no. Os tomos no tm idade; a fora vital nasce, envelhece, morre. Um octogenrio no mais idoso do que o jovem de quatro lustros. Porqu? Os tomos que o constituem esto, naquele, apenas h alguns meses, e, alm disso, no so nem velhos, nem novos; analisados, os elementos constitutivos do seu corpo no tm idade. Que envelheceu, pois, no octogenrio? A sua energia vital, a qual outra coisa no que uma transformao da energia do Universo, e esgotada no corpo. A vida se transmite pela gerao. Ela mantm o corpo instintivamente sem ter conscincia dela prpria: tem um comeo e um fim; uma fora fsica inconsciente, organizadora e conservadora do corpo.
A Alma um ser intelectual, pensante, imaterial na essncia. O mundo das idias, no qual vive, no o mundo de Matria: no tem idade, nem envelhece; no muda em um ms ou dois, igual ao corpo, pois, decorridos ano, lustro, decnio, sentimos que conservamos a nossa identidade, que o nosso Eu permanece. De outro modo, se a Alma no existisse, se a faculdade de pensar fosse funo do crebro, no poderamos continuar a dizer que temos um corpo: este seria o corpo que teramos na ocasio. Alm disso, de perodo em perodo, nossa conscincia mudaria, no possuiramos mais a certeza, nem mesmo o sentimento da nossa identidade, e no seramos mais responsveis pelas resolues segregadas pelas molculas que haviam passado por nosso crebro muitas dezenas de meses antes. A Alma no a fora vital, pois esta mensurvel, transmite-se por gerao, no tem conscincia intrnseca, nasce, aumenta, declina e morre... estados diametralmente opostos aos da Alma, imaterial, imensurvel, intransmissvel, consciente. O desenvolvimento da fora vital pode ser representado geometricamente por um fuso que inche insensivelmente at ao meio e depois decresa at anular-se na outra extremidade. No meio da vida, a Alma no desincha (se pode usar a comparao) para diminuir em forma de fuso e ter um fim, mas continua a abertura da sua parbola - lanada no Infinito. Alm disso, o modo de existncia da Alma essencialmente diverso do da vida. E' um modo espiritual. O sentimento do justo ou do injusto, do verdadeiro ou do falso, do bom ou do mau; o estudo, as matemticas, a anlise, a sntese, a contemplao, a admirao, o amor, o afeto ou a
antipatia, a estima ou o desprezo, em uma palavra, as preocupaes da Alma, quaisquer que sejam, pertencem ordem intelectual e moral, que os tomos e as foras fsicas no podem conhecer, e que existe to verdadeiramente quanto ordem material. Jamais o trabalho qumico ou mecnico das clulas cerebrais, por mais sutil que se suponha, poderia dar em resultado um julgamento intelectual, por exemplo, concluir que 4 multiplicado por 4 igual a 16 ou que a soma dos trs ngulos de um tringulo igual a dois ngulos retos. Esses elementos da entidade humana so encontrados no conjunto do Universo: 1., os tomos, os mundos materiais, inertes, passivos; 2., as foras fsicas, ativas, que regem os mundos e que se transformam umas nas outras; 3. Deus, o Esprito eterno e infinito, organizador intelectual das leis matemticas s quais as foras obedecem... ser incognoscvel, no qual residem os princpios supremos do verdadeiro, do belo e do bem. A alma ligada ao corpo material pelo corpo astral, intermedirio, que ela conserva depois da morte. Quando a vida se extingue, a Alma se separa naturalmente do organismo, e cessa qualquer relao imediata com o Espao e o Tempo, pois no tem densidade alguma, nem peso. Depois da morte, ela se encontra desprendida do corpo e permanece maior ou menor interregno na atmosfera. Relativamente livre, a Alma pode deslocar-se facilmente e, s vezes, projetar-se mesmo a imensas distncia, com a rapidez do pensamento. Sabeis que do Sol a Terra, ou desta aos planetas, a gravitao se transmite quase
instantaneamente com uma velocidade maior do que a da luz. A transmisso da Alma, mnada-psquica, no Espao, da mesma ordem. Assim, estamos no cu, imediatamente depois da morte, de igual modo que o havamos estado, alis, durante todo o perodo da existncia. Somente no temos mais o peso que nos prende ao Planeta. Acrescentarei, todavia, que a Alma demora algum tempo em desprender-se do organismo nervoso, e, por vezes, permanece muitos dias, meses mesmo, magneticamente ligada ao antigo corpo que no deseja abandonar. No raro, conserva, por largo perodo, seu organismo fludico, alm de que, dotada de faculdades especiais, pode transportar-se rapidamente de um ponto a outro do Espao. Quaerens - E a primeira vez que assimilo, sob uma forma sensvel, este fato no sobrenatural da morte, e compreendo a existncia individual da Alma, sua autonomia do corpo e da vida, sua personalidade e sobrevivncia, sua situao to simples no cu. Esta teoria sinttica me prepara, eu o creio, para compreender e apreciar vossa revelao. Um acontecimento singular, dissestes, vos impressionou a entrada na vida eterna. Em que momento sobreveio? LUMN - Ei-lo, meu amigo. Deixe-me seguir na narrativa. Soavam, bem sabeis, as doze pancadas da meianoite, no tmpano do meu velho carrilho e o plenilnio, em meio do seu curso, derramava seu plido claro sobre meu leito morturio, quando minha filha, meu neto e amigos de estima saram do aposento, no intuito de repousar um pouco. Quisestes permanecer assistindo-me, e prometestes minha filha no abandonar o lugar at ao amanhecer. Eu vos
agradeceria esse devotamento, terno e dedicado, se no fossemos qual dois verdadeiros irmos. Teria decorrido meia-hora, mais ou menos, pois o astro das noites declinava para a direita, quando vos peguei a mo e anunciei que a vida j me abandonava as extremidades. Assegurastes-me o contrrio; mas, eu observava com calma meu estado fisiolgico, e conhecia que poucos instantes restavam ainda a respirao. Dirigistes sutilmente vossos passos para o aposento dos meus filhos, mas (ignoro por que concentrao de esforos) pude conseguir gritar, detendo tal intento. Voltastes, olhos lacrimosos, meu amigo, e dissestes: Sim, vossas derradeiras vontades foram observadas, e amanh cedo ser tempo ainda de fazer vir vossos filhos. Havia nessas palavras evidente contradio, que apreendi, sem isso deixar perceber. Lembrai-vos de que, ento, pedi que fosse aberta a janela? Que bela noite de Outubro, mais bela do que as dos poetas da Esccia cantada por Ossian! No longe do horizonte, e sob meus olhos, distinguiam-se as Pliades, veladas pelas brumas inferiores. Castor e Plux remigiavam vitoriosamente no cu, algo mais distante. E, ao alto, formando tringulo constelado com as precedentes, admirava-se, na constelao do Cocheiro, bela estrela de ureos raios, a ,que, desenhada borda das cartas zodiacais, se denomina Capela, ou a Cabra. Vedes que a memria no me falha. Quando abristes a janela de todo, es perfumes das recentes rosas, adormecidas sob a asa da Noite, chegaram at mim e confundiram-se s claridades silenciosas das estrelas. Exprimir a doura que derramaram em minha alma essas impresses, as derradeiras que a Terra me enviava, as ltimas
que tocavam os sentidos ainda no atrofiados - ficaria para alm das possibilidades da minha linguagem: nas minhas horas de mais terno enlevo, de mais suave ventura, jamais senti essa alegria imensa, tal serenidade gloriosa, semelhante prazer j celeste, que me foram dados por esses minutos de xtase, escoados entre o sopro odoroso das flores e o meigo olhar das estrelas longnquas. E, quando regressastes para junto de mim, eu tambm voltara ao mundo exterior, e, juntas as mos sobre o peito, deixei que meu olhar e meu pensamento rogassem unidos e subissem ao Espao. E porque meu ouvido fosse bem depressa se fechar para sempre, recordo as derradeiras palavras que pronunciei: Adeus, meu velho amigo; sinto que a Morte me conduz... rumo das regies desconhecidas, onde nos reencontraremos um dia. Quando a aurora desmaiar as estrelas, haver aqui apenas o meu corpo mortal. Repeti minha filha a ltima expresso da minha vontade: que ela eduque os filhos, tendo em mira os bens eternos. E porque chorveis e dobrastes os joelhos diante do meu leito, acrescentei: Repeti a bela prece de Jesus. E comeastes a dizer em tom vacilante o Pai-nosso... Perdoai-nos... nossas ofensas tal qual perdoemos... queles que nos... hajam... ofendido... Tais so os pensamentos finais que chegaram minha Alma por intermdio dos sentidos. A vista se me perturbou ao fixar a estrela Capela, e no sei mais de quanto se seguiu imediatamente h esse instante. O ano, os dias e as horas so constitudos pelo movimento da Terra. Fora desses movimentos, o tempo terrestre no existe mais no Espao; ,
pois, absolutamente impossvel ter noo desse tempo. Creio, sem embargo disso, ter ocorrido no prprio dia do meu trespasse o acontecimento que vou narrar, pois, conforme percebereis desde logo, meu corpo ainda no fora sepultado, quando a viso se apresentou minha Alma. Nascido em 1793, estava, em Outubro de 1864, no meu septuagsimo segundo ano de existncia, e no me senti mediocremente surpreendido ao constatar-me animado de ardor e agilidade de esprito no menos intensos do que nos mais belos dias da minha adolescncia. No possua corpo, porm no me julguei incorpreo, pois senti e vi que uma substncia me constitua, embora no houvesse nenhuma analogia entre tal elemento e aqueles que formam os corpos terrestres. No sei de que modo atravessei os espaos celestes, e qual a fora que me aproximou depressa de um sol magnfico, cujo dourado esplendor alis no me deslumbrou e que estava rodeado, qual mostrara a distncia, de grande nmero de mundos, envoltos cada qual em um ou muitos anis. Por essa mesma fora, da qual era eu inconsciente, fui levado rumo de um desses anis, espectador de indefinveis fenmenos de luz, pois o Espao estrelado estava, dir-se-ia, atravessado por pontes de arco-ris. No via mais o sol de ouro; estava numa espcie de noite colorida de nuanas multicores. A viso da minha Alma atingira potncia incomparavelmente superior dos olhos do organismo terrestre que recm deixara; e, circunstncia notvel, esse poder me parecia subordinado vontade. Tal poder visual da Alma to maravilhoso que no me deterei hoje em descrev-lo. Basta que vos faa pressentir isto: em lugar de
ver simplesmente as estrelas no firmamento tal qual as contemplais da Terra, eu distinguia tambm de modo ntido os mundos que lhes gravitam em redor; e, detalhe estranho, quando no mais desejava divisar a estrela, a fim de no ser forado ao exame desses mundos, ela desaparecia de minha viso, deixando-me em excelentes condies para observar apenas um de tais globos (2). Alm disso, quando minha viso sobre um mundo em particular chegava a distinguir os detalhes da superfcie, os continentes e os mares, os nevoeiros e os rios, e, embora no visse aumentar perceptivelmente, qual acontece com o auxlio dos telescpios, conseguia, por intensidade particular de concentrao na - vista - de minha Alma, enxergar o objeto sobre o qual ela convergia, no mesmo grau em que se distingue uma cidade, uma campina. Chegando a esse mundo anelar, apercebi-me de que me revestira de uma forma idntica dos seus habitantes, tal qual se houvesse a minha Alma atrado para ela os tomos constitutivos de um novo corpo. Na Terra, os corpos so compostos de molculas que no se tocam e se renovam constantemente pela respirao, alimentao e assimilao. Aqui, o envoltrio da Alma se forma de modo mais rpido. Eu me senti vivo em mais alto grau do que os seres sobrenaturais cujas paixes e saudades foram cantadas pelo Dante. Uma das faculdades essenciais dos habitantes desse novo mundo decerto a de enxergar muito longe. Quaerens - Mas, meu amigo (perdoai minha observao qui ingnua), a essa to grande distncia, os mundos e os planetas que circulam em torno das estrelas no se
confundem com o prprio centro de atrao? Por exemplo, a to grande longitude, onde vos achastes, os planetas do nosso sistema no ficaram confundidos nessa estrela, no nosso Sol? Pudestes distinguir a Terra? LUMN - Haveis aproveitado, a primeira vista, a nica objeo geomtrica que parece contrariar a observao precedente. Com efeito, a uma certa distncia, os planetas so absorvidos nos clares do seu sol, e nossos olhos terrestres teriam dificuldade em distingui-los. Sabeis que, a partir de Saturno, no se diferencia mais a Terra. Mas, convm acentuar que tais dificuldades dependem tanto da imperfeio da nossa vista quanto da lei geomtrica do decrescimento das superfcies. Ora, no mundo a cujas margens acabava de aportar, os seres, no encarnados em um envoltrio grosseiro igual ao da Terra, e sim mais livres e dotados de faculdades de percepo elevadas a eminente grau de potncia, podem, conforme vos disse j, isolar a fonte ilumiradora do objeto iluminado, e, por isso, perceber distintamente os detalhes, que, a tamanhas distncias, seriam de todo encobertos aos olhos dos organismos terrestres. Quaerens - E para tais observaes eles se servem de instrumentos superiores aos nossos telescpios? LUMN - Se, para tornar menos difcil compreenso essa maravilhosa faculdade visual, mister conceb-la munida de instrumentos pticos, vs a podeis assim admitir teoricamente. Lcito vos imaginar culos que, por uma sucesso de lentes e dispositivos de diafragmas, aproximam sucessivamente os mundos e isolam da vista o foco iluminador, para deixar observao somente o mundo
objeto do estudo. Devo, porm, advertir que esses seres so dotados de um sentido especial, diferente da vista ordinria, e que o sabem desenvolver por processos pticos muita eficazes. Fica entendido que tal poder visual e respectiva construo ptica so naturais nesses mundos, e no sobrenaturais. Atentai um pouco em os insetos que dispem da faculdade de encolher ou alongar seus olhos maneira de tubos de binculos, de intumescer ou achatar o cristalino para dele fazer uma lente de diversos graus, ou ainda de concentrar no mesmo foco uma srie de olhos assentados, feio de outros tantos microscpios para surpreender o infinitamente pequeno - e podereis de modo mais fcil conceber a faculdade de tais seres ultraterrestres. Quarens - Sem poder figur-la, embora, pois que est alm do meu conhecimento-experincia, posso conjeturar essa possibilidade. Assim, pudestes ver a Terra e mesmo distinguir de to alto as cidades e as aldeias do nosso baixo mundo? LUMN - Deixai-me prosseguir minha narrativa. Cheguei, pois, ao anel mencionado, cuja largura bastante vasta para que 200 Terras qual a vossa possam nele rodar enfileiradas, e me encontrei sobre uma vasta montanha coroada de palcios vegetais. Pelo menos me pareceu que esses castelos fericos cresciam naturalmente, ou eram apenas o resultado de um fcil ajustamento de ramos e flores altas. Cidade bastante populosa. Sobre o cimo da montanha onde aportara, notei um grupo de ancies, em nmero de 25 ou 30, os quais se fixavam, com a ateno mais obstinada e mais inquieta, em uma bela estrela da constelao austral do
Aitar, nos confins da Via-Lctea. No notaram a minha chegada junto deles, tanto a sua mltipla ateno estava exclusivamente concentrada no exame da estrela, ou de um mundo do respectivo sistema. Quanto a mim, chegando a essa atmosfera, eu me vi revestido de um corpo fsico igual aos deles, e, surpresa maior ainda, no me admirei de ouvir que falavam a respeito da Terra, sim, da Terra, nessa linguagem universal do Esprito que todos os seres compreendem, desde o Serafim at as rvores da floresta. E no s falavam da Terra, mas, particularmente, da Frana. Porque esses massacres regulares? eles se diziam. Haver necessidade de que a fora bruta reine soberana? A guerra civil ir dizimar esse povo at ao ltimo dos seus defensores, .e lavar com rios de sangue as ruas da Capital, ainda h pouco to tranquila, to intelectual, to elegante e to brilhante? Eu no compreendia nada de tais palavras, eu que viera da Terra com uma velocidade igual do pensamento, e que, na vspera ainda, respirava o ambiente de uma cidade calma e pacfica. Reuni-me ao grupo, e fixei com eles meu olhar na estrela de ouro. Bem depressa, escutando sua conversao e buscando avidamente distinguir as coisas extraordinrias das quais falavam, divisei, esquerda da estrela, uma esfera azul-plido: era a Terra. No ignorais, meu amigo, que, apesar do aparente paradoxo, a Terra verdadeiramente um astro do cu (e isso eu vos recordei h pouco). De longe, de uma das estrelas vizinhas do nosso sistema, este aparece, viso espiritual de que falei, - no grau de uma famlia de astros composta de oito mundos principais, unidos em torno
do Sol. Jpiter e Saturno chamam primeiramente a ateno, devido ao seu tamanho; depois, no se tarda em destacar Urano e Netuno, e, em seguida, mais perto do Sol-estrela, Marte e a Terra. Vnus mais difcil de perceber, e Mercrio fica invisvel, por motivo da sua quase absoluta proximidade do Sol. Tal o sistema planetrio do cu. Minha ateno se prendeu exclusivamente na pequena esfera terrestre, junto da qual reconheci a Lua. Bem depressa notei as alvas neves do plo boreal, a Europa to retalhada, o Mediterrneo azul, o tringulo amarelo da frica, os contornos do oceano, e, porque minha ateno estava unicamente fixada sobre o nosso planeta, o Sol-estrela se eclipsou da minha viso. Depois, sucessivamente, pouco a pouco, consegui distinguir na esfera, em meio de regies azuladas, uma espcie de recorte de cor bistre, e, prosseguindo minha investigao, vislumbrar uma cidade no meio do dito recorte. No tive dificuldade em reconhecer que o recorte era a Frana, e a cidade - Paris. O primeiro sinal de identificao da capital francesa foi o listo prateado do Sena, que to faceiramente descreve tantas circunvolues sinuosas a oeste da grande metrpole. Servindo-me do aparelho ptico, penetrei em maiores detalhes. A nave e as torres de Notre Dame, que eu via por cima, formavam bem uma cruz latina na ponta oriental da cidade. Os bulevares estendiam suas faixas ao norte. Ao sul, reconheci o jardim de Luxemburgo e o Observatrio. A cpula do Panteo toucava com um ponto cinzento a montanha Santa Genoveva. A oeste, a grande avenida dos Campos Elseos desenhava no solo a sua linha reta; divisava-
se, mais distante, o bosque de Bolonha, os arredores de Sannt-Cloud, os bosques de Meudon, Svres, Ville d'Avray e Montretout. Tudo, porm, era paisagem de inverno, rvores despidas de folhagem, um triste dia de Janeiro, enquanto que eu deixara a Terra em Outubro. Tive, em pouco, a certeza de que era bem Paris o alvo da minha vista; mas, porque no compreendesse melhor as exclamaes dos meus vizinhos, fiz esforos para mais exatamente realar os detalhes. Minha viso se deteve de preferncia sobre o Observatrio, pois estava no meu bairro favorito, o qual, durante oito lustros, deixara apenas por alguns meses. Ora, julgue qual teria sido minha surpresa, quando meu olhar se adaptou mais completamente ao cenrio, e percebi no mais existir avenida entre o Luxemburgo e o Observatrio, e que essa magnfica alia de castanheiros dera lugar a jardins de mosteiros. Um desses retiros ocupava o lindo centro do vergel. O bulevar S. Miguel no existia mais, nem a rua dos Mdicis; era um amlgama de ruelas, e julguei reconhecer a antiga rua do Este, a praa S. Miguel onde outrora uma antiga fonte fornecia gua aos moradores do arrabalde, e uma srie de outras ruazinhas que eu havia visto antigamente. Pareceu-me estar sob meus olhos o plano de Turgot, com as suas ruas e edificaes. O Observatrio estava despojado das cpulas; as duas alas laterais haviam igualmente desaparecido. Pouco a pouco, prosseguindo minha investigao, constatei que, particularizando, Paris mudara profundamente. Meus rancores de artista contra as invases da edilidade parisiense despertaram, mas foram rapidamente superados por outras cogitaes mais fortes. O Arco triunfal
da Estrela no existia mais, nem as avenidas opulentas que nele vinham confinar. O bulevar de Sebastopol no existia tambm, nem a gare do Este, e nenhuma linha de via-frrea! A torre S. Jaques estava enfeixada em um cortejo de velhos prdios, e a coluna da Vitria lhe estava aproximada. A coluna da Bastilha tambm ausente, pois eu teria com facilidade reconhecido o gnio dourado que a encimava. Na praa Vendme a coluna da Grande Armada havia desaparecido, e a rua da Paz no se via tambm. A rua de Rivoli sumira-se. O Louvre no estava concludo, ou ento demolido. Entre o trecho quadrado do Louvre e as Tulherias, viam-se casebres amontoados, uma pequena igreja, velhos terraos e mansardas. Na praa da Concrdia no se distinguia mais o obelisco, mas parecia ver-se enorme pedestal e ante ele grande e grulhante multido contida por tropas militares. No se avistavam a igreja Madalena e a rua Royale. Havia uma ilhota por detrs da ilha S. Lus. Os bulevares exteriores no eram outra coisa que o velho muro da ronda, e as fortificaes tinham destrudo seus contornos. Enfim, embora reconhecendo a capital da Frana, pelos edifcios que lhe restavam e por alguns quarteires no transformados, estava sem saber que pensar de to maravilhosa metamorfose, que, da vspera para o outro dia, to radicalmente mudara o aspecto da velha cidade. Ao meu pensamento acudiu, de incio, a idia de que, ao invs de pouco tempo, gastara, em vir da Terra, mais de um ano, lustro, decnio ou sculo. E porque a noo do tempo essencialmente relativa e a medida da sua durao nada tem de real, nem de absoluta
separada do globo terrestre -, eu perdera, por esse motivo, toda a medida fixa, e a mim mesmo dizia que um ano ou at um sculo podia ter passado ante meu ser sem que me apercebesse, pois o to vivo interesse tomado por essa viagem no me fizera achar o tempo longo - expresso vulgar indicadora dessa sensao em nosso esprito. No tendo meio algum de me certificar da realidade, terminaria por crer sem dvida que muitos sculos j me separavam da vida terrestre, e tinha sob os olhos a Paris do sculo XXI, se eu no houvesse, ento, aprofundado mais o exame do conjunto. Com efeito, identifiquei sucessivamente o aspecto da cidade, e cheguei, por gradao, a reencontrar terrenos, ruas e edifcios que havia conhecido na minha infncia. O Palcio da Municipalidade me apareceu todo embandeirado, e o castelo das Tulherias apresentava sua cpula quadrada central. As torres feudais do Chatelet e da Santa-Capela assinalavam bem o antigo palcio. Um pequeno detalhe completou minha elucidao, quando, no centro do jardim de um velho mosteiro da rua S. Jaques, discerni um pavilho cuja vista me fez estremecer. Fora ali que eu encontrara, adolescente, a mulher que me amou, com um profundo amor, a minha Eivlys, to terna e to devotada, que tudo abandonou para se entregar ao meu destino. Revi a pequena cpula do terrao ante a qual amos sonhar tarde e estudar as constelaes. Ah! com que jbilo acolhia eu esses passeios durante os quais, acertando o passo um pelo outro, caminhvamos as avenidas, fugindo aos olhos indiscretos do mundo ciumento. Revia o pavilho, reconhecendo-o tal qual
era ento, e podeis calcular que tal vista bastou, ela s, para completar minhas indicaes e convencer-me, com uma convico invencvel e inquebrantvel, de que, longe de ter sob os olhos - conforme fora natural imaginar - a Paris de depois da minha morte, eu tinha ante mim a Paris desaparecida, a velha Paris do comeo do sculo XIX, ou a do fim do XVIII. Podeis compreender facilmente, no mnimo, que eu, apesar da evidncia, no devia crer no que meus olhos viam. Parecia-me mais natural imaginar que Paris havia envelhecido tanto, sofrido tais transformaes depois da minha partida da Terra (intervalo cuja durao me era totalmente desconhecida), que eu tinha sob a vista a cidade do futuro, se posso exprimir por esta imagem um fato que estava presente para mim. Prossegui, pois, atentamente minha observao, para constatar, de modo decisivo, se tratava da antiga Paris, em parte demolida atualmente, o que eu tinha sob os olhos, ou se, por um fenmeno no menos incrvel, era uma outra Paris, uma outra Frana, uma outra Terra.
II
Quaerens - Que situao extraordinria para o vosso Esprito analista, LUMN! E qual o meio que vos permitiu chegar a conhecer a realidade?
LUMN - Os ancies da montanha tinham prosseguido a conversao, enquanto as reflexes precedentes se sucediam em meu esprito. Subitamente, ouvi o mais idoso, esprito venervel cuja cabea nestoriana se impunha admirao e ao respeito, exclamar, em tom tristemente ressonante De joelhos, meus irmos, imploremos indulgncia ao Deus universal. Essa terra, essa nao continua a ensoparse em sangue: uma nova cabea, a de um rei, acaba de tombar! Seus companheiros pareceram compreend-lo, porque ajoelharam sobre a montanha, e prosternamram os alvos rostos contra o cho. Para mim, que ainda no estava habituado a distinguir figuras humanas no meio das ruas e praas pblicas, e que no havia acompanhado a observao particular dos ancies, permaneci de p e insistindo no exame do quadro distante. Estrangeiro, disse o velho, condenais a ao unnime de vossos irmos, pois que no vos unistes prece que fizeram? - Senador, respondi, no posso condenar, nem aplaudir, pois no sei do que se trata. Chegado a esta montanha h pouco, desconheo a causa da vossa religiosa imprecao. Ento, aproximei-me do velho, e, enquanto seus companheiros se ergueram e entretinham em mtua conversao, eu lhe pedi que me narrasse as suas observaes. Ensinou-me que, dada a intuio de que so dotados os Espritos do grau dos habitantes desse mundo, e tambm pela faculdade ntima de percepo que lhes coube em partilha possuem uma espcie de relao magntica com as estrelas
vizinhas. Tais estrelas so em nmero de doze ou quinze, e as mais prximas; fora desse permetro, a percepo resulta confusa. Nosso Sol uma dessas estrelas contguas. Conhecem, pois, vagamente, mas com exatido, o estado das Humanidades que habitam os planetas dependentes desse Sol, e seu grau relativo de elevao intelectual ou moral. Alm disso, quando uma grande perturbao atravessa uma dessas Humanidades, seja na ordem fsica, seja na ordem moral, eles sofrem uma espcie de comoo recndita, semelhana do que acontece com uma corda, vibrando, ao fazer entrar em vibrao outra corda colocada a distncia. Desde h um ano (um ano deste mundo equivalente a dez dos nossos) eles se haviam sentido atrados por uma emoo particular para o nosso planeta terrestre, e os observadores tinham seguido com interesse e inquietude a marcha desse mundo. Haviam assistido ao fim de um reino, aurora de uma liberdade resplendente, conquista dos direitos do homem, afirmao dos grandes princpios da dignidade humana. Depois, haviam visto a causa sagrada da Liberdade posta em perigo por aqueles que deveriam constituir-se seus primeiros defensores, e a fora brutal substituir o raciocnio e a persuaso. Compreendi que se tratava da revoluo de 1789 e da queda do velho mundo poltico diante do novo. Desde algum tempo, principalmente, havia, com intensa mgoa, acompanhado os frutos do terror e a tirania dos bebedores de sangue. Eles temiam pelos dias da raa humana, e duvidavam, dai para o futuro, do progresso
dessa Humanidade emancipada, que alienava - ela prpria - o tesouro que acabara de conquistar. Guardei-me bem de declarar ao Senador ter chegado da Terra e nela vivido at contar setenta e dois aniversrios de existncia. Ignoro se ele teve alguma intuio a respeito, mas eu prprio estava to estranhamente surpreendido de tal viso, que meu esprito se identificara com isso e no mais pensava na minha pessoa. Minha vista afinal se adaptara ao espetculo observado, e destaquei, no meio da praa da Concrdia, um cadafalso rodeado de formidvel aparelhamento de guerra, de tambores, canhes, e de uma densa multido pintalgada, empunhando chuos. Uma charrete, guiada por certo homem vermelho, conduzia os despojos mortais de Luis XVI, dirigindo-se para os lados do arrabalde de Saint-Honor. Um populacho brio parecia ameaar o cu. Cavaleiros se seguiam, sabre em punho. Viam-se, rumo dos Campos Elseos, fossas, nas quais caam os curiosos. Mas, essa agitao, concentrada no local tumultuoso, no se estendia cidade - que parecia morta e deserta. O terror a mergulhara em letargia. Eu no assistira ao acontecimento de 1793, pois esse fora o ano do meu nascimento, e expementava indizvel interesse em ser testemunha de tal cena, da qual os historiadores me haviam informado. Muitas Vezes eu discutira o voto da Conveno Nacional, mas confesso que a execuo de homens da estirpe de Lavoisier, o criador da Qumica; Bailly, historiador da Astronomia; Andr Chenier,
o dulcssimo poeta; ou a condenao de Condorcet, para o qual no tinham a escusa da razo de Estado, haviam-me causado mais indignao do que o suplcio de Lus XVI. O ser testemunha dos acontecimentos dessa poca transcorrida, despertava em mim interesse sem igual. Todavia, por imenso que fosse tal interesse, podereis calcular que estivesse dominado por um sentimento mais poderoso ainda: achar no ano de 1364, e estar assistindo, presentemente, a um acontecimento desenrolado durante a Revoluo Francesa. Quaerens - Parece-me, com efeito, que esse sentimento de impossibilidade devia tornar singularmente perturbada a vossa contemplao, pois, em ltima anlise, ali estava uma viso que sentimos radicalmente ilusria, e da qual no podemos admitir a realidade, mesmo assistindo a ela. LUMN - Sim, meu amigo, impossvel. Logo, compreendereis em que estado de nimo me encontrava, enxergando, com os meus olhos, um tal paradoxo realizado? Certa expresso popular diz que, por vezes, no se pode crer nos prprios olhos. Era o meu caso; impossvel negar; impossvel admitir. Quaerens - No seria uma concepo do vosso Esprito, um produto da vossa imaginao, uma exumao da vossa lembrana? Adquiristes a certeza de que se tratava de uma realidade, e no de um reflexo singular da memria? LUMN - Foi o primeiro raciocnio que me veio ao esprito, mas era de todo to evidente estar sob meus olhos a Paris de 1793, e o acontecimento de 21 de Janeiro, que no pude duvidar por muito tempo. E, por outra parte, tal raciocnio estava de antemo derribado pela circunstncia de
me haverem os velhos da montanha precedido na observao dos fatos - que eles viam, analisavam e se comunicavam mutuamente a ao do momento, sem conhecer de qualquer modo a Histria da Terra e sem saber que eu conhecesse essa Histria. E, depois, tnhamos sob o olhar um fato presente, e no um acontecimento do passado. Quaerens - Mas, ento, se o passado se pode assim fundir no presente, se a realidade e a viso se consorciam desse modo, se as personalidades mortas de h muito podem ser vistas ainda, agindo no cenrio da vida; se as novas construes e as metamorfoses de uma cidade do tipo de Paris, podem desaparecer e deixar ver em seu lugar a cidade de outrora; se, enfim, o presente pode esvair-se para ressurreio do passado; em qual certeza podemos doravante confiar? Em que se torna cincia de observao? que ser das dedues e das teorias? sobre que esto fundados nossos conhecimentos, que nos parecem os mais slidos? E se aquelas coisas so verdadeiras, no deveremos de futuro duvidar de tudo, ou crer em tudo? LUMN - Essas consideraes, e outras, meu amigo, me absorveram e atormentaram; mas, todas elas no puderam destruir a realidade que eu via. Quando adquiri a certeza de que tnhamos presente, sob os olhos, o ano 1793, refleti imediatamente que a prpria cincia, longe de combater essa realidade (pois duas verdades no se podem opor uma outra), devia dar-me disso a cabvel explicao. Interroguei a Fsica, e esperei a sua resposta. Quaerens - Qu! O fato era real?
LUMN - No somente real, mas tambm compreensvel e demonstrvel. Ides receber a explicao astronmica. Examinei, inicialmente, a posio da Terra na constelao do Altar, da qual vos falei. Orientando-me em relao estrela polar e ao zodaco, assinalei que as constelaes no eram muito diferentes das que so vistas da Terra, e, afora algumas estrelas particulares, sua posio continuava sensivelmente a mesma. Orion reinava no equador terrestre; a Grande Ursa, detida em seu curso circular, tendia ainda ao Norte. Reportando-me s coordenadas dos movimentos aparentes, suspensos da em diante, constatei ento que o ponto onde eu via o grupo do Sol, da Terra e dos planetas devia marcar a 17. hora da ascenso reta, isto , ao 256. grau, mais ou menos. (Eu no dispunha de aparelho para tomar exata mensurao. ) Observei, em segundo lugar, que esse ponto se encontrava rumo do 44. grau de distncia do plo Sul. Tais pesquisas tinham por fim identificar a estrela sobre a qual havia eu pairado, e deram lugar a que eu conclusse encontrar-me num astro situado rumo do 76. grau de ascenso reta, e do 46. de declinao boreal. Sabia, por outro lado, pelas palavras do ancio, que o astro onde nos achvamos no estava muito distanciado do nosso Sol, pois este se inclua entre os astros vizinhos. Com a ajuda de tais elementos, pude facilmente encontrar nas minhas reminiscncias qual a estrela em concordncia com as posies assim determinas. Uma nica a isso correspondia; era a estrela, de primeira grandeza, Alfa do Cocheiro, denominada tambm Capela ou a Cabra. No havia a menor dvida a respeito.
Assim, eu estava ento certamente num mundo dependente do sistema dessa estrela. De l, o brilho do nosso Sol fica reduzido ao de uma simples estrela, o qual Sol, em conseqncia da viagem que faz, vai colocar-se em perspectiva diante e na constelao do Altar, situada precisamente em oposto do Cocheiro, para o habitante da Terra. Desde ento, procurei recordar qual era a paralaxe dessa estrela. Lembrava-me de que um dos meus amigos, astrnomo russo, j a havia calculado, e seu clculo confirmado - dava a essa paralaxe 0,046 (3). Expresso em milhes de quilmetros o nmero 681.568.000. Assim, o astro sobre o qual eu me encontrava distava da Terra 681 trilhes 568 milhes de quilmetros. Elucidado desse modo o problema, estavam trs quartas partes resolvidas. Ora, eis aqui agora o fato capital, aquele para o qual chamo a vossa particular ateno, pois nele reside, no momento, a explicao da mais estranha das realidades. Sabeis que a luz no vence instantneamente distncia de um lugar a outro, e sim sucessivamente. No deixastes de assinalar decerto que, atirando uma pedra em guas tranqilas, uma srie de encclicas se sucedem em redor do ponto onde a pedra caiu. Assim se d com os sons no ar, quando passam de um extremo a outro, assim ocorre com a luz no Espao: ela se transmite gradualmente por ondulaes sucessivas. A luz de uma estrela emprega, pois, certo tempo para chegar a Terra, e essa durao depende naturalmente da distncia de uma da outra. O som percorre 340 metros por segundo. Um tiro de canho ouvido pelos artilheiros vizinhos da pea no preciso
momento em que parte; um segundo depois por aqueles que estejam na distncia de 340 metros; 3 segundos pelos que se acham a 1 quilmetro; 12 segundos para os a 4 quilmetros; 2 minutos para os ao decuplo desta distncia; 5 minutos para os que, colocados a 100 quilmetros, ouam ainda esse trovo dos homens. A luz se transmite com uma velocidade muito maior, porm no instantnea, conforme acreditavam os antigos. Ela percorre 300.000 quilmetros por segundo, e faria oito vezes o giro do Globo em um segundo se ela pudesse fazer voltas; emprega 15 segundos e 1/.4 para vir da Lua a Terra; 8 minutos e 13 segundos se partir do Sol; 42 minutos para nos chegar de Jpiter; 2 horas saindo de Urano e 4 horas para fazer a viagem desde Netuno. Vemos, pois, os corpos celestes, no tal qual eles so no momento em que os observamos, mas tal qual eram no instante da partida do raio luminoso que nos chegou. Se um vulco, por exemplo, comeasse em erupo em um desses mundos referidos, no o veramos projetar suas chamas seno 1 segundo e 1/4 depois, se tratasse da Lua; 42 minutos decorridos, se estivesse em Jpiter; 2 horas mais tarde, se viessem de Urano; 4 horas aps, caso proviessem de Netuno. Se ns nos transportssemos para alm do sistema planetrio, as distncias seriam incomparavelmente mais vastas, e maior a demora na chegada da luz. Assim, o raio luminoso sado da estrela mais prxima da Terra, a Alfa do Centauro, despende mais de 1.400 dias para nos atingir; o que procede de Srio emprega perto de um decnio para atravessar o abismo que nos separa desse sol.
Estando a estrela Capela separada da Terra pela distncia que mencionei, fcil calcular, razo de 300.000 quilmetros por segundo, quanto tempo necessita a luz para franquear tal intervalo. O clculo feito d sete decnios, 20 meses e 24 dias. O raio luminoso que sai de Capela, para vir a Terra, no nos chega seno depois de marchar, ininterruptamente, esses 14 lustres, 20 meses e 24 dias. Igualmente, o raio luminoso que parte da Terra, para atingir a estrela, ali no chega antes de tal decurso. Quaerens - Se o raio luminoso que nos vem dessa estrela emprega aquele tempo para atingir o nosso mundo, a luz que nos traz pois a de quase 864 meses do momento da partida? LUMN - Haveis compreendido com exatido. E ai est precisamente o fato que importa bem penetrar. Quaerens - Assim, em outros termos, o raio luminoso semelhante a um correio que nos traz as novidades da situao do pais de onde vem, e que, se demora 3.744 semanas em chegar, nos traz as notcias do pas relativas ao momento da sua partida, isto , de sete decnios anteriores ao instante em que nos chegam. LUMN - Adivinhastes o mistrio. Vossa comparao demonstra haverdes erguido uma ponta do vu. Para falar mais exatamente ainda, o raio luminoso seria um correio trazendo, no notcias escritas, mas a fotografia, ou, mais rigorosamente ainda, o prprio aspecto do pas donde sasse. Vemos esse aspecto tal qual era no momento em que os raios luminosos enviados de cada um dos pontos do pas no-lo fazem conhecido - na ocasio, repito, em que de l saram.
Nada mais simples, mais incontestvel. Quando, pois, examinamos ao telescpio a superfcie de um astro, no a vemos tal qual ela no instante em que a observamos, e sim tal qual era ao tempo em que a luz, que ora nos chega, foi emitida pela dita superfcie. Quaerens - De sorte que se uma estrela cuja luz, suponhamos, necessita dois lustros para nos chegar, fosse subitamente aniquilada hoje, ns a estaramos vendo durante esse decnio, de vez que s ao termo de tal tempo nos chegaria o seu derradeiro raio luminoso? LUMN - Precisamente isso. Em uma palavra, os raios de luz que as estrelas nos enviam no nos chegam instantneamente, e sim empregando um certo tempo em transpor a distncia de separao, no nos mostrando as estrelas tal qual so agora, mas tal qual eram por ocasio em que partiu esses raios de luz transmissores do respectivo aspecto. A est uma surpreendente transformao do passado em presente. Para o astro observado, o que j se passou, o j desaparecido; para o observador, o presente, o atual. O passado do astro rigorosa e positivamente o presente do observador. E porque o aspecto dos mundos muda de um ano a outro, e mesmo da vspera para o dia seguinte, pode-se representar esse aspecto igual a um escapamento no Espao avanando no Infinito para se revelar aos olhos dos longnquos contempladores. Cada aspecto seguido de um outro, e assim sucessivamente; e, na forma de srie de ondulaes, levam ao longe o passado dos mundos, que se torna presente aos observadores escalonados na sua passagem. Isso que cremos ver presentemente nos
astros, j se passou, e o que l est ocorrendo, ns no o vemos ainda. Identificai-vos, meu amigo, com esta representao de um fato real, por isso que vos interessa muito apreender tal marcha sucessiva da luz, e compreender com exatido essa verdade incontestvel: o aspecto das coisas, quando trazido pela luz, apresenta essas coisas, no tal qual elas so presentemente, mas tal qual eram anteriormente, segundo o intervalo de tempo necessrio para que a respectiva imagem, assim trazida, percorra a distncia que delas nos separa. No vemos astro algum qual no momento, mas qual o era no instante em que dele saiu o raio luminoso que nos chega. No o estado atual do cu que rios visvel, mas a sua histria passada. H mesmo tais e tais astros que no existem mais, desde h dez milnios, e so vistos ainda, por isso que o raio luminoso deles chegado saiu de l muito tempo antes da sua destruio. Tal estrela dupla, da qual buscais com mil cuidados e muitas fadigas determinar a natureza e os movimentos, no existe mais, desde quando comearam a haver astrnomos sobre a superfcie da Terra. Se o cu visvel fosse aniquilado hoje, seria visto ainda amanh, e ainda no ano prximo e ainda durante um sculo, um milnio, cinco, dez milnios, e por mais, excetuadas apenas as estrelas muito prximas, que se extinguiriam, sucessivamente, proporo do decurso de tempo necessrio para que os respectivos raios luminosos, delas emanados, transpusessem a distncia que nos separa: Alfa do Centauro extinguir-se-ia primeiro, em 48 meses, Srio em 120, etc. E fcil agora, meu amigo, aplicar a teoria cientfica
explicao do estranho fato do qual fui testemunha. Se da Terra se v a estrela Capela, no tal qual no momento da observao, e sim tal qual foi 864 meses antes, de igual maneira de l no se v a Terra seno com idntica diferena de aspecto, correspondente a igual perodo de tempo. A luz despende o mesmo tempo para percorrer os dois trajetos. Quaerens - Mestre, acompanhei atentamente vossas explicaes. No sendo luminosa, brilha a Terra, distncia, igual a uma estrela? LUMN - A Terra espelha no Espao a luz recebida do Sol. Quanto maior a longitude, mais o nosso planeta se parece a uma estrela, concentrada toda a luz do Sol em um disco que se torna cada vez menor. Assim, vista da Lua, essa superfcie parece 14 vezes mais luminosa do que a do plenilnio, pois 14 vezes mais vasta. Observada do planeta Vnus, daria a aparncia do mesmo brilho que tem Jpiter, visto da Terra. Contemplada de Marte, converte-se em estrela da manh e do crepsculo vespertino, oferecendo fases iguais s que Vnus apresenta. Assim, embora no tenha brilho prprio, brilha de longe, a exemplo da Lua e dos planetas, pela luz que recebe e reflete do Sol no Espao. Ora, de igual maneira que os acontecimentos de Netuno sofrem um atraso de 4 horas, vistos da Terra, assim tambm os da Terra passam pela mesma demora quando observados da rbita de Netuno. Por isso, de Capela, a Terra vista com aquele dito retrocesso de sete decnios, aproximadamente. Quaerens - Por muito estranhos e raros que sejam esses aspectos para ruim, compreendo agora perfeitamente porque, transportado estrela Capela, no vistes a Terra no seu
aspecto de 1864, data da vossa morte, mas na situao de Janeiro de 1793, por isso que a luz gasta 872 meses para atravessar o abismo que separa o globo terrqueo daquela estrela. E compreendo, com a mesma clareza, no se tratava de uma viso ou fenmeno de memria, nem de um ato maravilhoso ou sobrenatural, mas de um fato presente, positivo, natural e evidente; e que, com efeito, quanto ocorrera na Terra, havia muito, s ento poderia chegar ao conhecimento do observador colocado quela longitude. Permiti, porm, intercale uma questo incidente. Para que, procedendo da Terra, testemunhsseis esses fatos foi indispensvel franquear tal distncia, do nosso mundo Capela, com velocidade maior do que a da prpria luz? LUMN - Sobre isso j vos falei, quando disse que eu acreditava t-la transposto com a rapidez do pensamento, e que no dia mesmo da minha morte eu me encontrei no sistema daquela estrela - que tanto apreciei e admirei durante a minha estada na Terra. A velocidade da gravitao poder dar uma imagem do que a do pensamento, pois, vs o sabeis, quase instantnea. Quaerens - Ainda uma objeo. Para que se possa ver, assim, de to alto, a superfcie do nosso globo, necessrio estar o cu puro, sem nuvens e sem brumas? LUMN - No, no indispensvel. rgos especiais podem ver atravs de corpos opacos; a luz visvel no a nica que existe: h raios invisveis percebidos, por exemplo, pela fotografia. Quaerens - Ah? mestre, verdadeiramente, embora tudo se explique assim, tal viso no menos estupenda. Em
verdade, um fenmeno extraordinrio esse de ver atualmente - o passado presente, e de no o poder ver seno por esse modo pasmoso, e ainda o de no poder ver os astros tal qual o so no momento em que examinados, nem topouco v-los tal qual foram - simultaneamente -, e sim apenas o que foram em pocas diversas, segundo suas distncias e o tempo que a luz de cada um gastou para chegar a Terra! Assim, nenhum olhar humano v o universo sideral tal qual ! LUMN - O espanto legtimo que experimentais na contemplao desta verdade, meu amigo, apenas o preldio, ouso diz-lo, do que vai agora aprender. Sem dvida, parece, primeira vista, muito extraordinrio que, distanciando-se bastante no Espao, encontre algum maneira de assistir realmente a acontecimentos de eras desaparecidas e ressubir o rio do passado. Mas no reside nisso o fato que tenho a comunicar e que ides achar mais imaginrio ainda, se quiserdes ouvir mais extensamente a narrativa da jornada que se seguiu a minha libertao do crcere terrestre. Quaerens - Falai, eu vos peo, estou sequioso de vos escutar.
III
LUMN - Depois de haver desviado meus :olhares das cenas sangrentas da praa da Revoluo, eu me senti atrado para uma habitao de antiquado estilo, fazendo face para a Notre-Dame, e situada no terreno ora ocupado pelo trio. Diante da porta interior (paravento), havia um grupo de cinco pessoas, que estavam meio deitadas sobre bancos de madeira, cabea descoberta exposta ao Sol. E porque pouco depois se levantassem e se dirigissem a seus lugares, reconheci em uma a pessoa de meu pai, to moo qual jamais eu imaginara, minha me, mais jovem ainda, e um de meus primos, falecido no mesmo ano da morte de meu pai, aproximadamente h 8 lustros. E' difcil, primeira vista, reconhecer as pessoas, pois, ao invs de serem vistas de face, so olhadas do alto, como que de um andar superior. No me surpreendeu muito tal encontro. Recordei-me ento ter ouvido dizer, na minha juventude, que meus parentes residiam, antes do meu nascimento, na praa Notre-Dame. Com estupefao maior no sentir do que no poder expressar, senti minha vista fatigada, e cessei de distinguir qualquer coisa, tal qual nuvens se houvessem estendido sobre Paris. Acreditei, por minutos, que um turbilho me arrastava. De resto, j o haveis decerto compreendido, no possua mais a noo do tempo. Quando revi distintamente os objetos, notei um grupo de crianas correndo na praa do Panteo. Esses colegiais me pareciam sados da aula, pois conduziam bolsas e livros, e tinham a aparncia de regressar aos lares, saltitando e gesticulando. Dois de entre eles atraram minha ateno em especial, porque pareciam alterados por uma rixa qualquer e
comeavam uma luta particular. Um terceiro avanou para separ-los, mas recebeu um encontro de ombros que o atirou ao cho.. . No mesmo instante vi uma senhora correr para o menino. Era minha me. Ah! jamais, nunca, em meus setenta e dois anos de existncia terrestre, entre todas as peripcias, todos os espantos, todos os golpes imprevistos, todas as bizarrias de que foi tal existncia pontilhada; entre todos os acontecimentos, todas as surpresas, acaso da vida jamais experimentou comoo igual que me sacudiu quando, nesse menino, me reconheci eu mesmo! Quaerens - Vs mesmo? LUMN - Sim, eu mesmo. Com os meus louros cabelos cacheados, aos cinco de idade, meu lencinho bordado pelas mos daquela me que correra a me acudir, minha blusinha azul celeste e meus punhos sempre amarrotados. Estava l, o mesmo menino do qual vistes a imagem meio esvaecida na pequena miniatura colocada na lareira. Minha me veio, tomou-me nos braos, ralhando a meus camaradas, e me conduzia pela mo a nossa casa, ento situada na abertura atual da rua do Um. Depois, vi que, tendo atravessado o interior, nos achamos ambos num jardim onde havia muita gente. Quaerens - Mestre, perdoai uma reflexo crtica. Confesso que me parece impossvel que algum possa ver-se a si mesmo! Vs no vos podeis tornar em duas pessoas. E uma vez que haveis atingido a idade setuagenria, a vossa condio infantil fora para o passado, estava desaparecida, anulada desde muito. Vs no podeis ver uma coisa inexistente. Pelo menos, no posso compreender que, sendo
velho, vos fosse possvel ver a prpria personalidade com a idade atual de criana. LUMN - Qual razo vos impede de admitir esse ponto no mesmo grau dos precedentes? Quaerens - Porque ningum se pode ver, num duplo, simultaneamente, criana e velho! LUMN - Vs no raciocinais de modo completo, meu amigo. Haveis assimilado o fato geral, para admiti-lo, mas no observastes suficientemente que este ltimo fato cabe de modo completo no primeiro. Admitis que o aspecto da Terra despende 864 meses para chegar a mim, no certo ? que os acontecimentos no me chegam seno com este intervalo de tempo para sua atualidade? em uma palavra, que eu vejo o mundo tal qual ele era naquela poca. Admitireis paralelamente que, vendo as ruas de tal tempo, eu veja, na mesma ocasio, os meninos que corriam ento nas ditas ruas. No est bem esclarecido? Quaerens - Inteiramente. LUMN - Muito bem! Ento, se eu vejo o grupo de crianas e eu fazia parte dessa infncia, porque pretendeis no me veja to bem quanto as outras ? Quaerens - Mas vs no estais mais nesse grupo! LUMN - Ainda uma vez, esse grupo no existe mais, atualmente; mas eu o vejo tal qual existia poca em que partiu o raio luminoso que hoje me chegou. E desde que diviso os 15 ou 18 meninos componentes do todo, no h razo para que o menino que era eu desaparecesse, pelo fato de ser eu mesmo quem observa. Outros observadores v-loiam em companhia desses camaradas. Porque quereis
houvesse uma exceo quando eu prprio olho? Eu os vejo a todos, e a mim com eles. Quaerens - Eu no havia apreendido inteiramente o caso. E' a evidncia, com efeito. Abrangendo um grupo de crianas do qual fizestes parte, no podereis deixar de ver a vs prprio, desde que veis a todos os outros. LUMN - Ora, compreendereis em que estranha estupefao devia precipitar-me uma tal viso? Esse menino era bem eu, em carne e osso segundo a expresso vulgar e significativa. Era eu no incio do meu segundo lustro de idade. Eu me via, to bem quanto os companheiros do jardim que brincavam comigo. No era miragem, viso, espectro, reminiscncia, iluso: era realidade pura, positivamente a minha personalidade, meu pensamento, meu corpo. Estava l, sob meus olhos. Se meus outros sentidos tivessem tido a perfeio da minha vista, parece-me que eu teria podido tocar-me e ouvir-me a mim prprio. Eu saltava naquele jardim e corria em torno do lago rodeado de balaustrada. Algum tempo depois, meu av me colocou sobre os joelhos e me fez ler em um grande livro. Mas, basta! Renuncio descrever essas impresses. Deixo-vos o cuidado de as experimentar em vs mesmo, se estais bem identificado com a realidade fsica desse fato, e me limito a declarar que jamais semelhante surpresa caiu sobre minha Alma. Uma reflexo principalmente me atarantou. Eu me dizia: esse menino sou eu, e bem vivo. Ele cresceu e deve viver mais onze vezes a idade que tem. Sou eu, real e incontestavelmente, eu mesmo.
E, de outro lado, eu que estou aqui com os 72 de vida terrestre, eu que penso e vejo estas coisas, sou tanto eu quanto eu sou essa criana. Eis-me, pois, em dois: l embaixo, na Terra; aqui, em pleno Espao. Duas pessoas completas, e no menos distintas uma da outra. Observadores, colocados onde estou, poderiam ver esse menino no jardim tal qual o vejo, e tambm me ver igualmente aqui: a mim, em dois. E' incontestvel. Minha Alma est nessa criana, e igualmente aqui; a mesma, a alma nica, animando, no entanto, esses dois seres. Que estranha realidade! E no posso dizer que me engano, que estou em iluso, que um erro ptico me domina. Ante a Natureza e ante a Cincia, eu me vejo, ora menino e ora velho, l e aqui... l, descuidoso e alegre; aqui, pensativo e emocionado. Quaerens - E estranho realmente. LUMN - E positivo. Buscai, na criao inteira, e encontrareis um paradoxo mais notvel do que esse? Ora, que o tempo? Suponde que um octogenrio tem diante do olhar dois retratos representando, o primeiro, seu pai quando infante, saindo do primeiro lustro de idade, por exemplo, e o segundo, ele prprio, na idade atual de oitenta. Onde est a criana, onde est o velho? Sem dvida, o genitor est mais idoso do que ele, mas esse tempo j passou, pois o genitor j faleceu. Suas duas existncias foram sucessivas; tudo que poderamos dizer. Ante esses dois retratos, o pai a criana, a criana um av. Visto de mais longe, desaparecido o tempo, o passado d lugar a um
presente perptuo. O tempo desaparece tambm em astronomia. Eu vos dizia h pouco que ocasiona bastante fadiga mensurar as posies precisas de pares de estrelas duplas que no existem mais. A luz que recebeis hoje partiu h sculos e sculos, e desde essa poca o par foi destrudo por uma conflagrao csmica que vereis dentro de um milnio. Mas, estudais, apesar disso, o inexistente, e, muitas vezes, com verdadeira paixo. No vos importa. isso, alis: um prazer matemtico. No intil refletir a respeito dessas verdades: elas nos elevam acima das contingncias pueris da vida. Que acrescentarei agora minha narrativa? Eu me segui, assim, crescendo na vasta cidade parisiense. Eu me vi, em 1804, ingressando no colgio e fazendo minhas estreias no momento em que o Primeiro Cnsul se coroava com a dignidade imperial. Conheci essa fronte dominadora e pensativa de Napoleo, num dia em que passou uma. revista no Carrocel. No me havendo jamais encontrado em sua presena, fiquei satisfeito em v-lo atravessar meu campo atual de observao. Em 1810 eu me revi na formatura da Escola Politcnica e em palestra no ptio com o melhor dos meus camaradas, Francisco Arago. Esse jovem j pertencia ao Instituto, e substitua Monge na Escola, devido ao jesuitismo de Binet, do qual o Imperador se queixava. Encontrava-me desse modo na plenitude dos brilhantes tempos da minha adolescncia e dos meus projetos de viagem de explorao cientfica, em companhia de Arago e Humboldt, viagens que este se decidiu empreender sozinho. Depois, eu me
reconheci, mais tarde, sob os Cem-Dias, atravessando rapidamente o pequeno bosque do velho Luxemburgo, a rua do Este e a alia do jardim da rua de S. Jaques, e vendo acorrer minha bem-amada para me receber sob os lilases em flor. Doces horas de solitude a dois, de confidncias de corao, silncios da Alma, transportes do amor, efuses da tarde - vs vos oferecestes minha vista emocionada, no mais no grau de saudades longnquas, porm na vossa atualidade absoluta! Assisti de novo ao combate dos Aliados na colina de Montmarte, sua descida na Capital, queda da esttua da praa Vendme, arrastada nas ruas, por entre gritos de alegria, ao campo dos ingleses e dos Prussianos nos Campos Elseos, devastao do Louvre, viagem de Gand, reentrada de Lus XVIII! A bandeira da ilha de Elba flutua sob meus olhares, e, mais tarde, porque buscasse no Atlntico a ilha solitria onde a guia fora acorrentada, asas quebradas, a rotao do Globo aproximou de minha vista Santa-Helena, onde identifiquei o Imperador, imaginando junto de um sicmoro. Assim passou cada ano presente ao meu olhar. Acompanhando sempre a minha prpria individualidade, no meu casamento, nas minhas iniciativas, minha vida de relao, minhas viagens, estudos, etc., assisti ao desenvolvimento da histria contempornea. restaurao de Lus XVIII, sucede o governo efmero de Carlos X. As jornadas de Julho de 1830 mostraram as suas barricadas, e, no longe do trono do Duque de Orlees, vi aparecer a coluna da Bastilha. Rapidamente passaram esses 216 meses.
Apercebi-me no Luxemburgo, nessa avenida magnfica, que fora aberta por Napoleo e substitura velhos mosteiros. Revi Arago no Observatrio, e a turba que se apertava s Portas do novel anfiteatro. Reconheci a Sorbona de Gousin e de Guizot. Depois, meu corao se constringiu, ao ver passar o enterro de minha me, senhora austera e talvez um pouco severa demais em seus julgamentos, porm que eu sempre muito amei, conforme sabeis. A singular pequena revoluo de 1848 surpreendeu-me no menos vivamente do que quando me parecia serem os prprios acontecimentos. Reconheci, na praa da Bolsa, Lamoricire, falecido no ano passado, e, nos Campos Elseos, Cavaignac, tambm j desaparecido, h um lustro mais ou menos. O 2 de Dezembro veio encontrar-me observador na minha estao celeste, tal qual eu o havia sido na minha torre solitria, e, sucessivamente, se escoaram assim acontecimentos que me haviam emocionado, e outros de mim desconhecidos. Quaerens - E esses acontecimentos passavam com rapidez ante vosso olhar? LUMN - No saberia apreciar a medida do tempo; mas todo esse panorama retrospectivo se sucedeu de certo em menos de um dia... ou horas, talvez. Quaerens - Nesse caso, no compreendo melhor! Perdoe a um velho amigo esta interrupo um tanto viva; mas, segundo havia imaginado, parecia-me serem os prprios acontecimentos que se apresentavam aos vossos olhos, e no um simulacro unicamente, em virtude do tempo necessrio ao trajeto da luz, esses sucessos estavam atrasados quanto ao momento da sua ocorrncia. Se, pois, 864 meses terrestres
passaram sob vosso olhar, eles deviam ter gastado esse perodo de tempo para vos aparecerem, e no algumas horas. Se o ano 1793 vos surgiu em 1864, o ano de 1864, em retrocesso, no deveria, conseqentemente, aparecer antes de 1936. LUMN - Vossa objeo, nova, tem fundamento e demonstra que haveis perfeitamente compreendido a teoria desse fato. Sei que estais satisfeitos por hav-la formulado. Tambm vou explicar porque no me foi necessrio aguardar 864 novos meses para rever minha vida, e porque, sob o impulso de uma fora inconsciente, eu a pude rever em menos de um dia . Continuando a seguir o desenrolar da minha existncia, cheguei aos ltimos tempos, notveis pela transformao radical feita em Paris. Vi meus velhos e queridos amigos, vs inclusive, minha filha e seus lindos filhinhos, minha famlia e meu crculo de conhecidos; e, enfim, chega o momento em que, pela percepo dos raios ultravioleta, atravessando os mundos, eu me vi, deitado no meu leito de morte. Penetrei na cmara morturia e assisti derradeira cena, o que equivale dizer que eu regressara a Terra. Atrada pela contemplao que a empolgava, minha Alma havia depressa esquecido a montanha dos ancies e Capela. Tal qual acontece por vezes em sonho, abalava-se com o que via. Disso no me apercebi imediatamente, tanto a estranha viso absorvera todas as minhas faculdades. No vos posso explicar qual o poder que permite s almas transportarem-se to rapidamente de um lugar a outro; mas, a verdade que eu - voltara Terra, em menos de um
dia, e que penetrei em meu aposento de dormir, no preciso momento de ser amortalhado. Por isso que em tal viagem de regresso caminhava ao encontro de raios luminosos, eu encurtava sem cessar a distncia que me separava da Terra; a luz tinha cada vez menos percurso a vencer e restringia assim a sucesso dos acontecimentos. No meio do caminho, os raios luminosos, chegando-me apenas com a metade do atraso (432 meses), no mais me mostravam a Terra dos 864 anteriores, mas a daquela metade de tempo. Nas trs quartas partes do percurso, os aspectos eram os de 216 meses de retardo. Na metade do ltimo quarto do tempo chegavam com a diferena de 108 meses decorridos, e assim por diante, de modo que a minha existncia se condensou em menos de um dia, em conseqncia da volta rpida de minha Alma vindo ao encontro dos raios luminosos. Quaerens - Essa combinao de marchas no menos estranho fenmeno LUMN - No vos acode ao esprito outras objees, ouvindo-me? Quaerens - Confesso que essa combinao foi ltima, ou pelo menos me intrigou de modo a excluir qualquer outra no momento. LUMN - Eu vos farei notar a existncia de umas outras, astronmicas, que revelarei imediatamente para que no reste dvida. Tal combinao depende do movimento da Terra. No somente o movimento diurno do Globo deveria impedir-me de bem apanhar a sucesso dos fatos, mas tambm esse movimento, sendo desmesuradamente
acelerado pela rapidez do meu regresso rumo a Terra, e 864 meses escoando-se em menos de um dia - refleti ser surpreendente que eu de tal no me apercebesse. Mas, tendo visto apenas um nmero relativamente restrito de paisagens, de panoramas e de fatos, provvel que, retornado ao nosso planeta, eu me mantivesse, por mui rpidos instantes isolados, sobre pontos que sucessivamente me interessaram. De qualquer modo, devia render-me evidncia, e constatar que, sem fadiga, havia assistido sucesso clere dos sucessos do sculo e da minha prpria existncia. Quaerens - Essa dificuldade no me escapara, e pensei que haveis navegado no Espao maneira de um balo arrastado pela rotao do globo. Certo, a inconcebvel rapidez com que deveis ter sido levado das de causar vertigens; mas no me limito, todavia, a essa hiptese, meditando sobre vossa afirmativa. Assinalando que a vossa viso, e assim a vossa insciente aproximao da Terra, eram devidas intensidade de ateno sobre o ponto do globo onde vos veis de novo, no inadmissvel que vos mantivsseis constantemente preocupado com o dito ponto. LUMN - A esse respeito, no vos afirmo coisa alguma, pois de tal permaneci inconsciente; mas, sobre isso, penso diferente. No revi todos os acontecimentos da minha existncia, mas apenas um pequeno nmero dos principais, que, sucessivamente escalonados, me mostraram o conjunto da minha vida. Apresentaram-se quase todos sobre o mesmo raio visual. Tudo quanto sei que a ateno indizvel, que me prendia soberana e imperiosamente a Terra, agia na
forma de uma corrente que me religasse a ela, ou, se preferis a expresso, com o poder dessa fora ainda misteriosa da atrao dos astros, em virtude da qual os pequenos tombariam diretamente sobre os mais importantes, se no fossem retidos nas suas rbitas pela fora centrfuga. Quaerens - Cogitando desse efeito da concentrao do pensamento relativamente a um ponto nico, e da atrao real que ele sofre logo, com relao a esse ponto, creio assinalar que a est o eixo principal do mecanismo dos sonhos. LUMN - Dissestes a verdade, meu amigo, e vos posso afirmar, eu, que, durante largo tempo, fiz dos sonhos o assunto especial de minhas observaes e estudos. Quando a Alma, liberta das atenes, preocupaes e tendncias corporais, v em sonho um objeto que a encanta e para o qual se sente atrada, tudo desaparece em torno de tal objeto - que permanece s e se constitui o centro de um mundo de criaes; ela o possui inteiramente e sem reservas, contempla-o, dele se apossa e o faz seu, o universo inteiro se apaga da reminiscncia, para deixar um domnio absoluto ao objeto da contemplao da Alma, e, tal qual me aconteceu em meu regresso a Terra, no v mais do que o dito objeto acompanhado das idias e das imagens que engendra e faz sucessivamente surgir. Quaerens - Vossa rpida viagem Capela, e assim vosso regresso no menos veloz a Terra, tinham, pois, por fundamento causal, essa lei psicolgica, e agistes mais livremente ainda do que em sonho, porque vossa Alma no mais estava peada pelas engrenagens do organismo.
Recordo-me de que, em nossas conversaes passadas, vs, com efeito, dissertastes muitas vezes a respeito da fora da vontade. Assim, pudestes retornar ao leito de morte antes que vosso envoltrio mortal fosse sepultado. LUMN - Regressei, e bendisse as saudades sinceras da minha famlia, acalmei as dores da nossa amizade ferida, esforcei-me por inspirar a meus filhos a certeza de que eu no era mais aquele envelope mortal, e que eu habitava a esfera dos Espritos, o Espao celeste, infinito e inexplorado. Assisti ao meu prprio enterro e assinalei aqueles que se diziam meus amigos e que, por uma ocupao de medocre importncia, no se deram ao incmodo de levar meus despojos terreais a derradeira morada. Ouvi as variadas conversaes que versavam sobre o meu cortejo funerrio. Pareceu-me que muitos se entretinham principalmente com os seus interesses personalssimos; mas verifiquei a presena de irmos de pensamento no convvio dos quais sempre me encontrava, e, embora nesta regio de paz no tenhamos avidez de elogios, eu me senti feliz em constatar que uma suave lembrana da minha passagem pala Terra lhes havia ficado na memria. Quando a pedra do tmulo caiu e separou a terra dos mortos da Terra dos vivos, dei um derradeiro adeus ao meu pobre corpo adormecido, e, porque o Sol j descesse para o seu leito de prpuras franjado de ouro, permaneci na atmosfera at noite prxima, mergulhado na admirao dos belos espetculos que se desdobravam nas regies areas. A aurora boreal estendia por cima do plo o seu turbante prateado, estrelas errantes choviam de Cassope, e a Lua-
cheia, vagarosa, se elevava no Oriente, qual um novo mundo surgindo das ondas. Vi Capela cintilante, que me fixava com o seu luminoso olhar to vivo, e distingui as coroas que a circundavam, prncipes celestes de uma divindade. Ento, esqueci de novo a Terra, a Lua, o sistema planetrio, o Sol, os cometas, para me deixar prender sem reservas intensa atrao da refulgente estrela, e fui transportado no seu rumo pela ao do meu desejo, com uma rapidez maior do que a das setas eltricas. Depois de algum tempo, cuja durao no me foi possvel verificar, cheguei ao mesmo anel e montanha onde estivera na antevspera, e vi os ancies ocupados no seguimento da histria da Terra, no perodo retardado de 860 meses. Estavam vendo os acontecimentos da cidade de Lio, do dia 23 de Janeiro de 1793 Confessar-vos-ei qual a causa misteriosa da minha atrao para com a estrela Capela? Maravilha! Existem na Criao ligaes invisveis que no se rompem, qual acontece com os laos mortais, correspondncias ntimas que subsistem entre as almas, apesar da separao pelas distncias. Na noite desse segundo dia, porque a luaesmeralda se incrustasse no terceiro anel de ouro (tal a medida sideral do tempo), surpreendi-me percorrendo solitria avenida envolta de flores e perfumes. Flutuei nela alguns instantes, quando vi aproximar-se de mim a minha to amada e cara Eivlys. Estava linda qual outrora; as primaveras desaparecidas resplenderam ante meus olhos. No me deterei a descrever a alegria de tal reencontro, pois no cabvel aqui, e talvez um dia nos entretenhamos em falar a respeito das afeies ultra-terrestres que sucedem s da vida carnal.
Desejo apenas salientar, a propsito do reencontro em ligao com esta tese, que bem depressa procuramos juntos, no Cu, a Terra - a nossa ptria adotiva, onde desfrutramos dias de paz e ventura. Estimamos, com efeito, dirigir nossos olhares rumo desse ponto luminoso onde a nossa condio atual nos permitia distinguir um mundo; sentamos prazer em consorciar o passado da nossa saudade ao presente que nos chegava nas asas da luz. E no xtase em que nos mergulhava essa singularidade to nova para ambos, buscvamos ardentemente ressurgir ante a vista os acontecimentos da nossa mocidade. Assim, revimos, ento, os amados tempos do nosso primeiro amor, o pavilho do Convento, o jardim florido, os passeios dos arredores de Paris, to faceiros e formosos, e nossas viagens, sozinhos os dois, atravs dos campos. Para reconstruir esses perodos, bastava avanarmos, juntos, no Espao, em direo da Terra, at s regies em que tais aspectos, trazidos pela luz, estavam gravados. A tendes revelada, meu amigo, a estranha observao que vos havia prometido. Eis a aurora que se avizinha, e j a estrela de Lcifer empalidece sob a Alba Rsea. Volto s constelaes... Quaerens - Ainda uma palavra, LUMN, antes de findar esta palestra. De vez que os aspectos terrestres s se transmitem sucessivamente no Espao, deve haver, pois, um presente perptuo para as vistas escalonadas nesse Espao, at um limite fronteirado apenas pela extenso da viso espiritual. LUMN - Sim, meu amigo. Coloquemos, por exemplo, um primeiro observador na distncia da Lua: ele se
aperceber dos fatos terrestres um segundo e 1/4 depois de ocorridos. Situemos um outro em distncia qudruplo; esses acontecimentos sofrero uma demora de 5 segundos. Um terceiro os ver com a diferena de 10 segundos. A uma distncia dupla ainda da precedente, o quarto observador os distinguir com o intervalo de 20 segundos. E assim sucessivamente. distncia do Sol, j existe uma diferena de 8 minutos e 13 segundos. Com relao a certos planetas, a demora ser de muitas horas, conforme assinalamos j. Mais longe, so necessrios dias inteiros. Para alm ainda, meses, mais de um ano. Das estrelas mais prximas, s se percebem os acontecimentos terrqueos um, dois lustros depois de realizados. H estrelas bastante longnquas, as quais a luz atinge com o retardo de alguns sculos, e mesmo em dezenas de sculos. Nebulosas existem onde a luz chega somente depois de uma viagem de milhes de ciclos anuais. Querens - De sorte que, para ser testemunha de ocorrncias histricas ou geolgicas dos tempos passados, bastaria que esses observadores fastassem suficientemente. No se poderia rever verdadeiramente o dilvio, o paraso terrestre, Ado e. . . LUMN - J vos disse, meu velho amigo, que a chegada do Sol ao hemisfrio pe em fuga os Espritos. Uma segunda palestra permitir aprofundar melhor um assunto do qual s vos pude apresentar hoje o esquema geral, e que frtil em novos horizontes. As estrelas me chamam, e j desapareceram. Adeus, Quaerens, adeus.
Quaerens - As revelaes interrompidas pela aurora, LUMN, deixaram, desde ento, minha Alma vida de penetrar mais fundo o singular mistrio. De igual modo que a criana, a quem se mostrou um fruto saboroso, deseja nele meter gulosamente os dentes, e quando prova mais deseja assim minha curiosidade procura novos jbilos nos paradoxos da Natureza. E' acaso temerria indiscrio submeter-vos algumas questes complementares que meus amigos me comunicaram, desde o dia em que os fiz participantes da nossa conversao? E posso pedir continueis a narrativa das vossas impresses de alm-Terra? LUMN - No posso, meu amigo, consentir em tal curiosidade. Embora perfeitamente disposto que seja vosso Esprito para bem receber minhas palavras, estou persuadido, no obstante, de que as particularidades do meu assunto no vos tocaram harmonicamente, no tiveram todas aos vossos olhos a evidncia da realidade. Acusou-se de mstica a minha narrativa. No se compreendeu que aqui no existe romance, nem fantasia, e sim uma verdade cientfica, um fato fsico, demonstrvel e demonstrado, indiscutvel, e que to positivo quanto a queda de um aerlito ou a translao de um
projtil de canho. O motivo que vos impediu, a vs outros, de bem apreender a realidade do fato, reside em que o caso se desenrola fora da Terra, numa regio estranha esfera de vossas impresses, e no acessvel aos sentidos terrestres. E natural que no compreendais (perdoai minha franqueza, mas no mundo espiritual predomina a franqueza: os pensamentos so mesmo visveis). S compreendeis o que pertence ao mundo das vossas impresses. E porque estais propensos a ter por absolutas as vossas idias a respeito do Tempo e do Espao, que so relativas, tendes o entendimento fechado s verdades que residem fora da vossa esfera, e que no se acham em correspondncia com as vossas faculdades orgnicas terrestres. Assim, meu amigo, eu vos prestarei meritrio servio, prosseguindo a narrativa das minhas observaes extraterrqueas. Quaerens - No por esprito de curiosidade, crde-me sinceramente, LUMN ! que me permito evocar-vos do alto do mundo invisvel, onde as Almas superiores devem fruir inenarrveis jbilos. Compreendi, melhor do que a vossa acusao o admite, a grandeza do problema, e sob a inspirao de uma avidez estudiosa que procuro aspectos mais novos ainda do que os precedentes (se assim me posso expressar) ou, melhor, mais grandiosos e mais difceis de compreender ainda. A. fora de refletir, cheguei a crer que quanto sabemos - nada, e o que ignoramos - tudo. Estou, pois, disposto a tudo acolher, e, por isso, vos peo: deixai-me partilhar das vossas impresses. LUMN - Em verdade, meu amigo, eu vo-lo asseguro, ou no estais muito disposto a entend-Ias, ou estais. No
primeiro caso, no as compreendereis; na segunda hiptese, sereis mui crdulo, e no lhes apreciareis o valor. Por isso, volto... Quaerens - O meu companheiro querido dos dias terrestres!... LUMN - Alm de tudo, os fatos que eu teria de narrar so muito mais extraordinrios do que os precedentes. Quaerens - Eu sou a semelhana de Tntalo no centro do seu lago, na mesma condio dos Espritos do vigsimoquarto canto do Purgatrio, igual aos braos estendidos para os pomos odorantes das Hesprides, na nsia do desejo de Eva... LUMN - Algum tempo depois da minha partida da Terra, os olhos de minha Alma se voltaram melancolicamente para esta ptria, quando atento exame sobre a interseo do 45 graus de latitude boreal e do 35. de longitude mostrou-me um cinzento tringulo de terra firme, acima do mar Negro, ao bordo do qual, ao oeste, um triste grupo de pobres irmos meus terrestres se entrematavam encarniadamente. Entreguei-me a meditao sobre a barbrie dessa instituio, pseudo-gloriosa - a Guerra, que ainda pesa sobre vs outros, e reconheci que nesse recanto da Crimeia sucumbiam oitocentos mil homens, ignorando a causa do seu mtuo massacre. Nuvens passaram sobre a Europa. Estava agora, no em Capela, mas no Espao, entre essa estrela e a Terra, na metade da distncia de Vega, e, sado da Terra desde algum tempo, eu me dirigia a um monto de estrelas que se distingue, da vossa ptria, esquerda do astro precedente. Meu pensamento, no entanto,
de tempos a tempos retornava para a Terra. Um pouco depois da observao de que falei, meu olhar, incidindo sobre Paris, foi surpreendido ao ver a Capital presa de uma insurreio popular. Examinando com ateno acurada, divisei barricadas nos bulevares, prximo da Prefeitura Municipal, nas ruas extensas, e cidados alvejando-se mutuamente a golpes de fuzil. A primeira idia que me ocorreu foi a de que uma nova revoluo se processava a meus olhos, e que Napoleo III fora derrubado do trono imperial; mas, por uma correspondncia secreta das Almas, minhas vistas foram atradas para certa barricada do arrabalde de Santo Antnio, na qual estava estendido o arcebispo Denis-Auguste Affre, que eu conhecera ligeiramente. Seus olhos extintos miravam, sem ver, o cu onde me encontrava; sua mo segurava um galho verde. Estavam, pois, ante mim os dias de 1848, e em particular o 25 de Junho. Alguns instantes (ou horas, talvez) se escoaram, durante os quais minha imaginao e meu raciocnio buscaram, pela ordem natural, a explicao de tal fato particular: ver 1848 - depois de 1854, quando meu olhar, de novo atrado para a Terra, assinalou uma distribuio de bandeiras tricolores, em extensa praa da cidade de Lio. Procurando distinguir a personagem oficial que fazia tal distribuio, consegui identificar os uniformes, e recordei-me de que, depois da ascenso de Lus Filipe, o jovem Duque de Orlees havia sido enviado a aplacar as agitaes da capital da indstria francesa. Conclui-se disso que, aps 1854 e 1848, estava diante do meu olhar um acontecimento ocorrido em 1831. Pouco mais tarde, minha viso incidiu sobre Paris em dia de festa. Gordo rei, de abdmen proeminente, face
rubicunda, era conduzido em caleche suntuosa, e atravessava nesse momento a Ponte-Nova. O tempo era magnfico. Jovens vestidas de branco estavam dispostas, qual corbelha de alvos lilases, sobre o terrapleno da ponte. Estranhos animais, coloridos de nuanas claras, corriam ao longo de Paris. Era evidentemente a reentrada dos Bourbons em Frana. Eu no teria compreendido esta ltima particularidade, se no houvesse recordado que, em tal ocasio, tinham sido lanados para os ares artsticos bales em forma de animais. Vistos do alto do cu, pareciam correr desajeitadamente sobre os telhados das casas. Rever um acontecimento transcorrido, eu compreendia, explicando-o pelas leis da luz; mas, rever esses eventos em sentido contrrio sua ordem real, eis o que me parecia fantstico, e mergulhava o meu entendimento numa estupefao crescente. No entanto, estando os fatos diante dos meus olhos, no os podia negar, e excogitava, por isso, qual a hiptese que poderia dar conta de semelhante singularidade. A primeira hiptese foi esta: E sem dvida alguma a Terra que estou vendo, e por um secreto destino, somente de Deus conhecido, a histria de Frana repassa proximamente pelas mesmas fases j atravessadas; a nao avanou at um certo maximum, que acaba de fulgir s vistas maravilhadas dos povos, e eis que retorna rumo das suas origens, por uma oscilao que pode existir, semelhana das variaes da agulha imanada das bssolas, a exemplo dos movimentos dos astros. As personagens que me pareceram ser no momento o Duque de Orlees e Lus XVIII, so talvez outros
prncipes que esto repetindo exatamente quanto os primeiros fizeram. Tal hiptese, todavia, me pareceu pouco verossmil, e me detive em outra mais racional. Dada a multido de estrelas e de planetas que gravitam em torno de cada uma delas, perguntava-me eu, qual a probabilidade para que se encontre no Espao um mundo exatamente igual Terra ? O clculo das probabilidades responde a esta questo. Quanto maior o nmero dos mundos, maior ser a probabilidade de que as foras da Natureza hajam dado origem a uma organizao semelhante terrestre. Ora, o nmero exato dos mundos ultrapassa toda a numerao humana escrita ou passvel de ser escrita. Se compreendemos o Infinito, ser-nos- talvez permitido dizer que esse nmero - infinito. Da concluir eu que h mui alta probabilidade em favor da existncia de muitos mundos exatamente semelhantes a Terra, superfcie dos quais se realiza a mesma histria, a mesma sucesso de acontecimentos, e que se acham habitados pelas mesmas espcies vegetais e animais, a mesma Humanidade, os mesmos homens, as mesmas famlias, identicamente. Perguntei-me, em segundo lugar, se tal mundo, sendo anlogo Terra, no lhe poderia ser simtrico. Aqui ingressava eu na geometria e na teoria metafsica das imagens. Cheguei a admitir possvel que o mundo em questo fosse semelhante Terra, mas todavia inverso. Quando vos examinais diante de um espelho, vereis que o anel-aliana (de casamento), posto na mo direita, passou
para o dedo anular da mo esquerda, o que modifica o seu smbolo; que, se piscais o olho direito, o ssia piscar o esquerdo; que, se estendeis o brao direito, vossa imagem esticar o brao esquerdo. E impossvel, pois, que, na infinidade de astros, exista um mundo exatamente inverso do orbe terrqueo? Seguramente, em uma infinidade de mundos, o impossvel, ao contrrio, seria no existir tal mundo, e mais facilmente milhares em vez de um. A Natureza dever ter-se no s repetido, reproduzido, mas ainda desempenhado, sob todas as formas, o papel da Criao. Pensei, pois, que o mundo onde via essas coisas no era a Terra, e sim um globo semelhante, cuja histria era precisamente o inverso da vossa. Quaerens - Tive tambm a idia de que podia ser assim. Mas, no vos foi fcil ter a certeza do acontecimento, e constatar se tratava da Terra, ou se outro astro se achava sob vossa vista, examinando a respectiva posio astronmica? LUMN - Foi o que fiz sem tardana, e tal exame me confirmou a minha idia. O astro onde acabava de aperceber quatro fatos anlogos a outros tantos acontecimentos terrestres, porm inversos, no me pareceu estar na mesma posio primitiva. A pequena constelao do Altar no existia mais, e desse lado onde vos recordais me aparecera a Terra no meu primeiro episdio, havia um polgono irregular de estrelas desconhecidas. Fiquei, assim, na persuaso de que no era a nossa Terra sob o meu olhar; a dvida no me foi mais possvel e persuadi-me de haver por terreno de observao um mundo muito mais curioso, de vez que no
era a Terra, e sua histria parecia representar, em ordem inversa, a histria do nosso mundo. Alguns acontecimentos, verdade, no me pareceram ter o respectivo correspondente na Terra; mas, em geral, a coincidncia foi muito notvel, tanto mais quanto meu desapreo aos falsos instituidores da guerra me havia feito esperar que tal burlesca e desalmada loucura no existisse em outros mundos, e que, ao contrrio, a mor parte dos sucessos por mim testemunhados eram ainda combates ou preparativos. Depois de uma batalha que me pareceu muito semelhante de Waterloo, vi a das Pirmides. Um ssia de Napoleo imperador se tornara Primeiro Cnsul, e vi a Revoluo suceder ao Consulado. Algum tempo decorrido, notei a praa do castelo de Versalhes repleta de carruagens de luto e, em um atalho aberto de Ville-d'Avray, reconheci o lento caminhar do botnico Joo Jaques Rousseau, o qual sem dvida, nesse momento, filosofava sobre a morte de Lus XV. O acontecimento que mais feriu minha ateno foi, em seguida, uma das festas de gala do comeo do reino de Lus XV, dignas sucessoras das da Regncia, nas quais o Errio da Frana escorria em prolas de gua por entre os dedos de trs ou quatro cortess adoradas. Vi Voltaire, em gorro de algodo, em seu parque de Ferney, e mais tarde Bossuet passeando no pequeno terrao do seu palcio episcopal de Meaux, no distante da colina cortada em nossos dias pela via-frrea, mas no distingui o menor trao desta indstria. Nessa mesma sucesso de acontecimentos, via os caminhos repletos de carros-diligncia, e sobre os
mares vastos navios de vela. O vapor havia desaparecido, com todas as usinas que move em nossos dias. O telgrafo estava aniquilado, e bem assim todas as aplicaes da eletricidade. Os bales, que se tinham mostrado de tempos a tempos em meu campo de observao, se haviam perdido, e o ltimo que eu vira fora o globo informe aerizado em Annonay, pelos irmos Montgolfier, em presena dos Estados-Gerais. A face do mundo estava transformada. Paris, Lio, Marselha, o Havre, Versalhes notadamente, estavam irreconhecveis. Aquelas primeiras haviam perdido seu imenso movimento; a ltima tinha ganho um brilho incomparvel. Eu me havia formado uma idia incompleta do esplendor realengo das festas de Versalhes; estava agora satisfeito por assistir a uma, e no foi sem interesse que reconheci Lus XV, em pessoa, no esplndido terrao do Oeste, rodeado de mil senhores enfitados. Era de tarde; os derradeiros fulgores de um ardente Sol se reverberavam na fachada palaciana, e casais galantes desciam gravemente os degraus da escadaria de mrmore, ou se inclinavam rumo das alamedas silenciosas e sombrias. Minha vista se limitava de preferncia sobre a Frana, ou pelo menos na regio do mundo desconhecido - que me representava a Frana, porque agradvel estar longe, bastante longe da sua ptria, e nela sonhar sempre, deixando que, a cada vez, a ela retorne o pensamento com jbilo. No creiais que as Almas desencarnadas sejam desdenhosas, indiferentes, libertas de toda recordao; teramos assim bem triste existncia. No. Guardamos a faculdade de nos recordar, e nosso corao no se absorve na vida do Esprito. Foi, pois, com um sentimento
de jbilo ntimo (do qual vos deixo a apreciao) que revi toda a Histria da nossa Frana desenrolar-se, qual se as fases se houvessem positivado em uma ordem inversa. Depois da unificao do povo, vi a soberania de um potentado. Aps isso, a feudalidade dos prncipes Mazarin, Richelieu, Lus XIII e Henrique IV apareceram-me em SaintGermain. Os Bourbons e os Guises recomearam para mim as suas escaramuas; acreditei distinguir a matana de So Bartolomeu. Alguns fatos particulares da histria de nossas provncias reapareceram, tal, por exemplo, uma cena de diabruras de Chaumont, que tive ocasio de observar diante da igreja de S. Joo, e o massacre dos Protestantes em Vassy. Comdia humana! muitas vezes tragdia! Subitamente, vi erigir-se no Espao o cometa magnfico, em forma de sabre, de 1577. Em um plano brilhantemente adornado, divisei Francisco I e Carlos V saudando-se. Lus XI me apareceu sobre um terrao da Bastilha, acompanhado das suas duas sombras pandilheiras. Mais tarde, meus olhos, voltando-se para uma praa de Ruo, distinguiram forte fumarada e chamas; no meio delas, consumia-se o corpo de Joana d'Arc, a virgem de Orlees. Na persuaso de que esse mundo era a exata contrapartida da Terra, eu adivinhava de antemo os acontecimentos que ia ver. Assim, quando, depois de haver avistado S. Lus, que morria sobre cinzas perto de Tunis, assisti oitava cruzada, depois terceira (onde reconheci Frederico Barbaroxa, com a sua barba), e ainda primeira (na qual Pedro, o Eremita, e Godofredo me recordaram o
Tasso) - senti medocre admirao. Desejei, em seguda, ver, sucessivamente, Hugo Capeto encabear uma procisso em pluvial de oficiante; o conclio de Tauriacum decidir que o julgamento de Deus vai pronunciar-se na batalha de Fontanet, e Carlos, o Calvo, fazer massacrar 100.000 homens e toda a nobreza Merovngia; Carlos Magno coroado em Roma, a guerra contra os Saxes e Lombardos; Carlo Martel - martelando os sarracenos; o rei Dagoberto fazendo edificar a abadia de Saint-Denis, de igual modo que vi o papa Alexandre III colocar a primeira pedra de Notre-Dame; Brunehaut (ou Brunhilde) arrastado, nu, pelas ruas, preso a um cavalo; os Visigodos, os Vndalos, os Ostrogodos, Clvis, Meroveu (ou Merowig), aparecer no pas dos Salienos, - em uma palavra, as origens mesmas da histria de Frana, desenrolando-se em sentido retrospectivo da sua sucesso -, foi efetivamente o que ocorreu. Muitas questes histricas de grande importncia que haviam permanecido obscuras, at ento, foram tornadas visveis para mim. Assim, constatei, entre outras, que os franceses so originrios da margem direita do Reno, e que os alemes nenhuma razo tm para disputar esse rio e principalmente a margem esquerda. Existia em verdade, para mim, um interesse maior - que eu no saberia expressar - em assistir s particularidades de acontecimentos dos quais possua vaga idia formada atravs dos ecos no raro enganadores da Histria, e de visitar pases transformados desde muito tempo. A vasta e brilhante capital da civilizao moderna havia rapidamente envelhecido ao nvel das cidades ordinrias, embora bastilhada de torres
ameadas. Admirei alternativamente a bela cidade do sculo XV, os tipos curiosos da sua arquitetura, a clebre torre de Nesle; os vastos mosteiros de Saint-Germain-des-Prs. L, onde flore agora o jardim da Torre Saint-Jacques, reconheci o ptio sombrio do alquimista Nicolau Flamel. Os telhados redondos e pontudos ofereciam o aspecto bizarro de cogumelos nas bordas de um rio. Depois, essa aparncia feudal havia desaparecido, para abrir lugar a um pesado castelo erguido no meio do Sena, rodeado de algumas choupanas, e, enfim, a uma verdadeira plancie onde se distinguiam apenas algumas choas de selvagens. Paris no existia mais, e o Sena rolava suas guas silenciosas por entre ervas e salgueiros. Ao mesmo tempo, salientei que dessa civilizao o foco se havia deslocado e descido rumo do Sul. Devo confessar-vos? meu amigo! em circunstncia alguma experimentou minha alma um sentimento assim de to vivo jbilo, quanto no momento em que me foi dado ver a Roma dos Cesares em seu esplendor. Era um dia de triunfo, e sem dvida sob os principados sirios, pois, no meio das magnificncias exteriores, de carros luzidos, de auriflamas de prpura, duma assemblia de damas elegantes e de ministros de ribalta, distingui um imperador molemente estendido em amplo e dourado carro, inteiramente vestido de seda clara e coberta de pedrarias, de ornamentos de ouro e prata refulgindo sob o Sol de meio-dia. S poderia ser Heliogbalo, o sacerdote do Sol. O Coliseu, o templo de Antino, os arcos de triunfo, a coluna Trajano estavam erguidos, e Roma se encontrava em toda a sua beleza arqueolgica, derradeira beleza que era apenas uma cena de teatro para coroados. Algo mais tarde,
assisti grandiosa erupo do Vesvio, que sepultou Herculano e Pompia. Por momento, vi Roma em chamas, e, embora no haja podido destacar Nero no seu terrao, persuadi-me de que tinha sob meu olhar o incndio do ano de 64 e o sinal das perseguies crists. Algumas horas decorridas, minha ateno estava presa em examinar os vastos jardins de Tibrio, em Capreia (hoje Capri), e acabava de ver esse imperador chegar perto do tabuleiro de rosas, rodeado de um grupo de mulheres nuas, quando, em consequncia da rotao da Terra, a Judia veio colocar-se sob minhas vistas, que adivinharam imediatamente Jerusalm. Jesus, carregando sua pesada cruz, subia custosamente a colina do Glgota, escoltado por uma tropa de soldados e seguido pela populaa de judeus. Este espetculo um daqueles que jamais esquecerei. Foi para mim bem diferente do que para os assistentes de ento, pois a glria futura (e contudo passada) da Igreja crist se desenrolava, a meu ver, no nivel de uma coroao do divino sacrifcio... No insisto; compreendeis quais os diversos sentimentos que agitaram minha alma nesta observao suprema... Revindo mais tarde rumo de Roma, reconheci Jlio Csar estendido sobre a sua pira, tendo cabeceira Antnio, cuja mo esquerda segurava, creio, um rolo de papiro. Os conjurados desciam apressadamente s bordas do Tibre. Remontando, por legitima curiosidade, vida de Jlio Csar, eu o reencontrei com Vercingtorix no meio dos Gauleses, e pude constatar que de todas as hipteses dos nossos contemporneos a respeito de Alsia, nenhuma acerta com o
lugar verdadeiro, atendendo-se a que essa fortaleza estava situado sobre ... Quaerens - Perdoai minha interrupo, mestre, mas aguardei com empenho a ocasio de vos solicitar um esclarecimento sobre ponto particular do ditador. Uma vez que revistes Jlio Csar, dizei-me, eu vos rogo, se a sua figura se assemelha em verdade que o imperador Napoleo III, que reina atualmente sobre a Glia, nos d na grande obra que escreveu sobre a vida do famoso capito. E verdade que o ditador romano e o general corso tm a mesma cabea, a mesma fisionomia? LUMN - Sim. A semelhana notvel, tanto quanto a semelhana moral, a ponto de me haver perguntado a mim mesmo se Jlio Csar e Napoleo Bonaparte no constituem uma s e nica personalidade em duas reencarnaes diferentes. De qualquer modo que seja, retrocedi de Jlio Csar aos cnsules e aos reis do Lcio, para me deter um instante no rapto das Sabinas, com o que fiquei bastante satisfeito por poder observar diretamente esse tipo de costumes antigos. A Histria aformoseou muitas coisas, e reconheo que a maior parte dos fatos histricos foram totalmente diferentes do que se nos apresentou. Nesse mesmo momento apercebi o rei Candaulo, em Ldia, na cena do banho, que vs conheceis; a invaso do Egito pelos Etopes; a repblica oligrquica de Corinto; a oitava olimpada da Grcia; e Isaas profetizando na Judia. Vi construir as pirmides por levas de escravos, dirigidos por chefes montados em dromedrios. As grandes dinastias da Bactriana e da ndia, eu as vi, e a China me
mostrou as artes maravilhosas que j possua antes mesmo do nascimento do mundo ocidental. Tive oportunidade de perquirir a respeito da Atlntida de Plato, e constatei efetivamente que as opinies de Bailly sobre esse continente desaparecido no so destitudas de fundamento. Na Glia, s se distinguiam vastas florestas e pntanos, os prprios druidas haviam desaparecido, e os selvagens dali muito se pareciam aos que ainda hoje habitam na Ocenia. Era bem a idade da pedra reconstituda pelos arquelogos modernos. Mais tarde ainda, vi que o nmero de homens diminua pouco a pouco, e que o domnio da natureza perecia pertencer a uma grande raa de smios, ao urso das cavernas, ao leo, hiena, ao rinoceronte. Chegou momento em que me foi impossvel distinguir sequer um nico homem na superfcie do mundo, nem mesmo o menor vestgio da raa humana. Tudo havia desaparecido. Os tremores de terra, os vulces, os dilvios pareciam assenhoreados da superfcie planetria - no permitindo a presena do homem em meio de tais runas. Quaerens - Confessar-vos-ei, LUMN, aguardar com impacincia o momento de vossa chegada ao Paraso terrestre, a fim de saber de que forma se apresenta a criao da raa humana sobre a Terra. Estou at surpreso de no haverdes parecido cogitar de to importante observao. LUMN - Eu vos relato nica mente quanto vi, meu curioso amigo, e guardar-me-ei bem de substituir os testemunhos dos meus olhos pelas fantasias da imaginao. Ora, no vislumbrei qualquer remoto trao desse den to poticamente descrito pelas teogonias primitivas. Alm
disso, seria bem extraordinrio que a semelhana do mundo que eu tinha sob os olhos e a Terra chegasse at elas, tanto mais quanto, se o paraso terreal tem sua razo de ser no bero da Humanidade, nas graciosas lendas orientais, no vejo em que ele possa ter a mesma razo nos fins da socielade humana. Quaerens - Creio, ao contrrio, que seria mais justo sup-lo ligado aos fins do que ao comeo, em resultado e recompensa, do que em forma de preldio incompreendido, de uma vida de sofrimento. Mas, de vez que no vistes o den, no insisto no assunto. LUMN - Chegou, enfim, ao trmino da observao desse mundo singular, cuja histria era precisamente o inverso da vossa, a ocasio de ver animais fantsticos de monstruosidade combatendo-se nas praias de vastos mares. Serpentes gigantes, armadas de patas formidveis; crocodilos que voavam nos ares, agitando asas orgnicas mais longas que o seu prprio corpo, peixes disformes, cuja guela teria deglutido um touro; aves de rapina, travando terrveis batalhas nas ilhas devastadas. Continentes inteiros, cobertos de vastas florestas; rvores de folhagem enorme cresciam umas sobre as outras, vegetais sombrios e severos, porque o reino vegetal ainda no possua ento nem flores, nem frutos. As montanhas vomitavam cascatas inflamadas; os rios tombavam em cataratas; o solo dos campos abria-se em forma de fauces profundas, deglutindo colinas, bosques, ribeiros, arvore, animais. Bem depressa, impossvel se me tornou distinguir mesmo a superfcie do Globo; um mar universal parecia cobri-lo, e o reino vegetal, e assim tambm
o animal, se apagaram lentamente para dar posto a montonas verduras lavradas de brilhos e fumaas brancas. Era desde ento um mundo agonizante. Assisti s derradeiras pulsaes do seu corao, reveladas por fulvos clares intermitentes. Pareceu-me depois que chovia simultaneamente sobre a superfcie inteira, pois o Sol no iluminava mais que nuvens e goteiras de chuva. O hemisfrio oposto ao Sol pareceu-me menos sombrio do que antes, e apagadas claridades se deixavam aperceber atravs das tempestades. Esses clares ganharam intensidade e se propagaram sobre a esfera total. Amplas fendas apareciam vermelhas, lembrando o ferro em brasa das forjas. E porque o ferro sucessivamente queimado na ardente fornalha se torna vermelho-claro, depois alaranjado, em seguida amarelo, passando a branco e incandescente - assim o mundo passou por todas as fases do aquecimento progressivo. Seu volume aumentou; o movimento de rotao foi mais lento. O globo misterioso ficou semelhante a uma esfera imensa de metal fundido, envolta de vapores minerais. Sob a ao incessante da sua fornalha interior e dos combates elementares dessa estranha qumica, adquiriu propores enormes, e a esfera de fogo passou a esfera de fumaa. Desde ento, iria desenvolvendo-se sem cessar e perdendo a personalidade. O Sol, que primitivamente a iluminava, no a ultrapassava mais em brilho, e ela prpria agrandou a sua circunferncia de tal modo que se tornou evidente, para mim, estar o planeta vaporoso destinado a perder a sua existncia mesma por efeito de reabsoro na atmosfera crescente do Sol .
Assistir a um fim de mundo ocorrncia rara. Por isso, em meu entusiasmo, pensava comigo mesmo, com uma espcie de vaidade: Eis, pois, um fim de mundo, Deus! e eis o destino reservado s inumerveis terras habitadas! - No o fim, respondeu uma voz minha idia intima o comeo. - Qu! E' o comeo? pensei eu em seguida. - O princpio da Terra mesma, respondeu a mesma voz. Tu reviste toda a histria da Terra, distanciando-te dela com velocidade superior da luz. Tal afirmao no me surpreendeu mais do que o primeiro episdio da minha vida ultra-terrestre, pois, j familiarizado com os efeitos chocantes das leis da luz, estava desde ento preparado para toda a nova surpresa. Eu havia duvidado do fato por certos detalhes que no vos pude narrar, para no perturbar a unidade da minha exposio, porm, sem embargo, incomparavelmente mais extraordinrias ainda do que a sucesso geral dos acontecimentos. Quaerens - Mas, se tratava realmente da Terra, como se explica que a vossa observao astronmica, feita antes para reconhecimento na constelao do Altar, vos haja indicado, ao contrario, que o mundo por vs examinado no era a Terra, nem uma estrelinha do Altar? LUMN - E que essa constelao, em conseqncia da minha viagem no Espao, havia mudado de posio. Em lugar das estrelas de terceira grandeza e das de quarta que constituem essa figura (vista da Terra), meu distanciamento rumo da nebulosa havia reduzido tais astros a pequenos pontos imperceptveis. Estavam l outras estrelas brilhantes,
sem dvida alguma do Cocheiro, estrelas diametralmente opostas s precedentes, quando se observa da Terra, mas que se interpuseram quando foram por mim transpostas. As perspectivas celestes haviam mudado, j, e impossvel quase se tornava determinar a posio do nosso Sol. Quaerens - No tinha pensado nessa inevitvel mudana de perspectivas para alm de Capela. Assim sendo, tratava-se mesmo da Terra vossa vista. Demais, sua histria se desenrolou em sentido inverso da realidade. Vistes os velhos acontecimentos chegando depois dos fatos modernos. Por que processos pde a luz fazer-vos assim subir o rio do Tempo? Alm disso, LUMN, dissestes haver observado particularidades curiosas relativas prpria Terra. Desejaria particularmente formular algumas questes a respeito de tais detalhes. Ouvirei, pois, com interesse, as histrias extraordinrias que devem completar esta narrativa, persuadido de que, tal qual ocorreu anteriormente, elas respondero antecipadamente minha curiosidade.
II
Quaerens - Ningum melhor do que eu recorda essa catstrofe, pois recebi uma bala na espdua, perto do MontSaint-Jean, e um golpe de sabre em cima da mo direita, vibrado por um dos biltres de Blcher. LUMN - Pois bem, meu velho camarada, assistindo de novo a essa batalha, eu a vi de modo diferente daquele pelo qual se desenrolou. Julgareis disso bem depressa. Quando reconheci o campo de Waterloo, ao sul de Bruxelas, divisei primeiramente um considervel nmero de cadveres, sinistra assemblia da morte deitada sobre o cho. Ao longe, por entre o nevoeiro, lobrigava-se Napoleo chegando em recuo, com o seu cavalo seguro pela rdea; os oficiais que lhe faziam sqito marchavam igualmente retrocedendo! Alguns canhes deveriam comear o seu ribombo, pois, de tempo em tempo, eram vistas as tristes luzes dos seus clares. Quando a minha vista se aclimatou suficientemente ao panorama, vi, em primeiro lugar, que alguns soldados mortos despertavam, ressuscitavam da noite eterna, e se levantavam de um s movimento! Grupos a grupos, um grande nmero ressuscitou. Os cavalos mortos despertaram tal qual os cavaleiros, e estes remontaram nos bucfalos. To logo dois ou trs mil desses homens voltaram vida, eu os vi formarem em perfeita linha de batalha; as duas hostes se defrontaram e comearam batendo-se com encarniamento, furor mesmo, que quase se poderiam tomar por desespero. Uma vez iniciada a luta pelas duas partes, os soldados ressuscitavam mais rapidamente: Franceses, Ingleses, Prussianos, Hanoverianos, Belgas; capotes cinzentos, uniformes azuis, tnicas vermelhas, verdes,
brancas, levantam-se do exrcito francs, distingui o imperador; um batalho em quadrado o envolvia: a GuardaImperial havia ressurgido! Ento, os imensos batalhes avanaram dos dois campos, precipitando suas pesadas ondas humanas: da esquerda e da direita entrecruzaram-se os esquadres. Os cavalos brancos faziam flutuar ao vento sua area crina. Recordo o estranho desenho de Raffet e recordo-me do epigrama espectral do poeta alemo Sedlitz: Rufa o tambor estranhamente, com toda a fora o som ressoa; por essa fora ressuscitam quantos soldados l morreram. E deste outro: E a grande revista que, em ponto de meia-noite, tenta nos Campos Elseos o Csar j falecido. Era bem Waterloo, mas um Waterloo de alm-tmulo, porque os combatentes eram ressuscitados. Afora isso (singular miragem), marchavam em recuo uns contra os outros. Uma tal batalha produziu efeito mgico, que me impressionava, tanto mais fortemente, porque eu imaginava ver o autntico acontecimento e esse se apresentava estranhamente transformado na sua imagem simtrica. Detalhe no menos singular: quanto mais se combatia, mais o nmero de lutadores aumentava; a cada claro aberto pelo canho nas fileiras cerradas, um grupo de mortos ressuscitava imediatamente para preencher falhas. Depois que as tropas escoaram o dia a estraalhar-se pela metralha, canhes, balas, baionetas, sabres, espadas; quando a imensa batalha terminou, no havia um s morto, um nico ferido;
os uniformes, h pouco rasgados ou em desordem, voltaram a bom estado, os homens se tornaram vlidos; as fileiras corretamente formadas. Os 340.000 soldados que constituam os dois exrcitos se afastaram lentamente, um e outro, tal qual se a ardente peleja no houvesse tido outro fim que fazer ressuscitar, sob a fumaa do combate, os cem mil cadveres e feridos jacentes no plano algumas horas antes. Que batalha exemplar e digna de inveja! Infalivelmente, estava ali o mais singular dos episdios militares. E o aspecto fsico fora sobrepujado pelo aspecto moral, quando refleti que tal batalha tivera em resultado, no o vencer Napoleo, mas, ao contrrio, p-lo sobre o trono. Em vez de perder a pugna, o imperador a ganhara, e de prisioneiro se tornou soberano. Waterloo fora um 18 brumrio!. Quaerens - S compreendo metade, Lumen! esse novo efeito das leis da luz, e muito vos agradeceria se me dsseis mais clara explicao, caso a tenhais apreendido. LUMN - Eu vo-la deixei adivinhar, h pouco, ao dizer-vos que me distanciava da Terra com uma velocidade maior do que a da luz. Quaerens - Explicai-me, porm, de que maneira esse distanciamento progressivo no Espao vos mostrou os acontecimentos em ordem inversa daquela em que se realizaram? LUMN - A teoria bem simples. Suponde que partis da Terra com uma velocidade exatamente igual da luz; tereis sempre convosco o aspecto que a Terra apresentava no
instante da vossa partida, por isso que vos afastais do globo com a velocidade igual que leva esse cenrio atravs do Espao. Ainda mesmo que viajsseis durante dez ou cem sculos, tal aspecto vos acompanharia sempre, semelhana de um retrato que nunca envelhecesse, apesar do tempo encanecer o original dessa fotografia. Quaeren - Esse fato eu j o compreendi em nossa primeira palestra. LUMN - Bem. Suponhamos agora que vos distanciais da Terra com uma velocidade superior da luz. Que acontecer? Encontrareis, medida que avanardes no Espao, os raios sados antes de vs, isto , as fotografias sucessivas que, de instantes em instantes, se evolam para a imensido. Se, por exemplo, partis em 1867, com a velocidade idntica da luz, olhareis eternamente esse panorama de 1867; se, porm, marchais mais rpido, ireis contemplando os raios de luz que partiram em cada ano anterior e levam gravada a fotografia respectiva de cada tempo. Para melhor pr em evidncia a realidade desse fato, peo aprecieis raios luminosos sados da Terra em diferentes pocas O primeiro ser o de um momento qualquer do primeiro dia de Janeiro de 1867. A razo de 300.000 quilmetros por segundo, ter, no instante em que vos falo, feito um certo percurso desde a ocasio da sua passagem pela Terra, e se encontra agora a uma determinada distncia, que exprimirei pela letra A. Consideremos a seguir outro sado um sculo antes, em 1 de Janeiro de 1767: levar dez decnios de avano sobre o primeiro, e se encontrar a um
longitude muito maior, distncia que designarei pela letra B. Terceiro raio, que localizo em 1 de Janeiro de 1667, estar ainda riais longe, num trajeto igual ao que percorre a luz em 36525 dias. Chamarei C o local onde se encontrar esse terceiro raio. Enfim, um 4., 5., 6. correspondero, respectivamente, a 1 de Janeiro de 1567, 1467, 1367, etc., e estaro escalonados a distncias iguais, D. E. F. mergulhados cada vez mais no infinito. Eis, pois, uma srie de fotografias terrestres em degraus da mesma linha, de distncia em distancia, no Espao. Ora, o Esprito que se afasta, passando sucessivamente pelos pontos A. B. C. D. E. F., neles encontrar, sucessivamente tambm, a histria secular da Terra em tais pocas. Quaerens - Mestre! a que distncia estaro essas fotografias umas das outras? LUMN - O clculo dos mais fceis; o intervalo que as separa corresponde ao percorrido pela luz durante um sculo. Ora, razo de 300.000 quilmetros por segundo, vereis que viajou 18 milhes em um minuto, mil e oitenta milhes em uma hora, vinte cinco bilhes novecentos vinte trs milhes e duzentos mil em um dia, nove mil trilhes quatrocentos e sessenta e sete bilhes duzentos oitenta milhes em um ano, tendo em conta os bissextos. Disso se conclui, em conseqncia, que o intervalo entre dois pontos que guardam um sculo de distncia ser de 946 trilhes e 728 bilhes de quilmetros aproximadamente. Eis, disse eu, uma srie de fotografias terrestres escalonadas no Espao a intervalos respectivos. Suponhamos agora que entre cada uma dessas imagens seculares se
encontram escalonadas, a seu turno, as imagens anuais, guardando entre cada uma a distncia que a luz percorre em um ano, e a que venho de me referir; e pois que de permeio a cada imagem anual temos as de cada dia; e pois que cada dia contm as das horas e cada hora, afinal, a imagem dos seus minutos, e estes a dos segundos que os formam, e o todo sucedendo-se de acordo com a distncia correspondente a cada um deles; teremos em um raio de luz, ou, para melhor dizer, em um jato de luz composto de uma srie de imagens distintas, justapostas, a inscrio csmica da histria da Terra. Quando o Esprito viaja nesse raio etreo de imagens com velocidade superior da luz, encontra sucessivamente as antigas. Chegando distncia onde se acha ento o aspecto partido em 1767, j remontou a um sculo de histria terrestre. Atingindo o ponto no qual encontra o panorama de 1667, ter alcanado dois sculos. Quando chega fotografia de 1567, o Esprito j reviu trs sculos, e assim por diante. Eu vos disse, de incio, dirigir-me ento a um monto de estrelas situado esquerda de Capela. Esse conjunto se enconta a uma longitude incomparavelmente maior do que a da prpria estrela, embora da Terra parea estar ilharga, por isso que os dois raios visuais so vizinhos. Tal proximidade aparente devida apenas perspectiva. Para vos dar idia do distanciamento provvel desse longnquo universo, direi no ser ele menos vasto do que a Via-Lctea. Pode-se assim imaginar a que distncia seria preciso transportar a ViaLctea, para que ficasse reduzida ao aspecto daquela nebulosa. Meu sbio amigo, Arago, fz tal clculo (que no
ignorais, pois ele o repetia em cada ano do seu curso no Observatrio, e foi publicado postumamente). Seria necessrio supor a Via-Lctea mudada a uma distncia igual a 33 vezes a sua extenso. Ora, despendendo a luz 150 sculos na travessia de Via-Lctea - de um extremo ao outro, a concluso que dever empregar 334 vezes 150 sculos, sejam mais de 50.000 sculos para vir de l. Eu havia remontado o raio da Terra at essas remotas regies, e, se a minha viso espiritual fosse mais perfeita, eu teria podido distinguir, no somente a histria retrospectiva (5) de cem ou mil sculos, mas ainda a de cinqenta mil sculos. Quaerens - O Esprito pode, pois, pela sua prpria potncia, atravessar todo gnero de espaos incomensurveis dos cus? LUMN - Pelo seu prprio poder, no, mas servindo-se das potncias da Natureza. A atrao uma dessas energias. Ela se transmite com velocidade muitssimo superior da luz, e as teorias astronmicas - as mais rigorosas - so foradas a considerar tal transmisso no nvel de quase instantnea. Acrescentarei que, se pude apreender os acontecimentos de tais longitudes, isso no foi pela apreciao visual fsica que vs conheceis, e sim por um processo diferente, mais sutil, e que pertence ordem psquica. Os movimentos etreos constitutivos da luz no so luminosos eles prprios, vs o sabeis. Um rgo visual no necessrio para os perceber. Vibrando a Alma sob sua influncia, percebe-os to bem (e muitas vezes incomparavelmente melhor) quanto um aparelho de ptica orgnica. E' de ptica psquica. Assim, por exemplo, a
atrao atinge instantaneamente os cento e quarenta e nove milhes de quilmetros que separam a Terra do Sol, enquanto que a luz emprega para isso 493 segundos. Quaerens - Quanto tempo dura tal viagem, rumo desse universo longnquo? LUMN - No percebestes j que o tempo no existe, fora do movimento da Terra? Que eu haja empregado um ano ou uma hora em tal exame, a mesma durao ante o infinito. Quarens - Eu havia pensado isso: as dificuldades fsicas me parecem enormes. Permitis agora, que vos submeta uma estranha idia que me surgiu no crebro? LUMN - E precisamente para atender s vossas reflexes que vos fao estas narrativas. Quaerens - Eu me perguntava se essa mesma inverso poderia ter lugar para o ouvido tal qual para a vista; se, podendo ver um acontecimento ao avesso da sua realidade, seria possvel ouvir um discurso - comeando pelo fim. E sem dvida uma questo frvola e talvez de aparncia ridcula, mas, no terreno do paradoxo, por que estacar? LUMN - O paradoxo apenas aparente. As leis do som diferem essencialmente das da luz. O som percorre somente 340 metros por segundo, e seus efeitos nada tm em absoluto de comum com os da luz. Todavia, evidente que, se avanamos no ar com uma velocidade superior do som, ouviremos ao inverso os sons sados dos lbios de um interlocutor. Se, por exemplo, este recitasse um alexandrino, o audiente, distanciando-se com a predita rapidez - a partir do instante em que ouvisse a ltima slaba, encontraria
sucessivamente as outras onze - pronunciadas antes - e ouviria o verso ao avesso. Quanto teoria em si, ela nos inspira uma reflexo curiosa, e que a Natureza teria podido fazer com que o som no percorresse 340 metros por segundo, e sua velocidade, dependente da densidade e elasticidade do ar, fosse diversa do que , mais lenta, muito mais demorada mesmo. Porque, por exemplo, no se transmite ele no ar com a velocidade de alguns centmetros apenas por segundo? Ora., vede que resultaria, se assim fosse. Os homens no se poderiam falar, andando. Dois amigos, em palestra; um d um passo, dois passos frente, distanciando-se cem centmetros, suponhamos. E porque o som empregaria muitos segundos para transpor esse metro, resultaria que, ao invs de ouvir a continuao da frase pronunciada pelo amigo, o avanado ouviria de novo, em ordem inversa, os sons constitutivos das frases anteriores. Que mal, se no se pudesse conversar, caminhando, e que trs quartas partes das criaturas no se pudessem entender? Estes reparos, meu amigo, me tentam, relativamente s vossas meditaes, a um assunto bem digno de ateno e do qual muito pouco se h cogitado at aqui: a adaptao do organismo humano ao ambiente terrestre. A maneira pela qual o homem vive, e percebe, suas sensaes, seu sistema nervoso, sua estatura, seu peso, sua densidade, sua locomoo, suas funes, em uma palavra, todos os seus atos so regidos, constitudos mesmo, pelo estado do vosso planeta. Nenhuma de vossas aes absolutamente livre, independente: o homem o resultado dcil, ainda que inconsciente, das foras orgnicas da Terra. Sem dvida, no
sendo a alma humana funo do crebro, existindo autnoma, desfruta de liberdade relativa; mas essa liberdade inteiramente ligada s suas faculdades, sua potncia, sua energia; ela se determina segundo as causas que a decidem. Ao nascer de todo homem, aquele que conhecesse exatamente as faculdades dessa alma e as circunstncias que rodeiam essa vida, poderia, por antecipao, escrever tal vida em todos os seus detalhes. O organismo o produto do planeta, mas no em consequncia de uma fantasia divina, dum milagre, de uma criao direta que o homem est constitudo tal qual se encontra. Sua forma, em suma, tem causa no estado do vosso planeta, na atmosfera que respirais, na alimentao que vos nutre, no peso sobre a superfcie da Terra, na densidade dos materiais terrqueos, etc., . O corpo humano no difere, anatomicamente, do de um mamfero superior, e, se remontardes s origens das espcies, encontrareis transformaes graduais estabelecendo, por testemunhos irrecusveis, que toda a vida terrestre, desde o molusco at o homem, o desenvolvimento de uma s e nica rvore genealgica. A forma humana tem por origem a forma animal; o homem a borboleta sada da crislida das idades paleontolgicas. De tal fato resulta a conseqncia de que, nos outros mundos, a vida orgnica difere da existente aqui, e de que as humanidades - resultantes, l tanto quanto aqui, das foras em atividades em cada planeta - sejam absolutamente diversas em suas conformaes da gente terreal. Por exemplo, nos mundos onde no se come, o tubo digestivo e as entranhas desapareceram. Nos mundos fortemente
eletrizados, os seres so dotados de um sentido eltrico. Em outros, a vista constituda de raios ultravioletas e os olhos nada tm de comum com os vossos, nem vem o que vedes, e sim o que no enxergais. Os rgos se acham em relao com as respectivas funes. Quaerens - No somos, pois, o tipo absoluto da Criao? E a Criao , ela mesma, um perpetuo vir a ser, uma resultante, segundo as foras em atividade? LUMN - A prpria Alma se encontra nesse caso. H tanta diversidade entre as Almas quanta entre os corpos. Para que ela exista, na condio de ser independente, com conscincia de si mesma, para que conserve a lembrana de sua identidade e esteja apta para a imortalidade - necessrio que desde esta vida ela saiba que existe em realidade. De outra forma, ter avanado no amanh da morte tanto quanto na vspera, e cair, qual um sopro insensvel, no cego turbilho do Cosmos, na igual condio de qualquer outro centro de fora inconsciente. Muitos homens na Terra blasonam de admitir apenas a - matria (sem saberem, alis, o que esto dizendo, pois no a conhecem), e, alm desses, outros, mais numerosos ainda, que no pensam coisa alguma -, no so imortais, por no terem conscincia da sua existncia. Os Espritos que - vivem - realmente da vida espiritual so apenas os que esto - aptos - para a imortalidade. Quaerens - E so muitos? LUMN - Eis, meu amigo, a aurora que, de novo, me convida a regressar ao seio do Espao - povoado de coisas desconhecidas da Terra, veio fecundo no qual os Espritos
reencontram os salvados das existncias transcorridas, os segredos de muitos mistrios, as runas de mundos destruidos e a gnese de mundos futuros. Seria de resto suprfluo alongar esta narrativa de detalhes inteis. Minha inteno foi mostrar que, para ter o espetculo de um mundo e de um sistema de vida inteiramente opostos ao vosso, basta distanciar-se da Terra com velocidade superior da luz. Nesse arrojo da Alma, rumo dos horizontes inacessveis do infinito, se encontram os raios luminosos refletidos pela Terra e pelos outros planetas desde h milhares e mirades de ciclos anuais, e, observando-se os planetas de to longnqua distncia, pode-se assistir de visu aos acontecimentos da sua histria passada. Assim se sobe o rio do Tempo at suas nascentes, Uma tal faculdade deve iluminar, para vs, de novas claridades as regies da eternidade. Eu me prometo fazer-vos bem depressa conhecer as consequncias metafsicas, se, segundo espero, admitistes o valor cientfico da documentao deste estudo ultraterrestre.
Quaerens - Eu vos escutei com interesse, LUMN! sem estar, eu o confesso, inteiramente persuadido de que tudo quanto tivestes a bondade de me narrar - seja realidade
absoluta. Estou sob a impresso de um possvel vo imaginativo. Em verdade, muito difcil de crer que se possam ver to distintamente todas as coisas. Quando h nuvens, por exemplo, no podeis observar atravs delas o que se passa na superfcie da Terra. O mesmo ocorre do interior das casas. LUMN - Desenganai-vos, meu amigo: as ondulaes do ter atravessam obstculos que podereis supor intransponveis. As nuvens so formas de molculas entre as quais um raio de luz pode muitas vezes passar. E a luz no o que ela parece ser: raios invisveis para os vossos olhos atravessam os corpos opacos, e certos aspectos da Terra poderiam, mesmo atravs das nuvens, levar sua fotografia ao longe no Espao. Tal irradiao um movimento vibratrio do ter; pode ser visto por outro processo que no o exercitar da retina e do nervo ptico. As vibraes do ter so perceptveis por outros sentidos que so os vossos. Se for a derradeira objeo que tendes a fazer, confessemos estar longe de irrespondvel. Quaerens - Tendes particular maneira de resolver todas as dificuldades. Talvez seja isso um privilgio dos seres espirituais. Tive sucessivamente que admitir vosso transporte a Capela, com velocidade superior da luz; que chegastes a um mundo independentemente de reencarnar ali; que vossa Alma permanece liberta de qualquer invlucro corporal; que vossa percepo ultraterrestre bastante poderosa para distinguir desde o alto tudo quanto se passa aqui; que podeis avanar ou recuar no Espao, a vosso arbtrio; enfim, que as prprias nuvens no constituem empecilho a que possais
distinguir a superfcie do nosso globo. Devemos convir que em tudo isso h bem grandes dificuldades para a compreenso. LUMN - Quanto sois terrestre ida, meu velho amigo! e quanto vos surpreendereis agora, se vos demonstrasse a infantilidade dessas objees, e bem assim que quaisquer outras opostas nesse sentido seriam puros efeitos da vossa ignorncia nativa! Que pensareis, se vos dissesse no existir um entre os homens que tenha uma idia, ao menos, do que se passa sobre a face da prpria Terra, e que nenhum compreende a Natureza? Quaerens - Em nome das indiscutveis verdades da cincia moderna, eu ousaria supor ser vossa inteno impor... Lumen - Deus seja louvado! Escutai, meu amigo. As maravilhosas descobertas da cincia contempornea deveriam abrandar a esfera das vossas concepes. Vindes de descobrir a anlise espectral! Pelo exame de modesto raio de luz lanado de longnqua estrela, constatais que elementos constituem essa estrela inacessvel e lhe alimentam o fulgor. A est, meu jovem irmo espiritual, um acontecimento mais estupendo - por si s do que todas as conquistas dos Alexandres, dos Csares, dos Napolees; do que todas as descobertas dos Ptolomeus, dos Colombos, dos Gutenbergs ; do que todas as bblias dos Moiss, dos Confcio, dos Jesus Pois qu! imensidades cavam abismos que vos separam de Srio, Arcturus, Vega, Capela, de Castor o Plux, e vs analisais as substncias constitutivas desses sis, parecendo que os pegais nas mos e os submeteis ao cadinho do laboratrio. E vos recusais a admitir que, por processos de
vs desconhecidos, a viso da Alma possa apreender, por ela mesma, o aspecto luminoso de um mundo distante e nele distinguir os mnimos detalhes? O telegrafo leva em um instante inaprecivel vosso pensamento da Europa Amrica atravs dos abismos do Oceano; dois interlocutores conversam em voz baixa a milhares de quilmetros de distncia, e no quereis admitir minhas comunicaes somente porque no as compreendeis de todo, completamente? E compreendeis - de que modo - o despacho voa e se transmite? No, no verdade? Deixai, pois, de conservar dvidas que nem mesmo tm o valor de ser cientfica. Quaerens - Minhas objees, meu caro mestre, no possuem outro intento que obter novas luzes para minha inteligncia. Estou longe de negar a realidade de tudo quanto me fizestes bondosamente conhecer; mas, procuro adquirir uma idia racional e exata. LUMN - Ficai certo, meu amigo, de que nunca me formalizo, de modo algum, e para elevar ao meu grau a esfera das vossas concepes posso, imediatamente, abrir vosso olhar ante a insuficincia das vossas faculdades terrestres, e sobre a pobreza fatal da cincia - chamada positiva, convidando-vos a refletir em que as causas das vossas impresses so unicamente modalidades de movimento, e que quanto orgulhosamente se denomina cincia no passa de - percepo orgnica muito limitada. A luz, por intermdio da qual vossos olhos enxergam; o som, veculo para que vossas orelhas ouam - so diferentes modos de movimento que vos impressionam; os odores, os
paladares, etc., so emanaes que vm chocar em nosso nervo olfativo ou em nosso paladar. E' ainda movimento vibratrio que se transmite ao crebro. Podeis apenas apreciar alguns desses movimentos atravs dos sentidos de que fostes dotados, principalmente pela vista e pelo ouvido. Vs outros acreditais (ingenuamente) ver e compreender a Natureza? No representa nada, quanto alcanais. Recebeis alguns dos movimentos em atividade sobre o vosso tomo sublunar: eis tudo. Fora das impresses que apreendeis h uma infinidade de outras que no podeis alcanar. Quaerens - Perdoai, mestre! porm esse novo aspecto da Natureza no me parece bastante claro para que o possa bem compreender. Detalhai... LUMN - O aspecto, para vs, efetivamente novo, mas uma reflexo atenta far que o assimileis. O som formado por vibraes que, executando-se no ar, vm ferir a membrana do vosso tmpano acstico e vos do a impresso de tons diversos. O homem no percebe todos os sons. Quando as vibraes so muito lentas (aqum de 40 por segundo), o som muito baixo; a orelha no o apreende. Quando as vibraes so demasiado rpidas (acima de 36.000 por segundo), o som se torna muito agudo: vosso ouvido no o capta mais. Acima ou abaixo desses dois limites do organismo humano, existem ainda vibraes perceptveis por outros seres, certos insetos, por exemplo. Os mesmos raciocnios so aplicveis luz. Os diferentes aspectos desta, as nuanas e as cores dos objetos so identicamente devidos a vibraes que tocam vosso nervo ptico e nele produzem a impresso de intensidades diversas
da luz. Vossos olhos no vem tudo quanto poderia ser divisado por outros rgos. Quando as vibraes so muito lentas (inferiores a 458 trilhes por segundo), a luz bastante fraca: vosso olhar no a v. Quando muito velozes (para alm de 727 trilhes por segundo), a luz ultrapassa a vossa faculdade orgnica de percepo e se torna invisvel para vs outros. Acima e abaixo dessas duas fronteiras, vibraes etreas existem perceptveis por outros seres. No conheceis - pois nem vos possvel conhecer seno as impresses que possam fazer vibrar as cordas da vossa lira corporal - que se chamam nervo ptico e nervo auditivo. Imaginai, por um instante, a extenso das coisas imperceptveis para vs outros. Todos os movimentos ondulatrios que existem no universo, entre aqueles que do a cifra de 36.000 e os que fornecem a de 458 trilhes (458.000.000.000.000) na mesma unidade de tempo, no podem ser percebidos, nem vistos por vs, e fatalmente permanecero desconhecidos s vossas faculdades de apreenso. Experimentai medir tal escala. A cincia contempornea comea a penetrar um pouco por esse mundo invisvel, e sabeis que acabam de mensurar as vibraes inferiores a 458 trilhes (os raios calorficos, invisveis, infravermelhos) e as superiores a 727 trilhes (raios qumicos, tambm invisveis ultravioleta). Os mtodos cientficos, porm, tm capacidade apenas para estender um pouquinho a esfera da percepo direta, sem poder elastecla muito. O homem permanece isolado no meio de infinito. Mais ainda. Inumerveis mil outras vibraes existem na Natureza, as quais - no estando em correspondncia com
a vossa organizao, e no podendo ser recebidas por vs, permanecem sempre de vs ignoradas. Se tivsseis outras cordas em vossa lira, dez, cem, mil... a harmonia da Natureza se traduziria mais completamente, fazendo que entrassem em vibrao - cada uma na gama correspondente. Pedereis atingir uma grande quantidade de fatos, que se desdobram em redor vosso sem que deles possais adivinhar a existncia sequer, e, ao invs de duas notas dominantes, seria possvel formar idia do conjunto do concerto. Sois, porm, de lastimvel pobreza, da qual no deveis duvidar, pois que pobreza geral, em tal grau, que impossvel se torna a compareis com a riqueza de certos seres superiores aos habitantes da Terra. Os sentidos que possus bastam para vos indicar a existncia possvel de outros, no somente mais poderosos, porm at de espcie completamente diversa. Pelo sentido do tato, por exemplo, conseguis identificar a sensao do calor, mas fcil imaginar a existncia de um sentido especial (anlogo quele pelo qual a luz vos d o aspecto dos objetos exteriores) tornando o homem capaz de julgar da configurao, da substncia, da estrutura interna e das outras qualidades de um objeto - pela ao das ondas calorficas deste emitidas. Idntico raciocnio poderia ser formula do com relao eletricidade. podeis de igual modo idealizar a existncia de um sentido que, sendo para os olhos o mesmo que o espectroscpio para o telescpio, desse o conhecimento dos elementos qumicos dos corpos. Assim, j sob o ponto de vista cientfico tendes bases suficientes para imaginar dos modos de percepo de todo
diferentes dos caractersticos da Humanidade terrestre. Tais sentidos existem em outros mundos, e bem assim uma infinidade de maneiras de perceber a ao das foras da Natureza. Quaerens - Confesso, mestre singular e nova claridade se fez em meu entendimento, e as vossas explicaes valeram para mim por uma interpretao genial da realidade. Havia eu imaginado j sobre a possibilidade de semelhantes coisas, mas no as pude adivinhar, envolto que me encontro ainda pelos sentidos terrestres bem certo que se necessita estar fora do nosso circulo para julgar verdadeiramente o conjunto das realidades. Assim, dotados que somos de alguns sentidos restritos, podemos conhecer apenas os fatos acessveis percepo desses sentidos. O resto permanece, naturalmente, ignorado. E ser tal resto muito, ao lado do que conhecemos? LUMN - Esse resto imenso, e quanto sabeis - quase nada. No somente vossos sentidos deixam de perceber os movimentos fsicos que, a exemplo da eletricidade solar e terrestre (cujos eflvios se cruzam na atmosfera), o magnetismo dos minerais, das plantas e dos seres, as afinidades dos organismos, etc. - se tornam invisveis para vs; mas ainda percebem menos os movimentos do mundo moral - as simpatias e antipatias, os pressentimentos, as atraes espirituais, etc. Eu vos digo, em verdade, quanto sabeis, e tudo que pudsseis conhecer, por intermdio dos Sentidos terreais, nada em face do que existe. Esta verdade to profunda que se poderia fazer coexistirem na Terra seres substancialmente diferentes de
vs, desprovidos de olhos e orelhas, e de qualquer dos vossos sentidos, mas dotados de outros, e capazes de perceber o que no percebeis, e, vivendo no mesmo mundo convosco, capazes de conhecer o que no podeis conhecer, e ainda formando da Natureza uma idia completamente estranha que formais. Quaerens- Isso agora excede de todo a minha mentalidade. LUMN - E melhor ainda, o meu terrestre amigo, posso acrescentar, com toda sinceridade, que as percepes por vs recebidas e constituem a base da vossa cincia, no so, mesmo, percepes da realidade. No. Luzes, claridades, cores, aspectos, tons, rudos, harmonias, sons diversos, perfumes, sabores, qualidades aparentes dos corpos, etc., no so outra coisa alm de - formas. Essas modalidades entram em vosso pensamento pelos portais dos olhos e das orelhas, do olfato e do paladar, e vos apresentam aparncias, mas no a essncia mesma das coisas... A realidade escapa inteiramente ao vosso Esprito, e estais em absoluto incapazes de compreender o Universo... A matria, ela prpria, no o que julgais. Ela no tem absolutamente nada de slida; vosso corpo mesmo, um pedao de ferro e de granito no tm mais solidez do que o ar que respirais. Tudo isso composto de tomos, que no se tocam sequer e se acham em perptuo movimento. A Terra, tomo do Cu, corre no Espao com a velocidade de 106.000 quilmetros por hora ou de oito vezes o seu dimetro; mas, relativamente s suas dimenses, cada um dos tomos que constituem vosso prprio corpo e que circulam em vosso sangue, corre
com velocidade ainda maior. Se vossos olhos fossem bastante capazes de bem observar essa pedra, eles no a veriam mais, porque a atravessariam. Reconheo, porm, na perturbao ntima do vosso encfalo, concentrado em circunvolues fechadas, e nas agitaes fludicas que atravessam vossos lbulos cerebrais, que no compreendeis absolutamente nada das minhas revelaes. No prosseguirei, pois, neste assunto, apenas esboado aqui, no intuito de mostrar quanto seria profundo vosso erro de ligar importncia s dificuldades oriundas da vossa sensao terrestre, e de vos deixar entender que nem vs, nem homem algum sobre a Terra, podeis formar idia, mesmo aproximada, do Universo. O homem terrestre um homnculo. Ah! se conhecsseis os organismos que vibram sobre Marte ou em Urnus; se vos fosse dado apreciar os sentidos em atividades sobre Vnus e num satlite vizinho do anel de Saturno; se alguns sculos de viagem vos tivessem permitido a observao das formas da vida nos sistemas de estrelas duplas, sensaes da vista nos sis coloridos, impresses de um sentido eltrico (vosso desconhecido) nos grupos de sis mltiplos; se uma comparao ultraterrestre, em suma, vos tivesse fornecido elementos de novo conhecimento, compreendereis que seres vivos possam ver, ouvir, sentir, ou, para melhor expressar, conhecer a Natureza - sem olhos, sem orelhas, sem olfato; que um indeterminado nmero de sentidos existem em outros mundos, sentidos essencialmente diferentes dos vossos, e que h, dentro da Criao, uma quantidade incalculvel de fatos maravilhosos que vos
atualmente impossvel imaginar. Nessa contemplao geral do Universo, meu amigo, se apercebe a solidariedade que une o mundo fsico ao mundo psquico; sabe-se de mais alto a fora ntima que eleva certas almas experimentadas pelos grosseiros choques da matria, porm depuradas pelo sacrifcio no rumo das regies solenes da luz espiritual; e compreende-se a imensa felicidade reservada a esses seres, os quais, mesmo sobre a Terra, conseguem eximir-se das paixes corporais. Quaerens - Voltando transmisso da luz no Espao: ser que a luz no se perde ... afinal? Ser que o aspecto da Terra fica eternamente visvel e no se atenua, ao contrrio, em razo do quadrado da distncia, para se aniquilar a um certo termo? LUMN - Vossa expresso afinal no tem aplicao, atendendo-se a que no existe fim no Espao. A luz se atenua, verdade, com a distncia, os aspectos se tornam menos intensos, porm nada se perde inteiramente. Um nmero qualquer, perpetuamente reduzido da metade, por exemplo, jamais poder ficar igual a zero. A Terra no visvel por todos os olhos a uma determinada distncia, mas o seu aspecto existe nesse tempo, mesmo que no seja percebido, e vistas espirituais podem distingui-lo. Ao demais, a imagem de um astro, levada nas asas da luz, se afasta por vezes a insondveis profundezas nos obscuros desertos do vcuo. H no Espao vastas regies sem estrelas, pases dizimados pelo tempo, de onde os mundos se foram sucessivamente distanciando pela atrao de focos exteriores.
Ora, a imagem de um astro, atravessando esses negros abismos, se encontra na condio anloga da imagem de uma pessoa ou objeto que o fotgrafo obtm na cmara escura. No impossvel que essas imagens encontrem em tais vastos espaos um astro obscuro (a mecnica celeste constatou a existncia de muitos), de condio particular, cuja superfcie (formada de iodo, qui, a acreditar-se na anlise espectral) seria sensibilizada e capaz de fixar sobre ela mesma a imagem do mundo longnquo. Assim viriam gravar-se os acontecimentos terrestres sobre um globo obscuro. E se tal globo gira sobre si prprio, tal qual os outros corpos celestes, apresentar sucessivamente suas diferentes zonas semelhana da face terrestre e tomar a feio de fotografia contnua dos acontecimentos sempre subsequentes. Demais, descendo ou subindo, segundo um eixo perpendicular ao seu equador, a linha onde as imagens se reproduzissem descreveriam, no mais um crculo, e sim uma espiral, e, aps terminar o primeiro movimento de rotao, as imagens novas no coincidiriam com as antigas e no se superporiam, e sim se seguiriam acima ou abaixo. A imaginao poder agora supor que tal mundo no esfrico, mas cilndrico, e ver assim no Espao uma coluna imperecvel sobre a qual se gravariam e enrolariam na superfcie os grandes acontecimentos da histria terrestre... Eu prprio no vi tal realizao tendo deixado a Terra havia pouco tempo, mal pude encetar a contemplao dos primeiros panoramas das maravilhas celestes. Assegurar-meei proximamente da realidade desse fato, se verificou dentro
da riqueza infinita das criaes astrais, quer pela Natureza mesma, quer pela indstria das suas humanidades longnquas. Quaerens - Se o raio luminoso partido da Terra jamais se destri, mestre! as vossas aes se tornam eternas? LUMN - Vs o dissestes. Um ato que se realizou no poder ser apagado, e nenhuma potncia ter fora para o desfazer. Um crime praticado em pleno campo deserto. O criminoso se afasta, permanece incgnito e supe que o ato por ele realizado passou para sempre. Lavou as mos; arrependeu-se; acredita sua ao apagada. Em realidade, porm, nada se destri. No momento em que o crime foi consumado, a luz o apanhou e o transmitiu pelo cu com a rapidez do relmpago; foi incorporado em um raio de luz eterna, e eternamente se transmitir no infinito.. Eis uma boa ao praticada ocultamente; o benfeitor a escondeu: a radiao, visvel ou no, dela se apossou. Longe de ser esquecida, subsistir para todo sempre. Napoleo ceifou em plena florao da existncia cinco milhes de homens, na mdia de seis lustros de idade, os quais deviam viver mais sete lustros, segundo os clculos das probabilidades e das leis da vida humana. Isso vale por 175 milhes de anos que ele destruiu em vidas, e cuja metade aproximadamente, apenas para satisfazer sua ambio pessoal. Ele merecia, em expiao, ser conduzido no raio de luz que partiu das plancies de Warteloo, em 18 de Junho de 1815, e distanciar-se no Espao com a mesma velocidade da mesma luz, e ter constantemente ante os olhos o momento crtico em que viu esboroar-se, para sempre, a fogueira da
sua vaidade, e sofrer, sem trgua, a dor do mesmo desespero, e ficar preso a esse raio de luz durante os milhares de sculos destrudos pela sua responsabilidade. Realmente, sem padecer tal vertiginosa viagem, ele tem constantemente ante a viso esse indelvel pesadelo. E se vos fosse dado entrever o que se passa na ordem moral, to nitidamente quanto observais o que ocorre na ordem fsica, reconhecereis vibraes e transmisses de uma outra natureza que fixam, nos arcanos do mundo espiritual, as aes e at os mais secretos pensamentos. Quaerens - Vossas revelaes so espantosas, LUMN ! Deste modo, so nossos destinos intimamente ligados construo do prprio Universo. Eu pensei, algumas vezes, no problema especulativo de uma comunicao qualquer entre os mundos - com o auxlio da luz. Muitos fsicos tm ideado a possibilidade de se estabelecer um dia comunicaes entre a Terra e a Lua, e mesmo entre os planetas, por meio de sinais luminosos. Mas, se pudesse fazer sinais da Terra a uma estrela, e se a luz respectiva empregasse, por exemplo, um sculo de percurso, o sinal da Terra no chegaria ao seu destino antes desse tempo, e a resposta no nos viria antes de igual intervalo. Decorreriam dois sculos entre a pergunta e a resposta. O observador terrestre teria morrido de h muito, quando chegasse ao observador a sua mensagem sideral, e a este teria sem dvida acontecido o mesmo, quando a sua resposta fosse l recebida! ... LUMN - Isso seria, com efeito, uma conversao entre vivos e mortos.
Quaerens - Perdoareis, mestre, uma derradeira questo, um tanto indiscreta... uma ltima, pois vejo Vnus empalidecer, e sei que vossa voz vai cessar de se fazer ouvir. Se as aes so de gnero a se tornar visveis das regies etreas, poderemos ver, aps nossa morte, no somente nossas prprias aes, mas ainda as dos nossos semelhantes, aquelas que nos interessem, bem entendido. Por exemplo, um par de almas gmeas e sempre unidas gostar de rever durante sculos as doces horas que passaram juntas na Terra; distanciar-se- no Espao com a velocidade igual da a fim de manter ante o olhar a mesma hora ditou. Por outras palavras, um esposo seguir com interesse a vida completa de sua companheira, e, no caso de surgir algum particular detalhe inesperado, ele poder examin-lo com detena, e bem assim quantos lhe paream interessantes sua sensibilidade... Poder mesmo, se companheira desencarnada residir em alguma regio vizinha, atra-Ia para observarem em comum tais fatos retrospectivos. Nenhuma negativa poderia prevalecer ante esse flagrante testemunho... Quem sabe se os Espritos se proporcionam assim o espetculo de alguns fatos ntimos? LUMN - No cu, o meu terrestre amigo, pouco se apreciam essas lembranas de ordem material, e muito me admiro de que estejais a isso preso ainda. O caracterstico que vos deve particularmente impressionar, no conjunto dos fatos que constituem as nossas duas palestras, que, em virtude das leis da luz, podemos rever os acontecimentos depois de ocorridos, e at mesmo quando depois de consumados, se hajam dissipado, em realidade.
Quaerens - Acreditai, mestre! que essa verdade jamais se apagar da minha memria. Foi precisamente esse ponto que me maravilhou. Esquecei a minha digresso anterior. Para vos falar a verdade, o que ultrapassa de muito a minha imaginao, desde a vossa primeira palestra, foi o pensar que a durao da viagem do Esprito pode ser no semente nula, negativa, mas ainda retrograda. Tempo retrogrado! duas palavras que decerto estranham o encontrar-se juntas. Ousase acreditar? Partis hoje para uma estrela, e chegais ontem! Que disse eu? ontem? chegareis h 26.300 dias. E ireis mais e mais longe e l chegareis h um sculo! Seria necessrio reformar a gramtica. . LMN- E incontestvel. Falando em estilo terrestre, no h erro em exprimir-se assim, pois que a Terra est em 1793, etc., para o mundo onde chegamos. Alis, tendes sobre o vosso globo mesmo certos paradoxos aparentes que, de longe, do uma idia disso. Por exemplo, o do recado telegrfico, que, enviado de Paris ao meio-dia, chega a Novo-Iorque, s 6 horas e 55 minutos da manh. Mas, no so as aplicaes particulares ou os aspectos curiosos que convm guardeis em vosso esprito, e sim a revelao de que eles so a forma, da metafsica da qual se tornam a expresso sensvel. Sabeis que o tempo no uma realidade absoluta, mas somente uma transitria medida causada pelos movimentos da Terra no sistema solar. Considerado pelo olhar da Alma e no pelos olhos do corpo, esse quadro no fictcio, mas real, da vida humana, tal qual foi sem dissimulao possvel, atinge, por um lado, o domnio da teologia - nesse em que se explica fisicamente
um mistrio ainda inexplicado: o do julgamento particular, e feito por ns mesmos, de cada um aps a morte. Sob o ponto de vista do conjunto, o presente de um mundo no uma realidade momentnea, que desaparece logo em seguida sua apario, um aspecto sem consistncia, um alapo no qual o futuro - atingido de catarata - tomba perpetuamente no passado, um plano matemtico no Espao; , bem ao contrrio, urna realidade efetiva que se distancia deste mundo com a rapidez da luz, e, embrenhando-se gradualmente no infinito, se converte assim num presente eterno. A realidade metafsica desse vasto problema tal, que pode ser concebido no grau da onipresena do Universo em toda a sua durao. Os acontecimentos se esvaem para o local que lhes deu origem, mas perduram no Espao. Essa projeo sucessiva e sem fim, de todos os fatos consumados em cada um dos mundos, se efetua no seio do Ser infinito,, cuja ubiqidade toca por esse modo cada coisa em uma permanncia eterna. Os acontecimentos realizados na superfcie da Terra, desde sua origem, so perceptveis no Espao a distncias tanto mais longnquas quanto mais so eles recuados. Toda a histria do globo e a vida de cada um dos seus habitantes poderiam ser, pois, vistas vez, pelo olhar que abrangesse esse Espao. Compreendemos opticamente, desse modo, que o Esprito eterno, presente em toda a parte, veja todo o passado em um mesmo momento. O que verdade em nossa Terra verdade de todos os mundos do Espao. Assim, a histria inteira de todos os universos est presente vez na
universal ubiqidade do Criador. Que olhos transcendentes possam realmente ver semelhante histria, pouco importa: ela existe, ela est inscrita. Posso ajuntar que Deus conhece todo o passado, no somente por essa vista direta, mas ainda pelo conhecimento de cada coisa presente. Se um naturalista, qual o foi Cuvier, soube reconstruir espcies animais desaparecidas, apenas com o auxlio de ossamentas, o Autor da Natureza conhece pela Terra atual a Terra do passado, o sistema planetrio e o Sol da poca pretrita, e todas as condies de temperatura, de agregaes, de combinaes pelas quais os elementos chegaram a formar os compostos existentes atualmente. De outra parte, o futuro tambm completamente presente a Deus em seus germens atuais quanto o passado o em seus frutos. Cada acontecimento ligado de maneira indissolvel com o passado e o futuro. Este ser tambm atrado pelo presente, e portanto logicamente deduzvel, e existe to exatamente quanto o passado foi inscrito para que existisse e fosse reconhecvel. Para o Absoluto, o tempo no existe; o passado e o futuro so lidos na pgina aberta de um presente perptuo. Mas, repito, o ponto capital das nossas palestras foi fazer-se compreender que a vida passada dos mundos e dos seres existe sempre no Espao, graas transmisso sucessiva da luz atravs das vastas regies do Infinito.
Depois do dia em que se deu o nosso ltimo encontro, LUMN, 104 semanas se escoaram. Durante esse perodo, insensvel para vs - habitantes do espao eterno, porm muito sensvel para ns outros - os da Terra, elevei bastantes vezes meu pensamento rumo dos grandes problemas nos quais me iniciastes, e novos horizontes se desvendaram ante a viso da minha Alma. Sem dvida tambm, desde aquela vossa partida da Terra, as observaes e estudos vossos se acresceram sobre um campo de pesquisas cada vez mais vasto. Tendes, de certo, inumerveis descobertas a entregar minha inteligncia melhor preparada. Ah! se sou digno, e se as posso compreender, narrai, LUMN, as viagens celestes que conduziram vosso Esprito no rumo das esferas superiores, das verdades desconhecidas que vos foram reveladas, das perspectivas que vos foram abertas, dos princpios que vos foram ensinados sobre o misterioso assunto do destino dos homens e dos seres. LUMN - Preparei vossa Alma, meu caro e velho amigo, para receber essas impresses estranhas, que nenhum espetculo terrestre jamais produziu, nem seria capaz de engendrar. E necessrio, no obstante, que torneis vosso Esprito inteiramente livre de qualquer preconceito terrestre. Quanto vou narrar, causar pasmo, mas recebei tudo, primeiramente com ateno, qual se fosse uma verdade constatada, e no com a idia de romance. E um primeiro esforo que reclamo do vosso estudioso ardor. Quando
houverdes compreendido (e compreendereis, se empregardes nisso um critrio matemtico e uma alma livre), concebereis que todos os fatos constitutivos da nossa existncia ultraterrestre so, no somente possveis, mas ainda verdadeiros e muito mais em harmonia ntima com as nossas faculdades intelectuais j manifestadas sobre a Terra. Quaerens - Ficai certo, LUMN, de que estou nisto de esprito liberto, despido de qualquer servido intelectual, e disposto ardentemente a escutar essas revelaes que ouvido humano jamais ouviu. LUMN - Os acontecimentos que faro objeto desta narrativa, no tm somente a Terra e os astros vizinhos por cenrio; mas se estendem pelos campos imensos da Astronomia sideral, e faro que conheamos verdadeiras maravilhas. Sua explicao ser dada, tal qual as precedentes, pelo estudo da luz, ponto mgico projetado de um astro a outro, da Terra ao Sol, da Terra s estrelas -, da luz, movimento universal que enche os espaos, sustm os mundos em suas rbitas, e constitui a vida eterna da Natureza. Preparai-vos com o maior cuidado para ter diante dos olhos a transmisso sucessiva da luz no Espao. Quaerens - Sei que a luz, esse agente que torna os objetos visveis ao nosso rgo visual, no se transmite instantaneamente de um ponto a outro, mas sucessivamente tal qual tudo que se move. Sei que voa na razo de 300.000 quilmetros por segundo e que percorre trs milhes em 10 segundos, ou seja, dezoito milhes em cada minuto. Sei que emprega mais de oito minutos em transpor a distncia de 149
milhes de quilmetros que nos separam do Sol. A Astronomia moderna tornou essas noes muito familiares. Lmen - E vs imaginais exatamente o movimento ondulatrio da luz? Quaerens - Eu o creio. Comparo-o, de boa mente, com o do som, ainda que aquele se processe numa escala incomparavelmente mais vasta. Ondulaes por ondulaes, o som se propaga no ar. Quando os sinos vibram em continuado toque, seu mugido sonoro, que percebido no mesmo momento em que o badalo bate por aqueles residentes em redor da igreja, s recebido um segundo depois pelos que se encontram a trs hectmetros e meio; dois segundos por quantos se achem alm de sete hectmetros; trs segundos mais tarde por aqueles estacionados longitude de um quilmetro da igreja. Assim, o som chega, sucessivamente, de lugar em lugar, to longe quanto possa ir. De igual modo, a luz vai, sucessivamente, de uma regio mais vizinha a outra mais distante no Espao, e se afasta dessa maneira, sem se extinguir, a longitudes que participam do infinito. Se pudssemos ver, da Terra, um acontecimento que se desenrolasse na Lua; se, por exemplo, tivssemos bons e eficientes instrumentos para perceber daqui a queda de um fruto tombado de uma rvore na superfcie da Lua, no veramos esse fato imediatamente sua realizao, mas 1 segundo e um quarto depois, por isso que, para vir da distncia da Lua, a luz emprega 1 segundo e 1/4, aproximadamente. Se pudssemos ver, igualmente, um acontecimento ocorrido sobre um mundo situado dez vezes mais longe do que a Lua, s o perceberamos passados 13
segundos da sua realizao. Se esse mundo estivesse cem vezes mais afastado da Lua, tomaramos conhecimento do fato 130 segundos decorridos da sua efetivao; mil vezes mais distante, s depois de 1.300 segundos, ou 21 minutos e 40 segundos depois. E assim progressivamente, na proporo das longitudes. LUMN - E exato, e sabeis ser essa a razo pela qual o raio luminoso, enviado da estrela Capela Terra, emprega 864 meses para atingir tal destino. Se, pois, recebemos hoje o aspecto luminoso da estrela, dali sado h 3.744 semanas, reciprocamente os habitantes de Capela s podero ver, hoje, a Terra de h 864 meses antes. A Terra reflete no Espao a luz que recebe do Sol, e. de longe, parece brilhante, tal qual vos parecem Vnus e Jpiter, planetas iluminados pelo mesmo Sol que a ilumina. O aspecto luminoso da Terra, sua fotografia, viaja no Espao razo de 300.000 quilmetros por segundo, e s chega distncia da estrela Capela depois de 3.744 semanas de marcha ininterrupta. Eu vos recordo esses elementos para que, tendo-os bem exata e, solidamente fixado no Esprito, estejais apto para compreender, sem esforo, os acontecimentos ocorridos em minha vida ultraterrestre depois da nossa ltima palestra. Quaerens - Esses princpios de ptica so claramente estabelecidos por mim. No dia seguinte ao da vossa morte, em Outubro de 1864, quando vos achveis (segundo me haveis confidenciado) rapidamente transferido a Capela, fostes surpreendido ao ver a cena dos astrnomos-filsofos dali observando a Terra de 1793 e um dos atos mais ousados da Revoluo Francesa. No fostes menos surpreendido
revendo-vos criana, a correr nas ruas de Paris. E, aproximando-vos da Terra, a uma distncia menor do que a de Capela, ficastes na zona onde chegava a fotografia terrestre partida poca da vossa infncia, e vos revistes na idade de pouco mais de um lustro, no em reminiscncia, mas em realidade. De vossas narraes anteriores, o que tenha maior dificuldade de crer, isto , de compreender e de apreender com exatido. LUMN - O que desejo fazer-vos compreender agora bem mais surpreendente ainda; porm, necessrio se torna admitir os antecedentes para ouvir eficazmente o que se vai seguir. Distanciando-me de Capela e aproximando-me da Terra eu revi as minhas 3.744 semanas de existncia terrestre, minha vida inteira, diretamente, tal qual se desdobrou, isso porque, avizinhando-me da Terra, tinha ante mim zonas sucessivas de aspectos terrestres, trazendo na sua extenso a histria visvel do nosso planeta, inclusive a de Paris e da minha pessoa ali residente. Percorrendo retrospectivamente, em um dia, o caminho que a luz vence em 864 meses, havia eu revisto toda a minha existncia em 24 horas, e chegava a tempo para o meu enterro. Quaerens - Equivale a, retornando de Capela para a Terra, haverdes encontrado 72 fotografias escalonadas de ano em ano.. A de maior longitude da Terra, aquela mais remotamente sada, a que se encontrava altura de Capela mostrava 1793; a segunda, que partira um ano depois, e ainda no chegada l, levava a imagem de 1794; a dcima, 1803; a trigsima sexta, chegada apenas metade do
caminho, dava o aspecto de 1829; a quinquagsima, 1843; a setuagsima primeira, 1864. LUMN - E' impossvel melhor assimilar essa realidade, que parece misteriosa e incompreensvel ao primeiro golpe de vista. Agora eu vos posso narrar quanto me aconteceu em Capela, depois de haver revisto minha existncia terrestre.
Enquanto estava, havia pouco tempo ainda (mas no sei expressar esse tempo em rotaes terrestres), ocupado, em meio de melanclica paisagem de Capela e no prlogo de uma noite transparente, a contemplar o cu estrelado, e nesse cu a estrela que o vosso sol terreal, e na vizinhana dessa estrela o pequeno planeta azulado que a vossa ptria; enquanto observava uma das cenas da minha primeira infncia, minha jovem me, sentada no meio de um jardim, trazendo em seus braos uma criana (meu irmo) e tendo ao lado outra criana que no contava ainda mais de duas primaveras (minha irm), e um rapazinho com o dobro de idade desta (eu) ; enquanto eu me via nessa idade em que o homem no tem ainda conscincia da vida intelectual, e traz sem embargo disso na fronte o grmen da sua vida inteira; enquanto pensava na singular realidade que me mostrava a mim mesmo no incio da minha carreira terreal, sentia a
ateno desviada do vosso planeta por um poder superior, e meus olhares dirigirem-se a um outro ponto do cu, que me pareceu ligado a Terra e minha carreira nesse planeta por algum liame oculto. No pude evitar ficasse minha vista presa a esse novo ponto do cu: uma potncia magntica a acorrentava. Vrias vezes, ensaiei retirar dali meu olhar e reconduzi-lo a Terra (que tanto estimo), mas, obstinadamente, voltava estrela desconhecida. Essa estrela, na qual a minha viso buscava, por assim dizer, instintivamente adivinhar alguma coisa, faz parte da constelao da Virgem, asterismo cuja forma varia um pouco - visto de Capela. E' uma estrela dupla, isto , a associao de dois sis, um de brancura argntea, outro amarelo-ouro vivo, que giram em torno mtuo - numa revoluo de sete quartos de sculo. V-se essa estrela a olho nu, da Terra, e est inscrita sob a letra Gama (grega) da constelao da Virgem. Em volta de cada um dos sis que a constituem, h um sistema planetrio. Minha vista fixou-se sobre um dos planetas do sol de ouro. Nesse planeta existem vegetao e animais, semelhana do que ocorre na Terra; suas formas se aproximam das terrestres, posto que no fundo os organismos estejam aclimados em modo bem diferente. H um reino animal anlogo ao vosso; peixes nos respectivos mares e quadrpedes na sua atmosfera, onde os seres humanos voam, naturalmente, em razo da densidade atmosfrica e do fraco peso. Os homens desse planeta apresentam aproximadamente a conformao humana terreal. Embora o crnio seja despido de cabeleira; tenham nas mos trs polegares oposveis,
grandes e finos, em lugar de cinco dedos, e trs outros no calcanhar, em vez de palma dos ps; as extremidades dos braos e das pernas flexveis qual se fossem de borracha; dois olhos, nariz e boca, o que torna suas fisionomias parecidas s dos terrqueos. No possuem duas orelhas abertas lateralmente cabea, mas apenas uma, em forma de pavilho cnico, instalado na parte superior do crnio, guisa de pequenino chapu. Vivem em sociedade e no se exibem nus. J Vedes que, em suma, diferem pouco, exteriormente, dos habitantes da Terra. Quaerens - Existem, pois, em outros mundos seres to diferentes de ns outros, para que estes, mau grado tais dissemelhanas, meream ser comparados conosco? LUMN - Uma distino profunda, inimaginvel para vs, separa em geral as formas animadas dos diferentes globos. Essas formas so o resultado dos elementos especiais a cada orbe e das foras que o regem: matria, densidade, peso, calor, luz, eletricidade, atmosfera, etc., diferem essencialmente de um mundo a outro. Em um idntico sistema, essas formas j diferem. Assim, os homens de Tit, no sistema de Saturno, e os do planeta Mercrio: no se assemelham em nada aos homens da Terra; e aquele que os visse, pela primeira vez, no identificaria neles nem cabea, nem membros, nem sentidos. Os do sistema planetrio da Virgem, rumo dos quais meus olhares estavam voltados com persistncia toda passiva, assemelhavam-se, ao contrrio, pela sua forma, a habitantes do globo terrestre. Igualmente se aproximavam pelo estado intelectual e moral. Algo inferiores a ns outros, esto colocados nos degraus da escada das
almas que precedem imediatamente ao qual a Humanidade terrquea pertence no conjunto total. Quaerens - A Humanidade terrestre no homognea em seu valor intelectual e moral, mas me parece muito diversificada. Diferenciamo-nos bastante, ns outros os europeus, das tribos da Abissnia e dos selvagens das ilhas da Ocenia. Qual o povo que, para vs, representa o tipo grau mdio da inteligncia sobre o orbe terrqueo? LUMN - O povo rabe, capaz de produzir os Kpleres, os Newtons, os Galileus, os Arquimedes, os Euclides, os d'Alembert, e, por outro aspecto, tocando, nas suas razes, as hordas primitivas vinculadas aos rochedos de granito. No necessrio, porm, escolher aqui um povo para prottipo; prefervel considerar o conjunto da civilizao moderna. Alm disso, no existe to grande distncia, quanta podereis supor, entre o entendimento de um preto e o do de um crebro da raa latina. De qualquer modo, se vos indispensvel, em absoluto, urna comparao, eu vos direi que os homens desse planeta da Virgem se encontram quase na situao intelectual dos povos escandinavos. A diferena mais essencial existente entre tal mundo e a Terra est em no haver ali sexos, nem nas plantas, nem nos animais, nem na Humanidade. A gerao dos seres se processa espontneamente, em resultado natural de certas condies fisiolgicas reunidas em algumas frteis ilhas do planeta, e os filhos no se formam em rgos femininos, conforme acontece com as mes terrenas. Explicar semelhante processo seria intil, atendendo a que no podeis
julgar e compreender, fora das idias terrestres, os fatos daquele planeta, completamente distintos. O resultado de tal situao orgnica que o matrimnio no existe, em qualquer modalidade, nesse planeta, e que as amizades entre os humanos jamais tm a mescla das atraes carnais que sempre se manifestam aqui, mesmo nas relaes amistosas mais puras entre duas pessoas de sexos diferentes. Vs vos lembrais, de resto, de que durante o perodo protozico os habitantes da Terra eram todos surdos-mudos e sem sexo. A. diviso dos sexos s se fez relativamente tarde na histria da Natureza, nos animais e nas plantas. Atrados, conforme vos disse, para aquele longnquo planeta, os olhos de minha Alma examinaram atentamente a respectiva superfcie. Demoraram-se em particular, e sem que me apercebesse da, razo predominante, sobre uma ilha branca, ao longe uma regio coberta de neve; mais bem provvel no se tratasse de neve, por inverossmil que pudesse existir gua nesse planeta, nos mesmos estados fsicos e qumicos peculiares a Terra. Na orla dessa cidade, uma avenida conduzia a vizinho bosque, formado de rvores amarelas. No tardei em assinalar especialmente na dita avenida trs personagens que pareciam dirigir-se lentamente para o bosque. O pequeno grupo era formado por dois amigos, que pareciam conversar intimamente um coro o outro, e por um ser, dessemelhante deles, pela vestimenta vermelha e pela carga que conduzia, aparentando tratar-se de um criado, escravo ou animal domstico de ambos. Enquanto mirava curiosamente as duas personagens principais, a da direita elevou o olhar para o cu, tal como se
fosse atrada do alto por um balo e fixou-se precisamente para Capela, estrela que sem dvida ela no divisava, pois a cena se passava durante o dia para a dita pessoa. Oh! meu velho amigo, jamais esquecerei a impresso sbita que me causou tal vista... Chego a duvidar de mim prprio, quando em tal cogito... Esse ser do planeta da Virgem que me olhava sem me suspeitar presente, era... ousarei vo-lo dizer, sem outro prembulo? Pois bem: era eu... Quaerens - De que modo podia ser - vs? LUMN - Eu prprio, em pessoa. Reconheci-me instantneamente, e bem podeis avaliar da minha surpresa! Quaerens - Sem dvida! Mesmo porque no compreendo, disso, absoutamente nada. LUMN - O fato que a est uma situao completamente nova e que exige explicao. Era eu, em verdade, e no tardei em reconhecer meu rosto e minha forma de outrora, mas ainda, na pessoa que andava a meu lado, um amigo ntimo, o meu caro Kathleen, que foi o meu companheiro de estudos nesse planeta. Eu nos segui com o olhar at ao bosque dourado, atravs de valezinhos deliciosos, sombreados de ureas cpulas, de rvores cobertas de largas ramarias de nuanas alaranjadas e por entre bordos de folhagens cor de ambar! Uma fonte murmurante gorjeava sobre a areia fina, e nos sentamos s suas margens. Recordo as doces horas que passamos juntos, dos belos e muitos 365 dias escoados nessa terra longnqua, das nossas confidncias muito fraternais, das impresses mtuas que experimentvamos ante as formosas paisagens
do bosque, em face das plancies cheias de silncio, das colinas vaporosas, dos pequenos lagos que sorriam do cu. Nossas aspiraes se elevavam rumo da grande e santa Natureza, e adorvamos Deus em suas criaes. Com que ventura eu revi essa fase da minha precedente existncia, e reatei a corrente dourada interrompida sobre a Terra! Em verdade, meu caro Quaerens, era bem eu quem vivia, ento, nesse planeta da Virgem. Eu me via realmente, e podia prosseguir observando a srie das minhas aes e rever diretamente os melhores momentos dessa existncia j longnqua. Alm disso, se houvesse duvidado da minha identidade, a incerteza teria sido desfeita durante a observao, porque, enquanto eu me considerava, vi sair do bosque e aproximar-se o meu irmo dessa existncia, Berthor, que veio reunir-se nossa conversao, no beiral da fonte murmurante. Quaerens - Mestre, no consigo compreender de que maneira vos pudestes ver, em tal realidade, sobre esse planeta da Virgem. Tnheis o dom da ubiquidade? Podieis estar, semelhanas de Francisco de Assis ou Apolnio de Tiana, em dois stios simultneamente ? LUMN - De modo algum. Examinando as coordenadas astronmicas do sol Gama da Virgem, e conhecendo sua paralaxe, vista de Capela, cheguei a constatar que a luz desse sol no podia empregar menos de 2.064 meses para atravessar a distncia que o separa de Capela. Eu recebia, pois, naquela atualidade, o raio luminoso sado desse mundo 8.944 semanas antes. Ora, verifica-se
que, a essa poca, eu vivia precisamente na face do planeta de que se trata, e estava no meu vigsimo ano de existncia. Verificando as idades, e comparando os diferentes estilos planetrios, reconheci, com efeito, haver nascido nesse mundo da Virgem no ano 45.904 (correspondente ao ano 1677 da era crist da Terra), e morrido de acidente no ano 45.913, que corresponde ao ano 1767. Cada ano desse planeta equivale a 10 dos nossos. No momento em que me via, conforme vos narrei, parecia contar 20 de idade terrestremente falando; mas, no estilo do dito planeta, contava apenas 2. Atinge-se ali muitas vezes a 15, que passa por ser o limite da vida em tal globo, e equivale a sculo e meio das eras terrestres. O raio luminoso, ou, para falar mais exatamente, a fotografia desse mundo da Virgem - empregando 2.064 meses terrqueos para atravessar a imensa extenso que o separa de Capela - e estando eu neste ltimo, eu a recebia somente agora com a imagem da constelao da Virgem de 8.944 semanas antes. E, ainda que as coisas se hajam vigorosamente modificado depois; que muitas geraes se hajam sucedido; que eu prprio tenha morrido e, depois dessa poca, tido tempo de renascer uma nova vez, e viver quase trs quartos de sculo sobre a Terra -, contudo, a luz havia empregado todo esse interregno em percorrer seu trajeto da Virgem a Capela, e trazia-me impresses frescas de tais acontecimentos desaparecidos. Quaerens - Estando demonstrada a durao do trajeto da luz, nada mais tenho a objetar quanto a tal ponto. No posso, no entanto, furtar-me confisso de que semelhante
singularidade ultrapassa tudo quanto eu podia esperar da faculdade criadora da imaginao. LUMN - No existe imaginao aqui, meu amigo, e sim - nada mais do que uma realidade eterna e sagrada que tem seu lugar respeitvel no plano da criao universal. A luz de todo astro, direta ou refletida, de alguma sorte diz o aspecto de cada sol e de cada planeta, expandindo-se no Espao segundo a velocidade que conheceis, e o raio luminoso contm tudo quanto existiu. E porque nada se perde, a histria de cada mundo, contida na luz que dele emana incessantemente e sucessivamente, atravessa por toda a eternidade o espao infinito, sem que jamais possa ser aniquilada. O olhar humano no a saberia ler. H, porm, olhos superiores aos terrestres. Se uso nestas narrativas os vocbulos ver e luz, apenas para me tornar compreensvel; mas, conforme assinalmos em palestra anterior, falando de modo absoluto, no existe - luz: h vibraes do ter; no existe - vista: h percepes do pensamento. Alm disso, mesmo na Terra, quando examinais no telescpio, ou melhor ainda, no espectroscpio, a natureza de uma estrela, sabeis muito bem no estar ante os olhos o aspecto atual, mas o passado - que um raio de luz vos trouxe, partido de l talvez h 100 sculos... No ignorais tambm que um certo nmero de astros, dos quais vs outros, astrnomos da Terra, buscais atualmente determinar os elementos fsicos e numricos, e que brilham luminosamente sobre vossas cabeas -, podem muito bem no mais existir desde o incio do mundo terrqueo.
Quaerens - Sabemos. Assim, vistes desenrolar-se, em retrocesso, vossa existncia anterior - 864 meses depois de transcorrida. LUMN - Melhor dizendo, uma fase dessa existncia. Eu teria podido, porm, evidentemente, rev-Ia por inteiro, aproximando-me daquele planeta, a exemplo do que fizera para com a minha existncia terrena. Quaerens - De sorte que haveis revisto na luz vossas duas ltimas encarnaes? LUMN - Exatamente, e, o que mais, eu as vi e as vejo ainda juntas, simultaneamente, de algum modo - uma ao lado da outra. Quaerens - Vs as reveis ao mesmo tempo? LUMN - O fato fcil de compreender. A luz da Terra despende 864 meses para atingir Capela. A do planeta da Virgem (quase vez e meia mais distante de Capela) gasta 2.064. Ora, vivendo eu h 864 meses sobre a Terra, e um sculo antes em outro planeta, essas duas pocas me chegaram precisamente juntas em Capela. Tenho, pois, diante de mim, olhando para os ditos mundos. minhas duas ltimas existncias, que se desenrolam tal como se eu no estivesse aqui para as ver, e sem que me seja possvel mudar coisa alguma dos atos em via de realizao, em uma ou outra, de vez que tais atos, embora presentes e futuros para minha observao atual, ocorreram em realidade. Quaerens - Estranho! Verdadeiramente, bem estranho! Lmen - O que mais me impressiona nessa observao inesperada das minhas duas existncias - desdobradas juntas e presentemente em mundos diferentes, e o que surpreende
mais singularmente minha ateno, que essas vidas se assemelham da maneira mais bizarra. Vejo que tive mais ou menos os mesmos gostos, numa e noutra, idnticas paixes, iguais erros. Nem criminoso, nem santo, na primeira e na segunda. Demais (coincidncia admirvel!) vi, na primeira, paisagens anlogas s que tenho visto sobre a Terra. Assim, tenho a explicao do gosto inato que trouxe, quando vim Terra, pela poesia do Norte, pelas narrativas legendrias de Ossian, pelas paisagens sonhadoras da Irlanda, as montanhas e as auroras boreais. A Esccia, a Escandinvia, a Sucia, a Noruega, com os seus fiordes, o Spitzberg com as suas solitudes me atraram. As velhas torres arruinadas, os rochedos e as gargantas selvagens, os pinheiros sombrios, sob os quais murmuram os ventos do norte, tudo isso me parecia ter na face da Terra alguma relao oculta com os meus pensamentos ntimos. Quando vi a Irlanda, pareceu-me que ali havia eu j vivido. Quando fiz pela primeira vez a ascenso do Rigi e do Finsterahorn, e assisti ao despontar esplndido do Sol nos pncaros nevados dos Alpes, pareceume ter visto outrora esses aspectos. O espectro de Brocken no me pareceu novidade. E' que eu havia habitado anteriormente regies anlogas no planeta da Virgem. Mesma vida, iguais aes, idnticas circunstncias, mesmas condies. Analogias, analogias! Quase tudo que havia visto, feito, pensado sobre a Terra, eu tinha j visto, feito, pensado um sculo antes nesse mundo anterior. E eu havia sempre duvidado! O conjunto da minha vida terrena , no entanto, superior ao da existncia precedente. Cada criana traz, ao
nascer, faculdades diferentes, predisposies especiais, dissemelhanas inatas, alm de incontestveis, que no se podem explicar ante o esprito filosfico e diante da Justia eterna, seno pelos labores anteriormente realizados pelas almas livres. Mas, embora a minha vida seja superior que a antecedeu, principalmente sob o ponto de vista do conhecimento mais exato e mais profundo do sistema do mundo, devo, sem embargo disso, salientar que certas faculdades fsicas e morais, possudas anteriormente, me faltaram sobre a Terra. Reciprocamente, possua neste mundo faculdades que no havia recebido na existncia procedente. Assim, por exemplo, entre as faculdades que me faltaram na Terra, citarei principalmente a de voar. No planeta da Virgem, vi que voava tantas vezes quantas andava, e isso sem aparelho aeronutico e sem asas, simplesmente com os braos e pernas, tal qual se nada entre duas guas. Examinando bem esse modo de locomoo, que eu me via claramente empregar naquele planeta, reconheci sem dificuldade no ter (que eu no tinha, quero dizer) nem asas, nem bales, nem hlice. A um momento dado, eu me impulsiono do solo, qual se fosse por um golpe de salto, com as pernas, e, estendendo os braos, nado sem fadiga, no ar. Alm disso, descendo, a p, escarpada montanha, eu me projeto para diante no Espao, tornozelos unidos, e deso lenta e obliquamente, por minha vontade, at onde meus ps tocam o cho e me encontro firme, ereto. Mais ainda: vo lentamente, a modo de um pombo que descreve uma curva para entrar no pombal. Isso, o que me vi fazendo
distintamente nesse mundo. Pois bem: no foi s uma vez, mas centenas de vezes, mil qui, em que me senti arrebatado na forma dos meus sonhos terrestres; exatamente assim, doce e naturalmente, sem auxlio de aparelhos. Como poderiam tais impossibilidades surgir tantas vezes em nossos sonhos? Nada as justificariam; nada de anlogo existe sobre o globo terrestre. Para obedecer instintivamente a semelhante tendncia inata, em vrias oportunidades eu me atirei na atmosfera, suspenso bolha de gs de um aerstato; mas a impresso no a mesma; no se sente voar, e acredita-se estar quase imvel. Tenho agora a explicao dos meus sonhos: enquanto dormiam meus sentidos terrestres, Alma afloravam as reminiscnais da existncia anterior. Quaerens - Tambm eu, repetidas vezes, sinto-me voar em sonho, e exatamente assim, por um movimento do corpo - movido pela vontade, sem asas e sem aparelhos. Ser que eu j vivi no planeta da Virgem? Lumen - Ignoro. Se possusseis vista transcendente, o sentido das percepes etreas, ou instrumentos apropriados, podereis, mesmo do vosso globo, aperceber esse planeta, examinar-lhe a superficie - e, se acaso ali houvsseis existido poca, em que de l partiram os raios luminosos agora chegados Terra, podereis talvez reencontrar-vos neles. Tendes, porm, olhos muitssimo imperfeitos para tentar semelhante pesquisa. Alis, no indispensvel tenhais habitado aquele mundo, para possuir a faculdade da aviao. H um considervel nmero de mundos onde o vo constitui o estado normal, e onde toda a raa humana s vive por esse
dom. Na realidade, em poucos planetas os seres rastejam pelo modo dos da Terra. Quaerens- Resulta da viso precedente que a vossa existncia terreal no a primeira, e que, antes de viver na Terra, j haveis habitado um outro mundo. Acreditais, por isso, na pluralidade das existncias para a Alma? LUMN - Esqueceis que falais a um Esprito desencarnado? Tenho de me render evidncia, ante a viso da minha vida terrestre e da anterior no planeta virginal. Recordo-me, alm disso, de muitas outras existncias. Quaerens - Eis precisamente o que me falta para estabelecer em mim uma convico. No me lembro, em absoluto, de coisa alguma que tenha podido preceder meu nascimento terrestre. LUMN - Estais ainda encarnado. Aguardai vossa liberdade, para que possais lembrar-vos da vida espiritual. A Alma no tem plena memria, integral posse de si mesma, seno na sua vida normal, na vida celeste, isto , entre suas encarnaes. S ento ela v, no somente a sua vida terreal, mas ainda as outras existncias precedentes. De que modo a Alma, envolta nos liames grosseiros da carne terrestre, e a acorrentada para um trabalho transitrio, poderia recordar-se da sua vida espiritual? Quantas vezes tal lembrana seria prejudicial? Que entraves no trariam liberdade dos atos, se tal recordao mostrasse Alma suas origens e seu destino? Qual mrito poderia ter, se conhecesse as sanes futuras? As Almas encarnadas na Terra ainda no atingiram um grau de progresso bastante elevado, para que a
lembrana do seu estado anterior lhes possa ser til. A imanncia das impresses psquicas no se manifesta neste orbe de passagem. A lagarta recorda acaso a sua vida rudimentar no casulo? A crislida adormecida tem reminiscncia dos dias empregados no labor, quando se rojava sobre as plantas rasteiras? A borboleta, que voa de flor em flor, no precisa recordar o tempo em que a sua mmia sonhava suspensa na teia, nem o crepsculo no qual a sua larva se arrastava de erva em erva, nem noite quando a casca de uma pevide a envelopava. Isso no impede que o vulo, a lagarta, a crislida e a borboleta sejam um nico e mesmo ser. Em alguns casos da prpria vida terrena, tendes exemplos notveis da ausncia de recordao, tais os do sonambulismo, natural ou provocado, e os de certas condies psquicas que a moderna cincia estuda. No existe, pois, nada de surpreendente em que durante uma existncia seja esquecida a anterior. A vida urnica e a vida planetria representam dois estados distintos um do outro. Quaerens - Entretanto, mestre, j tendo vivido outra existncia, alguma coisa dessa anterior vida devia perdurar. De outro modo, tais encarnaes equivalem a inexistentes. LUMN - E no representa nada, o chegarmos Terra - trazendo aptides inatas? A hereditariedade intelectual no existe. Duas crianas, nascidas do mesmo pai e da mesma me, recebendo idntica educao, so objeto dos mesmos cuidados, habitando o ambiente. Examinemos cada um. So iguais? De modo algum: a igualdade das Almas no existe. Este, possui instintos pacficos e uma vasta inteligncia: ser
bom, laborioso, sbio, circunspecto, ilustre qui entre os pensadores. Aquele, traz consigo instintos perversos: ser mandrio, invejoso, gatuno, assassino. Fraca ou fortemente acentuada, tal dissemelhana de carter, que no depende nem da famlia, nem da raa, nem da educao, nem do estado corporal, se manifesta em todos os seres. Os ascendentes dos maiores entre os grandes homens no brilharam por um esprito superior, e at, na maior parte do tempo, no compreenderam o seu descendente ilustre. A Alma no se transmite pela gerao. Nisso, podeis refletir com os vossos prprios recursos: chegareis convico de que a diversidade absoluta das Almas no encontra sua razo de ser fora dos estados anteriores. Quaerens - A maior parte dos filsofos e dos doutores telogos no tem ensinado que a Alma criada ao mesmo tempo que o corpo? LUMN - Em que momento preciso? pergunto eu. Na ocasio do nascimento? A lei, e tambm a fisiologia anatmica sabem perfeitamente que a criana vive antes de ser liberta das entranhas maternas, e destruir um nascituro de oito meses j cometer um assassnio. A que tempo supondes que a Alma apareceria no crebro fluido do feto ou do embrio? Quaerens - Os antigos julgavam que a verdadeira animao espiritual do ser humano chega durante a sexta semana da gestao. Os modernos tendem para fix-la no momento em que a concepo se opera. LUMN - O derriso amarga! vs pretendeis que os desgnios eternos do Criador fossem submetidos na sua
execuo ao caprichoso desejo, flama intermitente de dois coraes apaixonados! Ousais admitir que nosso ser imortal criado ao contacto de duas epidermes. Estais dispostos a crer que o Pensamento supremo governador dos mundos se colocaria disposio do acaso, da intriga, da paixo e, algumas vezes, do crime! Julgais que o nmero das Almas dependeria do numero das flores tocadas pela meiga poeira do plen de asas douradas? Uma semelhante doutrina, tal suposio no atentatria da dignidade divina e da grandeza espiritual da nossa prpria Alma? E, alm disso, no seria a materializao completa da nossa faculdade intelectual? Quaerens - Logo... LUMN - Sim, efetivamente assim parece porque, em vosso planeta, alma nenhuma se pode encarnar sem ser sob a forma de embrio humano. E' uma lei da vida terrena. Mister se faz, porm, ver atravs do vu. A Alma no um efeito; o corpo lhe serve apenas de vestimenta. Quaerens - Concordo em que seria muito singular, se um acontecimento to importante quanto a criao da Alma imortal ficasse subordinado a uma causa carnal, fosse o resultado fortuito de unies mais ou menos legtimas. Convenho tambm em que a diferena das aptides que cada um traz, ao entrar neste mundo, no podem ser explicadas pelas causas orgnicas. Eu me pergunto, porm, para que serviriam muitas existncias, se, quando se recomea uma nova vida, no se tem recordao das precedentes. Eu me interrogo mais, se verdadeiramente desejvel termos em
perspectivas uma viagem sem fim, atravs dos mundos, e uma transmigrao eterna. Afinal, preciso que tudo isso tenha um termo, e que, aps tantos sculos de viagem, concluamos em um repouso. Seno, tanto vale como se descansssemos imediatamente depois de uma nica existncia... Lumen- O homens! no conheceis nem o Espao, nem o Tempo, ignorais que fora do movimento dos astros o tempo no existe mais, e que a eternidade no mensurvel; no sabeis que, no infinito da extenso sideral do Universo, o espao v palavra e tambm no tem medida; desconheceis tudo: princpios, causas, tudo vos escapa; tomos efmeros sobre um tomo que se move, no tendes a respeito do Universo nenhuma apreciao exata; e numa ignorncia assim, em tal obscuridade, pretendeis tudo julgar, tudo abranger, tudo apreender! Seria, porm, mais fcil encerrar o Oceano em uma concha de noz do que fazer assimilar a lei dos destinos pelo vosso crebro terrestre. No vos podeis, pois, fazendo uso legitimo da faculdade de induo que vos foi dada, deter nas consequncias diretas resultantes da observao razovel. A observao raciocinada vos demonstra que no somos iguais ao chegar a este mundo; que o passado semelhante ao futuro, e que a eternidade posta ante a nossa frente - tambm se acha para trs; que nada se cria na Natureza e coisa alguma se aniquila; que a Natureza se estende a toda coisa existente, e que Deus, esprito, lei, nmero - no so fora da Natureza outra coisa que matria, peso, movimento; que a verdade moral, a justia, a sabedoria e a virtude existem na marcha do mundo to bem quanto a
realidade fsica; que a justia ordena a equidade na distribuio dos destinos; que os nossos destinos no se cumprem sobre o planeta terrestre; que o cu empreo no existe, e a Terra um astro do cu; que outros planetas habitados planam com o nosso na imensido, abrindo s asas da Alma um territrio inesgotvel; e que o infinito do Universo corresponde, na criao material, eternidade das nossas inteligncias na criao espiritual. Tais certezas, acompanhadas das indues que nos inspiram, no so suficientes para libertar vosso Esprito dos velhos preconceitos e entregar ao seu livre julgamento um panorama digno dos vagos e profundos anseios de nossas Almas? Eu poderia ilustrar este esboo geral com exemplos e detalhes que vos impressionariam talvez por muito tempo. Que me baste acrescentar isto: h dentro da Natureza outras foras alm das que conheceis, cuja essncia, e bem assim o modo de ao, diferem da eletricidade, da atrao, da luz, etc. Ora, entre essas foras naturais desconhecidas, uma existe em particular, cujo estudo ulterior trar singulares descobertas para elucidar o problema da Alma e da vida. E' a fora psquica. Essa fora fludica invisvel estabelece uma ligao misteriosa entre os seres vivos, despercebidamente para eles, e j em muitas circunstncias pudestes reconhecer a sua existncia. Eis dois entes que se amam; impossvel lhes viverem separados. Se o imprio das circunstncias acarretar um afastamento, os nossos dois namorados ficaro desorientados, e suas almas estaro repetidamente ausentes do corpo para que se possam reunir atravs das distncias. Os pensamentos de um sero comuns ao outro; vivero juntos,
apesar da separao. Se alguma desgraa vier atingir um deles, o outro sofrer o contragolpe. Tem-se visto dessas separaes causar a morte. Quantos fatos no tendes constatado, sob testemunhos irrefragveis, de apario espontnea de uma pessoa a amigo ntimo, de esposa ao marido, de me a um filho, e recprocamente, ocorrida no momento preciso da morte da pessoa que aparece, morte e ocorre a grande distncia? A crtica, por mais severa, no pode hoje negar esses fatos autenticamente constatados. Duas crianas gmeas, vivenda a cem quilmetros uma da outra, em condies muito diferentes, so acometidas simultaneamente de idntica molstia, ou se um se fadiga alm do natural, o outro se ressentir de indisposio sem causa aparente. E assim por diante. Esses fatos mltiplos provam a existncia de ligaes simpticas entre as Almas, e mesmo entre os corpos, e nos convidam a constatar, uma vez mais, estarmos bem distantes do conhecimento de todas as foras em ao dentro da Natureza. Se eu vos entrego a esses quadros, meu amigo, para vos mostrar, principalmente, que podeis pressentir a verdade antes mesmo de morrer, e que a existncia terrestre no to desprovida de luz a ponto de impedir que, pelo raciocnio, se chegue a conhecer os traos precpuos do mundo moral. Demais, todas essas verdades deviam ressaltar do prosseguimento das minhas narrativas, quando vos demonstrei que vira no somente a minha penltima existncia - diretamente, graas lentido da luz, mas ainda a antepenltima vida planetria, e, at presente, mais de dez
existncias que precederam aquela na qual nos conhecemos sobre a Terra. A serventia cientfica que as nossas conversaes vos podem trazer o haver demonstrado que a luz constitui o modo de transmisso da histria universal. Segundo a lei de tal transmisso sucessiva da luz, todos os acontecimentos do Universo, a histria de todos os mundos, so espargidos no Espao em quadros imperecveis, verdicos e grandiosos, da Natureza inteira.
II
Quaerens - A reflexo e o estudo, LUMN ! j me haviam feito prximo da crena na pluralidade das existncias da Alma. Mas, estando tal doutrina longe de ter em seu favor provas lgicas, morais e mesmo fsicas, to numerosas e to evidentes quanto a da pluralidade dos mundos habitados -, confesso que at esse ento a dvida permanecia no meu pensamento. A ptica moderna e o clculo transcendental, que nos fazem, por assim dizer, tocar os outros mundos com a ponta dos dedos, mostram o decurso do ano, das estaes, dos dias desses mundos, fazem com que assistamos s variaes da Natureza viva nas suas superfcies; todos esses elementos permitiram Astronomia contempornea fundar a doutrina da existncia humana nos outros astros sobre base slida e imperecvel. Mas, ainda uma vez, no ocorre o mesmo com a palingenesia, e, embora
pendendo fortemente para a transmigrao das almas em um verdadeiro cu (pois que meio nico pelo qual podemos representar a vida eterna), minhas aspiraes reclamam, no entanto, para que se sustenham e consolidem, uma luz que no tive ainda. LUMN - E precisamente essa luz que faz objeto de nossa conversao de hoje, e desta se evidenciar. Tenho, confesso, uma vantagem sobre vs, pois posso falar de visu, e limito-me rigorosamente ao papel de intrprete fiel dos acontecimentos com os quais a minha vida espiritual , na atualidade, entretecida. Vossa inteligncia, sabendo agora compreender a possibilidade, a verossimilhana da explicao cientfica da minha narrativa, s pode, ouvindome, aumentar o seu saber. Quaerens - E por esse motivo principalmente que sempre estou sedento da vossa palavra. LUMN - A luz, compreendestes, se encarrega de dar Alma desencarnada a vista direta das respectivas existncias planetrias. Depois de haver revisto minha vida terrestre, vi a penltima - sobre um planeta da Gamma-Virginis. No se me apresentando aquela, pela luz, seno decorridos 864 meses, e a outra aps 2064, hoje eu vejo, de Capela, o que fui - na Terra - no primeiro dos tempos, e o que fui - no mundo virginal - h 8944 semanas. Eis, pois, duas existncias passadas e sucessivas que se tornaram para mim presentes e simultneas aqui, em virtude das leis da luz que a mim as transmite.
H cinco sculos aproximadamente, vivi em um mundo cuja posio astronmica, vista da Terra, precisamente a do seio de Andrmeda, do seio esquerdo. Os habitantes desse orbe mal suspeitaram decerto que os cidados de um pequeno planeta do Espao reuniram as estrelas por linhas fictcias, traaram figuras de homens, mulheres, animais, objetos diversos, e incorporaram todos os astros (para lhes dar uma denominao) nessas figuras mais ou menos originais. Espantar-se-iam muitos homens planetrios, se lhes dissesse que, na Terra, certas estrelas tm o nome de Corao do Escorpio (que corao!), Cabea de Co, Cauda da Grande Ursa, Olho de Touro, Colo do Drago. Testa de Capricrmo! No ignorais que as constelaes desenhadas sobre a esfera celeste, as posies das estrelas nessa esfera no so reais, nem absolutas, mas unicamente fundadas na situao da Terra no Espao, e assim no passam de uma simples questo de perspectiva. Aquele que, do alto da montanha, apreende o panorama circular, e fixa do seu plano a posio correspondente de todos os pncaros que lhe so visveis, das colinas, dos vales, dos povoados, dos lagos, traa um mapa que serve somente para o, lugar onde se encontra. Se transportar distncia de vinte quilmetros, os mesmos cumes so visveis, mas situados j em posies recprocas completamente diversas, em resultado da mudana de perspectiva. O panorama dos Alpes e do Oberland, visto de Lucerna e do Pilato, no se assemelha em nada ao que se observa do Faulhorn ou da Scheinige-Platte, acima de Interlaken. E, no entanto, so os mesmos cimos e os mesmos lagos. Outro tanto acontece com as estrelas. So
vistas quase as mesmas da estrela Delta da Andrmeda e da Terra. Contudo, no h constelao alguma que possa ser fixada; todas as perspectivas celestes mudaram; as estrelas da primeira grandeza passaram segunda e terceira; algumas de ordem mais inferior, vistas de mais perto, tomaram esplendor brilhante, e principalmente a respectiva situao, de umas para com as outras, variou, em resultado da diferena de posio entre essa estrela e a Terra. Quaerens - Assim, as constelaes que durante tanto tempo se acreditou traadas irrevogavelmente sob a cpula celeste, so fruto apenas da perspectiva. Mudando de posio, as perspectivas mudam, e o cu j no o mesmo. Ento, devamos ns mesmos ter a mudana das perspectivas celestes a seis meses de intervalo, por isso que, nesse interregno, a Terra tem variado fortemente de posio e se acha a 298 milhes de quilmetros de distncia do ponto que ocupava um semestre antes. LUMN - A objeo prova que haveis compreendido perfeitamente o princpio da deformao das constelaes, medida que se avana de qualquer lado do Espao. Seria tal qual enunciastes, se, com efeito, a rbita terrquea fosse de dimenso bastante vasta para que dois pontos opostos dessa rbita pudessem mudar o aspecto da paisagem celeste. Quaerens - Quase trezentos milhes de quilmetros. LUMN - Nada representam na ordem das distncias celestes, e no podem cambiar as perspectivas das estrelas, assim como um passo sob o zimbrio do Panteo no mudaria para o observador a posio aparente dos edifcios de Paris. Quaerens - Certos mapas da Idade-Mdia do o
Zodaco na funo de sustentculo do Empreo, e colocam algumas constelaes, Andrmeda, Lira, Cassope, guia, na mesma regio dos Serafins, Querubins e Tronos. Seria isso alta fantasia, se as constelaes no existissem em realidade, e afinal se deve a simples aproximaes aparentes, devidas perspectiva. LUMN - Evidentemente. O antigo cu teolgico no tem hoje mais razo de ser, e o prprio bom-senso testemunha a sua inexistncia. Duas verdades no se podem opor uma outra, necessria que o cu espiritual se acomode com o cu fsico. E' isso que as minhas diferentes palestras tm por especial objeto demonstrar-vos. No mundo de Andrmeda do qual vos falo, no se tem, com efeito, mais coisa alguma da Constelao desse nome. As estrelas que, vistas da Terra, parecem reunidas e serviram para desenhar sobre a paisagem celeste a figura da filha de Cefeu e de Cassope, esto desseminadas na vastido, a todas as distncias e a todas as direes. No seria possvel reencontrar, l junto, nem alhures, o menor vestgio dos traos da mitologia terrena. Quarens - A poesia a perde... Seria certamente uma doce satisfao o saber que vivera uma existncia inteira no seio de Andrmeda. Isso tem encanto. Est a todo um conjunto de perfume mitolgico e uma sensao vital. Estimaria certamente a ela ser transportado, sem temor do monstro que a morde, sem pensar nas cadeias que a acorrentam ribanceira, e sem inquietao pelo jovem Perseu, acompanhado da sua cabea de Medusa e do famoso Pgaso. Agora, porm, graas ao escalpelo da cincia, no
existe mais a princesa exposta sem vus na borda das vagas, nem Virgem empunhando a espiga de ouro, nem Orion perseguindo as Pliades; Vnus desapareceu de nosso cu crepuscular, e o velho Saturno deixou a foice cair na noite. A Cincia fez tudo isso desaparecer! Lamento esse progresso. LUMN - Preferis, pois, a iluso realidade? No sabeis ainda que a verdade incomparavelmente mais bela, maior, mais admirvel e maravilhosa mesmo do que o erro melhor ornamentado? Que h de comparvel, em todas as mitologias passadas e presentes, com a contemplao cientfica das grandezas celestes e dos movimentos da Natureza? Que impresso poderia tocar mais profundamente do que o fato da imensido ocupada pelos mundos e da enormidade dos sistemas siderais? Que palavra mais eloquente do que o silncio de uma noite estrelada? Que imagem seria capaz de transportar o pensamento a um abismo de assombro mais implacvel, do que essa viagem intersideral da luz - tornando eternos os acontecimentos transitrios da vida de cada mundo? Despojai-vos, pois, meu amigo, dos vossos antigos erros, e sede verdadeiramente digno da majestade da Cincia. Escutai o que se segue. Em virtude do tempo que a luz emprega para vir do sistema de Andrmeda a Capela, eu revi, depois da nossa ltima palestra, minha antepenltima existncia, vivida h cinco sculos e meio. Esse mundo singular para ns outros. S existe ali um reino, o animal, superfcie. O reino vegetal no existe. Mas, aquele bem diferente do nosso; sua espcie superior, sua espcie inteligente s possui quatro sentidos, porm, nenhum dos nossos, salvo talvez o da vista,
diferente todavia. E um mundo sem sono e sem fixidez. Est inteiramente envolto por um oceano rseo, menos denso do que a gua terrestre e mais do que o ar. E' uma substncia que forma o ambiente no grau intermedirio entre o ar e a gua. No busqueis fazer dele idia exata, pois seria intil esforo, atendendo-se a que a qumica terreal no vos pode oferecer uma substncia semelhante. O gs, cido carbnico, que se forma invisvel no fundo de um copo, e se despeja juntamente com o lquido, pode oferecer-vos uma imagem. Tal estado provm de uma determinada quantidade de calor e de eletricidade em permanncia sobre esse globo. No ignorais que sobre a Terra, na textura de todos os seres minerais, vegetais e animais, s existem trs estados para os corpos: o slido, o lquido e o gasoso, e que esses trs estados tm por origem o calor projetado do Sol superfcie do orbe terrestre. O calor interno do globo exerce ao insensvel sobre dita superfcie. Menor aquecimento solar liquefaria os gases e solidificaria os lquidos; maior calor fundiria os slidos e evaporaria os lquidos. Basta supor maior ou menor quantidade de aquecimento, para produzir ar liquido (ar lquido, entendeis?) e mrmore gasoso. Se, por uma causa qualquer, o planeta terreal deslizasse lentamente sobre a tangente da sua rbita e se distanciasse na obscuridade gelada do Espao, vereis toda a gua terrestre tornar-se slida, e os gases sua vez liquefazerem-se, e depois se solidificarem... Vereis! no, vs no vereis, permanecendo na Terra, mas podereis, do fundo do Espao, assistir ao curioso espetculo, se o vosso globo entendesse escapar pela tangente. E notai alm disso que, se a chegada a
esse frio colossal se fizesse de sbito, os seres encontrar-seiam repentinamente gelados no local onde estivessem, e o orbe transportaria pela imensido o panorama singular de todas as raas humanas solidificadas e imobilizadas nas vrias posies que cada indivduo e cada ser tivesse guardado no momento da catstrofe. Mundos existem em tal condio. So certos planetas excentricos, cujos habitantes, detidos insensivelmente na sua vida pela fuga rpida do planeta para longe do Sol, se encontram na condio de milheiros de esttuas. A mor parte est deitada, atendendo-se a que to profunda mudana de temperatura demandou alguns dias para se completar. So aos milhares, promscuos, mortos, ou, para melhor dizer, adormecidos em uma letargia completa. O frio os conserva. Trinta ou quarenta sculos mais tarde, quando o planeta retorna do seu aflio escuro e gelado para o brilhante perilio, rumo do Sol, o calor fecundo acaricia essa superfcie com os seus raios benfazejos; medra rapidamente. E quando chega ao grau que caracteriza a temperatura natural de tais seres, estes ressuscitam, na mesma idade de quando adormeceram, retomam seus afazeres da viglia (remota viglia!), sem saber de modo algum que dormiram (sem sonho) durante tantos sculos. Ocorre mesmo a continuao de uma partida de jogo comeada, e at a concluso de uma frase cujas primeiras palavras foram pronunciadas quarenta sculos antes. Tudo isso muito simples. J vimos que o tempo no existe, em realidade. , em ponto maior, o que se passa, em menor escala, na Terra, com os vossos infusrios ressurgentes, esses curiosos
rotferos, que renascem sob a chuva depois de largo perodo de morte aparente. Mas, voltando ao nosso mundo de Andrmeda, a atmosfera rosa, quase lquida que o toma inteiramente, qual um oceano sem ilha, a morada dos seres animados desse globo. Sem nunca repousar no fundo de tal oceano, que nenhum jamais tocou, flutuam perptuamente no seio do elemento mbil. Desde o nascimento at a morte, no tm um s instante de descanso. A atividade constante a condio mesma da sua existncia. Se parassem, pereceriam. Para respirar, isso , para fazer penetrar em seu interior o elemento fluido, so obrigados a mover, sem parar, os tentculos e a manter seus pulmes (emprego este vocbulo para me fazer compreendido) constantemente abertos. A forma exterior desta raa humana um pouco a das sirenas da antiguidade, mais ou menos elegante, e aproximando-se ao organismo da foca. Vedes a diferena essencial que separa essa constituio da dos homens terrestres? E que sobre a Terra a respirao se faz sem que nos apercebamos de tal, sem despender trabalho para obter o nosso oxignio, sem ser necessrio esforo para a transformao do sangue venoso em arterial - pela absoro do oxignio. Naquele outro mundo, ao contrrio, impera uma nutrio que no se obtm seno a custo de trabalho, a preo de incessantes esforos. Quaerens - Ento esse mundo inferior ao nosso em grau de progresso? LUMN - Sem dvida alguma, pois eu o habitei antes de vir Terra. No julgueis, porm, que a Terra seja muito superior, pelo fato de respirarmos mesmo dormindo. No se
pode negar a vantagem de possuirmos um mecanismo pneumtico que se abre por si mesmo, de segundo em segundo, cada vez que o nosso organismo tem necessidade de um sopro de ar, e que funciona sistematicamente noite e dia. O homem, porm, no vive s de ar; necessrio ainda ao organismo terrestre um complemento mais slido, e esse complemento no lhe vem por si prprio. Que resulta da? Olhai por um momento a Terra. Vede que triste, que desolador espetculo! Todas essas multides curvadas para o solo, que esgravatam penosamente, no intuito de obter dele o po! todas essas cabeas pendidas para a matria, ao invs de erguidas na contemplao da Natureza. todos esses esforos e labores, trazendo no seu sqito a debilidade e a doena! todos esses trficos para ajuntar um pouco de ouro a custa de todos! a explorao do homem pelo homem! as castas, as aristocracias, os roubos e as runas! as ambies, os tronos e as guerras! em uma palavra, o interesse pessoal, sempre egosta, muitas vezes srdido, e o reino da Matria sobre o Esprito: eis o quadro normal da Terra, situao governada pela lei que rege vossos corpos, que vos fora a matar para viver e a preferir a posse dos bens materiais, sem cogitar do alm-tmulo, posse dos bens intelectuais dos quais a Alma guarda sempre a riqueza inalienvel. Quaerens - Falais, mestre, maneira de quem pensa que se pode subsistir sem comer. LUMN - E julgais que se esteja adstrito a uma coisa to ridcula sobre todos os mundos do Espao? Felizmente, na mor parte dos mundos, o Esprito no se acha submetido a semelhante ignomnia.
No to difcil supor, primeira vista, e compreender a possibilidade de atmosferas nutrientes. A manuteno da vida no homem e nos animais depende de duas causas: a respirao e a nutrio. A primeira reside naturalmente na atmosfera; a segunda reside na alimentao. Desta provm o sangue; deste resultam os tecidos, os msculos, os ossos, as cartilagens, a carne, o crebro, os nervos, em uma palavra, a constituio orgnica do corpo. O oxignio que respiramos pode ser considerado substncia nutritiva, pois que, combinando-se com os princpios alimentcios absorvidos pelo estmago, completa a sanguificao e o desenvolvimento dos tecidos. Ora, para imaginar a nutrio total transferida para o domnio atmosfrico, basta observar que, em suma, um alimento completo se compe de albumina, acar, gordura e sal, e imaginar que um fluido atmosfrico, em vez de ser composto somente de azoto e de oxignio, seja formado daquelas diversas substncias em estado gasoso. Tais alimentos se encontram nos corpos slido que absorveis, e digesto que est confiada a tarefa de os desagregar e assimilar. Quando comeis um pedao de po, por exemplo, introduzis no estmago fcula e amido, substncia insolvel na gua e que no se encontra no sangue. A saliva e o suco pancretico transformam o amido insolvel em acar solvel. A blis, o suco pancretico e as excrees intestinais mudam o acar em gordura, e assim que, pelo processo da alimentao, os alimentos foram desagregados e assimilados no corpo.
Vs vos admirais, meu amigo, de que, no mundo celeste, onde resido desde h algum tempo contado pela Terra, eu me recorde ainda de todos esses termos materiais, e de que desa a referir-me aos mesmos assim. As lembranas que me acompanharam da Terra esto longe de esmaecer, e pois que tratamos determinadamente de uma questo de fisiologia orgnica, no experimento nenhuma espcie de falsa vergonha em dar a cada coisa o nome apropriado. Se, pois, supusermos que, ao invs de serem combinados ou misturados na constituio dos corpos slidos ou lquidos, os alimentos se encontrem em estado gasoso na formao da atmosfera, criaremos com isso atmosferas nutritivas, que nos dispensem da digesto e das funes ridculas e grosseiras. O que o homem apenas capaz de imaginar na esfera restrita onde suas observaes se exercem, a Natureza soube realizar em mais de um ponto da criao universal. Eu vos asseguro, de resto, que, quando no mais se est acostumado operao material da introduo do alimento no tubo digestivo, no se pode fugir impresso do quanto tal operao brutal. E' a reflexo que eu fazia ainda h poucos dias, quando, ao deixar meus olhares errantes sobre uma das mais opulentas paisagens do vosso planeta, fui impressionado pela beleza suave e toda anglica de uma jovem, reclinada em uma gndola que flutuava docemente nas guas azuis do Bsforo, diante de Constantinopla. Almofadas de veludo vermelho, bordadas de cetim, formavam o div da formosa Circassiana; pesadas borlas de ouro tombavam at junto as vagas. Ante a moa, um pequeno
escravo preto, ajoelhado, tangia um instrumento de cordas. Esse corpo feminino era to juvenil e to gracioso, o brao em curva to elegante, os olhos se mostravam to puros e inocentes, e a fronte, j pensativa, aparecia to calma em face da luz do cu - que eu me deixei, por instante, cativar numa espcie de admirao retrospectiva para com essa obra-prima da Natureza viva. Pois bem! enquanto aquela candura da juventude que desperta, aquela suavidade da flor me entretinha num gnero de encantamento transitrio, o barco chegou o bordo a uma plataforma saliente, e a jovem, apoiando-se no escravo, veio sentar-se num sof, perto de bem disposta mesa, servida copiosamente, em torno da qual outras pessoas estavam reunidas. A linda jovem comeou a comer! Sim, ela come! durante uma hora talvez ( com esforo que me submeto razo das minhas recordaes terrestres). Que espetculo ridculo! Um ser to lindo, levando alimentos boca e enchendo, de instante a instante, mal sei de que matrias o interior do seu corpo encantador! Que vulgaridade! E, depois, pedaos de um animal qualquer esses dentes perolados tiveram a coragem de mastigar! E, em seguida, fragmentos de um outro animal viram sem hesitao, ante eles, abrirem-se aqueles lbios virginais para os receber e tragar! Que regmen! uma triste mistura de ingredientes tirados do gado ou da caa brava, que viveram nos charcos e foram massacrados em seguida. Horror! Desviei com tristeza meu olhar desse estranho contraste, para fixar um mundo mais distinto, onde a Humanidade no est reduzida a semelhantes contingncias.
Os seres flutuantes pertencentes ao mundo de Andrmeda, onde se escoou minha antepenltima existncia, esto ainda submetidos bem mais servilmente do que os habitantes da Terra ao trabalho da nutrio. Dispem eles de ar que, semelhana do que ocorre em vosso orbe, s os alimenta trs quartas partes: foroso que busquem isso a que se pode denominar - seu oxignio, e, sem trgua, esto condenados a fazer funcionar seus pulmes e a preparar ar nutriente, sem jamais dormir e sem nunca se saciarem desse ar, por isso que, a despeito de todo o trabalho, s o podem absorver em pequenas pores de cada vez. Passam assim a vida inteira, e sucumbem por esse esforo. Quaerens - Desse modo, valia mais no ter nascido. Mas, a mesma reflexo no ser aplicvel Terra? Para que serve nascer, afadigar-se em mil variados labores, girar durante seis ou dez decnios no mesmo crculo cotidiano: dormir, comer, agir, falar, correr, andar, agitar-se, sonhar, etc.? Para que serve tudo isso? No seria avanado o extinguir-se no dia seguinte ao do nascimento, ou melhor ainda, deixar de nascer? A Natureza no marcharia pior por isso, e nem mesmo de tal se aperceberia. E, de resto, pode-se acrescentar, para que serve a prpria Natureza, e por que existe o Universo? LUMN - E o grande mistrio. E preciso que todos os destinos se cumpram. Esse mundo de Andrmeda muito inferior. Para dar idia da fraqueza intelectual da Humanidade dali, escolherei os dois assuntos que exprimem geralmente a medida do valor de um povo: a religio e a poltica. Ora, em
religio, em vez de buscar Deus na Natureza, de fundar seus julgamentos pela Cincia, de aspirar verdade, de se servir dos olhos para ver e da razo para compreender, em uma palavra, ao invs de estabelecer os fundamentos da sua filosofia sobre o conhecimento to exato quanto possvel da ordem que rege o mundo -, dividiram-se em seitas voluntariamente cegas, acreditaram render homenagem ao seu pretenso Deus, cessando de raciocinar, e crem ador-lo, sustentando que o seu formigueiro o nico existente no Espao, recitando palavras, injuriando-se de seita para seita, e, incrvel! benzendo armas, ateando fogueiras, autorizando massacres e guerras. H tais e tais asseres nas suas doutrinas, que parecem imaginadas expressamente para ultrajar o senso comum. E so precisamente essas as que constituem os artigos de f das suas crenas! So da mesma fora em poltica. Os mais inteligentes e os mais puros no conseguem entender-se; tambm a Repblica parece ali uma forma de governo irrealizvel. To longe quanto se possa remontar nos anais da sua histria, evidencia-se que os povos dbeis e indiferentes preferem no o governo de si prprios -, mas o serem dominados pelos indivduos que se proclamam seus Basileus. Esse chefe lhes toma trs quartas partes dos recursos, faz guardar - sob suas vistas - pelos da malta a essncia mais rsea da respectiva atmosfera (isto , o que de melhor existe no dito mundo), numera-os a todos, e, de tempos a tempos, os envia a entresbordoarem-se com o povo vizinho, submetido este, sua vez, a um Basileu anlogo. Semelhantes a cardumes de arenques, dirigem-se, das duas partes, rumo de um campo de
batalha, que denominam - o campo da honra -, e se destroem mutuamente feitos loucos furiosos, sem saber porque, e sem se compreenderem sequer, atendendo-se ao fato de no falarem o mesmo idioma. Alguns privilegiados do acaso regressam. E acreditais que estes, de retorno, tomam averso pelo Basileu? Nem por sombra. Repenetrando nos seus lares moblie, os destroos das hostes guerreiras tm por mais imediato celebrar, em companhia dos dignitrios da sua seita, aes de graas, suplicando ao seu Deus que d longos dias de bnos ao digno homem que se intitula deles paternal Basilio ! Quaerens - Deduz-se desse relato que os habibitantes do Delta Andrmeda so fsica e intelectualmente muito inferiores a ns outros, pois, na Terra, estamos bem longe de seguir semelhante conduta... Em suma, no existe ali seno um reino animado, um reino mbil, sem repouso, sem sono, entregue agitao perptua por um inexorvel fatalismo. Tal mundo me parece bem bizarro. LUMN - Que direis, pois, daquela que habitei h quinze sculos? Mundo igualmente dotado de um reino nico, no de um reino mbil, mas, ao contrrio, de um reino fixo, parecena do vosso reino vegetal? Quaerens - Animais e homens presos pela raiz ?
III
LUMN - Minha existncia anterior do mundo de Andrmeda foi vivida no planeta Vnus, vizinho da Terra, onde me recordo que tive o sexo feminino. No a revi diretamente, pela lei da luz, por isso que esta despende o mesmo tempo para vir de Vnus ou da Terra estrela Capela, e, por consequncia, olhando Vnus, eu olhava atualmente o seu aspecto de h 864 meses, e no o que fora h nove sculos, poca da minha existncia l. Minha quarta vida anterior existncia na Terra se passou em um imenso planeta anelar, pertencente constelao do Cisne, e situado na zona da Via-Lctea, Esse mundo habitado somente por rvores. Quaerens - Quer isso dizer que ali existem plantas, e no h animais, nem seres inteligentes e falantes? LUMN - Tal qual. Somente plantas, verdade; mas, nesse vasto mundo de plantas, existem raas vegetais mais avanadas do que as que medram sobre a Terra; plantas existem que vivem de modo igual a ns outros: sentem, pensam, raciocinam e falam. Quaerens - Mas impossvel!... Oh! perdo! quero dizer, incompreensvel, e completamente inconcebvel. LUMN - Essas raas inteligentes existem de fato, tanto assim que fiz parte delas, h quinze sculos, quando fui rvore raciocinante. Quaerens - De que maneira? De que forma pode uma planta raciocinar sem crebro e falar sem lngua? LUMN - Ensinai-me, eu vos rogo, qual o processo ntimo de que vos servis para pensar, e bem assim qual a
transformao de movimentos de que se serve a vossa Alma para traduzir suas concepes mudas em palavras audveis... Quaerens - ...Busco, mestre! porm no encontro explicao essencial desse fato, alis comum. LUMN - No se tem o direito de declarar impossvel um fato desconhecido, quando se ignora a lei da maneira de ser a ele concernente. Pela circunstncia de que o crebro o rgo fisiolgico posto na Terra ao servio da inteligncia, julgais que devam existir crebros anlogos, crebros e medulas espinais em todos os orbes do Espao? Isso seria um erro ingnuo, verdadeira iluso antropomrfica. A lei do progresso rege o sistema vital de cada um dos mundos. Esse sistema vital difere, segundo a natureza ntima e as foras particulares a cada globo. Quando atinge um grau suficiente de elevao, que o torna suscetvel de entrar ao servio do mundo moral, o Esprito, mais ou menos desenvolvido, eis que aparece. No penseis que o Pai eterno cria diretamente em cada globo uma raa humana. No. A espcie superior do reino animal recebe a transfigurao humana pela fora das coisas, pela lei natural - que lhe enobrece o dia em que o progresso a conduz a um estado de superioridade relativa. Sabeis porque tendes um trax, um estmago, duas pernas e dois braos, e uma cabea munida dos sentidos visual, auditivo e olfativo? E' porque os quadrpedes, os mamferos que precederam a apario do homem estavam assim constitudos. Os macacos, os ces, os lees, os ursos, os cavalos, os bois, os tigres, os gatos, etc., e, antes deles, os rinocerontes ticorinus, a hiena das cavernas, o cervo de chifres gigantescos, o mastodonte, o sarigue, etc., e, ainda
antes desses, o plessiossauro, o ictiossauro,o iguanodonte, o terodctilo, etc., e, mais anteriormente, os peixes, os crustceos, os moluscos, etc. -, foram o produto de foras vitais em ao sobre a Terra, dependentes do estado do solo e da atmosfera, da qumica inorgnica, da quantidade de calor e da gravidade terrestre. O reino animal da Terra seguiu, desde a sua origem, essa marcha contnua e progressiva rumo do aperfeioamento da forma do tipo dos mamferos, despegando-se cada vez mais da brutalidade da matria. O homem mais belo do que o cavalo, este mais formoso do que o urso, e o urso mais do que a tartaruga. Uma lei semelhante regeu o reino vegetal. As plantas pesadas, grosseiras, sem folhagem e sem flores, comearam a srie. Depois, com os sculos, as formas se tornaram mais elegantes e mais refinadas. As folhas surgiram, derramando nos bosques deliciosa sombra. As flores, a seu turno, vieram embelezar o jardim da Terra e espargir doces perfumes na atmosfera at ento inspida. Essa dupla srie progressiva dos dois reinos se encontra hoje, nos terrenos tercirios, secundrios e primordiais, visitados pelos olhos escrutadores da Geologia. Houve uma poca sobre a Terra em que algumas ilhas apenas emergiam do seio das guas quentes, nos vapores abundantes de uma atmosfera sobrecarregada, a no havia outros seres que se distinguissem do reino inorgnico alm de longos filamentos em suspenso nas vagas. Fungos, algas, tais foram os primeiros vegetais. Sobre os rochedos, formaram-se seres que o esprito hoje se embaraa de nomear. L, esponjas intumescem; aqui, mais uma rvore de coral se eleva; mais longe, medusas se
destacam, lembrando hemisfrios de gelatina. So animais? So plantas? A Cincia no nos responde. So animaisplantas, zofilos. Mas, a vida no estaciona nessas formas. Eis aqui seres no menos primitivos e tambm simples, que assinalam a determinao de um gnero de vida especial: os aneldeos, os vermes, os peixes reduzidos ao estado de tubo, seres sem olhos, sem orelhas, sem sangue, sem nervos, sem vontade, espcies vegetativas, dotadas todavia da faculdade de locomoo. Mais tarde, rudimentos de rgos visuais apareceram, prdromos de rgos de locomoo, princpios de uma vida mais livre. Peixes, anfbios se sucedem. O reino animal terrestre se transforma por si prprio. Quem sabe o que teria acontecido, se um primeiro ser no houvesse abandonado seu rochedo! se esses elementos primitivos da vida terrestre permanecessem fixados no ponto de origem, e se, por uma causa qualquer, a faculdade de locomoo no houvesse tido um comeo? Aconteceria que o sistema vital terrestre, em lugar de se manifestar em duas direes: mundo de plantas e mundo de animais, chegaria no apenas formao de sensitivas, plantas superiores dotadas j de verdadeiro sistema nervoso; no se limitaria a produzir flores, algo vizinhas de ns outros nos seus atos orgnicos e em seus amores; mas, continuando a ascenso, o que se produziu no reino animal ter-se-ia realizado no mundo vegetal. Existem vegetais sentindo e agindo: ver-se-iam plantas sentindo e fazendo-se compreender. A Terra no teria sido privada por isso da srie
humana; apenas o gnero humano, ao invs de ser mbil, conforme , estaria fixada ao solo pelos ps. Tal o estado do mundo anelar que habitei, h vinte sculos, no seio da Via-Lctea. Quaerens - Sem contradizer, esse mundo de homensplantas me pasmou ainda mais do que o precedente. Dificilmente eu me posso figurar a vida e os costumes de tais seres singulares. LUMN - O gnero de vida ali , com efeito, bem diferente do vosso. No se constroem cidades, no se fazem viagens, nem se impe qualquer forma de governo. Desconhece-se a guerra, esse flagelo da Humanidade terrquea, e tambm o amor prprio nacional que vos caracteriza. Prudentes, cheios de pacincia e dotados de um feitio moral permanente, os seres dali no tm a mobilidade e a fragilidade dos homens da Terra. Vive-se l, em mdia, cinco a seis sculos, de uma existncia calma, doce, uniforme, sem revolues. No julgueis, entretanto, que esses homens-plantas tenham apenas uma vida vegetativa. Ao contrrio, sua existncia muito pessoal e muito Absoluta. So divididos, no em castas, segundo o nascimento ou a fortuna, conforme se pratica entre os da Terra, sim por famlias - cujo valor natural difere precisamente segundo a espcie. Tm uma histria social, no escrita, pois nada se pode perder entre eles, atendendo-se ausncia de emigraes e conquistas, histria feita por tradies e por geraes. Cada uma conhece a histria da sua raa. Possuem tambm os dois sexos, tal qual ocorre com os terrestres, e suas unies se processam de um modo anlogo,
porm incomparavelmente mais casto. E no indispensvel a unio consanguinea; h fecundaes a distncia. Quaerens - Mas, afinal, como podem comunicar mutuamente seus pensamentos se que pensam? E, alm disso, mestre, de que modo vs mesmo vos reconhecestes nesse mundo singular? LUMN - Uma resposta s vos dar a das duas perguntas. Olhava esse anel da constelao do Cisne, e a vista ali se me prendia com persistncia; estava surpreendido, eu mesmo, de enxergar apenas vegetais naquela superfcie, e notei principalmente os singulares agrupamentos existentes nas campinas: aqui, dois a dois; mais adiante, trs a trs; pouco alm, dez a dez; noutras partes, em maior nmero. Via os que pareciam sentados ao bordo de uma fonte; outros semelhavam estar deitados, tendo em redor pequenos rebentos; procurei entre todos identificar as espcies terrestres, tais os abetos, os carvalhos, os lamos, os salgueiros -, mas no assinalei essas formas botnicas. Enfim, fixei muitas vezes meus olhares sobre um vegetal com a forma de figueira, sem folhagem e sem frutos, tendo flores vermelho-escarlate. De sbito, vi a enorme figueira alongar um ramo, guisa de brao gigantesco, levar a extremidade desse brao altura correspondente cabea, destacar uma das flores magnficas que lhe serviam de cabeleira e apresent-la em seguida, inclinando a fronte, a uma outra figueira, esbelta, elegante, portadora de suaves flores azuis, colocada a alguma distncia, em frente da ofertante. A distinguida pareceu receber a flor vermelha com um certo prazer, porque estendeu um ramo (dir-se-ia cordial
e fina mo) ao vizinho, e pareceu terem assim ficado por longo tempo. Sabei que, em certas circunstncias, basta um gesto para reconhecer uma pessoa. Foi o que me aconteceu ante tal cena. O gesto da figueira da Via-Ltea despertou em meu Esprito todo um mundo de recordaes. Esse homemplanta era ainda eu, de h quinze sculos, e identifiquei meus filhos nas figueiras de flores violeta que me cercavam, pois lembrei que a cor das flores descendentes resulta da fuso das cores dos ascendentes paterno e materno. Os homens-plantas vem, ouvem e falam, sem olhos, sem orelhas e sem laringe. Na Terra, j tendes flores que distinguem muito bem, no s, mente o dia da noite, mas ainda as diferentes horas do dia, a altura do Sol no horizonte, um cu puro de um nublado; que, mais ainda, tm a repercusso dos diversos rudos com esquisita sensibilidade; que, finalmente, se entendem maravilha entre elas e at com as borboletas mensageiras. Esses rudimentos so desenvolvidos a um verdadeiro grau de civilizao no mundo do qual vos dou notcia, e os seres, dali, so to completos no respectivo gnero quanto o sois vs outros na Terra, no vosso. Sua inteligncia est, certo, menos avanada do que a mdia intelectual da Humanidade terrena; porm, nos costumes e nas relaes recprocas, revelam em todas as ocasies uma doura e uma delicadeza que poderiam muitas vezes servir de modelo mor parte dos habitantes da Terra. Quaerens - Mestre De que modo se pode ver sem olhos e ouvir sem orelhas? LUMN - Cessareis o assombro, meu velho amigo, se refletirdes que a luz e o som so apenas dois modos de
movimento. Para apreciar uma ou outra de tais maneiras de movimento, necessrio (e basta) ser dotado de aparelho em correspondncia com uma das duas, ainda que o aparelho seja um simples nervo. Os olhos e as orelhas constituem os ditos aparelhos para a natureza terreal. Em outra organizao, de outra natureza, tanto o nervo ptico quanto o auditivo tero outra forma para a funo de rgos. Alm disso, no existem dentro da Natureza somente esses dois modos de movimentos: luminoso e sonoro; posso mesmo dizer que tais qualificativos derivam da vossa maneira de sentir, e no da realidade. H, sem dvida, no seio da Natureza, no um, porm dez, vinte, cem, mil diferentes modos de movimento. Na Terra fostes formados para apreender principalmente aqueles dois citados, que constituem quase toda a vossa vida de relao. Em outros mundos, h tambm outros sentidos para apreciar a Natureza sob diferentes aspectos, sentidos que tm, uns, a localizao dos vossos olhos e das vossas orelhas, e, outros, so dirigidos rumo das percees completamente estranhas s acessveis aos organismos terrestres. Quaerens - Quando me falastes, h pouco, a respeito dos homens-plantas do mundo do Cisne, tive idia de perguntar se as plantas terrestres tm alma. LUMN - Sem a menor dvida. As plantas terrenas so, sim, dotadas de alma, de igual maneira que os animais e os homens. Sem alma virtual nenhuma organizao constituiria um ser. A forma do vegetal dada pela sua alma. Porque a bolota e um caroo, plantados ao lado um do outro, no mesmo solo, sob a mesma exposio e
idnticamente nas mesmas condies-, produziro, a primeira, um carvalho e, o segundo, um pessegueiro? Porque uma fora orgnica residente no carvalho construir seu vegetal tpico, e uma outra fora orgnica, uma outra alma, imanente no pessegueiro, levar ao caroo outros elementos para formar igualmente seu corpo especfico, pelo mesmo princpio que a humana Alma constri - ela prpria - o seu envoltrio corporal, servindo-se dos meios postes sua disposio peia natureza terrena. Apenas, a alma da planta no tem conscincia de si mesma. Almas de vegetais, almas de animais, almas de homens so seres chegados j a um grau d? personalidade, de autoridade suficiente para dobrar sua ordem, dominar e reger debaixo de sua direo: as demais foras no personalizadoras e esparsas no seio da imensa Natureza. A mnada humana, por exemplo, superior mnada do sal, mnada do carbono, do oxignio, as absorve e as incorpora na sua obra. A alma humana, em nosso corpo terrestre, sobre a Terra, rege, sem disso se aperceber, todo um mundo de almas elementares, formando as partes constitutivas do seu corpo. A matria no substncia slida e espaosa; um complexo de centros de foras. A substncia no tem importncia. De um tomo a outro, existe um vcuo imenso, relativamente s dimenses dos tomos. Ao alto dos diversos centros de foras constitutivas que formam o corpo humano, a alma humana governa todas as almas ganglionrias que lhe so subordinadas. Quaerens - Confesso, meu erudito instrutor, no ter apreendido bem claramente essa teoria.
LUMN - Tambm vai ser ilustrada por um exemplo que a far passar, para vs, cegueira de - fato. Quaerens - A categoria de - fato? Sois acaso a reencarnao da princesa Scheherazade, e me haveis fascinado em um novo conto das Mil e uma noites, as mil e uma noites da Urnia moderna? LUMN - Uma derradeira palestra far com que realizeis comigo, no espao celeste, uma viagem que desenvolver sob vossos olhares o infinito variado da Criao.
LUMN - Conheceis a esplndida constelao de Orion que reina soberana nas vossas noites de inverno, e curiosa estrela mltipla - Thta, que se encontra sob a Espada suspensa do Talim, e brilha no centro da afamada nebulosa. Esse sistema Thta de Orion um dos mais singulares que existem no escrnio, to diversificado agora, dos diamantes celestes. E composto de quatro sis principais dispostos em quadriltero. Dois deles, formando o que se poderia denominar a base do quadriltero, so, por outra parte, acompanhados, um, de um sol, e, o outro, de dois. E',
pois, um sistema de sete sis, em torno de cada um dos quais gravitam planetas habitados. Visitei um dos planetas que gira em volta de secundrio sol, sendo que este ltimo se move em torno de um dos quatro sis principais. Por sua vez, este principal, em concerto com os demais, circula em redor de invisvel centro de gravidade colocado no interior do quadriltero. No insisto a respeito desses movimentos a mecnica celeste j vo-los explicou. Eu estava, pois, iluminado e aquecido nesse planeta por sete sis simultaneamente : por um maior e mais ardente em aparncia do que os outros seis, por estar mais prximo de mim; por um segundo muito grande e tambm mui brilhante; por trs de mdia dimenso, e por dois pequenos, gmeos. No se achando todos reunidos no alto do horizonte, h sis do dia e sis da noite! Isso significa no existir ali noite, prpriamente dita, e, em consequncia, no haver o sono. Quaerens - Como pode ser? Coincidem no cu sis duplos e mltiplos! LUMN - Em grande nmero. O sistema de que vos dou notcia, entre outros, conhecido dos astrnomos da Terra, que contam aos milhares os sistemas de estrelas duplas, mltiplas e coloridas. Podeis, vs mesmo, constatar isso ao telescpio. Ora, sobre o planeta de Orion, que designei h pouco, os seres no tm a natureza vegetal, nem animal; no poderiam mesmo caber em nenhuma das catalogaes terrenas, ou ainda, em uma das duas grandes divises - reino vegetal e reino animal. No encontro verdadeiramente maneira de os comparar, para vos dar uma idia da forma
respectiva. Vistes acaso, nos jardins botnicos, o loes gigantesco, o cereus giganteus? Quaerens - Conheo particularmente esse vegetal. Seu nome deriva da semelhana com os tocheiros de trs ou mais ramificaes que se acendem nos templos. LUMN - Pois bem! os homens de Theta Orionis oferecem alguma parecena com essa forma. Apenas se movem lentamente e se mantm aprumados graas a um processo de suco anlogo ao das ampolas de certas plantas. A parte inferior da sua haste vertical, a que pousa no cho, prolonga, maneira das estrelas do mar, pequenos apndices que se fixam ao solo e produzem o necessrio vcuo. Andam muitas vezes em bandos e mudam de latitude, segundo as estaes do tempo. Eis aqui, porm, o mais curioso ponto da respectiva organizao, o que pe em evidncia o princpio, do qual vos falei, da reunio de almas elementares no corpo humano. Visitei um dia esse mundo, e me encontrei no meio de uma paisagem orinica. Um ser estava l, semelhante a um vegetal de dez metros de altura, sem folhagem e sem flores, essencialmente constitudo por cilndrica haste - terminada na parte superior por muitas ramificaes, lembrando os de um lustre. O dimetro do talo central, e assim o das ramificaes, podia aproximar-se ao tero do metro. A extremidade superior da haste e dos ramos era coroada por argnteas franjas. De repente, esse ser agitou as ramificaes e esvaiu-se. Com efeito, nesse mundo, acontece que indivduos bem dispostos se abatem literalmente num todo.
As molculas que os constituem tombam de uma vez, todas, sobre o solo. O indivduo cessa de viver pessoalmente; as molculas se separam e se dispersam. Quaerens - Desagregam-se ??? LUMN - Mais ou menos. Recordo-me de que essa desassociao do corpo ocorre muito frequentemente durante a plena vida. Tanto resulta de uma contrariedade, quanto da fadiga, ou ainda de desarmonia orgnica entre as diferentes partes. Vive-se integralmente, tal qual existis neste momento, e, de sbito, fica-se reduzido expresso mais simples. A molcula cerebral (que, em vs, vos constitui essencialmente) sente-se desprendida e em descenso, em resultante da queda das suas co-irms ao longo das extremidades, e chega superfcie do cho solitria e independente. Quaerens - Esse modo de desapario seria alguma vez cmodo processo aqui, sobre a Terra. Para sair de embaraosa situao, por exemplo, de urna cena conjugal do gnero Molire, ou de um quarto de hora desagradvel, igual ao de Rabelais, ou ainda de um impasse doloroso - a plataforma do cadafalso -, bastava no suster os tomos constitutivos, e ... boa-noite, meus senhores... LUMN - Levais o assunto em jocosidade, mas eu vos afirmo que a realidade incontestvel. Outro tanto existiria sobre a Terra, semelhana do que ocorre no planeta de Orion, se o princpio do domnio no reinasse to fortemente entre vs outros. L existe tal principio elementarmente. Vosso corpo formado de molculas animadas; vossa medula espinal, conforme se expressou um dos eminentes
fisiologistas da Terra, uma srie linear de centros independentes e ao mesmo tempo governados. As partes essenciais constitutivas do vosso sangue, da vossa carne, dos ossos esto no mesmo caso. So verdadeiras provncias com administrao autnoma, porm, submetidas a uma autoridade superior. O funcionamento dessa diretriz superior uma condio da vida humana, condio menos exclusiva nos animais inferiores. Em cada anel do verme chamado lombriga - h um verme completo, de sorte que uma lombriga representa uma srie de seres semelhantes, constituindo verdadeira sociedade de cooperao vital. Cortado por anis, o verme representa outros tantos indivduos independentes. Na tnia, ou verme - solitria, a cabea j mais importante do que o resto, e possui, tal qual ocorre com as plantas, a faculdade de reproduzir o resto do corpo do qual tenha sido separada. A sanguessuga igualmente um ser formado de indivduos unidos, e, cortada de cinco em cinco anis, da operao resultam outras tantas sanguessugas. De igual modo que um galho rebrota a rvore, a perna do caranguejo ou a cauda do lagarto se reconstituem. Em realidade, os animais vertebrados (o homem, por exemplo) so compostos na sua rvore essencial (a medula espinal e seu prolongamento superior at ao crebro) de segmentos justapostos, de centros nervosos, cada um dos quais dotado de alma elementar. A lei de autoridade em ao sobre a Terra determinou, na srie animal, uma ao preponderante. Sois constitudos por uma verdadeira multido de seres grupados e submetidos
pela atrao plstica da vossa alma pessoal, a qual, do centro do ser, formou o corpo, desde o embrio, e reuniu em torno dele, no respectivo microcosmo, todo um mundo de seres destitudos ainda de conscincia da sua individualidade. Quaerens - No planeta de Orion, a Natureza constituda, pois, em estado de repblica absoluta ? LUMN - Repblica, sim, mas governada pela lei. Quaerens - Quando, porm, um ser se encontra assim desagregado, de que modo pode, em seguida, reconstituir-se integralmente? LUMN - Pela vontade, e muitas vezes sem o menor esforo, por um desejo at furtivo. Por serem separadas da molcula cerebral, as corporais no deixam de lhe estar presas intimamente; a um momento dado, elas se renem e retomam cada qual o seu lugar. A molcula diretora atrai as outras a distncia, com a mesma faculdade com que o m atrai a limalha de ferro. Quaerens - Imagino, de boamente, ver todo esse exrcito liliputiano, surpreendido por um apito, comprimindo-se para o seu centro, organizar a reunio de todos os pequenos soldados, os quais, subindo agilmente uns sobre os outros, chegam, em um pestanejar de olhos, a reconstituir o homem que me haveis pintado. Em verdade, preciso certamente ter deixado a Terra para observar semelhantes novidades. LUMN - Julgais ainda a Natureza universal pelo tomo que tendes sob os olhos, estais apto para compreender os fatos contidos na esfera das vossas observaes. Mas, volo repito, a Terra no o tipo do universo.
Esse mundo de Theta Orionis, com os sete sis rodantes, povoado por um sistema orgnico anlogo ao que vos defini. Vivi ali h vinte quatro sculos. Foi l que conheci o Esprito (encarnado no presente na Terra) que publica seus estudos sob o nome de Allan Kardec. Durante nossa vida terrena, no nos recordamos de que ramos velhos conhecidos, mas nos sentamos, por vezes, atraidos um para o outro por singulares aproximaes de pensamentos. Agora que retornou, tal qual eu, ao mundo dos Espritos, ele se lembra tambm da singular Repblica de Orion e pde rev-Ia. Sim, bem singular e, no entanto, real. No tendes noo alguma - no vosso pobre planeta - da diversidade inimaginvel que distingue os mundos, em sua geologia, na fisiologia orgnica, nas condies da habitabilidade, nas formas humanas, nas mentalidades. Ides julgar por uma srie de exemplos muito variados. Estas conversaes podem servir para esclarecer vosso conhecimento a respeito do fato geral, to importante concepo do Cosmos: a universal diversidade. Viajei um grande nmero de pases celestes diferentes, e atualmente estudo a Criao, sem me fixar em particular. Espero, no decurso do sculo prximo, reencarnar-me em um mundo dependente do cortejo de Srius. A Humanidade ali mais bela do que a da Terra. Os nascimentos l se efetuam sgundo n sistema orgnico menos doloroso, menos brutal e menos ridculo do que o processo terrestre; a beleza da virgem no se quebra pela fecundao; o amor e a maternidade no so contraditrios.
Mas, o carter mais notvel da vida nesse mundo, que o homem se apercebe das operaes fsico-qumicas que se realizam no interior do corpo. Em vosso organismo terrqueo, no Vedes a maneira, por exemplo, pela qual os alimentos absorvidos so assimilados, o modo por que o sangue, os tecidos, os ossos se renovam; todas as funes se executam instintivamente, sem que o pensamento as perceba. Tambm, de mil molstias manifestadas, a causa desconhecida, e muitas vezes impossvel de descobrir. L, a criatura sente os movimentos da sua manuteno vital, no mesmo grau em que sentis um prazer ou um sofrimento. De cada molcula do corpo parte, por assim dizer, um nervo que transmite ao crebro as variadas impresses recebidas. O interior do corpo to visvel quanto o exterior. A Alma conhece absolutamente o corpo, que ela rege de modo soberano. Se o homem terrestre fosse dotado de um tal sistema nervoso, ao mergulhar olhares no organismo por intermdio dos nervos, veria de que maneira o alimento se transforma em quilo, este em sangue, o sangue em carne, em substncia muscular, nervosa, etc.: ver-se-ia a si prprio. Mas, disso estais bem distante, por se achar o centro anmico de vossas percepes embaraado pelos mltiplos nervos dos lbulos cerebrais e mantilhas pticas. Esse meio de vista interior difere daquele de que vos falei, devido a olhos construdos de maneira diversa da dos vossos e que percebem o interior dos corpos. Aqui, neste caso de que trato, no um rgo de viso, mas uma organizao do sistema nervoso-cerebral. Pode-se ver sem o intermdio dos olhos.
Outro carter precioso da organizao vital do mundo siriano, que a Alma pode mudar de corpo sem passar pela circunstncia da morte, tantas vezes desagradvel e sempre tristonha. Um sbio que trabalhou durante toda a vida para instruo da Humanidade, e v chegar o fim dos seus dias, sem haver podido terminar seus nobres e pensamentos, pode trocar de corpo com um jovem adolescente e recomear nova vida, mais til ainda do que a primeira. Bastam, para tal transmigrao, o consentimento do moo e a operao magntica de um mdico competente. V-se, assim, por vezes, dois seres, unidos por laos doces e fortes de amor, operarem essa permuta de corpos depois de largo perodo de ventura: a Alma do esposo vai habitar o corpo da consorte, e reciprocamente, para o resto da existncia. O conhecimento ntimo da vida resulta incomparavelmente mais completo para cada um deles. Sobre a Terra, o homem e a mulher no podem compreender-se exatamente, por isso que no sentem, no vibram de modo idntico. Em um mundo que no sem analogia com o precedente, muda-se de sexo, naturalmente, por evoluo mesmo do organismo, em uma idade que corresponde ao quarto decnio da Terra. Todos os seres so femininos at essa idade, e, em seguida, por metamorfose - toda natural - se tornam do sexo masculino. Resulta de tal que os homens, fortes e robustos, amam sempre mulheres jovens. A mulher no pode envelhecer. E cada um conhece as sensaes dos dois sexos. Igualmente, observei que em um planeta, iluminado pelo brilhante sol hidrogenado Vega da Lira, o pensamento
no forado a passar pela palavra para se manifestar. Quantas vezes no vos aconteceu, quando uma idia luminosa ou engenhosa vem de brilhar em vosso crebro, querer exprimi-Ia ou escrev-la, e, durante o tempo em que comeais a falar ou escrever, sentir a idia dissipada, voejando, obscurecida ou metamorfoseada. Os habitantes desse planeta tm um sexto sentido, que se poderia denominar - fonogrfico, em virtude do qual, quando o autor a isso no se ope, o pensamento se comunica ao exterior e pode ser lido sobre um rgo situado ao alto da fronte. Tais conversaes silenciosas so muitas vezes as mais profundas e as mais precisas; so sempre mais sinceras. Estais ingenuamente dispostos a crer que a organizao humana no deixa coisa alguma a desejar sobre a Terra, e nisso pecais por falta de lgica, o que no raro em vosso modo de pensar. No lamentastes nunca ser obrigado a ouvir, a contragosto, palavras desagradveis, maledicncias ou calnias, um discurso absurdo, um sermo oco de qualquer mrito, msica de m qualidade, realejos manivelados sob vossas janelas, a barulheira de uma festa pblica, etc. ? Vosso vocabulrio h por bem pretender que podeis fechar ouvidos a esses discursos, mas desgraadamente isso no serve de nada. No podeis fechar as orelhas com a mesma facilidade com que o fazeis aos olhos. Existe nisso uma grande lacuna. O rudo um verdadeiro horror para os homens que trabalham com o Esprito. Visitei planetas, menos incompletos do que o vosso, onde a Natureza estabeleceu melhor o sentido auditivo. Existem ali muito menos cleras ocultas do que entre vs outros; mas as
divises entre os partidos polticos so mais acentuadas, de vez que os adversrios recusam ouvir e assim conseguem xito, apesar dos esforos dos advogados mais loquazes. Em um orbe do sistema de Aldebar, os olhos humanos so organizados de tal modo que se tornam luminosos durante a noite e iluminam maneira de emanao fosforescente irradiada do seu estranho foco. Uma reunio noturna, composta de grande nmero de pessoas, oferece aspecto verdadeiramente fantstico, de vez que a claridade, e assim a cor dos olhos, variam segundo as paixes diversas que as animam. Demais, o poder desses olhares tal que exerce influncia eltrica e magntica de intensidade varivel, e que, em certos casos, podem fulminar, fazer cair morta a vtima sobre a qual se fixe toda a energia da sua vontade. Esse globo oferece ainda outra particularidade: pela densidade e constituio fsica da sua atmosfera, pode ver-se de cada ponto o conjunto do orbe, por efeito de miragem de refrao. Os raios luminosos, por serem curvilneos e fazerem a volta do referido planeta, trazem as imagens dos mais distanciados objetos. A esfera inteira apresenta vista um plano horizontal. E a realizao fsica da anedota do diabo mostrando a Jesus todos os reinos da Terra. A variedade imensa entre os mundos. Era um dos planetas do sistema alfa do Cisne, muito curioso sob este ponto de vista, os vegetais so todos compostos de substncia anloga ao amianto, por isso que a slica e o magnsio dominam na sua constituio. Os animais s se
nutrem dessa substncia. Quase todos os habitantes dali so incombustveis. No longe de l, gravita um mundo onde a noite quase desconhecida, embora no. possua sol noturno, conforme ocorre no quadriltero de Orion, nem satlites. As rochas das montanhas, cuja composio qumica lembra os fosfatos e os sulfuretos de barita, armazenam a luz solar recebida durante o dia e emitem no decorrer da noite uma tpida e calma fluorescncia, que ilumina as paisagens com uma tranquila e noturna claridade. Vem-se ali tambm rvores curiosas que produzem flores brilhantes noite, semelhando pirilampos: parecem-se a castanheiros cujas flores de neve fossem luminosas. O fsforo desempenha importante papel nesse mundo to singular; sua atmosfera constantemente eletrizada; seus animais so luminosos, a exemplo das plantas, e sua Humanidade est em idnticas condies. A temperatura ali muito elevada, e os habitantes no tiveram quase motivo para inventar vestimentas. Ora, acontece que certas paixes ali se traduzem pela iluminao de uma parte do corpo. , em ponto maior, a reproduo do que ocorre em vossas campinas terrenas - onde se assinalam, nas formosas noites de vero, os vagalumes, consumindo-se silenciosamente em amorosa flama. O aspecto dos casais luminosos curioso de observar noite, nas grandes cidades. A colorao da fosforescncia difere segundo os sexos, e a intensidade varia conforme as idades e temperamentos. O sexo forte acende uma flama vermelha, mais ou menos prolongada, e o sexo gracioso uma
flama azulada, por vezes plida e discreta. Os pirilampos da Terra servem apenas para dar idia mui rudimentar da natureza das impresses experimentadas por aqueles seres especiais. Nos lampiros do Norte, que se encontram na Frana, os do sexo masculino tm asas, e no so luminosos, enquanto que os do sexo contrrio so luminosos, porm privados do privilgio areo. J nos vagalumes da Itlia os dois sexos tm a liberdade das asas e a faculdade de se tornarem luminosos. A Humanidade de que se trata aqui possui todas as vantagens deste ltimo tipo. E um mundo de lucolas humanas, de bela estatura. Nesse mundo de que vos narro aspectos, as noites so iluminadas por fosforescentes claridades. Visitei outros onde as noites no existem de modo algum, porque no so subordinados s alternativas diurnas e noturnas que se sucedem na Terra, e sim iluminados constantemente, em toda a sua esfera, por muitos sis que no os deixam jamais privados de luz por um instante sequer. L, o sono no se manifesta, nem para os homens, nem para os animais, nem para as plantas. No vosso planeta, o sono, que consome a tera parte da existncia, tem por origem primitiva o movimento de rotao da Terra, mergulhando sucessivamente as diferentes regies do globo na luz solar ou na luz da Lua. Nesses orbes, de eternos dias, no se dorme nunca, e muita surpresa causaria l saber-se da existncia de Humanidade cuja vida - na razo de um tero - se escoa na letargia semelhante morte. O homem que viveu na Terra oito decnios, dormiu e perdeu quase trs!
Certos caracteres fisiolgicos da vida terrestre so encontrados entre muitas espcies de Humanidade siderais. Assim, da mesma forma que, na Terra, no mundo das formigas, o dia das suas estranhas npcias areas acarreta o esgotamento e a morte de todos os do sexo masculino; de igual maneira que, no mundo das abelhas, os procriadores so impiedosamente sacrificados; do mesmo modo que, entre as aranhas, estes so devorados pelas companheiras, se no fugirem imediatamente; de igual forma que um grande nmero de insetos jamais v a sua progenitura, e pem os ovos, previdentemente, em local onde os rcem-vindos encontrem a primeira alimentao; por idntico motivo, mundos existem onde a velhice desconhecida: ardentes amores consomem, em fantstico delrio, tedos os seres empenhados em fruir o momento de hoje, sem cogitar do desconhecido - amanh. O sexo ativo no v o dia seguinte das npcias; o sexo passivo, ovparo, dorme o derradeiro sono, depois de haver assegurado a perpetuidade da espcie. Esses recantos celestes, onde no se envelhece nunca, no so qui os mais mal aquinhoados. Enquanto que, na Terra, os tempos finais da idade avanada fazem saudade dos iniciais, suprimem as voluptuosas alegrias da juventude, trazem enfermidades, fazem lenta e tristemente descer ao tmulo; naqueles felizes mundos, a vida humana comea maneira da dos insetos, primeiro humilde, grosseira, pesada, material ( semelhana das larvas e das lagartas), depois, passado ligeiro sono, d lugar expanso da fora e da beleza, e, tal qual as borboletas areas e gentis, os humanos terminam sua existncia no fogo das paixes superiores, na
alegria e na luz. So planetas privilegiados, os da vida ascensional, enquanto que na Terra cada ser humano representa desgraadamente o tipo da vida descontnua. Um dos mundos mais graciosos que visitei tem por habitantes pssaros unicamente. Poder-se-ia chamar, com verdade, mundo dos pssaros. No h ali outras espcies vivas, salvo as borboletas e as flores voadoras. A evoluo orgnica no conduz, l, nem aos pesados quadrpedes, nem aos saurianos, nem aos reptis, nem aos moluscos, nem aos peixes. E uma vida area, encantada, toda de movimento, de brilhantes coloraes, de cano e de amor. Por toda a parte ninhos, flores, asas. Nessas espcies aladas, a raa superior, a raa intelectual, a raa humana verdadeiramente privilegiada. Ela no conhece da vida seno os mais delicados sentimentos do corao, luta apenas pelas volpias, e brilha eternamente na alegria e na luz. No se discute nunca, mas se canta sempre. Em um sistema solar, cujo foco central emite principalmente luz hidrogenada - na qual as radiaes mais rpidas so preponderantes, os organismos humanos no tm a humilhao dos nossos, nisso que concerne s unies amorosas. No vergonhoso ver, nos livros de Medicina da nossa pretensa civilizao, agrupamentos de palavras tais, por exemplo rgos gnito-urinrios? E' uma infmia. No sistema de que vos dou notcia, s se poder cogitar de rgos gnito-cerebrais. L, tudo nobre, tudo divino, tudo puro, e seria enorme surpresa ouvir-se falar das grosseiras associaes da anatomia terrestre.
Nesse mundo, mais sutil do que o vosso, o organismo feminino no est sujeito aos perodos inconvenientes desagradveis, e muitas vezes dolorosos, que fazem da metade das mulheres terrestres - verdadeiras vitimas. As flores do frutos na inaltervel serenidade de encantadora primavera. Que variedade prodigiosa entre as diversas regies do Cosmos! Recordo haver chegado, certo dia, em uma viagem, buscando novos mundos, a um iluminado por uma espcie de sol crepuscular. Sombrio vale se estendia ante mim; estranho espetculo se ofereceu aos meus olhares. Em rvores disseminadas pelos deis flancos do local, pendiam seres humanos envoltos em sudrios. Estavam presos aos galhos pela cabeleira, e assim dormiam no mais profundo silncio. Mas, o que me havia parecido sudrio era, em realidade, um tecido formado pelo alongamento dos seus prprios cabelos amalgamados e encanecidos. E porque me pasmasse ante essa situao, fui inteirado de que aquele o processo de sepultamento e de ressurreio ali. Sim, nesse mundo, que pertence constelao de Fnix, os seres humanos desfrutam da faculdade orgnica dos insetos do vosso planeta, que tm o dom de adormecer em estado de crislida, para se transformarem em aladas borboletas. Vale isso por uma dupla raa humana, e os estagirios da primeira fase, os seres mais grosseiros e mais materializados, s aspiram a morrer, para que possam ressurgir na mais esplndida das metamorfoses. O perodo anual desse mundo um pouco mais longo do que os de Netuno e atinge aproximadamente dois sculos terrestres. Vive-se ali dois teros do ano em
estado inferior, um tero (inverso) em condies de crislida, e, na primavera seguinte, os suspensos sentem insensivelmente a vida retornar em sua carne transformada; movem-se, despertam, deixam a carcaa na rvore e desprendem-se, seres alados maravilhosos, cigarras extraterrestres, arrebatando-se nas regies areas, para viverem um novo ano fenixiano, isto , os dois sculos do vosso to efmero planeta. Existem ali planetas cuja metereologia, longe de- ser incoerente e insuportvel, qual a da Terra, est admiravelmente regulada, onde, por exemplo, chove somente durante a noite, aproximadamente a quinta parte do ano, em pocas fixas. S de tal circunstncia resulta imensa superioridade na organizao doa atos da vida exterior; as cerimnias, as reunies, as viagens, os passeios, as mais simples parcelas de recreio so ali estabelecidas de antemo, sem que os habitantes desse mundo se vejam expostos a todos os contratempos que constantemente perturbam os projetos terreais. Mundos h, onde os movimentos vitais, o respirar, a assimilao, os perodos orgnicos, o dia e a noite, as estaes, o ano, so de extrema lentido, embora o sistema nervoso dos humanos a seja muito desenvolvido e o pensamento tenha prodigiosa atividade. A vida parece de durao sem fim. Os que morrem de velhice excedem um milnio, porm estes so raros, de modo que s alguns poucos puderam ser conservados nas memrias histricas dessa Humanidade. A guerra jamais foi ali inventada, de vez que s existe uma raa, um povo, um idioma nico. A constituio natural dos organismos notvel: as doenas
so quase desconhecidas, e no existem ali mdicos. Resulta que, para a intensa atividade cerebral, a durao da vida se torna uma perspectiva sem fim, e no tarda a constituir pesado fardo. Tambm, ali, todo o mundo sai da vida pela morte voluntria. Essa prtica foi gradualmente insinuada nos costumes desde mui remota antiguidade, e os raros macrbios que, por um motivo qualquer, no a adotam, so considerados criaturas excepcionais, originais, mais ou menos extravagantes. A morte voluntria a lei geral. Enfim, falarei ainda do mais extraordinrio mundo que imaginar se possa para o astrnomo, um mundo onde a noite seria sem estrelas e onde, consequentemente, a Cincia no pde surgir? Essas qualidades de mundos tambm existem. So os que se acham situados em certas regies da imensidade, de onde as estrelas se encontram distanciadas. Nenhuma fere a vista humana. Ficam todas para alm do alcance dessa vista, e o telescpio no foi ali inventado. Nenhum habitante desse mundo pode duvidar de que existem. Tambm os cidados dessas moradas esto absolutamente certos de que so os nicos habitantes no Infinito. A organizao poltica desses mundos radicalmente teocrtica. Em nossa terceira conversao, eu vos assinalei vibraes do ter que no podem ser percebidas pelos sentidos humanos terrestres: so raios invisveis para ns outros. Minhas consideraes tericas resultaram de fatos prticos e reais para mim em minhas excurses inter siderais. Poderia citar mundos onde os humanos tm olhos que no enxergam nenhum dos raios do espectro solar que vossa vista
percebe, desde o vermelho at o violeta, mas que vem certos raios eltricos invisveis para vs outros e para os quais o vidro opaco, enquanto que a madeira, os tecidos e a carne so transparentes. Esses seres vem principalmente o seu prprio esqueleto. A Natureza , para tais olhos, toda diferente do que se apresenta para os vossos. Em uma floresta, eles no vem as rvores, mas somente a seiva sob o aspecto de fontes que jorram. Em um canteiro de jardim, no vem as flores, e sim filetes lquidos e emanaes, formando para eles toda uma outra ordem de coisas. A luz, o calor e a eletricidade no so para os sentidos deles a mesma coisa que para os vossos representam. Seus olhos se tornam cegos para as vibraes compreendidas entre 450 e 750 trilhes, do infravermelho ao ultravioleta, porm se tornam clarividente para as superiores a 750 trilhes at 2 sextilhes. O corpo humano terrestre deve sua forma e seu estado ao meio atmosfrico e s condies de densidade, peso e nutrio, dentro das quais a evoluo vital terrestre se exerceu. O ser humano provm da fuso de um microscpico corpsculo masculino com um minsculo vulo feminino. Tal fuso d lugar a um pequeno fruto, que se transforma em embrio, e neste aparecem gradualmente o local do corao, da cabea, dos membros, dos diversos rgos. O sistema nervoso desse embrio comparvel a irradiaes de fios delicados, partindo de um ponto central que se tornar o crebro. Sob a influncia da luz solar, vibraes do ar, odores e sabores, um desses nervos se desenvolveu na periferia para formar o olho, primeiro informe, quase cego e rudimentar, dos trilobitas e dos peixes do perodo siluriano, e que afinal
se tornou o admirvel aparelho visual dos pssaros, dos vertebrados e do homem; o nervo auditivo foi desenvolvido pelos mesmos processos; o sentido do olfato e o do paladar marcharam paralelamente estes dois ltimos so os mais antigos, os mais necessrios vida, com o do tato, o mais remoto de todos e o mais primitivo. Por assim dizer, s dois sentidos pem o homem em relao com o mundo exterior: a vista e o ouvido, mas ainda a vista que estabelece verdadeiramente a comunicao com o Universo. Milhes de filetes nervosos vo do crebro carne, sem dar origem a nenhum sentido, salvo a tecla, por assim dizer, das sensaes ntimas e pessoais, sendo que uma j foi at classificada de sexto sentido. Vs me entendeis. Ora, no h razo alguma para tudo quanto se passou e estacionou no vosso minsculo planeta, tambm se haja passado e estagnado de igual forma por toda parte. E a prova que, no h muito ainda, visitei dois mundos onde os seres humanos possuem dois sentidos a respeito dos quais no tendes a menor idia da Terra. Um desses sentidos poderia ser classificado de eltrico. Um dos filetes nervosos de que vos falei h pouco se desenvolveu, ramificou, multiplicado, numa forma de buzina, a qual, no escalpelo e no microscpio, mostraria tubos justapostos cuja extremidade exterior recebe os eflvios eltricos e os transmite ao crebro, de maneira quase idntica do vosso nervo ptico, quando transmite as ondas luminosas, e do auditivo, com relao s sonoras. Os entes munidos de tal sentido percebem o estado eltrico dos corpos, dos objetos, das plantas, das flores, dos
animais, da atmosfera, das nuvens, o que constitui para eles um manancial de conhecimentos ocultos para vs outros. As sensaes orgnicas de tais seres so de todo diversas das vossas. Seu modo de existncia difere tambm completamente. A causa da formao e do desenvolvimento desse sentido o estado de saturao eltrica de tal mundo. A tenso eltrica. no bastante forte sobre a Terra para exercer ao importante na organizao dos seres. No , entretanto, nula, e disso se tem prova na crepitao, por vezes fosforescente, da cabeleira de certas mulheres, na sua sensibilidade especial, na irritabilidade nervosa dos contactos no meio da atmosfera, seca e fria, dos pases muitas vezes visitadas pelas auroras boreais. Ditos efeitos so encontrados, mais ntidos, em certos peixes eltricos, da classe da tremelga (torpedo), do ginoto (enguia), do siluro (bagre) e seus congneres. Essa fauna eltrica, que no pde no vosso planeta atingir todo seu desenvolvimento, representa o estado normal em certos mundos. L, o sentido principal o eltrico; a vista fica em segundo plano. No mundo nmero dois, o que mais me aturdiu foi a existncia de um outro sentido ainda, muito diferente: o do rumo. Outro filete nervoso, partindo do crebro, deu lugar a uma espcie de orelha dotada de ligeiras asas por intermdio da qual a criatura percebe a direo. Sabe-se, assim, sem o auxlio da vista, se marcha para o norte, sul, este ou oeste. A atmosfera est repleta de emanaes que vos so desconhecidas. Esse sentido singular se orienta sem erro possvel. Tambm serve para descoberta de coisas ocultas no
interior do solo, e d diversas noes da Natureza que para vs outros so absolutamente interditas. Poderia assim mostrar-vos que nos canteiros do jardim da Criao existe infinita diversidade, e que seria necessrio uma eternidade para saborear os respectivos frutos e flores. Quaerens - Meu caro mestre, ainda sou muito terrestre, muito sem dvida, devido minha juventude, e longe de atingir essa metade da vida de onde comea a descida subsequente, feita com serenidade, rumo das praias eternas em que tantas promessas nos aguardam. E isso que explica certamente a razo pela qual este planeta me parece bom, e a sua Humanidade verdadeiramente bem sucedida. Ontem ainda, em Paris mesmo, eu expunha as vossas teorias uranogrficas a uma senhorita, que as escutou com interesse. Ela no me fez objeo alguma; simplesmente me olhava muito, com todo o esplendor de uma beleza admirvel. E, mau grado meu, contemplando-a, dizia a mim mesmo: Podem elas ser mais belas em outros mundos do que aqui? Lmen - Sim, meu amigo, sois muito terrestre. Felizes os vossos olhos, por serem to imperfeitos e no poderem perceber mais do que a superfcie desses corpos! No quero dissecar o vosso potico encantamento. Alm disso, eu o confesso, Natureza terreal no falta harmonia. Mas, essa harmonia existe e n todos os mundos, e muitas vezes em graus incomparavelmente superiores. Os lobos e as lobas se acham belezas, e os hipoptamos se buscara noite, sob o luar argnteo, no lodo dos pntanos selvagens. Tudo relativo, e um homem do sistema de Arcturus desdenharia absolutamente a mulher mais formosa da Terra.
Mas, meu caro amigo, no me possvel entret-lo com as curiosidades todas do Universo. Que vos baste haver levantado o vu para vos permitir entrever a incomensurvel diversidade que existe nas produes animadas de todos os sistemas disseminados no Espao. Eis que bem depressa vem a aurora, que pe em fuga os Espritos, e vai fazer desmaiar a nossa palestra, tal qual a luz de Vnus se esmaece aproximao do dia terrestre. Desejo agora acrescentar aos aspectos precedentes uma observao assaz curiosa, inspirada pelas mesmas contemplaes. Ei-la: Se uni Esprito sutil partisse da Terra no momento da fulgurao de um relmpago, e viajasse durante uma hora ou mais tempo com a luz, veria o relmpago durante tanto tempo quanto o olhasse. Esse fato estabelecido segundo os princpios j expostos. Se, porm, em vez de se distanciar exatamente com a velocidade da luz, o fizesse com uma rapidez algo inferior, eis a seguir o que poderia observar. Admitamos que essa viagem de afastamento da Terra, durante a qual o Esprito sutil olha o relmpago, dure um minuto, e suponhamos que o claro perdure por espao de um dcimo de segundo. O contemplados continuar enxergando o relmpago durante seiscentas vezes a sua durao; mas, se em vez de voar parelho cem a velocidade da luz, mover-se mais lentamente, e, por exemplo, empregar um dcimo de segundo para chegar ao mesmo ponto, no ver sempre o mesmo momento do relmpago, e sim sucessivamente os diversos momentos que constituram a durao total do relmpago, que foi igual a um dcimo de
segundo. Naquele minuto inteiro, teria tido vagar para ver, primeiro, o comeo do claro, e de analisar o desenvolvimento, as fases e a continuao, at ao fim. Concebei que estranhas descobertas poderiam ser feitas na natureza ntima do relmpago, aumentado 600 vezes na ordem de sua durao! Que pugnas espantosas tereis tempo de perceber em suas flamas! Que pandemnio! Que sinistro de tomos! Que mundo oculto - por sua fugacidade - aos olhos imperfeitos dos mortais! Se pudsseis ver pelo pensamento, separar e contar os tomos que constituem o corpo de um homem, esse corpo desapareceria para vs, porque h nele bilhes e bilhes de tomos em movimento, e, para o olhar do analista, o conjunto se tornaria uma nebulosa animada pelas foras da gravitao. Swedenborg no imaginou que o Universo, visto em conjunto, tem a forma de colossal gigante? E' o antropomorfismo. Mas, tudo se assemelha. O que sabemos de mais seguro que as coisas no so tal qual nos parecem, nem no espao, nem no tempo. Voltemos, porm, ao relmpago retardado. Quando viajais com a velocidade da luz, Vedes constantemente o aspecto existente no momento da partida. Se permanecsseis durante um ano levado por essa mesma rapidez, tereis ante os olhos - durante um ano - o mesmo acontecimento. Mas, se para melhor apreciar um acontecimento que no houvesse durado mais de alguns segundos (o desabar de um monte, uma avalanche, um tremor de terra, por exemplo), o Esprito sutil, posto em ao por mim , parte de modo a apreciar o comeo da catstrofe,
e, diminuindo um pouco a marcha em relao da luz, de modo que no veja constantemente o princpio, mas o imediato momento que o seguiu, depois o segundo, e assim sucessivamente, de maneira que no chegue ao fim antes de uma hora de exame, e seguindo quase a luz - o acontecimento dura para ele uma hora, ao invs de alguns segundos; ele v os penhascos ou as pedras suspensos no ar, e pode assim render-se conta do modo de produo do fenmeno e das peripcias retardadas. J podeis, nas possibilidades cientficas terrestres, apanhar fotografias instantneas dos momentos sucessivos de um fenmeno rpido, tais o relmpago, um blido, as vagas do mar, erupes vulcnicas, a queda de um edifcio, e faz-los em seguida passar aos olhares com lentido calculada ante a persistncia retiniana. De igual maneira, mas em sentido contrrio, podeis fotografar o aparecimento da flor em boto at seu total desabrochar e da at ao fruto, o desenvolvimento de uma criana, desde o nascer at a idade madura - e projetar essas fases sobre um fundo apropriado, fazendo desfilar em alguns segundos a vida de um homem ou de uma rvore. Li, em vosso pensamento, haverdes comparado esse processo ao de um microscpio que aumentasse o tempo. E exatamente isso: vemos assim o tempo amplificado. O processo no pode receber rigorosamente a denominao de microscpio, mas, mais depressa, o de cronoscpio, ou o de trono-telescpio (ver o tempo de longe). A durao de um reino poderia, pelo mesmo processo, ser aumentada segundo o arbtrio de um partido poltico.
Assim, por exemplo, Napoleo H, tendo reinado apenas trs horas, poderia ser visto reinar durante trs lustros sucessivamente, dispersando-se os 180 minutos constitutivos das trs horas ao longo dos 180 meses, com o distanciar-se da Terra em velocidade um pouco inferior da luz, de maneira que, partindo no primeiro minuto em que as Cmaras reconheceram Napoleo H, no se chegue ao derradeiro minuto de seu reinado fictcio antes de trs lustros. Cada minuto seria visto durante um ms, cada segundo por espao de doze horas. Demais, a medida do tempo no essencialmente relativa e apropriada s nossas impresses? Isso, porm, no mais do que um desvio no itinerrio da nossa viagem. Acompanhando-me em Esprito nessa excurso intersideral, passastes algumas horas longe da Terra. E' conveniente isolar-se, por vezes, assim, pelas celestes veredas. A Alma tem maior posse de si mesma e, nessas reflexes solitrias, penetra profundamente atravs da realidade universal. A Humanidade terrquea, j compreendestes, , tanto no moral quanto no fsico, a resultante de foras virtuais da Terra. A forma humana, o talhe e o peso dependem dessas foras. As funes orgnicas so determinadas pelo planeta. Se a vida est repartida, entre vs outros, em trabalho e repouso, em atividade e em sono, isso se deve rotao do globo, que produz a noite: nos mundos luminosos, naqueles em que um hemisfrio eternamente iluminado por um sol ao qual apresenta. constantemente a mesma face, e sobre aqueles que so perpetuamente alumiados por vrios sis alternativos no se
dorme. Se sois forados a comer e beber, tal devido condio imperfeita da vossa atmosfera. Os corpos dos seres dispensados da necessidade de comer, no tm a mesma vossa construo, pois dispensam estmago e ventre. Os olhos terrestres vos mostram o Universo sob um determinado aspecto; o olhar saturniano o v de modo diferente, pois, os dali, so dotados de sentidos que percebem outras coisas vedadas a vs outros, de igual modo que no podem ver o que Vedes na Natureza. Assim, cada mundo foi, e ser habitado por vrias raas, isto , essencialmente diversas, e que, por vezes, no so vegetais, nem animais. O tipo - Homem - no universal. H seres pensantes de todas as formas possveis, de todas as dimenses, de todos os pesos, cores, sensaes e caracteres. O Universo um infinito. Nossa existncia terrestre apenas uma fase nesse infinito. Diversidade inesgotvel enriquece o campo maravilhoso do sempiterno Semeador. O papel da Cincia estudar o que os sentidos terreais so capazes de apreender. O da Filosofia est em formar a sntese de todas essas noes restritas e determinadas, e em desenvolver a esfera do pensamento. Que tarefa seria, se eu vos pretendesse entreter, no somente com a variedade fsica, mas tambm com a diversidade intelectual e moral das Humanidades! As variantes seriam tambm considerveis; mas compreendereis menos ainda. Para vos assinalar apenas um exemplo, observai que, em vossa Humanidade terrestre, o valor intelectual e moral para nada serve, no aplicado ao progresso, resulta nulo,
no tem futuro, se aquele que o possui no dispuser da vontade e do poder de o colocar em evidncia, seja pela vitria das suas idias, seja por interesse pessoal'. Jamais se vai buscar o mrito oculto. E mister que se patenteie ele prprio e se avilte luta contra a intriga, a cupidez e a ambio. E' a anttese do que devera acontecer. Resulta que os mais altos valores permanecem desconhecidos e improdutivos, e que as honras sociais e a fortuna sejam quase sempre conquistadas pelos intrigantes sem valor. Pois bem! ainda h pouco, em uma das regies mais luminosas da Via-Lctea, um sistema de mundos que visitei me apresentou em todos os seus orbes, sem exceo, uma ordem intelectual, absolutamente diversa. L, a organizao dos Estados constituda de tal sorte, que os homens escolhidos, pelas suas virtudes, para o governo dos cidados, no tm outras funes alm de irem oferecer aos valores intelectuais as posies que lhes devem pertencer. Busca-se descobrir as inteligncias, tal qual vs outros procurais encontrar ouro e diamantes. E' para proveito da Humanidade. No se criaram academias, mas no se conceberia que um homem de valor, em lugar de ser por elas solicitado, estivesse na contingncia de perder seu tempo em visitas de lisonja, para se ver em seguida preferido muitas vezes um nulo dourado que soube captar os sufrgios. E' verdade que o referido sistema de mundos est em grau intelectual muito superior. Acrescentarei ainda, pois falamos da diversidade moral das Humanidades, que um dos planetas que me pareceu dos mais felizes um orbe do grupo de Vega, onde a hidra da
Guerra (que devora entre vs outros 1.100 homens por dia, desde h 50 sculos) foi decapitada de modo bem simples. Recentemente ouvi contar a histria do que ocorreu. Um dia, as Cmaras dos diferentes povos (porque havia tambm naes separadas) votaram a mesma lei, declarando que os interesses das naes entram por vezes em rivalidades inevitveis, cabendo sorte das armas ainda em certas circunstancia decidir, importava considerar, no entanto, que os povos so os verdadeiros soberanos e constituem a base fundamental da Humanidade, e que era intil, oneroso e inconveniente derramar sangue de um to grande nmero de homens. Foi decidido que se limitaria dai em diante o ,resultado desses choques a um combate nico, singular, entre os chefes de Estado, e que, quando a honra e a dignidade dos povos o exigissem, os dois chefes das naes beligerantes se defrontariam em duelo pblico, o qual somente cessaria com a morte de um dos ditos representantes oficiais das ptrias em rivalidade. A lei foi aplicada em todo o seu rigor. E, aps dois ou trs duelos, e, em menos de meio sculo, os chefes dos diferentes pases entenderam-se para assegurar uma confederao amiga de Estados-Unidos de todos os povos do planeta, sob a previdncia desses representantes oficiais, formando o Grande Conselho Internacional da Repblica Universal, e a guerra desaparecia para sempre. A paz reina ali desde h 100 sculos. Em vez de serem regidas por fora bruta, onerosa para todos e de uma selvageria bestial, as rivalidades de interesses so discutidas em Conselhos de criaturas razoveis.
H, meu caro amiga terrestre, mundos incomparavelmente superiores a Terra, sob o ponto de vista da sabedoria e da felicidade, e tambm sob o aspecto das condies fsicas e orgnicas de que falamos h pouco. Estas narrativas de alm-tmulo no tm tido outro intuito seno dar-vos uma exposio sumria das realidades siderais desconhecidas da Terra. Agora, tendes uma idia do posto infinitamente pequeno, porm real, ocupado pela Humanidade terrestre no Universo; sabeis elementarmente o que o Cu, e bem assim o que a Vida... e o que a Morte. A concluso destas palestres, meu caro Quaerens, reside toda ela no seu princpio. Quis que soubsseis que a lei fsica da transmisso sucessiva da luz no Espao um dos elementos fundamentais das condies da vida eterna. Por essa lei, todo acontecimento imperecvel, e o passado resulta presente. A imagem da Terra de h sessenta sculos est atualmente no Espao, distncia que a luz percorreu nesses sessenta sculos: os mundos situados em tal regio vem a Terra daquela poca. Ns outros podemos rever a nossa prpria existncia diretamente, e nossas diversas existncias anteriores: basta para tanto estar distncia conveniente dos mundos onde houvermos vivido. H estrelas vistas da Terra que no existem mais, por isso que extintas, depois de haverem emitido os raios luminosos que agora somente vos chegam; de igual modo que podereis receber a voz de um homem distante, o qual poderia estar morto no momento de se lhe ouvir a voz, dada a hiptese de ser acometido de apoplexia imediatamente depois de haver
projetado um grito. Assim, estas conversaes estabeleceram que os acontecimentos do passado existem sempre, levados no ter do Espao infinito. Sinto-me feliz por me haver esse quadro permitido traar ao mesmo tempo um panorama da diversidade das existncias planetrias, e bem assim das inmeras formas vivas desconhecidas da Terra. Aqui ainda, as revelaes de Urnia so mais vastas e mais profundas do que as de todas as suas irms. A Terra no passa de um tomo no Universo. Detenho-me aqui; todas essas numerosas e diversas aplicaes das leis da luz vos eram desconhecidas. Na Terra, nessa caverna obscura, to judiciosamente qualificada por Plato, vegetais em plena ignorncia das gigantescas foras em ao do Universo. O dia vir em que a cincia fsica descobrir na luz o princpio de todo o movimento e a razo ntima das coisas. J, desde h algum tempo, a anlise espectral tornou possvel identificar, no exame de um raio luminoso vindo do Sol ou de uma estrela, as substncias que constituem esse Sol e essa estrela; j podeis determinar, atravs de uma distncia de bilhes e trilhes de quilmetros, a natureza dos corpos celestes, dos quais recebeis apenas o raio luminoso! O estudo da luz vos prepara resultados mais magnficos ainda, e na cincia experimental, e em suas aplicaes filosofia do Universo. Mas, eis que a refrao da atmosfera terrestre estende para alm do znite a luz emanada do vosso Sol. As vibraes do dia impedem me comunique por mais tempo convosco.. .
Adeus, meu digno amigo. Adeus! ou antes, at breve! Talvez regresse algumas vezes para conversar ainda com o vosso Esprito, para demonstrar que jamais vos esqueo. Depois, mais tarde, quando a hora da vossa alforria terrestre houver soado sua vez, quando o vosso corpo adormecer no derradeiro sono neste medocre planeta, eu virei ante vosso Esprito, e faremos ento uma viagem real atravs dos inenarrveis esplendores da imensidade. Nos sonhos mais temerrios da vossa fantasia no formareis jamais uma idia, sequer aproximada, das estupendas curiosidades, das maravilhas inimaginveis que vos aguardam.
Fim
Notas de Rodap
(1) Escrito em 1866. Publicado pela primeira vez, na Revista do Sculo XIX, de l de Fevereiro de 1867. Desenvolvido, depois, pelas aplicaes sucessivas do mesmo princpio de ptica transcendente. (2) A Anatomia fisiolgica transcendente explicar talvez esse fato, propondo admitir que uma espcie de punetum
coecum um se desloca para disfarar o objeto que no mais se deseja ver. (3) Ningum ignora que, quanto mais distante se encontra um objeto, mais ele parece menor. O que visto no ngulo de um segundo, est distante 206.265 vezes do seu tamanho natural, qualquer que seja o objeto, pois existindo 1.296.000 segundos em uma circunferncia a relao desta para o dimetro de 3,14159 A estrela Capela no divisando o meio dimetro da rbita terrestre seno sob um ngulo 22 vezes menor, sua distncia 22 vezes maior: ela , conseqentemente, de 4.484.000 vezes o raio da rbita terrestre. As medidas micromtricas futuras podero modificar as cifras desta paralaxe, mas em nada alteraro o princpio que serviu de base ao presente livro. (4) Escrita em 1867. (5) Esta concepo da histria retrospectiva, dos acontecimentos revolvidos, foi assinalada por Henrique Poincar em suas sbias dissertaes matemticas. Podem-se ler as linhas seguintes em sua obra Cincia e Mtodo (pgs. 71-72), publicada, em 1908: As leis da Natureza ligam o antecedente ao conseqente, de tal sorte que o antecedente determinado pelo conseqente to bem quanto o conseqente pelo antecedente. Flammarion havia imaginado outrora um observador que se distanciasse da Terra com velocidade maior do que a da luz, para o qual o Tempo teria mudado de significao e a histria se tornaria retrospectiva - Waterloo
precedendo Austerlitz. Para tal observador os efeitos e as causas seriam intervertidos. E mais adiante (pg. 83): No estamos no final dos paradoxos. Retomemos a fico de Flammarion, aquela em que o homem anda mais rapidamente do que a luz e para quem o Tempo mudou de smbolo; para ele todos os fenmenos pareceriam, devidos ao acaso. Que quer isso dizer? Para LOMEN, pequenas causas pareceriam produzir grandes efeitos. Que ocorreria quando grande causas gerassem pequenos efeitos? Eis a hiptese em que no atribuiramos o fenmeno ao acaso, enquanto que LOMEN, precisamente ao contrrio, t-lo-ia por fruto do acaso. Ele veria surgir um mundo cada vez mais variado de uma espcie de caos primitivo; as mudanas que observasse seriam para ele imprevistas e impossveis de prever. e pareceriam oriundas de no sei que capricho; mas, este capricho seria diferente do nosso acaso, por isso que rebelde a toda lei, enquanto que o nosso acaso teria ainda as suas. Todos esses pontos demandariam longos desenvolvimentos, que ajudariam talvez a compreender a irreversibilidade do universo. HENRI POINCARE. (6) Escrita em 1867