A Promessa Da Politica, de Hannah Arendt - p.103-106
A Promessa Da Politica, de Hannah Arendt - p.103-106
A Promessa Da Politica, de Hannah Arendt - p.103-106
br/saberes 103
ARENDT, Hannah. A promessa da política. Trad. Pedro Jorgensen Jr. [S.l.]: Difel, 2009.
288 p.
Marina López∗
Hannah Arendt é uma das figuras filosóficas do século XX que mais literatura
produziu nos últimos anos. Entre as publicações coletivas que se fazem sobre a sua obra e as
várias traduções para o português dos seus manuscritos inéditos ou publicados em distintas
revistas e jornais norte-americanos, é complicado imaginar a quantidade do seu legado
filosófico. Os últimos dois anos, por exemplo, viram a aparição dos apontamentos que
Hannah Arendt escreveu acerca da influência de Karl Marx no bolchevismo (e a sua
proximidade com a tradição de pensamento político ocidental), umas notas que foram o
princípio de elaborações teóricas tão complexas como as que podemos encontrar em A
condição humana. Os apontamentos sobre Karl Marx e a tradição de pensamento político
ocidental e as reflexões sobre a revolução húngara são leituras obrigadas para quem se
interesse em aprofundar acerca das opiniões que tinha a filósofa sobre o totalitarismo
soviético e o seu desenrolar posterior à Segunda Guerra Mundial. Infelizmente ainda não
aparece uma versão portuguesa, mas sim uma espanhola.55 Por outra parte, há que considerar
Responsabilidade e juízo56, um livro composto pelas conferências, lições e ensaios que
Hannah Arendt ofereceu e publicou depois do processo de Eichmann. Todos eles, com
exceção de “Reflections on Little Rock”, estão atravessados pela inquietude de descrever a
maneira de vida das capacidades de pensar e julgar que compõem as duas partes de A vida do
espírito.57 As perguntas sobre a responsabilidade pessoal, o dever político e a discriminação
são algumas das preocupações teóricas com as que encontramos no livro.
A compilação de que agora me proponho dar conta apareceu em 2009: A promessa
da política. Não é um livro, tal como os outros dois mencionados, que Hannah Arendt se
tivesse proposto escrever e publicar como tal e com o título com que o conhecemos. É uma
compilação que o seu editor, Jerom Kohn, fez de vários textos soltos que abordam duas
∗
Doutoranda e Mestra em Filosofia pela Faculdade de Filosofia da Universidad Michoacana de San Nicolás de
Hidalgo – UMSNH, Morelia Michoacán – México, [email protected].
55
ARENDT, Hannah, Karl Marx y la tradición de pensamiento político occidental, Ed. De Agustín Serrano de
Haro, Madrid, Editorial Encuentro, 2007.
56
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Juízo. Dom Quixote, 2007.
5757
ARENDT, Hannah. A vida do espírito. Tradução de Cesar Augusto de Almeida, Antônio Abranches, Helena
Martins. Civilização Brasileira, 2009.
58
ARENDT, Hannah. Diario filosófico (II Tomos). Barcelona: Herder, 2006.
compreensão de que não é possível ter a verdade absoluta das cosas. “O papel do filósofo não
é o de governar a cidade, mas o ser um ‘tábano’, não é o de dizer verdades filosóficas, mas o
de fazer os cidadãos mais vorazes”. Esta mesma intuição foi o que condenou Sócrates e a
condição de toda a distância entre a vida filosófica e a vida política posteriores à origem não
do pensamento filosófico como tal, mas ao que conhecemos agora como a sua tradição.
Esta idéia, a compreensão da presença de uma tradição, é o que leva Arendt a
descrever a própria noção de tradição nas suas origens que não foram gregos mas romanos.
Foi em Roma, o povo político por excelência, e não na Grécia onde apareceu a necessidade da
história, da reflexão sobre o passado como um solo onde pousam as grandes criações
humanas, onde, portanto, a autoridade teve uma legitimidade e um papel objetivo no mundo
humano; duas realidades, tradição e autoridade, que não puderam ter-se instaurado sem a
presença da religião. Na crença de um fundamento sagrado que sustém o fundado pela
humanidade, ou seja, o espaço público-político. A importância desta tríade romana, uma
tríade cuja ruptura na Época Moderna evidencia que com a ausência de uma as outras duas
perdem todo o seu significado. Mas estas mesmas experiências políticas romanas transcendem
até aos nossos dias porque só a partir da fundação da civitas encarnada na tradição pode
preservar-se o pensamento filosófico grego, guardar-se o sentido dos mitos fundacionais e a
importância das narrações das grandes gestas como o fundamento de toda a experiência da
pluralidade que não é mais que a humanidade inteira.
Esta tradição não terminou, segundo as considerações de Hannah Arendt, com a
queda do Império Romano, mas com as inversões e reversões dos filósofos do século XIX,
Marx e Nietzsche, sobre as filosofias de Hegel e Platão. A mais influente das duas no campo
da política foi a de Marx, que considerou o presente unicamente como um trampolim para o
futuro, ao contrário de Hegel para quem só o passado existia e o presente era o momento da
realização do absoluto. A noção de autoridade desapareceu nas tentativas de Marx de outorgar
a certas realidades sociais e econômicas o destino da humanidade. Não que, desde esta
perspectiva, se negue o valor das descobertas de Marx, simplesmente Hannah Arendt desvela
o significado que as suas teorizações tiveram para a tradição de pensamento que baseava os
seus fundamentos na autoridade, na religião e na tradição. O fio dessa tradição ficou partiu-se,
diz Arendt, desde esse momento e pela primeira vez, e não podemos explicá-lo por tendências
intelectuais, mas pelo advento de uma época que crê no progresso absoluto.
A segunda parte dos temas que aborda Arendt no livro corresponde ao sentido da
política. As considerações de Hannah Arendt a respeito estão contidas no texto “Introdução à
política” que não é uma aproximação à política entendida como disciplina teórica, mas a
descrição dos tópicos centrais do que é a política, segundo a autora. O texto pode ser
entendido como uma série de escólios à A condição humana, do mesmo modo que o resto das
partes que conformam o livro, onde ficam conceitos ou precisões históricas sem fazer ou
clarificar. Nesta parte Hannah Arendt abunda no sentido da pluralidade que havia conectado
em A condição humana a outras duas atividades da vida ativa (o trabalho e o labor) e dedica-
lhe extensas explicações. Descreve as peculiaridades da compreensão, da noção de juízo e
preconceito e o seu lugar no interior do campo da política. Responde, por último, ao sentido
da política hoje: se existe tal sentido, diz Arendt, é a liberdade, condição necessária da
pluralidade, ou seja, da humanidade.
Cada uma das partes que compõe A promessa da política tem uma significação de
suma importância para a compreensão da obra de Hannah Arendt, e é de agradecer e celebrar
o esforço constante de poder ler em português cada um dos aspectos que a filósofa abordou
em distintos momentos da sua vida. Mas cabe também fazer a pergunta: qual é o sentido de
publicar compilações de artigos e conferências que muitas das veces nem sequer foram
considerados para sua publicação pela propria Arendt? Não se torna excessivo o anseio de
publicar textos antes de compreender as obras capitais da sua filosofa, de lucrar com o
pensamento de uma autora cuja lucidez nos faz compreender, em duas palavras, que o nosso
mundo está de pernas para o ar?