Mito de Orfeu
Mito de Orfeu
Mito de Orfeu
O Mito de Orfeu
Da Ópera de Monteverdi ao poema “Orfeu. Eurídice. Hermes” de Rilke.
Uma interpretação pessoal.
! A privação abrupta de um grande amor. O arrancar do chão que pisamos. O destino ou a vida ser
capaz de tamanha crueldade, no pior momento possível. Duas almas serem proibidas de consumar o
sentimento mais poderoso que as une. É como uma descida ao inferno. É como um profundo buraco negro
que se abre sob os nossos pés, levando-nos o coração e a alma numa descida interminável. A descida à
“mina onde se encontram as almas” de Rilke. A mina como um buraco onde tudo tem origem, onde tudo é
criado e onde tudo regressa, o lugar onde todos os seres são um só, o lugar do inconsciente colectivo, o
lugar onde vivem os sonhos. Por baixo da terra crescem as “veias de prata”, raízes da árvore da vida, que
das trevas dão origem ao homem. Antes da vida, ou para além dela, temos o nada, o absoluto da
permanência, os “rochedos” inabaláveis. Rilke fala-nos de “florestas irreais” enquanto Monteverdi nos
apresenta o mundo dos mortos como um lugar real, como o contrapeso do mundo dos vivos. Assim era
vivida a mitologia clássica, como uma estrutura viva, que sustentava e guiava a existência humana. Porém,
a descrição do inferno de Rilke coincide com a do mito clássico: o vazio, as águas paradas, a cor neutra, a
paisagem interminável, a melancolia, o apagado, todas sensações de um mundo longínquio e profundo,
como os mistérios da nossa mente.
! No poema de Rilke conhecemos um momento do mito vivido por um trio: Orfeu, filho de um Deus,
Eurídice, uma ninfa e Hermes, mensageiro dos Deuses. O destino privou Orfeu de consumar o amor com o
seu par, Eurídice. E Hermes surge como um terceiro elemento que possui o trunfo de devolver Eurídice à
vida ou a levar de volta ao mundo dos mortos. Como um triângulo amoroso, cujo destino aos deuses
pertence. Os três caminham “por esta única via”, pela “Estrada”, o caminho da alma para a terra. Orfeu
segue impaciente, alheio ao seu dom, perdido no rio da memória. Estaria a sonhar, imerso no seu
inconsciente, “divorciado dos sentidos”, os olhos movendo-se velozmente como num sonho aterrador?
! A impaciência inicial dá lugar à dúvida, cujo ouvido procura deseperadamente um sinal da amada
conduzida. A dúvida cresce impiedosa, levando-o a questionar-se. O medo instala-se, a desconfiança, a
falta de fé. O olhar para trás pode significar o acordar de um sonho impossível. O castigo dos amantes que
não sabem aceitar o seu destino, poderá fazê-la morrer duas vezes. O olhar para trás, para o fruto proibido,
significará a perdição.
! Hermes, mensageiro dos Deuses, aquele que conduz as almas dos mortos, protector dos viajantes.
A ele lhe coube a missão de conduzir Eurídice pelo caminho que a levará de novo à vida, para junto do seu
par. Orfeu e Eurídice são dois lados de uma mesma moeda, são os opostos que se complementam. Ele,
figura solar, habitante do céu, condutor da luz que dá vida à terra. Ela, figura lunar, ser mortal, que desceu
às trevas que sustêm a terra. O que os une é um amor tão forte como um poderoso íman, que tanto atrai
como repele. Com a morte de Eurídice, Orfeu mergulha num “universo de lamento puro”, no inconsciente
que busca a sua outra metade. O sol parte em busca das estrelas, o dia em busca da noite, algo impossível
de alcançar desde o início, mas que não pode existir sem a presença do outro. Eles são a “constelação
interrompida”, o que faz mover a terra. Eurídice apresenta-nos a morte como o regresso às origens, onde
não existe passado nem futuro, apenas plenitude, o ser desprovido de ego, pleno e absoluto. Aqui não há
lugar para a impaciência, simplesmente se existe sem que o espírito se aperceba. É a existência que
permitirá dar vida ao “fruto repleto de sombra e de doçura”.
! Eurídice simboliza o amor não consumado. Os dois amantes que não conseguem ficar juntos em
vida. A mulher virgem, pura como uma flor, que não chega a desabrochar, é levada pela ternura do deus
que quase acorda o amor esquecido de tão doce que é. A beleza de mulher que continha foi deixada em
vida, a morte, o destino transformou a flor em raíz que alimenta a terra das profundezas.
! E chega o momento em que o destino regressa impiedoso com a forma de um simples olhar para
trás. Quando Hermes comunica a Eurídice que o seu amado quebrou o acordo, esta mostra que nem dele
se lembra, ela já partiu há muito, o seu plano de existência é outro. Só Orfeu não quer aceitar. Será a sua
falta de fé nos Deuses que o fazem perder a sua amada ou será o destino tão irremediável e tão certeiro
que não deveria nunca ser desafiado?
! Orfeu perde pela segunda vez o objecto do seu amor, porque olha para trás, olha para trás para
algo que há muito se foi, que já não faz parte da sua vida, do seu universo. Parece-me aqui traduzida a
teimosia humana em querer recuperar um sentimento ou uma parte da vida que já aconteceu, que já ficou
no passado e a ele pertence. Como o amante que busca a felicidade suprema do primeiro grande amor.
Será o tabu de Rilke o remexer do passado? Que só o presente é real, que o olhar para trás apenas nos
servirá como o acordar de um sonho, como um voltar à realidade.
! Mas as interpretações podem ser tantas quantos os leitores do poema. Porque se trata de um
momento mitológico, de um momento que o nosso inconsciente facilmente preencherá com experiências
por nós vividas. Os mitos oferecem-nos uma estrutura que podemos trabalhar como nossa, um armário
onde guardamos as nossas vivências, as acumulamos, atribuindo-lhes significados diferentes ao longo da
vida. O mesmo nos oferece a música, como a ópera de Montedverdi. Oferece-nos momentos em que a
nossa mente mergulha no inconsciente e o organiza, o estrutura. A música, assim como o mito, não nos diz
o que sentir mas ajuda-nos a aceitar e interiorizar aquilo que vivemos. Faz-nos sentir que fazemos parte de
um todo, que somos reais e irreais ao mesmo tempo.