Bandoleiros - João Gilberto Noll
Bandoleiros - João Gilberto Noll
Bandoleiros - João Gilberto Noll
Resumo
Inicia com o protagonista relembrando o amigo doente, que vem a falecer em seus
braços a caminho do hospital. O episódio ocorre em Porto Alegre, no verão. Eram
velhos amigos. O protagonista viera dos Estados Unidos, onde residia, especialmente
para ficar com o amigo. Ada, sua esposa na época, tenta salvar um casamento em
ruínas mantendo relações sexuais com outros homens, num apelo desesperado de
reconquistar um marido que já não lhe demonstra o menor interesse. Separam-se.
Ada vai viver numa praia em Santa Catarina e lá conhece um pescador, por quem
apaixona-se.
Beberam duas garrafas de cachaça na casa escura, iluminada apenas por um lampião.
O homem, americano, chamava-se Steve e discorria sobre sua vida, sobre o tempo do
colégio, deixando seu visitante completamente entediado. Este, perguntado-se se
alguém neste mundo ainda poderia lhe interessar. Steve conta-lhe que estudou em
Harvad e que durante anos foi dopado por um psiquiatra. Abandonou Harvard,
internou-se numa clínica e adquiriu uma grave amnésia. Recebera tantos choques
insulínicos que nunca mais recuperara de todo a memória. Estava ali a falar o quanto a
clínica o havia aniquilado. A vida tornara-se vil para ele.
Steve prossegue sua história. A vida que tivera em Boston. Fora casado com Jill antes
de decidir mudar-se para o Brasil. Reencontrara o amigo Baby Buffalo, que desde os
treze anos não via. Baby Buffalo contou-lhe que aos vinte anos estuprara uma mulher
em Vermont, passara um tempo na prisão, e estava tentando refazer a vida em
Boston. A partir daí voltaram à velha amizade até Baby Buffalo ser preso novamente.
Nosso protagonista começa então a falar sobre a experiência que teve no mesmo
parque de Boston em que Steve reencontrou Baby Buffalo. Conta-lhe que pisou num
corpo de mulher desenhado a giz no chão. Ao pé do corpo estava escrito que havia
sido estuprada. Steve torna-se possesso. Quer matá-lo, inicia-se uma briga que os
levará à extrema violência. Steve acaba extenuado e todo ensangüentado, mas resiste
ainda. Nosso protagonista, também tendo sido muito golpeado, ameaça-o com uma
pedra e acaba conseguindo escapar. Steve fica caído no morro, ao relento.
Na estada em Boston, Ada esteve lendo um livro pelo qual apaixonou-se, chamado
Minimal Society. Tratava de uma sociedade auto-suficiente na qual tudo de que se
necessitasse seria produzido, abolindo a introdução do comércio exterior. Nesta
sociedade autogerida, o sentido de nacionalidade não existia, pois o importante seria
ser um cidadão minimalista. Ali se desenvolveria também a crença na reencarnação. E
assim cada vez que se morresse, o espírito voltaria para uma sociedade minimalista
mais evoluída, já redimido dos erros passados. Por esta época, o protagonista e Ada já
andavam entendiados um com o outro. Ada fazia quindins para viver e mantinha uma
relação estranha com Alícia, a mexicana com quem dividia o apartamento, que ia além
da amizade. Uma espécie de dependência por parte de Ada e paixão por parte de
Alícia.
Quanto à sociedade minimalista de Ada, em que todos seriam livres, tudo seria
permitido: banhos grupais, troca de casais, etc. O narrador achava que seria uma boa
idéia passar por essas experiências, teria muito o que contar nos livros. Mas Ada lhe
dizia que por enquanto era melhor mesmo que voltasse para o Brasil.
A bem da verdade, qual o dia que passa sem alguém dissolver minha última
esperança? Há sempre alguém a postos para declarar que estou perdido. Que já é
outro o rumo das coisas e que eu me atrasei. Que a história marcha e olha como ainda
estou cheio de ilusões. Tudo marcha em direção a uma clareza que absolutamente não
compreendo. (...) Eu e tudo estávamos sofrendo de um ridículo, mas esse ridículo não
me dava vontade de rir mas sim um medo atroz. Então entrei num bar e pensei num
porre. Daqueles que eu costumava ter no Brasil. Daquelas noites que no dia seguinte
você não lembra de nada. E eu tinha um bom motivo para beber: esquecer por uma
noite do ridículo, o mais completamente.
Mary viera do Quênia. Era uma negra forte, de grandes seios. Fora aos Estados Unidos
apresentar um vasto relatório sobre pesquisas minimalistas desenvolvidas em seu
país. Falava de como os cegos seriam úteis nas sociedades minimalistas, pois através
de suas experiências com a escuridão é que se chegaria à luz. Nos ensinariam que só
há um único caminho: o da luz. Dizia também que pesquisas recentes sobre o sono
afirmavam a importância de não se observar alguém dormindo, porque o ser humano
é a única espécie que odeia o seu semelhante, e quando este dorme, sente um desejo
intenso de eliminá-lo, embora esse desejo visceral seja reprimido pela moral social. As
conversas de Ada, Alícia e Mary giravam em torno da sociedade minimalista. Não havia
espaço entre elas para um intruso que não estivesse de tal modo integrado. Foi
quando Ada pediu-lhe que voltasse ao Brasil.
Em Porto Alegre, nosso protagonista fala a João sobre a sociedade minimalista. João
quer saber como é encarado o terceiro mundo, as relações de produção, os velhos... E
irrita-se pelo amigo não ser capaz de responder-lhe. João era um escritor corajoso.
Escrevera um romance esperançoso em contraponto à atual sociedade corrosiva. João
dizia que era preciso manter a serenidade diante das crises. Morreu alguns dias depois
dessa discussão.
Ada retornara dos Estados Unidos numa cadeira de rodas, sobrevivendo de soro e
sedativos, sem dizer palavra e incapaz de reconhecê-lo. Nosso protagonista ficou a seu
lado até sua completa recuperação. Finalmente curada, Ada explicou-lhe o que
acontecera. Alícia tentara matá-la sufocando-a com um saco plástico enquanto dormia.
Ada livrou-se de Alícia dando-lhe um empurrão com os pés, jogando-a contra a parede
e causando-lhe um dano irreversível. Alícia hoje está sobre uma cama, levando uma
vida vegetativa. Mary, que viu o que acontecera, prestou um excelente testemunho,
livrando-a da prisão. Mary aproveitou para escrever uma tese sobre o sono
minimalista, e foi comprovado o ódio do homem pelo homem e sua irresistível
tentação de matá-lo enquanto assiste-o dormir. A tese virou livro, que virou best-
seller. Mary comprou uma fazenda no Quênia e lá fundou a primeira comunidade
minimalista.
Porque João sorria, e não importava coisa alguma que ele fosse morrer. João vai. Eu
vou. Todos nós vamos morrer. Então, o que importava era aquilo mesmo - eu devolver
esse largo sorriso para João, que está ali, do outro lado do vidro, me sorrindo.
Personagens
· Jill - A bela mulher de Steve, ruiva de olhos verdes; apaixonada pelo marido
decadente.
Trecho
Voltemos à Sociedade Minimal, diz Ada diante de sete ex-alunos. Os garotos adoravam
essas palestras informais. Um deles um dia escreveu um bilhete a Ada, confessando
que depois das aulas masturbava-se sonhando com a Sociedade Minimal. O bilhete
vinha manchado de esperma. Uma noite surpreendi Ada olhando-se no espelho e
confidenciando a si mesma que tivera um orgasmo involuntário ao ler o bilhete.
Passou a língua na mancha do papel olhando-se no espelho.
Quando cheguei em Boston para visitá-la, ainda no aeroporto, Ada disse que estava
pensando entrar depois do curso numa Sociedade Minimal no norte de Massachusetts.
Achava que iria emigrar para os Estados Unidos. Não via mais na nacionalidade um
critério avaliador de qualquer conteúdo humano. As nações sem exceção estavam
condenadas. Restava o ingresso nas Sociedades Minimais.
O fato de ser brasileira ou americana já não a comovia. Ter nascido aqui ou ali era um
mero acidente. O futuro viveria das migrações. O cara só tinha de decidir que
Sociedade Minimal escolher. E para lá então se dirigir. Não importava que estivesse na
Terra do Fogo e escolhesse uma Minimal na Groelândia.
Ada dizia que a morte deixará de ser um problema. Pois que as doutrinas post-mortem
das Sociedades Minimais seriam tecidas por seus maiores poetas. Os poetas, dizia Ada,
têm as mãos apropriadas para a tarefa. Há previsões de renomados Scholars sobre a
matéria: os poetas das Sociedades Minimais voltarão a trabalhar em cima da idéia da
Reencarnação.
Depois de morto o cara migra cada vez para uma mais perfeita Sociedade Minimal.
Algum eventual prejuízo da vida anterior será regiamente ressarcido na nova
Sociedade Minimal. O cara vai fazendo parte da Evolução interminavelmente.
Passamos agora por ruas estreitas do Little Italy. Num núcleo seguro, continua Ada, a
Informação será ociosa. A informação só tem sentido no perigo. É a ameaça que nos
faz conhecer.