Bandoleiros - João Gilberto Noll

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Bandoleiros

(João Gilberto Noll)

Relato da sociedade contemporânea, o romance ilustra a situação marginal dos


intelectuais, trazendo à tona a profunda solidão em que vivem, seus anseios mais
prementes e a tentativa vã de amenizar a dor da existência com o álcool, o sexo ou as
drogas. Desse modo, revela-se a total impossibilidade de adequação por parte desses
intelectuais ao status quo vigente.

Resumo

A narrativa transcorre em Porto Alegre, porém é entremeada por lembranças de


quando o narrador, protagonista do romance, vivera nos Estados Unidos. Romance em
primeira pessoa no qual, do início ao fim, é omitido o nome do protagonista.

Inicia com o protagonista relembrando o amigo doente, que vem a falecer em seus
braços a caminho do hospital. O episódio ocorre em Porto Alegre, no verão. Eram
velhos amigos. O protagonista viera dos Estados Unidos, onde residia, especialmente
para ficar com o amigo. Ada, sua esposa na época, tenta salvar um casamento em
ruínas mantendo relações sexuais com outros homens, num apelo desesperado de
reconquistar um marido que já não lhe demonstra o menor interesse. Separam-se.
Ada vai viver numa praia em Santa Catarina e lá conhece um pescador, por quem
apaixona-se.

O protagonista é um escritor. Seu último livro, um romance destacado pelos críticos,


não vendera nada. Entrega-se à bebida. Há um mês veste a mesma roupa. Vive de
traduções das quais está saturado. Encerrado em seu ostracismo e solidão, sob o
espectro do fracasso, vagueia pelas ruas e bares ainda pelas manhãs. Nos bares,
bebendo Dreher e com firme intuito de turvar a realidade, sente-se incomodado com
conversas alheias. Vê-se obrigado a escutar um garoto que se diz fã dos seus livros.
Escuta-o sem o ouvir. Lembra-se de quando Ada era professora numa escola pública
experimental, antes de debandar para tantas outras coisas que tentou fazer na vida.
Agora Ada aprendia a pescar. Lembranças permeando-lhe os pensamentos: a menina,
aluna de Ada, que se sentara sem calcinha à sua frente no dia em que ele apresentara-
se de operário para uma de suas aulas de sociologia. Onde andaria a danadinha,
pensava.

Bêbado, joga a chave do apartamento num bueiro. Novamente se vê no passado,


deitado no degrau de um prédio público. Avista o negro cego tocando sax e chama-o.
Conhecera-o há anos, pois era músico. O cego sofria de fome. Mas preferia assim,
viver sem calendário. Foram para o bar tomar café. Depois para a rua, à deriva,
enquanto o vento soprava forte.

De volta ao apartamento, recebe um telefonema que mal consegue entender, apenas


que é de um estrangeiro. Pega o ônibus para Viamão. No fim da linha uma igreja, uma
galinha, uma menina vendendo caramelos. No lugarejo olhares esquivos dos
habitantes. Sobe o morro bêbado; o ar puro o revitaliza. Está indo para o vale que fica
depois do morro. Lá do alto avista uma casinha de madeira, sozinha no meio da
vegetação árida lá embaixo. Ao chegar à casa bastante abandonada e sentindo muita
sede, chama por alguém. Aparece um homem com sotaque estrangeiro que lhe diz não
ter água em casa, só cachaça. Era louro, vestia uma calça branca arregaçada e tinha
no peito a tatuagem de um olho.

Beberam duas garrafas de cachaça na casa escura, iluminada apenas por um lampião.
O homem, americano, chamava-se Steve e discorria sobre sua vida, sobre o tempo do
colégio, deixando seu visitante completamente entediado. Este, perguntado-se se
alguém neste mundo ainda poderia lhe interessar. Steve conta-lhe que estudou em
Harvad e que durante anos foi dopado por um psiquiatra. Abandonou Harvard,
internou-se numa clínica e adquiriu uma grave amnésia. Recebera tantos choques
insulínicos que nunca mais recuperara de todo a memória. Estava ali a falar o quanto a
clínica o havia aniquilado. A vida tornara-se vil para ele.

Steve prossegue sua história. A vida que tivera em Boston. Fora casado com Jill antes
de decidir mudar-se para o Brasil. Reencontrara o amigo Baby Buffalo, que desde os
treze anos não via. Baby Buffalo contou-lhe que aos vinte anos estuprara uma mulher
em Vermont, passara um tempo na prisão, e estava tentando refazer a vida em
Boston. A partir daí voltaram à velha amizade até Baby Buffalo ser preso novamente.

Nosso protagonista começa então a falar sobre a experiência que teve no mesmo
parque de Boston em que Steve reencontrou Baby Buffalo. Conta-lhe que pisou num
corpo de mulher desenhado a giz no chão. Ao pé do corpo estava escrito que havia
sido estuprada. Steve torna-se possesso. Quer matá-lo, inicia-se uma briga que os
levará à extrema violência. Steve acaba extenuado e todo ensangüentado, mas resiste
ainda. Nosso protagonista, também tendo sido muito golpeado, ameaça-o com uma
pedra e acaba conseguindo escapar. Steve fica caído no morro, ao relento.

Na estada em Boston, Ada esteve lendo um livro pelo qual apaixonou-se, chamado
Minimal Society. Tratava de uma sociedade auto-suficiente na qual tudo de que se
necessitasse seria produzido, abolindo a introdução do comércio exterior. Nesta
sociedade autogerida, o sentido de nacionalidade não existia, pois o importante seria
ser um cidadão minimalista. Ali se desenvolveria também a crença na reencarnação. E
assim cada vez que se morresse, o espírito voltaria para uma sociedade minimalista
mais evoluída, já redimido dos erros passados. Por esta época, o protagonista e Ada já
andavam entendiados um com o outro. Ada fazia quindins para viver e mantinha uma
relação estranha com Alícia, a mexicana com quem dividia o apartamento, que ia além
da amizade. Uma espécie de dependência por parte de Ada e paixão por parte de
Alícia.

Quanto à sociedade minimalista de Ada, em que todos seriam livres, tudo seria
permitido: banhos grupais, troca de casais, etc. O narrador achava que seria uma boa
idéia passar por essas experiências, teria muito o que contar nos livros. Mas Ada lhe
dizia que por enquanto era melhor mesmo que voltasse para o Brasil.

A bem da verdade, qual o dia que passa sem alguém dissolver minha última
esperança? Há sempre alguém a postos para declarar que estou perdido. Que já é
outro o rumo das coisas e que eu me atrasei. Que a história marcha e olha como ainda
estou cheio de ilusões. Tudo marcha em direção a uma clareza que absolutamente não
compreendo. (...) Eu e tudo estávamos sofrendo de um ridículo, mas esse ridículo não
me dava vontade de rir mas sim um medo atroz. Então entrei num bar e pensei num
porre. Daqueles que eu costumava ter no Brasil. Daquelas noites que no dia seguinte
você não lembra de nada. E eu tinha um bom motivo para beber: esquecer por uma
noite do ridículo, o mais completamente.

Mary viera do Quênia. Era uma negra forte, de grandes seios. Fora aos Estados Unidos
apresentar um vasto relatório sobre pesquisas minimalistas desenvolvidas em seu
país. Falava de como os cegos seriam úteis nas sociedades minimalistas, pois através
de suas experiências com a escuridão é que se chegaria à luz. Nos ensinariam que só
há um único caminho: o da luz. Dizia também que pesquisas recentes sobre o sono
afirmavam a importância de não se observar alguém dormindo, porque o ser humano
é a única espécie que odeia o seu semelhante, e quando este dorme, sente um desejo
intenso de eliminá-lo, embora esse desejo visceral seja reprimido pela moral social. As
conversas de Ada, Alícia e Mary giravam em torno da sociedade minimalista. Não havia
espaço entre elas para um intruso que não estivesse de tal modo integrado. Foi
quando Ada pediu-lhe que voltasse ao Brasil.

Em Porto Alegre, nosso protagonista fala a João sobre a sociedade minimalista. João
quer saber como é encarado o terceiro mundo, as relações de produção, os velhos... E
irrita-se pelo amigo não ser capaz de responder-lhe. João era um escritor corajoso.
Escrevera um romance esperançoso em contraponto à atual sociedade corrosiva. João
dizia que era preciso manter a serenidade diante das crises. Morreu alguns dias depois
dessa discussão.

Ada retornara dos Estados Unidos numa cadeira de rodas, sobrevivendo de soro e
sedativos, sem dizer palavra e incapaz de reconhecê-lo. Nosso protagonista ficou a seu
lado até sua completa recuperação. Finalmente curada, Ada explicou-lhe o que
acontecera. Alícia tentara matá-la sufocando-a com um saco plástico enquanto dormia.
Ada livrou-se de Alícia dando-lhe um empurrão com os pés, jogando-a contra a parede
e causando-lhe um dano irreversível. Alícia hoje está sobre uma cama, levando uma
vida vegetativa. Mary, que viu o que acontecera, prestou um excelente testemunho,
livrando-a da prisão. Mary aproveitou para escrever uma tese sobre o sono
minimalista, e foi comprovado o ódio do homem pelo homem e sua irresistível
tentação de matá-lo enquanto assiste-o dormir. A tese virou livro, que virou best-
seller. Mary comprou uma fazenda no Quênia e lá fundou a primeira comunidade
minimalista.

O protagonista conhecera Steve na ocasião em que fora "convidado" pelas três


mulheres minimalistas a voltar para o Brasil. Tinha ido beber num bar quando Steve,
após puxar assunto, convidou-o a conhecer seu refúgio, uma velha casa de campo nos
arredores de Boston. No trajeto, Steve contou-lhe sobre a casa abandonada que
conhecera em Viamão, lá em Porto Alegre. Contou-lhe também pormenores de sua
vida, que pouco o interessou. Steve, muito alcoolizado, entrou em coma alcoólico, e
antes defecou na própria roupa. Deitado de bruços sobre a cama da velha casa
implorou ao amigo que o limpasse. Este, por sua vez, esgotado com aquela situação
insuportável e extremamente nauseado, por um momento desejou matá-lo. Acabou
por tirar-lhe as roupas sujas, arrastou-o até o banheiro e colocou-o dentro da
banheira. Enquanto banhava-o, alguém abriu a porta da sala e entrou. Era Jill, uma
bela mulher ruiva com olhos verdes. Disse-lhe estar cuidando de Steve. Agarrou-a .
Houve reciprocidade, então despiu-a. Ficaram ali se bolinando por um longo tempo até
que Steve deu um grito e Jill foi até ele. Steve caíra no banheiro e estava sangrando.
Trouxeram-no para fora. Jill debruçou-se sobre ele e abraçou-o ali, no chão mesmo.
Nosso protagonista partiu rumo ao Brasil. Já no Galeão só pensava em reencontrar
João. Ao avistá-lo, sorrindo por detrás do vidro, a poucos passos, largou a mala que
havia exigido-lhe um enorme esforço. Abandonou a mala com todas as suas coisas
gastas e foi direto ao encontro de João, sem saber que dias depois...

Porque João sorria, e não importava coisa alguma que ele fosse morrer. João vai. Eu
vou. Todos nós vamos morrer. Então, o que importava era aquilo mesmo - eu devolver
esse largo sorriso para João, que está ali, do outro lado do vidro, me sorrindo.

Personagens

· Protagonista - anônimo brasileiro; narrador da obra; escritor arrasado pelo fracasso


do seu livro; alcoólatra; solitário e atormentado.

· Steve - americano decadente, alcoólatra, desmemoriado e sem controle até sobre


suas funções fisiológicas.

· Ada - mulher do protagonista; desequilibrada e visionária.

· Alícia - mexicana; amiga de Ada; igualmente desequilibrada e visionária.

· Mary - africana, amiga de Ada e Alícia; intelectual também visionária.

· Jill - A bela mulher de Steve, ruiva de olhos verdes; apaixonada pelo marido
decadente.

· João - amigo do protagonista; escritor íntegro e corajoso.

Trecho

Ada começou a cavar sua bolsa para a Boston University ao se apaixonar


perdidamente por um livro chamado Minimal Society. É que lá havia um bom curso de
PH sobre o assunto. De que assunto se trata? É melhor que eu deixe Ada falar. Porque
hoje, simplesmente, eu não saberia dizer uma única linha sobre o assunto. Se é que
há algum assunto em pauta na Minimal Society. Mas o fato é que muito se falou sobre
isso, e Ada literalmente transpirava toda ao conclamar que encarássemos a era da
Minimal Society.

Um núcleo comunitário mínimo, onde só circulassem suas próprias mercadorias,


completamente vedado às injeções do comércio exterior.

Quando eu perguntava sobre as possibilidades aí do chamado intercâmbio cultural, Ada


me respondia que a Sociedade Minimal congrega todas as potências do Homem, e
portanto ela mesma se encarregaria de edificar seus próprios monumentos.

Voltemos à Sociedade Minimal, diz Ada diante de sete ex-alunos. Os garotos adoravam
essas palestras informais. Um deles um dia escreveu um bilhete a Ada, confessando
que depois das aulas masturbava-se sonhando com a Sociedade Minimal. O bilhete
vinha manchado de esperma. Uma noite surpreendi Ada olhando-se no espelho e
confidenciando a si mesma que tivera um orgasmo involuntário ao ler o bilhete.
Passou a língua na mancha do papel olhando-se no espelho.

Ada não viu que eu estava ali.

Na Boston University Ada encontrou muitos adeptos da Sociedade Minimal. Vários


deles já tinham comprado terras, para lá fundarem um dia suas pioneiras Sociedades
Minimais.

Quando cheguei em Boston para visitá-la, ainda no aeroporto, Ada disse que estava
pensando entrar depois do curso numa Sociedade Minimal no norte de Massachusetts.
Achava que iria emigrar para os Estados Unidos. Não via mais na nacionalidade um
critério avaliador de qualquer conteúdo humano. As nações sem exceção estavam
condenadas. Restava o ingresso nas Sociedades Minimais.

O fato de ser brasileira ou americana já não a comovia. Ter nascido aqui ou ali era um
mero acidente. O futuro viveria das migrações. O cara só tinha de decidir que
Sociedade Minimal escolher. E para lá então se dirigir. Não importava que estivesse na
Terra do Fogo e escolhesse uma Minimal na Groelândia.

Os Fundos Mundiais lhe garantiriam os gastos da locomoção. Uma vez ingresso na


Minimal, o indivíduo entraria num processo gradual de recolhimento. A tarefa era a de
reconstruir o Universo no espaço de sua Minimal. Ali o derradeiro refúgio contra os
espectros do Mundo Exterior. A Minimal auto-suficiente: pródiga fornecedora das
necessidades humanas de cada um. E o indivíduo poderia então morrer em paz: sem
rancor, servidão, ou cobiça.

Ada dizia que a morte deixará de ser um problema. Pois que as doutrinas post-mortem
das Sociedades Minimais seriam tecidas por seus maiores poetas. Os poetas, dizia Ada,
têm as mãos apropriadas para a tarefa. Há previsões de renomados Scholars sobre a
matéria: os poetas das Sociedades Minimais voltarão a trabalhar em cima da idéia da
Reencarnação.

Depois de morto o cara migra cada vez para uma mais perfeita Sociedade Minimal.
Algum eventual prejuízo da vida anterior será regiamente ressarcido na nova
Sociedade Minimal. O cara vai fazendo parte da Evolução interminavelmente.

Os poetas das Sociedades Minimais viverão gozosamente, trancafiados em escuras


celas privativas: álcool, alucinógenos, mulheres, tudo. Só têm que permanecer
trancafiados para sempre na trevosa, mas celeste cela. Não suportariam a luz do sol,
eles que tecem o grande painel da morte. Ada deplora a influência atual dos mass-
media. Diz que na Sociedade Minimal o poeta não será mais bombardeado pela
informação. O poeta será o selvagem da masmorra. Para que jornais? exclama Ada ao
entrar no táxi à saída do aeroporto de Boston. No táxi olho Boston pela primeira vez.

Passamos agora por ruas estreitas do Little Italy. Num núcleo seguro, continua Ada, a
Informação será ociosa. A informação só tem sentido no perigo. É a ameaça que nos
faz conhecer.

As Minimais se aurorarem livres como astros. Não precisam de ninguém.


O que se vê hoje é que ninguém quer saber do que vai bem. O homem passando os
olhos por páginas de jornais para ter mais um motivo de horror.

Não podemos continuar nessa via macabra, sempre à espera do pior.

Ada pede ao motorista para parar o carro, e me leva a um pequeno restaurante


italiano. Não adianta eu dizer que estou atulhado pelas porcarias da Pan American. Ada
quer comer agora naquele amado restaurante italiano, como se precisasse de mais um
tempo até me levar para a casa onde morava.
Ada estava me escondendo

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