Tese Do Eduardo Guerreiro Sobre Adorno e Mística
Tese Do Eduardo Guerreiro Sobre Adorno e Mística
Tese Do Eduardo Guerreiro Sobre Adorno e Mística
por
Eduardo Guerreiro Brito Losso
Programa de Ciência da Literatura
DEFESA DE TESE
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________________________________
Professor doutor João Camillo Barros de Oliveira Penna
Orientador
_________________________________________________________________________
Professora doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins (UFRJ)
_________________________________________________________________________
Professora doutora Carlinda Fragale Pate Nunez (UERJ)
_________________________________________________________________________
Professor doutor Rodrigo Antônio de Paiva Duarte (UFMG)
_________________________________________________________________________
Professor doutor André Rangel Rios (UERJ)
_________________________________________________________________________
Professor doutor Alberto Pucheu Neto (UFRJ)
Suplente
_________________________________________________________________________
Professora doutora Paula Glenadel (UFF)
Suplente
2
3
Defendida a tese:
Conceito:
A tese é dedicada primordialmente à minha mãe, Suelli. Também dedico a Kelly. Estendendo
o círculo, dedico aos grandes mestres, amigos, alunos; a sua experiência, reflexão e
transformação, leitor, para que seu mundo e o mundo melhore. O conteúdo da tese é dedicado
àqueles que souberam praticar uma mística da modernidade na arte moderna e contemporânea,
logo, remeto aos meus amigos escritores Leonardo Fróes, Renato Rezende e Carlos Emílio
Correa Lima.
3
4
à enorme ajuda, amizade e carinho dos diletos professores Carlinda Fragale Pate Nuñez, João
Camilo Penna, André Rios, Vera Lins, Luiz Fernando Medeiros de Carvalho, Ana Alencar;
e a ajuda, presença e marca de Paula Glenadel, Luis Edmundo, Uta Kösser, Eduardo Coutinho,
Célia Pedrosa, Manuel Antônio de Castro, José Jorge, Lúcia Helena, Ítalo Moriconi, Vitor
Hugo;
à amizade sempre necessária de Gabi Blue, Kelly Stenzel, Mônica Dias, Ana Paula, Daniela,
Marcelo, Renata Sommer, Renate, Claudia Priahoff, Claudia Tetens, Andreas, Lea, Gesine,
Max, Kathrin, Diego de Assis, Gisela e Sina;
Agradeço à oportunidade de ter estudado com bolsa e passar o tempo de estadia na Alemanha
dada pelo DAAD, CNPQ, e CAPES;
Agradeço a todos os pensadores e artistas profanos ou sagrados que experimento como se
fossem sagrados, especialmente à mística assumida da minoria, ou enrustida, da maioria;
aos alunos que passaram e os que virão.
4
5
A saudade materialista de apreender a coisa quer o contrário: somente sem imagem que se
poderia pensar o objeto em sua integridade. Tal ausência de imagens converge com a
proibição teológica das imagens. O materialismo o seculariza pelo fato de não permitir
acordo com a teologia lá onde ele é mais materialista. Sua saudade seria a ressurreição da
carne.
Dialética Negativa
Theodor Adorno
5
6
Abstract
The thesis analyses the relationship between Adorno‘s philosophy, especially his aesthetics,
and negative theology and mysticism. This relationship is not seen as one of identification nor
of equivalence: Adorno rescues with a critical filter negativity itself and the secularized
transformation of mysticism without attaching himself to ―theological relics‖. But this
secularizing operation discovers that negative theology and traditional mysticism themselves
were the effect of an emancipatory advancement of enlightenment. From its inception,
passing through several historical transformations, mysticism has always been linked to the
formulation of the great existential questions of philosophy, besides bearing intrinsic relations
with the modern aesthetical experience. And it is precisely towards this region that the
work‘s focus moves: locating the question of negative theology and of mysticism in
modernity there where they find their best profane refuge: in the modern artwork; and
thinking the way Adorno‘s aesthetical theory contributes towards an understanding of the
status of negative theology and mysticism in the modern and the contemporary artwork.
6
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................................................ 8
Capítulo 1 CRÍTICA À RELIGIÃO: JUDAÍSMO E CRISTIANISMO ............................................................................................ 19
1.1 Materialismo e teologia ......................................................................................................................................... 19
1.1.1 Adorno, escola de Frankfurt e materialismo dialético ........................................................................ 19
1.1.2 Materialismo e práxis ......................................................................................................................... 20
1.1.3 Materialismo e teoria: retomada da crítica à religião ......................................................................... 22
1.2 Crítica à religião na Dialética do esclarecimento .................................................................................................. 26
1.2.1 Judaísmo ........................................................................................................................................... 27
1.2.2 Cristianismo ....................................................................................................................................... 38
1.2.3 Fé, razão e secularização .................................................................................................................. 48
Capítulo 2 PARA UM RETORNO NEGATIVO DA METAFÍSICA EM OPOSIÇÃO AO POSITIVISMO ..................................... 54
2.1 Transcendência oculta do radicalmente diferente ................................................................................................ 54
2.2 Barbárie da modéstia positivista e refúgio da metafísica na minúcia profana ..................................................... 58
2.3 Questão da metafísica contra os equívocos do positivismo ................................................................................ 66
2.4 desejo de experiência do absoluto X dominação da natureza ............................................................................ 73
Capítulo 3 FRACASSO E CORAGEM PERANTE O MISTÉRIO: TEOLOGIA NEGATIVA ....................................................... 82
3.1 “Intenções teológicas” de “salvar o sem-esperança” ........................................................................................... 82
3.2 Ritual retórico ao tratar da necessidade em relação à teologia .......................................................................... 87
3.3 Fracasso e valentia, indiferença entre o negativo e o positivo ............................................................................ 94
3.4 Luz e invisibilidade da verdade: “tomar o touro pelos chifres” ............................................................................ 98
3.5 Solução sem saída: dizer abertamente a teologia negativa ................................................................................ 107
3.6 Não destratar a metafísica: o caso Nietzsche ..................................................................................................... 113
Capítulo 4 TILLICH, SUPRA-EXISTÊNCIA E TRANSMUNDO ................................................................................................. 122
4.1 Metafísica negativa, afirmação e negação de Deus ............................................................................................ 122
4.2 Estado de suspensão. Kant e Tillich ................................................................................................................... 128
4.3 Graus hermenêuticos de Nietzsche à atualidade ................................................................................................ 132
4.4 Ânsia utópica ....................................................................................................................................................... 134
4.5 Função da prova ontológica, tensão mútua entre imanência e transcendência ................................................. 139
4.6 Luz da razão ........................................................................................................................................................ 150
4.7 Saudade do materialismo apócrifo ...................................................................................................................... 155
Capítulo 5 OS SUBTERRÂNEOS DO ESCLARECIMENTO NA MÍSTICA SECULARIZADA .................................................. 174
5.1 Ambição teórica da metafísica contra a experiência metafísica ......................................................................... 174
5.2 Místicos e improdutividade .................................................................................................................................. 176
5.3 Ambição teórica da metafísica contra a falibilidade da mística ........................................................................... 180
5.4 Possibilidade da experiência metafísica na modernidade .................................................................................. 189
5.5 Carta a Scholem de 19 de abril de 1939: o papel do neófito secularizado e a mística da desmistificação ....... 195
5.6 Cumplicidade com a teologia herética ................................................................................................................ 203
5.7 Complexidade no estudo da mística e suas extensões culturais ....................................................................... 206
5.8 Silesius: enigma da minúcia profana .................................................................................................................. 208
5.9 Mística subterrânea de judeus modernos ........................................................................................................... 215
5.10 Potencial emancipatório da mística .................................................................................................................. 222
5.11 Resposta de Scholem a Adorno em 8.12.1967: a desmistificação do historiador místico ............................... 224
Capítulo 6 MÍSTICA, TEOLOGIA NEGATIVA E BIBLIOGRAFIAS .......................................................................................... 231
6.1 História e teoria da mística: Michel de Certeau .................................................................................................. 231
6.2 Katz e o contextualismo ...................................................................................................................................... 236
6.3 Forman e o descontextualismo ........................................................................................................................... 239
6.4 Psicanálise: conflito psíquico e dimensão ontológica ......................................................................................... 244
6.5 Armadilhas teóricas da iluminação ..................................................................................................................... 246
6.6 Dialética da mística ............................................................................................................................................. 251
6.7 Teologia negativa: Dionísio Areopagita .............................................................................................................. 259
6.8 Bibliografia sobre teologia negativa em Adorno ................................................................................................. 269
6.9 Como não falar da teologia negativa .................................................................................................................. 277
6.10 Teologia negativa moderna ............................................................................................................................... 278
Capítulo 7 MÍSTICA NA MODERNIDADE E EMBRIAGUEZ (RAUSCH) .................................................................................. 281
7.1 Mística na arte moderna ..................................................................................................................................... 281
7.2 Teóricos da mística na modernidade: Martina Wagner-Egelhaaf e Uwe Spörl .................................................. 284
7.3 Mística e literatura moderna em Notas sobre literatura ...................................................................................... 288
7.4 Bibliografia sobre a relação entre mística e Adorno ........................................................................................... 298
Conclusão ................................................................................................................................................................................. 303
8 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................................... 310
8.1 Obra de Adorno .................................................................................................................................................. 310
8.2 Sobre Adorno ...................................................................................................................................................... 313
8.3 Adorno e teologia negativa ................................................................................................................................. 324
8.4 Teologia negativa ................................................................................................................................................ 325
8.5 Teologia negativa e modernidade ....................................................................................................................... 328
8.6 Mística ................................................................................................................................................................. 331
8.7 Geral .................................................................................................................................................................... 335
7
8
INTRODUÇÃO
O objeto da tese é a obra do filósofo alemão Theodor Adorno. Embora o filósofo tenha
sido um dos principais pensadores da história da teoria da literatura, ele ainda é, a meu ver,
pouco estudado nos departamentos de literatura para que se avalie melhor sua contribuição
Meu tema é examinar o papel que um nebuloso aspecto teológico possui em sua
Antes de mais nada, é necessário deixar bem claro que o trabalho não parte do ponto
de vista de um crente nem se enquadra na profissão de fé do teólogo, muito menos numa sorte
de mística holística da Nova Era. Trata-se de uma extensa teorização crítica que procurou se
Sabendo logo de início que nosso lugar teórico e institucional é laico, é a partir dessa
posição que vamos analisar e valorizar o modo como Adorno questionou o materialismo
humanas e tudo o que elas representam de conquista social para a liberdade de pensar e
criticar, assim como condições de estudar e transmitir saber. Essa liberdade é algo que ela tem
o dever de resguardar, pois não lhe faltam ameaças vindas de diversos interesses no mundo
8
9
expandido em diversas redes sociais, sua liberdade é frágil, precária, pode ser objeto de
mutilação a qualquer momento. Cabe aos professores e alunos que reconhecem o valor dessa
restringindo e tolhendo as condições para atividades culturais e reflexão crítica que ela
fornece. Penso ainda que a lógica da resistência não seria a melhor: é preciso encontrar
formas críticas e creativas de inserção e expansão, por meio ou não do capital, não para que
ele a submeta, mas para que ele não a extermine em seu estado de pura irracionalidade
tecnocrática.
Mas de onde veio essa liberdade? Sem dúvida, de um longo embate contra instituições
religiosas e interesses meramente comerciais. Não quero me alongar nesse ponto. Gostaria de
chamar atenção brevemente para outro aspecto paradoxal, pouco pensado. A história da
primeira das ciências, que possuía o maior estatuto, foi, contudo, com o processo do
nascimento das ciências humanas. Hoje os cursos de teologia servem à instituição religiosa
Afinal, o que devemos pensar disso? Até que ponto a teologia foi um entrave na
liberdade de pensar, isso é uma questão da qual estamos sempre nos ocupando. Mas há uma
outra questão, inversão dialética da primeira, que não a invalida mas se tornou hoje
surpreendente e difícil de formular: até que ponto a teologia foi importante para o que há de
melhor na universidade? Os teólogos serão os primeiros a gastar a tinta para dar as provas
mais contundentes. Mas o que nos interessa é: como pensar essa questão não do ponto de
9
10
sobrou ou sobra de suas reflexões. Incrivelmente, em pleno mundo moderno, estamos diante
Peço então a permissão para começar a tocar em pontos delicados. Será que o universo
laico, receoso de perder suas conquistas mais legítimas, não é freqüentemente levado a
congelá-las, hipostasiá-las? Até que ponto a constante oposição, sempre soando muito bem
resolvida, à sua antiga rainha é sintoma de uma reprodução mecânica das conquistas
anteriores? Se existe aí um sintoma, haverá um trauma ignorado que persiste numa compulsão
à repetição da rejeição, como se, em vez de efetivamente estar segura e flexível em sua
posição, ainda trai em si um teor autoritário que, justamente, assemelha-o a sua antiga senhora?
impressiona-me que nas relações de poder e saber da universidade isso seja falsamente dado
teologia. Esse pai todo poderoso, rei da universidade, senhor da infância do saber moderno
despedaçado, jogado para bem longe. Chegou um momento, meados dos anos 30 e 50 do
século XX, que suas categorias eram vistas como totalmente ultrapassadas. A moda era evitá-
las, esquecê-las.
10
11
chamada teologia dialética (Barth, Tillich, Otto), criticando-a, mesmo participando no geral
desse silêncio, carregou restos daquele assassinato consigo, alimentou-se, quase que
secretamente, desse corpo esquartejado e inquiriu-se sobre seu papel naquele momento.
filosofia fazia da teologia, ligada diretamente às ciências humanas e exatas, não deixou o
problema de lado e encarou-o no centro de seu modo de proceder: na dialética. Ele praticou
uma dialética negativa. A negatividade de sua dialética materialista foi pensada enquanto
vazio negativo do próprio materialismo, isto é, seu lugar vazio: a cova nua da teologia.
(capítulo 6), comprovamos que foi precisamente dessa via negativa na filosofia que se
quer dizer, seus efeitos na modernidade a partir de um filósofo que estava especialmente
atento para toda a dimensão do trauma no cerne de sua aposta teórica. O crime se oculta até
mesmo no próprio Adorno. Mediante todo um jogo de pistas muito explícitas em que ele
afirma que vai lidar com a teologia de modo implícito em seus textos, a reconstituição do
1
LIEDKE, Ulf. Naturgeschichte und Religion, Eine theologische Studie zum Religionsbegriff in der Philosophie
Theodor W. Adornos. Frankfurt am Main: Lang, 1997, pp. 437-9. Retiro a metáfora de Lieke, pois ele foi um
detetive exemplar, menos conclusão final do que na recolha e concatenação dos dados. Como teólogo,
argumento no capítulo 6, ele não foi capaz de sustentar o estado de suspensão adorniano, o que é regra em todos
os teólogos que trataram do filósofo dialético.
11
12
antiga já era uma espécie de teologia, basta ver o estatuto que Aristóteles deu ao que ele
pronunciar isso, refletir sobre essa hipótese mais que provável, que soa como se fosse delírio!
Dos anos 80 até hoje, porém, há um grande ressurgimento de todos esses problemas.
reflexão sobre diferenças culturais e o questionamento da identidade, até que ponto o ocidente
começou a aparecer. Foi preciso o berro de acontecimentos midiáticos internacionais para que
Christoph Türcke, estão expondo e dando a conhecer a extensão do vazio teológico no núcleo
da negatividade filosófica atual. Mas o que setores da filosofia e dos estudos de religião estão
desbravando é apenas o início para uma lenta – monótona, eu diria - tomada de consciência
fundo. O que realmente nos concerne é como a ausência desse cadáver negativo da teologia
A arte moderna foi a grande rebelde diante do autoritarismo ideológico religioso. Sua
2
ARISTÓTELES. Obras completas. Tomo II. Buenos Aires: Omeba, pp. 171-2, Metafísica, livro 6, capítulo 1,
1018-21ª.
3
No Brasil, devido à falta de bibliotecas atualizadas, o processo tende a se tornar ainda mais lento, apesar da
Internet. Por isso não me impressiono se toda essa discussão soar estranha, estrangeira, e causar incompreensão,
ou pior, ser decodificada por paradigmas ultrapassados. Devo mesmo assim confiar na sede de atualização dos
mais atentos.
12
13
teológicas no interior de sua metafísica. Então por que procurar teologia logo na arte moderna?
desprezo pela própria metafísica. Nesse ataque rebelde, perspicaz, anti-autoritário do artista
barroca, por exemplo, enquanto crise da arte sacra em processo de modernização, é difícil
teologia e na literatura, na maioria das vezes com textos que valem para ambos os setores:
Meister Eckhart, São João da Cruz, Nicolau de Cusa, certas obras da cabala judaica, como o
Zohar. Não é ao acaso que são os grandes representantes da teologia negativa. A negatividade
inevitavelmente associada a essa herança histórica: resta saber como. Descobrimos que
Adorno prestou grande atenção a esse fenômeno histórico (capítulo 5) e deu a ele um valor
Resulta desse quebra-cabeça histórico que promete encaixes inusitados, mas não tão
fáceis quanto possa parecer nessa introdução, que devemos manter um estado de suspensão.
Esse é o conceito-chave que resultou de nosso trabalho. Leiamos o que Adorno escreve no
13
14
racionalização filosófica, os chamados ―valores culturais‖, peca contra a sua raison d‟être
(Prismas, 114).
a crítica até a sua própria suspensão [nota do tradutor, Augustin Wernet e Jorge Mattos
Adorno afirma que o sentido forte de cultura, aquele que não se diminui diante do
mercado nem na ideologia de uma crítica cultural que crê na pureza do ―espírito‖, é o de
suspensão da objetivação, que os tradutores optaram por ―interrupção‖. Para não incorrer
nesse erro e se manter na própria suspensão da razão de ser da cultura, a crítica dialética
A mística, como veremos na tese, não é somente uma das manifestações da cultura, ela
Embora tenha havido até hoje a tendência na filosofia e nas ciências humanas a
entre filosofia e estudos de religião, mostram que é necessário não tentar compensar a crença
4
A notação das obras de Adorno é esclarecida no início da bibliografia. (11.1, 15) ―Indem er Kultur zu seinem
Gegenstand macht, vergegenständlicht er sie nochmals. Ihr eigener Sinn aber ist die Suspension von
Vergegenständlichung. Sobald sie selber zu »Kulturgütern« und deren abscheulicher philosophischer
Rationalisierung, den sogenannten »Kulturwerten« gerinnt, hat sie bereits gegen ihre raison d'être gefrevelt.‖
5
(111, 23) ―Die Schwelle der dialektischen gegenüber der Kulturkritik aber ist, daß sie diese bis zur Aufhebung
des Begriffs der Kultur selber steigert‖.
14
15
Nem um nem outro, a experiência não é a eternidade nem a morte, é a duração incerta
estética (capítulo 7) que não cumpre o papel de deixar o psiquismo na mera errância, mas leva
divertimento histérico vira a única alternativa diante do trabalho repetitivo ou estressante mais
miserável, então produz-se nada mais nada menos que o extermínio da experiência.
ascético, contra as perversões do mundo, a mística da arte moderna se serve das perversões
para também lutar contra elas, mesmo que com uma estratégia inteiramente outra. Para
Como as questões são difíceis, o campo é minado, e qualquer posição que saia das
com nossos propósitos. Posso dizer que esforcei-me por tomar conhecimento da bibliografia
sobre a relação entre mística e Adorno (capítulo 7, 7.4), teologia negativa e Adorno (6.8).
15
16
Examinei razoavelmente os temas mais amplos como mística (capítulo 6), teologia negativa
(6.7), estética e teologia em geral em Adorno. Isso não seria possível se eu não passasse dois
a exaustividade na pesquisa e análise da literatura secundária mas também da primária não foi
próximo detetive nos apontar. Sou obrigado a constatar, de qualquer forma, que os outros
Por causa de uma citação importante sobre teologia negativa remetendo a Tillich, o
chamada ―experiência metafísica‖, cuja origem, ou talvez até tradução, é a experiência mística.
Adorno à cabala e à ―teologia herética‖ (isto é, a mística especulativa), leituras que o levam a
16
17
convidados a abordar como a mística está sendo atualmente teorizada e descobrir o que
Adorno pode contribuir para esse debate no capítulo 6. Finalmente explicamos também o que
é a teologia negativa tradicional para então avaliar a relações que a literatura secundária
produziu entre Adorno e teologia negativa. Expondo as recentes tentativas de se pensar uma
teologia negativa moderna, avaliamos também qual a contribuição que Adorno tem para nos
recentes estudos sobre a modernidade da mística na arte moderna e também confrontar com a
filosofia estética de Adorno no capítulo 7, extraindo o que ele faz avançar nessa discussão
aproveita o embalo de elevação da Aufhebung sem deixar a exatidão dos passos, ou seja,
avaliação do estado atual das questões que ela levantou e elaborou. Por isso, procuramos ser
fiéis à filosofia adorniana não só analisando seu texto, mas confrontando-o com discussões
atuais e comprovando por meio delas seu enorme proveito. Isso nos obriga a recriar a teoria
crítica a partir de subterrâneos seus inexplorados, que tornam-se para nós novas bases. Com
isso, somos, afinal, ―fiéis‖ à exigência de atualização dialética da teoria crítica, da qual há
Com isso também respondo à objeção corrente entre pesquisadores da literatura que
duvidaria de que estou praticando teoria da literatura. Todas as questões que examinamos
são cruciais para o entendimento da literatura moderna, e o percurso que tracei para delas me
17
18
ocupar não foi outro senão o ditado pela minha experiência com a interpretação de textos
literários. Para saber atingir as questões da literatura, falta ao teórico saber se distanciar de seu
objeto para depois nele imergir tanto quanto falta, como freqüentemente um teórico acusa o
outro, uma efetiva leitura imanente. Mais uma vez precisamos nos manter em suspensão entre
imanência e transcendência, e não simular uma imanência que periga em reproduzir a diluição
nesse cruzamento entre teoria da literatura, filosofia e teologia movido por questões de
interpretação literária, minha análise do texto adorniano está plena da prática de uma análise
literária. Adorno não é um escritor de literatura como Kafka, mas é sim um escritor, um
ensaísta, que merece ser analisado não como um escritor ficcional, mas tanto quanto um
escritor literário, pois o valor filosófico do texto é permeado pelo valor estético-ensaístico.
que um analista literário, movido por questões filosóficas que se dirigem a sua prática
interpretativa, tem muito o que contribuir para o estudo da filosofia adorniana como um todo.
18
19
transformar a realidade e propõe como investimento principal o aspecto teórico para uma
armada e um engajamento central na arte moderna erudita. Marx, nas ―Teses sobre
Feuerbach‖, conceitua o materialismo não só como dado sensível, mas como ação objetiva do
homem, e coloca em primeiro plano a práxis crítica e revolucionária, apta a mudar o mundo,
desvinculada6. Adorno vai, depois da experiência histórica dos diversos fracassos da práxis
revolucionária, repensar a necessidade primordial da teoria somada a uma releitura crítica mas
6
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Karl Marx, Friedrich Engels: Werke (MEW). Vom Institut für Marxismus-
Leninismus beim ZK der SED (org.). Berlin: Dietz, 1956s., t. 3, pp. 5-7.
19
20
afirmando por meio dessas categorias teológicas secularizadas uma ―utopia negativa‖. Por
outro lado, há a constante afirmação de uma análise imanente da realidade social e da obra de
categorias por vezes conflitantes mas por isso mesmo rearticuladas, formam uma constelação
teórica específica, de difícil absorção e que provoca interpretações bem diferentes. Logo, é
necessário pensar como se dá essa dialética entre materialismo e teologia. Para isso
Em seu início havia ainda um direcionamento revolucionário, mas logo depois ocorreu um
comunista. Mas Adorno, mesmo antes de sua entrada no Instituto de Pesquisa Social7 (Institut
für Sozialforschung, do qual Horkheimer assumiu a direção em 1931 e Adorno iniciou sua
7
MÜLLER-DOOHM, Stefan. Adorno. Eine Biographie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2003, p. 199- 203.
8
WIGGERSHAUS, Rolf. A escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de
Janeiro: Difel, 2002, direção do instituto de Horkheimer p.125, negociação com Horkheimer e entrada de
Adorno, p. 188-191. É digno de nota lembrar que já no início, com a direção de Carl Grünberg, para não dar a
impressão de um projeto concorrente ao de Kautsky, o coordenador social democrata da teoria marxista em 1924,
ano de fundação do instituto, Grünberg ―insistira no fato de que não se tratava, para ele, da discussão teórica
então corrente na vanguarda do movimento operário, mas da história do movimento operário e da história de
suas origens‖, p. 61.
20
21
práxis política e da luta de classes, investindo sempre suas atividades teóricas no estudo da
elaboração teórica de uma crítica social de base filosófica e de análise de objetos culturais.
Não discutiremos neste trabalho em detalhe a polêmica relação de Adorno com a categoria da
prática, mas podemos afirmar por enquanto que sua atividade se concentrou desde então na
própria elaboração teórica de uma crítica social tão intensamente fundamentada numa
indústria cultural, seja no aspecto sociológico, seja no plano sistêmico e ontológico do ―estado
falso‖.
Instituto do movimento comunista, não foi feito sem reações críticas violentas por parte da
esquerda partidária, da mesma maneira que não compactuou com o capitalismo liberal -
mesmo quando Adorno morou nos EUA - radicalizando todo o teor crítico direcionado a ele,
Esse tipo de prática, que genuinamente deve ser chamada de teoria crítica, por mais
que tenha se deparado com o difícil impasse, até hoje em vigor e cada vez mais grave, diante
da prática política, produziu um dos mais contundentes exemplos de prática crítica e reflexão
teórica da história da filosofia e das ciências humanas. Penso que é nesse sentido, antes de
mais nada, que devemos entender o materialismo de Adorno direcionado ao plano prático:
21
22
à metafísica feita pelos ―mestres da suspeita‖, Marx, Nietzsche e Freud 10 . De Marx, ele
materialismo dialético 13 , que usa a dialética hegeliana de forma crítica para a análise do
10
FOUCAULT, Michel. ―NIETZSCHE, FREUD, MARX‖. In: Dits et écrits: 1954 – 1988. Paris: Gallimard,
2001, pp. 564-79. Foucault vê nesses três autores a introdução de diferentes técnicas de interpretação em que ela
mesma se torna uma tarefa infinita a partir de uma recusa do começo, da origem, levando a uma circularidade e à
experiência da loucura.
11
MARX, Karl. Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Kritik des Hegelschen Staatsrechts. In: MARX,
Karl. ENGELS, Friedrich. Werke (MEW), t. 1, p. 321-30.
12
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ibidem, sobre fetichismo na religião t. 1, p. 90-1; misticismo t. 1, 346, pp.
417-9; t. 7, pp. 344-6; dogmatismo, t. 22, pp. 459-62; história e crítica da religião t. 1, p. 90-104, 163-4, 378-9,
500-53; t. 19, pp. 297-300.
13
Penso especialmente na crítica da „pseudonatureza― da sociedade. DAHMER, Helmut. Pseudonatur und
Kritik. Freud, Marx und die Gegenwart. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p. 93.
14
Há também a influência de Marx na elaboração de uma teoria sociológica da sociedade antagônica e na relação
dialética entre sociedade e indivíduo, ver WIGGERSHAUS, Rolf. Theodor W. Adorno. München: Beck, 1987, p.
91. Para uma problematização da herança marxista, até que ponto ela existe, há posições bastante divergentes.
Guinchard acredita na ―inexistence du marxisme de Francfort‖, embora veja no movimento uma contribuição
decisiva para a sobrevivência do marxismo depois do regime soviético. GUINCHARD, Jean-Jacques. ―Marx à
Francfort: Notes de travail sur la réception de Marx et du marxisme dans la Théorie critique de l‘École de
Francfort‖. In: LABICA, Georges. (org.) 1883-1983. L‟Oeuvre de Marx, un siècle après. Paris, PIA, 1985, p.
202 e 206. Para uma posição a favor do marxismo em Adorno, ver, DUARTE, Rodrigo. ―Adorno marxista‖. In:
Adornos. Nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
http://antivalor.vilabol.uol.com.br/
22
23
enquanto ―natureza‖, convoca uma leitura histórica do mundo ―decadente‖ moderno e com
esse olhar estético obtém as ―cifras‖16 da crítica aguda da sociedade na obra de arte. Logo, o
olhar estético é um modo de materialismo crítico: a verdade estética se torna melhor que a
exigência de uma verdade doutrinária ou metafísica porque não impõe nem limita sua visão à
esfera moral.
desnaturalização dos valores ideológicos são essenciais para Adorno17. Além disso, o modo
metodológica para uma crítica da cultura possui raízes em Nietzsche (há quem diga também
15
NIETZSCHE, F. Werke. Vol. III. K. Schlechta (org.). Frankfurt am Main: Ullstein, 1972, p. 867. BOLZ,
Norbert W.,― Nietzsches Spur in der ästhetischen Theorie― In: LINDNER, Burkhardt. LÜDKE, W. Martin.
Materialen zu ästhetische Theorie Theodor W. Adornos. Konstruktion der Moderne. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1980, p. 380.
16
7, 40, 56, 115, 178; arte como cifra do não-existente contendo a crítica da sociedade existente 7, 127-8, 144,
425; crítica na imanência da forma 7, 227-8;
17
FISCHER, Karsten. "Verwilderte Selbsterhaltung". Zivilisationstheoretische Kulturkritik bei Nietzsche, Freud,
Weber und Adorno. Berlin: Akad.-Verl., 1999, p. 38.
18
Não são poucos os que defendem essa filiação da idéia de constelação e fragmentação em Adorno. HÖRISCH,
Jochen. „Herrscherwort, Geld und geltende Sätze. Adornos Aktualisierung der Frühromantik und ihre Affinität
zur poststrukturalistischen Kritik des Subjekts―. In: LINDNER, Burkhardt. LÜDKE, W. Martin. Ibidem, p. 400.
GOEHR, Lydia. ―Adorno, Schönberg und der ‗Totentanz der Prinzipien‘ – in 13 Stufen―. In: ETTE, Wolfram
(org.). Adorno im Widerstreit. Zur Präsenz seines Denkens. Freiburg ; München: Alber, 2004, p. 287. Este livro
me parece especialmente esclarecedor sobre o aforismo e o pensamento fragmentado em Adorno ao analisar
trechos dos Minima Moralia. ESDERS, Michael. Begriffs-Gesten. Philosophie als kurze Prosa von Friedrich
Schlegel bis Adorno. Frankfurt am Main: Lang, 2000, p. 297. E no artigo de Klaus Peter o problema é
especialmente abordado: PETER, Klaus. „Friedrich Schlegel und Adorno. Die Dialektik der Aufklärung in der
Romantik und heute―. In: BEHLER, Ernst (org.). Die Aktualität der Frühromantik. Kolloquium ... vom 28. - 30.
Aug. 1986. Paderborn: Schöningh, 1987, pp. 219-35.
23
24
São ilusões as construções imaginárias tidas como reais que proporcionam uma
esclarecimento já faz parte integrante, em seus primórdios, do mito (3, 14, 16, 25, 27-8, 89,
Hegel e Kant para Adorno é tão decisivo quanto, e foi objeto de um incansável investimento
para uma abordagem materialista do objeto e uma crítica da subjetividade idealista 21 que
19
FREUD, Sigmund. ―Die Zukunft einer Illusion (1927)‖. Band IX. Fragen der Gesellschaft. Ursprünge der
Religion. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1974, pp. 135-90. Ao comentar o „credo quia absurdum― dos primeiros
padres (Kirchenvaters), Freud critica essa suspensão da razão e assevera: ―Es gibt keine Instanz über der
Vernunft‖, p. 162; Sobre o conceito de ilusão, pp. 164-7; ilusão e religião, p. 168.
20
Adorno adota tal separação, própria da história da filosofia mas reformulada por Kant em termos
transcendentais, ainda e sempre indispensável para uma filosofia materialista, não-idealista. Contudo, se ela
impossibilita uma visão mais abrangente da experiência, como é o caso do Kant teórico, ele a recusa. É o que se
passa na crítica à Kant da ―Meditationen zur Metaphysik‖ da Dialética negativa, 6, 363-5. WELLMER, Albrecht.
―Metaphysik in Augenblick ihres Sturzes‖. In: HENRICH, Dieter. HORSTMANN, Rolf-Peter (org.). Metaphysik
nach Kant?. Stuttgarter Hegel-Kongreß 1987. Stuttgart: Klett-Cotta, 1988, pp. 767-8.
21
Na filosofia kantiana essa separação é estrutural, podemos observar em dois momentos: nas considerações
sobre a diferenciação entre coisa-em-si, fenômeno e noumenon. KANT, Immanuel. Kritik der praktischen
Vernunft. ―Kritische Beleuchtung der Analytik der reinen praktischen Vernunft‖. In: Immanuel Kant: Werke in
zwölf Banden. Wilhelm Weischedel (org.). Frankfurt am Main: Suhrkamp: 1977, t. 7, p. 288. No campo teórico,
no momento da analítica transcendental, a apreensão do objeto da intuição é feita pela intuição empírica e pura
(espaço e tempo) mas cujo conteúdo depende da existência do objeto enquanto coisa que, em si mesma,
permanece inapreensível. O objeto, como apreensão da coisa pelo sujeito, não existe sem o sujeito, mas o sujeito
não pode a partir de si mesmo produzi-lo. Kritik der reinen Vernunft ―2. Abschnitt: von der Zeit‖, t. 3, p. 95.
Sobre a crítica da coisa em si na analítica transcendental, STAHL, Joachim. Kritische Philosophie und Theorie
der Gesellschaft: zum Begriff negativer Metaphysik bei Kant und Adorno. Frankfurt am Main: Lang, 1991, pp.
112-7; e sobre o noumenon como entendimento negativo, pp. 126-34.
24
25
pensamento crítico que não se ilude com as possibilidades, que são finitas, do abstrato sobre o
concreta de um ser transcendental, mesmo que ela seja necessária à estrutura do conhecimento
humano, ou seja, o que é necessário não é necessariamente real e o conceito de uma coisa não
É justamente com base nessa negatividade kantiana que Adorno vai instaurar um
hegeliano24, de modo que há uma implicação do transcendente no imanente que será tratada
posteriormente.
Por isso o método dialético hegeliano é importante para tratar da contradição teórica e
concreta no momento em que há uma implicação mútua de um plano sobre o outro; não evitá-
la, antes, incorporá-la criticamente num movimento sempre negativo. Adorno fez uma leitura
dos dois filósofos para avaliar a validade teórica e metodológica de ambos juntamente com
uma crítica ao sistema idealista25. Ao contrário de vários outros pensadores do século XX, não
22
KANT, Immanuel. Ibidem. Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseyns Gottes. t. 2,
p. 619-737, ainda do período pré-crítico; Kritik der reinen Vernunft, t. 4, 529-55; Kritik der praktischen Vernunft,
t. 7, p. 254-63; Kritik der Urteilskraft, t. 10, p. 408. Sobre o conceito de metafísica negativa em Kant, STAHL,
Joachim. Ibidem, p. 40-50; sobre a relação entre o não-idêntico de Adorno e a coisa-em-si, pp. 179-99.
23
PALMQUIST, Stephen. ―Kant's ‗Appropriation‘ of Lampe's God‖. The Harvard Theological Review, Vol. 85,
No. 1. (Jan., 1992), p. 88.
24
LIEDKE, Ulf. Naturgeschichte und Religion, Eine theologische Studie zum Religionsbegriff in der
Philosophie Theodor W. Adornos. Frankfurt am Main: Lang, 1997, p. 308.
25
Drei Studien zu Hegel, (5, 373): „Das sagt aber nicht weniger, als daß keine Lektüre Hegels, die ihm
Gerechtigkeit widerfahren läßt, möglich ist ohne Kritik an ihm. Falsch ist allgemein die von pädagogischen
Convenus und dem autoritären Vorurteil abgeleitete Vorstellung, Kritik baue als zweite Schicht auf dem
Verständnis sich auf. Philosophie selbst vollzieht sich in der permanenten Disjunktion von Wahrem und
Falschem―. Para fazer justiça a Hegel (e também Kant), para interpretar seu valor histórico e atual, não adianta
primeiro tentar entender e depois, numa segunda etapa, criticar, antes, participar do movimento contraditório do
conceito sempre de modo crítico; não há separação pedagógica dos momentos dialéticos na leitura, tais
momentos já são sempre simultâneos e, por assim dizer, contrapontísticos. De forma semelhante, no plano
25
26
fazer essa simultânea decantação crítica e releitura de Kant e Hegel termina sempre por recair,
como numa maldição, nos erros e ilusões do idealismo; foi o caso, segundo Adorno, de
Bergson (6, 20-1, 64, 327), Husserl (6, 20-1, 76-78, 85-8), Heidegger (6, 69-104, 414-531) e
outros.
moderna da crítica à religião não pretende ser mais do que um pano de fundo para o que
leitura do judaísmo e a própria crítica de Adorno à religião cristã, em especial contida no livro
conceito de mana (3, 31-7), astúcia de Ulisses (3, 61-99) etc.26 - apenas um prolegômeno para
depois nos aprofundarmos melhor no aspecto afirmativo de uma certa teologia negativa.
É importante deixar claro qual o papel que Adorno viu no judaísmo e no cristianismo
em relação ao esclarecimento, o que na teologia foi objeto de crítica, como essa crítica foi
feita, para depois analisar o que foi repensado, e como, em termos materialistas no campo da
estética.
estético, uma compreensão real de Bach ou Beethoven não existe sem a audição de Schönberg, Webern, Boulez,
Cage etc.
26
O livro de Ulf Liedke foi um dos que mais se deteve no assunto. LIEDKE, Ulf. Ibidem, pp. 85-224. VON
REIJEN, Willem. „Der Flaneur und Odysseus―. In: KUNNEMAN, Harry. DE VRIES, Hent. Die Aktualität der
Dialektik der Aufklärung. Zwischen Moderne und Postmoderne. Frankfurt am Main: Campus-Verl., 1989, pp.
100-13.
26
27
1.2.1 Judaísmo
das melhores contribuições judaicas para o esclarecimento (se compararmos, por exemplo,
com o peso de falsificação ideológica mais ou menos equivalente que Nietzsche julga conter
no sacerdote judeu e cristão27). Como judeu, no momento histórico em que vivia, não só para
ser solidário diante dos acontecimentos mas para resgatar algo da participação judaica no
tinha razões de sobra para dar um valor especial ao judaísmo. Contudo, veremos que, embora
judaica e anticristã.
ligação intrínseca entre o aparecimento da sociedade e a dominação (3, 38) para em seguida
afirmar que toda a ênfase metafísica em produzir sanções através de idéias e normas é um
27
NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke.Giorgio Colli und Mazzino Montinari (org.). T. 5. Jenseits von Gut
und Böse. Zur Genealogie der Moral. München: Dünndr.-Ausg., 1980, p. sobre os padres ascéticos 379, sobre
judeus e cristãos, 412; onde se concentra a crítica do interesse dos sacerdotes judeus por seu mecanismo de culpa
frente à Javeh e castigo, Antichrist, af. 26, t.6, 191-5. Cito a crítica aguda de Nietzsche à falsificação ideológica
na interpretação do mundo feita pelo sacerdote judeu: ele impõe uma suposta ―ordem moral‖ (―sittliche
Weltordnung‖) da vontade de Deus que culpabiliza e castiga ao custo da formação saudável do povo, mantendo
seu poder de modo ―parasita‖ (eine parasitische Art der Mensch‖). ―Die Realität an Stelle dieser
erbarmungswürdigen Lüge heißt: eine parasitische Art Mensch, die nur auf Kosten aller gesunden Bildungen des
Lebens gedeiht, der Priester, mißbraucht den Namen Gottes: er nennt einen Zustand der Gesellschaft, in dem der
Priester den Wert der Dinge bestimmt, »das Reich Gottes«; er nennt die Mittel, vermöge deren ein solcher
Zustand erreicht oder aufrechterhalten wird, »den Willen Gottes«; er mißt, mit einem kaltblütigen Zynismus, die
Völker, die Zeiten, die einzelnen danach ab, ob sie der Priester-Übermacht nützten oder widerstrebten‖. Para
Nietzsche o sacerdote judeu abusa do nome de Deus. É importante manter essa interpretação em mente para,
como efeito de contraste, analisar o quanto Adorno foi, em termos críticos, condescendente com a religião
judaica e implacável com a cristã, porém por motivos, de qualquer modo, mais que justificáveis; para um estudo
da relação entre Nietzsche e o judaísmo, GOLOMB, Jacob. Nietzsche and jewish culture. London: Routledge,
1997; para uma leitura da crítica ao sacerdote judeu , p. 124-8.
27
28
impregnou na própria linguagem (3, 39; DE, 35). Nessa discussão, afirmando que o
―esclarecimento nominalista‖ (3,39; DE, 36) detém-se diante do nome próprio, aparece uma
do mito‖.
negação na idéia de Deus. A religião judaica não tolera nenhuma palavra que proporcione
invocar o falso como Deus, o finito como infinito, a mentira como verdade. O penhor da
ilusão. A negação, todavia, não é abstrata. ... O direito da imagem é salvo na execução fiel
própria imagem sem que ela contribua para a ilusão mítica, não é outra coisa senão o
mito, pois, mesmo que este contenha já o esclarecimento em forma de ordenação do mundo,
28
3, 40: „In der jüdischen Religion, in der die Idee des Patriarchats zur Vernichtung des Mythos sich steigert,
bleibt das Band zwischen Namen und Sein anerkannt durch das Verbot, den Gottesnamen auszusprechen. Die
entzauberte Welt des Judentums versöhnt die Zauberei durch deren Negation in der Idee Gottes. Die jüdische
Religion duldet kein Wort, das der Verzweiflung alles Sterblichen Trost gewährte. Hoffnung knüpft sie einzig
ans Verbot, das Falsche als Gott anzurufen, das Endliche als das Unendliche, die Lüge als Wahrheit. Das
Unterpfand der Rettung liegt in der Abwendung von allem Glauben, der sich ihr unterschiebt, die Erkenntnis in
der Denunziation des Wahns. Die Verneinung freilich ist nicht abstrakt. ... Gerettet wird das Recht des Bildes in
der treuen Durchführung seines Verbots.―
28
29
possível no judaísmo29. Não só há uma negação do poder mágico ou divino das imagens mas
também das palavras, que não devem por si mesmas consolar a essência mortal e limitada do
produzidos pelo imaginário mítico nem os tabus irracionais que o acompanham, quase a ponto
de se deparar com o niilismo. Não é à toa que Adorno aqui compara o judaísmo ao budismo30
29
Adorno (e Horkheimer) não levam em consideração o início do monoteísmo no Egito nem a necessidade de
uma comparação mais cuidadosa do judaísmo com os gregos e outras culturas religiosas (bramanismo, budismo
etc.). ÖELMÜLLER, Willi. Negative Theologie heute. Dia Lage der Menschen vor Gott. Münschen: Fink, 1999,
pp. 12-22; sobre Bilderverbot, pp. 22-45. Como exemplo de uma interpretação diversa para uma revisão do
conceito de monoteísmo e do papel dos primórdios do monoteísmo egípcio de Echnaton - que tolerava outros
deuses, religiões e culturas - na ―memória cultural‖ ocidental, ver ASSMANN, Jan. Moses der Ägypter.
Entzifferung einer Gedächtnisspur. München, Wien: Hanser, 1998, sobre a tolerância, ver p. 41; sobre relação
entre passado, memória e presente, pp. 213-4; sobre a diferença da tolerância egípcia para uma revelação
monoteísta intolerante do Deus único em Moisés, pp. 281-2, herdada pelo cristianismo, p. 82.
30
(3, 40) ―Die unterschiedslose Bestreitung jedes Positiven, die stereotype Formel der Nichtigkeit, wie der
Buddhismus sie anwendet, setzt sich über das Verbot, das Absolute mit Namen zu nennen, ebenso hinweg wie
sein Gegenteil, der Pantheismus, oder seine Fratze, die bürgerliche Skepsis. Die Erklärungen der Welt als des
Nichts oder Alls sind Mythologien und die garantierten Pfade zur Erlösung sublimierte magische Praktiken‖. É
constante um uso escapista e irracional do orientalismo direcionado contra o racionalismo ocidental que se torna
com isso sempre mal avaliado e termina por não compreender tanto manifestações culturais do oriente quanto do
próprio ocidente. Daí surge uma reação racionalista laica contra o budismo. A abordagem antipática ao budismo
é corrente em muitos representantes do esclarecimento europeu. A referência ao budismo na obra de Adorno é
rara, breve e passageira e sugere que Adorno não tinha boa impressão do que pouco conhecia. Neste ponto pode-
se supor que ele está sendo exagerado e questionável: o budismo contém uma forte reflexão e prática ética e não
generaliza o conceito de ―vacuidade‖. Dessa forma, trata-se de um estado meditativo que propicia um aspecto –
essencial, derradeiro, mas não o único - da realidade. HOPKINS, Jeffrey. "Ultimate Reality in Tibetan
Buddhism". In: Buddhist-Christian Studies, Vol. 8. (1988), pp. 111-129. Nesse artigo, há uma passagem
esclarecedora que reflete precisamente sobre julgamentos precipitados como o de Adorno, p. 115: ―Given that
another meaning of ‗ultimate reality‘ is ultimate existence (which phenomena are said lack), it again is no
wonder that many scholars have thought that Great Vehicle Buddhism is nihilistic to the point of denying that
phenomena exist or, at best, agnostic in the sense that nothing can be posited about anything‖; mais adiante ele
argumenta, p. 116, ―Thus, truths-for-a-concealing-consciousness such as chairs, tables, and bodies exist, and
their existence is certified by conventional valid cognition. If this is kept in mind, you will not think that just
because emptiness is the ultimate truth, only emptiness exists‖. Para uma leitura da desmistificação da
―vacuidade‖ no interior da tradição budista feita pelo filósofo Nagarjuna, GARFIELD, Jay. L. ―Dependent
Arising and the Emptiness of Emptiness: Why Did Nagarjuna Start with Causation?‖. Philosophy East and West,
Vol. 44, No. 2. (Apr., 1994), pp. 219-250; especialmente p. 238. Não há poucas aproximações entre nosso
assunto, teologia negativa, e a vacuidade budista: COBB, JR., John B. ―Buddhist Emptiness and the Christian
God‖. Journal of the American Academy of Religion, Vol. 45, No. 1. (Mar., 1977), pp. 11-25. ÖELMÜLLER,
Willi. Negative Theologie heute, p. 21. WALDENFELS, Hans. ―Gottes Wort in der Fremde. Theologische
29
30
não oferece nenhuma garantia de si mesma. Kant irá posteriormente inverter a ordem e pensar
se encontravam ainda no estágio da magia. Os judeus pareciam ter conseguido aquilo que
o cristianismo em vão buscava: destituir a magia de seu poder por meio de sua própria
força, que se volta contra si mesma no culto religioso. Mais do que extirpar a assimilação
da natureza, o que fizeram foi superá-la conservando-a nos puros deveres do ritual. Desse
modo, conservaram dela a memória expiatória, sem recair pelo símbolo na mitologia. ...
Eles foram inculpados daquilo que foram os primeiros, primeiros burgueses que foram, a
romper em seu íntimo: a tendência a se deixar seduzir pelo inferior, a ânsia da animalidade
Versuche‖. In: HÖHN, Hans-Joachim (org.). Krise der Immanenz. Religion an den Grenzen der Moderne.
Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verl., 1996, p. 251.
Acentuamos aqui que, como a mística é uma área que lida com trocas intensas entre oriente e ocidente, assim
como impõe a necessidade de saber separá-los e não generalizar ―a mística‖ sempre como uma e mesma coisa,
manteremos o empenho de ser cuidadoso com as diversas tradições culturais, seus desdobramentos e
entrelaçamentos modernos.
31
Essa é a tradução de Guido de Almeida para Fraze, que a rigor significa algo como ―careta horrorosa‖ com
sentido negativo.
32
Sobre a crítica de Adorno a Kant, ver (6, 257-8), quando a lei moral se torna maior que própria razão por ser
uma falsa garantia da mesma, logo, uma ―autoridade irracional‖. Ela se torna argumento para uma coerção
interna e dominação da natureza implicada no conceito de identidade. STAHL, Joachim. Kritische Philosophie
und Theorie der Gesellschaft, pp. 188-90.
33
3, 211: „Das älteste überlebende Patriarchat, die Inkarnation des Monotheismus, haben sie die Tabus in
zivilisatorische Maximen verwandelt, da die anderen noch bei der Magie hielten. Den Juden schien gelungen,
worum das Christentum vergebens sich mühte: die Entmächtigung der Magie vermöge ihrer eigenen Kraft, die
als Gottesdienst sich wider sich selber kehrt. Sie haben die Angleichung an Natur nicht sowohl ausgerottet als sie
aufgehoben in den reinen Pflichten des Rituals. Damit haben sie ihr das versöhnende Gedächtnis bewahrt, ohne
30
31
Essa operação hegeliana de não extirpar (ausrotten) mas sim superar conservando
Verbot, den Gottesnamen auszusprechen‖ 3, 40) que mantém o efeito mágico no nome ao
proibi-lo, mesmo que o negue na idéia de um Deus absoluto que proíbe práticas mágicas e
impõe leis essencialmente éticas. Os autores pensam que esse resquício mágico do nome no
judaísmo é uma reconciliação da magia no momento onde se tenta de modo mais decisivo
superá-la. Logo, ela ainda se mantém, o que prova a impossibilidade da superação total34.
de manter práticas mágicas, mas mesmo assim carrega uma proibição mágica, um ―tabu‖ que
permaneceu em vigor frente às ―máximas civilizatórias‖ (3, 211; DE, 175). Banindo qualquer
manutenção do falso.
Todo o trecho mostra que os autores expuseram a contradição para depois procurar
durchs Symbol in Mythologie zurückzufallen. ... Sie werden dessen schuldig gesprochen, was sie, als die ersten
Bürger, zuerst in sich gebrochen haben: der Verführbarkeit durchs Untere, des Dranges zu Tier und Erde, des
Bilderdienstes―.
34
LIEDKE, Ulf. Naturgeschichte und Religion, Eine theologische Studie zum Religionsbegriff in der
Philosophie Theodor W. Adornos. Frankfurt am Main: Lang, 1997, p. 229. Liedke chama atenção para o
desencantamento (Weber) dos judeus enquanto Aufhebung hegeliana. Mesmo assim, nesse momento a idéia de
reconciliação na proibição do nome, ainda utilizando outro conceito hegeliano, impregna-o de crítica negativa,
diminuindo o caráter de superação judeu. Liedke afirma no judaísmo da Dialética do esclarecimento que existe
―uma reconciliação com a magia em sua negação‖ (―die Versöhnung der Magie in deren Negation‖, p. 232).
Essa negatividade está a serviço da uma ―reconciliação messiânica‖ (p. 235). Embora Liedke tenha desse modo
analisado com precisão, ainda assim penso que ignorou que a proibição do nome é um momento privilegiado de
resquício mítico não superado, a imposição de um tabu irracional, fruto da necessidade de imposição do temor
ao deus irrepresentável.
31
32
dominadora do próprio nome (que carrega toda a história já existente de dominação social).
segunda guerra mundial, os autores se esforçam por pensar as causas do anti-semitismo dentro
da história moderna do progresso burguês. Em torno desse tema principal, o texto atravessa a
narrativo da análise filosófica introduz uma digressão abrupta, um recuo histórico, forçando a
35
3, 201. ―Der Schrecken, der aus präanimistischer Vorzeit stammt, geht aus der Natur in den Begriff des
absoluten Selbst über, das als ihr Schöpfer und Beherrscher die Natur vollends unterwirft. ... Aber in seiner
Abstraktheit und Ferne hat sich zugleich der Schrecken des Inkommensurablen verstärkt ...‖. DE, 165. ―O terror
que tem origem no passado pré-animista passa da natureza para o conceito do eu absoluto que submete
inteiramente a natureza como seu criador e dominador ... Mas ao mesmo tempo, a abstração e a distância desse
deus reforçou o terror do incomensurável ... ‖.
36
TIEDEMANN, Rolf. ―Concept, Image, Name: On Adorno‘s Utopia Knowledge. In: HUHN, Tom (org.). The
semblance of subjectivity. Essays in Adorno's Aesthetic theory. Cambridge: MIT Press, 1997, pp. 123-46.
Tiedemann comenta essa mesma passagem para observar que o nome em Adorno ocorre como uma chave que
guarda o que é prometido, retendo-o, p. 139.
37
Curiosamente observamos aqui uma boa reflexão sobre o caráter ―fascista‖ da língua, como quer Barthes.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 14.
32
33
Nenhum dos grandes feitos dos que se destacaram levou os povos da Europa a
darem acolhida ao judeu; não se permitiu que lançasse raízes sendo, por isso, acoimado de
desenraizado. Eis por que o judeu permaneceu sempre um tutelado, dependente dos
imperadores, dos príncipes ou do Estado absolutista. Todos eles foram, em certa época,
o judeu como intermediário, eles o protegiam das massas que tinha de pagar a conta do
como comerciantes, a difundir a civilização romana entre os gentios europeus, eles sempre
burguesas e, por fim, industriais. Eles introduziram formas de vida capitalistas nos diversos
países e atraíram sobre si o ódio dos que tinham de sofrer sob elas. Por causa do progresso
econômico, que é hoje sua perda, os judeus foram sempre um espinho na carne dos artesãos
passagem, aqui a questão não é religiosa mas sim étnica, ligada à função do povo judeu na
38
(DE, 163). ―Alle Großtaten der Prominenten haben die Aufnahme des Juden in die Völker Europas nicht
bewirkt, man ließ ihn keine Wurzeln schlagen und schalt ihn darum wurzellos. Stets blieb er Schutzjude,
abhängig von Kaisern, Fürsten oder dem absolutistischen Staat. Sie alle waren einmal ökonomisch avanciert
gegenüber der zurückgebliebenen Bevölkerung. Soweit sie den Juden als Vermittler brauchen konnten, schützten
sie ihn gegen die Massen, welche die Zeche des Fortschritts zu zahlen hatten. Die Juden waren Kolonisatoren
des Fortschritts. Seit sie als Kaufleute römische Zivilisation im gentilen Europa verbreiten halfen, waren sie im
Einklang mit ihrer patriarchalen Religion die Vertreter städtischer, bürgerlicher, schließlich industrieller
Verhältnisse. Sie trugen kapitalistische Existenzformen in die Lande und zogen den Haß derer auf sich, die unter
jenen zu leiden hatten. Um des wirtschaftlichen Fortschritts willen, an dem sie heute zu Grunde gehen, waren die
Juden von Anbeginn den Handwerkern und Bauern, die der Kapitalismus deklassierte, ein Dorn im Auge‖ (3,
199).
33
34
comerciantes, que eram economicamente avançados em relação ao povo, que juntamente com
burguesas e industriais em conformidade com sua religião patriarcal e que por isso
esse papel em geral enquanto mediadores daqueles que realmente tinham o poder e ainda os
protegiam, para, mais tarde, muitos deles entrarem na situação pequeno burguesa, carregarem
o ódio de séculos não só sem a proteção de outrora mas com o estímulo do estado fascista.
O que nos interessa aqui é especialmente a função progressista, citadina, que se liga à
tarefa esclarecedora do Bilderverbot. Como afirma Liedke, o judaísmo é tido aqui como
digressivo ao passado histórico, fê-lo com uma estranha afirmação: ―Die Juden waren
Ainda que sem dúvida os judeus nunca tenham formado um poder civil e armado concreto,
constituído, e portanto sempre estiveram na dependência dos romanos ou dos reis e senhores
feudais cristãos, eles colonizaram o progresso em si mesmo, foram agentes constantes daquilo
empregada de modo metafórico, pois não há como o próprio progresso ser objeto de
colonização. Todavia, tal metáfora serve para descrever um processo histórico bem concreto.
O que Adorno parece sugerir aqui é que, ao lado da progressiva racionalidade da teologia
católica e de outras manifestações culturais (filosofia árabe, literatura oral e escrita etc.) os
39
LIEDKE, Ulf. Naturgeschichte und Religion, p. 226.
34
35
judeus deram o passo decisivo, no plano cultural, comercial e econômico, para a efetividade
avanço espiritual e razão instrumental etc. Isso significa que, desde a abstração do
tanto a abstração econômica e sua magia racionalizada (de proporcionar o progresso às custas
de muitos) quanto troca cultural (através do comércio) e autonomia espiritual (pelas idéias
religiosas).
Eles não eram necessariamente os burgueses (não se tornaram a maioria, muito menos
os únicos), mas foram os primeiros, (―als die ersten Bürger...‖ 3, 211; DE, 174; curiosamente
Ulisses também é uma espécie de primeiro burguês em 3,51), seus representantes e agentes
principais: não tiraram a maior vantagem, mas tomaram a rédea do progresso. Isso ocorreu
capitalismo, como a demonização dos propagandistas anti-semitas nos querem fazer crer. Eles
não foram os grandes beneficiários porque estiveram sempre sob a dependência dos
poderosos em termos políticos e militares, e não controlavam porque não eram mandantes.
40
Não podemos deixar de observar que essa operação judaica de afastamento do mito e sua relação com o
esclarecimento e o capitalismo (ligado ao protestantismo) foi teorizada em toda sua extensão por Max Weber,
que liga precisamente esse fenômeno judaico ao seu conceito de ―desencantamento do mundo‖, saindo do
paradigma da contemplação para o da ascese interior de racionalização de postulados éticos. WEBER, Max. Max
Weber: Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie. 8., photomechanisch gedruckte Auflage, Tübingen: J. C.
B. Mohr (Paul Siebeck), 1986, t. 1, pp. 94-5, ―Jener große religionsgeschichtliche Prozeß der Entzauberung der
Welt, welcher mit der altjüdischen Prophetie einsetzte und, im Verein mit dem hellenischen wissenschaftlichen
Denken, alle magischen Mittel der Heilssuche als Aberglaube und Frevel verwarf, fand hier seinen Abschluß.‖;
comparação do rigor judaico com o católico: ―Die »Entzauberung« der Welt: die Ausschaltung der Magie als
Heilsmittel, war in der katholischen Frömmigkeit nicht zu den Konsequenzen durchgeführt, wie in der
puritanischen (und vor ihr nur in der jüdischen) Religiosität ‖; ver também, t.1, pp. 262-3, 564.
35
36
Essa diferença é complexa mas não é tão sutil e, para o debate sobre Auschwitz e Shoah, é
decisiva.
judaica que está por trás da idéia de um deus único todo poderoso e que aparece igualmente
Por fim, há uma carta de Adorno a Horkheimer em que ele observa no fato de que os
judeus nunca extirparam os traços de nomadismo um fator essencial para a utopia judaica.
submeter ao primado do trabalho. Eles não foram perdoados por isso e por isso são uma
pedra para o impulso à sociedade de classes. Eles não se deixaram expulsar senão, por
Se por um lado eles foram os introdutores do mundo comercial e burguês, por outro se
trabalho e mantiveram uma idéia utópica constante vinda de sua existência nômade. Mesmo
que tenham se tornado uma imagem antecipatória dos futuros burgueses, fizeram-no
resistindo à sociedade de classes. Podemos supor que seria por isso que só tardiamente, no
século XX, constituíram um estado civil que contudo manteve sua existência espalhada pelo
mundo. Assim, mantiveram socialmente algo do imaginário mítico e mágico 43 que resultou
em termos filosóficos e teológicos na idéia de utopia e redenção. É curioso observar que esse
41
DE, 175; 3, 211:„Das älteste überlebende Patriarchat, die Inkarnation des Monotheismus, haben sie die Tabus
in zivilisatorische Maximen verwandelt, da die anderen noch bei der Magie hielten― (itálico meu).
42
„Das Bild der Juden sind die, welche, sich nicht haben ‗zivilisieren‘ und dem Primat der Arbeit unterwerfen
lassen. Das wird ihnen nicht verziehen und deshalb sind sie der Stein des Anstoßes in der Klassengesellschaft.
Sie haben sich, könnte man sagen, nicht oder nur widerwillig aus dem Paradies vertreiben lassen―. (Adorno,
carta a Horkheimer de 18.09.1940; HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Band 16. Briefwechsel, 1937-
1940. SCHMID NOERR, Gunzelin (org.). Frankfurt am Main: Fischer, 1995, p. 763.
43
LIEDKE, Ulf. Naturgeschichte und Religion, p. 229.
36
37
desencantamento do mundo. Mesmo que na maioria das vezes Adorno tenha pensado os
conceitos de mito e magia num sentido regressivo, quando eles servem à própria proibição das
o que Adorno valoriza nos judeus não é só o puro desencantamento, mas a tensão
am ältesten Bild des Glücks ist die jüdische Utopie 44 ). Quando Adorno escreve sobre
felicidade, há sempre uma ligação intrínseca da mesma com a infância. Não é raro encontrar
na obra essa ligação entre messianismo judaico, felicidade infantil 45 e utopia. Adorno não
disfarça nesses casos uma identificação filosófica com o judaísmo nesse ponto: a noção de
da, ou o reencontro com, essa felicidade se tornará uma espécie de motor da prática estético-
teórica adorniana. Importante nesse sentido é reter que a ―infância‖ do esclarecimento nos
princípios do judaísmo guarda uma determinada saudade (Sehnsucht) de seu estágio não-
44
HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Band 16, p. 763.
45
JAEGER, Lorenz. Adorno. eine politische Biographie, sobre o que significa ser judeu e a implicação da
esperança messiânica, ver p. 14; sobre a ―kindisch-befriedeten Version‖ da infância em Amorbach, p. 16-
17: ―Noch im amerikanischen Exil war es die mainfränkische Landschaft die als Sehnsuchtsbild in
Adornos Träumen wiederkehrte‖. Jäger relaciona trechos dos Minima Moralia com a infância de Adorno.
Mas melhores observações da experiência biográfica com a obra são feitas por MÜLLER-DOOHM, Stefan.
Adorno. Eine Biographie, pp. 51-2. Ele cita, comenta e analisa os rastros de lembranças de infância que
inspiraram de forma intrínseca o pensamento de Adorno, ―Erinnerungen der Kindheit ... wirkten zugleich
zeitlebens inspirierend innerhalb von Adornos Gedankenwelt‖, p. 44. Para uma análise do próprio Adorno
sobre o lado trágico de sua precocidade, encarnado na resistência da fantasia narcisista à vida adulta, ver 4,
101; uma crítica da vida adulta e o potencial da infância 11, 408; nesse trecho Adorno afirma que o que se
tenta realizar em vida não é outra coisa senão alcançar o que foi atingido na infância, 20.1, 395. ESDERS,
Michael. Begriffs-Gesten, sobre a infância e suas imagens de pensamento, ver p. 333; sobre a ligação da
infância com a luz messiância, a utopia e a metaforicidade do texto em Adorno, pp. 345-6. BRÄNDLE,
Werner. "Rettung des Hoffnungslosen", die theologischen Implikationen der Philosophie Theodor W.
Adornos. Hochschulschrift Münster (Westfalen): Univ., Diss., 1980, Brändle argumenta como a infância,
sua felicidade, é o modelo de uma experiência metafísica, p. 227. No capítulo 5, do item 5.1 ao 5.4,
deteremo-nos no conceito de ―experiência metafísica‖.
37
38
1.2.2 Cristianismo
Antes de entrarmos nesse debate vindo de um lugar fora da teologia cristã e judaica,
da forma henoteísta para a forma universal, seu deus [observação minha, EG: do judaísmo]
ainda não despiu inteiramente os traços do demônio natural. [...] O deus do judaísmo exige
o que é devido e ajusta contas com o devedor relapso. Ele enreda sua criatura no tecido da
nome humano e morre uma morte humana. Sua mensagem é: não temais; a lei desaparece
diante da fé; maior que toda majestade é o amor, o único mandamento (DE, 165) 46.
46
3, 201. ―Das Christentum ist nicht bloß ein Rückfall hinter das Judentum. Dessen Gott hat beim Übergang von
der henotheistischen in die universale Gestalt die Züge des Naturdämons noch nicht völlig abgeworfen. ... Der
Gott des Judentums fordert, was ihm gebührt, und rechnet mit dem Säumigen ab. Er verstrickt sein Geschöpf ins
Gewebe von Schuld und Verdienst. Demgegenüber hat das Christentum das Moment der Gnade hervorgehoben,
das freilich im Judentum selber im Bund Gottes mit den Menschen und in der messianischen Verheißung
enthalten ist. Es hat den Schrecken des Absoluten gemildert, indem die Kreatur in der Gottheit sich selbst
wiederfindet: der göttliche Mittler wird mit einem menschlichen Namen gerufen und stirbt einen menschlichen
Tod. Seine Botschaft ist: Fürchtet euch nicht; das Gesetz zergeht vor dem Glauben; größer als alle Majestät wird
die Liebe, das einzige Gebot‖.
38
39
Para assegurar o conteúdo moral da lei, o deus judaico herdou o terror e a ameaça
natural que já tinham sido antropomorfizados nos deuses míticos. Quando os autores
escrevem que o deus judaico ―enreda sua criatura no tecido da culpa e do merecimento‖ não
há como não lembrar do ensaio ―Para uma crítica da violência‖ onde Benjamin diferencia a
―violência mítica‖, cuja culpa imposta pode ser expiada, e a que funda a ―vida nua‖ (bloss
Leben) – a do monoteísmo47. Esta última não pode ser expiada e introduz o sujeito numa
culpabilidade pura e inescapável pelo simples fato de viver e de ter um corpo, uma ―vida nua‖:
é essa culpa sem fim que vai resultar, no cristianismo, no pecado. Apesar do desdobramento
da moral judaica no pecado, o cristianismo livra a criatura da lei ao colocar em primeiro lugar
através de uma mediação humana que, desse modo, procura aproximar o homem de Deus por
um meio afetivo que se espiritualiza na experiência da fé, fundando ao mesmo tempo uma
nova crença, também, como no judaísmo, de forma negativa mas encorajada pela existência
Deus por Cristo é o proton pseudos. O progresso para além do judaísmo tem por preço a
47
BENJAMIN, Walter. "Zur Kritik der Gewalt", in: Gesammelte Schriften II, 1. Rolf Tiedemann, Hermann
Schweppenhäuser (orgs.). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, pp. 199-201. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer:
o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 74. Ver meu artigo sobre essa questão em,
LOSSO, Eduardo Guerreiro Brito. ―A soberania do instante contra o poder dominador‖. In: Revista Garrafa do
departamento de ciência da literatura da UFRJ,
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/imagens/Agamben%20monografia%20para%20garrafa.doc
39
40
tendo uma essência espiritual justamente aquilo que, diante do espírito, se revela como
progresso que ele simboliza em relação ao judaísmo. O elo do vocabulário e das questões de
Adorno com Hegel está presente em toda a argumentação. Há uma crítica implícita às
conferências sobre filosofia da religião, onde Hegel afirma que o judaísmo ainda é um estágio
judaísmo ainda não possui um fato no interior da natureza, a própria vida aparece de maneira
estranha e ferida (Auftreten des „verletzten Lebens‟), pois há uma separação da natureza em
precisamente o caráter reconciliador do cristianismo que será visto como retrocesso, oposto à
reconciliação judaica, que também não foi inteiramente bem sucedida mas em geral alcançou
idolatria sob uma forma espiritualizada. Para Adorno, seguindo os percursos de Marx e
48
―Aber kraft der gleichen Momente, durch welche das Christentum den Bann der Naturreligion fortnimmt,
bringt es die Idolatrie, als vergeistigte, nochmals hervor. Um soviel wie das Absolute dem Endlichen genähert
wird, wird das Endliche verabsolutiert. Christus, der fleischgewordene Geist, ist der vergottete Magier. Die
menschliche Selbstreflexion im Absoluten, die Vermenschlichung Gottes durch Christus ist das proton pseudos.
Der Fortschritt über das Judentum ist mit der Behauptung erkauft, der Mensch Jesus sei Gott gewesen. Gerade
das reflektive Moment des Christentums, die Vergeistigung der Magie ist Schuld am Unheil. Es wird eben das
als geistigen Wesens ausgegeben, was vor dem Geist als natürlichen Wesens sich erweist. ‖ 3, 201-2.
49
LIEDKE, Ulf. Naturgeschichte und Religion, p. 253-6. HEGEL, Werke: in 20 Bd. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1986. T. 17, 54; t. 16, 86. Em Hegel o judaísmo é a „religião da sublimidade (Erhabenheit)‖, inferior
à ―religião da beleza‖ cristã.
50
KUBO, Yoichi. Der Weg zur Metaphysik.Entstehung und Entwicklung der Vereinigungsphilosophie beim
frühen Hegel. München: Fink, 2000, p. 65-74.
40
41
Lukács, mas sem uma segurança teleológica da práxis na história51, não há como encontrar
absoluto judaico permanece fiel à própria contradição insuperável da separação entre sujeito e
espiritualização da carne. Aquilo que para Adorno e Horkheimer parece ser o maior erro, a
―primeira mentira‖ (proton pseudos52) é tentar ver na auto-reflexão humana não só um elo
com o absoluto, antes, uma absolutização do humano. Essa ineficaz negação da negação
judaica leva a uma ―espiritualização da magia‖ (―Vergeistigung der Magie‖) que vai resultar
naturalmente no mal.
Isso faz do cristianismo uma religião (das Christentum zur Religion), em certo
independência cultural que daí resulta como fator formador do ocidente. Nesse sentido, há um
pela tentativa de reconciliação do divino com o humano, humanizando o divino como, mais
51
BALDACCHINO, John. Post-Marxist Marxism. questioning the answer ; difference and realism after Lukács
and Adorno. Aldershot: Avebury, 1996, sobre semelhanças e diferenças entre Adorno e Lukács, pp. 10-1; sobre a
possibilidade de Lukács da consumação histórica, p. 103-4, e a recusa de Adorno de uma direção teleológica da
história, p. 103 e sua influência de Nietzsche, p. 111. KLICHE, Dieter. ―Kunst gegen Verdinglichung.
Berührungspunkte im Gegensatz von Adorno und Lukács‖. LINDNER, Burkhardt. LÜDKE, W. Martin.
Materialen zu ästhetische Theorie Theodor W. Adornos. Konstruktion der Moderne, pp. 219-60.
52
Parece-me improvável que Adorno esteja retirando essa expressão do Freud anterior à interpretação dos
sonhos, quando ele interpreta na paciente Emma sua substituição da causa real do trauma por um falso motivo.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Imago, 1977, pp. 463-9, 471. A expressão vem de Aristóteles, trata-se de uma falsa conclusão
derivada de falsas premissas. ARISTOTELES. Aristoteles: Erste Analytiken oder: Lehre vom Schluss. Übersetzt
und erläutert von J. H. von Kirchmann, Leipzig: Felix Meiner, 1948, pp. 134-5.
53
(3, 202; DE, 166).
41
42
ambiciosamente, de divinização mágica do humano. Essa magia pode ser igualada aqui ao
profano: a lei mosaica é abolida, mas a César se dá o que é de César, assim como a Deus o
natural e contabilizado como mérito. Ao mesmo tempo, o amor mediado pelo saber de
salvação deve ser o amor imediato; nele estariam reconciliados o natural e o sobrenatural.
É nisso que reside sua inverdade: no sentido enganosamente afirmativo que é dado à auto-
simultâneo retrocesso que será responsável pela culpa moral do ocidente nas próximas etapas
e que estará ligada ao anti-semitismo (já que se trata do capítulo ―Elementos do anti-
representada pelos sacerdotes contrária ao sacrifício mágico. Isso era feito para preservar os
sacerdotes exerciam o poder da prática teocrática em que mantinham sempre faltas humanas.
―prática teocrática‖56, ou seja, pregando a vitória do espírito e da retidão moral através não
54
FREUD, Sigmund. ―Die Zukunft einer Illusion (1927)‖, p. 168.
55
(3, 202-3).
56
Ibidem.
42
43
(Gottesmenschen) serve para reafirmar a ligação entre homem e Deus e diminuir o valor da
curioso observar que os autores estão aceitando implicitamente o progresso da separação entre
disso decorreu.
ideal moral que ultrapassaria a necessidade da lei e a teocracia. Mas o que ocorre é uma
contabilização do próprio amor, que abandona sua antiga ingenuidade. Mais um vez, é a
afirmação de um valor retirado do âmbito da pura existência, da vida nua, de que fala
remitologização por meio de uma racionalização ascética forçada do que é da ordem do afeto
ordem prática. Esse ideal ascético, difundido para a humanidade inteira, só pode ter como
conseqüência mais barbárie. Há um texto ostensivamente irascível mas talvez por isso
57
BENJAMIN, Walter. "Zur Kritik der Gewalt", pp. 199-201.
58
FREUD, Sigmund. ― Das Unbehagen in der Kultur ‖. Band IX. Fragen der Gesellschaft. Ursprünge der
Religion. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1974, pp. 238-44.
43
44
guardado na gaveta, publicado em 2003 na série Frankfurter Adorno Blätter VIII , escrito por
Adorno na época da elaboração da Dialética negativa, que leva essa hipótese mais além:
A condição estrita da fé exige que a razão se curve para que o poder institucional
da igreja se perpetue. ... O entrelaçamento com o mundo é porém o efeito de uma aliança
Esse é um texto especialmente indignado que mostra até onde vai a reação contra a
cumplicidade de católicos e protestantes alemãs no regime nazista. Há, nesse caso, uma crítica
movida por acontecimentos históricos, que pode ser vista no plano profissional do filósofo,
relação à religião cristã60. De qualquer modo, independente do plano biográfico, neste trecho
fica ainda mais clara a contradição entre a prática da violência e a religião do amor, que prega
remitologização61.
como meio de espiritualização e reconciliação social seja aqui implicitamente vista como um
59
ADORNO, Theodor W.. „Theologie, Aufklärung und die Zukunft der Illusionen―. In: Frankfurter Adorno
Blätter VIII. Rolf Tiedemann (Org.). Göttingen: Wallstein, 2003, p. 236. „Die strikten Bedingungen des
Glaubens erheischen, daß Vernunft sich beugt, wie es dann die institutionelle Gewalt der Kirchen perpetuiert. ...
Die ideelle Verfochtenheit mit der Welt ist aber der Effekt des praktischen Bündnisses der Religion der Liebe
mit der Praxis der Gewalt―
60
MÜLLER-DOOHM, Stefan. Adorno. Eine Biographie, pp. 32-5.
61
Para uma boa contra-argumentação de Jesus como mágico e outros ataques ao cristianismo, ver LIEDKE, Ulf.
Naturgeschichte und Religion, pp. 239-41.
44
45
acento na contradição entre prescrição e prática que é explicada pelas próprias contradições
Contudo, aqui vale contracenar esse momento com outro retirado de Studies in
estamos observando:
repressing agency. There can be no doubt that this ambiguity has its basis in the double
function of religion itself throughout history and it should, therefore, not be attributed
However, this example seems to offer some support for the hypothesis that only
Antes, por fim, há a afirmação – que soa bem distante da crítica vista anteriormente –
It was expected from the very beginning that the relations between religious ideology and
ethnocentrism would be complex. On the one hand the Christian doctrine of universal love
and the idea of "Christian Humanism" is opposed to prejudice. This doctrine is doubtless
one of the major historical presuppositions for the recognition of minorities as sharing
equal rights with majorities "in the sight of God." The Christian relativization of the
natural, the extreme emphasis on the "spirit," forbids any tendency to regard natural
45
46
characteristics such as "racial" traits as ultimate values or to judge man according to his
em especial a idéia de que todos são iguais aos olhos de Deus. O cristianismo relativiza o
natural enfatizando o espiritual de modo que o natural não fixa em traços raciais valores
últimos. Nesse caso, diferente de boa parte das outras doutrinas religiosas, o cristianismo
valoriza o elemento espiritual e moral do indivíduo a tal ponto que propõe que se ignore sua
raça, status quo etc. Neste ponto, nada mais concorde com a teoria crítica, que se esforça por
Não é dito que sob essa idéia há uma insinuação a se converter, própria de várias
É por isso que o cristianismo é para Adorno a religião mais contraditória possível, pois
o crente faz o papel de ―astrólogo e espiritista‖ (3, 203), relativiza o momento negativo do
judaísmo, diviniza um ―mágico‖ (3, 201), com isso abre a possibilidade de uma suspensão da
razão e engano dos indivíduos mais simples, impõe um amor humanamente impossível e
através dele legitima a dominação mais violenta; no entanto, separa a religião do estado,
autoconservação judaica.
62
LIEDKE, Ulf. Naturgeschichte und Religion, p. 251.
46
47
ilustração efetiva da religião dos pobres e oprimidos: o crente mais ingênuo e humilde guarda
mais verdade do que os evangelistas, os padres e muitos dos teólogos (3, 203). Isso levanta
nos cristãos humildes e iletrados do que em quem eles acreditam, seus ―sábios‖ pregadores.
Adorno retira essa constatação do antigo ―pressentimento‖ (Ahnung) que chega ao que ele
cristãos anti-oficiais, de Pascal a Barth passando por Lessing e Kierkegaard, fizeram dele
a pedra angular de sua filosofia. Nessa consciência eles foram não somente os radicais,
sua ânsia por converter, documenta sempre a intolerância com o outro. Mais além, há um
quanto mais duvidam da inverdade de sua doutrina mais trabalham pela desgraça dos que não
fazem o ―turvo sacrifício da razão‖ (DE, 167; 3, 201). São, desse modo, justamente os cristãos
cristianismo, que se tornam, de certo modo, um exemplo ético e contribuem para uma
consciência emancipatória.
De todos os nomes que foram citados, o mais recente e seu contemporâneo, o teólogo
tema do capítulo, o antisemitismo – pelo fato de ter atuado contra o silêncio de muitos
cristãos em relação aos judeus no período nazista. Em outros momentos da obra de Adorno, a
47
48
teologia dialética é objeto de crítica, como uma tentativa duvidosa de modernizar a teologia
dignidade do fato de que, sem tornar absoluto o conceito de razão, ela jamais o proscreveu:
A doutrina tomista não reflete somente a ordem feudal de sua época que se pôs já a si
mesma em questão, ela corresponde também ao nível científico mais avançado 64.
De forma paralela, num certo sentido, ao projeto da teoria crítica, a Suma de Tomás de
Aquino conseguiu em sua época não ignorar o conceito de razão e ao mesmo tempo não
torná-lo medida para todas as outras categorias. Aqui sublinho o fato de Adorno insistir na
idéia de o maior e mais influente teólogo – ao lado de Santo Agostinho – da igreja servir de
exemplo de ―força e dignidade‖ ao não hipostasiar a razão65. Adorno se refere, sem dúvida, à
63
Martinson desenvolve uma posição teológica bem interessante a partir da crítica de Adorno, MARTINSON,
Mattias. Perseverance without doctrine: Adorno, self-critique, and the ends of academic theology. Frankfurt am
Main: Lang, 2000, p. 46, 228, sobre a relação entre filosofia e teologia atualmente, p. 347.
64
―Die große Scholastik, vorab die Summen des Tomás, hatten ihre Kraft und Würde daran, daß sie, ohne den
Begriff der Vernunft zu verabsolutieren, nirgends ihn verfemten: dazu ging die Theologie erst im Zeitalter des
Nominalismus, zumal bei Luther, über. Die Thomistische Lehre reflektierte nicht bloß die freilich bereits sich
selbst problematisch gewordene feudale Ordnung ihrer Epoche, sondern entsprach auch deren
fortgeschrittenstem wissenschaftlichen Stand‖, 10.2, 613.
65
AQUINO, Tomás, von. Summe der Theologie. Joseph Bernhart (org.). Stuttgart: Alfred Kröner, 1954, t. 2,
sobre a razão da lei, ver pp. 426-8, sobre a razão suprema em Deus pp. 444-5.
48
49
Mesmo que Adorno não tenha necessariamente assumido o uso da palavra ―fé‖, parece
que é exatamente em torno desse pólo oposto à razão que Adorno vislumbra a possibilidade
onde Adorno se refere a esse conceito central da teologia. Primeiro no desvio nazista da ―fé
fanática‖ que retém da ―religião do amor‖ somente o anti-semitismo e se nutre do ódio aos
que não partilham da fé (3, 201; DE, 165). Segundo, ao criticar a remitologização do
porque esqueceu que se trata justamente de ―fé‖ e não de fato (3, 203; DE, 167).
Nesses dois momentos fica claro que a função da fé foi desviada para servir ao
fanatismo. Isso, segundo Adorno, já está no cerne do cristianismo mas é plenamente realizado
lendo a passagem sobre Tomás de Aquino fica implícito que há possibilidade de a fé manter-
obnubilando a razão, poder ser o limite que a razão observa em si mesma, um limite que dá
fanatismo como promessas de uma relação equilibrada entre fé e razão, Tomás, em seu
contexto e momento histórico, chegou mais próximo da última possibilidade se realizar 66.
Contudo, o tomismo posterior não fez mais do que congelar a contribuição de Tomás e resistir
66
AQUINO, Tomás, von. Summe der Theologie, p. 446, Aquino diferencia a razão do entendimento divino da
razão do entendimento humano. Essa discussão dos limites da razão humana enquanto tal, que confia, no ato de
fé, à ―razão‖ divina, que é inacessível e impensável, prova o próprio racionalismo de fundo da teologia cristã
desde seus primórdios. Adorno talvez pressuponha a questão do racionalismo cristão mas não a discute.
AUGUSTINUS, Aurelius. Der Gottesstaat. De civitate dei. Münschen: Ferdinand Schöningh, 1979, t. 1, pp.
821-2; t. 2, pp. 488-9. Agostinho também pensa a diferença entre o entendimento humano, que é mutável e
limitado, e o entendimento divino, que é imutável, ilimitado e eterno. Se Deus pensou sobre as coisas antes e
agiu depois, a diferença de antes e depois só existe na ação mas não na concepção, daí a necessidade da fé: não
por engano da razão, mas pela limitação inerente à razão humana. Nesse dilema da relação entre fé e razão, o
pano de fundo é o debate dos primeiros padres com os filósofos gregos, t.2, pp. 490-1. Interpretando a fé em
termos psicanalíticos, há sempre uma ambigüidade na ―racionalização‖: veste o irracional com vestes racionais e
leva o irracional à razão.
49
50
campo comum à arte e à religião. Adorno e Horkheimer constatam que é raro no mundo
burguês uma abertura à arte (Schelling é citado como exceção), e que geralmente isso se deu
em relação à fé (3, 36; DE, 32). E a função da mesma foi predominantemente guerreira e
fanática, pois luta com a deficiência que lhe é inerente, permanecendo ligada à razão de forma
antagonista. ―Não foi como exagero (Überspannung) mas como realização do próprio
irracionalismo, diferentemente da arte: ―a confissão objetiva de que quem apenas crê por isso
mesmo não mais crê‖ (3, 36; DE, 33). Justamente por observar essa deficiência intrínseca e
extrínseca da fé em relação a sua própria prática que há, de forma implícita em todos esses
trechos, a idéia de uma fé impossível que não engoliria a razão, manteria a lucidez de sua
precariedade e saberia ao mesmo tempo impor à razão seu próprio limite. Não esqueçamos
que a fé, por sua vez, contém razão e só seres de entendimento podem crer. Seria a fé de
alguém que não apenas diminui a sua razão na fixação da crença, mas pensa, reflete, e põe a
fé sempre no lugar que inevitavelmente sobra, e não por cima do que a razão constata.
O ponto essencial aqui é entender que o princípio da fé cristã, que é a religião da fé,
necessidade de uma reflexão racional do que para ocupar o lugar que falta à razão. Logo, há
um potencial na fé, para a razão, mais prometido do que realizado. Daí Adorno sugerir que a
50
51
mantém o dogma se aproveitando dessa dialética, forçando a razão dialética entre razão e fé,
na ausência de qualquer dogma que haveria lugar para a precariedade da fé que contrapõe, e
transcendente e transcendental.
que concretiza, realiza uma ―experiência metafísica‖ relativa (não absoluta), e portanto não
Por isso São Tomás, em sua época, procedeu com dignidade, pois o iluminismo
posterior ainda não tinha surgido. Contudo, depois do iluminismo, Feuerbach, Marx,
Nietzsche etc., não há mais lugar para uma fé submetida à doutrina, segundo Adorno.
Podemos concordar com Ulf Liedke ao afirmar que a ―metacrítica da cristologia‖ em Adorno
é direcionada menos à igreja antiga do que à filosofia idealista 67 e sua teoria cristológica.
Nesse sentido, haveria, como ocorre em geral na relação entre Hegel e Adorno, uma negação
crítica assim como a retomada dialética de outros elementos. Mas não podemos com isso
diminuir a dose de crítica à religião, antes, aumentá-la68. Por outro lado, tal afirmação não
67
LIEDKE, Ulf. Naturgeschichte und Religion, p. 241.
68
Se Adorno se baseia nas formulações hegelianas para criticá-la, é por que as valoriza. Se não o faz, na mesma
medida, com pensadores estritamente teólogos, é por que carecem da mesma importância. Mas isso não diminui
a importância da teologia em geral nesse debate essencialmente filosófico, como veremos a seguir.
51
52
deve esquecer a convivência e a discussão com Paul Tillich nem as breves mas explícitas
remissões à teologia dialética. Se Adorno pouco se direciona diretamente a teólogos, é por ver
Mas Adorno parece não descartar uma espécie de fé que aparece depois de toda a
dessacralização da racionalidade mais atual e ocupa o lugar vazio que sobra, uma sobra que,
todavia, nunca é pouca nem é racionalmente superável, como Kant soube teorizar, pois é o
possui uma função ética, pois pressupõe a idéia de uma redenção de que a realidade por si
mesma não fornece nenhuma esperança, mas também não permite que o ceticismo total tome
a última palavra, pois só do ponto de vista da redenção – leia-se, de uma certa fé na redenção
esclarecer melhor a seguir; uma fé que herda a dialética entre razão e fé tomista (porém a
influência e o filtro são primordialmente kantianos) mas se estabelece somente depois de toda
desdobra-a, mas inevitavelmente se impõe depois de todo o momento crítico e como condição
materialismo dialético.
69
KANT, Immanuel. Werke, sobre a diferença entre fé pragmática, fé doutrinal e fé moral enquanto fé negativa,
Kritik der reinen Vernunft, t.4, pp. 690-4. Em Was heißt: sich im Denken orientieren? fica mais claro que essa
fé moral, a principal e privilegiada para Kant, é uma pura fé da razão (Ein reinerVernunftglaube) que serve de
―compasso‖ e ―indicador‖ para a orientação do pensador especulativo em seus fins teóricos e práticos,
constituindo o fundamento de qualquer outra fé ou revelação, t. 5, pp. 275-7. Em Prolegomena zu einer jeden
künftigen Metaphysik ele chama de ―ein vernunftiger Glaube‖, uma fé racional, a fé na possibilidade de uma
metafísica futura que se torne a ciência especulativa da razão pura, t.5, p. 249. Embora Adorno se distancie desse
conceito de fé em Kant por uma série de motivos (crença na cientificidade da metafísica, imposição de
postulados morais etc.), a relação entre fé racional e metafísica negativa, assim como uma moral mediada pela
razão, para que não se torne autoritária, é, sem dúvida, devedora da fé racional kantiana .
52
53
positivamente; este é o conteúdo de sua negatividade. Ele se põe de acordo com a teologia
Essa enigmática implicação entre teologia e materialismo, que será analisada mais
Não se trata de nenhuma espécie de concessão a doutrinas religiosas, antes, faz parte
do movimento dialético da crítica, da mais radical profanização que se depara com seu
esperança, fé e transcendência.
70
―Der Materialismus säkularisierte es, indem er nicht gestattete, die Utopie positiv auszumalen; das ist der
Gehalt seiner Negativität. Mit der Theologie kommt er dort überein, wo er am materialistischesten ist.‖ (6, 207)
53
54
AO POSITIVISMO
negatividade filosófica que contém em seu germe um aspecto teológico e uma metafísica
―negativa‖, dialeticamente invertida. Para entender melhor como isso é argumentado, leiamos
um trecho da penúltima parte do último capítulo de Dialética negativa, capítulo que vai se
mundo e espírito, mais ela se transforma em algo oculto, como se ela se concentrasse num
senão no mais ínfimo e mísero e se nesse estado de completa insignificância ela leva uma
razão autoritária a trazer para seu âmbito tal miudeza, sem resistência e reflexão, à razão.
no profano. Sacrifica-se até a idéia de verdade em nome da qual o positivismo mesmo foi
iniciado71.
71
― Je mehr an Transzendenz danach durch Aufklärung in der Welt und im Geist zerfällt, desto mehr wird sie
zum Verborgenen, wie wenn sie in einer äußersten Spitze über allen Vermittlungen sich konzentrierte. Insofern
hat die antihistorische Theologie des schlechthin Verschiedenen ihren historischen Index. Die Frage nach der
54
55
anteriormente, nas religiões naturais, não havia uma separação tão nítida. A transcendência
fazia parte da natureza e matéria e espírito, em especial na noção de mana, eram uma coisa só,
o que possibilitava o culto às imagens, uma ilusão do indiferenciado. À medida que a razão
transcendência passa para o domínio do espírito, que é pelo idealismo tornado absoluto mas
em seguida aos poucos desacreditado. Por isso a transcendência se torna cada vez mais oculta
(zum Verborgenen). Essa palavra tem história na mística alemã 72 e tornou-se uma das
Metaphysik schärft sich zu der, ob dies ganz Dünne, Abstrakte, Unbestimmte deren letzte und bereits verlorene
Verteidigungsposition sei, oder ob Metaphysik allein im Geringsten und Schäbigsten überlebt, im Stand
vollendeter Unscheinbarkeit die selbstherrliche und widerstandslos, reflexionslos ihr Geschäft besorgende
Vernunft zur Vernunft bringt. Die These des Positivismus ist die von der Nichtigkeit auch der in Profanität
geflüchteten Metaphysik. Noch die Idee der Wahrheit wird geopfert, um deretwillen der Positivismus initiiert
ward‖ (6, 394-5).
72
ECKHART, Meister. Meister Eckharts mystische Schriften. Übertragen von Gustav Landauer. Berlin: Karl
Schnabel, 1903, pp. 19-22, 26, 45, 183. Quando Eckhart cita justamente Dionísio Areopagita o termo é
empregado. Ele geralmente aparece para acentuar que só pela renúncia e abandono de todas as imagens, saberes
e posses se chega a experimentar o deus oculto, a ―eterna verdade‖ (p. 27). ―Hierzu ermahnte Dionysius seinen
Jünger Timotheus und sprach: Lieber Sohn Timotheus, du sollst mit unbekümmerten Sinnen dich über dich
selbst hinausschwingen und über alle deine Kräfte und über Weisen und über Wesen in die verborgene stille
Finsternis, auf dass du zu einer Erkenntnis des unbekannten übergöttischen Gottes kommest‖,p. 19; ―Und ich
habe manchmal gesagt, dass darin etwas verborgen liege wie ein Ursprung alles Guten und wie ein leuchtendes
Licht, das allezeit leuchtet, und wie ein brennender Brand, der allezeit brennt, [und der Brand ist nichts anderes
als der heilige Geist]‖, p. 56 ―Dieses Eine,
das ich hier meine, ist wortlos. ... Das ist uns verborgen in der Tiefe seiner Stille‖, p. 183; ―In der Verborgenheit
liegt das Bild‖ p. 230.
73
Não é de nosso interesse abordar a crítica de Adorno a Heidegger, contudo, mais adiante veremos referências
específicas a respeito.
55
56
esclarecimento traz para a história a concepção teológica que concebeu esse lugar de
negatividade anistórica. Isso quer dizer que o questionamento sobre a negatividade teológica,
que quis pensar o anti-histórico, foi desde o início histórico, e traz a marca de sua
histórica, observa-se que todas trazem a marca de sua historicidade. Todas procuram pensar o
Isso parece claro. Mas, apesar da constatação da historicidade, o que Adorno tenta
história está sempre por detrás; não só como é possível, mas por que é necessário e mesmo
inevitável, ainda que sempre e definitivamente dentro dos limites de um contexto histórico.
O que fica explícito desse impasse é que a transcendência não desapareceu, não foi
destruída pelo positivismo. A própria idéia de verdade da qual o positivismo brotou é posta
em jogo e, num certo sentido, a própria verdade do positivismo é que desaparece no estado
74
Certamente Adorno está pressupondo a leitura do livro de Rudolf Otto sobre o sagrado. Adorno foi muito
crítico ao autor, mas inegavelmente influenciado, especialmente no trecho sobre o inteiramente outro (―ganz
Anderen‖). OTTO, Rudolf. Das Heilige: über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein Verhältnis zum
Rationalen. München: Beck, 1936, pp. 28-36. O inteiramente outro não é um estranhamento do natural, nem
fantasma da fantasia, muito menos é conceituável: ele está fora do circulo de realidade, além do mundo, é o
Mysterium, mas não se reduz somente a um momento negativo. Há um enorme conteúdo de sentimento positivo
que leva à expressão do paradoxo e da antinomia. Otto cita neste momento precisamente os místicos integrantes
da chamada teologia negativa: Eckhart, Silesius, além de citar a obra do pai da teologia negativa, a Teologia
mística de Dionísio Areopagita. Abordaremos toda a problemática da teologia negativa no último capítulo. O que
devemos ressaltar neste momento é que Adorno é contra uma ―teologia anti-histórica do radicalmente diferente‖,
mas tem a intenção de elaborar uma, digamos assim, dialética negativa histórica do radicalmente diferente, e
para isso recorre a elementos da teologia negativa.
56
57
falso (6, 22) em que ele contribui para se estabelecer. Mas é a nulidade da metafísica
postulada pelo positivismo que é falsa no estado falso, e se a verdade desapareceu no mundo
administrado assim como na razão instrumental, não é por que ela não mais existe, antes, por
algo radicalmente diferente e ínfimo. Se a razão não faz outra coisa senão ―expor‖, tornar
nítido, distinto, analisável e reconhecível, a transcendência está no que escapa, cada vez
menos se expõe quanto mais o esclarecimento dominante progride. Na idade do estado falso,
onde tudo é calculável, administrado para manter e reproduzir um sistema social injusto, uma
desagregação do corpo (3, 266) e mesmo da ―alma‖ 75 feita pela indústria cultural e o
princípio individualista do interesse particular imposto pela própria sociedade (6, 293), o
esclarecimento chegou num estágio em que tanto as necessidades básicas quanto a cultura são
regidas pelo cálculo administrativo. Por isso a experiência chega a ser empobrecida no âmbito
da linguagem (3, 187-8; DA, 153-4) por meio da evidência da representação plana da
rápida diversão e consumo, feita pela indústria cultural, levam a linguagem a reproduzir tal
ofuscamento e cegueira geral. Por ser a linguagem o meio do pensamento e da crítica, é por
75
A indiferença do standard cultural da arte de massa (Massenkunst) que mais grave se torna quanto mais
falsifica a individualidade (exemplificada no reclame ―feito especialmente para você!‖), obriga a obra de arte a
refletir em si mesma a reificação e a manipulação das necessidades e de qualquer finalidade, 3, 318-9. A obra de
arte que não reflete sobre essa contradição em seu aspecto formal e tenta uma espiritualização ou vivificação
(Beseelung) forçada, artificial, não consegue nada senão reproduzir a coisificação em si mesma.
76
―Die Blindheit und Stummheit der Daten, auf welche der Positivismus die Welt reduziert, geht auf die Sprache
selber über, die sich auf die Registrierung jener Daten beschränkt‖, 3, 188. ―A cegueira e o mutismo dos fatos a
que o positivismo reduziu o mundo estendem-se à própria linguagem, que se limita ao registro desses dados‖.
DA, 154.
57
58
ela que a própria realidade incorpora a ideologia na onipresença dos estereótipos (3, 158) e na
concretização da vida feita para o consumo em meio à propaganda universal (3, 169-70).
Sabe-se, pela crítica de Nietzsche e Heidegger, que a metafísica teve um papel central
espírito e a transcendência, sendo o positivismo nesse sentido seu maior herdeiro. Portanto, o
despreza, como se já tivesse ultrapassado, seu desejo de experiência espiritual. Embora ainda
precisemos elaborar melhor esse ponto adiante, podemos adiantar que a ―modéstia‖ da ciência
ascese do místico religioso seria, nesse aspecto, um verdadeiro pólo oposto do positivismo:
A partir daqui é possível tentar explicar por que, afinal, Adorno, que é e deve ser
de alguma forma, dar a ela algum lugar. Essa intrincada defesa da metafísica ocorre
freqüentemente quando há uma crítica ao positivismo. A ascese positivista, que concorda com
77
HARPHAM, Geoffrey Galt. The Ascetic Imperative in Culture and Criticism. Chicago: University of Chicago
Press, 1987, sobre o aspecto ascético da própria teoria quando ela apresenta uma tensão entre desejo/tentação e
resistência/renúncia, p. 240; para cada ato de autonegação num discurso crítico há uma estratégia de
fortalecimento (empowerment) e gratificação, p. xiii.
58
59
destruir na prática até mesmo a ―cota‖ de metafísica que se refugiou na profanidade (―in
metafísica, é também indispensável, por outro lado, uma defesa de seu ocultamento na
temporário, nas coisas mínimas: e é precisamente essa a tarefa da obra de arte moderna79. No
fundo, trata-se de uma defesa da debilidade da metafísica na atualidade contra seu próprio
Diante dela [EG: a objetividade], a razão fechou por inteiro, refugiando-se nas
idiossincrasias, que são reprovadas como arbitrárias pela arbitrariedade dos detendores do
poder, pois estes querem impotentes os sujeitos, por medo da objetividade, que está
78
―Das ist doppelt wahr in der Ära des Positivismus und der Kulturindustrie, deren Objektivität von den
veranstaltenden Subjekten kalkuliert ist. ‖ (4, 77). ―Isso é duplamente verdadeiro na era do positivismo e da
indústria cultural, cuja objetividade é calculada pelos sujeitos organizadores.‖ (MM, 60)
79
―Wer jemals aus der Kraft seines präzisen Reagierens im Ernst der Disziplin eines Kunstwerks, dessen
immanentem Formgesetz, dem Zwang seiner Gestaltung sich unterwirft, dem zergeht der Vorbehalt des bloß
Subjektiven seiner Erfahrung wie ein armseliger Schein, und jeder Schritt, den er vermöge seiner extrem
subjektiven Innervation in die Sache hineinmacht, hat unvergleichlich viel größere objektive Gewalt als die
umfassenden und wohlbestätigten Begriffsbildungen etwa des »Stils«, deren wissenschaftlicher Anspruch auf
Kosten solcher Erfahrung geht‖ (4, 76-7). ―Quem quer que, valendo-se de sua capacidade de reagir com precisão,
se submete com seriedade à disciplina de uma obra de arte, às leis formais imanentes a essa última, à necessidade
de sua configuração, vê desintegrar-se como uma miserável ilusão as reservas quanto ao aspecto meramente
subjetivo de sua experiência; e a cada passo com que ele entra na coisa, graças à sua inervação extremamente
subjetiva, tem um poder objetivo incomparavelmente maior do que as categorizações abrangentes e estabelecidas,
como por exemplo, o conceito de ‗estilo‘‖ (MM, 60). Ressalta-se aqui que a ascese da Disziplin de uma obra de
arte e seu poder de proporcionar uma experiência verdadeiramente objetiva é exatamente o oposto da ascese
positivista, que desseca a experiência estética em sua pretensão de cientificidade, ―deren wissenschaftlicher
Anspruch‖.O formalismo lingüístico que iniciou a teoria da literatura é um exemplo importante, mas talvez
Adorno esteja se referindo à filologia da época de Mínima moralia.
80
―Ihr [EG: die Objektivität] gegenüber hat Vernunft vollends, und fensterlos, in die Idiosynkrasien sich
geflüchtet denen die Willkür der Gewalthaber Willkür vorwirft, weil sie die Ohnmacht der Subjekte wollen, aus
Angst vor der Objektivität, die allein bei diesen Subjekten aufgehoben ist.‖ (4, 77).
59
60
fuga da razão e da metafísica (―in Profanität geflüchteten Metaphysik‖ 6, 395; ―Vernunft ... in
die Idiosynkrasien sich geflüchtet‖ 4, 77) – duas categorias basilares da filosofia tradicional –
submetida aos seus próprios meios e não aos seus fins, quer dizer, irracional 81 . Daí os
dos sujeitos tornados por isso impotentes, ao nível prático, completando a violência da
na miudeza é um ato de coragem do sujeito oposto ao medo da objetividade (Angst vor der
duplo aspecto da metafísica em Adorno – o qual é parte integrante do já bem assimilado duplo
82
aspecto da razão, ―instrumental‖ e ―emancipatória‖ -, pois o que geralmente é
dominadora.
Adorno, como poucos, soube fazer a leitura crítica da metafísica seguida de uma
reavaliação de sua situação na modernidade que implica mantê-la em estado negativo, não só
81
MILBANK, John. ―Problematizing the secular: the postmodern agenda‖. BERRY, Philippa. WERNICK,
Andrew. (ed.). Shadow of spirit: postmodernism and religion. London: Routledge, 1992, sobre a ciência ser hoje
não só uma possibilidade de controle da natureza, antes, uma nova religião da razão, p. 38. Milbank, como vários
outros autores, deparou-se com o paradoxo de, quanto mais a ciência quer ―purgar‖ qualquer traço religioso seu,
mais ela se torna uma nova religião. Adorno, já há tempo, retirou disso a conclusão derradeira: já não se trata
mais de razão e sim da razão a serviço do irracional.
82
HORKHEIMER, Max. Zur Kritik der instrumentellen Vernunft(1946). Frankfurt am Main: Fischer, 1967.
83
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999,
pp 20-1, 257-8. O autor mostra que a teoria literária procurou, nos anos 60 e 70, questionar os pressupostos de
identificação, projeção ou repulsa da crítica literária, bem como de mera linhagem e derivação da história
literária; além disso, fez a crítica ao senso comum e à ideologia. Contudo, nessa empreitada, ela adquiriu
repercussão, notoriedade e terminou por reproduzir seu próprio senso comum, o qual deve ser localizado e
refletido. Isso levanta uma aporia: até que ponto a teoria é capaz de se distanciar do senso comum ou combatê-lo?
Insiro a partir daí minhas preocupações: na sociedade moderna, que é simultânea e contraditoriamente cada vez
mais infantilizada e reflexiva, o que seria sinal de emancipação não é por vezes o próprio efeito da semiformação
(8, 119) ou da falsa teorização, quando idéias que pareciam sofisticadas são elas mesmas tornadas fetiche? Para
uma crítica do senso comum estipulado pelo próprio bom senso intelectual conservador, ver (7, 77).
60
61
porque é impossível não ser metafísico já que toda a linguagem conceitual e o modo de pensar
estão impregnados dela, mas também porque ela contém o cerne de aspectos emancipatórios
Logo, o problema não está na pobre competição teórica pós-moderna de ser ―o menos
operação controladora e abstracionista da metafísica sem deixar de voltar os olhos para seu
refúgio na miudeza do profano, e dar a ele atenção como se fosse o sagrado, onde justamente
metafísica se encontra em estado negativo mas não ―desaparece‖, nem deve ser por isso
efetividade nada diminuído, que a intensifica em termos de experiência e critica sua ambição
de conhecimento e abstração ao voltar a atenção para ―die kleinsten innerweltlichen Züge‖ (6,
400), os traços intramundanos mais ínfimos. Mas é esse cuidado com o mais ínfimo que
onde Adorno já está em outro estágio da teoria crítica – a oportunidade para uma nova
reaproximação com a metafísica depois do divórcio da teoria crítica com a mesma, e não a
(como se tal atitude bastasse) mas ainda não suficientemente dialética. È a partir dessa
perspectiva que procuraremos interpretar o famoso final de Dialética negativa, ainda pouco
84
Uma pequena crítica sobre a relação entre Derrida e a metafísica ainda está por ser feita, sem deixar de
reconhecer a importância da desconstrução para a filosofia e a teoria da literatura.
85
De maneira semelhante, no plano do texto literário, Adorno observa que Benjamin lia textos profanos como se
fosse o texto sagrado, procedimento no qual se encontra justamente a influência da mística judaica, (11, 573). O
assunto será discutido no capítulo 5.
61
62
conhecido no Brasil, fora do pequeno círculo de especialistas, por ainda não haver tradução
isolado, por causa do critério do conceito genérico que subsume, e faz ressaltar sua
identidade, o engano segundo o qual seria um mero exemplar. Um tal pensar é solidário da
merece solidariedade. Mas isso não é tão simples e daí a dificuldade desse final enigmático: o
desejo do absoluto continua em vigor no olhar micrológico desse ―pensar‖, mesmo que
implicitamente delimitado pela necessidade concreta (Bedürfnis 6, 400) que tentou negar.
Adorno não propõe, como já vimos, o panteísmo que vislumbra o divino em tudo, pois é
nessa atividade micrológica de atender ao mínimo que o absoluto ocorre enquanto experiência.
perdemo-lo na mesma medida em que estamos tentando encontrá-lo (como o faz a metafísica
absoluto em nossa experiência. Alienar-se numa existência subjetiva insípida justamente por
acreditar submeter a natureza ao nosso controle não é, definitivamente, uma solução para a
86
―Die kleinsten innerweltlichen Züge hätten Relevanz fürs Absolute, denn der mikrologische Blick zertrümmert
die Schalen des nach dem Maß des subsumierenden Oberbegriffs hilflos Vereinzelten und sprengt seine Identität,
den Trug, es wäre bloß Exemplar. Solches Denken ist solidarisch mit Metaphysik im Augenblick ihres Sturzes‖.
62
63
Mas ao prestar atenção ao objeto mais ínfimo esse olhar perscrutador ultrapassa os
envoltórios da abstração e torna o precário o mais importante. Assim a miudeza provou ser a
única mediação para o absoluto, mas não é ela mesma hipostasiada, ao contrário, mantém o
absoluto num estado incerto, negativo, em que ele potencializa a experiência mantendo-se
objetivos, ao mirar-se na imanência não se limita a ela, daí haver uma distância necessária,
(10.1, 26). Esse é um outro engano bastante comum em não poucas leituras equivocadas do
87
STOLINA, Ralf. Niemand hat Gott je gesehen: Traktat über negative Theologie. Berlin: de Gruyter, 2000,
p.18, ―a fronteira da linguagem não é a fronteira da experiência‖. Essa mesma estrutura de abrir-se para
experiência mantendo-se oculto ao conhecimento, não tornando a experiência um lugar de confirmação de
conceitos, como quer o Kant teórico (6, 365), é característica fundamental da teologia negativa, segundo Stolina.
Ela nos fornece uma pista tradicional importante para entender esse processo em vários setores do pensamento e
da arte moderna, especialmente no conceito de ―experiência metafísica‖ (6, 389) de Adorno, que veremos
adiante.
88
Não é o lugar adequado nem minha intenção abordar aqui a fundo a diferença da dialética entre imanência e
transcendência em relação a outras filosofias. Sabe-se que os dois campos, depois de Kant, já em Hegel, sofrem
uma interpenetração mútua. A maioria das filosofias do século XX esforça-se por pensar uma instância
transcendental (e transcendente) que não se destaca de modo puro da imanência, ao contrário, deriva dela. Há
aqueles que ligam uma instância à outra até que as diferenças se percam, são geralmente tendências místicas,
especialmente nas filosofias da vida (Lebensphilosophie), pensando a implicação mútua de corpo e alma, vida e
espírito. ALBERT, Karl. JAIN, Elenor. Philosophie als Form des Lebens: zur ontologischen Erneuerung der
Lebensphilosophie. Freiburg (Breisgau) ; München: Alber, 2000, pp.. 160-66. Essas filosofias possuem grande
dignidade e importância para entender o problema. Contudo, Adorno reconhece a implicação mútua das
instâncias mas defende ainda uma separação, precisamente para ser fiel ao objeto imanente, e não para subsumi-
lo. Sobre o problema em geral, ver HANSEN, James E. ―The Dialectic of the Immanent and the Transcendent‖.
Philosophy and Phenomenological Research, Vol. 32, No. 4. (Jun., 1972), pp. 543-547; sobre a filosofia de
Simmel, ULLRICH, Peter-Otto.Immanente Transzendenz: Georg Simmels Entwurf e. nach-christl.
Religionsphilosophie. Frankfurt am Main ; Bern ; Cirencester/U.K.: Lang, 1981.
63
64
mostra presente em muitos dos que se querem ser dialéticos mas se revelam positivistas
inconfessos.
metafísico é em grande parte um efeito do positivismo mesmo naqueles que também são
avessos a ele. Logo, o maior perigo da teoria contemporânea não é, a meu ver, a metafísica,
metafísica, mas ela corre freqüentemente o perigo de, na mecanização desse procedimento,
carregar impensadamente o engano positivista lá onde ela tanto quer ser anti-positivista89.
valorizar a função ética e estética da debilidade atual da própria metafísica: eis o que é tão
difícil de reconhecer hoje, quando a filosofia se torna presa de suas próprias conquistas,
setores da filosofia alemã, por outro lado, embora devam ser repensadas melhor, ignoram, na
maioria das vezes, as pistas que Adorno deixou para abordar o problema. Por isso, ocupam-se
por pensar a ―atualidade‖ de Kant, por exemplo, sem levar em consideração boa parte do
89
MARGOLIS, Joseph. ―The Threads of Literary Theory‖. Poetics Today, Vol. 7, No. 1. (1986), pp. 95-110.
Margolis pensa haver perigo tanto na abordagem científica do texto literário, que propõe ―formas de
fechamento‖ para abordá-lo quanto na ―nova doutrina da abertura‖ que abandona o objeto a um caos conceitual e
metodológico. Ele esquece que a aporia entre a ―abertura‖ – especialmente heideggeriana e pós-estruturalista - e
o fechamento – formalista, fenomenológico e estruturalista – (p. 108) ocorre na maneira como se concebe a
relação entre sujeito e objeto, e cita Adorno somente para reprovar o ―escape de constrangimentos práticos‖ (p.
107). Penso que essa aporia, posterior às análises literárias de Adorno, sofreu muitos impasses por não ter
observado com mais cuidado a relação sujeito/ objeto, imanência/trancendência e até mesmo teoria/práxis em
Adorno, como ele a praticou teoricamente.
90
ÖELMÜLLER, Willi. BAUMGARTNER, Hans Michael. Metaphysik heute?. München: Schöningh, 1987.
HENRICH, Dieter. HORSTMANN, Rolf-Peter (org.). Metaphysik nach Kant?. Stuttgarter Hegel-Kongreß 1987.
64
65
metafísica não são de hoje e existem já no início do século XX 91, e insiste em diferenciar
nomes como Dieter Henrich de filosofias escolares, marginais, autodidatas, esotéricas ou não-
acadêmicas. Contudo, por mais próximo de Adorno que em outros tempos tenha estado, ele
trabalhada‖92. A meu ver, em vez de pensar isso como uma falta ou fragilidade, ninguém
melhor que Adorno demonstrou que não se trata de trabalhar uma ―nova metafísica‖, nem
superá-la, nem lutar em vão contra sua própria onipresença na filosofia, antes, ter a força de
elemento essencial em comum com Habermas 93 , embora, segundo ele, Habermas e Apel
Mas a influência pragmática que leva a pensar a linguagem em termos de teoria do consenso e
habermasiana: fazer uma crítica questionável a Adorno (como dizer que seu conceito de
racionalidade e verdade não é abrangente95) e depois tentar uma aproximação mais duvidosa
Stuttgart: Klett-Cotta, 1988. HABERMAS, Jurgen. Pensamento pos-metafisico: estudos filosoficos. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, pp. 14, 260.
91
HABERMAS, Jurgen. Pensamento pos-metafisico, p. 260.
92
WELLMER, Albrecht. ―Metaphysik in Augenblick ihres Sturzes‖. In: HENRICH, Dieter. HORSTMANN,
Rolf-Peter (org.). Metaphysik nach Kant?, p. p. 774.
93
WELLMER, Albrecht. Ibidem, p. 783.
94
WELLMER, Albrecht. Ibidem, p. 780.
95
WELLMER, Albrecht. Ibidem, pp. 776, 780
65
66
possui potencial ético, que não pode ser pensada em termos de comunicação, menos ainda
No aforisma 82 de Mínima moralia há uma verdadeira lição de como não cair nos
que realmente atinge a vida empírica. Enquanto o pensamento se refere aos fatos e se
move na crítica a eles, ele não se move menos graças à diferença mantida. Ele exprime
com exatidão o que é, pelo fato mesmo de que o que é nunca é inteiramente tal qual o
pensamento o exprime. A ele é essencial um elemento de exagero, que o impele para além
das coisas e o faz desembaraçar-se do peso do factual, graças ao que, em vez de apenas
reproduzir o ser, consuma de maneira rigorosa e livre a determinação deste último. (MM,
110) ...Pois o pensamento necessita mirar para além de seu objeto, precisamente porque
não o atinge de todo, e o positivismo não é nada crítico na medida em que se presume
capaz de atingi-lo e imagina que só hesita por escrúpulo. O pensamento transcendente leva
em conta sua insuficiência de um modo mais rigoroso do que aquele que se deixa conduzir
96
―Nur im Abstand zum Leben spielt das des Gedankens sich ab, welches in das empirische eigentlich einschlägt.
Während der Gedanke auf Tatsachen sich bezieht und in der Kritik an ihnen sich bewegt, bewegt er sich nicht
minder durch die festgehaltene Differenz. Er spricht eben dadurch genau das aus was ist, daß es nie ganz so ist,
wie er es ausspricht. Ihm ist wesentlich ein Element der Übertreibung, des über die Sachen Hinausschießens, von
der Schwere des Faktischen sich Loslösens, kraft dessen er anstelle der bloßen Reproduktion des Seins dessen
Bestimmung, streng und frei zugleich, vollzieht. ... Denn der Gedanke muß über seinen Gegenstand hinauszielen,
gerade weil er nicht ganz hinkommt, und der Positivismus ist unkritisch, indem er das Hinkommen sich zutraut
und bloß aus Gewissenhaftigkeit zu zaudern sich einbildet. Der transzendierende Gedanke trägt seiner eigenen
Unzulänglichkeit gründlicher Rechnung als der durch den wissenschaftlichen Kontrollapparat gesteuerte. ‖ (4,
141-2).
66
67
A ―vida do pensamento‖ só existe se tomar distância do objeto e mirar para além dele,
pois só assim se o determina ―de maneira rigorosa e livre‖ (―streng und frei zugleich‖). A
consciência de que não é possível atingi-lo é a condição para que não se iluda em querer
rigoroso por causa da liberdade que possui para exagerar e não meramente se deter. Toda essa
portanto, intensificado pela carga de transcendência metafísica – quer dizer, de desejo, sede
para abordar a miudeza que mira - como se sua diminuição o aproximasse dela: é justamente
o inverso o que se passa - ele não conseguiria encontrar a relevância para o absoluto que a
miudeza, na sua aparente insignificância, esconde. A lógica é inversa: quanto mais ínfima a
miudeza, mais relevância ela possui para o absoluto porque mais transcendente o
Podemos concluir que a análise imanente se torna mais eficaz quanto mais e melhor
souber ser transcendente por meio de seu ato de deter-se no mínimo. É isso que fará dela,
além do objeto torna-se assim a principal implicação de saber deter-se nele: nesse sentido a
experiência é espiritual e objetiva ao imergir no e saltar do objeto. Vê-se que só desse modo
97
―... sondern die Erfahrung, daß der Gedanke, der sich nicht enthauptet, in Transzendenz mündet ...‖ (6, 395)
67
68
miudeza e só com a intensidade da atenção rigorosa descobre nela relevância para o absoluto.
desprezível com a totalização do conceito. Contudo, não se trata de uma reconciliação, antes,
por meio do singular. Logo, não se trata de opor a singularidade à totalidade, como é comum
negativo (em queda) na experiência do singular, pois ele só advém nessa tensão com seu
oposto.
Com isso, toda a problemática da metafísica, tanto seu potencial de experiência (que
periga em não ser reconhecido numa crítica não dialetizada) quanto seu conteúdo ilusório
devem ser tratados de modo ―terapêutico‖, ou seja, constantemente analisados. Enfim, uma
vez reconhecida a ilusão da metafísica, não basta negá-la; é preciso lidar com a duplicidade de
seu potencial estético e ético para a experiência e sua inevitabilidade ilusória para a teoria.
que há de mais importante a ser questionado – por que há nesse algo ínfimo a esperança –
esperança, por mais ilusória que seja, não deve ser pretensamente abandonada, como ocorre
muito facilmente o papel de nossos desejos infantis – teológicos – num mero simulacro do
gesto crítico e assim cremos estar mais ―adultos‖ na relação com a teologia e a metafísica de
modo que não vemos mais nelas senão uma herança inevitável a ser paulatina e infinitamente
68
69
diminuída98. O que parece ser um gesto ascético adulto de autocastração, ou até, em outro
razão autoritária. Não é possível ser hoje nenhum iluminista seguro e bem resolvido, nem
decadentismo francês) em relação à metafísica99. Para ser mais explícito: o que é chamado de
―diferença‖ ou ―différance‖ e o que já foi por Heidegger chamado de ―Verborgenheit‖ 100 foi
hipostasiado como o mote da desconstrução da metafísica, embora seja, segundo Adorno, não
só isso, antes, o lugar de sua retomada negativa. A diferença parece ser pouca, mas é a partir
98
COMTE, Auguste. Rede über den Geist des Positivismus. Hamburg: F. Meiner, 1956, pp. 27-9. Sabe-se que
Comte possui uma teoria sobre os três estágios da humanidade em que a religião é o estágio da infância, a
metafísica da adolescência e a ciência da fase adulta. ÖELMÜLLER, Willi. Negative Theologie heute, pp. 62-3.
A idéia implicitamente crítica a Comte, de fundo freudiano, da retomada de nossos desejos teológicos ―infantis‖
vem de Christoph Türcke, dita numa entrevista feita por mim a ser publicada em breve na REVISTA .DOC,
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/index_revista.doc.htm
99
TÜRCKE, Christoph. Kassensturz: zur Lage der Theologie. Lüneburg: zu Klampen, 1992, sobre a
impossibilidade da neutralização em relação à religião, pp. 7-9, fundamentalismo dentro e fora da Igreja, p. 16,
sobre uma releitura da crucificação de Jesus como exposição crítica da irreconciliação e necessidade de pensar a
reconciliação a partir da esperança 70-1. Nesse sentido é preciso pensar o potencial crítico da teologia fora da
mesma. TÜRCKE, Christoph. Gewalt und Tabu: philos. Grenzgänge. Lüneburg: zu Klampen, 1987, sobre a
necessidade de uma relação dupla com o idealismo (o que implica, por extensão, como tento esclarecer, o
conceito de metafísica), p 82.
100
HEIDEGGER, Martin. Vom Wesen der Wahrheit. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1943, p. 19.
101
Nesse caso, Heidegger e Derrida contribuem simultaneamente para avançar na desconstrução e enfatizar a
experiência estética quanto para instaurar a confusão. Até mesmo uma leitura de Adorno pouco sensível a
nuances decisivas que estou aqui examinando incorre no mesmo engano. Se o pensamento de Heidegger e
Derrida contém uma dialética possível com a metafísica enquanto experiência (daí o ―mistério do ser‖ em
Heidegger - HEIDEGGER, Martin. Vorträge und Aufsätze. Pfullingen: Neske, 1954, p. 177 - e a ―possibilidade
do impossível‖ em Derrida, DERRIDA, Jacques. Fichus: discours de Francfort. Paris: Galilée, 2002, p. 19), há
uma compulsão à repetição do gesto de afastamento sisifista da metafísica que coloca em primeiro plano uma
―destruição‖ ou uma ―desconstrução‖. Esse momento destruidor, penso eu, foi importante e continua em vigor na
crítica à ilusão e ao totalitarismo metafísico, mas hoje deve se somar a uma reavaliação dialética mais elaborada
tal como Adorno soube - como ninguém, mas com a ajuda de Benjamin e juntamente com Horkheimer -
antecipar em toda sua complexidade. Derrida procurou mais tardiamente enfatizar esse aspecto nos textos sobre
teologia negativa, religião e messianismo, em certa medida influenciado justamente por Benjamin e Adorno.
Sobre religião em geral, ver DERRIDA, Jacques. ―Fé e saber. As duas fontes da ―religião‖ nos limites da simples
razão‖. In: DERRIDA, Jacques. VATTIMO, Gianni. A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação
Liberdade, 2000. Sobre teologia negativa, ver DERRIDA, Jacques. « Comment ne pas parler. Dénégations ».
Psyché. Inventions de l‟autre. Paris: Galilée, 1987. DERRIDA, Jacques.. Sauf le nom. Paris: Galilée, 1993.
Além disso, há um livro precisamente sobre esse assunto em Derrida: CAPUTO, John D. The prayers and tears
of Jacques Derrida: religion without religion. Bloomington: Indiana University Press, 1997. Uma leitura mais
atenta e interessante de Heidegger também revelaria que o momento destruidor serve para redescobrir a
metafísica de outra forma, aguardando serenamente boas surpresas da técnica. Mas continuaria faltando um
mínimo de ―abertura‖ para dimensões sociais e concretas.
69
70
teórico contemporâneo, que está em muito impregnado pelo discurso positivista mesmo que
não o admita, mesmo no ápice de sua oposição a ele, da mesma forma que a teologia
dogma intocável, por mais que se renove artificialmente com importações da teoria
contemporânea. Esses dois fenômenos, no plano acadêmico, dependem por sua vez da atual
da religião católica – ortodoxas e fixas. Como nos demonstra C. Türcke, uma convive muito
bem com a outra; na verdade, o cristianismo só existe por servir fielmente - na prática
é recente: desde o nascimento da burguesia foi assim. O positivismo – que é sua tradução
saber – são pólos opostos que estão reproduzindo uma mesma estrutura social. Por isso,
subestimar a teologia, no lado laico, e ignorar a crítica à religião, no lado teológico, são
fenômenos opostos que se retroalimentam. Além disso, um explica o outro: onde parece haver
religião, em geral encontramos a total subserviência ao capital, e onde parece haver negócio,
Adorno, que deu a ela, em trechos como os vistos aqui - que juntos precisam ser
materialista frente à teologia, pois uma das principais tarefas de nosso trabalho é avançar
102
TÜRCKE, Christoph. Kassensturz, p. 27-37.
103
TÜRCKE, Christoph. Ibidem, p. 30, ―Was antireligiös erscheint, kann theologische Wurzeln haben, was
religiös erscheint, kommerzielle‖.
70
71
nesse setor da discussão. Observa-se como não é possível uma interpretação razoável desse
trecho sem nos dirigir aos pressupostos da teoria atual que são feitos tanto de acúmulos das
que foram sedimentando equívocos e que só muito recentemente estão sendo precariamente
repensados. Entre os mais famosos, esse problema foi abordado pelo último Derrida, com sua
pós-secular104. Não trataremos desses dois autores neste trabalho, mas a discussão da qual eles
que nossa leitura de Adorno tenta restituir precisamente o que há de melhor para o avanço da
discussão. Essa tentativa de resgate só será efetiva se for meticulosamente fiel à complexidade
da abordagem adorniana da teologia e da metafísica, por isso resgatar essa parte integrante do
pensamento adorniano para a discussão atual implica imergir nas tensões que estão em jogo
interpretação atenta a essa negatividade da metafísica e da teologia vai servir para a discussão
A pergunta indireta na frase de Adorno (3, 394) é bem explícita quanto às dificuldades
sobrevivência da metafísica? O texto sem dúvida opta pela segunda resposta. Se a pergunta
está em suspenso, é por que afirmar a negatividade da segunda resposta, como é revelado no
104
HABERMAS, Jürgen. Zwischen Naturalismus und Religion: philosophische Aufsätze. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 2005, pp. 119-54, 258-78.
71
72
final do livro (6, 400) exige um processo lento e precisa de muitas mediações. Adorno,
todavia, não só se limita a escolher a segunda resposta, como explica sua função ética: só essa
Essa fraqueza da metafísica na qual ―cada profundeza desperta a dúvida‖ (―Jene Tiefe
weckt den Zweifel‖, 6, 389) é vista em Schopenhauer, nos românticos, chegando em certa
medida à falsa solução de Heidegger. A falta de sentido metafísico torna-se ela mesma
elementos objetivos e seu jogo com a aparência, e não em uma sorte de purificação. É aí que a
a profanidade, mas não qualquer profanidade, antes, naquilo que há nela de mais precário105.
olhar micrológico de Adorno se põe à caça do elemento empírico mais delicado, que é
justamente onde a metafísica, em seu estado mais débil, refugia-se por meio de sua própria
queda. Enquanto os outros procuram o cálice sagrado, o Santo Graal, nas jóias mais ricas,
105
Essa precariedade e miudeza ficará ainda mais clara na análise de poemas de Silesius no item 5.8.
72
73
Por fim, há uma certa luta implícita entre a experiência do absoluto no mais ínfimo e a
absoluta em si mesma. Seu desejo, mesmo assim, é tornar-se absoluta, é trazer o absoluto para
o reino da experiência, o que é, como Kant demonstrou, impossível106. Como veremos mais
tarde, esse desejo é signo de coragem e deve ser sempre mantido, e não, segundo a retórica da
Acreditar que se está renunciando a esse desejo é um auto-engano. Mas é por causa
desse auto-engano que o desvio desse desejo, visto como a maior das pretensões, torna-se
uma ―modesta‖ operação de dominação integral da natureza que pretende reduzir a metafísica
uma tentativa de reconciliação com a natureza, enquanto que a modéstia positivista produz a
não diminui em nada o que há de metafísico na pretensão e herda o desejo do místico de unir-
106
KANT, Immanuel. Immanuel Kant: Werke in zwölf Banden, t. 3. pp. 328-30.
73
74
encontrar no ocidente107) que assumisse radicalmente essa pretensão, Adorno sabe que esse
desejo é irrealizável. Mas, semelhante a muitos místicos ocidentais, Adorno não renuncia ao
desejo, antes, alia dialeticamente essa pretensão do absoluto ao seu aparente oposto: ao mais
ínfimo. Com isso há uma afirmação da experiência relativa, histórica e limitada do absoluto
no mais ínfimo. A pretensão não é para ser anulada, mas, sim, para servir de impulso à prática
realidade não significa, portanto, nenhuma espécie de resignação existencial (20.1, 395). Daí a
Todo esse percurso agora nos permite tentar entender o que Adorno enigmaticamente
sendo essa a introdução para abordar a questão da mística na Dialética negativa . Um pouco
depois ele vê a possibilidade de uma experiência metafísica a partir de uma leitura de Proust
107
Meister Eckhart explicitou essa pretensão numa curiosa dialética entre humilhação e possessão divina, como
veremos no capítulo sobre teologia negativa. Essa implicação necessária entre os extremos do poder – humildade
e ambição, ínfimo e absoluto – elemento comum aos místicos e a Adorno, é o que justifica não uma aproximação,
nem mera comparação, antes, uma reflexão sobre o que, afinal, motiva um materialista a retomar esse tipo de
motivo místico para o acesso ao absoluto. ECKHART, <Meister>. Deutsche Predigten und Traktate. Josef
Quint (trad. e org.). München: Hanser, 1955, se o homem se abandona totalmente a Deus, receberá a ―plena
possessão‖ Traktate X, p. 67; quem abandona sua própria vontade a Deus, Deus não pode fazer senão o que esse
homem quer, Predigt 38, p.336.
108
SPÖRL, Uwe. Gottlose Mystik in der deutschen Literatur um die Jahrhundertwende. Paderborn ; München ;
Wien ; Zürich: Schöningh, 1997, pp. 83-7. Husserl usou essa formulação no sentido de retirar do plano do
transcendente a idéia de algo completamente fora da percepção, HUSSERL, Edmund. Husserliana: gesammelte
Werke. Dordrecht: Springer, 2001s, t. III, p. 138, t. XVI, p. 337. Nesse sentido, tal transcendência na imanência
faz parte de uma dificuldade de diferenciar ambos os termos, como nos ensina ORTH, Ernst Wolfgang. "Zu
Husseris Wahrnehmungsbegriff". Hursserl Studies 11, 1994-95, pp.153-168, especialmente em pp. 158-9. Para
entender uma experiência extraordinária como a experiência mística ou, nos termos da Dialética negativa,
experiência metafísica, há os que, como Xusheng Yang, servem-se dessa estrutura fenomenológica para pensar a
experiência religiosa. Tal experiência revelaria o que já faz parte de uma estrutura da consciência. YANG,
Xusheng. Immanente Transzendenz: eine Untersuchung der Transzendenzerfahrung in der antiken chinesischen
Religiosität mit Berücksichtigung des Konfuzianismus. Tübingen: Univ., Diss., 2004, p. 9.
74
75
(6, 366), que retoma exatamente o que já tinha sido elaborado em 1945 no final do texto
―Theses Upon Art and Religion Today‖ (11, 652-3)109. O que nos interessa no momento é o
que a dita ―metaphysische Erfahrung‖ introduz para pensar a relação entre metafísica e
teologia.
àquela da liberdade e só é dela capaz o sujeito emancipado que rompe os elos religiosos
louvados como salutares. Pelo contrário, aquele que em surdina é tomado numa concepção
se àquele que tem uma crença positivista nos fatos. ... Face à teologia, a metafísica não é
somente, como o ensina a doutrina positivista, um estado histórico mais tardio; não é
que ela apresenta aos homens a possibilidade do que a teologia desfigura ao lhes impor. O
que faz explodir o cosmos do espírito são as forças que ele reúne; sucede-lhe o que ele
merece. A autonomia de Beethoven é mais metafísica do que a ordem de Bach e por essa
convergem em humanidade110.
mística (... die Mystik, deren Name die Unmittelbarkeit metaphysischer Erfahrung gegen
ihren Verlust durch institutionellen Einbau zu retten hofft ..., 6, 365; ―a mística, cujo nome
espera salvar a imediatidade da experiência metafísica contra sua perda ocasionada pela
109
Analisaremos esses textos do item 5.1 ao 5.4 e a experiência metafísica em Proust em 7.3.
110
―Eher ist die Möglichkeit metaphysischer Erfahrung verschwistert der von der Freiheit, und ihrer ist erst das
entfaltete Subjekt fähig, das die als heilsam angepriesenen Bindungen zerrissen hat. Der dumpf in
gesellschaftlich sanktionierter Anschauung vorgeblich seliger Zeiten Befangene dagegen ist dem positivistischen
Tatsachengläubigen verwandt. ... Metaphysik ist gegenüber der Theologie nicht bloß, wie nach positivistischer
Doktrin, ein historisch späteres Stadium, nicht nur die Säkularisation der Theologie in den Begriff. Sie bewahrt
Theologie auf in der Kritik an ihr, indem sie den Menschen als Möglichkeit freilegt, was die Theologie ihnen
aufzwingt und damit schändet. Den Kosmos des Geistes sprengten die Kräfte, die er band; ihm widerfuhr sein
Recht. Der autonome Beethoven ist metaphysischer als Bachs ordo; deshalb wahrer. Subjektiv befreite und
metaphysische Erfahrung konvergieren in Humanität.‖ 6, 389.
75
76
construção institucional‖ 111 ...) Adorno a está claramente colocando em parentesco com o
próprio iluminismo, no que este possui de mais emancipatório: a experiência metafísica - que
só pode ser concebida aqui como experiência mística, seja na ambígua relação dos místicos
experiência mística com a experiência da liberdade iluminista, ou seja, uma espécie de mística
secularizada na arte e na cultura moderna (no capítulo 5, especialmente nos itens 5.9 e 5.10
em 10.1, 244, 252 e 5, 332). Tal questão aproxima a liberdade de autonomia do sujeito
moderno com a possibilidade de uma experiência mística e não, ao invés disso, julga-as
opostas. É justamente pelo fato de o sujeito moderno se desembaraçar dos elos religiosos que
o obrigavam institucionalmente a ter uma determinada visão de mundo que ele tem a
metafísica e tende a olhar para quem a anuncia (o místico) como um doente mental, ou, no
melhor dos casos, como artista ―alienado‖ da realidade. A dificuldade de avaliação aumenta,
sem dúvida, com a ilusão sancionada pelo mercado e pela mídia dos misticismos
111
TIEDEMANN, Rolf. ―Concept, Image, Name: On Adorno‘s Utopia Knowledge‖ . In: Huhn, Tom (org.). The
semblance of subjectivity, pp. 123-46.
76
77
moderna e se opõem irracionalmente ao esclarecimento. Por isso é tão difícil tratar da questão
que ou santificava o herético depois de morto ou o levava para a fogueira parece ter mudado
menos do que deveria112. Há um medo da experiência mística ou metafísica tão grande quanto
o medo da morte, e que por isso essa experiência só se concebe ou se suporta através daqueles
que a vivenciaram e hoje se tornaram seus avatares. Esse medo é mesmo medo da liberdade
socialmente instaurada, sancionada seja por meio de dogmas religiosos, seja por meio de
Mas digamos que isso tenha mudado em alguma medida e o conflito que se instaura
reconhecimento factual da realidade para melhor dominar a natureza. Entre essas duas faces
se sem dúvida na primeira. Aqui se observa, mais uma vez, o conflito entre metafísica e
positivismo, mas o terceiro elemento que se introduz é a teologia. A metafísica não é somente
a secularização da teologia no conceito, antes, ela guarda algo da teologia. Aqui parece haver
daquilo que a teologia, ao impor como um dever, violou, (schändet). O verbo schänden é
muito rico, especialmente nesse contexto que Adorno soube empregá-lo, e impossível de
violar (uma mulher), profanar (uma igreja, por exemplo), que pode chegar a ter o sentido mais
112
HOLLYWOOD, Amy M. Sensible ecstasy: mysticism, sexual difference, and the demands of history. Chicago,
IL ; London: Chicago University Press, 2002, sobre a associação de experiências místicas a casos demoníacos ou
patológicos, especialmente no caso das mulheres, ver p. 8; sobre a necessidade da filosofia feminista de aprender
com a prática e o discurso místico, ver p. 278. ELLIOTT, Dyan. Proving woman: female spirituality and
inquisitional culture in the later Middle Ages. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 2004, sobre a
diferenciação prática e discursiva entre santidade e heresia, ver pp. 119-179.
77
78
inominável por pronomes demonstrativos, estratégia retórica nele corrente para tratar com o
teologia ao se relacionar com tal elemento sagrado. A metafísica – que nesse momento parece
ser mais bem vista do que a teologia – guarda e libera o que a teologia possuía e violava ao
impor. Para ficar bem claro: enquanto a teologia viola e profana o inominável; a metafísica o
guarda e libera.
contrário do que o positivismo interpreta. Desse modo, a metafísica - por não ser somente a
contrário - conserva o melhor da própria teologia ao guardar dela o que ela mesma não sabia
honrar. O mais importante aqui é que a operação de secularização não invalida, nem mesmo
deve e pretende “violar”, algo essencial da teologia. Há algo essencial na teologia que a
secularização não supera, pelo contrário, libera. Cabe ao sujeito moderno saber aproveitar a
chance (ihm widerfuhr sein Recht; ―sucede-lhe o que ele merece‖), ou, ao cair nas redes do
teologia e da metafísica e revela, por isso mesmo, a grosseria do positivismo contida por trás
78
79
Claro que tal elemento obscuro, em suspenso, clama por uma resposta que não
podemos oferecer. Mas podemos dizer sem erro que se trata daquilo que nos leva à
irrepresentável e inominável, que sempre se guarda oculto, seja na teologia, seja na metafísica,
que o desejam, seja mesmo na experiência metafísica, que o experimenta. Essa possibilidade
Bach, o da ordem eclesiástica, no âmbito da estética musical. Feita essa separação, Beethoven
é mais metafísico e verdadeiro que Bach porque a metafísica é a secularização da teologia que
soube melhor guardar sua verdade. Podemos dizer que a autonomia de Beethoven é mais
verdadeira do que a ordem de Bach porque soube melhor conservar e liberar a experiência
Embora estejamos aqui tentando desenredar a lógica por trás dos paradoxos
adornianos, ainda assim é surpreendente dizer que Bach é menos metafísico que Beethoven;
mais ainda dizer que por isso mesmo Beethoven é mais verdadeiro. Não podemos aprofundar
o assunto, mas vale dizer que tal afirmação é feita devido à constituição subjetiva (moderna)
já encontrada na ―ordem‖ (Adorno usa a palavra ―ordo‖ latina que contém significado
teológico) de Bach, mas ainda não estabelecida e assumida como em Beethoven. A autonomia
subjetiva de Beethoven, que subverte parte das regras estéticas tradicionais anteriores e
instaura o primeiro momento de uma ordem burguesa pelo próprio sujeito construída, foi
antecipada por Bach justamente porque ele se manteve na tensão histórica de ainda ser
79
80
barroco num momento histórico já neoclássico (11.1, 138-52; sobre a dialética da idade média
e do moderno em Bach, 14, 354). Bach se serviu de melhor maneira das forças de uma
liberdade pronta para explodir, porém assim o fez mantendo-se num estranho barroco tardio,
proporcionou à explosão dessas forças toda a pompa burguesa e metafísica de que ela
necessitava113. De qualquer modo, Adorno não esconde sua preferência por Beethoven mesmo
ao ter sabido teorizar sobre Bach. O que devemos tirar disso é que, ao dizer que Beethoven é
mais verdadeiro que Bach por ser mais metafísico, Adorno também não esconde sua
preferência pela metafísica diante do positivismo e da teologia, e mais ainda, pelo que há de
Depois de toda a crítica ao humanismo, feita já pelo próprio Adorno (12, 162; 6, 96; 7, 386),
afinal, o que há de tão verdadeiro na teologia para um dos críticos mais contundentes da
80
81
sempre contorná-la, o problema está, formulando melhor, em como o materialismo vai lidar
com a teologia e a verdade que ela possui. Por isso abordaremos a seguir os momentos da
obra de Adorno onde essa questão se intensifica: nas referências afirmativas à teologia, em
81
82
NEGATIVA
ligada à experiência metafísica. Na preparação para o que virá a seguir, mostramos como a
Adorno, para, depois (capítulo 5 a 7) analisar como esse aspecto teológico impregna a estética
na obra.
entre outras coisas, um artigo de Horkheimer a respeito de Bergson115. Nesse momento ele
refere à passagem sobre o historiador como salvador [Retter], que me comoveu no mais
alto grau – é assombroso como as conseqüências de seu ―ateísmo‖ (no qual quanto mais
eu evidentemente menos acredito, mais perfeitamente ele se explicita: por meio de cada
de minhas intenções teológicas, que pode desagradá-lo o quanto o senhor quiser, mas
115
HORKHEIMER, Max. "Zu Bergsons Metaphysik der Zeit" in: Gesammelte Schriften. Band 3. SCHMID
NOERR, Gunzelin (org). Frankfurt am Main: Fischer, 1988, p. 255.
82
83
cujas conseqüências de qualquer modo não diferem em nada das suas – eu poderia ainda
motivo central de todas as minhas tentativas, sem que eu nisso pense o leitor como aquele
silencia mas do qual o senhor seria, contudo, o único leitor, para o qual seria adequada a
Não é de nosso interesse comparar essa carta com o artigo de Horkheimer sobre
Adorno. Nesse momento, em 1935, a discussão sobre teologia está se configurando nas cartas
e nos encontros de Adorno com Horkheimer e com Benjamin. Mais tarde esse suposto
―ateísmo‖ de Horkheimer, que parece estar em certa medida contrário a Adorno, será
repensado: ambos sustentarão uma posição muito semelhante em relação à teologia117. O que,
muito enfaticamente, comoveu Adorno foi a passagem sobre o historiador como salvador, a
qual ele remete à salvação do sem-esperança –motivo central de toda a filosofia adorniana.
No ensaio sobre Bergson, Horkheimer não usa a palavra Retter nem Rettung, mas
corresponde ao que está descrevendo Adorno, especialmente no final do texto, quando diz
116
―Ich finde den Bergonaufsatz ganz außerordentlich insbesondere ist es die Stelle über den Historiker als
Retter, die mich im höchsten Maße ergriffen hat – es ist erstaunlich, wie völlig hier die Konsequenzen Ihres
‚Atheismus‘ (an den ich freilich je weniger glaube, je vollkommener er sich expliziert: denn mit jeder
Explikation steigt seine metaphysische Gewalt) solchen aus meinen theologischen Intentionen begegnen, die
Ihnen so unbehaglich sein mögen wie sie wollen, aber deren Konsequenzen jedenfalls (eben) in nichts von Ihren
sich unterscheiden - könnte ich doch das Motiv der Rettung des Hoffnungslosen als Zentalmotiv all meiner
Versuche einsetzen, ohne daß ich zu jener historischen Verzeichnung des Leidens und des Nichtgewordenen den
Leser hinzudenke, von dem Sie schweigen und der doch der einzige Leser wäre, dem diese Geschichte des
kreatürlichen Leidens zugeignet wäre‖. HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Band 15. Briefwechsel,
1913 – 1936. SCHMID NOERR, Gunzelin (org.). Frankfurt am Main: Fischer, 1988, p. 328.
117
Isso fica claro na entrevista de Horkheimer “Himmel, Ewigkeit und Schönheit” (“Céu, eternidade e beleza”)
para a revista Spiegel, número 88 de 11 de Agosto de 1969. Encontramos tal posição da mesma forma nos
escritos póstumos, HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Band 14. Nachgelassene Schriften. 1949-1972.
Frankfurt am Main: Fischer, 1988, p. 215-6, 220, 228, 321, 327, 338, 347, 527, 542, 544.
83
84
julgar que somente a ―escuta‖, o ―dar ouvidos‖ (da expressão Gehör schenken) à história
poderia dar conta da acusação que o sofrimento do passado faz à realidade presente118.
A ênfase não é exagerada: Adorno tem razões de sobra para se entusiasmar com essa
materialista procura trabalhar por uma espécie de salvação do que não é passível de salvar-se,
do que não possui a mínima esperança de se salvar no plano estritamente factual. Trata-se do
sofrimento da criatura. É essencial constatar que a carta ainda não se refere a Auschwitz, pois
o momento histórico é anterior. Os nazistas já tinham chegado ao poder, mas Adorno se refere
sofrimento humano que não pode ser consolado de nenhuma forma. Não é somente o
mais escandalosos, mas sim a história do sofrimento como tal, do sofrimento de seres mortais.
Nesse sentido, dizer que essa tarefa seria do ―historiador‖ não basta. Ela seria a tarefa do
filósofo historiador.
enfrentar uma possível discordância de seu amigo ―que pode desagradá-lo o quanto o senhor
quiser‖ (die Ihnen so unbehaglich sein mögen wie sie wollen)119. Tal discordância, sabemos
118
―Kunst und Religion, in denen dieser Traum Ausdruck gefunden hat, sind ebensosehr unmittelbare Zeugnisse
dieser Unzufriedenheit, wie sie anderesseits an vielen Stellen der Geschichte zu reinen Mitteln der Beherrschung
geworden ist. Jetzt, wo das Vertrauen auf das Ewige zerfallen muß, bildet die Historie das einzige Gehör, das die
gegenwärtige und selbst vergängliche Menschheit den Anklagen der vergangenen noch schenken kann.‖
HORKHEIMER, Max. "Zu Bergsons Metaphysik der Zeit" in: Gesammelte Schriften. Band 3. Schriften 1931-
1936. Frankfurt am Main: Fischer, 1988, p. 248.
119
Ibidem, p. 237. Suponho que Adorno, com exceção das freqüentes conversas entre os dois que já contavam de
alguns anos, esteja se referindo ao momento do ensaio onde Horkheimer compara Bergson a um teólogo face à
questão da morte.
84
85
hoje, pouco ocorreu e foi aos poucos desaparecendo120. Horkheimer aderiu cada vez mais a
essas motivações teológicas, chegando a assumi-las com veemência nos últimos escritos.
violentamente metafísico a seus olhos. Ele ―se assombra‖ (es ist erstaunlich) com o grau de
não está claro quais seriam essas intenções, fora a ―salvação do sem-esperança‖. Essa
expressão deriva do contato com Benjamin121. Empregar a palavra ―salvação‖ possui um certo
acredita, portanto, que a filosofia possui um potencial messiânico. Se possui, essa é a sua
missão?
O problema assume então um tom sublime que à primeira vista pareceria patético.
Sabemos que esse messianismo filosófico contém a herança de Marx, mas com a diferença
essencial de que, ao contrário de Marx, ele prefere agir predominantemente no plano teórico e
estético. Daí, aliás, seu último livro se chamar Teoria estética, como sua última ação ―prática‖
em vida, em clara oposição à práxis revolucionária do movimento jovem dos anos 60.
Reconhecemos que essa carta, escrita num momento ainda muito inicial da trajetória do autor,
120
TRAUBEL, Michael. Die Religion in der kritischen Theorie bei Max Horkheimer und Theodor W. Adorno.
Freiburg im Breisgau,: Dissertation, 1978, pp. 87-91.
121
WIGGERSHAUS, R. Die Frankfurter Schule – Geschichte. Theoretische Entwicklung. Politische Bedeutung.
Münschen: Hanser, 1987, p. 201. PANGRITZ, Andreas. Vom Kleiner- und Unsichtbarwerden der Theologie.
Ein Versuch über das Projekt einer “impliziten Theologie” bei Barth, Tillich, Bonhoeffer, Benjamin,
Horkheimer und Adorno. Tübingen: Theol. Verl., 1996, p. 134. 10.1, 252. Adorno cita Benjamin, »Nur um der
Hoffnungslosen willen ist uns die Hoffnung gegeben«, BENJAMIN, Walter. ―Goethes Wahlverwandtschaften‖.
Gesammelte Schriften I.1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 201. Veremos o aspecto místico de Benjamin
interpretado por Adorno no capítulo 5, especialmente no item 5.9.
85
86
sentido, quando mais adverso à práxis irracional Adorno se posiciona, mais se aproxima da
teologia122.
Em nosso trabalho damos sempre mais valor ao que foi publicado ou exposto em
público pelo autor do que o que tem um caráter mais privado, como é o caso dessa carta.
Contudo, a carta, como já vimos nos aspectos que já analisamos, e como ficará ainda mais
claro a seguir, não está contradizendo o que foi publicado, apenas esclarecendo e reforçando
um aspecto teológico na obra que não contém nada de derivado e suplementar. Na verdade,
como diz a própria carta, trata-se de parte integrante do ―motivo central‖ da filosofia
adorniana.
escreve:
A relação com o positivo, o teológico, que não foi mediada através da negação, e
forma123.
Horkheimer afirma que Adorno não pode ser reprovado por manter uma relação com algo
positivo e teológico pelo fato de ele saber lidar com isso em termos formais. Mas pelo que
percorremos até agora, vê-se que o amigo mais próximo de Adorno reconhece nele um
comprometimento com uma positividade que, contudo, não prejudica o todo, antes, é
122
10.2, 779. PS (Palavras e sinais), 226. Adorno, no textos ―Notas marginais sobre teoria e práxis‖, denuncia
no ―praticismo‖ a falsa suspeita de ideologia que equivale ao menosprezo burguês contra qualquer manifestação
do espírito. É quando a práxis encobre sua real impossibilidade que ela que se torna ideologia.
123
HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Band 17. Briefwechsel, 1941 – 1948. SCHMID NOERR,
Gunzelin (org.). Frankfurt am Main: Fischer, 1996, p. 147: ―Die nicht durch Negation vermittelte Beziehung
zum Positiven, Theologischen, die Ihnen im Inhalt wahrhaftig niemand vorwerfen kann, scheint so in der Form
aufrecht erhalten zu sein‖.
86
87
solucionada (não de todo, como Horkheimer vai analisando no decorrer da carta, vendo no
estilo do amigo certos problemas 124 ) no próprio aspecto formal da escrita ensaística. O
problema da positividade teológica está, portanto, lançado pelo amigo, e Adorno percebeu o
Não deixa de ser curioso o fato de que esse problema não aparece de modo direto na Filosofia
da nova música125. Isso só pode significar que a discussão a respeito da teologia, como bem
demonstram Andreas Pangritz 126 , Ulf Liedke, Wiggershaus e outros, entre Horkheimer,
Adorno e Benjamin, estava no ar, embora a sua presença se mantenha, em grande parte, oculta
importância dessa observação. Como utilizar categorias teológicas no contexto de uma teoria
especialmente em oposição à sua nulificação feita pelo positivismo, como, então, proceder?
124
Horkheimer parece não desejar ser direto, mas talvez esse trecho se aproxime de uma litote.
125
Pareceria despercebido para quem não sabe da relevância que ele possui para Adorno. Contudo, há muito o
que descobrir da problemática teológica nesse livro. 12, 34-5, 85, 98-9. ADORNO, Theodor. Filosofia da nova
música. São Paulo: Perspectiva, 1989, p. 31 no final da introdução, ele insiste que o procedimento imanente,
pressupondo um saber filosófico que transcende o objeto ―já não encontra dogmaticamente nenhum apoio na
transcendência positiva‖. Isso significa que há uma transcendência negativa. Na p. 73, ela reaparece na análise das
dissonâncias, pois ―sua negatividade se mantém fiel à utopia‖. A grande música „transcende o concreto de que
procede‖, p. 83; o dado musical transcende a si mesmo, p. 84; toda arte está contra a mitologia, p. 106.
126
PANGRITZ, Andreas. Vom Kleiner- und Unsichtbarwerden der Theologie: ein Versuch über das Projekt
einer "impliziten Theologie" bei Barth, Tillich, Bonhoeffer, Benjamin, Horkheimer und Adorno. Tübingen: Theol.
Verl., 1996, pp. 119-222.
87
88
O outro assunto, o que tornou-se para mim de sua carta bem evidente, é a
queira chamar – sim, tudo o que poder-se-ia dizer aí soa estranho e ingênuo e então
pensar por meio do mistério, antes, precisamente, procurar todavia pensar o mistério
possível formular isso [EG: o mistério ou o que diz respeito a ele], de algum modo, mas
invisível é um motivo disso, um outro é a convicção de que não significa nada do mais
que tudo isso que nós experimentamos como verdadeiro, a saber, não cegamente, antes no
movimento do conceito, e o que se deixa ler para nós realmente como Index sui et falsi, tal
luz o contém somente enquanto reflexo desse outro. Precisamos portanto agarrar o touro
pelo chifre 128 – por amor à verdade – sem que não obstante se precise contrair dessas
coisas somente algo explícito em nosso texto, pois eu concordo nesse sentido, com efeito,
com o senhor e Benjamin, que a verdade teológica tornada invisível é hoje um elemento
127
O verbo é stammeln, balbuciar, gaguejar, que denota uma fala confusa pelo fato de se ter medo ou ansiedade,
excitação. ―Articular imperfeitamente‖ seria uma tradução menos chocante mas perderia a carga afetiva do termo.
128
A expressão ―den Stier bei den Hörnern packen‖, que tem seu equivalente no inglês ―to take the bull by the
horns‖ e no português ―pegar o touro pelos chifres‖ ou ainda ―tomar o pião (ou o tigre) na unha‖ significa
enfrentar imediatamente uma situação ou tarefa difícil com coragem e energia, com decisão e sentimento de
responsabilidade.
129
HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Band 17. Briefwechsel, 1941 – 1948. SCHMID NOERR,
Gunzelin (org.). Frankfurt am Main: Fischer, 1996, p. 163. ―Das andere, was mir aus Ihrem Brief ganz deutlich
geworden ist, ist die Notwendigkeit in Bezug auf die Theologie oder wie immer man es nennen will – ja, alles,
was man da sagen könnte, klingt komisch und naiv und so möchte ich wenigstens nur stammeln: die Augen
aufzumachen und auch hier nicht dem Denken durchs Geheimnis auszuweichen, sondern eben zu versuchen,
noch das Geheimnis zu denken. Ich habe ein schwaches, unendlich schwaches Gefühl, daß das möglich sei und
auf welche Art, bin aber ehrlich außerstande das heute schon zu formulieren. Die Annahme vom Kleiner und
Unsichtbarwerden der Theologie ist ein Motiv dazu, ein anderes die Übersetzeugung, daß von einem zentralsten
Standpunkt aus der Unterschied des Negativen und des Positiven zur Theologie nichts besagt. ... Vor allem aber
glaube ich, daß all das, was wir als wahr erfahren, und zwar nicht blind sondern in der Bewegung des Begriffs,
und was sich uns wirklich als Index sui et falsi zu lesen gibt, dies Licht nur als Widerschein jenes anderen trägt.
Wir müssen also den Stier bei den Hörnern packen - der Wahrheit zuliebe - ohne daß dabei von diesen Dingen
auch nur eines explizit in unseren Text einzugehen brauchte, denn darin allerdings stimme ich mit Ihnen und
Benjamin überein, daß das Unsichtbar-Werden der theologischen Wahrheit heute ein Element dieser Wahrheit
selber ist‖ .
88
89
sempre reflete a fundo sobre o que escreve em conteúdo e forma, de acordo com a natureza
propriamente retórica da filosofia (6, 65-6), essa confusão está mediada pela reflexão e
mesmo assim assumida, ou melhor, expressa em sua inevitabilidade fundamental. Quem está
acostumado ao tratamento que Adorno dá ao que escreve sabe que esse tipo de desistência do
dizer o não-dito através do dito, não há sentido afirmar que é difícil exprimir o não-dito (6,
21), pois esse é o desafio próprio da filosofia. Por conseguinte, esse tipo de hesitação mostra
Trata-se do assunto da ―necessidade em relação à teologia‖. O que ele quer dizer com
palavra ―Notwendigkeit‖ realmente soa estranha, como ele mesmo confessa, mas não é
inadequada. Enquanto categoria kantiana, ela determina que a necessidade condicionada dos
efeitos na natureza deve corresponder à necessidade incondicional do juízo, podendo ser nesse
procurar o que lhe é essencialmente autêntico, quer dizer, a idéia do absoluto, ligada
adequação 131 . É essa necessidade que contém a própria liberdade da razão, por causa da
130
Kant-W, t. 3, p. 258, 340.
131
―Der Vernunft werde zugeflüstert, die Totalität des Seienden konvergiere doch mit ihr. Andererseits hat die
gleichsam systemfremde Notwendigkeit im unendlichen Fortgang der nach Bedingungen suchenden Vernunft ihr
Authentisches, die Idee des Absoluten, ohne die Wahrheit nicht zu denken wäre, im Gegensatz zur Erkenntnis
als bloßer adaequatio rei atque cogitationis.‖ (6, 244).
132
KANT, Immanuel. Kant-W, t.7, pp. 81-3.
89
90
Tudo o que se disser a esse respeito soa estranho ou ingênuo, escreve ele: ―ingênuo‖
porque é armadilha fácil querer manter a todo custo, no meio da crise moderna do sentido,
verdadeiro fracasso, presa fácil para qualquer exercício desconstrutivista. Na época isso já era
época (1941), e ainda mais hoje, é tão fácil cair na esperança teológica quanto desprezar sua
Mas talvez seja menos claro compreender por que soa ―estranho‖. Penso que é
justamente pelo motivo contrário à evidência anteriormente explicada: porque nada é mais
estranho do que ser solidário à metafísica no instante de sua queda, ou encontrar nos traços
transcendente seja mais rigoroso com sua insuficiência do que o controle positivista, ou ainda
que Adorno posteriormente sustentou essas idéias, constatamos que ele optou pela
si mesmo.
133
Esse é um signo de um certo parentesco da dialética negativa com a ―mística antinômica‖ 11.1, 286, como
Adorno caracteriza Kafka. CERTEAU, Michel de. Le lieu de l'autre: histoire religieuse et mystique. Paris:
Gallimard, 2005, p. 329; a mística tem a marca simultânea de ser estranha e essencial na sua prática do paradoxo
na p. 332, trata-se da essencialidade e estranheza própria de experiências teológicas.
90
91
Nesta carta, contudo, ele ainda está tateando as possibilidades de encontrar a melhor
formulação. Por isso ele, com todo o cuidado e hesitação retoricamente encenados para seu
amigo, escreve que ―gostaria‖ (möchte ich) ―somente‖ (nur) de ―ao menos‖ (wenigstens)
questão kat‟ exochen, precisamos dar um tratamento retoricamente ritual para nela
frente a ela134. Estou acentuando o caráter ritual e tocante deste início, como se se estivesse
dirigindo a um deus ou ao próprio deus monoteísta, porque me parece haver neste momento
um gesto de sacralidade na escrita adorniana que está longe de ser menos importante do que a
acusa em Heidegger (6, 95) não desaparecem nele mesmo, e ele reconhece isso. A diferença
está em saber lidar com tal inevitabilidade no interior da linguagem filosófica. A questão da
necessidade de um resto teológico representa, portanto, um papel quase tão temível135 quanto
o deus que ela tenta pensar, e é justamente aí que a questão é uma secularização de seu
conteúdo, não perdendo em quase nada todo o teor sagrado que havia antes da operação
secularizadora. Isso nos faz concluir que tal secularização não muda tanto assim a situação (6,
389) - talvez em nada, o que muda é a abordagem - as coordenadas básicas das questões
Não é nada incomum a encenação retórica de temer uma questão antes de abordá-la. O
cotidiano das discussões acadêmicas está repleto desses rituais, que considero incontornáveis,
já que ultrapassam em muito uma mera demonstração de elegância oratória. O que é raro é
encontrar esse gesto retórico de forma tão exagerada em Adorno. Esse temor mostra tanto
134
BRAUNGART, Wolfgang. Ritual und Literatur. Tübingen: Niemeyer, 1996.
135
(3, 201, DE, 165). Ver item 1.2.1 sobre Judaísmo.
91
92
expositor qualidades não muito diversas das de um cavaleiro ao lidar com um monstro.
Não é possível não ser irônico ao analisar esse momento retórico, mesmo que eu não o
Quanto mais procuro isolar e analisar o aspecto teológico em Adorno, mais estou
retorna sob a forma de uma mística, na verdade, a maior atividade mística do esclarecimento,
torna sagrado para o próprio esclarecimento e cuja mística retorna de forma ainda mais
enfim, latente. Cabe a nós reconhecer e, talvez a nosso modo, reverenciar, esse retorno sem
―má consciência‖137.
O verbo grego myo significa ―cerrar a boca ou os olhos‖, que é de onde vem a palavra
mystes, ―quem foi iniciado nos mistérios‖, e por conseguinte passou de mystérion ao
português ―mistério‖. Ao contrário dessa etimologia, Adorno propõe abrir os olhos ―die
Augen aufzumachen‖. A princípio isso deveria significar, seguindo à risca a oposição das
é nesse sentido que ele afasta a possibilidade de enfraquecer o pensar através do mistério. O
responsável principal desse procedimento, segundo Adorno, seria Heidegger, cuja ―sugestão‖
136
SCHOELLER REISCH, Donata. Enthöhter Gott - vertiefter Mensch: zur Bedeutung der Demut ausgehend
von Meister Eckhart und Jakob Böhme. Freiburg (Breisgau): Alber, 1999.
137
Trataremos desse problema metodológico na conclusão. No capítulo 7 abordaremos, a respeito da teologia
negativa, como efeito do embate com a morte o sacrifício de Deus (especialmente na experiência nietschiana da
morte de Deus), que pode ser visto como um novo modo de experiência religiosa.
92
93
do mistério, embora se faça abertamente138 não o leva com isso a verdadeiramente pensá-lo,
No jargão traz o sol, o qual tem o mesmo no seu cerne, o mistério obscuro do
Esse jogo com o universo metafórico visual da luz serve para desmontar o chamado
jargão em Heidegger. Adorno acusa-o de fazer de seu próprio método um mistério que não sai
do lugar e quer com a aparente mobilidade de sua imobilidade crítica se contentar. Esse
exemplo serve para mostrar o quanto Adorno não se curva à sedução nem da idéia do mistério
Isso não quer dizer que o mistério não deva ser pensado nem reconhecido. ―Abrir os
olhos‖ significa, portanto, saber pensar o mistério, saber encarar o momento em que os olhos
palavra Geheimnis, que contém os traços semânticos de ―movimento para a casa‖ e ―abrigo
―secreto‖, ―clandestino‖) mantém a idéia de reclusão e interioridade, logo, é tão oposta à idéia
de sua própria interioridade indeterminada, o segredo deve ser violentado pelo esclarecimento,
pois só assim ele será invertido e refletido e daí, por meio de sua negação, dignamente
conservado. Trata-se da tentativa derradeira, com uma estrutura trágica patente, e de sua única
138
―Wo der heilige Geist ausging, redet man mit mechanischen Zungen. Das suggerierte und nichtvorhandene
Geheimnis aber ist öffentlich‖, 6, 419.
139
―Im Jargon bringt die Sonne, welche dieser im Herzen hat, das finstere Geheimnis der Methode an den Tag,
als des Verfahrens, das an die Stelle dessen sich drängt, worauf es geht‖, 6, 471.
93
94
possibilidade. O segredo do mistério não tem outra escolha senão entregar-se ao pensar e
através dele se difundir 140 . Adorno tem um débil pressentimento de que um dia poderá
Como bem demonstrou Elizabeth Ann Pritchard em sua análise retórica do texto de
Adorno, há nele uma retórica do fracasso, um fracasso que dá a verdadeira grandeza que
investimento142.
grandeza do inefável, assim como ao apontar a economia do investimento psíquico que disso
se segue. No entanto, não chegou a desenvolver o inverso do fracasso, que decorre dele
depois que é exposto: a coragem. Adorno não se detém sobre a situação do fracasso. Ele
assume a incapacidade precisamente para não se contentar com ela e esforçar-se para tornar-
140
Esse movimento de exteriorização e exposição de uma interioridade intuitiva para o entendimento e o
conceito pressupõe necessariamente a dialética entre potência e entendimento, espírito e aparecimento em Hegel
na Fenomenologia do espírito; ver também já na introdução o processo do em si de se tornar para si e pôr-se
como consciência de si mesmo. HEGEL, G. W. F.. HW03, p. 31, 112.
141
PRITCHARD, Elizabeth Ann. Renouncing knowledge for the sake of ethics: Negative theology and
enlightenment in Theodor W. Adorno. Cambridge: Harvard University, 1999, p. 62-3.
142
Ibidem, p. 137, 313. ―Hence, both Adorno and negative theologians continually invoke our inability to
determine this outside, so as to continually replenish our investment in this outside and thus sustain the reality on
this outside. Ideed, the return on this investiment is potentially infinite – if and only of one is willing to risk the
investment‖, p. 124.
94
95
se capaz. Sem dúvida ele não vai chegar com isso ao ponto de dizer que no fim tornou-se
Adorno não está só no jogo econômico entre fracasso e investimento, antes, numa implicação
risco143.
mistério ―de frente‖, até onde isso é possível - e o cuidado de manter o mistério em suspenso,
não por motivo de resignação, mas, sim, como preparo para novos enfrentamentos que, por
mais insatisfatórios que sejam, são impelidos pela própria necessidade da razão144. O que não
está bem articulado em Pritchard é que a retórica do fracasso luta contra o próprio fracasso e
afirma uma atitude de coragem que seria possível até chamar de ―retórica da valentia‖.
Pritchard chega a sugerir com acerto que a retórica do fracasso pressupõe certa vitória,
143
O importante artigo de Adorno sobre a ópera Moses und Aron de Schönberg começa citando a seguinte frase
de Schönberg: Tapfere sind solche, die Taten vollbringen, an die ihr Mut nicht heranreicht, (16, 454). ―Valentes
são aqueles que realizam ações as quais sua coragem não alcança‖. O que ele aprecia em Schönberg é justamente
a coragem de enfrentar artisticamente a impossibilidade de expressar o absoluto e reprova os que se resignam em
sua própria impotência.
144
WELLMER, Albrecht. ―Metaphysik in Augenblick ihres Sturzes‖. In: HENRICH, Dieter. HORSTMANN,
Rolf-Peter (org.). Metaphysik nach Kant?. Stuttgarter Hegel-Kongreß 1987. Stuttgart: Klett-Cotta, 1988, p. 771.
Nesses artistas Adorno encontra uma capacidade de encarar a morte sem absolutizá-la. Ao contrário de uma
problematização equivocada da questão da morte, vendo no existencialismo e heideggerianismo uma metafísica
da morte, a arte teria a qualidade de tomar da metafísica o impulso para a experiência do espírito, (6, 359-62).
Discutiremos melhor esse problema no item 4.4.
145
Pritchard se baseia em pressupostos da desconstrução nessa interpretação. Discutiremos isso no Capítulo 7.
Ela se baseia num aspecto da retórica do próprio Derrida e possivelmente ignora que ele mesmo também possui
uma certa ambição e valentia. DERRIDA, Jacques. Points de suspension. Paris: Galilée, 1992, p. 149-150.
CARVALHO, Luiz Fernando Medeiros de. Cenas derridianas. Rio de Janeiro: Caetés, 2004, p. 57. Cito a
tradução de Luiz Fernando: ―O filósofo é aquele cujo desejo e ambição são absolutamente loucos [...] Ainda que
não tome a forma expressa em Hegel, o saber absoluto é justamente a verdade do projeto filosófico. Colocar-se
95
96
1- saber discernir como não abordar o mistério, sendo, nesse caso, um saber
3- por isso mesmo saber não regredir a uma reverência piedosa, dogmática ou
refúgio da metafísica na miudeza (6, 400). O segundo motivo é o que mais nos interessa, de
tudo o que a carta expõe. Nesse motivo constata-se a convicção (Überzeugung) de que, no
essencial, não há diferença entre positivo e negativo na teologia. Lembramos que Horkheimer,
na carta anterior, refere-se ao ―teológico‖ como ―positivo‖. Esse motivo é, de acordo com o
neste lugar é simultaneamente projetar o maior controle sobre todos os discursos e ao mesmo tempo renunciar,
abrir mão dele [...] Uma modéstia assombrada pelo diabo é o que me interessa‖.
146
VRIES, Hent de. Theologie im Pianissimo & zwischen Rationalität und Dekonstruktion: die Aktualität der
Denkfiguren Adornos und Levinas. Kampen: Kok, 1989, p. 12, 19, 20. Comprovando a perda de status da
teologia para as ciências modernas, Vries procura analisar as contradições de a teologia ter-se tornado ―mínima‖,
ou ―em pianíssimo‖, conforme a reflexão de Max Weber em ciência como vocação. WEBER, Max. Max Weber:
Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Johannes Winckelmann (org.) 6., erneut durchgesehene Auflage,
Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1985, p. 612. Se há, de um lado, uma marginalidade dos temas e
questões teológicas, eles estão, de outro lado, na base das concepções de racionalidade e também por isso do
―outro da razão‖, do ―inteiramente outro‖. Como o livro foi escrito em 1989, foi um dos introdutores da
retomada da teologia no debate filosófico do final dos anos 80 em curso até o momento.
96
97
―negativo‖ porque, de ponto de vista nuclear, encarando a questão da teologia de frente, sem
falsas soluções – sem nem regredir religiosamente a ela nem subestimá-la à moda positivista –
tornarem-se elas mesmas mínimas, torna-as negativas enquanto positivas; ou seja, o primeiro
teologia, ou ainda, a teologia negativa. O que acentua Adorno, de forma notavelmente irônica,
supor que qualquer negatividade da teologia não abala sua positividade dogmática, o que
para esse tipo de problema a rejeitar a teologia como um todo; ou que isso torna qualquer
positividade da teologia falsa, vazia, sobrando portanto a mais pura negatividade, o que faria
mútua que não torna a positividade estável nem a negatividade meramente vazia.
Não se nega facilmente aqui a positividade da teologia porque tal negação positivista
baseada na crença nos fatos ou a vacuidade metafísica tornar-se-ia a mais pobre das
positividades, quer dizer, a típica certeza inabalável do cético de acreditar poder negar tudo o
que desconhece147. Logo, isso seria a falsa negação da positividade teológica que levaria à
positividade da negação. Veremos mais tarde, ao tratarmos da teologia negativa, que sua
tradição não abala em nada, de início, os princípios do dogma cristão. Contudo, o que ela
147
TILLICH, Paul. Systematische Theologie. Band I. Stuttgart: Evangelisches Verlagswerk, 1956, p. 243.
Adorno, 6, 370.
97
98
Esse trecho ainda deverá ressoar adiante, pois a idéia conserva-se ativa na obra como
emancipatório, ele está pressupondo uma indiferença nuclear entre o positivo e o negativo na
teologia.
Depois dos dois motivos, Adorno diz que sobretudo crê (Vor allem aber glaube ich),
que tudo o que é experimentado como verdadeiro exibe ―luz‖ (Licht) por carregar o reflexo
―daquele outro‖ (jenes anderen). A frase soa ingênua e quase não reconheceríamos o filósofo
frankfurtiano se não houvesse o entremeio: isso ocorre nessa experiência do verdadeiro não de
forma cega, mas no movimento do conceito. Essa experiência do verdadeiro nos fornece
Essa frase é sem dúvida uma das confissões mais francas de Adorno, mas não é a
Mínima Moralia, 4,153. Ela prova que Adorno não é um pessimista incurável que se basta na
148
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1998, p. 129. Logo,
Habermas está muito equivocado ao declarar que Adorno e Horkheimer se entregaram a ―um ceticismo
desenfreado perante a razão‖. Mas tampouco não nos autoriza a pensar que ele pressupõe certos critérios
normativos, como quer Finlayson. FINLAYSON, James Gordon. ―Adorno on the Ethical and the Ineffable‖.
European Journal of Philosophy, Volume 10, Issue 1, pp. 1-25.
98
99
especialmente 10.2, 567,770). Por causa de momentos como esse é necessário reformular o
administrado.
Sabemos que esse mistério, ao dar a luz da experiência do verdadeiro por meio do
movimento do conceito, em outras palavras, pela atividade da razão, é mais enigmático ainda
fortalece, não diminui a necessidade fiduciária da verdade, pelo contrário, procura torná-la
mais definida e delineada em suas fronteiras. Esse mistério fortalecido por ter sido enfrentado
pela atividade da razão fortalece a própria razão, pois é nesse enfrentamento entre razão e fé
Essa dialética entre razão e fé mediada pela verdade do mistério sugere uma estranha
elogio a Tomás de Aquino já analisado, feito por Adorno em 10.2, 613), mesmo que dentro de
refinamento corretivo da duplicidade das duas categorias no plano materialista. Logo, sem lei
reconhecível, ainda que sua estrutura tenha se modificado deveras mas sem deixar de manter
algumas correlações decisivas149. A diferença decisiva está no fato de que tal fé negativa não
razão ainda mais valorizada e necessária ao reconhecer e desafiar seus próprios limites. A fé
149
CARLSON, Tomás A.. Indiscretion: finitude and the naming of God. Chicago, Ill.: University of Chicago
Press, 1999, sobre a relação entre pensamento e sentimento religioso, especialmente em Hegel, p, 30, 99-102.
Mais uma vez, é Hegel que faz a mediação histórica desse processo.
99
100
ligada à luz da razão, diferentemente de uma tendência mais ortodoxa e institucional da igreja
―Tomar o touro pelos chifres‖ ―por amor à verdade‖ são expressões que refletem
exatamente o que eu quero dizer com ―retórica da valentia‖, carregando forças heróicas e
trágicas. Se é a verdade que fortalece a razão e vem do mistério, enfim, comprova a razão do
mistério e o mistério da razão, é por amor à verdade que é preciso enfrentar o touro – o
mistério da teologia – e segurá-lo pelos chifres – não se deixar levar por desejos de segurança
prova cabal de derrota diante do dragão do niilismo. Isso só deve ser feito por amor àquela
verdade que é o reflexo desse mistério. No fundo, enfrentar o touro é uma decisão trágica por
amor ao próprio: até mesmo o ato filosófico mais trágico é estruturalmente reflexivo.
O aspecto trágico não advém nem de uma segurança doutrinária conquistada por
devoções ascéticas nem pelo vazio de sentido e fundamento moderno, antes, da suspensão que
razão crítica – mantém-se negativo, tornando o niilismo que as ressacas trágicas carregam não
Em seguida, na mesma carta, Adorno nos presenteia com mais uma grande confissão.
Esse enfrentamento ousado e trágico não precisa estar explícito no texto. É da própria
natureza dessa verdade teológica que ela se torne invisível. Por isso mesmo, devemos lidar
com ela não só de forma explícita como ele algumas vezes o fez, mas preferencialmente de
100
101
modo implícito, respeitando a verdade de sua invisibilidade. Isso certamente não quer dizer -
depois de tanta confissão e declarações tão claras de estranha ―fé‖ e ―amor‖, em contradição
que simplesmente não há nenhum aspecto teológico em Adorno. Ao contrário, o que Adorno
está explicitamente observando é que ele pode habitar o texto de modo implícito para que se
respeite seu próprio estado de desaparecimento que, porém, não desaparece, pelo contrário,
assim que corroboraremos com sua verdade. Se a verdade teológica torna-se invisível e torna
senão Adorno não confessaria sua crença racional na revelação que permite
150
ALMOND, Ian. ―Derrida and the Secret of the Non-Secret: On Respiritualising the Profane‖. Literature and
Theology. 2003, 17(4), pp. 457-471. Embora o artigo tenha como objeto a obra de Derrida, serve como exemplo
do fenômeno de ―remistificação‖ de algumas teorias contemporâneas ao lidar com questões teológicas,
especialmente no caso das categorias do mistério e do segredo.
101
102
a natureza, e por outro lado, quanto mais a razão emancipatória enfrenta o mistério, mais
invisível ele se torna, logo mais débeis e decisivas (menos acessível e mais coerente com sua
essência) se tornam a teologia e a metafísica, mas também mais dignas elas provam ser de
solidariedade no instante de sua queda, queda essa que nunca alcançará o ―solo‖, o limite, o
fim.
Portanto, chegamos à conclusão de que o ―instante‖ dessa queda é nada mais nada
menos do que a ―eternidade‖ da modernidade, por assim dizer. Por mais infinitamente
de sua verdade, cada vez mais misteriosa. Será que existe relação causal entre o aumento de
configura a tensão entre história e redenção (10.2, 623). A história quer mas nega em si
mesma a redenção pois não pode, logicamente, negar a si mesma. Tanto o aumento tecnocrata
em suspenso151.
151
A existência do mistério se dá por causa da realidade não conciliada entre homem e natureza. Por isso
Scholem afirma que a mística é um estágio posterior na fundação das religiões monoteístas. Esse antagonismo
fundamental se reproduz na oposição entre teologia, filosofia e arte versus ciência. No capítulo 5 e 6 essa
problemática da mística e da teologia negativa será finalmente contextualizada. Até lá, peço ao leitor paciência.
Primeiro estamos extraindo a necessidade de abordar tais questões na obra de Adorno.
102
103
Podemos observar que há um traço enigmático nessa equação crescente que só faz
aumentar o mistério da teologia ao minguá-la, tornando-o inclusive cada vez mais temível,
desafiando cada vez mais a razão, somado ao instante sem fim de sua queda, tudo isso no
força exceder-se a si mesmo nisso. É, porém, justamente esta transcendência que a mim
parece apreensível somente como teológica, justamente porque tanto eu como o senhor
desaparecer, pois eu, no entanto, acredito também que o que desaparece é ele mesmo
essencial. Como já foi dito, tudo isso é somente balbucio, mas talvez juntos consigamos
152
HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Band 17. Briefwechsel, 1941 – 1948. SCHMID NOERR,
Gunzelin (org.). Frankfurt am Main: Fischer, 1996, p. 163-4. ―Es will mir scheinen, als ob die Hegelsche Kritik
an Kant erst recht gilt, wenn die Lehre von der Identität fallen gelassen wird. Gerade wenn das Endliche in seiner
Endlichkeit, jener Nichtigkeit, auf die Sie alles Gewicht legen, ganz ernst genommen wird, zwingt es dazu, sich
selber zu übersteigen. Es ist aber genau diese Transzendenz, die mir nur als theologisch faßbar scheint, eben
gerade weil ich wie Sie nicht annehmen kann, daß das Wesen des Verschwindenden im Entstehen und Vergehen
liegt, weil ich aber ja auch glaube, daß das Verschwindende selber wesentlich ist. Wie gesagt, all das ist nur
Gestammel, aber vielleicht wird es uns zusammen gelingen, etwas anderes daraus zu machen.‖
103
104
contra o absoluto idealista ou a abstração racionalista, assim como o absoluto teológico. Mas
se levarmos realmente ―a sério‖ (ganz ernst) essa finitude, ela excede a si mesma. Mais uma
vez, Adorno reforça que, quanto mais materialista se tente ser, mais tal materialismo
reencontra o seu oposto, algo como ―os extremos opostos se tocam‖, lógica semelhante à
que o finito em sua finitude excede a si mesmo é a meu ver belamente contraditória, pois o
finito é precisamente o que não excede. Mas, ao se nulificar, perde sua determinação por
querer determinar-se. É essa contradição sintomática que Adorno vê num materialismo não-
dialético em relação com a teologia: ele positiva sua própria finitude. O dogma da
Adorno diz, colocando-se ao lado do amigo, que não pode admitir a transcendência
teológica porque a essência do que desaparece não concorda com o que é dito pela teologia a
está no movimento natural do aparecer e desaparecer. A frase de Adorno, que é sem dúvida
confusa, como ele mesmo confessa, justapõe duas conjunções causais (weil) de modo que a
1- Por que não admitimos que a transcendência teológica existe como tal a
153
ZEDANIA, Giga. Nikolaus von Kues als Interpret der Schriften des Dionysius Pseudo-Areopagita. Bochum:
Univ., Diss., 2005, p. 42. O paralelo com Nicolau de Cusa é pertinente pelo fato de se dar justamente entre o
finito e infinito, tempo e eternidade, atividade e passitividade, relativizando uma oposição estanque diante da
grandeza sem medida de Deus. CUSA, Nicolau de. A visão de Deus. Lisboa: Caloustre Gulbenkian, 1998, p. 171.
A coincidência dos opostos no âmbito da infinidade é contraditória, mas a infinidade divina mesma ultrapassa a
contradição que causa: ―Essa coincidência, todavia, é a contradição sem contradição, assim como o fim sem fim‖,
p. 181. Para a relevância deste conceito nos estudos de religião, WASSERSTROM, Steven. Religion after
Religion. Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 67-86, no capítulo ―Coincidentia Oppositorum: An
Essay‖. Para uma correlação entre Adorno e Cusa, FINLAYSON, James Gordon. ―Adorno on the Ethical and the
Ineffable‖. European Journal of Philosophy, Volume 10, Issue 1, Page 1, April 2002, pp. 15-6.
104
105
essencial.
do que desaparece. Logo, a negação da transcendência teológica não serve para negar a
transcendência como tal, antes, serve para introduzi-la de uma outra forma. Por isso mesmo,
Aqui encontramos uma dificuldade que pode ser uma contradição. Certamente quando
Adorno remete à transcendência teológica que é para ele inadmissível, ele está se referindo à
teologia positiva, ao dogma. Mas se ele acredita na essência do que desaparece enquanto
que se trata de uma transcendência negativa. Contudo, acima ele afirma que, de um ponto de
Para tentar dar conta do problema por enquanto, podemos dizer que, de um ponto de
vista central, o dogma da teologia não é importante, apenas a positividade (a ―essência‖) que
negatividade, do processo do desaparecimento sem fim. Não há como deixar de pensar que
essa positividade é uma positividade negativa. O paradoxo é estranho porém inevitável. Ele se
sustenta enquanto tese pelo fato de que é seu contrário o necessariamente inadmissível, em
105
106
Adorno não discorda do amigo, assumindo tal verdade teológica negativa só para si. Na carta
anterior ele vê que as conseqüências de suas ―intenções teológicas‖ são as mesmas que as do
seu gesto se assemelha mais à conciliação – conclamando para que pensem juntos - do que a
uma diferença de posição fixa. Podemos lançar uma hipótese razoável: à medida em que
foram se aproximando, Adorno foi pouco a pouco influenciando o amigo, até que Horkheimer
terminou também por revelar, em comum com o amigo, uma espécie de teologia negativa154.
teológica‖155. Foi por esse motivo que Adorno se aproximou inclusive de Tillich. Horkheimer,
como segundo examinador do trabalho de Adorno sobre Kierkegaard, afirma que o autor
―expressa uma convicção teológica fundamental que corresponde a uma intenção filosófica
radicalmente diferente da minha, que se sente nos meandros de cada frase‖156. Essa declaração
contrasta radicalmente com os textos e entrevistas de Horkheimer nos seus últimos anos de
posteriormente Estados Unidos, houve uma negociação paulatina entre Adorno e Horkheimer
154
É o que Horkheimer declara explicitamente, no final da entrevista para a revista Spiegel, número 88 de 11 de
Agosto de 1969, por ocasião da morte de Adorno, na p. 109: ―HORKHEIMER: Ja, Er hat immer von der
Sehnsucht nach dem ‗anderen‘ gesprochen, ohne das Wort Himmel oder Ewigkeit oder Schönheit oder sonst was
zu benutzen. ... SPIEGEL: Das ist eine negative Theologie, nicht wahr? HORKHEIMER: Ganz richtig, eine
negative Theologie, aber nicht negative Theologie in dem Sinn, daß es Gott nicht gibt, sondern in dem Sinn, daß
er nicht darzustellen ist‖. Como se sabe, a „saudade do inteiramente outro― é um motivo que tornou-se intrínseco
à filosofia de Horkheimer. Curiosamente, ele insiste que a teologia negativa de Adorno não ocorreria no sentido
da falta de existência de Deus, antes, da impossibilidade de sua apresentação, isto é, como veremos adiante,
parece ser precisamente o caso da teologia negativa tradicional. Essa extrema semelhança, visível na entrevista,
não deve ser superestimada, mas tampouco subestimada. Veremos adiante que há na teoria crítica uma
secularização da teologia negativa.
155
WIGGERSHAUS, Rolf. A escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio
de Janeiro: Difel, 2002, p. 123.
156
HORKHEIMER, Max. Bemerkungen in Sachen der Habilitation Dr. Wisengrund, fevereiro de 1931, em Akte
Theodor Adorno. Apoud WIGGERSHAUS, Rolf. Ibidem, p. 124.
106
107
Adorno pela ―irrupção do absoluto‖ sem queimar etapas críticas, tal como se apresenta em
introdução158. Essencial para nós é o final da décima e última discussão de 5 de abril de 1939
intitulada ―Verhältnis von Tatsache und Theorie (III): unabgeschlossene Dialektik oder
negatividade determinada?‖).
idealista. O senhor me objetou que nada pode ser dito sobre o conceito de verdade se eu
157
WIGGERSHAUS, Rolf. Ibidem, p. 101, 189.
158
HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Band 12. Nachgelassene Schriften 1931 - 1949 ; 1/5. Vorträge
und Aufsätze, Memoranden. Aufzeichungnen und Entwürfe, Poetische Versuche, Diskussionsprotokolle.
Frankfurt am Main: Fischer, 1985, p. 436.
107
108
diante disso, eu não posso deixar de dizer abertamente que uma formulação do conceito de
entre materialismo e idealismo, examinando o que cada corrente filosófica levanta como
pressuposto mais importante. Horkheimer questiona o perigo de esse princípio social não
e não é uma entidade homogênea161. Adorno responde que nem o conceito de transcendental
nem o de empírico podem ser hipostasiados, pois já em Kant o que ocorre a priori só existe
em relação com a experiência, e Hegel, finalmente, questiona uma oposição estanque entre
forma e conteúdo162. Finalmente, Adorno chega a uma formulação mais sintética dizendo que
a verdade não existe em outro lugar senão no produzir-se e reproduzir-se recíproco de fato e
quando estamos tentando nos afastar desse pensamento da origem ou da constituição primeira,
159
HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Band 12, p. 492, ―HORKHEIMER: ... Wenn Sie aber die
Wahrheit nicht in Denkkategorien bestimmen, was heißt dann Wahrheit? ADORNO: Den Denkbegriff der
Wahrheit glaube ich als idealistisch kritisiert zu haben. Sie halten mir nun entgegen, daß ich über den Begriff der
Wahrheit nichts sagen könnte, wenn ich ihn nicht in Denkkategorien faßte. Nun meinen wir dabei
wahrscheinlich im Augenblick mit Denkkategorien etwas Verscheidenes. Aber wie es auch damit sich verhalte,
ich kann meine Meinung nicht hinterm Berg halten, daß eine Formulierung des Begriffs der Wahrheit ohne einen
bestimmten Begriff von negativer Theologie unmöglich ist.‖
160
HORKHEIMER, Max. ibidem, p. 483-4.
161
HORKHEIMER, Max. ibidem, p. 484-5. ―HORKHEIMER: So wenig wie die von uns im Eingang kritsierten
Positionen ist auch die der Gesellschaft zu hypostasieren.‖
162
HORKHEIMER, Max. ibidem, p. 485. ―ADORNO: Die Begriffe Tranzendental und empirisch sind selber
Hypostasierungen von Teilmomenten, die bereits falsch sind ... Die Wahrheit besteht in nichts anderem als dem
wechselseitigen Sich-Produzieren und Reproduzieren von Faktum und Konstituition. Es gibt kein―Erstes‖. Das
Erste ist insofern bereits eine Verdinglichung, als es von dem inhärent ‗historischen‘ Charakter der Wahrheit
abstrahiert... ‖
108
109
tal dificuldade teórica retorna. Esse tipo de argumentação é parte integrante de uma crítica da
metafísica bem elaborada, com a qual estamos hoje mais bem habituados, mas na época, em
1939, ela continha novidade em meios marxistas e materialistas. A ―verdade‖ está num
produzir-se recíproco, mas ela não se fixa em nenhuma das duas instâncias, mantendo-se
tautológica: was heißt dann Wahrheit?. Se não se responde a questão ―o que é a verdade‖, se a
verdade não pode ser articulada por meio de categorias, Horkheimer, perplexo, insiste
ingenuidade de Horkheimer, é, a meu ver, uma tautologia que esconde muito conteúdo. Um
pensamento que torna a verdade totalmente indeterminada pelo seu discurso corre o perigo de
fugir das questões principais ao se perder na complexidade das formulações que erigiu.
Adorno procurou não hipostasiar nenhuma categoria como princípio, mas tornou com isso o
conceito de verdade algo difuso e por demais impreciso. Dizer que a verdade está na relação
recíproca entre empírico e transcendental é válido, mas não é tudo. Tal oposição e
reciprocidade não esgota em si o conceito de verdade. Adorno pensou uma forma válida de
lidar com tal oposição, mas com isso só manteve em suspenso a questão da verdade. Logo,
109
110
delas, dando o problema por resolvido. O desafio da filosofia é pensar o impensável, e não
fetichizá-lo ou hipostasiá-lo163. A provocação foi bem feita e não poderia ter incitado Adorno
de outra forma.
Adorno responde observando primeiro que ambos podem estar pensando algo
justamente, categorizar a verdade, e nesse sentido ela deveria ser mantida em sua obscuridade
se não encontrar formulações mais aceitáveis. Mas, por outro lado, a filosofia não pode fugir
desse tipo de questão, mesmo correndo riscos. Adorno não deixa claro o que entende por
resposta, e era necessário apresentar algo mais rápido e contundente. Diante da aporia de não
poder dar uma resposta à altura da questão e ao mesmo tempo não recusar a provocação,
Finalmente, com o uso da expressão Meinung nicht hinterm Berg halten - literalmente,
não manter a opinião atrás da montanha, que significa, ―não posso deixar de dizer
teologia negativa.
A expressão possui uma função retórica específica: confissão sob pressão, difícil de
ser retirada, mas, por outro lado, igualmente voluntária. Adorno não diria isso se não fosse
pressionado e provocado, mas, diante dessa situação, exibe voluntariamente tal ―opinião‖.
Sendo provocado, exibe a ―opinião‖ com o peso de uma escolha inevitável. Sem um
163
Numa famosa passagem fica mais claro por que Adorno não se limita a conceitos ou ―categorias do
pensamento‖, mas também não os nega. A verdade se coloca como o oprimido, desprezado e recusado do
conceito. Mas a filosofia não sobrevive sem a utopia do conhecimento, que é de apreender pelo conceito o ―sem
conceito‖. Para não falsificar a verdade, não pode tornar uma coisa igual à outra. Se não houvesse uma relação
complexa e tensa da verdade com o conceito, não haveria verdade (Adorno, 6, 21), ―Nicht die einfachste
Operation ließe sich denken, keine Wahrheit wäre, emphatisch wäre alles nur nichts. Was aber an Wahrheit
durch die Begriffe über ihren abstrakten Umfang hinaus getroffen wird, kann keinen anderen Schauplatz haben
als das von den Begriffen Unterdrückte, Mißachtete und Weggeworfene. Die Utopie der Erkenntnis wäre, das
Begriffslose mit Begriffen aufzutun, ohne es ihnen gleichzumachen‖.
110
111
encontrando-se numa situação sem saída, a resposta expõe retoricamente uma inevitabilidade.
Sem teologia negativa, o conceito de verdade é impossível de ser pensado. Sem teologia
Não há como prescindir da teologia negativa. A teologia negativa é a única saída para pensar
o conceito de verdade. Ele parece dizer: não posso esconder isso, não vou me dar ao luxo de
deixar essa inevitabilidade oculta. Diante dessa provocação, não tenho como evitar dizer o
De qualquer modo, o que foi revelado mantém-se, como não poderia deixar de ser,
num mistério. Afinal, o que é, para Adorno, ―teologia negativa‖? Mais ainda, o que ele quis
dizer com ―um determinado conceito de teologia negativa‖? Pressupõe-se, sem dúvida, que
enfim, ao centro de nosso problema. Não vamos encontrar resposta fácil para essas duas
perguntas. Adorno manteve o que disse nessa discussão sem desenvolvimentos. Para ser mais
exato, a teologia, para Adorno, não é um problema em que ele iria se deter164, muito menos a
questão da teologia negativa, que é um assunto ainda mais específico dentro da teologia. A
relação à teologia‖, deve permanecer, em geral, implícita nos textos. Na frase daquela carta
ele afirma que não é preciso dar a esse tema um tratamento explícito, mas o que realmente
164
TÜRCKE, Chistoph. ―Adornos Inverse Theologie‖. In: ETTE, Wolfram. Adorno im Widerstreit: zur Präsenz
seines Denkens. Freiburg: Alber, 2004, Adorno era econômico nas reflexões teológicas e sua ―teologia inversa‖
foi presente enquanto algo que não se deve falar, p. 96.
165
HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Band 17. ―...ohne daß dabei von diesen Dingen auch nur eines
explizit in unsere Text einzugehen brauchte...‖.
111
112
ocorreu foi o fato de que esse tema não foi elaborado, manteve-se quase que totalmente
implícito.
O que estamos procurando analisar em detalhe nesse capítulo são os poucos, mas
preciosíssimos rastros que Adorno deixou a respeito. E pelo que estamos percebendo, apesar
da falta de elaboração direta, eles não são tão raros assim, nem vagos e desinteressantes, pelo
contrário, observa-se que estão sempre exibindo uma situação de alta intensidade e desafio
parte do autor. E, na pouca quantidade que juntos somam - se compararmos com toda a obra –
contém cada um muita informação, muitos detalhes e muitos problemas, que foram ainda,
Nossa proposta é, concluindo, nem hipervalorizar tais rastros nem subestimá-los. Sem
determinante - tanto para a obra adorniana quanto para a discussão no debate filosófico em
torno dessa problemática - dada a importância do assunto e o modo como ele é tratado.
O valor dessas passagens está em lidar com conceitos e questões decisivas para
qualquer pensamento filosófico, que condicionam outros conceitos e questões tão decisivas
quanto (no plano ético e estético, por exemplo). Nesse último exemplo, Adorno faz uma
166
O artigo de C. Türcke é a meu ver o que melhor analisou (mesmo que em somente 6 páginas) e avaliou a
questão, observando que a proibição das imagens recaiu, no caso de Adorno, sobre a própria questão da teologia
como tal. A falta do dito é índice de receio, uma estratégia discursiva ligada a uma época que acreditava a
teologia estar completamente ultrapassada. Logo que alguém começa a formular algo, ocorre um excesso de
intenção (Intentionsüberschuß), TÜRCKE, Chistoph. ―Adornos Inverse Theologie‖. pp. 92-3. Mesmo assim,
Adorno vê no resto de teologia, ou na teologia inversa, um antídoto contra a própria tendência de pessoas
modernas em se fecharem numa suposta razão esclarecida que carrega uma inclinação ao obscurantismo ―pior do
que a velha ortodoxia‖, pois não acredita inteiramente nem a si mesma, quer dizer, trata-se de um niilismo, p. 97.
Adorno, 10.2, 610: ―Darin jedenfalls stimmen sie mit der Apologetik des achtzehnten und frühen neunzehnten
Jahrhunderts überein, daß sie trachten, durch rationale Reflexion deren Gegenteil zu beschwören; nun jedoch
durch rationale Reflexion auf die ratio selber, mit einer schwelenden Bereitschaft, auf diese loszuschlagen,
einem Hang zum Obskurantismus, der viel bösartiger ist als alle beschränkte Orthodoxie von dazumal, weil er
sich selbst nicht ganz glaubt.‖
112
113
menos importante em Adorno. Por isso, seria também arriscado alguém defender o contrário,
quer dizer, que a teologia, e em especial a teologia negativa, tem pouca relevância na
totalidade estrutural da obra. A meu ver, não há como negar sua imensa importância no
pensamento adorniano, difícil é conseguir fazer uma interpretação razoável de seu papel. Essa
é a nossa tarefa, em certa medida, na análise da obra como um todo, mas especialmente no
encontramos poucas passagens a respeito de sua ligação com a teologia, embora decisivas,
menos ainda encontramos aquelas relativas à teologia negativa, embora sejam ainda mais
curiosas.
que a afirmação de uma certa teologia, a teologia negativa, ou melhor, uma teologia negativa
Geralmente nessas intermediações teóricas também ocorre uma certa defesa da metafísica.
113
114
empirismo e racionalismo, que desemboca na questão da metafísica (PT, 162) 167 . Adorno
Nietzsche. Por isso ele se propõe examinar o porquê dessa ―resistência contra o uso do
um deus pessoal ou a um elemento transcendente existente. Não é uma ciência, antes, procura
pensar algo ―atrás do mundo‖, ou um outro mundo oculto, acentuando a diferença entre
essência e aparência. Se a religião possui uma essência divina e absoluta, a metafísica pensa
no problema da relação entre esse sentido anterior (Problem des Verhältnisses dieses
essência precisa se revelar de alguma forma, sendo a função da metafísica pensar como ela
das ciências, mas não afirma tal mundo diferente como existente, ao contrário dos teólogos
(PT, 163). A metafísica não postula a divindade e não dá a ela uma forma determinada como
ninguém ou de nada (Niemandsland) vem da confusão com a teologia. Mais adiante, ele
167
PT, 161-2, ―Gerade unter dem Begriff Metaphysik mir etwas zu denken, fiel mir schwer, und von daher
möchte ich Ihnen doch wenigstens soweit helfen, daß Sie verstehen können, was ich meine, wenn ich von dem
metaphysischen Charakter des Begriffspaares Spiritualismus und Materialismus rede, und daß Sie überhaupt mit
dem Wort Metaphysik eine Vorstellung verbinden. Ich glaube, daß für den, der sich naiv mit Philosophie
beschäftigt, gerade dieser Begriff eine besondere Schwierigkeit hat.‖
168
―Sie ist übrigens in der Wissenschaftsgeschichte haargenau ausgedrückt worden durch die Feindschaft, die
die founding fathers der Soziologie, nämlich Auguste Comte und bereits desses Lehrer Saint-Simon, gegen den
Begriff der Metaphysik gehabt haben. Ich errinere mich noch deutlich daran, das ich diese Schwierigkeit gefühlt
habe, wie ich als Junge angefangen habe, Nietzsche zu lesen, bei dem nun ständig auf der Metaphysik
herumgehackt wird. Ich will versuchen, gerade die Schicht zu treffen, in der die Resistenz gegen den Gebrauch
dieses Begriffes liegt, und zugleich auf ganz elementare geistige Erfahrungen von mir rekursieren.‖
114
115
factualidade. Mas, ao invés de tais princípios serem já decisivos em relação às pessoas, são,
secularização‖ (... die man vielleicht als die einer permanenten Säkularisierung bezeichnen
(die eigentlich Theologie ist eher eine postmetaphysische Phase des Bewußtseins, PT, 164).
Portanto, a metafísica lida, antes de mais nada, com as questões de Deus, liberdade,
existe algo e não o nada?‖ (PT, 165). A fixação dessas questões em dogmas é algo posterior, e
a metafísica moderna não fez mais do que retornar a esse estado anterior de questionamento,
mas já com a herança decisiva da moral teológica, como nos ensina Nietzsche.
Por isso há uma suspeita contra a metafísica, e por extensão contra a própria filosofia,
uma suspeita que não existe, por exemplo, contra a teologia: a de que ela esteja falando do
reino das nuvens. Adorno se refere aqui a Aristófanes e sua ironia contra a filosofia socrática,
assinalada pela utilização a seu respeito do termo Wolkenkuckucksheim, que quer dizer algo
como um mundo de fantasia, de uma realidade totalmente distante, sempre ligado à idéia de
alheamento, distração, desatenção etc. Adorno não disfarça uma defesa da metafísica,
precisamente nesse aspecto, ao afirmar que ela possui a qualidade de não se contentar com o
que é, nem dizer que o que não é existe (PT, 163). Se religiosos precisam da segurança de
Sabemos que, na maior parte da obra, Adorno ataca o idealismo da metafísica, seu
abstração burguesa, tudo isso configurando-se como a grande ilusão das alturas especulativas.
115
116
Mas impressiona que nesse momento ele esteja, sem tocar nesse assunto, pacientemente,
Nela ele é capaz de soltar duas longas frases que considero decisivas para o
entendimento de sua obra, e que dificilmente veremos citadas, muito menos analisadas, pela
scholarship. Nelas está mais clara a relação com a metafísica do que no tão estudado livro
como ocorre nas polêmicas de Nietzsche, que aliás não diferenciam lá tão minuciosamente
entre teologia e metafísica, então ele possui sim seu fundamento também numa situação
Entfremdete] que vive de nosso próprio pensar [Denken], a metafísica realiza enfim tanto
contra a teologia quanto contra a ciência o momento – eu quero me expressar de novo com
século XIX, nem na primeira metade do século XX, época de Freud, já é hora de repensar a
crítica à metafísica. Não é mais possível destratá-la como se fez nesse passado recente de
Adorno. A nova situação exige que se reconheça nela um ―fundamento‖ (isto é, que ela tem
sua razão de ser), talvez surpreendente, mas legítimo, mesmo que numa época ―espiritual‖
169
PT; 167-8, 8 de janeiro de 1963, ―Wenn man in der Situation von heute mit dem Begriff der Metaphysik nicht
mehr so umspringen kann, wie es in den Polemiken von Nietzsche geschieht, die übrigens zwischen Theologie
und Metaphysik gar nicht so schrecklich fein differenzieren, dann hat das doch auch seinen Grund in der
vollkommen veränderten geistigen Lage. Gegen die Heteronomie, gegen das unserem eigenen lebendigen
Denken Entfremdete, also sowohl gegen Theologie wie auch gegen die Wissenschaft von den Tatsachen
realisiert die Metaphysik das Moment, ich will mich wieder vorsichtig ausdrücken, des freien, des nicht
gegängelten, des nicht reglementierten Gedankens.‖
116
117
Isso é o que Adorno nesse momento assevera. Precisamos agora tentar entender o que
essa frase afinal significa, se não quisermos ir pelo caminho mais fácil e pensar que ele está
sendo menos radical e rigoroso em sua crítica à metafísica só por que gostaria de incentivar
nos seus alunos maior interesse pela leitura dos clássicos da filosofia; ou, pior ainda, pensar
que Adorno no fundo nunca foi um grande crítico da metafísica - somente um metafísico a
mais na lista dos desqualificados para a discussão atual – encontrando-se aí uma prova cabal
de sua falta de radicalidade. Adorno estaria provando, portanto, que nunca entendeu Nietzsche.
heideggeriana, parece-me que precisamos nesse momento prestar atenção a essa correção da
liberdade da vontade, virtude, imortalidade da alma, Deus único como causa primeira,
arquiteto e criador do mundo, pecado, moral etc.- todos esse elementos estão profundamente
presentes nas idéias mais ―puras‖ e abstratas dos sistemas e especulações filosóficas.
chegou a apelar para o sensu allegorico da bíblia, logo desacreditado. Esse tipo de apelação
fazia crer que a teologia agonizava em meio a sua derrota. Contudo, o elemento permanente
do mundo transposta para uma construção sistemática 170 , o que implica dizer que,
basicamente, sob o pretexto de uma grande mudança, eles estariam repetindo no essencial a
170
NIETZSCHE, F. Werke, Menschliches, Allzumenschliches, t. 1, p. 520.
117
118
uma libertação da metafísica – a ser feita pelos maiores iluministas –―Die Aufgeklärtesten‖ –
através, sempre, de um olhar retrospectivo a ela171. Ele prevê, num futuro sem entraves morais,
até um ceticismo tão grande em relação à metafísica que, mesmo se a ciência provasse algo de
suas esperanças, a humanidade não estaria mais em condições de lhe dar crédito172.
influência que, de qualquer forma, fez parte de um processo histórico do qual ele já era
contemporâneo, e por isso observado por ele. A partir daí, Nietzsche foi ousado o bastante
para afirmar que ―a metafísica, a moral, a religião, a ciência‖ são formas diferentes de mentira,
e que a propriedade do homem de dominar a realidade por meio da mentira é ela mesma uma
originário: quanto mais originária uma verdade pretende ser, mais podemos reconhecer que se
Ataques à metafísica como esses, em especial o último, estão muito presentes na teoria
118
119
algo mais que o existente, e a liberdade do pensamento contra a alienação que o assombra,
não devem ser descartadas junto com a crítica à substancialização, identidade, princípio
crítica à verdade subestima todo o conceito de verdade, em vez de precisar melhor onde
moderno, mas também algo que nem deveria ser desejado, principalmente se não se examina
doutrina cristã e impõe, já em suas origens platônicas, uma separação artificial entre mundo
cristianismo e o platonismo estejam por trás do rigor da moral kantiana e da presença absoluta
do espírito hegeliano na história, não há como contradizer. Contudo, tal operação genealógica
comete o grave erro de confundir a metafísica com a teologia e colocar tudo no mesmo lugar
como algo a ser superado. Uma vez reconhecendo a herança teológica da metafísica, em
seguida nossa tarefa é diferenciá-la, e examinar onde está o seu avanço emancipatório, sem
dúvida vasto.
dos maiores avanços está em filtrar o que a teologia possui de mais precioso. A contribuição
herdar estruturas morais da teologia, já que isso é justamente o que a metafísica fixa de
119
120
―experiência metafísica‖) apesar de ela herdar junto, como erva daninha, o rigor moral, seu
grega krinein), então a interpretação genealógica não pode generalizar e descartar nem a
metafísica, por causa de sua herança teológica, nem mesmo a teologia. Eis então, para nossa
surpresa, um elemento em comum entre Nietzsche e o positivismo, que não se restringe ao seu
biologismo, mas é em grande parte causado por ele: uma pressa descuidada em ―destratar‖ e
literatura em sua relação à metafísica e à teologia. Adorno soube, sem renegar toda a sua
dívida para com Nietzsche, elaborar uma visão raramente lúcida dessa problemática difícil
para o pensamento moderno. O que ele disse em 1963, na aurora de toda a onda do pós-
diferente, a mesma situação que leva tantos a destratarem-na. Que situação é essa, afinal?
Parece-me que o texto responde: no contexto geral de culpa e cegueira que leva à diversão e
ao trabalho alienados, em que a ideologia se dissipa para encarnar a própria realidade, reina a
pensar acaba se tornando presa dessa condição e periga em reproduzi-la em sua atividade.
tutelado. Seu desejo de pensar para além das aparências, e de conceber um outro mundo,
da própria práxis reflexiva. Mesmo que a metafísica tenha ela mesma limitado seu potencial
120
121
no mesmo processo em que a fez aparecer, a força dessa práxis instaurada possibilitou,
posteriormente, sua própria crítica. Negar seu legado por completo tornar-se-ia, ao contrário,
Contudo, mesmo Nietzsche não cai por completo nesse erro, quando afirma a
necessidade de olhar a metafísica retrospectivamente. Tal erro é muito comum nas tendências
121
122
Nosso interesse pela aula ou Vorlesung de Adorno não termina no trecho sobre a
metafísica. Toda essa abordagem da aula servirá para nós como preâmbulo de uma reflexão
de pessoas acredita que, se elas escutam somente que o materialismo é também uma
metafísica, então que esteja tudo bem, já está tudo decidido, pois se o materialismo é
papel nas controvérsias entre meu velho amigo Tillich e eu, que desde cedo tem uma
por isso mesmo, porque ela é uma teologia negativa -: se Deus está ausente, é necessário
que haja contudo um; então, se não existisse nenhum, logo ele não poderia estar
ausente.176
176
PT, 166-7. ―Es handelt sich da um einen im allgemeinen negativ metaphysischen Begriff; das heißt, er (nota
minha: der Materialismus) leugnet emphatisch jene Hinterwelt! ... Sehr viele Menschen glauben, wenn sie nur
hören der Materialismus sei auch eine Metaphysik, dann sei sozusagen alles gut, dann haben wir‘s ja in der
Tasche; denn wenn der Materialismus auch eine Metaphysik ist, dann ist dadurch das materialistische Denken
und Fragen bereits das hinterweltliche oder überweltliche oder absolute oder transzendente Prinzip
gewissermaßen gerettet. Das ist eine Art der Anschauung, wie sie in den Kontroversen zwischen meinem alten
Freund Tillich und mir eine sehr große Rolle spielt, der von Jugend auf eine gewisse Tendenz hat, die
sogenannte negative Theologie eigentlich deshalb, weil sie eine negative Theologie ist, unmittelbar mit der
schluß einmal sehr prägnat formuliert: wenn Gott abwesend ist, dann muß es doch einen geben; denn wenn es
keinen gäbe, dann könnte er nicht abwesend sein‖.
122
123
O materialismo, como também não podia deixar de ser, é metafísico, até mesmo o
insiste e que precisamos examinar. Ele não nega que seja metafísico, ele nega uma metafísica
positiva e só pode afirmar uma metafísica negativa. A negação da metafísica permanece uma
que não pretende negar a metafísica nem afirmá-la de qualquer outro modo, antes, lembrar a
esquecida diferença entre ser e ente ou seguir o movimento de deslocamento do rastro sem
origem, do rastro do rastro, que seria anterior, seria condição de possibilidade da fixação dos
Nesse momento da reflexão não sabemos se ele discursa sobre o materialismo em geral ou
sobre o seu materialismo. Mas em outros exemplos (ao falar, por exemplo, sobre Hobbes) ele
observa muitas contradições, de modo que o mais provável aqui – o que se comprova na
comparação com as outras passagens - é que ele esteja colocando sua concepção de
sabendo das conseqüências dessa afirmação, o filósofo frankfurtiano aborda sua contradição.
Como um materialismo pode ser metafísico? Só se ele pressupõe como garantido seu oposto,
isto é, um idealismo de fundo, o que implicaria em que ele fosse, na verdade, um falso
materialismo, mantendo apenas a pose. Contudo, precisamos entender que nesse momento
Adorno não se limita a zombar da pose do falso materialismo. O que ele evidencia é, a meu
177
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia, p. 57-63.
123
124
ver, a própria aporia do materialismo. Esse Art der Anschauung (―modo de concepção‖), é, na
brincadeira argumentativa, levado extremamente a sério. Por trás desse raciocínio curioso está
contido o impasse do materialismo e a decisão que vai levá-lo, mais uma vez, à alternativa
Vale aqui uma explicação: para Adorno lidar com mais clareza com o problema, ele
cita um outro ―modo de concepção‖ que desempenhou um ―enorme papel‖ (eine sehr große
Rolle spielt) nas controvérsias entre ele e seu professor e orientador Paul Tillich, um dos mais
importantes teólogos alemães da primeira metade do século XX. Nem todo mundo no Brasil
sabe que Adorno, em sua habilitação, foi orientado por um teólogo, Tillich, para escrever o
livro Konstruktion des Ästhetischen sobre Kierkeggard. Apesar de essa tese de habilitação não
contemplar diretamente nossos problemas, aqui há uma prova de que as questões referentes à
aqui serviu para colocar em jogo o materialismo de Adorno e fazê-lo optar por uma metafísica
negativa em estado de debilidade e em movimento de queda. Mais uma vez, como não
poderia deixar de ser, a questão da metafísica contém em seu cerne a questão da necessidade
da teologia.
Adorno narra que Tillich tinha uma tendência a formular um raciocínio implícito
ligado à teologia negativa. Ei-lo: se Deus está ausente é por que é necessário que exista; se ele
pressupõe o de presença. Dizemos que algo está ausente só por que já existiu ou existe. Se não
existe, não pode estar ausente. Se não existe, nunca esteve presente, logo nunca esteve nem
estará ausente. Para algo estar ausente, é por que já esteve presente, e de um modo ou de outro
124
125
existe. No caso de um Deus único, criador, ordenador e regente do universo, mesmo que Ele
nunca tenha dado provas de sua existência, sua ausência mesma é um sinal de existência.
Sabemos que esse argumento seria no mínimo falso desde Kant.178 Ele presumiria que
a própria concepção de Deus, o maior ser concebível179, determina sua existência, ou seja,
estamos diante da prova ontológica de Deus. Se o maior ser concebível é necessário para que
os outros seres existam, ele é também real. Se é possível conceber o maior e o mais poderoso
de todos os seres, é necessário que ele exista na realidade, pois os outros seres, cuja existência
incondicional ao condicional, seja por outro motivo. A ―ausência‖ deste ser na realidade, na
Mas Tillich não pensa precisamente na prova ontológica de Deus, nem em qualquer
outra, quando ele formula a presença necessária de Deus 181. Os argumentos ou provas de
formular a questão de Deus 182 . Esses argumentos pressupõem sempre Deus como um ser
semelhante a outros reconhecíveis, mas Deus está – bem de acordo com a teologia negativa,
como veremos mais tarde – para além do ser, ou ainda, é o Ser-mesmo (Sein-Selbst), de modo
178
Cf. KANT, Immanuel. Immanuel Kant: Werke. Kritik der reinen Vernunft, t. 4, 539-36.
179
Não quero me ater ao problema lógico e teológico ligado ao argumento ontológico. Para maiores detalhes, ver
MCGARTH, P. J. ―The Refutation of the Ontological Argument‖. The Philosophical Quarterly, Vol. 40, No. 159.
(Apr., 1990), pp. 195-212, sobre o maior ser concebível, ver pp. 196-200.
180
ANSELMO, Santo. ABELARDO, Pedro. Monologio ; Proslogio ; A verdade ; O gramatico; Logica para
principiantes ; A historia das minhas calamidades. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. 118-29,
p. 137. Em Santo Anselmo, representante da prova ontológica, no livro Proslogio ocorre de modo diferente: ―o
ser do qual não se pode pensar nada maior‖ não permite que exista só na inteligência, ele exige a existência pois
um ser que existe é maior do que o que não existe com exatamente as mesmas características. Mas a existência
de Deus não é visível para a alma humana limitada (p. 118), motivo pelo qual ele confessa sua angústia a Deus
por estar em suas próprias trevas e não poder ver a ―luz suprema e inacessível‖, pp. 119-20. Deus está em todo
lugar e toda parte sem estar divido por partes, porém inteiro em todas as partes, mas não está limitado em lugar
nenhum nem no espaço nem no tempo. Resta ao devoto rogar para que Deus permita que ele O conheça e se
aproxime da alegria plena, que é a experiência do paraíso pp. 128-9.
181
WAINWRIGHT, William J.. "Paul Tillich and Arguments for the Existence of God". Journal of the American
Academy of Religion, Vol. 39, No. 2. (Jun., 1971), pp. 171-185, sobre o fato de o método de argumentação
contradizer a idéia de Deus, ver, p. 176.
182
TILLICH, Paul. Systematische Theologie. Band I. Stuttgart: Evangelisches Verlagswerk, 1956, p. 240.
125
126
que não pode ser dito, formulado, descrito, em última instância, razoavelmente pensado. O
pensamento sobre Deus é apenas um momento, insuficiente, da relação do homem com Deus.
Deus é mais do que os seres do mundo e do que o mundo, Deus é transcendente. Contudo,
Deus possui relações com o mundo, e pode ser concebido no mundo pelo homem como
transcendente, como ser infinito183. Nesse sentido, dizer que Deus é um ser e que existe é a
mesma coisa que – assim afirma Tillich num momento especulativo de radical expressão –
negá-lo por ele existir184. O que surpreende nessa idéia é que a afirmação se transforma em
questão de Deus. A questão de Deus se torna possível porque uma consciência de Deus está
sempre presente na questão de Deus. Tal consciência precede a questão 185. Não é possível
questionar sobre algo de que seríamos completamente ignorantes. Por isso é preciso haver
uma consciência prévia de Deus. Há, portanto, uma consciência imediata de Deus da qual o
finitude dos seres. Por isso há uma presença do infinito, do que transcende, no nível teórico (a
ontológico 186 . O argumento ontológico descreve, desse modo, uma relação da mente com
Deus.
183
WAINWRIGHT, William J.. Ibidem, p, 179. TILLICH, Paul. Ibidem, pp. 243-44.
184
ROSS, Robert R. N.. "The Non-Existence of God: Tillich, Aquinas, and the Pseudo-Dionysius". The Harvard
Theological Review, Vol. 68, No. 2. (Apr., 1975), pp. 141-166, sobre a negação de Deus por ele existir, p. 141.
TILLICH, Paul. Ibidem, p. 239.
185
Ibidem, p, 179. TILLICH, Paul. Ibidem, p. 240.
186
WAINWRIGHT, William J.. Ibidem, p, 179. TILLICH, Paul. Ibidem, pp. 241-2.
126
127
Por causa dessa consciência prévia, Deus não pode ser meramente afirmado por essa
mesma consciência, pois ela existe por causa de uma existência transcendente superior à
sobre o qual discorreremos mais adiante - , foi quem pensou a existência de Deus como uma
sorte de ―super-existência‖. Tillich toma de Dionísio essa idéia: Deus é uma super-existência
que contém ao mesmo tempo o nada absoluto, o absolutamente outro, se comparado com as
coisas ordinárias, e a coisa absoluta, por ser a fonte criativa de todas as coisas187.
Há ainda outro ponto herdado da escolástica. A essência de Deus não difere da sua
existência, pois ele está além dessa distinção, sabendo-se que ―além‖ não significa ―sem‖
existência ou essência188. Para Tillich, a existência (ou não) de Deus é uma contradição em
termos, porque sua existência já está implicada na essência e não difere dela, pois, se de Deus
deriva a essência de todas as coisas, não há o que provar ou duvidar de sua existência189.
Chegando ao extremo de sua tese, Tillich afirma que há um valor no ateísmo para o
crente: é precisamente o de não levá-lo a pensar que a transcendência de Deus pode existir ou
não. O valor do ateísmo, portanto, implica uma certa impossibilidade do mesmo: não é
possível negar Deus porque ele está além de afirmações ou negações de existências reais ou
possíveis. A consciência religiosa é intrínseca ao homem; nesse nível, não há o que acreditar
187
ROSS, Robert R. N.. Ibidem, p. 146. TILLICH, Paul. Ibidem, p. 243, há a ameaça do não-ser que leva o
sujeito a ter medo da falta de sentido e a enfrentá-lo com coragem para produzir sentido. Deus é o fundamento e
o abismo que está por trás do medo do não-sentido e da produção de sentido.
188
ROSS, Robert R. N.. Ibidem, p. 148, 158.
189
Ibidem, p. 149, 156.
190
Ibidem, p. 149, 166.
127
128
consciência daquilo que já está determinado por uma consciência prévia, e não uma decisão
Observa-se que a tese é provocativa. Sabendo-se que as provas de Deus foram grande
objeto de ceticismo e por fim negadas tanto pelas religiões quanto pelos ateístas, Tillich pensa
haver uma certa ―supra-existência‖ de Deus para além de provas e até, num certo sentido, de
crença.
Deus todo poderoso, da realidade última, não passa de um conceito puro da razão (e não do
entendimento) se não for comprovado pela experiência, quer dizer, pela percepção humana e
sua intuição empírica191. Para o conhecimento teórico reconhece-se o que é, para o prático, o
que deve ser192. O conceito de Deus, por ser necessário ao conhecimento especulativo e às leis
morais, possui uma função moral e um uso regulativo, mas não possui realidade. Não há,
portanto, teologia da razão, apenas um uso transcendental negativo de noções teológicas que
crítica kantiana. Tillich, contudo, não propõe uma nova prova da existência de Deus, antes,
uma supra-existência inevitável na consciência. Nesse sentido, ele não se situa de todo muito
distante de Kant, para o qual Deus não é existência empírica, mas uma necessidade
pára aqui.
191
KANT, Immanuel. Immanuel Kant: Werke. Kritik der reinen Vernunft, t. 4, 539-36.
192
KANT, Immanuel. Ibidem, , t. 4, 557.
193
KANT, Immanuel. Ibidem, , t. 4, 559.
128
129
A existência de Deus em Tillich é impensável, não pode ser concebida, mas por isso
mesmo ele força, como bom teólogo, esse argumento para pressupor que um outro tipo de
realidade, a transcendente, de alguma forma exista, e exista para além do pensamento humano.
A consciência humana conteria tal realidade em sua estrutura, carrega-a de algum modo com
seus limites, mas não há dúvida de que essa supra-realidade divina exista, independente do
fato de que ela é indemonstrável. Nesse sentido, Tillich passa por cima da possibilidade da
prova, da crença e da mera existência para postular uma supra-existência irrefutável, inegável.
existência divina; o que para Kant é o fio do malabarista, para Tillich é o asfalto mais seguro.
Não é necessária nenhuma prova de Deus porque a consciência necessária que temos dele já é
Deus está acima das condições da realidade, as quais permitem que algo seja provado ou
termos adornianos, simplesmente sujeito e objeto, que não pode ser transposto, ignorado ou
diminuído. O que não se sabe, por mais necessário e perfeito que se conceba, não pode ser
tomado como real: essa sempre foi a grande ilusão da teologia e mesmo da lógica194. Com
194
KANT, Immanuel. Ibidem, , t. 4, 530, 533.
129
130
universidade secular, ignorar as reflexões dos teólogos porque eles partem de pressupostos
falsos. Se uma visão totalmente segura de sua secularidade acredita estar sempre acima de
quem parte de pressupostos diferentes, tal visão já está, por sua vez, criando seus próprios
problema, e não ignorou Tillich, pelo contrário, as controvérsias com seu professor tiveram
um ―enorme‖ papel em seu pensamento, como ele confessa. Faz-se necessário, nesse contexto,
Adorno, como o exibe em seu tom irônico, não concorda com a supra-existência de
Deus, muito menos com um materialismo que acima da imanência termina por não abrir mão
de uma instância transcendente. Se o mundo transcendente está para além da matéria, então o
materialismo, coerente com as leis científicas, poderia não negar a transcendência e assim
tipo de falso materialismo: pelo fato de Tillich não ser ateu, oferece condições para que um
―ateu‖ se ache impossibilitado de negar a supra-existência de Deus justamente por que sua
Por tudo isso o texto de Adorno está se referindo ironicamente a Tillich. Poderíamos
terminar nossa análise com essa conclusão. Mas se anteriormente Adorno afirma que o
conceito de verdade não existe sem um determinado conceito de teologia negativa, e se ainda
assevera que para ele as controvérsias com Tillich foram tão importantes, há algo a mais nessa
ironia; há, penso eu, um duplo direcionamento da ironia. Adorno ironiza a certeza de Tillich,
uma teologia negativa que não muda em nada a positividade dogmática da teologia e ironiza
130
131
também o falso materialista, mas, além disso, ironiza primordialmente o materialista que nega
Por isso, ele retém de Kant a suspensão de qualquer prova da existência ou inexistência de
Deus, e nessa direção Tillich lhe forneceu não motivos para uma crença (inevitável) em Deus,
mas um reforço desse estado de suspensão. Tillich pensou que as provas da existência de
Deus nos introduzem na questão de Deus, e é essa questão, conservando-se sem resposta, que
no materialismo uma metafísica negativa e por conseguinte uma verdade na teologia negativa.
A teologia negativa é por definição apofática, porque, para Adorno, a teologia só pode
ser negativa, sua verdade é negativa. Mas as conseqüências disso são ainda maiores: a
verdade da negatividade da dialética negativa só pode ser entendida por meio da negatividade
teológica. É a teologia, antes de mais nada, que fornece o conceito de negatividade. É ela que
mantém o materialismo, se ele não contrair o mal de tornar-se ele mesmo dogmático, em
estado negativo. Ficará claro adiante que a teologia negativa tradicional, herdada por Tillich,
não sai das fronteiras do dogma – embora o excesso tenha sido, em termos especulativos, e
por conter ingredientes essenciais da mística, provavelmente sua maior ameaça – mas é ela
papel tanto nos fundamentos da crítica à metafísica e da idéia da ―morte de Deus‖ quanto na
Se Deus está ausente, é por que deve haver um. Por mais avançada que a crítica à
metafísica e à morte de Deus tenha um dia estado, hoje ambas sofrem de velhice. Isso não
quer dizer que os teólogos e seus simpatizantes devem comemorar a grande vitória. Está na
131
132
hora de se pensar mais a fundo o estado de suspensão como tal, mal compreendido desde Kant.
Numa perspectiva adorniana, essa suspensão mesmo em Kant ainda não estava
suficientemente desenvolvida, pois foi e é sempre forçada a pender ora mais para um lado ora
mais para o outro. Kant deu, digamos assim, o passo decisivo, mas a partir dele há muito
situação para que seu embate seja de novo, como foi no início do iluminismo, acirrado e
produtivo, sem acreditar em cada extremo isoladamente. Por isso sente-se tanta falta hoje
daqueles que efetivamente não se decidiram, que não podem se enregelar e se colocam no
meio das dificuldades, em vez de evitá-las com crenças inabaláveis ou com o próprio fetiche
do ceticismo.
Não digo isso afirmando uma posição indecisa entre materialismo e teologia, porém a
indecisão no materialismo, tornado negativo. Penso antes naqueles que foram levados ao
materialismo e ao ateísmo por não conceberem mais lugar para a fé dogmática nem para uma
fé religiosa diluída no sincretismo, mas que não fizeram de seu materialismo algo já decidido,
pelo contrário, inseriram a indecisão trágica no cerne do materialismo, e com isso abrem o
drástico é na verdade o agravamento da dúvida e da suspensão. Ele não é uma nova forma de
132
133
Nietzsche sempre nos surpreende, pois se não faltam problemas em suas posições
gaia ciência, ele observa que o cristianismo é mais cético que a própria moral cética, por
colocar a noção de ―virtude‖ num ponto mais elevado, inatingível e ascético. Quando lemos
Sêneca, por exemplo, temos a nítida impressão de que já conhecemos um grau mais elevado
grega, por pensarem estar praticando o ápice da virtude, e também a apreciação de uma série
agora estamos num estágio diferente do cristianismo medieval, podemos lê-lo com os mesmos
olhos que o cristianismo mesmo nos deu para ler os céticos. A crítica à moral em Nietzsche, a
transvaloração de todos os valores, permite uma leitura do cristianismo tão distante e curiosa
metafísica e nossa presente elaboração tardia dessa mesma crítica, podemos ler a falsa
distância de Nietzsche em relação ao cristianismo com outros olhos! Hoje ele nos parece, com
toda a paixão e convicção trágica de sua prosa diante da crença na superação da moral cristã e
totalmente possível, e riqueza histórica, ao vivenciar todas as etapas de um processo que hoje
recebemos pronto e por isso empobrecemos. Nessa experiência, podemos observar o quanto
195
NIETZSCHE, F. Werke, Die fröhliche Wissenschaft, t. 2, p. 124, ―Zuletzt haben wir aber diese selbe Skepsis
auch auf alle religiösen Zustände und Vorgänge, wie Sünde, Reue, Gnade, Heiligung, angewendet und den
Wurm so gut graben lassen, daß wir nun auch beim Lesen aller christlichen Bücher dasselbe Gefühl der feinen
Überlegenheit und Einsicht haben - wir kennen auch die religiösen Gefühle besser! Und es ist Zeit, sie gut zu
kennen und gut zu beschreiben, denn auch die Frommen des alten Glaubens sterben aus - retten wir ihr Abbild
und ihren Typus wenigstens für die Erkenntnis!‖
133
134
teologia, dos medievais a Tillich, tornam-se ainda mais estranhos e curiosos! Se, para
Nietzsche, o cristianismo parece ser mais cético do que os céticos, os textos teológicos, em
especial as sugestões abertas pela teologia negativa e mística, parecem sugerir, para um olhar
vale observar que Adorno dá a essa prova um valor bem maior do que o esperado para um
materialista, tendo como pano de fundo uma visão não menos inesperada da morte. Em uma
entrevista histórica feita por Horst Krüger em 1964 intitulada ―ETWAS FEHLT... ÜBER DIE
O princípio de realidade na teoria deve prestar contas dos seus limites, dos limites
humanos. Mas tanto Adorno quanto Bloch não param nesse lugar. Entre os princípios básicos
fascismo, que leva mesmo o indivíduo para a morte, liquidando o eu e a razão, e misturando
134
135
Sem ignorar o princípio de realidade, a morte, o fim, pelo contrário, levando-o ao seu
limite, quer dizer, ao limite do limite, uma negação da negação que não se torna pura
positividade nem niilismo nem absolutização da morte (feita pela ontologia existencial e pelo
devemos dar à morte uma primazia ontológica, pois isso significa, existencial e politicamente,
individualismo do capitalismo tardio posterior ao nazismo não é outra coisa senão um efeito
Por isso, por causa de Auschwitz (e de situações diferentes mas semelhantes como a
mínimos direitos civis na América Latina atual etc., acrescento eu), e não apesar de sua
primeiro plano de sua filosofia, em estado negativo. Portanto, uma utopia negativa não é uma
utopia, uma esperança nem uma ânsia diminuída, é uma utopia que presta contas com o
princípio de realidade, recusa uma noção prévia e plenamente estabelecida do que a sociedade
deva ser, mas não contribui para que a própria realidade resigne, enfraqueça e debilite o
196
Em TLU, 358, a morte se torna um ―absoluto ontológico‖ (seine absolute ontologische), a ―dignidade
essencial‖ (wesenhafte Dignität) faz com que haja uma santificação ou absolutização da morte considerada a
categoria-chave na filosofia contemporânea, totalmente anti-utópica (“... daß also diese Heiligung des Todes
oder Verabsolutierung des Todes in der gegenwärtigen Philosophie, die ich jedenfalls als die schlechthin anti-
utopische empfinde, auch die Schlüsselkategorie ist”).
135
136
indivíduo. As filosofias que põem em primeiro plano a morte, o limite, a falta, o nada etc.,
correm o sério perigo de, sob pretexto de ceticismo ou tragicidade e uma visão equivocada do
―razão‖, contribuir para a resignação política e existencial do sujeito. Adorno, portanto, a meu
―supressão‖ da morte (Abschaffung des Todes, TLU, 360) não é cientificamente improvável, e
a longevidade é hoje uma realidade, uma conquista da medicina. Contudo, Adorno não usa a
idéia da supressão da morte, nem pensa a partir dela a esperança e a utopia, num sentido
somente empírico (ainda que, em termos materialistas, haja sim um momento empírico
(sem imagem, sem a mínima noção, negativa) e não na conformidade lúdica, trágica,
de ônibus, nas chacinas e torturas feitas nas prisões?), de compensação vital da finitude
197
Por isso Adorno questiona que Heidegger tenha depreciado de saída a ―possibilidade da existência sem
morte‖, TLU, 358, ―... daß Heidegger bereits die Fragestellung nach der Möglichkeit einer Existenz ohne Tod
gewissermasen abwertet‖.
136
137
limites, criando condições vivenciais e teóricas para ações práticas éticas conseqüentes198.
No meio da discussão, Adorno insiste que a utopia só pode ser dita de forma
negativa199, pois não se pode descrever como uma sociedade deve ser, nem ignorar a morte
positiva, Bloch objeta se isso não significaria desvalorizá-la. Adorno nega tal hipótese e
nenhum modo, em diminuir ou depreciar o conceito de utopia como tal, antes significa negar
o que é, negar inclusive a presença da morte contida no fato bruto do que meramente é (―bloß
ist‖ TLU, 361). Como toda utopia crítica, Adorno contesta e não aceita a realidade
estabelecida pelo status quo, e pretende analisá-la e criticá-la com todo o instrumental que
uma filosofia aliada às ciências humanas dispõe. No processo, no vir a ser da realidade
concreta já há sempre lugar para algo mais do que o que meramente é, e por isso a utopia
também não deve fixar uma ordem imaginária e prévia do que deve ser, assim como não deve
esquecer certas exigências básicas como comida, educação, saúde, emprego, segurança e um
Assim, se não devemos conceber uma noção prévia de utopia, todo mundo sabe que
deveria ser incondicional a realização de necessidades e direitos básicos. Isso deveria ser o
mínimo de ―consenso‖, e não vejo por que complicar, até aqui. A economia mundial cresce
(crescia na época da entrevista e cresce hoje, desde os anos 90), mas paradoxalmente há cada
198
No seu livro sobre a relação entre biografia e obra relacionando ―a paixão da razão‖ em Nietzsche com a
impossibilidade de encarar a morte de Deus, Türcke observa que o super-homem, ―este homem livre de toda a
condicionalidade humana, este exemplo de vida repleta, irredutível a qualquer coisa, não subsumido a nada e não
dependente de nada, emancipado de toda a abstração – exatamente ele é a abstração espiritual par excelence‖
TÜRCKE, Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razão. São Paulo: Vozes, 1993, p. 211.
199
TLU, 360-1, ―Das ist vielleicht der tiefste Grund dafür, daß man von Utopie eigentlich nur negativ reden kann,
wie es die große Philosophie schon bei Hegel und dann, viel nachdrücklicher noch, bei Marx ja bestimmt hat.‖
137
138
vez mais pobreza, desemprego, violência, totalitarismo e insegurança. Não há algo errado, não
―falta alguma coisa‖? Isso ocorre por que há a produção e reprodução moderna –
desculpa para não fornecer o que ninguém discorda ser o necessário. O sistema político, as
regras do jogo e detalhes institucionais não funcionam no fundo por uma administração
sistemática global em parte cega e sem nome, mas fruto de uma mistura de ignorância,
lei etc. Ainda que tais fatores naturalmente não sejam desprezíveis, não são essenciais, como
sempre pequenas coisas, melhoram um pouquinho aqui, pioram ainda mais ali, mas mantêm o
O problema está menos na diferença de meios do que na mentira em relação aos fins,
substituindo os fins pelos meios, como ao valorizar a técnica e a razão instrumental com
no mito200. Essa famosa tese da Dialética do esclarecimento, que reencontramos agora por um
caminho bem diferente, justifica-se, mais uma vez, por causa da falta de atenção com a obra
integral de Adorno, que precisa ser pacientemente (re-)examinada, que nunca foi a meu ver
retomada ainda está começando, seja via novas tendências, seja por tentativas mais
substanciais de formulação de uma nova fase da teoria crítica. Por tudo isso, pouco mudaram
200
3, 37, 41, 55.
138
139
Não podemos deixar de constatar que parte das tendências de algumas teorias
grande parte, as formulações de Adorno (e de Bloch), praticaram aquilo mesmo que a objeção
momentânea de Bloch alertou para Adorno, o qual já estava para ela suficientemente
conformismo com a realidade existente. Como Adorno nunca se deixou levar pela ilusão de
que o regime soviético traria algo de diferente (o que não ocorreu com Bloch), ele pode além
de tudo servir como um ―exemplo de integridade‖, e mostra que não precisamos desprezar
esse conceito por causa de experiências históricas que se basearam em utopias positivas.
Bloch: É preciso que as pessoas primeiro sejam saciadas para então poder
dançar. ... Se primeiro todos os convidados sentam-se à mesa, então pode vir o messias,
pode vir Cristo. Logo, o marxismo como um todo, trazido em sua mais resplandecente
forma e antecipado em sua total realização, é somente uma condição para uma vida em
liberdade, a vida em felicidade, a vida em seu possível cumprimento, a vida com conteúdo.
Adorno: Permita-me dizer ainda uma palavra? Nós estamos curiosamente nos
Adorno: No sentido de que, como você diz, introduz-se aí que nós não podemos
ter na verdade o conceito de que ―falta alguma coisa‖, o qual você nomeou com Brecht, se
não existissem fermentos, germes disso que propriamente se quer dizer neste conceito.
139
140
ontológica da existência de Deus, isto é, que também fez parte da violência do conceito
mesmo no momento de sua realização, não poderia não só se dar nenhuma utopia, mas não
ontológica. Mas a essência perfeita foi posta por Anselmo como algo que compreende ao
mesmo tempo a realidade total. Isso não é convincente. Mas certamente é legítimo: cada
aquilo que chamamos de felicidade e liberdade, e que não podemos conceber por vivermos
realmente mais justo, então finalmente aparecerá o messias, é o que nos diz Bloch. Em vez de
201
BLOCH, Ernst. Tendenz – Latenz – Utopie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p. 366-7. Abreviação
minha (TLU), ―Bloch: Es müssen die Menschen erst satt werden, und dann kann getanzt werden. ... Erst wenn
sich alle Gäste an den Tisch gesetzt haben, kann der Messias, kann der Christus kommen. Also, der gesamte
Marxismus, auch in seine leuchtende Form gebracht und in seiner ganzen Verwirklichung antizipiert, ist nur eine
Bedingung für ein Leben in Freiheit, das Leben in Glück, das Leben in möglicher Erfüllung, das Leben mit
Inhalten.
Adorno: Darf ich noch ein Wort sagen? Wir sind ja merkwürdig nahe herangekommen an den ontologischen
Gottesbeweis, Ernst ...
Bloch: Das überrascht mich!
Adorno: denn in dem, was du sagst, steckt ja drin, daß wir den Begriff von dem, was du mit Brecht gennant hast,
- Etwas fehlt - eigentlich gar nicht haben können, wenn es nicht Fermente, Keime dessen, was dieser Begriff
eigentlich besagt, gäbe.
Eigentlich würde ich denken, daß, wenn es nicht irdendeine Spur von Wahrheit an dem ontologischen
Gottesbeweis gibt, d.h., daß in der Gewalt des Begriffs selber auch das Moment seiner Wirklichkeit schon
mitbeteiligt ist, es nicht nur keine Utopie geben könnte, sondern daß es dann kein Denken geben könnte.
Bloch: Es geht in der Hoffnung um das, was Vollkommenheit ist, also insofern ontologischer Gottesbeweis.
Aber das allervollkommenste Wesen wird bei Anselm als etwas gesetzt, was gleichzeitig das Allerwirkliche
einschließt. Das ist nicht haltbar. Wohl aber gilt: Jede Kritik an Unvollkommenheit, an Unvollendentem,
Unerträglichem, nicht zu Duldendem setzt zweifellos schon die Vorstellung von, die Sehnsucht nach einer
möglichen Vollkommenheit voraus.‖
140
141
trabalhássemos para a realização do que o marxismo pretende, teríamos então a condição para
a idéia de felicidade e liberdade. Não há ambas porque não há sequer sua condição.
messianismo e a realização dos conceitos de liberdade e felicidade. Por causa de uma crítica
desconfiar desses conceitos e evidenciar sua ilusão e seu uso ideológico. Contudo, Bloch
afirma, nesse momento, que tais conceitos devem ter uma função para o pensamento utópico,
e que a ―utopia‖, da mesma forma, não deve ser simplesmente abandonada por causa de
decepções históricas absolutizadas (fruto, em grande parte, dos erros da teoria marxista e do
de Bloch contém muito o que analisar, mas não vamos nos deter nela, por não se tratar de
nosso autor. Basta observar que o messias só aparece depois que todos os convidados estão à
mesa, depois que os convidados mesmos façam boa parte daquilo que tanto pedem ao messias,
Adorno pede permissão para levantar um aspecto que não parece estar relacionado
com essa reflexão, fora a imagética religiosa: a prova ontológica. A ―prova‖ do rastro de
verdade da prova ontológica pode ser indiciada quando dizemos que ―falta alguma coisa‖.
Bloch citara uma frase de Brecht em Mahagonny, ―Etwas fehlt‖, afirmando ser uma de suas
valoriza a noção do absoluto em estado negativo para possibilitar não só a utopia, mas, antes
202
BRECHT, Bertolt. ―Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny‖. In: Werke. Band I. Stücke I. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1967, p. 499-564. BRECHT, Bertolt. ―Ascensão e queda da cidade de Mahagonny‖. Teatro completo
em 12 volumes. III. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1992, p. 109-64. A frase é repetida pelo personagem Paul (p.
125, edição alemã, p. 518), que demonstra profunda insatisfação com tudo o que seria paradisíaco em
Mahagonny, valendo como um símbolo de prazeres hedonistas capitalistas. No final da peça ele é condenado à
morte injustamente. Há uma frase na p. 138 que merece destaque: ―O amor nos leva para fora do mundo‖.
141
142
de mais nada, o próprio pensamento, um pensamento que se relaciona sempre com o não-
idêntico a si mesmo, com o objeto, dando a ele prioridade. Esse objeto não é nenhuma noção
completamente abstrata e inefável de alteridade, mas um ser que em sua concretude mesma
determinado. A ligação entre ―falta‖ e absoluto é de tal ordem que vê a falta de condições de
existência para a liberdade e a felicidade, mas pressupõe que essas condições devam existir.
Logo, quando pensamos em ―falta‖, estamos implicitamente nos referindo também à injustiça
social, à configuração social do sujeito no estado falso, mas que pressupõe uma noção de
pensamento de qualquer coisa, inclusive da noção de falta. O que possibilita e move o sujeito
formulação da consciência prévia de Deus de Tillich. Adorno, contudo, não usa a categoria de
consciência, e sim de Denken, que é mais abrangente. Nesse caso, o absoluto em estado
idéia não pareça ser nova – lembra o logos divino bíblico– vale insistir que esse absoluto,
à possibilidade concreta de uma práxis materialista mantida em suspenso, quer dizer, ligado
142
143
Mas a ligação do absoluto com a utopia ainda nos diz pouco. Mais decisiva, e
Erkenntnis wäre, das Begriffslose mit Begriffen aufzutun, ohne es ihnen gleichzumachen (6,
21), ―A Utopia do conhecimento seria descobrir o inconcebível com conceitos sem a eles
igualar‖.
violência inevitável 203 . Mas essa diferença entre conceito e objeto existe e não pode ser
ignorada204. Por isso a utopia do conhecimento é descobrir algo mais do que seus conceitos. A
condição para que isso ocorra está justamente em não igualar a descoberta com seus próprios
conceitos, antes, mantê-la diferenciada dos mesmos. Por outro lado, há no poder próprio do
conceito a capacidade de realização de si mesmo feita por meio de uma certa violência, a
violência da abstração. É essa violência que pode tanto desfigurar o objeto quanto descobrir
algo a mais do que o pensamento autotélico, ou seja, dar a devida primazia ao objeto e
Adorno afirma que a prova ontológica participa dessa violência, que pode ser
que a falta de realidade da prova ontológica participa da realização, com toda violência
203
TÜRCKE, Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razão, pp. 38-46, esse foi o ponto de partida da crítica
nominalista, tão comentada por Adorno (6, 59) e que foi desenvolvido por Nietzsche.
204
JAMESON, Fredric. O marxismo tardio: Adorno, ou a persistência da dialética. São Paulo: UNESP:
Boitempo, 1997, pp. 36-42.
143
144
Agora pareceria que Adorno está se assemelhando a Lacan, afinal, o real é impossível,
mas é condição do possível e da realidade, assim como a falta introduzida pela castração e
pelo nome-do-pai permite o advento do sujeito. Mas a prova ontológica não é o real nem a
falta. Sem dúvida há aqui um uso negativo da prova ontológica, explicitado pelo próprio
Bloch, ao objetar que a concepção de Deus enquanto realidade última não é convincente.
Deus, portanto, não pode fazer parte da realidade; mas toda a crítica à imperfeição pressupõe
uma perfeição absoluta. Lacan não pensa a instância do real em termos de perfeição, o que
haveria de inconcebível no real não permite a idéia de perfeição, que, no fundo, faria parte do
imaginário.
Adorno não usa tampouco a palavra perfeição, mas não me parece de todo antipático a
ela nesse contexto. Tais categorias metafísicas podem possuir, em geral, uma função negativa.
O que deve agora ser destacado é que, embora as considerações de Bloch estejam corretas, há
certa realização proporcionada pela prova ontológica, o que não a torna mera criação da
abstração metafísica. A prova ontológica não prova nada, não prova a existência de Deus, não
realiza, ela realiza o que ela possibilita, e mais: interfere definitivamente na realidade por
meio do pensamento.
justificada. Essa realização relativa do conceito não contém realidade objetiva, mas já contém
realidade da prova ontológica contém, portanto, os germes de muita coisa real, a saber: de
144
145
todo o mundo racionalizado, logo boa parte do mundo pré-moderno e todo o mundo moderno,
Se ela contém muito do que possibilita, enfim, o esclarecimento, ela carrega ainda a
conexão intrínseca com uma série de outros conceitos ligados à teologia: esperança
messiânica, redenção, salvação etc. O que deve ser destacado é que, se ela possibilita a
que nos interessa é salientar que ela possui, segundo Adorno, potencial crítico e
emancipatório, função constitutiva para o conhecimento, e por isso deve ser levada mais a
sério e não ser ―destratada‖ como mera ilusão teológica. Sua ilusão mesma possibilita o
esclarecimento de que é uma ilusão, portanto, há algo nela que permanece em grande parte
misterioso - fora sua função constitutiva para o conhecimento - que não é ilusão, é verdadeiro.
Há ―alguma coisa‖ na prova ontológica que é verdade, sabendo-se que sua ilusão está
qualquer modo, há alguma realidade em possibilitar algo na realidade, e essa realidade, oposta
entre outras coisas, aquilo que o tornou possível. Esse desejo de reconciliação não é autotélico,
antes, pretende chegar a algo diferente de si mesmo, que todavia o originou. Esse desejo
contém sua violência, trata-se inclusive um desejo de dominação, porém, o mais intrigante é
que seu objeto inconcebível participa dessa mesma violência desfechada contra ele mesmo.
Há, nesse sentido, um momento de co-participação entre a violência do conceito, que pretende
145
146
―co-participação‖ (mitbeteiligen), ele respeita a diferença entre as duas coisas mas não deixa
Há outro item não menos intrigante: o real de Lacan é impossível, mas, ao contrário de
utopicamente possível. A utopia negativa não nega totalmente sua possibilidade, somente não
dá a ela uma imagem, programa, cartilha. Essa diferença é decisiva para apreciar a
singularidade teórica de Adorno, pois, vale lembrar, para Derrida a justiça é impossível e
possuiria função regulativa perante a lei. Esse uso teórico de um elemento impossível e
inefável não corresponde ao materialismo negativo de Adorno, que deixa em aberto uma
possibilidade messiânica incerta, por mais impossível que possa parecer. Portanto, há
qualquer coisa de processualmente real (no sentido hegeliano e marxiano) nesses conceitos
transcendentes.
impossível‖, de modo que ela se torne um desejo radical 205 . Nesse ponto, observamos
claramente que Derrida não hipostasia o impossível. Lacan, ao caracterizar assim o real, pensa
mais em termos de inacessibilidade do sujeito a algo que possui, contudo, uma sorte de supra-
existência 206 . Mesmo assim tal inacessibilidade pode ser relativamente violada lá onde o
na experiência, que, entretanto, mantém-se ela mesma inefável, irrepresentável, não passível
205
DERRIDA, Jacques. Fichus. Discours de Francfort. Paris: Galilée, 2002, pp. 18-9. Derrida afirma que
Adorno o autoriza, com isso, a dizer aquilo mesmo que ele tem feito cada vez mais freqüentemente e que ele
gostaria de fazer um lema, (une device), por todas as últimas vezes de sua vida, (pour toutes les “derniéres fois”
de ma vie): a possibilidade do impossível (Die Möglichkeit des Unmöglichen, 11.1, 252; que trataremos melhor
no capítulo 5)
206
DERRIDA, Jacques. Ibidem, p. 20. A possibilidade do impossível é o sonho da filosofia, há inclusive uma
afinidade entre a filosofia e o sonho, mas um pensamento que se coloca na relação entre o possível e o
impossível deve continuar sua vigília sobre o sonho.
146
147
à metafísica, ao invés de explorar com mais cuidado nele a chance mesma da razão crítica. A
diferença, que num certo sentido é pouca, na prática teórica mostra conseqüências prejudiciais
A instância transcendente, se deve ser levada a sério pelo materialismo, não deve ser
acha na reformulação não positivista nem idealista da categoria de realidade, e não da falta
dissipá-la à moda ocultista. O que há de real na verdade transcendente não é uma sorte de
noção de real. Logo, a aparência, a experiência estética existente na realidade, com sua
junto da experiência estética da obra de arte moderna, o que alimenta a potência do sujeito (7,
147
148
o movimento e a proliferação vital de diferenças, tudo isso fez parte da histórica da teoria
e burguês (ainda que, por vezes, exagere no mesmo ludismo e o considere uma qualidade em
si), assim como a teorização e assimilação filosófica do modernismo (já feita, de outro modo,
subjetividade, sua crítica social e contribuição para formas de pensar a estrutura institucional
e o poder, sempre feita por Foucault e herdada por Deleuze, a revalorização de Marx e o
detalhe.
Ao tenderem a depreciar e reduzir demais sua relação com a metafísica, e mais ainda
com a teologia (mesmo nas brechas ambíguas abertas por cada um deles, especialmente
Derrida e Lacan), todos eles tornam-se menos capazes de avaliar qual o potencial ético e
estético que um pensamento crítico moderno pode tirar da leitura do passado. Finalmente, fica
difícil entender por que, afinal, a teoria crítica foi e é pouco analisada pelo pensamento
contemporâneo francês e por seus receptores até hoje, já que ela fornece muito material para
207
O ensaio de Lyotard sobre o ―diabo‖ em Adorno é a exceção que confirma a regra: embora seja
verdadeiramente instigante e necessário para a bibliografia ser um dos primeiros a pensar a questão do diabólico
na relação entre Adorno e Tomás Mann, contém simplificações e erros de compreensão da negatividade dialética
adorniana (como se fosse uma negatividade da decadência da própria dialética, em vez de ser, justamente, seu
processo de transformação dialética) e evidencia grosseiramente a diferença entre as teorias, ao se contrapor com
uma política afirmativa dos afetos, pulsões e intensidades. LYOTARD, Jean-François. ―Adorno come diavolo‖.
148
149
Finalmente, cada um deles, por outro lado, reteve a negatividade teológica e metafísica
à sua maneira, mesmo quando, aparentemente, supõe-se que a estejam negando por inteiro.
Em Adorno essa relação com a teologia foi pouco abordada, menos do que se desejaria,
contudo, nos momentos em que estamos examinando, ele parece, mesmo assim, ter sido mais
claro, cuidadoso, e evitado possíveis mal entendidos que levam à diluição da teoria, em mera
A suposta crítica do sujeito e da razão, se for por demais irrestrita, também corre o
perigo de não refletir sobre a dialética entre destruição do eu enquanto crítica do princípio do
arte moderna.
prazer, antes, uma exortação (Memento) à liquidação do eu, que percebe sua própria estreiteza
exercido pela indústria cultural.―Diese Erfahrung ist konträr zur Schwächung des Ichs,
welche die Kulturindustrie betreibt‖ (7, 364)209. A tensão extrema do eu na arte moderna não
In: Dispositivos pulsionales. Madrid: Fundamentos, 1981, pp. 120-1. Como fenômeno de época, os anos 70 pós-
estruturalistas alimentaram a doce ilusão juvenil de que a dialética e a crítica eram coisa do passado. Essa ilusão
se mantém naqueles que os lêem sem os contextualizar, ignorando toda a retomada de Kant nos anos 80 (feita
pelo próprio Lyotard) e de Hegel e Adorno dos anos 90 até o momento.
208
7, 364, ―Erschütterung, dem üblichen Erlebnisbegriff schroff entgegengesetzt, ist keine partikulare
Befriedigung des Ichs, der Lust nicht ähnlich. Eher ist sie ein Memento der Liquidation des Ichs, das als
erschüttertes der eigenen Beschränktheit und Endlichkeit innewird.‖
209
tal experiência contém a herança inevitável da experiência mística, que analisaremos adiante.
149
150
esforço de crítica social e um proveito da teorização para fins críticos, éticos e estéticos que
enfraquecimento da crítica social e até da análise histórica do que é glorificado como novo, e
não o contrário. Portanto o uso desses motivos deve ser a um só tempo impiedoso no seu
movimento de secularização e atento para o que a secularização não dissipa, porém prolonga e
reafirma. Não devemos confundir isso com invariantes (6, 50): é a perseverança de motivos
está diretamente ligado à luz da razão, do Index sui et falsi, de raízes teológicas já vista na
e falto, ocorre por causa dessa luz da razão, então temos todos os motivos para dar atenção à
210
TÜRCKE, Christoph. ―‗Informal‘ segundo Adorno‖. DUARTE, Rodrigo; KANGUSSU, Imaculada;
FIGUEIREDO, Virginia. (Org.). Theoria Aesthetica. Porto Alegre: Escritos, 2005, p. 71-84.
150
151
Mas, se nos colocarmos no ponto mais crítico e mais propriamente cartesiano dos
ponto em que a dúvida toca não só as idéias de origem sensível mas também as idéias
recomeçar e prosseguir, o seu último recurso, é designado como lumen naturale. A luz
natural e todos os axiomas que dá a ver não são nunca submetidos à dúvida mais radical.
Esta desdobra-se na luz ... Anterior a qualquer presença determinada, a qualquer idéia
próprio. Possui, enquanto luz natural, a sua fonte em Deus, no Deus cuja existência foi
círculo lógico que tanto o ocupou, Descartes inscreve a cadeia das razões no círculo da luz
...
verdade e do sentido, apagamento da face do ser, tal seria o regresso insistente do que
A crítica parece ser muito bem direcionada e atingir o cerne das intenções teológicas
de Adorno. A princípio, não haveria muito o que diferenciar entre Descartes e Adorno nesse
metafísica da teologia e do platonismo, que não se modificaria nem até Adorno. Finalmente,
Derrida, com sua ―hipercrítica‖212, revela a ilusão que há por trás da mera metáfora da pura,
intocável e originária luz da razão, diretamente doada de Deus, que doa até mesmo sua
211
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p. 308-9.
212
DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. L'État de la dette, le travail du deuil et la nouvelle Internationale.
Paris: Galilée, 1993, contracapa: ―Comment ce discernement critique se rapporte-t-il à l'exigence hypercritique -
ou plutôt déconstructrice - de la responsabilité?‖. Não veria por que achar que esse hyper contenha uma crítica a
mais do que a teoria crítica, sendo já problemática a tentativa de a desconstrução se diferenciar de Kant e de
Marx desse modo, curiosamente herdado da teologia negativa de Dionísio Areopagita e sua denominação de
Deus como hiper-ser e hiper-essência (ver no capítulo 6).
151
152
mantê-Lo obscuramente presente como verdade misteriosa, como seria o caso de Adorno.
seus exageros internos, devo responder a essa objeção possível a Adorno. Se Adorno procura
―luz natural‖ não estaria recaindo mais uma vez nas velhas ilusões?
Poderia ser, mas não esqueçamos que o próprio Derrida reconheceu que há,
científico em geral um ―ato fiduciário‖, uma fé no próprio ato de dizer, do próprio ato de falar
e pensar, experiência fiduciária que pressupõe toda produção de saber compartilhado 213. Nela
elementar, não haveria ―vínculo social‖, em geral, muito menos ato científico, stricto sensu.
não afirma que há nela qualquer verdade. Nunca saberemos se há nela verdade. É ela mesma
que produz verdades, por isso não conseguiríamos saber se a verdade existe independente dela.
Nesse caso, o conceito de verdade não é sustentável, assim como em Nietzsche. Embora haja
inevitavelmente carrega.
Derrida passa por esse problema em alguns momentos da obra, mas não podemos
examinar aqui de que modo há nele certa verdade negativa implícita em noções como
213
DERRIDA, Jacques. ―Fé e saber. As duas fontes da ‗religião‘ nos limites da simples razão‖, p. 61.
152
153
nietzscheanismo e uma ausência da verdade absoluta 214 . Esse ceticismo implícito cai, de
qualquer forma, nos mesmos problemas que o ceticismo do passado. Ele (o ceticismo
implícito, não Derrida) corre o perigo de não contemplar o fato de que deve haver imperativos
éticos como ―... ihr Denken und Handeln so einzurichten, daß Auschwitz nicht sich
wiederhole, nichts Ähnliches geschehe‖ (6, 358), ―prover seus pensamentos e atos de modo
que Auschwitz não se repita, que nada de semelhante ocorra‖, ou que chacinas, tiroteios,
incêndios a ônibus, falta de hospital, biblioteca e escola decente não mais existam no Brasil
como agora é fato. De onde vem a necessidade desse imperativo, que é justificada pela razão
e também por uma consciência moral que a transvaloração de todos os valores de Nietzsche
não vai mudar por menos kantianos que tentemos ser, realmente não podemos, em última
instância, saber. Mas duvidar desse imperativo é acreditar demais em sua própria dúvida: é
nesse problema da crença, mais uma vez, que recaem as supostas maiores audácias do
ceticismo.
É a razão e o conceito que mediam a fé na luz racional, e é por causa dessa mediação,
e não apesar dela, que a luz da razão, vinda de um rastro de verdade teológico, é considerada
214
Foucault foi o mais atacado em relação a esse problema com seu conceito de micropoder e relações de poder.
Ele chega a conceber uma ausência teórica da moral e da verdade, e com isso uma relativização da noção de
verdade enquanto função de discursos sociais na formação tática de seus valores ideológicos. Mas isso não
invalida toda uma crítica social que possibilitou uma reformulação da ação prática com validade local. Por isso, a
relativização de Foucault não se tornou generalizante por sua reformulação da prática política. Mas ele mesmo
não chegou a trabalhar melhor seus impasses teóricos. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de
Janeiro: Graal, 1979, p. 69-228. CLIFFORD, Michael. Political Genealogy After Foucault: Savage Identities.
London: Routledge, 2001, pp. 149-70.
215
Também devemos recusar a tentativa de Habermas de procurar critérios normativos através do consenso, pois
com isso ele ao mesmo tempo enrijece a flexibilidade dialética de lidar com o conceito de verdade sem
determinações jurídicas e, por submissão do discurso filosófico ao domínio de instituições burguesas, enfraquece
a necessária violência da crítica (o que não significa ausência de escuta, falta de respeito nem grosseria
intelectual com o seu interlocutor, mas não diminui o papel político da retórica), que faz parte inclusive da
―violência do conceito‖, ao propor a necessidade do consenso. Há espaço para discussão racional sem almejar o
consenso. Para uma crítica dessa posição habermasiana e a questão da violência na crítica, ver o artigo de Türcke
153
154
necessária, Deus, qualquer tipo de existência ou crença positiva. A fé, a utopia, a esperança,
são sempre categorias negativas. Só podemos entender essa negatividade ao respeitarmos seu
estado de suspensão, que simplesmente não ocorre numa dúvida hiperbólica ou, em certa
certo modo, o problema 216 , mas, se a prática acadêmica desconstrutivista quiser manter a
metafísica, terminam por ignorar rastros teológicos, ou os aceitam de mal grado, em vez de
finalmente se darem conta de que são necessários para o ―bem‖ da negatividade filosófica
O estado de suspensão mantém a fé nos limites em que ela deveria se encerrar, e não
no constrangimento que ela sofre, mas que a define nas doutrinas dogmáticas. Fé não é
certeza, logo, de acordo com tal materialismo negativo, não poderia se converter em dogma
nem pressupor ceticismo absoluto. A negatividade mais radical e crítica não está em
―desconstruir‖ a fé na luz da razão, já que a razão em Adorno já passa por toda uma
metacrítica e uma leitura antropológica, genealógica; antes, em manter o vazio da fé tal como
ele se apresenta em sua fragilidade; e nesse estado de debilidade torna-se mais legítima que a
intitulado ―A ilusão da não-violência‖. TÜRCKE, Christoph. ―Die Illusion der Gewaltlosigkeit‖. In: Gewalt und
Tabu: philosophische Grenzgänge. Lüneburg: zu Klampen, 1992, p. 10-26.
216
Aqui chegamos a uma constatação interessante: determinadas retomadas, com filtro desconstrutivo, da
teologia, assim como uma exploração mais dedicada de problemas éticos, não são, como muitos poderiam supor,
um enfraquecimento da desconstrução, e sim sua maior força. DERRIDA, Jacques. ―Fé e saber. As duas fontes
da ―religião‖ nos limites da simples razão‖. In: DERRIDA, Jacques. VATTIMO, Gianni. A religião: o
seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. Sobre teologia negativa, ver DERRIDA, Jacques. «
Comment ne pas parler. Dénégations ». Psyché. Inventions de l‟autre. Paris: Galilée, 1987. DERRIDA, Jacques..
Sauf le nom. Paris: Galilée, 1993.
154
155
uma das opções, destruindo a outra, é a essência do gesto positivo. Essa suspensão não é,
todavia, indecisão: ela, justamente, permite uma decisão ética, tanto mais firme e imediata
Se a luz é a da razão, e essa razão mesma foi objeto de crítica, nem a razão nem a sua
luz são fixadas e tratadas como centro inabalável e obscuro, ambas vão sempre passar pela
mediação reflexiva, mesmo que permitam a existência daquilo mesmo que a media. Por isso a
luz da razão não é soberana diante do movimento reflexivo do qual é fonte, nem erige a idéia
de Deus como soberana em relação à reflexão: não há elemento originário, princípio, nada
que domine, que não seja transformado no movimento dialético. Foi ele que, sem nenhum
impedimento prévio, chegou a conceber tal luz, não foi a luz que se tornou um objeto de
crença imune ao seu processo. Esse rastro de verdade teológica vem, como toda retomada de
esclarecimento.
suas que muitos ainda ignoram, e que estão onde menos hoje se espera. Falta de sentido
existencial ou materialismo positivista, ambos não são, para Adorno, mais sugestivos do que
155
156
marxista, liquidando a teoria a favor de uma falsa práxis, não poupando nem Lênin. Na defesa
de uma teoria mais preparada e incisiva, Adorno não hesita em religar o materialismo
dialético ao mais proveitoso de suas fontes idealistas. Nesse sentido, lá onde o materialismo é
apócrifo do próprio idealismo. O que a soberania do espírito em Hegel designou como não
verdadeiro, mas que faz parte integrante do ―motor‖ dialético e foi valorizado como tal, o
dos tempos de Hegel218. Portanto, há um elemento ―apócrifo‖ no idealismo que foi sempre
relegado a segundo plano, para começar, em geral por ele mesmo, depois, pela sociedade de
sua época e, finalmente, pelo materialismo posivitista e socialista. O que é, afinal, esse
217
(6, 204), ―Im Apokryphen des Materialismus offenbart sich das der hohen Philosophie, das Unwahre an der
Souveränität des Geistes, den der herrschende Materialismus so zynisch verachtet, wie insgeheim zuvor die
bürgerliche Gesellschaft es tat. Das idealistisch Erhabene ist der Abdruck des Apokryphen; die Texte von Kafka
und Beckett belichten grell dies Verhältnis. Das Mindere am Materialismus ist das unreflektierte Mindere des
herrschenden Zustandes.‖
218
HEGEL. Werke. HW19:62-85.
156
157
elemento apócrifo? Adorno nos dá a mais estranha das pistas: sua marca (Abdruck, impressão)
estudos sobre a categoria do sublime nos anos 80, que de lá pra cá não pára de crescer - que o
sublime não é só clássico, elevado, ascensional, antes, tornou-se, na arte moderna, antecipado
pela própria estética de Kant, intrinsecamente ligado ao imanente, profano, ao mínimo, até
mesmo ao abjeto219. Por isso é perfeitamente legítimo afirmar que Kafka e Beckett ilustram o
sublime moderno de modo deslumbrante. Resta a dúvida de saber se Adorno já estava tão
adiantado assim no pensamento sobre o sublime. A resposta é dada por Christiane Pries, que
analisa o trecho de Teoria estética como grande precursor da releitura do sublime kantiano e
arte moderna220. Quem primeiro reconheceu a ligação entre sublime e Adorno foi Wolfgang
Welsch, o qual chegou a defender que a categoria do sublime é implicitamente central para
toda a estética adorniana. Por causa disso ocorreu um grande debate sobre a relação do
sublime com Adorno - com a participação de Albrecht Wellmer - ainda pouco ou nada
Não podemos agora abordar o sublime em Adorno. Precisamos porém prestar atenção
sublime num sentido absolutamente moderno, aparentado com Kafka e Beckett. Se Adorno
estivesse se referindo somente à estética de Kant, a afirmação seria, com os avanços das
219
KRISTEVA, Julia. Pouvoirs de l‟horreur. Essai sur l‟abjetion. Paris: Éditions du Seuil, 1980, p. 10-7.
220
PRIES, Christine. Übergänge ohne Brücken. Kants Erhabenes zwischen Kritik und Metaphysik. Berlin:
Akad.-Verl., 1995, pp. 32-5.
221
WELSCH, Wolfgang. ―Adornos Ästhetik: eine implizite Ästhetik des Erhabenen‖. In PRIES, Christine.
BARTELS, Klaus (org.). Das Erhabene: zwischen Grenzerfahrung und Größenwahn. Weinheim: VCH, Acta
humaniora, 1989, pp. 185-213. WELLMER, Albrecht. ―Adorno, die Moderne und das Erhabene‖. In: WELSCH,
Wolfgang (org.). Ästhetik im Widerstreit Interventionen zum Werk von Jean-François Lyotard. Weinheim: VCH,
1991, pp. 45-66.
157
158
pesquisas atuais, compreensível, mas ele está se referindo ao idealismo como um todo,
mesmo que em seu elemento apócrifo. Há um elemento apócrifo no idealismo como um todo
que se torna mais visível no sublime kantiano, mas habita os textos de todos os seus autores
mais visível e explícito do sublime idealista como um todo, que, em sua qualidade mais
mínimo, o espiritual e o material, e não ignora a ―não verdade‖ do concreto, antes, assimila-a
sublime moderno223.
A dialética negativa, por sua vez, ressalta o que há de apócrifo no seu próprio
materialismo, e com isso revela o elemento apócrifo do idealismo. Ela o coloca em primazia.
e sublime - de pensar o objeto, e com isso captar algo do mínimo, do insignificante, no âmbito
profano e espiritual, mesmo que o tenha subsumido em seguida na soberania do espírito. Esse
Sem dúvida Adorno está se referindo, nesse momento, à minúcia do resto profano da
Essa minúcia mínima, frágil e insignificante é o sublime moderno; é ainda o que faz o
222
KANT, Immanuel. Kant-W, Kritik der Urteilskraft, t.10, pp. 164-206.
223
Para dar um bom exemplo de como isso ocorre, leiamos um trecho da Ciência da Lógica. HEGEL,
G.W.F.Werke. Enc. 1817, p. 111-2, ― Hier kann nun nicht mehr von solchen Verhältnissen die Rede seyn; das
existirende Ding und alle weitern Bestimmungen desselben haben sich als unwahr erwiesen und sind in die Idee
als ihren letzten Grund zurückgegangen. Sie ist dadurch als das an und für sich Wahre und Reale erwiesen; und
aller Inhalt, den sie weiter hat, kann ihr nur durch sie selbst gegeben werden. – Eben so falsch ist die Vorstellung,
als ob die Idee nur das Abstracte sey; – sie ist es allerdings insofern, als alles Unwahre sich in ihr aufzehrt; aber
an ihr selbst ist sie wesentlich concret, weil sie der freye sich und hiemit selbst zur Realität bestimmende Begriff
ist.‖. A idéia não é somente abstrata e formal, ela consome o conteúdo não-verdadeiro e só através dele é em si
concreta. Nesse processo, torna-se o verdadeiro e o real em si e para si.
158
159
idealismo se tornar sublime, e não seu sistema metafísico de dominação espiritual. Enquanto
cultural, ele foi parcialmente reconhecido no idealismo como não-verdadeiro e foi posto em
da metafísica e da teologia.
a metafísica e ignorar por completo a teologia contém em germe o mesmo gesto de ignorar
um aspecto essencial desse elemento apócrifo, mesmo que o reconheça na dimensão estética.
O problema se acha em compreender que não é possível, hoje, separar da minúcia profana sua
característica metafísica e, por ser metafísica, teológica. Para valorizá-la, é preciso perceber
periga, todavia, em tomar isso como motivo para de novo destratar a metafísica, pelo fato de a
Por isso, ajuda-nos mais observar agora como o idealismo a considerou do que insistir em
como ele a subsumiu e tender a negar por completo o momento espiritual. Nesse gesto, há, de
equivocado da mesma, pois o que faz por vezes generalizações apressadas nas teorias
positivismo, e também do idealismo mal avaliado, justamente por ser destratado enquanto
224
Haveria muito o que analisar desse momento de Teoria estética, mas deixaremos para um outro trabalho. 7,
295: ―Das Erhabene markiert die unmittelbare Okkupation des Kunstwerks durch Theologie; sie vindiziert den
Sinn des Daseins, ein letztes Mal, kraft seines Untergangs. Gegen das Verdikt darüber vermag die Kunst nichts
von sich aus. Etwas an Kants Konstruktion des Erhabenen widersteht dem Einwand, er hätte es bloß darum dem
Naturgefühl reserviert, weil er große subjektive Kunst noch nicht erfahren hatte.‖
159
160
generalizá-la por causa disso já é um abuso que perde justamente seu potencial espiritual. Tais
generalizações não consideram ou observam mal o elemento apócrifo do idealismo, por isso,
minúcia perde o valor simultaneamente material e espiritual e cai de vez nas garras da
A literatura moderna revela-a porque contém esse embaraçamento tenso entre matéria
e espírito, conteúdo e forma. Tal abalo sublime moderno diante da minúcia fortalece a
tecnocientífico e padronização da indústria cultural. Se não fosse a arte e a minúcia que ela
revela, estaríamos perdidos, porque essa minúcia é precisamente o resto perdido da metafísica
e da teologia. O sujeito não pode ser apenas um reflexo do objeto que se equivoca a respeito
do próprio objeto (6, 205), o objeto contém a ―salvação‖ espiritual do sujeito (―salvação do
mortalidade da minúcia é refletir mal sobre seu potencial estético e sobre o próprio valor da
retórica, evocando o campo semântico religioso, da mesma forma que Adorno utiliza com
gosto a palavra ―herético‖ (11, 33, 241, 317, 557; 6, 97, 183; 11.1, 190).
160
161
Nessa perspectiva podemos ler Adorno não como um idealista herético, mas como a
que Adorno simultaneamente insiste no materialismo dialético e introduz nele a proibição das
toda essa trajetória pelas cartas, Vorlesungen (aulas publicadas), passando pela relação do
agora podemos abordar o término do capítulo central da Dialética negativa, afirmando, muito
claramente, que o materialismo encontra a teologia lá onde ele radicaliza e ultrapassa seu
próprio princípio.
reflexão, sem teoria. Uma consciência que deslizaria entre ela e o que ela pensa um
o contrário: somente sem imagem (bilderlos) que se poderia pensar o objeto em sua
integridade. Tal ausência de imagens converge com a proibição teológica das imagens
positivamente; este é o conteúdo de sua negatividade. Ele se põe de acordo com a teologia
lá onde ele é mais materialista. Sua saudade seria a ressurreição da carne; ela é
apaziguado se reconciliaria o espírito e recusaria o que ele há tanto tempo não fez senão
materiais225.
225
(6, 206)―Bewußtsein, das zwischen sich und das, was es denkt, ein Drittes, Bilder schöbe, reproduzierte
unvermerkt den Idealismus; ein Corpus von Vorstellungen substituierte den Gegenstand der Erkenntnis, und die
subjektive Willkür solcher Vorstellungen ist die der Verordnenden. Die materialistische Sehnsucht, die Sache zu
161
162
imagens em seu exercício. Adorno emprega o termo imagem (Bild) para remeter a algo bem
amplo: a fixação a uma representação qualquer, até a um corpus de representações, que daria
herança perigosa do grande erro do idealismo está em substituir os meios pelos fins – a
instrumental conceitual pelo objeto a que ele sempre se refere. Esse é o cerne da crítica à
metafísica feita por Adorno, que, como podemos agora perceber melhor, difere da crítica
conceito, abandonar a noção de sujeito e objeto, e com tudo isso, em seus piores momentos,
terminar por esquecer o objeto. Sob a justificativa de que a filosofia subestimou a linguagem,
seu componente retórico e literário, essas duas correntes correm sempre o perigo de, ao
valorizar a linguagem como tal, substituí-la ao objeto, acreditar que o jogo do significante ou
o advento do ser na linguagem bastam para desprezar o conceito (pensando estarem num
jargão. Esse problema, que está em parte presente já em Heidegger, Lacan e Derrida, mas
ainda se encontra refletido no próprio exercício das questões, muitas vezes é herdado do pior
begreifen, will das Gegenteil: nur bilderlos wäre das volle Objekt zu denken. Solche Bilderlosigkeit konvergiert
mit dem theologischen Bilderverbot. Der Materialismus säkularisierte es, indem er nicht gestattete, die Utopie
positiv auszumalen; das ist der Gehalt seiner Negativität. Mit der Theologie kommt er dort überein, wo er am
materialistischesten ist. Seine Sehnsucht wäre die Auferstehung des Fleisches; dem Idealismus, dem Reich des
absoluten Geistes, ist sie ganz fremd. Fluchtpunkt des historischen Materialismus wäre seine eigene Aufhebung,
die Befreiung des Geistes vom Primat der materiellen Bedürfnisse im Stand ihrer Erfüllung. Erst dem gestillten
leibhaften Drang versöhnte sich der Geist und würde, was er so lange nur verheißt, wie er im Bann der
materiellen Bedingungen die Befriedigung der materiellen Bedürfnisse verweigert. ‖
162
163
modo pelos seus reprodutores. Uma leitura mais cuidadosa dos três pode evitar o problema,
ressaltar e renovar a reflexão sobre questões e objetos (mesmo que não queira usar a palavra
aproxima de ―saudade‖, a nossa palavra mais intraduzível e tradicional. Sehnsucht possui uma
carga afetiva e intensidade de desejo tão elevada quanto ―saudade‖, mas não é
português remonta à tradição literária das cantigas, atravessando toda a história da literatura
romantismo.
Adorno usa essa palavra para adjetivar o termo ―materialismo‖ e, nesse momento
verdadeiramente decisivo de sua obra, declarar que a saudade materialista procura apreender a
coisa. A ânsia intensa (6, 399-400) pela coisa é decisiva na atividade do pensar. Contudo, essa
ânsia de apreender a coisa deseja algo mais que o ente, precisamente porque o desejo nunca
saudade materialista, mas contrário à sua própria tentativa de apreensão, quer aquilo que não
se reduz à imagem no objeto, e só assim poderá pensá-lo integralmente. Pensar o objeto sem
163
164
por inteiro – não só por ser impossível, mas por manifestar a reificação da razão -, antes,
A negatividade do pensamento não está em outro lugar senão na ausência de imagem; não na
do desejo, por chegar àquilo que no objeto não é mais apreendido como imagem,
representação, conceito.
Como é sempre significativo em Adorno o uso do condicional, ele não diz que é
possível pensar o objeto integralmente, antes, que somente sem imagem isso seria possível.
226
Por motivo de clareza estamos pressupondo a diferença entre Ding, Sache, Objekt e Gegenstand na filosofia
alemã. Embora tais termos não deixem de se confundir ou de se remeter reciprocamente, podemos esboçar
diferenças gerais presentes na maioria dos autores. Sache é cada coisa como mero objeto do trato, impessoal, não
responsável por si mesmo, contrário à pessoa. Kant-W, Die Metaphysik der Sitten, t 8, p. 330; ―Sache ist ein
Ding, was keiner Zurechnung fähig ist‖. Ding é qualquer coisa que se dá a pensar, que se deixa dizer, e seu
contrário é o ―nada‖; sendo constituída pelo conjunto de percepções e experiências do sujeito e posta diante do
eu, uma sorte de não-eu, análogo ao eu, perene como ele. O conceito de coisa-em-si (Ding-an-sich) já se refere
precisamente ao que não pode ser apreendido pela percepção do sujeito, sendo o irrepresentável e o inatingível
da coisa; e, sob a problemática no noumenon, enquanto coisa pensada sem objeto positivo, tendo somente
existência negativa, trata-se de um conceito fronteiriço (Grenzbegriff). Devido a Kant esse conceito foi
intensamente debatido nos círculos idealistas, em geral negado, e posteriormente serviu como ponto de partida
da vontade em Schopenhauer e Nietzsche. Objekt ou Gegenstand é o correlato do sujeito, que se direciona a ele
com sua vontade e fazer.
164
165
Podemos observar que o verbo no condicional geralmente assume o lugar da suspensão. Essa
superar, pois é próprio do pensar possuir um potencial de auto-superação por meio da atenção
impensável com o objeto, ou seja, com aquilo que não se reduz ao sujeito, ao pensar, nem à
errância, produção ou ontologia da linguagem e que, ao mesmo tempo, é sempre para onde o
absolutamente seu objeto de desejo, justamente por conter o aspecto afetivo e sofrido da
―saudade‖ na Sehnsucht, reforçado pelo uso do wäre, ―seria‖. Mas isso não dá à saudade um
caráter resignado, antes, ainda mais ativo, que se opõe ao ―é‖ e dirige-se ao não-existente. O
objeto, portanto, não é um ente fixo, contém em si mesmo o processo, o werden, o seu
―tornar-se‖, e por isso leva o sujeito a, por sua vez, no seu movimento desejante e seu embate
dialético com o objeto, a desejá-lo. A separação de ambos não diminui sua mútua implicação
e correlação processual. O estado condicional do wäre exprime então mais o processo do vir-
165
166
podemos entender melhor a ligação que Adorno introduz entre sua irredutibilidade (ausência
convergem para o mesmo ponto. Adorno frisa a convergência do materialismo para esse
aspecto da teologia.
Talvez agora esteja mais claro que o materialismo em Adorno está longe de se fixar na
matéria. Sua propriedade dialética e distanciamento de uma práxis que leva mais uma vez à
barbárie e à injustiça chega a um novo encontro com a teologia; não um encontro sintomático,
como a escatologia de Marx e Lukács, porém muito refletido. Ao não permitir a representação
positiva da utopia, não há como não pensar em negatividade utópica senão aproximando-se da
vista mais substancial, não há diferença entre teologia negativa e positiva; isto é, lá onde a
teologia é mais atraente para o materialismo, sua positividade está plena de negatividade.
de valor – monetário e moral -, substância, pode ser traduzido também por teor; diversa de
A utopia positiva foi, mais uma vez, uma ilusão idealista do materialismo socialista,
portanto, menos materialista, num certo sentido, do que um materialismo negativo. Lá onde o
socialismo acredita estar sendo mais prático, ativo, colaborador e prestativo para uma vida
melhor, ele está ignorando a necessidade de se demorar, sem a mínima pressa, no momento
166
167
lamentar a divisão do trabalho e tentar forçar o que é, sem o próprio esforço de mediação
teórico, irreconciliável.
permite que haja ação prática imediata válida para a transformação das relações de produção e
desesperada de sair da cegueira e impotência se torna vítima de seus próprios sintomas e não
pode fazer outra coisa senão participar funcionalmente daquilo mesmo de que está tentando
sair.
Isso não significa que não haja nada a fazer, nem mesmo que não haja valor para ações
imediatas e tentativas locais; mas que a ação deve ser sempre motivo de mediação indefinida
da teoria, quer dizer, não deve haver limites para a reflexão teórica, muito menos resignação
questionamento existencial da própria prática estética ao se deparar com seus limites. Com o
a negatividade teológica, não fornece fórmulas prontas para a práxis, nem para a ação, menos
ainda para a resignação, ela incita o movimento reflexivo e recíproco da práxis e da teoria, e
Se essa demora reproduz, como sabemos, diferenças sociais e mantém muitos intelectuais
167
168
frente a setores menos favorecidos, isso é um problema a ser apontado de forma não menos
genuinamente materialista, mais verdadeira se torna na sua abordagem ao objeto, e com isso,
toca no seu oposto, a teologia. O materialismo se põe de acordo com a teologia não num
enfraquecimento de seu desejo do objeto, antes no seu ápice. Encontramos, mais uma vez, em
Adorno, uma espécie de coincidentia oppositorum, cujos termos da oposição são ainda mais
decisivos. Essa dialética entre materialismo e teologia joga com o pináculo da contradição
intrínseca do materialismo, a qual se torna, como raras vezes acontece, radicalmente refletida.
oposição estanque de espírito e corpo, mas o materialismo negativo põe-se de acordo com a
teológica.
imagem. Essa falta de imagem não significa uma pureza espiritual da apreensão do objeto, e
227
De qualquer forma, nem disso hoje podemos acusar os professores universitários, pois é uma das classes
profissionais mais desfavorecidas no mundo todo, somente os poucos que se destacam internacionalmente
podem gozar de uma situação diferente. Há a vantagem hoje de que a universidade contemporânea esteja
crescendo cada vez mais e impregnando as relações sociais, e a desvantagem de que seus professores se tornam
menos valorizados – penso especialmente nas áreas humanas – e sua pesquisa, assim como sua crítica, de pouco
valor e repercussão. A avaliação de Adorno comparando o prestígio do professor universitário com o
desprestígio do professor de escola está se tornando cada vez mais datada (10.2, 658). De qualquer modo, a
extensão das relações de comunicação pela informatização mundial da Internet e o crescimento do número de
pesquisadores, publicações e discussões contém grande potencial democrático e desmistificador do saber. A
fragmentação de nichos locais e globais pode tanto produzir resultados muito setoriais quanto contribuir com
seus limites para a teorização global. ALTBACH, Philip G.. ―Globalisation and the University: Myths and
Realities in an Unequal World‖. Tertiary Education and Management. Verlag Springer Netherlands. Heft
Volume 10, Number 1, März 2004, pp. 3-25. SMEBY, J. C., et. al.. ―Globalisation or europeanisation?
International contact among university staff‖. Higher Education. v. 49, n. 4 (June 2005), p. 449-66.
168
169
espírito dando a primazia ao ultimo. A ausência de imagem gostaria de alcançar não uma
interpretar esse ―pôr-se de acordo com a idéia da ressurreição‖ da seguinte forma: lá onde o
transformada. Isso prova que Adorno nunca foi unilateral em sua crítica ao cristianismo e
nesse momento decisivo chega a aproveitar seu momento mais materialista 228 . A utopia
modo.
do Bilderverbot e a ressurreição. O que mais reluz agora dessa estratégia teórica adorniana é
que o germe utópico da ressurreição não seria uma regressão mítica do cristianismo e sim o
228
Sabe-se que a idéia de ressurreição já está contida em Daniel 12, 2 e também é judaica, ―E muitos dos que
dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno.‖ (João
Ferreira de Almeida Atualizada), http://www.biblegateway.com/passage/?book_id=34&chapter=12&version=25 .
Depois esse motivo teológico foi desenvolvido pelo cristianismo. Adorno não está, de qualquer modo, se
aproximando do cristianismo nesse momento, o mais provável é que ele esteja pensando na versão judaica.
Mesmo assim, ele não explicita nesse momento que se trata especificamente da ressurreição judaica, aliás, ele
sempre usa o termo teologia sem especificar, o que nos força a incluir o cristianismo em nossa interpretação.
229
DINTER, P. E. ―Christ's body as male and female‖. Cross Currents, v. 44 (Fall 1994) pp. 390-9.
169
170
estrangeiro. Isso não significa que Adorno negue o conceito de espírito, há espírito na obra de
arte e na filosofia. Ele está se referindo ao espírito absoluto, superior e separado da carne. O
espírito, para Adorno, só existe na e a partir da matéria e do jogo da forma artística, assim
como o subjetivo surge já como realidade objetiva. Uma coisa não exclui nem se separa
rigidamente da outra. Por isso a ausência de imagem não é nem mera matéria nem espírito
absoluto. A ressurreição da carne, que seria (mais uma vez o verbo ser no condicional) a
saudade materialista, não é por que não se realiza, e a ausência de imagem, sendo o que a
saudade materialista quer para pensar o objeto, seria uma auto-superação do materialismo
absoluto, pouco pensou (excentuando, justamente, utopistas como Bacon, Fourier etc.), algo
que contém o grande ideal da ciência e da modernidade: a superação dos entraves que a
matéria impõe ao espírito. Aos olhos de Bloch e de Adorno, tais utopistas contribuem tanto
matéria a partir da mesma, sua auto-superação, deve ser tão importante numa reflexão
e materialista da morte.
não há tanto motivo para absolutizar ou ontologizar a morte. O esclarecimento possui, como
Adorno soube teorizar, seu aspecto libertador e dominador, sua promessa reconciliatória com
170
171
pelo homem. Portanto, a crítica da filosofia à razão tecnocrata não deve diminuir o papel
esperança, e as ligações entre máquina e escrita de Derrida também avançam nesse sentido.
absolutização filosófica, é virar os olhos para a força superante do desejo. Como bem
sublinhou Derrida aquilo que Adorno escreveu sobre Benjamin, o desejo não deseja o
possível, o que já foi alcançado ou o que é atingível, nem o impossível, mas, sim, a
possibilidade do impossível. Mais uma vez reaparece o lugar da suspensão: nem totalmente
prometedora. Não é fácil entender a contradição dessa fórmula, e não tenho a pretensão no
momento de avançar muito na explicação, mas saliento seu potencial de superação. O desejo,
assim como a dialética, é contraditório, por isso ambos se tornam capazes de superar. O
movimento dialético, por ocorrer estruturalmente por meio da negação, expressa a ânsia do
determinada231.
230
Aqui as dificuldades se multiplicam: se Adorno fala da longevidade, não temos motivo para duvidá-lo.
Contudo, a supressão da morte (―Abschaffung des Todes‖, TLU, 360) não é entendida aqui nem num sentido
unicamente material nem no espiritual. A remota possibilidade da supressão da morte (que, em suma, significaria
mais provavelmente uma duração de vida para nós hoje inimaginável, ou a transformação da vida em outra coisa
que não a realidade atual da morte) mantém-se em sua promessa material e também em sua incerteza espiritual
ou noumenal.
231
HEGEL, G. W. Fr.. Werke. [Jenenser] Logik, Metaphysik und Naturphilosophie (1804/05). „II. Irdisches
System―, LMN:239u; Wissenschaft der Logik (1832, 1813-1816). „A. Das Wesentliche und das Unwesentliche―,
HW06:18.
171
172
Por esse motivo, devemos agora tentar entender o que Adorno escreveu, e não
Theodor W. Adorno Archiv232, Ulf Liedke descobriu a seguinte frase: Negative Dialektik ist
O que pensar dessa frase, escrita por Adorno fora do texto já publicado, mas,
o valor desse achado de Liedke, supondo que Adorno só estivesse comentando, num esboço
rápido, a relação de sua ―metodologia‖ e do nome de seu livro filosófico mais importante por
meio do verbo ―é‖, com a teologia negativa, ou deveríamos supor que essa frase estaria
revelando o segredo de intenções que ficaram escondidas, quer dizer, que Adorno estaria
praticando uma teologia por trás de toda a noção de negatividade, e que, no final das contas,
seu materialismo seria falso, e sua crítica à metafísica (mais uma vez e sempre seu imperativo
de desconstrução) estancou num determinado ponto e tornou-se falha? No fundo, Adorno não
Não duvido que os marxistas defensores de um materialismo mais rígido, que pouco
frase, diriam que a tal teologia negativa seria nada mais nada menos que uma negação da
teologia. Os antipatizantes tomariam a mesma declaração como uma prova definitiva da falta
de coerência de Adorno com seu dito materialismo. Deste modo, ambos estariam ao abrigo de
encarar a complexidade e o grau de avanço materialista que há por trás dessa pequena frase.
De tudo o que Adorno escreveu, depois do livro sobre Kierkegaard, mesmo o que não
foi publicado, não há nenhuma grande ruptura em sua obra, nem com o passar das décadas,
232
LIEDKE, Ulf. Ibidem, p. 10.
233
LIEDKE, Ulf. Ibidem, p. 439. Apoud, „Adorno, Negative Dialektik, Meditationen zur Metaphysik, 1.
Fassung vom 3. Teil (III), TWAA, Ts 16070―.
172
173
nem entre o que foi e não foi publicado. Adorno não era um pensador que precisasse negar,
Apesar de tudo isso, nosso trabalho não serve para afirmar que Adorno praticava uma
teologia negativa. O predicado da cópula feita com o sujeito ―dialética negativa‖ mostra que
uma certa teologia negativa é essencial no pensamento de Adorno, mas não que a obra de
Adorno, ou a Dialética negativa não é outra coisa senão teologia negativa. Esse aspecto ficará
173
174
SECULARIZADA
abordamos da relação entre morte, metafísica, teologia e crítica, mas acrescenta um dado a
mais essencial: aquilo que Adorno chama de ―experiência metafísica‖. Numa elaboração
filosófica feita em tensão com Kant, Adorno recusa a idéia de um reino transcendental da
metafísica pensado independente da experiência, assim como polemiza com o marxismo que
hipostasia seu próprio materialismo. No resultado desse duplo ataque, ele mostra a
necessidade de se pensar uma experiência que tenha valor metafísico, e indica o local de onde
herético, para além das diferenças que definem as heresias do ponto de vista das religiões.
negativa, evidenciando que a mística, para Adorno, não é um tema passageiro, porém
essencial e decisivo. Contudo, da mesma forma que age em relação à teologia, Adorno não
abordou a mística de forma clara, direta e demorada. Ainda assim, não oferece poucas pistas
do que refletiu sobre a mística (assim como no caso da teologia, conforme acredito haver
demonstrado).
Pois é um momento da verdade que ela dure com seu nó temporal, sem nenhuma
duração não existiria verdade; a morte absoluta devoraria até o seu último traço. Sua idéia
174
175
não escarnece menos o pensar do que àquela da imortalidade. Mas o impensável da morte
cegueira que envolve todos os homens é também parte disso com o que eles se imaginam
uma experiência metafísica é mesmo ainda possível. Isso não se encontra jamais tão além
do temporal como no uso escolar da palavra metafísica. Já se observa que a mística, cujo
prejuízo pela construção institucional, constitui por sua vez uma tradição social e se
origina da tradição, passa por cima da linha de demarcação de religiões, que são, uma para
imediação metafísica, lá onde ela avançou mais, não nega o quanto ela é mediatizada. Se
ela invoca a tradição, deve também reconhecer sua dependência em relação ao estado
histórico do espírito.234
sentido existencial, Adorno liga o conceito de verdade ao tempo, à duração. A morte absoluta
é tão absurda e falsa quanto a idéia de imortalidade. Ambas fixam o tempo na ausência ou
andamento. A morte é impensável, e não devemos supor que haja uma imortalidade para além
234
(DN, 291; 6, 364-5), ―Denn es ist ein Moment von Wahrheit, daß sie samt ihrem Zeitkern dauere; ohne alle
Dauer wäre keine, noch deren letzte Spur verschlänge der absolute Tod. Seine Idee spottet des Denkens kaum
weniger als die von Unsterblichkeit. Aber das Unausdenkbare des Todes feit den Gedanken nicht gegen die
Unverläßlichkeit jeglicher metaphysischen Erfahrung. Der Verblendungszusammenhang, der alle Menschen
umfängt, hat teil auch an dem, womit sie den Schleier zu zerreißen wähnen. Anstelle der Kantischen
erkenntnistheoretischen Frage, wie Metaphysik möglich sei, tritt die geschichtsphilosophische, ob metaphysische
Erfahrung überhaupt noch möglich ist. Diese war nie so jenseits des Zeitlichen wie im Schulgebrauch des
Wortes Metaphysik. Man hat beobachtet, daß die Mystik, deren Name die Unmittelbarkeit metaphysischer
Erfahrung gegen ihren Verlust durch institutionellen Einbau zu retten hofft, ihrerseits gesellschaftliche Tradition
bildet und aus Tradition stammt, über die Demarkationslinie von Religionen hinweg, die einander Häresien sind.
Der Name des Corpus der jüdischen Mystik, Kabbala, bedeutet Tradition. Metaphysische Unmittelbarkeit hat,
wo sie am weitesten sich vorwagte, nicht verleugnet, wie sehr sie vermittelt ist. Beruft sie sich aber auf Tradition,
so muß sie auch ihre Abhängigkeit vom geschichtlichen Stand des Geistes zugestehen. ‖
175
176
dos limites da imaginação. Por isso, o pensamento não é nem diminuído por sua dependência
do tempo, pois nele ele se elabora e desenvolve, nem invulnerável a seu processo de mudança.
Na mudança não há falta completa de sentido, nem absolutização do nada, nem segurança em
suas sistematizações mais rígidas, como a lógica, pretende tornar definições, conceitos e
metafísica.
Essa ambição metafísica se choca contra a chamada experiência metafísica. Por que
que a razão impõe à experiência. Foi a partir daí que se originou o ideal de um conhecimento
puro.
Mas, afinal, se a metafísica é aquilo que está para além da experiência, da aparência, o
que Adorno quer dizer com ―experiência metafísica‖? Estamos diante de uma contradição em
termos. Devemos concluir que é nisso mesmo que Adorno intenciona refletir: a partir de sua
176
177
mais incerto possível. Nunca a filosofia até o empirismo e Kant, que eu saiba, negou a cota de
verdade da mística, pelo contrário, a tendência foi sempre dar a ela uma boa parte do que
estou chamando aqui de cota de verdade, não raras vezes a maior parte, basta examinar com
cuidado a extensa história do empréstimo entre filosofia e mística, que remonta às influências
mística236, há uma relação entre filosofia e mística geralmente muito íntima. A prova é que
grande parte dos chamados místicos estão inseridos na história da filosofia (e da teologia):
Dionísio Areopagita, Plotino, Gregório de Nissa, Nicolau de Cusa, Meister Eckhart, Johannes
Tauler, Heinrich Seuse, São João da Cruz, Jan van Ruusbroec etc. Os que não são filósofos ou
teólogos são tidos como escritores ou poetas: Ângelus Silesius, Hildegard von Bingen,
Mechthild von Magdeburg, Heinrich von Nördlingen, Margaretha Ebner, Teresa D‘Ávila,
Angela da Foligno, Hadewijch d‘Anvers etc., ou ambos (São João da Cruz); e restam poucos
os que são considerados santos e não associaram sua obra, seja ao corpus da filosofia, seja à
ordens religiosas. Se formos procurar aqueles que não são nem tais fundadores, nem escritores,
235
ALBERT, Karl. Einführung in die philosophische Mystik. Darmstadt: Wiss. Buchges., 1996. ALBERT, Karl.
Mystik und Philosophie. Sankt Augustin: Richarz, 1986.
236
O estranhamento do bom senso moderno em relação ao entusiasmo filosófico possui razões históricas, pois
foi objeto de uma larga operação de contenção precisamente no iluminismo. Este livro oferece uma interessante
discussão sobre a relação entre a crítica do entusiasmo e a secularização. HEYD, Michael. "Be sober and
reasonable": the critique of enthusiasm in the seventeenth and early eighteenth centuries. Leiden: Brill, 1995,
ver especialmente p. 274-80.
177
178
Logo, a mística está sempre associada a uma atividade que parece isolar e esvaziar sua
própria (e muito incerta) definição. A experiência mística pode adquirir funções literárias,
filosóficas, teológicas, políticas etc. Dentre os místicos, além de filósofos e escritores – que
encontrar aqueles que são muitas coisas ao mesmo tempo (filósofos, escritores, alquimistas,
socialistas, cientistas etc., como Fourier, Novalis, Newton para citar alguns), renascentistas ou
não, interessados e entusiasmados por diversas áreas do conhecimento, ou seja, pelo potencial
Não quero abordar o problema a fundo, apenas constatar que isso se deve ao fato de a
mística ser em seu âmago improdutiva. A experiência mística não se restringe a nenhuma
prática social e cultural, mas pode impregnar muitas delas; muita coisa pode motivá-la ou
contribuir para nela chegar; contudo, ela, em si mesma, não está em lugar nenhum. Isso
mostra o cerne simultaneamente prático e improdutivo da mística, que se choca com a ligação
epistemológica entre atividade e produtividade. Lá onde essa ligação a princípio não existe,
no reino ético, há interesse racional e social; mas na busca mística – ascética – há uma sorte
de ―finalidade sem fim‖, à semelhança do plano estético, mas sem produto específico. A
mística.
178
179
específicas de oração ou prece, a prática mística por excelência. Mesmo nesses exemplos –
ligados a doutrinas e práticas muito tradicionais como zen budismo, taoísmo, sufismo e, no
mística – vemos neles mais as práticas ascéticas que se orientam em busca da experiência do
doutrina específica 237 , podendo inspirar produtos culturais, mas sendo, em princípio,
improdutiva, e não levando a nenhuma utilidade material, política, social nem até mesmo
cultural. Se o fato de não ser utilitária é, por assim dizer, ao mesmo tempo o maior bem e o
maior mal da arte moderna, a mística não chega sequer a se exteriorizar em uma obra, uma
atividade ou uma idéia: de todos os ideais ascéticos culturais, a mística é a busca individual
mais improdutiva e insignificante possível. Nada mais individual, pessoal, íntimo, único, logo,
Não há o que dizer de uma experiência mística. Se o leitor a tivesse, seus melhores
ocorre como se não existisse: não leva, de início, a absolutamente nenhuma conseqüência
social. Não é muito diferente de um sonho. Até mesmo para quem a experienciou é facilmente
237
A discussão em torno da determinação cultural da experiência e da questão do grau de importância da mesma,
se essa determinação é essencial, co-participativa ou suplementar, será abordada no próximo capítulo.
238
FRÓES, Leonardo. Vertigens: obra reunida (1968-1998). Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 263. Leonardo
Fróes é um poeta brasileiro que escreveu um poema, ―Sim‖, cujo conteúdo ilustra bem o que estamos tratando:
―Mas não convém dizê-lo em público. Melhor não prová-lo. Não vão te levar a sério... Não tem noção de nada.
Não tem nada‖. Por outro lado, é por isso mesmo que muitos se tornam artistas e filósofos: tornam-se ávidos da
tentativa de uma comunicação, almejam, na verdade, a maior das comunicações. BATAILLE, Georges. A
experiencia interior. Sao Paulo: Atica, 1992, pp. 100-6. Esse conjunto de ambições sublimes (a maior das
experiências, a maior das comunicações, a maior das expressões etc.) não está ausente do ideal da obra de arte
absoluta ou do ideal da ciência da metafísica, por isso Adorno tem toda razão em conceber o conceito de
experiência metafísica. Sobre o ideal da arte ver (7, 60, 167).
179
180
Geralmente a tentativa de pensar sobre ela é feita logo após o acontecimento. Todavia, quanto
mais se tenta narrá-la ou explicá-la, mais se fracassa, e se se tenta fazer isso com um amigo,
mais cai-se em descrédito. Também não é raro na história serem associados místicos e loucos.
Mesmo psicanalistas menos preparados não saberão o que fazer dela. A arte perde muito de
que a união de ambas. Deixaremos esse tópico para mais tarde. O que importa destacar no
história na filosofia, diminuir a confiabilidade em tal experiência, até chegar ao ponto de Kant
filosofia com a mística ao longo de sua história, Kant foi a um só tempo sagaz e tosco o
bastante para rejeitá-la por completo ao se deparar com os absurdos narrados por Swedenborg
em suas viagens espirituais. Assim, desmistificando um exemplo mais fraco da mística (ou
suas características menos interessantes, isto é, diminuindo o seu alvo para melhor atacá-la),
239
HEYD, Michael. The Critique of Enthusiasm in the Seventeenth and Early Eighteenth Centuries, pp. 109-
164.
180
181
mística, dando até hoje a impressão de que ambos são coisas completamente diferentes,
opostas, imiscíveis240. Mas como grande representante do esclarecimento, o gesto de Kant foi
muito coerente com uma tensão sempre muito preocupante, um real mal-estar da razão diante
da mística.
aos olhos da metafísica do conhecimento. Encontramos aqui uma verdadeira oposição entre
dois pólos antinômicos da metafísica: sua ambição de conhecer e sua ânsia de experimentar.
senhor do mundo e da história, como fica claro com o espírito (Geist) hegeliano. A
dificuldade, contudo, é que de nada resolve ―renunciar‖ a esse desejo, pois, ao supormos fazê-
lo, estetizando a filosofia e a atividade de pensar, geralmente estamos, mais uma vez,
240
KANT, Immanuel. Werke. Träume eines Geistersehers,erläutert durch Träume der Metaphysik. t.2, p. 921-
89.
241
Derrida, por um lado, corre esse perigo, quando exagera na literalização e digressão lúdica da escrita, mas por
outro toma consciência de sua própria ambição. DERRIDA, Jacques. Points de suspension. Paris: Galilée, 1992,
p. 149-150. Penso que ele é mais interessante e admirável quando reconhece sua ambição do que quando talvez
a simule superar.
181
182
quando goza de seu próprio esvaziamento de objetividade, não cuidando da tensão necessária
entre sujeito e objeto. Por isso não convém, como o faz a teoria metafísica do conhecimento,
se corrigem reciprocamente.
metafísica, podemos entender melhor por que ela, com todos os seus componentes místicos,
acredita poder se deixar levar mais livremente pela inconfiabilidade da experiência. Não é
fácil lidar com as ambições sublimes da metafísica, mas a melhor maneira de iniciar esse
aprendizado é observar todas as suas astúcias e artimanhas por trás de discursos anti- ou pós-
metafísicos242.
Esse trecho da Dialética negativa nos é instrutivo à medida em que põe em cena
problemas pouco examinados pela teoria contemporânea. Adorno refere-se aqui a toda a
justificativa para tornar o pensamento invulnerável em sua própria perda de sentido. A morte,
242
Como boa iniciação ao aprendizado, Nancy, já em 1976, denunciou que os índices de descomposição,
desconstrução, deslocamento ou transbordamento do sistema são erigidos em valores, alçados em verdades e
hipostasiados em substâncias, NANCY, Jean-Luc. Le discours de la syncope. I. Logodaedalus. Paris:
Falammarion, 1976, p. 7. Steven Connor foi mais longe ao observar que a ―teoria afirma a sua legitimidade por
meio das formas de seu descrédito‖. CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna. Introdução às teorias do
contemporâneo (Oxford, 1989). São Paulo: Loyola, 1993, p. 24. Mas ambos não retiram disso todas as
conclusões necessárias e parecem ainda estar presos ao sintoma de que se deram conta.
182
183
captarmos algo do próprio caráter inconfiável da experiência, necessitamos saber lidar com
ao abrir-se e receber já quer controlar, abre suas portas para controlar, não estamos longe da
A solução não é, como se aparenta, jogar de lado o controle e se deixar levar pela
recepção, pois o desejo de controle é justamente aquilo que permite a recepção. Quando a
filosofia pensa aceitar absolutamente a morte como uma condição existencial e impensável,
ela está, mais uma vez, obrigando a morte a dar uma resposta. A aceitação fácil da pior
resposta é mais fácil do que manter a suspensão da dúvida, pois a suspensão levanta tanto o
Além disso, eles não pensaram em algo pior do que morte: Auschwitz. Depois de Auschwitz a
conclusão da filosofia não é a de que não há nada a fazer ou que há perda de sentido, pelo
contrário: há muito o que fazer, pensar e interpretar para que algo como Auschwitz, ou como
venho discutindo, somente a experiência. O rigor materialista em Adorno não está, de fato,
243
O engajamento de Sartre, que conjuga o absurdo existencial com a luta política, incorre em equívocos
práticos já indiciados por problemas teóricos da filosofia satreana, segundo Adorno. Mas não vamos tratar dessa
polêmica aqui. Frisamos apenas que o horror nazista, ápice da barbárie administrada, é, para Adorno, uma prova
de sentido para o trabalho em prol de um esclarecimento emancipatório, mesmo que essa ação seja mais teórica e
menos prática (o que também depende do contexto). Ver MBP,171; 11, 431.
183
184
grande cegueira de uma existência vazia não por condições de possibilidade existenciais, mas
por fixação em seu próprio fracasso e limite. Essa crítica dialética evidencia que as tentativas
reproduzem a cegueira teológica ou idealista da qual pretendem sair. Por causa dessa cegueira
da cegueira, Adorno constata a existência do contexto geral de cegueira, de que não é fácil
sair sem muitas torções dialéticas, reflexões constantes e demoradas, até para não
possui seus motivos tanto contra o niilismo244 existencial quanto o idealismo otimista.
Para sair dessa antinomia corrente na filosofia, é preciso partir de Kant e em seguida
pela filosofia. A crítica aos seus pressupostos e a impossibilidade de realizar seus objetivos,
tanto no plano teórico quanto prático, motivou o avanço do niilismo. A idéia de Nietzsche de
superar a metafísica, reconhecendo nela a própria origem do niilismo, ainda é uma reação ao
niilismo que lega a Nietzsche muitas de suas características lá onde ele mesmo não suspeitava.
244
O que entendo por niilismo pressupõe a discussão de Nietzsche, que a introduziu, mas com o desdobramento
de Adorno, Horkheimer e Türcke. Para Nietzsche o niilismo deve ser superado somente ao primeiro imergir-se
nele para depois chegar à afirmação incondicional da vida. Essa experiência nietzscheana é fruto de um embate
intenso e incessante com a experiência trágica. Na teoria crítica, especialmente depois de Auschwitz, não há
como sustentar a afirmação total da vida, pois ela mesma se torna mais uma nova espécie de niilismo (uma fuga
da ausência de fundamentos últimos, uma afirmação heróica da dor que nega o próprio fato de ela ser uma
ferida). Daí decorrem versões piores, como nos fundamentalismos: uma espécie improdutiva e rígida de
tradições que tentam tapar a ferida. Nesse sentido a imersão ao momento trágico niilista exige um outro tipo de
saída que ainda está ligada à experiência estética mas não pode simplesmente divinizá-la. O horror de Nietzsche
à impotência do indivíduo moderno frente ao sistema anônimo, que se agarra a um princípio estético como
último recurso, é sintoma de sua própria impotência. É necessário, portanto, aceitar a falta enquanto impotência,
voltar os olhos para a impotência dos ―sem-esperança‖, sem se entregar à própria impotência. TÜRCKE,
Christoph. Fundamentalismus - maskierter Nihilismus. Springe: zu Klampen, 2003, pp. 49-52, 153.
184
185
um todo ao niilismo. Seu erro começa nessa generalização. Quando supõe que toda a teologia
e a metafísica seja niilista, fruto do homem fraco, fracassado, diminuído, sua reação a isso se
torna, mais uma vez, niilista, ao abandonar o conceito de verdade, desconsiderando por
sujeito, do homem ou da vida forte245 como efeito de relações de força e vontade de poder. A
idéia da forte saúde do homem poderoso, considerado mau precisamente em razão de sua
bom246. Trata-se de uma interpretação curiosa, historicamente importante, mas no final das
julgamento teológico da justiça, isso sem contar com toda a problemática ética. Por isso, a
retomada da questão da metafísica de Kant faz-se necessária, como tentarei demonstrar nos
próximos parágrafos.
possível. Essa pergunta não significa que a razão seja levada a um ceticismo generalizado247
nenhuma é válida. Kant mostra apenas que o conceito é problemático e deve ser examinado
por uma ciência que consiga estender seus conhecimentos até chegar a torná-los válidos para
uma abordagem de questões fundamentais. Para isso ele introduz a questão de como são
possíveis conhecimentos sintéticos a priori 248, i.e. aqueles que não são nem analíticos (ou
seja, que independem da experiência), nem tampouco são dados pelo conteúdo da experiência,
245
NIETZSCHE, F. Nietzsche-Werke. Der Antichrist, t. 2, p. 1166.
246
NIETZSCHE, F. Nietzsche-Werke. Aus dem Nachlaß der Achtzigerjahre, t. 3, p. 910, n. 27.
247
KANT, I. Werke. Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten
können. t.5, p. 134
248
KANT, I. Werke. t.5, p. 135.
185
186
Kant ainda está preso à idéia de que é possível uma ciência da metafísica e procura dar
a ela critérios mais rigorosos para que um dia ela se torne possível e avance no seu
conhecimento como nas ciências naturais. Com esse projeto, a experiência não se torna mais
assegurar de suas hipóteses e em seguira seguiria seu percurso independente; depois desse
Fica claro nesse momento uma inveja das ciências naturais que produz efeitos nos
critérios de avaliação da metafísica e já antecipa algo do positivismo. Kant não quer lidar com
a inconfiabilidade da experiência, pelo contrário, pretende tirar somente o que ela fornece de
está em o sujeito não possuir uma faculdade de conhecimento adequada para experiências que
comprovação de que, mesmo se o homem tivesse uma visão, um olfato ou uma percepção
espacial e temporal mais aguda, como a ficção-científica por vezes imagina, mesmo assim
isso não resolveria o impasse, pois o plano transcendental é puro, desligado de qualquer
necessidade de comprovação.
Esse impasse Kant esperaria revolver, contudo, nos próprios avanços de uma
metafísica futura, para a qual ele fornece critérios mais rigorosos. Ao elaborar esses critérios,
em-si. Logo, podemos supor que Kant carregava um desejo inusitado: que a filosofia
186
187
conseguisse solucionar o impasse que ele mesmo postulou, isto é, que ela provasse a falácia
do impasse.
Ao formular uma estética, na Crítica do juízo, Kant sem dúvida diminui a rigidez
desse impasse, construindo uma ponte entre o abismo da razão teórica e da razão prática.
Mesmo assim, permanece o impasse, já que ele não acredita que os sentimentos estéticos, de
fato, forneçam algo teoricamente confiável. Kant sabe separá-los e localizar a especificidade
prazer estético movido por uma finalidade sem fim na reflexão da forma249. Essa finalidade
ocorre por meio da mesma, mas, de qualquer forma, não ajuda muito no que toca à questão de
saber se a experiência pode dar algo mais para as grandes questões metafísicas.
Foi isso que o idealismo posterior tentou fazer, e avançou muito em termos de método,
em especial no movimento dialético que destrava a rigidez conceitual kantiana, mas não
superou tal impasse, nem conseguiu dar à experiência estética um valor maior nessa
problemática, apesar das tentativas de Schelling 250 , que foi rapidamente desacreditado. A
valorização da arte por ele e por Schopenhauer não respeita rigorosamente a impossibilidade
de provas no campo da metafísica e tenta renová-la ilusoriamente por não serem capazes de
dominação, ele é extremamente útil para observar, ao contrário de Kant, que é somente a
249
KANT, I. Werke. Kritik der Urteilskraft. t.10, p. 231, § 42; t. 10, 135, §10.
250
SCHELLING, F.W.J. Werke. System des transzendentalen Idealismus, t. 2, pp. 286-98.
187
188
nenhum conhecimento empírico, refere-se a algo mais que o dado empírico, sem nos levar a
um conhecimento seguro desse ―algo mais‖ porque, como o impasse nos faz evidenciar, é da
metafísica e lá onde essa inconfiabilidade remete a algo mais que o existente, há experiência
metafísica. É o que o Kant da Crítica da razão pura despreza (apesar da terceira crítica) que
experiência ainda (noch) é possível. O advérbio de tempo pressupõe que ela foi possível
anteriormente, o que ocorreu, sem dúvida, na mística pré-moderna. Nela havia, segundo
racionalismo (Adorno deve estar pensando no catolicismo, que é nosso exemplo sempre
morais e transcendentes, a mística cristã acentuou a ascese pietista para que a experiência
etc.; não esquecendo que não há separação estrita entre teologia e mística e, como já foi dito,
251
STOLINA, Ralf. Niemand hat Gott je gesehen: Traktat über negative Theologie. Berlin: de Gruyter, 2000, p.
18.
252
Mesmo que o conhecimento, em Kant, advenha, pela experiência, tal experiência empírica é oposta à
experiência estética e mística, que ultrapassa o dado objetivo. O Kant teórico, insisto, subordina a experiência ao
conhecimento.
188
189
mística fazia parte integrante do esclarecimento numa época em que não havia
estabelecimento das religiões positivas e a separação entre deuses e homens, o abismo entre o
experiência pessoal, chegar a uma atualização, vivificação, dessa revelação253. Nesse sentido,
moderna, continham o que havia de mais materialista, se formos nos basear no materialismo
negativo adorniano. Portanto, era possível ser o mais genuinamente esclarecido possível e ser
simultaneamente místico, primeiro porque razão e doutrina não estavam nessa época
abdicar da razão254.
Resta saber se, depois do iluminismo propriamente dito, uma mística, ou melhor, uma
problema. Sabemos que foi precisamente depois do iluminismo que proliferaram espiritismos,
Por outro lado, artistas modernos dos mais importantes e canônicos muito se inspiraram não
253
SCHOLEM, Gershom. Die jüdische Mystik in ihren Hauptströmungen. Frankfurt/M.: Metzner, 1957, p. 9.
Portanto, a mística está precisamente entre o estabelecimento das grandes religiões monoteístas e a ruptura do
esclarecimento, segundo Scholem. O nome do terceiro grande período das religiões no qual a mística se insere
(depois do primeiro período de indistinção e do segundo de separação e entrada da revelação, p. 8), chamado por
Scholem de romântico, denuncia de forma clara essa tensão e ambigüidade.
254
CERTEAU, Michel de. La fable mystique. Paris: Gallimard, 1982, p. 15. Esse seria um motivo pelo qual
Certeau vê na mística já um fenômeno moderno.
189
190
só nos místicos mais esclarecidos como, não raras vezes, na leitura fascinada dos mais
Não posso abordar agora o problema, que exige grande cuidado; retenho a necessidade
de manter o estado de suspensão também nesse ponto: generalizar a mística como lixo de
Por isso necessitamos de todas as precauções da suspensão. Muitas vezes não podemos sequer
julgar com uma palavra os místicos mais duvidosos sem cair nas armadilhas da mística.
esclarecimento e da ironia; e mesmo lá onde ela é medíocre, suas armadilhas não são nada
Tudo nos indica que Adorno sabia disso, como ficará mais claro a seguir. A
perguntar se ela ainda é possível, Adorno procura nela não algo de atemporal, mas algo de
histórico que, por ter sido histórico, herético e subalterno, encontre na atualidade de uma
filosofia histórica seu lugar, não igual ao que era, mas transformado e atualizado. Isso vai
Agora Adorno aborda, finalmente, a questão da mística. Seu nome espera salvar a
255
Basta pensar na influência de Swedenborg em Boudelaire, Rimbaud e todo o simbolismo; a relação de
Fernando Pessoa com a teosofia e a astrologia; a influência da teosofia e da antroposofia em Stefan George,
Hoffmannsthal, Kandinsky. WIEBKE, Amthor. (org.). Profane Mystik: Andacht und Ekstase in Literatur und
Philosophie des 20. Jahrhunderts. Berlin: Weidler, 2002.
256
RIOS, André Rangel. Mediocridade e ironia: ensaios. Rio de Janeiro: Caetés, 2001, p. 14. RIOS, André
Rangel. Nada ou isto não é um livro. Rio de Janeiro: Garamond, 2001, p.57.
190
191
O místico é aquele que procura uma experiência do divino real e imediata, almejando
chegar à última realidade258. Ele não se apresenta, segundo Scholem, sem a existência e a
aceitação de uma determinada comunidade, nem é um tipo de rebelde absoluto que propõe
uma boa nova, ao contrário, é alguém que se aprofunda na própria tradição e por isso alcança
uma certa singularidade. Ele possui a especial capacidade de ligar a tradição, o texto sagrado,
com a experiência imediata. Tal experiência possui uma sorte de plasticidade infinita259.
Mas a construção de uma autoridade religiosa por vezes não permite que a elasticidade
dessa experiência seja aceita e se desenvolva. É interessante notar que, para a instituição
religiosa, assim como para a teoria do conhecimento, tal plasticidade é o que estávamos
nem – eis o mais surpreendente – de fé; mas, num outro extremo, do ponto de vista
A mística se coloca, nesse sentido, na fronteira da autoridade, pois desafia seus limites
não por negá-la, mas por aprofundá-la, elaborá-la no plano imediato, imanente. Sem ter o
desejo de se desligar da tradição e da autoridade, ela, por meio da tradição, acaba sendo
260
levada, por seu próprio movimento histórico, a fundar uma nova autoridade . O
257
SCHOLEM, Gershom. Zur Kabbala und ihrer Symbolik. Zürich: Suhrkamp, 1973, ―Religiöse Autorität und
Mystik―, pp. 11-48.
258
SCHOLEM, Gershom. Ibidem, p. 12.
259
SCHOLEM, Gershom. Ibidem, p. 16.
260
SCHOLEM, Gershom. Ibidem, p. 20.
261
Vale a pena destacar aqui que Scholem usa a mesma palavra, em relação à mística, que Adorno, na Teoria
estética, conceitua para a experiência de abalo na arte moderna.
191
192
Scholem divide aqui dois tipos de casos: há os místicos que dão um passo atrás e
sua própria autoridade, adquirida por meio do abalo da experiência, e terminam por pertencer
à pura apresentação do aspecto revolucionário da mística 262 . Há, enfim, uma tensão entre
afirma Scholem, paga o preço de reconhecer a autoridade do texto, mas surpreende com uma
Adorno não exibe toda a riqueza de possibilidades e detalhes como Scholem nessa
passagem, mesmo que se baseie nele, como convém, por não ser um especialista. De qualquer
forma, expõe idéias pessoais a respeito da mística. Ele afirma que a mística constitui uma
tradição social, enraíza-se na tradição, que não se reduz à doutrina institucional. A mística em
geral poderia ser entendida como uma tradição sem instituição, está enraizada nela na mesma
medida em que está dela excluída. Seu enraizamento na tradição social ocorre para além da
Ele lembra que o nome da mística judaica, a cabala, significa ―tradição‖, ―tradição de
coisas divinas‖, tal como escreve Scholem, logo na primeira página de seu livro264. Tanto
Scholem quanto Adorno, fiéis ao papel do historiador, observam na palavra a confissão de sua
própria historicidade. Já nos símbolos que ela produz sempre se cruzam experiência espiritual
e experiência histórica265.
262
SCHOLEM, Gershom. Ibidem, p. 21.
263
SCHOLEM, Gershom. Ibidem, p. 23.
264
SCHOLEM, Gershom. Ibidem, p. 7, ―Die Kabbala, wörtlich ‗Überlieferung‘, nämlich Überlieferung von den
göttlichen Dingen, ist die jüdische Mystik. Sie hat eine lange Geschichte ... ‖. Encontra-se a insistência do
significado da palavra ―Kabbala‖ como tradição numa carta de Scholem a Adorno que será comentada mais
adiante. SCHOLEM, Gerschom. Briefe I. 1914-1947. Org. Itta Shedletzky. München: C. H. Beck, 1994, p. 275.
265
SCHOLEM, Gershom. Ibidem, p. 8.
192
193
De modo ainda mais acentuado do que em outras concepções religiosas, a cabala traz a
história para dentro de sua própria noção de divindade e transcendência, em outras palavras,
lá onde ela leva a imediação da experiência a seus extremos não nega o quanto é ela mesma
visões ingênuas em relação à mística como quer frisar o quanto certas místicas, as mais
esclarecidas, não são nada ingênuas. O ponto alto da experiência mística, que é a experiência
existência histórica. Não descartamos a hipótese, que nos juntaria a alguns comentadores, de
chamar isso de mística da história. Afinal, é o que Adorno está pensando da cabala, no entanto,
dela, que nos leva a uma certa mística. Aqui, num sentido muito específico, há quem se
permita dizer que há uma mística em Adorno saída de determinada inspiração da cabala266, o
que não é o meu caso, mas, como se vê agora, não se trata de uma posição de todo
indefensável.
que não só no âmago da mística está a mediação da experiência histórica, como o âmago da
abalo do eu feito pela radicalidade dessa imediação prova a realidade última da história mais
ideológicos.
266
A questão será abordada no próximo capítulo 7, item 7.4.
193
194
Adorno, sempre atento à situação de suspensão, nos faz entrever esses dois aspectos:
espírito existente na história com a mística. Se devemos lidar com a hipótese de existir um
aspecto místico negativo da filosofia histórica de Adorno, veremos mais tarde que Adorno
está sugerindo algo mais surpreendente, que se confirma numa visão mais esclarecida do
De qualquer modo, pode parecer, aos olhos de um leitor pouco atento à entrada da
noção da mística em Adorno, que a passagem que estamos analisando mais se resguarda das
pretensões da mística do que dá a ela algum valor a mais. Deveríamos lembrar a esse leitor
todo o percurso já percorrido por nós no que toca a uma determinada teologia negativa em
Adorno, a experiência da fragilidade da metafísica na minúcia profana, que já prova ser uma
Mesmo assim, não podemos ignorar que Adorno não se sente à vontade para pensar a
questão da mística tradicional (MBP, 216-8) ou, como diz explicitamente, ele não gostaria de
falar do ―conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt) dessas coisas‖ (MBP, 216). Isso não
significa que a diminua. Ele não consegue dar a ela uma abordagem satisfatória, por não ser
um especialista em filosofia da religião. Além disso, não vê, com seu olhar de filosófo e de
historiador, muito acesso para pensar a experiência desenvolvida pelos textos tradicionais no
mundo atual (em MBP, 218, ele cita como exemplo São João da Cruz). Mas quando afirma
que não consegue conceber uma retomada destes textos, não coloca em dúvida sua
194
195
possibilidade; apenas não a leva adiante pela fronteira de seus interesses, por um lado, e por
Se ele chega a pressupor tal possibilidade na última aula do curso que ofereceu sobre
Metafísica, é porque dá a ela um grande valor, mas opta, retomando o famoso gesto de
Wittgenstein, por calar-se (MBP, 218). Se não desenvolve de forma muito clara a ligação da
experiência metafísica com a mística tradicional, mesmo que aponte claramente essa fonte
histórica e sua importância atual, Adorno não hesita em escolher como melhor exemplo atual
associando-as à sua infância (MBP, 218-9). Por isso, diz que não quer restringir o conceito de
Logo após o trecho que estamos analisando, Adorno vai eleger, como maior exemplo
mística na arte moderna, que não diminui em nada o conteúdo de verdade da mística
teologia e da metafísica. Se a relação com a mística tradicional não é de fato pregnante em sua
obra e pensamento (nem a teologia) 268 , o mesmo não podemos dizer da herança de seu
―conteúdo de verdade‖, observado por ele na arte e no pensamento moderno que Adorno mais
267
Veremos a relação de Proust com a experiência metafísica no item 7.3.
268
Nesse sentido discordo de abordagens que pretendem defender uma mística em Adorno sem levar em conta
sua distância tanto em relação com a mística cristã como até mesmo com a judaica. Para entender como a obra
de Adorno carrega um aspecto místico, é preciso primeiro se certificar de sua distância, o que Reinhard Matern
não parece sentir necessidade de fazer. MATERN, Reinhard. Über Sprachgeschichte und die Kabbala bei
Horkheimer und Adorno. Duisburg: Autoren-Verl.: Matern, 1996. É por isso que a briga, típica de abordagens
muito restritas e dos piores momentos da scholarship, de afirmar ou negar a existência da teologia ou da mística
em Adorno, não contribuem para o avanço da discussão. Veremos esse problema no capítulo 7.
195
196
preza e do qual ele se vê fazendo parte. O que fortalecerá minha hipótese virá a seguir - ao
mística da desmistificação
assim como um ensaio também dele, publicado no mesmo volume269. Adorno agradece de
modo exagerado (dizendo que foi ―a maior das alegrias ter recebido esse texto, sentindo como
um presente que foi preparado para ele desde muito tempo‖, ―... die größte Freude war, die
mire in Geschenk seit sehr langer Zeit bereitet hat‖, Blätter V, 144). Diante do exagero, que
vai se desdobrando na primeira parte da carta, Adorno procura, ao mesmo tempo, dar provas
Unverschämtheit), e que não é nenhum modo artificial de dizer (―es ist keine Redensart‖).
Adorno, num gesto de modéstia, afirma que não poderia se sentir preparado, amadurecido
um texto místico. Como se sabe pela leitura das explicações de Scholem, o Zohar é um texto
clássico da cabala (segundo ele, escrito entre 1290 e 1300); é um comentário da Tora, (o
269
Blätter V, 144. SCHOLEM, Gerschom. Die Geheimnisse der Schöpfung. Ein Kapitel aus dem kabbalistischen
Buche Sohar. Frankfurt am Main: Jüdischer Verlag 1992.
196
197
leitura do texto] se dá de tal modo que o indecifrável mesmo é um elemento da alegria que
(topologische Vorstellung). Quando se faz uma caminhada para altas montanhas, vem a
experimentado sabe, contudo, em qual lugar e como se portar para ver a camurça quando ela
precisaríamos poder descobrir a rara criatura. A verdadeira experiência não parece possível ao
caminhante pouco experimentado senão arriscando a vida (―als für den Einsatz des Lebens‖,
Blätter V. 144).
Essa introdução, que para nós é mais importante que o resto da carta, confirma todo o
tom de desejo, desafio e valentia trágica que já observamos nas cartas e trechos sobre teologia.
Portanto, o valor que Adorno atribui à mística judaica está, sem dúvida, na mesma altura que
alegoria do viandante não é só metaforicamente muito adequada. Ela mostra uma espécie de
reverência a uma sabedoria que o texto cabalístico possa conter, e mais: uma atitude de
em acrescentar que não podemos vê-la de forma ingênua, ou melhor, não podemos ingênua e
maldosamente depreciar o que há de ingênuo nessa atitude, para começar, sem levar em conta
270
Blätter V, 144. ―Aber sie ist von solcher Art, daß das Unenträtselbare daran selber ein Element der Freude ist,
die mir zuteil wurde‖.
197
198
que Adorno está reconhecendo, de antemão, que Scholem não é um sábio e que ele próprio
não é o discípulo esforçado nem será o futuro sábio. Ambos sabem que não sabem, ambos são
historiadores e não, como Scholem denomina o autor do Zohar (de identidade discutida,
sabe-se estar diante de produtos históricos, feitos por homens falíveis, estudados por outros
Mesmo assim, segundo certa secularização da mística que ficará paulatinamente mais
que dá a toda a experiência que encontra com seu trabalho e, finalmente, até às relações entre
professores e alunos, gerações mais novas e mais velhas, um valor de ―iniciação‖. Esse valor
é metafórico, não pode ser tomado ao pé da letra; entretanto, tal metáfora tem seu potencial de
literalidade.
mais velhas e mais jovens, dentro do circuito universitário laico, não é porque seus
sua existência histórica; é, ao contrário, porque eles estão experimentando sua própria finitude
Além disso, esse tipo de ―transmissão‖ (Adorno usa na carta a palavra Übertragung
para designar a tradução e introdução de Scholem do Zohar) não se dá de forma regrada e fixa
271
SCHOLEM, Gerschom. Ibidem, p. 19.
272
SCHOLEM, Gerschom. Ibidem, p. 30.
198
199
como ocorre nos rituais, iniciações e formalizações práticas esotéricas ou religiosas em geral;
Mas como temos visto ao longo de nossas análises, é essa fragilidade do profano, do
limite, no profano do profano, reencontra algo de transcendente, infinito e sagrado, que pode
ser inteiramente falso (daí a falibilidade da experiência), mas não deixa de, mesmo assim,
barbárie regida e imposta pelo próprio sistema, o verdadeiro é um momento do falso, o todo
é o não verdadeiro (4, 55); mas na experiência metafísica falível, o falso é um momento do
verdadeiro.
A atitude de Adorno na carta une o contexto com o texto, performance literária com o
assunto tratado, forma verbal, forma de tratamento e conteúdo. A hipótese de que haja ironia
nas palavras de Adorno não deve ser descartada, nem tampouco deve ser considerada
exagerada. Precisamente por que há uma alegorização do que é dito, a ironia não pode estar
sendo direcionada somente a Scholem, mas também a ele mesmo. Tal ironia aparece por
199
200
contrário de negá-la. A ironia não se choca com o respeito, e o respeito se estende a uma certa
Agindo dessa forma, Adorno demonstra não só um valor elevado pela tradição mística,
como assume que sua prática teórica, somada a relações pessoais com seus colegas teóricos,
contém heranças dessa tradição e se configura como uma mística paradoxal, onde a operação
de secularização não muda tanto assim o poder do próprio mistério nem mesmo nosso desejo
A própria natureza indecifrável do texto deu a Adorno a maior das alegrias, o texto foi
recebido como um presente esperado ou concebido há tanto tempo. Também não há como não
Hegel, ou de grandes obras de arte modernas, como Kafka, Beckett, Proust, George, Berg e
Schönberg. Mesmo assim, raramente ocorre Adorno se referir a essas obras em termos de
―alegria‖. Não há como não constatar que grande parte da intenção do texto místico se efetuou
Adorno lança duas perguntas. Não podemos analisar em detalhe nem suas perguntas
nem a resposta de Scholem, apenas mencioná-las. Comecemos pela segunda, pois a primeira é
mais importante para o que gostaríamos de abordar na seqüência. Ela coloca em jogo a noção
de natureza no texto do Zohar, observando que não há nele natureza primeira, há sempre
palavra, linguagem, ―símbolo‖, sem levar ao fim a atividade hermenêutica. Adorno evoca
nesse aspecto o caráter não intencional da verdade em Benjamin, jogando com um fluxo de
intenções sem intenção última. Nesse sentido o texto do Zohar se ligaria ao tema geral de
200
201
totalidade do simbólico273.
Não vamos tratar agora da imensa semelhança deste tipo de pensamento e desta
correta leitura de Benjamin com a primazia do texto no pós-estruturalismo, mas não é nada
impertinente observar, como não poucos comentadores já fizeram, que esse tipo de mística da
linguagem e totalidade do símbolo sem intenção última seria algo que ligaria Adorno,
seu potencial infinito de remissão simbólica (ou, em termos de Pierce, a semiose infinita274, e
certas fontes na exegese mística. Apesar de Habermas já ter observado, de uma forma ainda
pouco elaborada, essa semelhança entre Derrida e cabala275, assim como Umberto Eco o fez
com relação ao gnosticismo e à desconstrução em sentido amplo, citando como claro exemplo
o livro de Harold Bloom sobre o gnosticismo 276 , em geral essa relação ainda é pouco
explorada, mas foi a retomada de Derrida da teologia negativa que levou atualmente muitos
Não é ao acaso que essa primazia do texto está intimamente ligada, em Barthes, Lacan
e Derrida, à experiência de destruição do sujeito. Apesar dos abusos que podem decorrer da
273
SCHOLEM, Gerschom. Briefe I. 1914-1947, p. 275. Scholem responde a Adorno afirmando que este está
certo ao observar que não existe uma natureza primeira no Zohar, ou seja, não há nele fundamento.
274
PEIRCE, Charles Sanders. Semiotica. São Paulo: Perspectiva, 1977, pp. 45-62, 167-74.
275
HABERMAS, Jürgen. o discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990, pp. 175-8.
276
ECO, Umberto. Os Limites da Interpretação. São Paulo, Perspectiva, 1995, pp. 31-4. BLOOM, Harold.
Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996, pp. 19-34, 131-58, 163-67.
Bloom pretende com esse livro exibir uma verdadeira profissão de fé gnóstica, reafirmando ―a antiga convicção‖
de que ―o que nos liberta é a gnose‖, p. 164.
201
202
devemos evitar, isso seria motivo suficiente para prestarmos mais atenção às tradições
místicas ―ocidentais‖ e à questão da mística. Mas ainda há outros motivos não menos
decisivos.
(Blätter, 145) observada por Scholem na introdução277. Adorno reforça o fato de que há no
pretende chegar ao fato de que a cabala não é mística e teosófica por influências orientais,
mas desdobra uma mística própria das origens do pensamento ocidental. Essa observação
mostra claramente que Adorno está à procura dos fundamentos místicos da ―tradição‖ de que
distantes278.
A mística da cabala torna mais visível, por sua carga de influência, a mística dos
neoplatônicos e dos gnósticos, que são uma vertente da filosofia, ou do pensamento religioso,
Ele as comenta quando fala da mística nas Vorlesungen sobre metafísica, esclarecendo
o que escreveu na Dialética negativa279. É notável como na última Vorlesung ele insiste na
das mesmas correntes de pensamento em questão na carta, para acrescentar depois a mística
cristã. Adorno frisa que tais correntes não precisam de dogmas atrás de si, sem deixar de
colocar em primeiro plano a sua tradição, isto é, sua historicidade. Não há como não
277
SCHOLEM, Gerschom. Ibidem, p. 16, 26, 30.
278
SCHOLEM, Gerschom. Briefe I. 1914-1947, p. 275. Scholem responde que há uma ligação intrínseca entre
tradição e experiência, e que realmente não ocorre uma espécie de experiência originária (Urerfahrung), hipótese
que Adorno já tinha colocado de lado. É nesse contexto que Scholem chama a atenção para o significado de
―cabala‖. Adorno repete a insistência em tal significado em 20.2, 484.
279
MBP, 215. ―Also etwa die Beziehungen, die reziproken, sehr verwickelten Beziehungen, die zwischen der
Gnosis, dem Neuplatonismus, der Kabbala und dann wieder der späteren christlichen Mystik bestehen, - das
führt in einen Bereich von Historizität, der hinter keinem dogmengeschichlichen zurückzustehen braucht‖.
202
203
reconhecer aqui uma simpatia de Adorno por correntes de pensamento que retêm a dimensão
qual ele sempre foi especialmente mais crítico, Adorno parece simpatizar com seu lado
místico, reconhecendo nele a mesma qualidade dos cristãos não convencionais (9.1, 412) ou
Num outro momento das Vorlesungen essa simpatia chega a se transformar em clara
fundo se mantém em toda a metafísica, não pode em última instância ser mantida. Há
motivos espalhados e esporádicos na história do espírito que remetem para isso. E sem
herética; isto é, na especulação mística, que sempre foi essencialmente herética e que teve
doutrina mística – como ela irmana a doutrina mística da cabala com a mística cristã, mais
[Innerweltlichen] e com isso do histórico para com a transcendência e para com qualquer
280
MBP, 158-9. ―Die Gleichgültigkeit des Zeitlichen und der Ideen gegeneinander, wie sie im Grunde in der
ganzen Metaphysik sich durchhält, kann so nicht länger behauptet werden. Es gibt sehr vereinzelte, versprengte
Motive in der Geschichte des Geistes, die darauf hinweisen. Und zwar, merkwürdig genug, finden sie sich
weniger in der Geschichte der Philosophie, wenn Sie von bestimmten Elementen in Hegel einmal absehen, als in
der häretischen Theologie; das heißt also in der mystischen Spekulation, die ja wesentlich immer häretisch
gewesen ist und die immer einen prekären Stand innerhalb der institutionellen Religionen gehabt hat. Ich denke
203
204
que constitui o cerne da operação metafísica desde Platão, mas que acabou se cristalizando,
Esta separação deve ser conservada para que se mantenha a primazia do objeto e sua diferença
em relação ao sujeito, ao mesmo tempo que deve ser ultrapassada hegelianamente num
generalidade, ainda aqui para abordar regiões ou práticas do pensamento que não estariam
violência dessa separação e procuraram na teoria e na prática uma outra forma de lidar com a
Uma vez procurando encontrar, na história do espírito, esse tipo de movimento que
une experiência e noumenalidade, Adorno comenta, acentuando com razão o fato de ser
especialmente curioso, que esses motivos estão menos na história da filosofia do que na
se esforçou por descobrir nele algo mais do que a dominação totalitária do espírito281. Mas
dabei an die mystische Lehre – wie sie der Kabbala mit christlicher Mystik, etwa der des Angelus Silesius,
gemeinsam ist – von der unendlichen Relevanz des Innerweltlichen und damit Geschichtlichen für die
Transzendenz und für jede mögliche Vorstellung von Transzendenz.‖
281
No contexto do chamado pós-estruturalismo francês, talvez tenha sido Deleuze o que mais antipatiza com
relação a Hegel, enquanto que Lacan, muito por influência de Kojève e Bataille, tenha sido talvez seu melhor
leitor, como Slavoj Zizek tem reconhecido. Há elementos hegelianos no último Foucault de História da
204
205
para Adorno, como se vê, Hegel é um ponto determinante da virada na história da filosofia na
experiência é, para Adorno, o melhor ponto de partida para abordar a relação entre
experiência e razão, pois o espírito não faz outra coisa no seu movimento superador. Vale
observar que, nesse sentido, Marx não acrescenta tanto assim ao que foi introduzido por
Hegel, talvez inclusive tenha perdido elementos importantes ali presentes, e que esta perda
Adorno não levante essa relação, hoje cada vez mais estudada, entre Hegel e Böhme, ele a
fora a água com o bebê e perde o potencial emancipatório da mística, ainda que tenha mantido
Lá onde Marx sofre de uma mística sintomática, ele perde o genuíno potencial
sexualidade II e III. Fora Bataille e Lacan, foi pouco observado que Hegel possui os melhores antídotos contra
seu próprio movimento totalizador da história. Não vamos, contudo, trabalhar agora com esses outros autores,
ficando só a sugestão para um exame posterior. O'KANE, John. ―Marxism, Deconstruction, and Ideology: Notes
toward an Articulation‖.
new german critique, No. 33, Modernity and Postmodernity. (Autumn, 1984), pp. 219-247. DEWS, Peter.
"Adorno, Postructuralism and the Critique of Identity" In: BENJAMIN, Andrew (org.). The Problems of
Modernity: Adorno and Benjamin. London and New York: Routledge, 1989, pp. 1-22.
282
SCHOELLER REISCH, Donata: Gottesgeburt und Selbstbewußtsein: Denken der Einheit bei Meister
Eckhart und G. W. F. Hegel. Hildesheim: Bernward, 1992.
283
HEGEL. Werke, p. HW20:91-118. WALSH, D. (1994) ―The historical dialectic of spirit: Jacob Boehme‘s
influence on Hegel‖. In: PERKINS, Robert. History and system: Hegel's philosophy of history ; proceedings of
the 1982 sessions of the Hegel Society of America. Albany: State Univ. of New York Pr., 1984, p. 15-35.
284
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Karl Marx, Friedrich Engels: Werke (MEW). Vom Institut für
Marxismus-Leninismus beim ZK der SED (org.). Berlin: Dietz, 1956s, t. 1, p. 236; t. 3, p. 460-1; t. 13, p. 22; t.
25, p. 43.
205
206
se ilude na generalização dos princípios de sua crítica à metafísica. Essa ilusão crítica dos
graves equívocos, geralmente cometidos por quem não se ocupa com estudos de religião, e
Logo, citar Hegel nesse contexto é mais do que salvá-lo como exceção: é reconhecer
nos seus elementos apócrifos – que são, juntamente com Kant, o ponto de partida mais
Antes de continuar a análise, assumo uma possível crítica do leitor: será que não estou
estruturalismo, na arte moderna (conforme analisarei mais tarde) e agora em Hegel. Uns
podem se irritar com fato de indicá-la em vários lugares, outros podem reconhecer até que é
possível vê-la em muitos fenômenos culturais, e por isso tal influência perderia em
multiculturais. O próprio termo ―mística‖ deve ser problematizado na sua generalidade, e até
o momento um dos que melhor o analisou nesse sentido foi Michel de Certeau 285. Mas isso
285
Para um estudo mais detalhado a respeito, cf. o capítulo 6.
206
207
não significa que não haja a possibilidade e a necessidade, mesmo que sempre problemática,
influências decisivas no que estudamos mais de perto que surge a impressão geral de um
estudioso da mística estar exagerando em vê-la em todo lugar. Logo, é a ignorância da teoria e
da prática das diversas místicas que cria o preconceito em relação a ela – lógica típica do
Terceiro: é próprio de qualquer relação comparativa ter, quando pertinente, seu fundo
de verdade e sua relatividade. Cabe ao pesquisador saber achar uma comparação válida e nela
desvendar algo mais do que paralelismos (sempre possíveis mas superficiais) ou influências
fenômeno). Nas comparações que levantamos, cremos, embora não possamos aqui
previsíveis. Por isso citamos aqueles que já pelo menos iniciaram esse trabalho.
Quarto: é possível que muitos de seus especialistas acabem por produzir exageros
equivocados e se contaminar pelo fascínio que seu objeto desperta. Contudo, o inverso é
já mais bem situados dos que mencionamos no caso anterior, podem perder a dimensão
filosófica, metafísica, ética e estética da mística e restringi-la demais a seus limites históricos,
sem saber retirar de sua existência histórica seu potencial de transformação da história.
Quinto: como o próprio fenômeno da mística, no que ele tem de melhor e de pior, é
motivo constante de desconfiança, tal preconceito acaba por não diferenciar onde está o valor
207
208
cultural da mística. Há pouca discussão em como julgá-la. Há muito pouca reflexão sobre a
Qual é seu valor ético, estético, epistemológico, religioso, social, cultural, psicológico?
E qual é o seu valor intrínseco, quer dizer, o que seria, afinal, o valor próprio da mística, e de
que modo ele estaria se imiscuindo em outros valores? Enfim, haveria um valor místico? E
como ele pode ser reconhecido e pensado? A partir daí, supõe-se que poderíamos julgar quais
ou localizar e separar esses elementos dentro de uma mesma manifestação mística cultural, ou
distinguir algum aspecto da mística na filosofia, na arte e na política. Depois disso—e apenas
dela. Antes de generalizar a mística como mero produto da nova era, ilusão sub-religiosa ou
algo do gênero, e antes de etiquetar o pesquisador da mística como um sujeito tão charlatão
quanto o místico, precisamos pensar em tudo isso, só para começar. Nem cheguei a levantar o
fato de que a mística é um velho objeto de estudo e seu interesse só tem crescido ao longo do
tempo. Isso significa que seria necessário conhecer algo de sua bibliografia e tomar
fenômenos mais difíceis de delimitar, coisa que pode tanto contribuir para seu fascínio como
para seu desprezo, pois é justamente aí que está boa parte de seu valor e perigo intrínseco.
208
209
Retomando nossas observações, afirmo que há muito o que descobrir na relação entre
Hegel e a mística, e que Adorno, ao colocar um ao lado da outra, não por acaso dentro de um
mesmo registro difícil de garimpar na história do espírito, está dando condições para que se
reconheça essa possível ligação, distinguindo-a como o que há de melhor em Hegel. Não por
Böhme ser o ―segredo‖ desse ―melhor‖, mas por Hegel ter transformado filosoficamente o
que leu em Böhme (para dar um exemplo caro a Hegel) conservando dele motivos essenciais,
preponderância da razão.
que esse termo ―heresia‖ se repete ao se referir à mística, e que pode chegar a ser um motivo
de engano por parte de Adorno, pois, no caso da mística judaica, o termo heresia não se aplica.
Isso levanta a hipótese de Adorno estar mais influenciado pelo cristianismo do que gostaria ao
pensar a mística. Independente disso, se Adorno simpatiza tanto com o termo, é porque quer
Adorno não está se referindo a qualquer mística, e sim à mística especulativa, aquela
que explorou mais a fundo terrenos do pensamento para a ligação entre pensamento e
experiência. A separação que ele propõe nesse momento entre teologia e filosofia, colocando
tradicional (Agostinho, Aquino, Orígenes etc.) é impossível. Ela se torna mais evidente depois
políticas, evangelização etc. Logo, fica difícil concordar com Adorno quando denomina
Eckhart, Suse, Tauler e outros, apenas de teólogos e não de filósofos. Mas, ao dizer isso,
209
210
Adorno poderia estar pensando em Eckhart, que, como se sabe, foi acusado de herege depois
de morto.
equivocado, se pensarmos em Eckhart e até mesmo em São João da Cruz. Mas Adorno não os
cita aqui. Adorno deve estar pensando no Zohar, e nesse sentido sua denominação pode se
poesia medieval alemã. Chamá-lo de teólogo seria, por isso, forçado. Inventando esse novo
rol da teologia herética. Mas quando se fala em mística especulativa pensamos em Nicolau de
Cusa, Eckhart, Dionísio Areopagita, Jakob Böhme, São João da Cruz, certos textos mais
elaborados da cabala, e não imediatamente em Silesius, embora isso seja possível. Silesius é
um autor muito lido, citado, musicado em diversas composições, mas ainda pouco estudado.
Sabe-se que foi protestante e se converteu em 1653 ao catolicismo, quando assumiu o nome
provável que Adorno acredite nesse caso que haja uma solidariedade comum entre o lado
deve ao fato de esta obra ser mais poética e literária do que filosófico-sistemática, e de
manter-se na fronteira entre os dois campos. Os sermões de Eckhart também não deixam de
ter grande valor literário ao mesmo tempo que filosófico-teológico, mas prepondera
naturalmente a reflexão.
210
211
Adorno prova ser cuidadoso no uso da palavra ―herético‖ ao observar que a mística,
observação com a qual Scholem estaria de acordo. Assim como o materialismo apócrifo
algo do elemento herético da teologia: a mística especulativa. Essa tese despertaria reações
indignadas de materialistas se não acrescentássemos que disso não se pode concluir que
Adorno não é um místico especulativo nem um teólogo herético. Mas o valor que dá a
essas manifestações da história do espírito, e as conseqüências que tira de sua função nessa
história são maiores do que caberia a um materialista marxista mais ortodoxo, digamos assim.
para a transcendência, ao contrário da separação radical entre mundo sensível e mundo das
da experiência mundana.
satisfatória do que Adorno quer dizer, mas a citação de um dos pequenos poemas de o
211
212
Não podemos ignorar que em toda a obra de Silesius, mesmo na maioria deste livro, a
na devoção do amor único a Deus está sempre presente, como cabe a um cristão287. Eckhart
também insiste neste ponto: essa ascese radical não permite descanso nem exceção288. A única
chance de receber a graça de Deus e chegar a uma participação em seu ser (o que seria uma
―união‖ parcial que manteria sempre a diferença fundamental entre homem e Deus) só ocorre
Adorno. Mas o que devemos prestar atenção na mística, mesmo na mística cristã mais
rigorosamente ascética, é o que se passa através dessa ascese talvez sob os influxos do
estoicismo, que não abdica de prazeres moderados, julgados pela razão, e que faz deles um
fundamentada289.
É provavelmente nesse sentido que Adorno esteja valorizando a mística cristã. Nesse
286
A tradução é minha e improvisada. SILESIUS, Angelus. Werke. Cherubinischer Wandersmann. Viertes
Buch. "158. Das Große ist im Kleinen verborgen/ Der Umkreis ist im Punkt, im Samen liegt die Frucht,/ Gott in
der Welt; wie klug ist, der ihn drinnen sucht.", t. 3, p. 129.
287
SILESIUS, Angelus. Ibidem. Heilige Seelenlust oder geistliche Hirtenlieder. t.2, p. 34, 37, 44-8, 56, 121, 142,
162 (contra as imagens e a riqueza do mundo como valores do mundo), 358, 360; Cherubinischer Wandersmann,
t. 3, p. 16 (a vontade do eu de auto-superação é maior que o mundo, tão grande quanto Deus), 20, 55, 61, 87, 99,
121,123, 156, 191, 210, 213. Essas citações ainda não cobrem por completo toda ascese de ter a eternidade de
Deus como objetivo, amá-lo acima de tudo e sempre, desprezando os valores do mundo, temporários.
288
ECKHART, <Meister>. Deutsche Predigten und Traktate. Josef Quint (trad. e org.). München: Hanser, 1955,
Traktate X, p. 67.
289
HAYNES, Richard P. ―The Theory of Pleasure of the Old Stoa‖. The American Journal of Philology, Vol. 83,
No. 4. (Oct., 1962), pp. 412-419, especialmente pp. 416-419.
212
213
representar toda a vastidão do mundo como pequeno, dando a desejada dimensão da grandeza
de Deus.
Precisamente nesse ponto há uma grande convergência de Silesius com o Adorno que
prioriza o não-existente por meio da negatividade metafísica. O outro dado que completa a
íntima concordância está no fato de que Deus está no mundo, isto é, a grandeza sublime
divina está contida – escondida - na pequenez do mundo. Para descobrir Deus no mundo é
preciso ser inteligente, Klug, sensato. Pensando em Adorno, o correspondente seria fazer uso
da razão crítica. Mas o poema permite mais uma interpretação que convive com a relação
Quando Silesius se refere ao mundo, ele pensa menos na sensibilidade em geral do que
na vaidade (Eitelkeit) do mundo (―die eitle Welt‖), ou seja, nos valores egoístas ou
individualistas que regem a ordem social e o culto às imagens, que coloca esses valores em
primeiro plano, tidos como maiores que os transcendentes290. O mundo é pequeno, em outro
poema ele é chamado de um grão de areia, ―Die Welt ist ein Sandkorn‖291. Se o homem só
tem olhos para ver o mundo e não algo mais do que existe, sem, portanto, ser capaz de ver no
existente algo mais do que o existente, a doença desses olhos faz o grão de areia tornar-se
Isso quer dizer que quase o mundo todo é perigoso e leva à vaidade, mas há algo nele
que contém a grandeza de Deus. O que contém a grandeza de Deus não pode estar nas
290
SILESIUS, Angelus. Ibidem. Heilige Seelenlust oder geistliche Hirtenlieder, t.2, p. 162, 357.
291
Qualquer semelhança com ―Auguries of Innocence‖ de Blake não é mera coincidência. BLAKE, William.
The Pickering Manuscript. Montana: Kessinger, 2004, pp. 15-8: ―To see a World in a Grain of Sand/And
Heaven in a Wild Flower/Hold Infinity in the palm of your hand/And Eternity in an hour …‖.
292
SILESIUS, Angelus. Ibidem. Cherubinischer Wandersmann, t. 3, p. 218. ―262. Die Welt ist ein Sandkorn/
Wie, daß denn bei der Welt Gott nicht geschaut kann sein?/ Sie kränkt das Auge stets, sie ist ein Sandkörnlein.‖
213
214
ostentações do mundo, naquilo que é grande no mundo, pois essa grandeza concreta é
precisamente o ―mundinho‖ diante de Deus. O que contém presença divina no mundo é aquilo
que é pequeno no mundo. Quem tem olhos para só ver o há de maior no mundo, faz o mundo
tornar-se ainda menor do que é; mas quem tem olhos para ver as minúcias, saberá encontrar
onde Deus ou o absoluto está escondido, e engrandecerá até mesmo o mundo. Portanto, é no
que há de menor no mundo que se encontra o que há de maior, aquilo que está fora do
O segundo item está implícito, mas não é algo implícito que deve ser forçado pela
interpretação; ao contrário, o elemento implícito está escondido só para que o leitor chegue
por si mesmo a descobri-lo. O sentido implícito é precisamente aquilo que clama para ser
descoberto. Todo o poema é feito para que cheguemos a essa conclusão, ele só não a expõe
não diz através do que diz. Assim ele consegue produzir a coerência da forma com o conteúdo:
fragmento, no sentido de Schlegel e de Adorno. O que importa nele é o que esconde, não o
que exibe. Com poucas palavras ele pretende chegar ao maior, que só pode estar escondido no
própria dialética entre forma e conteúdo. Contudo, ele não deixa de lado a forma, uma vez
compreendida com conteúdo, nem deixa de lado o enigma, uma vez descoberta a suposta
solução. Se o poema afirma que o menor está escondido no maior, então é na materialidade do
214
215
poema (que remete para as pequenas coisas do mundo), na forma mesma do enigma, que está
seu potencial futuro, na parábola da mostarda (em Mateus 13:31, Marcos 4:31, Lucas 13:19);
ou seu poder de movimentar montanhas, seu poder maior que o mundo (Mateus 17:20; Lucas
17:6).
inutilidade profana, onde a metafísica e a teologia se refugiaram; além disso, tal reflexão
Adorno afirma que a concepção de mística praticada com veemência por Scholem apresenta,
não evita uma certa corrupção293. A força radioativa dessa queda é o que a força a entrar na
idade do esclarecimento. Esse fenômeno é visto por Adorno como a mais profunda ironia (der
tiefsinnigen Ironie). Mais adiante Adorno afirma que o trabalho de Scholem é uma tomada de
partido (parti pris) pelo heterodoxo contra o estabelecido, também contra a religiosidade
oficial, e chega a interpretar psicanaliticamente que o impulso político de sua juventude foi
desta forma sublimado!, sem deixar de ousar frente à pressão objetiva do mundo. O ponto
293
20.2, 481. ―Gerade er insistiert auf einer Art von radioaktiven Zerfall, der von der Mystik, und zwar
fensterlos in allen ihren historischen Ausprägungen gleichermaßen, zur Aufklärung treibe. Es scheint mir von
der tiefsinnigen Ironie, daß die Konzeption der Mystik, die er urgiert, sich geschichtphilosophisch als eben jene
Einwanderung in die Profanität darstellt, die er an uns für verderblich hält.‖
215
216
secularização da mística294.
Assim como já tinha feito na carta sobre o Zohar, Adorno insiste que, apesar das
diferenças, há nesse ponto uma concordância entre Benjamin e Scholem e, na carta anterior
ele termina se incluindo nessa concordância de modo até muito veemente e emotivo (Blätter
V, 146-7).
Agora podemos entender melhor o que Adorno quis dizer com o refúgio da metafísica
negativa e da mística 295 . Mas o curioso é que a mística está, diferentemente dos outros
heterodoxos e não os estabelecidos, isso implica que há nos heterodoxos uma relevância
processo, já se estaria encaminhando para o esclarecimento. Por isso ela tem, retroativamente,
muito o que dizer do próprio esclarecimento, inclusive para corrigir seu excesso instrumental
positivista.
294
20.2, 484. ―Sie mag zusammenhängen mit seinem parti pris für Heterodoxes gegenüber dem Etablierten, auch
gegenüber offizieller Religiosität; politische Impulse seiner Jugend sind wohl in dieser Haltung sublimiert.
Darüber hinaus waltet in ihr objektiver Zwang. Scholems Werk hat seiner Schwerpunkt in der Darstellung des
Sekularisierungsprozesses der Mystik, ihrer Affinität zur Aufklärung.‖. Mais adiante, em 20.2, 485 a
profanização da mística é relacionada com a proibição das imagens e a salvação na mais extrema distância da
origem, que só pode permanecer como objetivo. Essa é a concepção antinômica da cabala. Adorno valoriza a
mística não poucas vezes, caracterizando-a como antinômica, quer dizer, seu desejo de união não diminui uma
consciência da separação e incompletude da existência em relação à transcendência, mas faz todo o esforço para
se aproximar da transcendência na mundanidade.
295
A fonte próxima principal de onde Adorno retira essa idéia é, sem dúvida Benjamin e o famoso conceito de
―iluminação profana‖ aplicado ao surrealismo, ligado à embriaguez vinda do próprio pensamento. BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
1997, pp. 23-4, 32-3, na p. 33, ―a investigação mais apaixonada da embriaguez produzida pelo haxixe nos ensina
menos sobre o pensamento (que é um narcótico eminente) que a iluminação profana do pensamento pode
ensinar-nos sobre a embriaguez do haxixe‖. Como veremos no capítulo 7, esse conceito de embriaguez através
do próprio pensamento (e não de drogas), atento para as experiências mundanas mais insignificantes, ligado ao
de mística, foi diretamente herdado por Adorno.
216
217
pergunta sobre até que ponto Benjamin se apoiava de fato na mística, ao repetir a idéia de que
a cabala possuía fontes neoplatônicas. Adorno menciona a cabala pelo fato de reconhecer em
Benjamin o lema da ―reconciliação do mito‖. Vale lembrar que Scholem desenvolveu toda
uma discussão sobre a regressão da cabala ao mito na sua criação de símbolos, nas narrativas
moderno, for comparada à tradição dos primeiros profetas judaicos da Antigüidade, observa-
se nela uma certa regressão mítica, mas Scholem não a desqualifica por isso296. Nesse caso, há
tanto um perigo quanto um potencial na cabala, e a ambigüidade sobre a falta de uma imagem
oculto e repassa a carga de sua legitimação à mística judaica, da qual Benjamin tomou
pesquisador da cabala. Permanece em aberto à discussão de saber até que ponto ele se
caso, ele orientou o seu conceito de texto sagrado segundo a cabala. Para ele, a filosofia
296
SCHOLEM, Gershom. Zur Kabbala und ihrer Symbolik. Zürich: Suhrkamp, 1973, ―Kabbala und Mythos‖,
pp. 117-58.
297
10.1, 224. Die Versöhnung des Mythos ist das Thema von Benjamins Philosophie. Aber es bekennt sich, wie
in guten musikalischen Variationen, kaum je kahl ein, sondern hält sich verborgen und schiebt die Last seiner
Legitimation der jüdischen Mystik zu, von der er in der Jugend durch seinen Freund Gerhard Scholem, den
bedeutenden Kabbalaforscher, erfuhr. Es steht dahin, wie weit er in der Tat auf jene neuplatonischen und
antinomistisch-messianischen Überlieferungen sich stützte. ... Auf jeden Fall hat er an der Kabbala seinen
Begriff des heiligen Textes orientiert. Philosophie bestand ihm wesentlich aus Kommentar und Kritik, und der
Sprache, als der Kristallisation des »Namens«, schrieb er höheres Recht zu als das des Bedeutungs- und selbst
Ausdrucksträgers.
217
218
o ―significante‖. Percebe-se que Adorno retoma a ligação entre Benjamin e a cabala pensada
na carta a Scholem.
maneira alguma ele se aferrou a relíquias teológicas ou, como os socialistas religiosos, fez
profanação radical e sem reservas a chance para a herança teológica, que nessa profanação
uma dialética inversa, jogando metaforicamente com os termos: para Benjamin, os textos
profanos se sacralizam quando o sagrado se profaniza. Mais uma vez Adorno mostra que a
profanação radical que faz a herança teológica perder-se e, ao que tudo indica, reencontrar
uma teologia inversa no seu próprio extremo. Sublinhamos que Adorno assevera o fato de
298
10.1, 224-5. Die Idee des heiligen Textes transportierte er in eine Aufklärung, in die umzuschlagen nach
Scholems Aufweis die jüdische Mystik selber sich anschickte. Sein Essayismus ist die Behandlung profaner
Texte, als wären es heilige. Keineswegs hat er an theologische Relikte sich geklammert oder, wie die religiösen
Sozialisten, die Profanität auf einen transzendenten Sinn bezogen. Vielmehr erwartete er einzig von der
radikalen, schutzlosen Profanisierung die Chance fürs theologische Erbe, das in jener sich verschwendet.
218
219
mística.
é solidário à história dos judeus, e para isso acentuou aquilo que é empenhadamente (ele usa a
palavra eifernd) herege, até no interior da cultura judaica, diferenciando os judeus ortodoxos
dos liberais (20.2, 486). Mais uma vez, e de forma ainda mais clara, Adorno chama a atenção
para o fato de que essa tendência herética da mística judaica se põe em relação com a doutrina
mística do cristianismo, que é também, do lado de lá, anátema. Ele cita a igreja cristã oriental,
que teve ―a mais poderosa influência‖ (den mächtigsten Einfluß) ―na grande literatura russa‖
(in der großen russischen Literatur). Essa doutrina coloca em primeiro plano a noção de
Apocatástase, retomada de Orígenes299, que prega a restauração final de todos os seres depois
Aqui está mais do que evidente que Adorno não poupa esforços para elogiar e
reconhecer não só a mística judaica, mas também a mística cristã (no que ela teria de
especialmente herético), afirmando a sua influência na literatura russa (Adorno deve estar
299
ORIGEN. GREER, Rowan A.. Origen. New York: Paulist Press, 1979, p. 16-32. ORIGÈNE. Commentaire
sur saint Jean. Paris: Editions du Cerf, 1982, p. 195. ALTANER, Berthold. STUIBER, Alfred. Patrologia: vida,
obras e doutrina dos padres da Igreja. Sao Paulo: Edicoes Paulinas, 1988, pp. 213-5.
300
A influência da Apocatástase pode ser entrevista, realmente, em vários momentos da obra de Dostoiévski.
DOSTOIÉVSKI , Fedor M.. O adolescente. Trad. Ledo Ivo. São Paulo: Global, 1983, p. 365. Extraio um
momento do personagem Makár Ivánovitch, um velho simples, sem instrução, mas sábio, dias antes de morrer,
conversando com o protagonista, Arkádii Makárivitch Dolgorúkii. Ele o aconselha a rezar para os suicidas,
mesmo se eles já foram condenados. O protagonista pergunta: ―- Mas de que lhe servirá minha oração, se ele já
foi condenado? – E que sabes disso? ... Faze a mesma coisa em intenção dos pecadores ainda vivos: ‗Senhor,
com todos os meios de que dispões, salva todos os impenitentes!‘ Esta oração também é boa‖. Para a apreciação
do papel de Dostoievski na relação entre a estética marxista (vinda do circulo de Weber, Bloch e Lukács) e a
mística, ver LOWY, Michael. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukacs e Benjamin. São Paulo:
Perspectiva: EDUSP, 1990, p. 29, 55, 60.
219
220
alta prova de o quanto Adorno aprecia a mística, mesmo a cristã. O que não deixa de ser
surpreendente é ele dar à literatura russa todo esse valor, se pensarmos que não se ocupou
muito dela e que, algumas vezes em que comentou a obra de Dostoievski, o fez de modo
crítico.
Também no Sakrales Fragment, sobre a ópera Moses und Aron de Schönberg, Adorno
repete muitas das idéias que estamos expondo aqui. Essa ópera tematiza diretamente a
proibição das imagens e revela algo essencial da música (um sistema de representações sem
real experiência do invisível, do inapresentável. Contudo, esse ideal não se faz por um desejo
(16, 460). A essência imagética da música é imposta, portanto, pelo próprio ideal da obra sem
Adorno insiste no ―como se‖ (Als ob): pois mesmo essa queda absoluta é uma ficção. Por isso,
forçando uma aproximação se o próprio Adorno não chegasse a essa conclusão. Mas um
301
16, 460. ―Darum wird für den überaus unsinnlichen Vorwurf der sinnlichste aller musikalischen Typen
aufgeboten. Die Oper Moses und Aron ist musica ficta, aber als aufgehobene. Das Bilderwesen der Musik, vor
dem es der Idee des bilderlosen Werkes schaudert, wird den einzelnen Gestalten aufgebürdet, als ob durch deren
Untergang hindurch das Bilderlose geriete. Als ob: denn dieser Vollzug selber bleibt Fiktion.‖
220
221
caminho pelo qual ele propõe essa conexão – precisamente o ponto que nosso trabalho
Adorno presume que haja no tipo de família judaica de Schönberg, não mais ortodoxa, mas
mystische Tradition) semelhante a outros artistas seus contemporâneos como Mahler, Kraus e
Kafka. O esclarecimento possui – Adorno conclui a partir disso – uma herança teológica
deslocada enquanto apócrifa. Mesmo num certo momento de superstição de Schönberg, por
É importante frisar que Adorno possui toda consciência crítica de que há tendências
regressivas, míticas, supersticiosas na mística. Contudo, ele não vê nisso motivo para somente
desprezá-la, pelo contrário, nesse perigo há também uma chance em aberto da reconciliação
com o mito. Faz parte da regressão mítica da mística uma queda no sensível, feita justamente
por causa da falibilidade da experiência. Mas essa queda, mesmo que deva ser evitada e
secularizada em Schönberg. Vale observar que essa mística secularizada a que Adorno se
refere não é uma mística posterior ao esclarecimento, antes, é a mística como tal, é a porção
302
16, 460. ―Obwohl seine Eltern schon nicht mehr orthodox gewesen zu sein scheinen, ist, bei dem
Nachkommen von Pressburger Juden aus einer schwerlich ganz emanzipierten Familie der Leopoldstadt, eine
unterirdische, mystische Tradition zu vermuten wie bei manchen seiner Zeitgenossen ähnlichen Ursprungs,
Mahler, Kraus, Kafka. Aufklärung hat, wie man aus autobiographischen Äußerungen Schönbergs schließen mag,
das theologische Erbe ins Apokryphe geschoben. Zumal das Moment des Aberglaubens, das in Schönbergs
Leben zäh sich erhielt und über das er selber nachdachte, ist wohl ein Stück säkularisierter Mystik.‖ Mais adiante
encontramos inclusive mais uma referência à teologia negativa, ligada à reflexão sobre a primeira fase da obra de
Schönberg, que poderíamos considerar como a preferida de Adorno, em 16, 463.
221
222
Nesse caso, chegamos finalmente à inversão dialética da ―estranha ironia‖ de a mística ser
atravessada pela mediação histórica: é uma curiosa ironia que o esclarecimento tenha como
ilusória, mais ainda do que o racionalismo das religiões oficiais, não só é a precursora do
potenciais emancipatórios para a razão crítica. Ela merece ser honrada por ter valorizado de
ignorada, por ter encontrado o sagrado no mais frágil, desmistificado por meio do processo
participado diretamente de características centrais da arte moderna. Afinal, não são poucas as
suas qualidades.
Por essa razão este trabalho procura sublinhar o momento de valorização da mística
em Adorno, para a partir dele refletir o assunto. A despeito de que haja ainda problemas
próprios da compreensão da mística nos anos 60 que estão ainda hoje em discussão, Adorno
Diferentemente de uma visão ingênua da valorização da mística, feita pela Nova Era e
por ordens místicas esotéricas, ou por tendências teológicas ligadas a religiões oficiais, e ao
222
223
mística o quanto ela é mediada pela história e o quanto o esclarecimento é derivado dela e
mediado por ela. Pressupondo essas considerações, a conclusão é surpreendente mas não é
imprudente: sem mística, não há esclarecimento emancipatório. Mais ainda: a mística é uma
Não devemos ter medo de honrar a mística, uma vez que estamos partindo de
pressupostos da razão crítica, e não de suas imprudências ilusórias. Assim como a teologia se
equivocou lamentavelmente ao impor o que deveria liberar, a defesa da mística feita por
setores de religiões oficiais, e por ordens esotéricas, diminui em muito seu potencial
emancipatório, ao tentar dar a ela uma fixação doutrinal que a fragilidade de sua experiência
mesma vai sempre superar. Por isso mesmo acredito, como Adorno, que o movimento de
pensamento místico, que possuem valor mais sugestivo, alegórico, do que de verdade
imediata.
Contudo, do lado de fora dessas instituições e ordens, vejo nelas mais valor do que o
desprezo positivista, e acho que deveríamos dar a elas mais atenção e trazê-las para um debate
democrático ou, como quer Habermas, ―pós-secular‖. Afinal, mesmo que elas não possuam,
por vezes, tanto cuidado com suas fontes tradicionais quanto a pesquisa universitária laica
(penso nos mediavalistas, arqueólogos, egiptolólogos etc.), elas perpetuam um esforço prático
e experiência mística. Numa época e num mundo em que a maior parte das instituições
está longe de escapar, os esforços de criar condições para asceses não burguesas, críticas ao
223
224
consideração.
mística aguada, diluída, e dá a impressão aos supostos céticos – que são também os mais
indústria cultural, e, como tal, nunca deveria ser confundido com a teoria e prática mística
genuína. Mesmo assim, por vezes a confusão é possível, pois, se pensarmos nas misturas
mística, concluiremos que não devemos pretender julgar uma manifestação cultural com uma
só palavra.
Por outro lado, o desprezo fácil do cientificismo e da diluição acadêmica é, a meu ver,
tão perigoso quanto, pois possui sustentação institucional civil, influência em juízos tornados
totalitária.
místico
corrigir a noção de secularização de Adorno. Com uma leve ironia amigável, ele afirma que
corresponderia bem a uma articulação dialética a idéia de que sua heterodoxia mantém muito
da ortodoxia, e que ele se dedicou em seus escritos a mostrar a relação entre ambas as esferas
224
225
de forma dialética. Para Scholem, a secularização mesma não é algo definitivo, porém um dos
elementos de uma figura (Gestalt) que se transforma. Scholem se remete a Adorno, ―o senhor
sabe muito bem‖ (Sie wissen ja wohl sehr gut), para dizer que está longe de ser um ateísta e
que suas convicções religiosas estão em estreita conexão com seus conhecimentos históricos.
Para terminar, o próprio Scholem afirma que Adorno soube reconhecer isso no trecho final da
Scholem quer mostrar que a ortodoxia não vive sem a mística nem vice-versa, e Adorno está
secularização, sabendo-se que hoje seus limites estão sendo explicitamente reconhecidos. Não
me parece que Adorno não estivesse preparado para essa objeção, mas provavelmente ele
acredita nesse termo um pouco mais do que deveria. Além disso, sua separação entre o oficial
judaísmo. Não deixa de ser uma curiosa ironia que Adorno, num certo sentido, veja o
judaísmo com olhos cristãos. Isso mostra que Adorno está menos inserido no universo judaico,
303
SCHOLEM, Gerschom. Briefe I. 1948-1970. Org. Tomás Sparr. München: C. H. Beck, 1995, p. 193. ―Es
wird Ihrer dialektischer Gesinnung entsprechen, wenn ich sage, dass ich ausser für das Heterodoxe auch sehr viel
für das Ortodoxe übrig habe, und vieles in meinen schriften ist dem Versuch gewidmet, den Zusammenhängen
zwischen diesen beiden Sphären dialektisch auf die Beine zu helfen. Denn Sie sagen zwar mit Recht, dass ich
von der Säkularization der Mystik, und darüber hinaus der Religion, einiges zu sagen gehabt habe, aber jenseits
davon sollte doch auch nicht verschwiegen werden, dass ich die Säkularisation selber für nichts Endgültiges
halte, sondern für eine der sich wandelnden Gestalten. Sie wissen ja wohl sehr gut, dass ich alles andere bin als
ein Atheist, and dass meine religiöse Überzeugung mit meinen geschichtlichen Erkentnissen in engem
Zusammenhang steht. ‖
304
LIEDKE, Ulf. Ibidem, p. 419.
225
226
equivocado de Adorno mostra o quanto ele quer acentuar – não sem razão – o lado ―apócrifo‖
da mística. Se Scholem é mais exato nesse sentido, Adorno está mais interessado no potencial
de liberdade e esclarecimento da mística para uma reflexão sobre sua conexão com o
esclarecimento.
Scholem, com o ceticismo do bom historiador, coloca uma séria dúvida na hipótese do
―Sakrales Fragment‖ de que haja uma tradição mística subterrânea em Schönberg, Mahler e
Kafka, referindo-se à hipótese para ele falaciosa (e defendida por Adorno) dos judeus
boêmios (de Boêmia, em alemão Böhmen) e moravos (de Moravia, em alemão Mähren).
Scholem chega a se desculpar, ainda mais irônico do que na carta anteriormente analisada, de
1967, de não estar permitindo a prova de ―uma receita de doce teológico-judaica‖ (auf das
Há nesse acontecimento ainda mais ironia do que das outras vezes. Parece que
Scholem, o historiador nada ateísta, faz o papel de historiador cético para Adorno, o filósofo
materialista, que, nesse momento, encontramos no papel patético de alimentar ilusões sobre
uma suposta mística subterrânea. Essa inversão de papéis torna Adorno uma espécie de
sonhador que mistifica heranças místicas. Uma das mais típicas ilusões místicas é a da origem
sanguínea comum, ligada a um lugar especialmente privilegiado que faria brotar um povo ou
uma geração magicamente dotada. Adorno foi o primeiro a combater esse gênero de fantasia
305
SCHOLEM, Gerschom. Briefe I. 1948-1970, p. 115.
226
227
gregos. Contudo, agora observamos Adorno caindo nessa espécie de armadilha e sendo
Depois disso, ficamos com a desconfortável sensação de o quanto é difícil lidar com a
mística, de como o seu fascínio e sua posição delicadamente falível nos leva a tais disparates;
de como, mesmo Adorno, que seria, afinal, o último dos teóricos que tentariam valorizá-la
sem cair em sua rede, acabou ele próprio por se tornar mais uma de suas vítimas. Não é um
acaso que a grande maioria dos homens mais esclarecidos evitem pensá-la, abordem-na de
interesse por Jung e tenta se justificar sem muito sucesso. Ele observa que há toda uma
geração de judeus dessa região, que são, digamos assim, a nata de seu panteão: Kraus, Kafka,
Schönberg, Mahler, e agora, supõe enfaticamente, Freud. Adorno vê nessa lista a hipótese da
origem geográfica comum de uma tradição mística subterrânea e sua conversão (Verwandlung)
percebe que conseguiu reunir na sua hipótese dois equívocos aos olhos de Scholem: a origem
Não há como negar, parece-me, que Adorno esteja mistificando a origem comum de
sua dileta lista. Mas como a mística contém sempre a ambigüidade de uma falibilidade que
esconde qualquer coisa de verdadeiro, também não deixa de ser estranho que justamente esses
nomes tenham sido judeus e vindo mais ou menos do mesmo lugar. Não devemos dar muito
crédito à hipótese de Adorno, mas também não devemos aniquilar tal fantasia de vez: talvez
ela tenha seu conteúdo de verdade justamente por ser fantasia e não algo historicamente
defensável.
306
SCHOLEM, Gerschom. Ibidem, p. 275.
227
228
De qualquer modo, o mais importante nessa fantasia não é a metafórica verdade de sua
possível ilusão, mas seus pressupostos. Adorno julga que todos esses nomes produziram uma
espécie de mística secularizada, inclusive Freud. Essa hipótese é ainda mais ousada do que a
hipótese geográfica, sem ser fantasista como aquela, e por isso mesmo é mais defensável. Se
há uma herança essencial da mística no esclarecimento, então Adorno tem todos os motivos
para supor um aspecto místico – que seria uma certa mística do próprio esclarecimento - não
Essa hipótese sem dúvida generaliza a idéia de secularização da mística para boa parte
tradicional específica contém naturalmente seus riscos. Contudo, esses riscos não são
como também por causa da real ligação entre mística e esclarecimento, que até a época de
secularização da mística, que já faz parte do que há de mais tradicional nela, é um dos
Novalis, Schlegel, Hegel, Nietzsche e Freud, além de Benjamin e Adorno, uns mais outros
menos, não estão nada distantes do que podemos chamar de mística do esclarecimento, ou
Poderíamos acrescentar uma boa parte de nomes franceses, especialmente Georges Bataille.
Eis o que Adorno escreveu no final do artigo sobre Benjamin, e que foi citado por
228
229
última vez, mística e iluminismo.‖ (Prismas, 237307). Adorno se refere à ―salvação do que está
morto enquanto restituição da vida deformada‖, ou da esperança que só pode ser dada em
niilismo, há a entrada da mística. Esse último encontro entre mística e esclarecimento não é a
despedida antes do divórcio, é antes o ápice de uma cumplicidade que existe tanto nos germes
avançado do esclarecimento emancipatório. É uma nova teologia negativa e uma nova mística
que retiram o materialismo do niilismo ao atravessá-lo sem medo nem economia. Por outro
própria mística, e, no entanto, revelar na posição mais razoável possível o que ela tem de
melhor a oferecer, para nos entregarmos à falibilidade da experiência sem tentar fixá-la com
ilusões.
Uma nota de ―Três estudos sobre Hegel‖ (―Drei Studien zur Hegel‖) confirma todas
essas reflexões.
Uma filosofia histórica da clareza teria de refletir que ela remete à sua origem –
foi igualmente atributo do divino contemplado e de seu modo de aparição - a aura que
307
11.1, 252. ―Im Paradoxon der Möglichkeit des Unmöglichen hat bei ihm ein letztes Mal Mystik und
Aufklärung sich zusammengefunden‖.
308
5, 332. ―Eine Geschichtsphilosophie der Klarheit hätte darauf zu reflektieren, daß sie, ihrem Ursprung nach,
Attribut des angeschauten Göttlichen und dessen Erscheinungsweise zugleich war, die leuchtende Aura der
christlichen und jüdischen Mystik. ... Das Wort Aufklärung dürfte die Paßhöhe jener Entwicklung markieren. ‖
229
230
palavra Aufklärung também se refere a um páthos da luz, da claridade. Suas origens místicas
metodológica, tornando a consciência fetiche (―wird dem Bewußtsein zum Fetisch‖). Essa
consciência subjetiva faz da adequação ao objeto a própria repressão do objeto. Mas é na aura
suas promessas e no risco de ilusões que ela contém - que há a possibilidade de se retirar
dessa opressão metodológica e dar lugar à falibilidade da experiência. Mais uma vez, a
necessidade de controle lógico, epistemológico ou científico - com sua aura de modéstia, mas
230
231
Não poucos estudiosos recentes da mística observaram que ela é um objeto constante
de fascinação 309 . Michel de Certeau vai mais longe e afirma que ela fascina e irrita
Já abordamos algo das causas do desprezo ao qual ela normalmente está sujeita. Mas o
artigo de Certeau sobre o assunto nos permite entender ainda melhor suas razões 312. Segundo
o autor, o conceito de mística é produto do ocidente e não pode ser generalizado em outras
culturas sem perder boa parte dos traços que nele reconhecemos 313 . Keller observa que
culturas como o tasawwuf muçulmano, o bhakta indu etc., tende-se a ignorar uma estrutura
309
CERTEAU, Michel de. Le lieu de l'autre: histoire religieuse et mystique. Paris: Gallimard, 2005, p. 330, 339.
KATZ, Steven T. (org.). Mysticism and philosophical analysis. New York: Oxford Univ. Press, 1978, p. 1.
WIEBKE, Amthor. (org.). Profane Mystik: Andacht und Ekstase in Literatur und Philosophie des 20.
Jahrhunderts. Berlin: Weidler, 2002, p. 9. Essa lista não se esgota nesses exemplos.
310
CERTEAU, Michel de. Ibidem, p. 330.
311
SCHOLEM, Gershom. Die jüdische Mystik in ihren Hauptströmungen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980,
p. 4. WIEBKE, Amthor. (org.), Ibidem, p. 10.
312
CERTEAU, Michel de. Ibidem, p. 323-41. CERTEAU, Michel de. La fable mystique. Paris: Gallimard, 1982,
p. 105, a mística produz práticas transversais, uma indefinição do objeto, metáfora instável do inacessível e,
depois do século XVII, ela mesma contribuiu para sua própria dispersão.
313
―Mystical Literature‖. KELLER, Carl A.. In: KATZ, Steven T. (org.). Ibidem, pp. 96-7.
231
232
Certeau procura, por isso, fazer a genealogia do conceito moderno de mística. Antes
da modernidade, ele era empregado como parte intrínseca da devoção cristã e do mistério
divino, da trindade, do advento de Jesus etc. Mas, a partir do século XVI, e consolidando-se
discurso místico que deu lugar a uma genealogia do ―tesouro‖ e da tradição mística315. Nesse
momento separou-se a mística permitida e legitimada pela igreja da herética. A partir daí
místico no espaço social. Logo, esse saber criado para diferenciar e regulamentar o místico é
produto direto da contra-reforma. Por isso o conceito de mística não pode ser separado de
uma organização própria da sociedade ocidental moderna. A mística é um conceito que sofreu
enfim, uma extraordinária psicossomática configurou uma linguagem do corpo e motivou sua
psicologia, como por exemplo, chegando ao século XIX, a Charcot e a sua caracterização da
A solidariedade entre igreja e hospital é bastante clara no caso da mística, quando se analisam
Vale lembrar que a abordagem de Certeau, por mais esclarecedora que seja, tende a
que situe seus princípios do séc. XIII. Outros pesquisadores continuaram observando a tensão
314
CERTEAU, Michel de. Le lieu de l'autre, p. 54.
315
CERTEAU, Michel de. La fable mystique, sobre a heresia p. 30, já no séc. XIII iniciou-se a separação entre
mística e instituição p. 115, para em seguida trabalhar para seu retorno no seio da igreja e da tradição p. 117,
com a releitura do Dionísio Areopagita pp. 140-3.
316
CERTEAU, Michel de. Le lieu de l'autre, pp. 328-9.
232
233
entre mística e autoridade em outros contextos, como já mostrou Scholem. Mesmo Pseudo-
Dionísio, no século IV, contém elementos que se tornaram heréticos, e a oposição entre
mesmo nos componentes de um padre fundador como Orígenes, também tornados heréticos,
lado da heresia que Adorno pensou ver na mística um potencial libertário e esclarecedor. Por
isso é difícil entender e avaliar até que ponto as místicas são fruto do seio da tradição e são
exemplo, tende a diminuir a importância do aspecto herético da mística, afirmando que ―os
místicos não são mais heterodoxos do que os não-místicos‖ e que a dificuldade de entender a
herética do que outras manifestações sociais que ela deixa de conter potencial herético próprio
e que deve ser analisado no seu caso particular. Ainda prefiro a visão mais dialética de
Scholem que sabe avaliar tanto a derivação intrínseca da mística da tradição318 como o seu
sentido, Scholem sabe pensar a mística como um elemento problemático observando sua
317
―Mystical Experience, Mystical Doctrine, Mystical Technique‖. MOORE, Peter. In: KATZ, Steven T. (org.).
Ibidem, pp. 114-5.
318
SCHOLEM, Gershom. Die jüdische Mystik in ihren Hauptströmungen. Frankfurt/M.: Metzner, 1957, pp. 6-7.
Neste livro, Scholem é um enfático representante do contextualismo, ao insistir que não há mística em si, porém
somente mística cristã, judaica etc. As místicas não podem ser pensadas separadas de seu contexto cultural.
Contudo, ele não deixa de, como todos os contextualistas, propor determinadas generalizações que ultrapassam
a mística judaica, especialmente sua localização temporal da mística. Mas no artigo sobre mística e autoridade, já
citado, outros elementos do problema são expostos.
233
234
Não há dúvida de que essa ―heterodoxia‖ perde o sentido no lado oriental, em religiões
como o budismo, hinduísmo e taoísmo, que seriam já místicas por si mesmas, e diminui de
intensidade no próprio judaísmo. Nesse caso, há uma diferença entre sistemas monoteístas,
A posição de Certeau, por outro lado, é a de dignosticar, pelo menos no século XVII, a
mutuamente para esse processo, não havendo relação causal de uma para a outra 320 . A
que foram sendo construídas em torno da mística – uma linguagem exagerada como no uso do
que produz o próprio excesso, o ―marchar‖ do viandante etc. – mas também toda uma
constituir, almejando tornar-se uma ciência com seus santos doutores (cognominando desse
modo São João da Cruz) até se esfacelar, sobrando hoje uma verdadeira presença fantasmática
patologias etc321.
De qualquer modo, foi por causa desse tipo de controle e banimento social da mística
que apareceram os primeiros estudos filosóficos e religiosos que se configuram hoje como os
grandes estudos clássicos sobre o tema: William James, Henri Bérgson, Maurice Blondel,
319
SCHOLEM, Gershom. Zur Kabbala und ihrer Symbolik. Zürich: Suhrkamp, 1973, ―Religiöse Autorität und
Mystik―, pp. 11-48.
320
CERTEAU, Michel de. Ibidem, pp. 54.
321
CERTEAU, Michel de. La fable mystique, o livro em geral percorre a constituição da mística na idade
moderna; sobre a presença fantasmática hoje, pp. 410-1.
234
235
Jean Baruzi, Friedrich Hügel, Mircea Eliade, Rudolf Otto, Evelyn Underhill, Scholem etc322.
Há neles em geral uma ruptura com a tipologia dos ―fenômenos‖ místicos e a ênfase na
melhor a entrada institucional católica (Maurice de La Taille, Joseph Marechal, Dom Stolz)
antropologia nascentes (Durkheim, Lévy-Bruhl, Mauss etc.), isso sem contar com os
historiadores de místicas específicas como Scholem, Suzuki e outros. Há também o caso das
examinaremos adiante.
mística em todas as culturas. Stace, seguindo a tendência comum de todos os outros filósofos
anteriores, pretende provar que a experiência mística em todas as culturas é a mesma, o que é
que a experiência é fruto de sua própria interpretação. Stace discorda de Zaehner replicando
322
CERTEAU, Michel de. Le lieu de l'autre, pp. 323, 329.
323
CERTEAU, Michel de. La fable mystique, e ele procura retomar na análise das lutas ascéticas, na tentativa de
abrir o corpo ao espírito, inventar no verbo um corpo de amor, p.108.
324
―Language, Epistemology and Mysticism‖. KATZ, Steven T. In: KATZ, Steven T. (org.), Ibidem, pp. 27-31.
Ver as três teses sobre mística de Katz onde ele mostra até onde vai o grau de complexidade das abordagens da
mística antes dele na pp. 23-4. STACE, Walter Terence. Mysticism and philosophy. New York: J. B. Lippincott,
235
236
É a partir desse ponto que se inicia a crítica de Steven Katz a todas as abordagens
específicas como Scholem, configurou nos anos 70 uma ruptura explícita e necessária.
radicalizando-a. Ele defende que todo o contexto cultural - político, social, econômico,
arrisca-se a tipificar a mística como monista ou teísta, favorecendo inclusive uma abordagem
culturais que podem chegar às mais tendenciosas avaliações ideológicas. Essas visões
―perenialistas‖, para usar o termo de Aldous Huxley327, afirmam haver uma relação entre a
humana. Katz chama atenção para a ―variedade de verdades‖, para as diferentes realidades,
1960, p. 31-7. ZAEHNER, Robert Charles. Mysticism, sacred and profane: an inquiry into some varieties of
praeternatural experience. Oxford: Clarendon Pr., 1957.
325
―Language, Epistemology and Mysticism‖, p. 31. ZAEHNER, Robert Charles. Hindu and Muslim Mysticism.
London, Athlone Pr., 1960, p. 188.
326
―Language, Epistemology and Mysticism‖, p. 49. STACE, p. 132. . STACE, Walter Terence. Ibidem, pp. 55-
133.
327
HUXLEY, Aldous. The perennial Philosophy. London: Chatto & Windus, 1947.
236
237
Não há, para Katz, uma experiência imediata: toda experiência é mediada pelo seu
da oração cristã. Se um acredita numa aproximação íntima da alma com Deus e numa relação
de amor e outro pretende aniquilar o Eu sem nenhuma crença num Deus monoteísta, então as
duas experiências precisam ser essencialmente diferentes. Até no nível mais individual não há
como encontrar denominadores comuns, pois quando alguém alega que foi sujeito de uma
experiência, esse sujeito não pode ser separado de sua própria experiência329.
que respeite e aprecie a variedade mesma das diferentes místicas. Essa visão contextualista
tem como pano de fundo todo o movimento dos estudos culturais que foi evoluindo do pós-
guerra até os anos 80, quando se estabeleceram de forma mais consistente até se tornarem
uma escola teórica influente dos anos 90 até hoje. É inegável que a crítica a essa tendência
ideológica da generalização foi e está sendo muito importante para não reduzir culturas com
voz minoritária. Esse problema apareceu nos estudos de mística e está sendo tratado.
A defesa que Katz presta a seu objeto é, portanto, dar valor à riqueza e à pluralidade
Contudo, Katz foi alvo de críticas. No livro organizado por ele, há também tentativas
de estabelecimento de tipologias das práticas místicas, como por exemplo, no valioso artigo
de Peter Moore. Moore desfaz o mito de que só quem experienciou a mística pode falar dela.
328
―Language, Epistemology and Mysticism‖, p. 49, 51, 64.
329
Ibidem, p. 64.
237
238
Além disso ainda afirma que a literatura mística, por mais que insista no fato de que a
perigo em discussões sobre mística, especialmente vinda de uma posição dogmática, que
muito freqüentemente denigre o papel estético ou até mesmo filosófico do texto místico a
favor da inefabilidade fundamentada pelo dogma. Esse tipo de posição diminui o próprio
valor existencial da dimensão estética, como se ela não passasse de mera beleza textual, e da
nada mais previsível, por reação, do que encontrar rapidamente opositores que vão denegrir a
própria experiência mística, afirmando que ela tem uma pretensão absurda e irracional tanto
do lado dogmático quanto do lado das comunidades esotéricas e teosóficas. Nesse tipo de
briga vã, os opositores se defendem com suas piores características e minimizam suas
melhores qualidades.
Moore defende, de forma sensata, a análise laica das práticas místicas, a maneira pela
qual tais práticas incorporam, refletem e assimilam a interpretação, como elas descrevem e
selecionam características específicas daquilo mesmo que experienciam para seus objetivos331.
Contudo, vale observar que nessa análise da prática ele generaliza a mística ao afirmar
que ela contém basicamente dois tipos básicos de exercícios: a meditação, caracterizada pela
simples objeto ou idéia332. Deste modo, Moore esquece a ―variedade‖ das práticas e as teorias
da prática que não se reduzem a essa oposição estanque entre imaginação e concentração, ou
330
―Mystical Experience, Mystical Doctrine, Mystical Technique‖. MOORE, Peter. In: KATZ, Steven T. (org.),
Ibidem, p. 107.
331
―Mystical Experience, Mystical DOctrine, Mystical Technique‖, p. 108.
332
Ibidem, p. 113.
238
239
que não utilizam nenhuma das duas atividades. Como se vê, ele não foge à regra da qual Katz
pretende se emancipar.
mais fundamentadas e cuidadosas que Zaehner. É partindo daí que Robert Forman questiona
as próprias generalizações de Katz e ataca sua tese contextualista com o que ele chama de
―descontextualismo‖334.
Forman informa que 43 % dos americanos e 46 % dos ingleses - dos quais a maioria
são pessoas graduadas em universidades e não pessoas imersas em crendices – afirmam terem
comunicação tão difícil entre as pessoas, isso não se deve ao fato de ela ser privilégio de uma
minoria, e sim, arrisco-me a dizer (Forman não pensa as implicações disso), a uma espécie de
tabu que tal experiência mesma sofre em diversos círculos sociais (universidade, religiões,
Sua aura de pretensão e estranheza – ou, como Certeau escreveu como muito acerto,
como fenômeno estranho e essencial 335 - até mesmo por conter grande potencial de auto-
superação, na maioria das vezes impede, em vez de ajudar, a sua comunicação despretensiosa
a uma outra pessoa, principalmente se a linguagem que o portador da experiência usa para
333
―Language, Epistemology and Mysticism‖, p. 63.
334
FORMAN, Robert K.C.. The innate capacity: mysticism, psychology, and philosophy. New York: Oxford
University Press, 1998, p. 3.
335
CERTEAU, Michel de. Ibidem, p. 329.
239
240
traduzi-la não for aceita por quem ouve, seja por diferenças especificamente religiosas, seja
Para falar sobre o essencial, que ainda se apresenta como estranho, é preciso o maior
de Katz fornece para isso uma fácil resposta: a comunicação é difícil por que a experiência
mesma é diferente. Cabe ao interlocutor aceitar ouvir experiências que ele não teve, em vez de
tentar entender o que ele não pode. Contudo, a aura de estranhamento e pretensão da
―caminho‖ do místico direto para o hospital e dificultando em muito uma audição mais
receptiva da diferença.
Para solucionar problemas como esse, Forman, de maneira muito ousada, propõe uma
nova visão perenialista, não sob bases ontológicas, mas psicológicas e mentais. Segundo ele,
Katz ignora alguns fatos. Muitos místicos iniciam uma experiência antes de entrarem em
contato com uma doutrina específica ou formas de interpretação da mística e só por isso
procuram saber a respeito. Embora muitos indivíduos nunca tenham tido experiências desse
tipo336, outros tantos tiveram, assim como nem todo mundo se apaixona, por exemplo.
Por esses e outros argumentos, Forman acredita que estamos diante de um novo estado
de consciência. Nesse estado, em sua forma mais pura, há uma perda da capacidade da
consciência de se concentrar em um objeto. Ele cita Hume afirmando que não há consciência
senão sempre ligada a um objeto337, assim como aparece na fenomenologia. Forman afirma
que esse tipo de afirmação só revela a experiência do próprio filósofo e não qualquer tipo de
experiência da consciência.
336
FORMAN, Robert K.C. Ibidem, p. 12.
337
FORMAN, Robert K.C. Ibidem, p. 17.
240
241
consciência de si mesma sem introduzir nenhum objeto, de modo que a própria consciência
não se perceba como separada de qualquer outra coisa, e portanto tenha uma experiência de
introversão que rapidamente encontra uma qualidade de extroversão, isto é, sente-se parte do
todo sem que se definam seus próprios limites. Daí a sensação de união com a totalidade dos
Forman, no pure consciuosness event (PCE), há uma reflexividade não de natureza intelectual
e filosófica, mas de natureza experiencial, onde o sujeito se encontra com a pureza inata da
capacidade humana mesma de ser consciente. Forman afirma que em outros estados essa
forma introvertida inicial pode dar lugar à PCE em atividade simultânea com outras
rua mais movimentada de um centro urbano339. Forman sofistica seu conceito de PCE com
alterados.
do ser humano que independe de diferenças culturais. Para alcançá-lo, há métodos culturais
específicos de práticas e interpretações, e para dar a ele marcas culturais, ele pode encontrar
338
ALBERT, Karl. Mystik und Philosophie. Sankt Augustin: Richarz, 1986. p. 12.
339
FORMAN, Robert K.C. Ibidem, p. 27.
241
242
―sabores‖ diferentes em diferentes tradições e culturas341, mas isso não diminui seu caráter
imediato e inato.
mesma, de modo que a consciência alcança esse novo estado em oposição ao saber-por-
sobre (reflexão conceitual e representacional). Esse novo saber Forman chama de saber-por-
identidade, que explicaria o fato de o místico não conseguir dizer o objeto de sua experiência.
Não há como descrever a experiência simplesmente porque ela não se dá a partir de um objeto,
antes, de uma reflexividade não-representativa 342 . Por isso, trata-se de um fenômeno não-
estado não intencional e puro da mesma. Por isso a tese contextualista de Katz cairia por terra
A meu ver, a teoria de Forman nos oferece inegáveis avanços e não deixa de ter suas
razões em contestar a intencionalidade de Katz. Forman diz que Katz não leva em conta os
humana, especialmente pelo fato de refutar a tese de que a consciência é sempre consciência
de alguma coisa.
341
FRANKLIN, R.L. ―Postconstructivist Approaches to Mysticism‖. In: The innate capacity: mysticism,
psychology, and philosophy, p. 233-4.
342
FORMAN, Robert K.C. Ibidem, pp. 18-24.
242
243
com grande complexidade por diferentes filosofias, ignora um estado em que a consciência
não possui objeto, logo, sua existência psicológica sustentada por uma fundamentação
filosófica não seria tão contraditória assim343. Além disso, teríamos uma base teórica mais
plausível para entender por que tantas tradições insistem em dizer que há um estado de
São João da Cruz há um estado de participação da divindade para além não só das percepções
antropológicos etc.) de que poderíamos dispor, penso que a tentativa de Forman de teorização
da mística como um todo é mais arriscada, mas também mais avançada, que a de Katz. Mas é
claro que tanto risco envolve problemas. Para começar, o próprio conceito de consciência, em
―reflexividade‖ e ―pureza‖, mas sobretudo – o que é bem mais grave – as noções muito
343
FORMAN, Robert K.C. Ibidem, pp. 17.
344
FORMAN, Robert K.C. Ibidem, pp. 10.
243
244
Como não poderia deixar de ser, as críticas a Forman geralmente se dão a partir deste
último ponto. Fica difícil colocar em primeiro plano a categoria de imediação para tratar de
problemas de Forman. William Barclay Parsons mostra que Freud duvidou da fonte
estudiosos da mística antes de Katz, Scholem e Certeau, mas em geral caiu no extremo oposto
avaliação do budismo, por exemplo, e que Parsons considera fazer parte de um mainstream.
Horton, Fromm e que levou a estudos mais recentes de Meissner e Kakar. Em seguida
psicoanalíticas e se baseia em teóricos como Bion e Lacan, que já contém elementos teóricos
intrínsecos simpáticos à mística346. Parsons observa que o conceito de ―O‖ de Bion, assim
345
PARSONS, William Barclay. The enigma of the oceanic feeling: revisioning the psychoanalytic theory of
mysticism. New York: Oxford University Press, 1999, p. 10.
346
LACAN, Jacques. Le Séminaire de Jacques Lacan, Livre XX: Encore. Paris: Seuil, 1975, p. 71: ―Ces
jaculations mystiques, ce n'est ni du bavardage, ni du verbiage, c'est en somme ce qu'on peut lire de mieux - tout
à fait en bas de page, note - Y ajouter les Écrits de Jacques Lacan, parce que c'est du même ordre. Moyennant
244
245
feminina. Julia Kristeva, seguindo as pistas de Lacan, teorizou estruturas psíquicas do gozo
Vale sublinhar que o psicanalista indiano Sudhir Kakar escreveu um importante ensaio
sobre o místico Ramakrishna. A partir de Lacan, ele observa que o desejo humano é
essencialmente perverso, o que a mística hindu interpreta como o reino do maya, da ilusão. O
místico almeja um verdadeiro caminho de sanidade na procura de realização no real. Ele não
pode enganar sua própria sede por essa realização e é o ―único‖ que tenta ir além das ilusões
do imaginário e mesmo do registro simbólico. Assim Kakar vai além da tradicional ênfase
da desintegração350 .
vagina, como signo de um uso da imagem para dela sair, do desejo sexual para encontrar a
―primeira feminilidade‖ (em oposição à secundária, que define a diferença sexual psíquica),
Kakar situa o estágio em que o elemento feminino e o masculino se misturam num misticismo
quoi, naturellement, vous allez être tous convaincus que je crois en Dieu. Je crois à la jouissance de la femme en
tant qu'elle est en plus, à condition que cet en plus, vous y mettiez un écran avant que je l'aie bien expliqué.‖
347
KRISTEVA, Julia. «Savoir différer pour mieux désirer». In: Marie Solemne (dir.) Entre désir et renoncement.
Paris: Éditions Dervy, 1999. P. 75-94.
348
PARSONS, William Barclay. Ibidem, p. 134. CERTEAU, Michel de. La fable mystique, pp. 15-8.
349
PARSONS, William Barclay. Ibidem, pp. 132-3. KAKAR, Sudhir. The analyst and the mystic:
psychoanalytic reflections on religion and mysticism. New Delhi: Viking, 1991, p. 22, 32.
350
KAKAR, Sudhir, Ibidem, p. 34.
351
KAKAR, Sudhir, Ibidem, p. 33, 40.
245
246
Jeffrey J. Kripal me parece ter ido mais adiante num duplo movimento. Ele também
base traumas infantis específicos, ou seja, trabalhando com conflitos psíquicos analisáveis,
para daí deduzir o desenvolvimento de seu ascetismo. É a partir dessa situação psíquica que
ele chega a uma experiência religiosa de relevância ontológica. Em seu trabalho místico-
erótico, Ramakrishna está colocando em jogo ao mesmo tempo um grau divino e um conflito
sexual352. É nesse sentido que Kripal parece ir mais fundo na ambigüidade da experiência
O que me interessa, nesse sentido, é sublinhar que o potencial do místico não reside
em superar a sua própria sexualidade ou abandonar por completo as ilusões imaginárias (até
porque, como estamos observando, ele corre sempre o risco de nelas recair muito facilmente),
antes, de servir-se de seus próprios sintomas para superá-los na experiência mística, sem
deixar de, retornando à vida cotidiana, reencontrá-los de novo. O místico ultrapassa seu limite
psíquico momentaneamente, torna seus limites, por um momento, indefinidos, e por isso
consegue experimentar uma real superação, mas não sem retornar para tais limites mais uma
constitui a maior das pretensões da mística, e revela a face megalomaníaca do místico. Ela é
quase sempre contraposta à humildade e humilhação extrema, à aniquilação do eu, que são
352
PARSONS, William Barclay. Ibidem, pp. 137. KRIPAL, Jeffrey John. K¯al¯i's child: the mystical and the
erotic in the life and teachings of Ramakrishna. - Chicago: Univ. of Chicago Press, 1995, p. 326.
246
247
seus opostos complementares e que, no fundo, a justificam. Ela é a verdadeira fonte das
maiores ilusões e delírios perfeitamente fundamentados pela experiência, que podem chegar a
questão o fato de os grandes fundadores das religiões não serem, de fato, místicos--hipótese
que Scholem descarta muito apressadamente e com argumentos curiosamente fracos. Scholem
acredita que Moisés, Cristo, Paulo e os profetas não podem ter sido místicos. O que define o
levou à composição das escrituras sagradas. O problema é que, mais uma vez, essa visão é
teóricos ficam mais à vontade em considerar Buda ou Lao-Tse místicos, mas não Moisés ou
Paulo. Isso não se deve somente ao fato de que no budismo e no taoísmo a mística esteja em
primeiro plano e não seja um componente secundário ou marginal. Não queremos defender a
idéia de que tais personagens tenham sido místicos, só queremos pôr em questão (sem
místico. Scholem soube teorizar sobre a tensão conflitiva e intensificadora entre o místico e a
tradição, mas não quis tirar daí as suas mais perigosas conseqüências teóricas.
O que devemos reter dessa problemática é uma visão que respeite toda a complexidade
místico seja capaz de obter uma visão total da história humana e universal, não depois de
247
248
Porém, na análise do caso de Ramakrishna, Kripal não deixou de observar que há uma
simultaneidade entre conflito psíquico e experiência mística, de modo que o místico não deixa
de ser analisável. Na verdade, ele é aquele que possui um desejo mais radical de entrada no
real ou no gozo feminino e se engaja, com todo investimento psíquico possível, nessa
inédito, ou ainda, nas palavras de Kripal, ele chegou a um grau ontológico da experiência.
Contudo, isso não significa que ele tenha se tornado um deus. Sua superação não anula seus
conflitos, com os quais tão somente ele convive lado a lado, ou os transforma
Com isso ele não é nem negado nem idolatrado, antes, reconhecido, analisado e relativizado.
Até que ponto vai a superação versus o limite do místico, essa é uma das questões mais
difíceis. Também aqui devemos nos manter em suspenso. Falta muita discussão, pesquisa e
atenção ao problema da mística para termos uma visão justa para definir, afinal, até onde o
superação, inclusive daquela que ainda não se deu, mas nada garante que não possa um dia
ocorrer, ou, em alguma medida, não tenha ocorrido: há espaços teóricos para messianismos,
pois o ser humano já provou ser capaz de surpreender, para o bem ou para o mal. E como
Apesar disso, a suspensão deve ser mantida, pois no embate entre teosofias e ciência, o
fato científico nos dá a medida da realidade. Ninguém garante que o ideal não pode tornar-se
realidade – por que não? –, mas de fato o desejo mais pretensioso e menos materialista é sem
248
249
dúvida o mais improvável, ele deve servir como impulso de superação, mas não deve
absoluta e absurda da iluminação - ao ser salva de seus próprios marqueteiros e mantida sob
suspeita por causa de suas fontes, quer dizer, a dose de irracionalidade de muitas doutrinas –
possui seu conteúdo de verdade, que é o de direcionar os esforços de superação menos para os
fatos do que para a experiência individual, a qual, como Adorno assevera, não é menos
objetiva do que subjetiva. O ideal do artista moderno de produzir a obra de arte absoluta no
território laico (o Livro de Mallarmé, a obra de Schönberg) não está muito distante da
megalomania mística e inspirou boa parte de nossa melhor arte, assim como os místicos,
burguês e do cientista positivista domina o próximo. O místico (não estou pensando nos gurus
gananciosos e nos líderes políticos) em princípio possui o menor poder simbólico formal e
informal possível nas sociedades ocidentais, além de não esconder, muitas vezes, a pretensão
mais irritante, e ser hostil até por instigar no próximo o valor da experiência e a necessidade
da ascese; o burguês, ao contrário, possui todo o suporte para ostentar sua modéstia em
discurso e atitude, mas pratica a mais absurda das dominações: é populista e paternalista. O
353
Como nos diz Freud, a ilusão não é impossível, apenas não é sensata, passa por cima do princípio de realidade.
Nesse caso, há um parentesco entre os conceitos de supereu, ideal do eu e ilusão. FREUD, Sigmund. ―Die
Zukunft einer Illusion (1927)‖. Band IX. Fragen der Gesellschaft. Ursprünge der Religion. Frankfurt am Main:
S. Fischer, 1974, pp. 164-7. Adorno deu um passo adiante ao pensar a conexão entre o objeto e o não-existente,
ligando, nesse sentido de modo não muito distante de Lacan, o real e o estético. Baudrillard também não deixa
de unir ousadia e perspicácia ao dar um valor afirmativo surpreendente ao conceito de ilusão radical, que seria
um estágio mais fundamental do que o hiper-real (a famosa simulação), o real (que seria a realidade) e mesmo o
simbólico, ainda que em estreita ligação com ele (o estágio da troca antropológica e da transgressão de Bataille,
logo, o real e simbólico de Baudrillard não encontram paralelo com o lacaniano). É difícil saber avaliar o valor
da ilusão sem deixar de prestar todas as contas ao princípio de realidade. BAUDRILLARD, Jean. A ilusão vital.
Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001, p. 61, 77-89.
249
250
que o lar do místico asceta é o mosteiro ou o deserto. Cabe a nós saber relativizar pretensões
descabidas sem deixar de entrever seu momento de verdade. Caberia à filosofia e à psicologia,
como realizável por diferentes tradições, até onde ela realmente alcança e o que isso implica.
é materialista: quer conquistar por si mesmo o reino dos céus em vida, na imanência,
descobrir Deus ou a realidade última nas mínimas coisas. Sua sede de absoluto pode levá-lo à
desobediência religiosa e civil mantendo uma ética rigorosa e um afastamento crítico do jogo
de poder social. Por isso ele é, como Certeau afirma, crítico e realista. Nessa sede, ele chega
por conta própria a desmistificar seus êxtases e espetáculos sociais 354 , relativiza seus
arrebatamentos, se o fixam.
Portanto, o místico é aquele que leva o ―desejo do impossível‖, isto é, o desejo por
afirma a vida com sua linguagem paradoxal, força-a a dar o seu máximo e o melhor. A
extrema repulsa, o trauma do pior é motivo para a busca sedenta do melhor possível e
impossível. O místico é o materialista que põe em dúvida até mesmo os fatos - que são
354
CERTEAU, Michel de. Ibidem, p. 333.
355
THIBAULT, Danielle. La mystique chrétienne: du désir d'unité au désir de l'Autre, une conversion
épistémologique. Université Laval, 2004. http://www.theses.ulaval.ca/2004/22153/22153.html Thibault analisa a
diferença e implicações mútuas entre o desejo de unidade e o desejo do Outro na mística cristã.
250
251
experiência. Não nos surpreende que Adorno seja tão solidário à mística.
Kripal observa que casos de situações traumáticas extremas, como o abuso sexual na
infância, podem levar o sujeito a procurar se separar de seu evento traumático e tentar superar
comprovadas de que Ramakrishna seja um desses casos. O sujeito pode tanto desenvolver
sérias perversões a partir de traumas como o citado quanto trabalhar asceticamente de forma
que realmente alcance novos estágios psíquicos com relevância ―ontológica‖. Isso pode
ocorrer em casos graves e em casos nada especialmente problemáticos, não há critério causal,
produtivas, sem que ela reforce uma visão patológica ou meramente regressiva da mística,
gozo feminino, sem deixar de relativizar o potencial da experiência com a análise dos
Há várias outras abordagens contemporâneas que não vou expor aqui. Os estudos de
mística foram extremamente desenvolvidos ao longo do século XX, embora nos dêem a
sensação de que ainda estão no seu alvorecer, e de fato estão em plena ascensão, por causa de
356
KRIPAL, Jeffrey John. Ibidem, p. 298.
251
252
etc.), o que torna impossível a tentativa de minimamente dar conta deles no momento.
Concentrei-me numa exposição rápida da história dos estudos sobre mística e na polêmica
entre Katz e Forman, porque ela teve grande repercussão, e me parece conter em germe
muitos dos dilemas que nos interessam para entender, simultaneamente, qual o papel da
mística em Adorno e qual a contribuição que a relação indireta de Adorno com a mística pode
tempo em que retemos a tendência atual predominante de Parsons, Kristeva, Lacan, Kakar e
são preciosas e possuem seu lugar. Mas Forman consegue ser simultaneamente o mais
mais penetrante do que Katz e outras abordagens psicanalíticas, excetuando Certeau, que
talvez tenha conseguido ser simultaneamente cuidadoso e certeiro em grande parte do que
identidade antropológica com novas vestes cognitivas. Na ânsia de se opor a Katz, que no seu
contextualismo não é menos redutor e exagerado, mas pelo lado oposto, ele afirma que a PCE
transformador da prática mística. Parece que ele é simplesmente incapaz de ser dialético,
252
253
assim como seu opositor Katz. A briga dos dois passa a se assentar numa oposição
terminológica.
mediatizada‖ (6, 365). Dizer, como Katz, que não há imediação é tão falso quanto dizer que
inesperado e surpreendente, pressupõe toda a mediação cultural e lingüística, assim como não
transformador dos exercícios e reflexões místicas, assim como toda a leitura e fundamentação
na tradição, serve principalmente para uma revelação imediata. Portanto, tal imediação não só
depende da mediação como é o objetivo da mediação. Não há, dessa forma, como separar
uma coisa de outra e discuti-las como duas posições estanques e excludentes. Não há aí
antinomia kantiana sem saída; ponto a que Adorno será sensível, em sua maneira de entender
a mística.
chega à experiência; mas pensar que no momento da experiência ainda há intenção é entender
aniquilação do eu.
despido da manutenção positiva da transcendência moral kantiana (7, 235). Ainda assim,
embora não haja segurança de um princípio subjetivo moral unificador e superior ao abalo
253
254
abandono da autoconservação sem que o eu real desapareça (7, 363-4). Nesse sentido, tal
mais fundamental da consciência, mas erra ao pensar que se trata de uma consciência pura.
consciência, de si mesmo, e sua ultrapassagem. Nesse gesto de lançar-se para além de si,
Portanto, é uma atividade feita em pleno conflito psíquico, sem conciliação consigo
―neosublime‖ da obra de arte moderna, mas o conceito mesmo de Erschütterung, com todo o
seu sentido original de abalo sísmico, apresenta grandes semelhanças com o ―arrebatamento‖,
o ―êxtase‖ místico, e não recusaria uma curiosa aproximação, que não desenvolveremos aqui
mas deixaremos em aberto, com relação ao ataque epiléptico. Algumas abordagens dos
intepretados como epilepsia, e Dostoievski não me parece ter exposto seu próprio sintoma em
seus romances sem consciência da íntima conexão entre uma coisa e outra357.
357
ALAJOUANINE, T. ―Dostoiewski‘s epilepsy‖. Brain. 1963; n. 86, pp. 209-18. GASTAUT H. ―Fyodor
Mikhailovitch Dostoevsky‘s involuntary contribution to the symptomatology and prognosis of epilepsy‖.
Epilepsia. 1978; n. 19, pp.186-201. AMÂNCIO, Edson José. ―Dostoevsky and Stendhal´s sydrome‖. Arq.
Neuro-Psiquiatr. vol.63, no.4, São Paulo, Dec. 2005, pp. 1099-1103. SOUZA, Leonardo Cruz de. MENDES,
Mirian Fabíola Studart Gurgel. ―Prince Liev Nikoláievitch Míchkin ("The Idiot", Fiódor Dostoevsky) and the
interictal personality syndrome of temporal lobe epilepsy‖. Arq. Neuro-Psiquiatr.. 2004, vol. 62, no. 2b, pp. 558-
564. ALAJOUANINE, T. ―Littérature et épilepsie: l‘expression littéraire de l‘extase dans les romans de
Dostoievski et dans les poèmes de Saint Jean de la Croix‖. In: Dostoiévski. Paris: Cahier de l‘Herne, 1973, pp.
254
255
O que vale salientar dessa hipótese é que ela fortalece o argumento de que há uma
de modo que Adorno tende a aproximá-las, até confundi-las (supondo o místico como
herético) com razão. Logo, quando Adorno pensa em abalo moderno, não há como não pensar
Muitas questões poderiam ser levantadas a partir daí: ainda estamos falando da mesma
mística está, ao que me parece, menos no século XVII - momento em que o termo assumiu a
feição atual, passando da função adjetiva ao substantivo, como o conhecemos hoje359 - do que
nos séculos XII e XIII, daí estendendo-se até o século XVII, quando seu caráter
da história), mas um processo paulatino, pois os dados históricos autorizam tal interpretação.
Esse foi um período de crise radical de valores ainda mal consciente de si mesma. Nesse
momento, a mística despontou como uma das principais introdutoras do espírito renascentista,
se freqüentemente seu estado de passagem, e não se percebe inclusive a relação desse estado
309-324. Sobre outra relação entre epilepsia e êxtase, ver RISTOL, Esteban García-Albea. ―La epilepsia extática
de Teresa de Jesús‖. Revista de neurologia. ISSN 0210-0010, Vol. 37, Nº. 9, 2003 , pp. 879-887.
358
A relação da experiência mística e arte moderna, especialmente literatura e música, em Adorno ficará clara no
final do capítulo.
359
CERTEAU, Michel de. La fable mystique, extensão do adjetivo p. 133, 135; substantivação, p. 145.
360
CERTEAU, Michel de. La fable mystique, o próprio Certeau chega a exagerar, vendo nela signo de
modernidade, p. 15.
255
256
Não quero entrar nessa polêmica, também muito freqüente, de avaliar até que ponto a
alguns têm afirmado ou indignadamente contestado. O que me parece mais razoável é obter
uma visão mais extensa do movimento do esclarecimento na história e observar qual o papel
Se Adorno defende a força precursora da mística, interessando-se pelo que ela contém
de estranheza, isolamento, conflito interno, essencialidade etc., todas essas características nos
levam a supor que, independente de sabermos ou não até que ponto Eckhart, São João da Cruz,
moderna, é razoável afirmar que eles fazem parte de um processo de transformação histórica,
Adorno pensa que o espírito na arte moderna só existe por meio da objetivação
objetividade. O abalo, nesse caso, se dá na imediação objetiva da aparência (Schein), que não
permite segurança nem certeza para a subjetividade (7, 364). A imediação não é uma
atualização, é antes seu potencial, seu ―como se‖, mas a vivência estética como tal é real
porque objetiva.
Por isso a imediação não é realização, não se torna fato, mantêm-se na suspensão
mesma da aparência, mas é por isso ainda mais real. A consciência e o eu tornam-se ele
mesmo parte da aparência que pretendem romper. A arte é, para o sujeito, o representante
histórico da natureza recalcada, contra o princípio do eu enquanto agente do recalque (7, 365).
256
257
na relevância da minúcia mundana que a mística dá para a busca do absoluto. A mística, como
renascentista, praticou justamente essa espiritualidade negativa (que radicaliza a proibição das
imagens, como fica patente em São João da Cruz, ―noite escura do espírito‖, ―noite dos
sentidos‖361) por meio da extrema valorização estética dos rastros mundanos, e deu voz à
imagens com toda a movimentação alegórica da sensibilidade que possui à disposição. Por
isso Adorno não pôde deixar de sugerir, analisando Schönberg, raízes de sua música na idade
barroca da música e da literatura mística. Mas poderíamos dizer, com todos os problemas que
uma afirmação como esta implicaria, que a mística independe completamente de sua produção,
e nem por isso é menos objetiva, já que o seu cerne está na experiência. Adorno foi
extremamente lúcido ao sugerir que a experiência pode ser mais objetiva que seu produto, e
os místicos sabem dessa verdade melhor que ninguém. Se o objeto é muito mais que o fato e
não se deixa restringir pela adequação entre sujeito e objeto, o que é realmente objetivo é a
A aproximação possível entre a mística e a arte moderna não pára neste nível. Um
361
CRUZ, San Juan de la. Obras de San Juan de la Cruz. Poblet: Buenos Aires, 1944, ―Noche oscura ‖ p. 454-
568.
362
KATZ, Steven T. Ibidem, p. 54. CERTEAU, Michel de. Le lieu de l'autre, p. 332. La fable mystique, sobre o
oxímoro, p. 198.
257
258
instrumental e até do princípio de realidade, motivando uma linguagem que fere as regras da
lógica e do entendimento, justamente numa época em que idéias sobre hermetismo estavam
florescendo 363 . A poesia também pratica tais dissonâncias verbais, mas os textos místicos
(sendo ou não também poéticos) são ainda mais surpreendentes, pois tematizam questões
com Eckhart e Jakob Böhme, e todas as implicações dessa relação entre dialética moderna,
especulativa, sublinhada por Adorno. Meister Eckhart é, para citarmos um dos nomes mais
importantes, um dos primeiros textos filosóficos em língua alemã; o primeiro grande nome
que praticou, efetivamente, uma dialética filosófica na Alemanha. Para tentar expressar a
outro caminho senão o paradoxo e a contradição. Mas, como bem nos mostra Burkhard
razão, é uma espécie de luz divina que faz a própria razão progredir, desafiando seus próprios
limites, para em seguida encontrar um salto para fora de sua autarquia e não se reconhecer a si
mesma como compreensível365. Essa dialética da razão não se assemelha à teoria crítica da
conteúdos históricos essencialmente diferentes, e sim observar por que Adorno valoriza a
363
CERTEAU, Michel de. La fable mystique, p. 132.
364
Para uma clássica abordagem da cumplicidade entre poesia e mística, ver BREMOND, Henri. Priére et
poésie. Paris: Bernard Grasset, 1926, o livro inteiro é sobre isso e desemboca nessa questão, ver especialmente
de pp. 79-221. BREMOND, Henri. SOUZA, Robert de. La poésie pure. Un débat sur la poésie. Paris: Bernard
Grasset, 1926, pp. 137-45, de Robert de Souza, pp. 310-318.
365
MOJSISCH, Burkhard. ―‗Dynamik der Vernunft‘ bei Dietrich Von Freiberg und Meister Eckhart ‖ In: RUH,
Kurt. Abendländische Mystik im Mittelalter: Symposion Kloster Engelberg 1984. Stuttgart: Metzler, 1986, pp.
138-9.
258
259
mística, e quais os aspectos dela característicos que ele reteve e desdobrou, enfim, que ele pôs
em movimento, para revelar melhor, afinal, seu potencial emancipatório. Não se trata de
demonstrando o quanto aquela possui aspectos inalienavelmente místicos, ainda que ambas
Paradoxo, contradição, aniquilação do eu, razão negativa: tudo isso remete, finalmente,
teologia negativa.
A teologia negativa é nada mais nada menos do que a origem, na história da filosofia,
da questão da negatividade, e como toda origem, já contém em germe boa parte do que depois
foi desenvolvido. A teologia negativa é um conceito mais restrito (mas não menos
Dionísio Areopagita, a que se segue: Meister Eckhart, São João da Cruz, Nicolau de Cusa,
Essa tradição já é muito conhecida no debate universitário laico por causa de dois dos
textos mais importantes de Jacques Derrida 366 , e à qual ele, já no famoso texto La
366
DERRIDA, Jacques. « Comment ne pas parler. Dénégations ». Psyché. Inventions de l‟autre. Paris: Galilée,
1987.
DERRIDA, Jacques. Sauf le nom. Paris: Galilée, 1993. O último texto faz parte de uma trilogia que explora a
mesma temática da relação entre a religião e a desconstrução: Donner la mort (Paris: Galilée, 1992) e Foi et
savoir (Paris: Galilée, 1996). Além disso, há o livro de John D. Caputo precisamente sobre esses textos: The
Prayers and Tears of Jacques Derrida: Religion without Religion (1997).
259
260
différance 367 , fez uma referência importante que prometia chegar a esses dois textos
interessando pela teologia negativa. Toda a discussão atual sobre religião e a reflexão
filosófica pós-metafísica sobre a religião precisa passar pelo tema da teologia negativa, e
quem se interessa pela discussão atual da relação entre modernidade, religião e teologia não
532. Trata-se de um dos principais textos da especulação teológica da idade média, atribuído a
escreveu. O nome, sem dúvida, é um pseudônimo retirado do Ato dos Apóstolos 17, 34.
Devido a seu pioneirismo em vários aspectos e enorme influência na teologia (em Tomás de
Aquino, por exemplo), na filosofia e na literatura até hoje, Dionísio Areopagita é considerado
por alguns o pai da teologia negativa e também o pai da mística ocidental cristã. Tal dupla
paternidade declarada não é, sem dúvida, nenhuma coincidência. Isso se dá, antes de mais
nada, pelo fato de tanto o conceito de teologia negativa quanto o de teologia mística haverem
sido nele pela primeira vez lançados literariamente como propostas terminológicas368.
INTELIGÌVEL
367
DERRIDA, Jacques. « La différance ». Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1972, p. 1-30.
368
STOLINA, Ralf. Niemand hat Gott je gesehen: Traktat über negative Theologie. Berlin: de Gruyter, 2000, p.
11-2.
260
261
Elevando-nos mais alto, dizemos agora que esta causa não é nem alma nem
inteligência; não tem imaginação, nem expressão, nem razão nem inteligência; que ela não
pode se exprimir nem conceber; que ela não tem nem nome, nem ordem, nem grandeza,
nem pequenez, nem igualdade, nem semelhança, nem dessemelhança. Não é móvel nem
imóvel, nem descansa. Não tem potência nem é poder. Não é luz, nem vive, nem é vida.
Não é substância nem eternidade nem tempo. Não pode a inteligência compreendê-la, pois
não é conhecimento nem verdade. Não é reino, nem sabedoria, nem uno, nem unidade.
Não é divindade, nem bondade, nem espírito no sentido em que nós entendemos. Não é
filiação nem paternidade nem nada que ninguém de nós conheça. Não é nenhuma das
coisas que são nem das que não são. Nada a conhece tal que é, nem ela conhece ninguém
enquanto ser. Não tem razão, nem nome, nem conhecimento. Não é trevas nem luz, nem
erro nem verdade. Absolutamente nada se pode afirmar nem negar dela.
mesma não afirmamos nem negamos nada, porque toda afirmação permanece mais aquém
da causa única e perfeita de todas as coisas, pois toda negação permanece mais aquém da
transcendência daquilo que está simplesmente despojado de tudo e se situa mais além de
tudo.369
faremos uma comparação que visa não somente a reconhecer semelhanças e diferenças, mas a
extrair, por intermédio delas, a proposta da prática ascética e mística que está por trás da
Dionísio diz desta ―causa‖ que nada se pode acrescentar nem retirar, que nada se pode
369
AREOPAGITA, Dionysius. Oeuvres complètes du Pseudo-Denys l'Aréopagite: traduction, préface, notes et
index par Maurice de Gandillac. Paris: Aubier, 1989, pp. 183-4.
370
DERRIDA; Jacques. « Comment ne pas parler. Dénégations », dans Psyché. Inventions de l‟autre, Paris,
Galilée, 1987, pp. 537-8.
261
262
não é a fronteira da experiência‖371 como nos instrui Ralf Stolina. Dionísio escreve que
Agora, então, à medida em que nos adentramos naquela Treva que está além da
Logo, há uma experiência para além da inteligência, da linguagem, dos sentidos e das
sensação e do conhecimento373.
É por isso que Dionísio, enquanto filósofo teólogo, e Adorno, enquanto teórico crítico,
escrevem. Assim, há um primeiro momento de afirmação implícita dos entes e dos atributos
meio da experiência sem sensação nem conhecimento, que não remete a nada que seja
descritível, ou passível de expressão. Esse terceiro momento - não há como negar - é nada
ocidental essa operação retórica da negação incondicional de todo o ente, de todo o ser
somente para afirmar, no fim, que o que é inconcebível é a causa suprema, i.e., Deus. Logo,
Deus não é negado, não é posto em dúvida. O que ocorre é o contrário: é a existência
371
STOLINA, Ralf. Niemand hat Gott je gesehen, Ibidem, p. 18.
372
AREOPAGITA, Dionysius. Ibidem, p. 182.
373
STOLINA, Ralf. Niemand hat Gott je gesehen, Ibidem, p. 21-3.
262
263
indubitável e inconcebível de Deus que nega todos os atributos, pois Deus é, em terminologia
medieval, o ens realissimum, o que há de mais real, e não uma idéia duvidosa. Toda a série de
negações serve para nos aproximar da inefabilidade de Deus e não para duvidar dela. A
transcendente.
estrutura semelhante:
Deus o presenteia e se revela em sua graça. Essa revelação oferece a experiência da graça,
Vale lembrar que o ponto de dissensão entre Dionísio e a doutrina católica e cristã
protestante, posterior a sua existência histórica, é justamente o fato de ele afirmar que certos
ensinamentos e certas coisas não podem ser entendidas pelo povo ou por qualquer um, só
podendo ser dirigidas a poucos. Esse esoterismo em Dionísio não condiz com o ensinamento
374
Ibidem, p. 147. HOCHSTAFFL, Josef. Negative Theologie: ein Versuch zur Vermittlung d. patristischen
Begriffs. nchen: sel, 1976, p. 216, 235.
263
264
de Paulo de que Cristo deu a conhecer a toda e qualquer pessoa a boa nova e não privilegiou
ninguém, os eleitos sendo escolhidos exclusivamente por seus méritos morais e não por
méritos inatos. Esse era, aliás, um dos grandes pontos de disputa entre os gnósticos e Paulo,
enquanto apóstolo basal da Igreja. Logo, esse é o único ponto que separa Dionísio da Igreja,
solidão do homem em meio a outros homens, a falta voluntária de comunicação, mesmo que,
mas um íntimo parentesco num ponto nuclear: a experiência mística como meta orientadora
retorna para a necessidade da prática discursiva e reflexiva, seja filosófica, seja poética.
deve já conter em potência o seu fim, para a experiência mística. A dialética de meio e fim
aqui não consegue definitiva e simplesmente fundir um no outro, embora haja sim um estado
indeterminado de fusão lá onde o prazer poético, filosófico e teológico encontram, por meio
375
Sobre a profícua relação entre gnosticismo e Adorno, BOLZ, Norbert. ―Erlösung als ob. Über einige
gnostische Motive der kritischen Theorie‖, pp. 264-89. TAUBES, Jacob (org.). Religionstheorie und politische
Theologie 2 ; Gnosis und Politik. Paderborn: Fink, 1984. SONNENSCHMIDT, Reinhard W.. Politische Gnosis:
Entfremdungsglaube und Unsterblichkeitsillusion in spätantiker Religion und politischer Philosophie. München:
Fink, 2001, pp. 224-34. HOCHSTAFFL, Josef. Ibidem, sobre uma consciência elitista, p. 125; sobre a correção
ortodoxa do conceito hierarcológico de Areopagita feito por Máximo Confessor e ratificado no quarto concílio
de Lateran, pp 151-55.
264
265
estético e reflexivo para abandonar toda e qualquer idéia, linguagem, ação, produção.
Dionísio exemplifica muito bem esse processo com a clássica metáfora da escalada da
montanha:
Naqueles escritos, o discurso procedia desde o mais alto ao mais baixo. Por
aquele caminho descendente aumentava o caudal das idéias, que se multiplicavam a cada
passo. Mas agora que escalamos desde o solo mais baixo até o cume, quanto mais subimos
Platão é mais uma operação de reconhecimento da relação entre o verdadeiro e o falso, a coisa
mesma e sua sombra. Mesmo assim, essa lógica não está ausente em Dionísio, já que sua
não deixa de dar lugar a um movimento descendente, tão necessário quanto em Platão. A
proliferação de idéias é tão vertiginosa quanto o esvaziamento do silêncio. Isso significa que a
376
AREOPAGITA, Dionysius. Ibidem, p. 182. Minha tradução se baseou também na edição alemã.
AREOPAGITA, Pseudo-Dionysius. Über die mystische Theologie und Briefe. Adolf Martin Ritter (trad. e org.).
Stuttgart: Anton Hiersemann, 1994, pp. 78-80.
265
266
razão, num movimento a um só tempo conseqüente e paradoxal, desafia seus próprios limites
fracasso da imaginação frente à razão moral no sentimento do sublime kantiano, mas agora o
objeto desse fracasso é a própria razão diante do inefável. Em Kant, a razão moral carrega um
elemento transcendente e terminal377; na teologia negativa, é a razão que se torna uma espécie
de mediação sacrificada, que trabalha pela mediação com todas as suas forças, e termina por
se sacrificar.
Por isso ela não é descartada logo de início, pois não há trajetória ascendente sem ela.
A razão e a linguagem são mediadoras não só inevitáveis como desejáveis, e são levadas ao
de idéias que, em sua experiência vertiginosa, precisam ser trabalhadas e negadas. Nega-se
tudo o que está distante da causa suprema e afirma-se tudo o que está mais próximo, mas, no
movimento ascendente, negam-se até mesmo as afirmações mais próximas e, por fim, nega-se
toda a operação de afirmação e negação como tal para, enfim, alcançar o inefável.
A relação entre a teologia negativa e a mística é íntima, porque o objetivo de não ter
mais objetivo, a intenção de não possuir mais intencionalidade, ou ainda, nos termos da
estética kantiana, a finalidade sem fim, é a experiência do inefável para além dos sentidos,
377
KANT, Immnuel. Kritik der Urteilskraft. Band X, p. 181. Interessante observar que Kant utiliza a mesma
palavra que Adorno, a respeito do abalo do eu (Erschütterung), para o movimento do sentimento do ânimo na
representação do sublime na natureza. O efusivo, exuberante (Überschwengliche) para a imaginação é do mesmo
modo um abismo (Abgrund), onde ela teme se perder.
266
267
estrangeiros, a proibição das imagens, assim como a crítica ao abuso dos nomes divinos são já
grego), e vemos em Dionísio não só uma influência decisiva - mesmo que não muito
consciente ou desejável, por sua referência cristã - da teoria crítica e da desconstrução, como
dogma, já que a negação não põe em dúvida em nenhum momento a existência do Deus
cristão, mas também na ascensão purificadora dos sentidos. Contudo, assim como em Silesius,
essa purificação em direção ao inefável, mesmo que coloque os sentidos no nível mais baixo
da hierarquia, não os nega para depreciá-los diante do absoluto, mas para dar a eles sua
dignidade própria na busca do absoluto. Eles só são depreciados por serem causa de interesses
mundanos e da formação dos valores estatutários sociais que produzem desigualdade extrema
Azriel (que pensa a relação da criação divina com o ser e o nada), cita Scoto Erigena, Dionísio
Areopagita e Nicolau de Cusa379, terminando por afirmar que conceitos como o infinito, o
espiritual da teologia negativa‖380. O que no judaísmo começou com a proibição das imagens
267
268
tradicionalmente ligado à via negativa cristã, ele não pode ser restringido a ela.
cúmplice da dominação. A mística, nesse caso, introduz, ainda com tons religiosos, a
mas desenvolvida de modo mais acertado em Plotino 381 . Portanto, lá onde a mística
avanço emancipatório.
sentimento do belo kantiano. Esse excesso do pensamento que se torna experiência é pouco
comentado como pólo oposto e complementar do silêncio purificado. Contudo, é ele que nos
também do excesso que valoriza o pensamento para além de sua atividade lógica, mesmo que
mediado pela razão. É nesse sentido que há já em Dionísio, dentro de suas referências
históricas, uma cumplicidade entre uma experiência teológico-filosófica e aquilo que a idade
moderna chamará de experiência estética. Essa cumplicidade foi introduzida por um dos
381
PANOFKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes: 1994, p. 31, 172.
Panofsky comenta a maneira pela qual a noção de retirada e de depuração do escultor para que alcance a forma
artística é motivo para uma metáfora moralizante da virtude do homem. Segundo o autor , essa moralização da
arte em Plotino influenciou Dionísio. Sem dúvida estamos ainda distantes da noção de autonomia da arte, pois o
melhor que a arte pode oferecer é conter a idéia na matéria, e forçá-la a ser o espelho do invisível. Contudo, já
reconhecemos aqui a entrada do espírito na matéria por causa da elaboração formal na obra artística.
268
269
Benjamin e Adorno não é mera coincidência. Para que fique de uma vez por todas claro, não
queremos confundir estética, filosofia e mística, estamos tão somente procurando pensar, com
toda a precisão possível, a relação intrínseca entre setores específicos dessas três instâncias.
Adorno afirmou que por trás de seu conceito de verdade não se pode esconder uma certa
do dogma em Dionísio e em outros representantes da teologia negativa. É por esse motivo que
não devemos afirmar que haja uma teologia negativa em Adorno, e isso precisa ficar claro. No
entanto, a pergunta agora é: a que outra noção de teologia negativa Adorno estar-se-ia
referindo? Haveria uma outra teologia negativa moderna, materialista, diferente da tradicional?
Adorno não abandona o conceito. Embora não o tenha desenvolvido, ele demonstra
A tese de Elizabeth Ann Pritchard tem por objeto especialmente o estudo da relação
produzir uma interface entre a teoria crítica e os estudos de religião382. Todo o trabalho de
análise retórica desenvolvido por ela é muito interessante, apesar dos inúmeros problemas que
382
PRITCHARD, Elizabeth Ann. Renouncing knowledge for the sake of ethics: Negative theology and
enlightenment in Theodor W. Adorno. Cambridge: Harvard University, 1999, p. 318.
269
270
sua leitura apresenta. A articulação entre Adorno e teologia negativa, desembocando em uma
Pritchard procura argumentar que Adorno é crítico à teologia negativa no seu aspecto
adorniano da teologia, defende que Adorno propõe uma teologia ―inversa‖ e não negativa,
Contudo, sua tese, defendida em março de 1999, não levou em conta a anotação de
Adorno exposta na tese de Liedke, de 1996386, onde se lê a frase ―dialética negativa é teologia
negativa‖, muito menos cita ou discute as referências que analisei da discussão com
―negativo‖, e afirmar que Adorno prefere um ao outro, Pritchard é levada ao engano de pensar
que são duas coisas diferentes. E assim diminui o potencial emancipatório da teologia
negativa tradicional afirmada pelo próprio Adorno, não percebendo que seu materialismo
negativo contém certa teologia negativa, ou, se se quiser, inversa. A diferença não está,
portanto, entre teologia inversa e negativa, mas entre o aspecto dogmático da teologia
Pritchard analisa vários trechos onde Adorno aborda o tema da teologia, mas como a sua tese
383
PRITCHARD, Elizabeth Ann. Ibidem, pp. 200.
384
PRITCHARD, Elizabeth Ann. Ibidem, pp. 221-2.
385
ADORNO, Theodor. Theodor W. Adorno - Walter Benjamin: Briefwechsel 1928 – 1940. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1995, p. 74.
386
LIEDKE, Ulf. Ibidem, p. 439.
270
271
trechos explícitos sobre a questão. Desta forma, a tese que apresenta o trabalho mais
Talvez por causa disso o trecho onde Adorno se refere à teologia negativa, no ensaio
sobre Schönberg, trabalhado por Pritchard, assim como as pequenas referências do livro sobre
Kierkegaard, tornem-se tão mal compreendidos. O que Adorno chama de teologia negativa no
texto sobre Schönberg não consiste exatamente na teologia negativa tradicional, mas no
contrário, uma teologia aparentemente positiva que não deixa de conservar toda a
negatividade da primeira, que, sabe-se muito bem, sempre foi a preferida de Adorno (16, 463).
Associar a teologia negativa de Schönberg com a de Kierkegaard, tal como lida por
Adorno (2, 218), por sua ligação com a teologia positiva, faz-nos perder de vista a
complexidade da teologia negativa tradicional, que não se coaduna com a ―negação abstrata‖
a que se refere Pritchard, por oposição à negação determinada387. Além disso, sua análise
dessa abordagem com relação à teoria crítica, nas quais procurei insistir. Pritchard cita
negativa e o esclarecimento kantiano, mas ignora que isso poderia e deveria ser feito com seu
Embora não tenha ignorado o papel estético da teologia ―inversa‖ de Adorno, ela
privilegia o lado ético, o que é válido. Meu trabalho está, no entanto, mais atento à dimensão
estética implícita nessas reflexões, por ela parecer hoje estar mais ausente do que deveria das
387
PRITCHARD, Elizabeth Ann. Ibidem, pp. 239.
388
PRITCHARD, Elizabeth Ann. Ibidem, p. 229.
389
PRITCHARD, Elizabeth Ann. Ibidem, p. 178.
271
272
discussões sobre a teologia em Adorno, e por estar sendo mal avaliado o próprio valor ético
de sua estética do inefável. A falta de abordagem da dimensão estética dificulta até mesmo a
compreensão da ética, pois nesse primado da ética geralmente se esquece de analisar mais a
fundo a primazia da experiência. O artigo de Gerrit Steunebrink motiva a mesma objeção 390.
Assim como Pritchard, Steunebrink só cita o ensaio sobre Schönberg e ignora todas as outras
fontes, colocando em primeiro plano a utopia, o absoluto negativo e a relação da finitude com
a infinitude negativa, a diferença entre Kant e Adorno, sempre num sentido ético.
Se essas foram as abordagens mais diretas e recentes da relação entre teologia negativa
e Adorno, Liedke ainda nos parece de todos o mais lúcido, mesmo que tenha se dedicado à
de história natural (Naturgeschichte). Sua pesquisa é a mais exaustiva que encontrei. Ele
também adota o termo de ―teologia inversa‖ sem deixar de observar que a dialética negativa
―converge‖ para a teologia negativa391. Ele observa que há o uso do adjetivo ―inverso‖ na
carta a Benjamin e na recensão sobre a ópera de Kurt Weill Mahagonny, com o texto de
Brecht, o mesmo comentado no encontro entre Adorno e Bloch (19, 194). O primeiro a
denominar o pensamento de Adorno como teologia inversa foi Jürgen Brzoska392, mas Liedke
observa que esse sintagma apareceu nos anos vinte e trinta, para depois, na obra mais madura,
390
STEUNEBRINK, Gerrit. ―Is Adorno‘s philosophy a negative theology?‖. In: BULHOF, Ilse N.. KATE,
Laurens tem (ed.). Flight of the gods. Philosophical perspectives on negative theology. New York: Fordham
University Press, 2000, pp. 293-319. Na discussão sobre ética e teologia negativa também vale citar
FINLAYSON, James Gordon. ―Adorno on the Ethical and the Ineffable‖. European Journal of Philosophy,
Volume 10, Issue 1, Page 1, April 2002. Para uma abordagem entre a pedagogia e a teologia judaica, GUR-
ZE'EV, Ilan. ―Adorno and Horkheimer: diasporic philosophy, negative theology, and counter-education‖.
Educational Theory 55 (3), 2005, pp. 343–365.
391
LIEDKE, Ulf. Ibidem, pp. 431-80, 439.
392
BRZOSKA, Jürgen. ―Bemerkungen zur inversen Theologie Theodor W. Adornos‖. In: KORSCH, Dietrich.
Wahrheit und Versöhnung: theologische und philosophische Beiträge zur Gotteslehre. Gütersloh: Gütersloher
Verl.-Haus Mohn, 1989, pp. 73-97.
393
LIEDKE, Ulf. Ibidem, p. 436.
272
273
apresenta na avaliação final. A esmagadora maioria das teses que abordam a relação de
Adorno com a teologia é, como não se poderia deixar de esperar, feita por teólogos. Se eles
estão, por um lado, mais capacitados para a questão, por outro, não deixam de fazer uma
avaliação contrária ao filósofo materialista no final de suas teses. Nos melhores casos, há um
respeito pelas posições de Adorno e sua descrição ao longo dos trabalhos, mas no final de
contas acham sempre necessária uma crítica do ponto de vista doutrinário, protestante ou
católico.
pensar uma teologia ateológica394, e procura pensar com Adorno contra Adorno395. Falta em
certezas doutrinárias. Liedke localiza uma contradição explícita na teologia inversa de Adorno,
mas cai numa contradição ainda mais grave ao afirmar a ilusão da revelação e da
mas a pressupõe, e, como bem demonstrou Türcke, nunca encara de frente a negatividade do
esclarecimento.
suspensão, mas sempre terminam por recair na necessidade de uma segurança transcendente,
debilitando – a reflexão ética; são incapazes de conceber essa possibilidade, por mais que se
debrucem sobre Adorno. Ainda que os melhores estudos constatem, em alguma medida, a
394
LIEDKE, Ulf. Ibidem, p. 479.
395
LIEDKE, Ulf. Ibidem, p. 478.
273
274
pesquisa. Pritchard afirma que foi Susan Buck Morss quem introduziu pela primeira vez o
conceito de teologia negativa aplicado a Adorno396 em 1977 numa nota. Se dissesse ―somente
em língua inglesa‖ ela provavelmente teria razão, mas em língua alemã há a primeira e já
termina com uma tentativa alentada de criar uma ―conexão mediadora entre dialética negativa
397
e um novo sentido de teologia negativa‖, como escreve ele . Embora o esforço seja
esclarecedor, Hochstaffl não podia ter uma noção mais clara do papel da teologia, e em
especial da teologia negativa, para Adorno, recorrendo à dialética materialista em meio a uma
questão, que nos dão uma boa idéia do estado da discussão, sobretudo em língua inglesa,
estudo de Flávio Kothe no Brasil sobre Benjamin e Adorno de 1978 possui o mérito de ser um
dos primeiros da lista399, não sobre Adorno, mas sobre Benjamin, que ele contrasta a Lukács.
396
PRITCHARD, Elizabeth Ann. Ibidem, p. 21. Buck-Morss, Susan. The Origin of negative dialectics: Theodor
W. Adorno, Walter Benjamin, and the Frankfurt Institute. New York: Free Press, 1979, p. 195, nota 51.
397
HOCHSTAFFL, Josef. Ibidem, pp.181-8; a citação está no final do capítulo, p. 188.
398
PRITCHARD, Elizabeth Ann. Ibidem, pp. 21-32.
399
KOTHE, Flavio Rene,. Benjamin & Adorno: confrontos. São Paulo: Atica, 1978, p. 69.
274
275
remetendo à teologia negativa é, a meu ver, um lance interpretativo certeiro, válido também
alemã, no que diz respeito a toda a bibliografia sobre Adorno e teologia400. Eu me atenho aqui
Pritchard em geral cita pouco e não discute os estudos que fizeram mais do que uma
leitura episódica do problema. Liedke cita Kerstin Decker, como a grande estudiosa da
relação de Adorno com a teologia negativa, em seu estudo sobre Tillich e Adorno401. De fato
Decker introduz interessantes relações entre mística, teologia negativa e Adorno, mas não
aborda a teologia negativa per se. Expõe o termo ―teologia negativa‖ no nome de capítulos,
mas não o explicita nem o analisa 402 . Liedke é mais esclarecedor e explícito que ela. A
abordagem de Decker é passageira, vaga e imprecisa, ainda que instigante, precisamente pela
O livro de Jürgen Kroth promete, pelo título, finalmente tratar do assunto, mas
provoca uma decepção ainda maior, e de fato nem foi citado por Liedke 403. Essa tese faz uma
boa leitura da relação entre teologia e teoria estética em Adorno para, em seguida, passar a
considerações específicas sobre teologia política. Quando parece abordar o tema, não
discussão sobre um único representante tradicional da teologia negativa, de forma ainda mais
400
LIEDKE, Ulf. Ibidem, pp.29-39.
401
LIEDKE, Ulf. Ibidem, p.35.
402
DECKER, Kerstin. Theonomie: Geschichtsphilosophie als <Kompensation ihres Endes>: die
Retheologisierung des Historischen im Werk Paul Tillichs und Theodor W. Adornos Berlin: Humbolt-universität,
1994, p. 150-5.
403
KROTH, Jürgen. Negative Theologie: Untersuchungen und Versuche über politische Theologie in
Auseinandersetzung mit Theodor W. Adorno. Münster: Westfälischen Wilhelms-Universität, 1995.
404
KROTH, Jürgen. Ibidem, pp. 307-32.
275
276
Kroth chega a afirmar que há no pano de fundo da filosofia adorniana uma variante da
teologia negativa, mas, fora as pequenas citações das cartas sobre a teologia que analisamos,
tampouco analisa as outras passagens mais diretas405. É intrigante: usa como título do livro,
Eckhart, Cusa, Cruz, Erigena. Apesar disso, o uso da dialética negativa na discussão teológica
é interessante.
Eckhard Nordhofen é movido pela ótima intenção de aclarar ―a conexão oculta entre
em 1993, antes da descoberta das anotações feita por Liedke (1996), rigorosamente a mesma
frase que a de Adorno: ―Negative Dialektik ist Negative Theologie‖ 407 . O mínimo que
podemos dizer disso é que ele parecia estar muito antenado com o pensamento de Adorno,
mas ao ler seus ensaios não encontramos nenhuma análise da obra (aliás, o livro não é sobre
Adorno), e ficamos com a impressão de que o autor não consultou os arquivos, antes, a
Adorno sobre estética musical 408 à luz do conceito do sublime. A ligação entre sublime e
passagens explícitas sobre teologia negativa na obra de Adorno, fora o ensaio sobre
simplesmente o primeiro livro da bibliografia sobre Adorno a procurar fazer uma leitura
405
KROTH, Jürgen. Ibidem, p. 224.
406
NORDHOFEN, Eckhard. Der Engel der Bestreitung: über das Verhältnis von Kunst und negativer Theologie
Würzburg: Echter, 1993, p. 88.
407
NORDHOFEN, Eckhard. Ibidem, p.116. Stolina, ao citar esse trecho, mostra a indignação do especialista;
possivelmente teria a mesma aversão se soubesse que ela também veio de Adorno. STOLINA, Ralf. ibidem, p.
103.
408
DE LA FUENTE, Eduardo. ―Music as Negative Theology‖. Thesis Eleven, 56, 1999, p. 57-79.
276
277
atenta da relação de Adorno com a teologia negativa 409 . Liedke, por exemplo, cita-o sem
tema, dedicando a ele o último capítulo, de 36 páginas, de sua tese, ou seja, basicamente, sua
conclusão final. Stresius se propôs a fazer o que todos os outros, antes de Pritchard, se
recusaram a fazer: expor o conceito de teologia negativa, abordando boa parte de seus
Dialética negativa. Na época (1982) não se dispunha das condições básicas para se conhecer a
maioria das passagens explícitas sobre teologia negativa em Adorno, já que elas se
encontravam ainda inéditas: nem as cartas, nem as aulas nem as discussões com Horkheimer.
Ainda assim Stresius poderia haver citado e analisado a passagem do primeiro tomo de
Parece que essa dificuldade de falar sobre a teologia negativa enquanto tal, assim
como de abordar os momentos onde Adorno realmente explicitou o tema, se configura como
constante de ―não falar‖. Da mesma forma, as abordagens atuais sobre a teologia negativa na
modernidade, que respondem à própria necessidade exposta pela demanda, na maioria das
vezes incorrem exatamente no mesmo problema411, o que motivou a sensata queixa de Stolina
409
STRESIUS, Lothar. Theodor W. Adornos negative Dialektik. Frankfurt am Main., Bern: P. Lang, 1982.
410
STRESIUS, Lothar. Ibidem, pp. 231-67.
411
OELMÜLLER, Willi. Negative Theologie heute: die Lage der Menschen vor Gott. München: Fink, 1999. O
livro de Oelmüller não aborda nenhum dos representantes da teologia negativa tradicional senão Dionísio
277
278
de que o conceito tomou um sentido antropológico geral e perdeu a ligação com a sua origem
Apesar de Stolina ser um teólogo cujo discurso toma um caráter ortodoxo, não
permitindo a transformação histórica possível do conceito, ele não deixa de ter alguma razão,
serem tratadas por um olhar moderno e laico; o que eu mesmo não pude elaborar muito aqui,
oportunidade se apresenta e se anuncia a possibilidade de que isso será feito, ela se oculte em
tolerância a opiniões e abertura a uma ―verdade polivalente‖413. Os autores defendem que seu
momento mais intenso, no final da idade média (vale notar, é o mesmo da emergência da
Areopagita em somente uma página, p. 48, mas até se dedica a Adorno em duas páginas, 49 e 50. THEUNISSEN,
Michael. Negative Theologie der Zeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992. Talvez o livro de Theunissen pareça
ser o mais absurdo de todos por nem dar pista da discussão da teologia negativa. Porém ainda mais insólito é o
artigo de Habermas sobre Theunissen, que repete exatamente o mesmo procedimento. HABERMAS, Jürgen.
―Kommunikative Freiheit und negative Theologie‖. In: ANGEHRN, Emil. Dialektischer Negativismus: Michael
Theunissen zum 60. Geburtstag. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992., pp. 15-34.
412
STOLINA, Ralf. ibidem, pp. 102-4.
413
BULHOF, Ilse N.. KATE, Laurens tem (ed.), p. 5, 6.
278
279
Eles têm sem dúvida razão ao afirmar que a teologia negativa contém um sintoma,
modernidade é a própria experiência da morte de Deus, exposta por Nietzsche, que introduz a
mesma todo o páthos religioso da perda da religião, mostra que o auge da secularização
dogma, mantendo a experiência trágica religiosa, em outras palavras, mística. Como bem
analisou Liedke, o problema do capitalismo tardio que Adorno critica não está nesse poderoso
estão longe de serem solucionadas, mas a rápida solução burguesa é esquecê-las (6, 387415).
artístico e filosófico, quando a classe burguesa se firma no poder, a arte e a filosofia ―perdem
o interesse no duplo sentido‖ (6, 386). Tanto a arte quanto a metafísica são vítimas da
neutralização do espírito (6, 386)416. O espírito emancipatório radical se torna, para burgueses
espiritual417.
Nesse sentido, Laurens tem Kate e Ilse Bulhof acertam em constatar na teologia
414
BULHOF, Ilse N.. KATE, Laurens tem (ed.). Ibidem, p. 13.
415
LIEDKE, Ulf. Ibidem, p. 383.
416
LIEDKE, Ulf. Ibidem, p. 380.
417
Ibidem, p. 381.
279
280
limitações, descrever o gesto de Adorno. Kate e Bulhof mostram que a cultura que mata Deus
deus que retorna eternamente é ―um sacrifício incessante de Deus, sacrifício da humanidade
divinizada‖, ―A morte de Deus afirma a si mesma como um eterno retorno – de Deus e de sua
morte‖. A questão que se coloca é: ―como podemos pensar em um lugar para a transcendência
em uma cultura que não pode negar sua situação moderna, secularizada?‖ 418
Se o sintoma dos princípios da teologia negativa era como falar da morte de Deus, o
problema atual é como falar do eterno retorno de Deus sem dogma, e em plena suspensão
entre imanência e transcendência, pois o retorno do recalcado só aumenta sua força quanto
mais é neutralizado. Não é um acaso que o potencial ―herético‖ e crítico da teologia negativa
418
BULHOF, Ilse N.. KATE, Laurens tem (ed.). Ibidem, p. 47, 54.
280
281
Não apenas o que é chamado de teologia negativa foi objeto de modernização por
parte de filósofos e teóricos. A mística foi em grau muito maior, com resultados e implicações
significa uma retomada ou regressão de idéias e práticas do passado, antes, a elaboração laica
daquilo que já carregava boa parte das raízes da arte moderna. Nunca é demais insistir,
reafirmar e repetir, como tenho feito pacientemente neste trabalho, que a teologia negativa e a
tradicionais, e sim por meio do avanço destruidor de dogmas, ideologias e ilusões religiosas
fixadas para filtrar e reelaborar o conteúdo de verdade que sobra, evidencia-se e impregna-se
De meados dos anos 80 até hoje iniciaram-se estudos sobre mística que focam não a
para quem não desconfiava, há uma mística da modernidade, tão rica quanto as
281
282
paradigmáticas, e que se localiza mais próxima do que pensávamos: na arte moderna 419. Ela
pré-modernos (escritores como Rilke, Stephan George, Hofmannsthal, T.S. Eliot 423, James
Joyce 424 , pensadores como Simmel, Gustav Landauer, Fritz Mauthner e outros) e nas
Clarice Lispector425 e Guimarães Rosa426, para dar exemplos bem próximos e decisivos, não
nos permitem ignorar o fenômeno e impressiona que a temática seja pouco estudada no
Brasil427; quando encontramos estudos, são freqüentemente mal pesquisados. Fora do Brasil e
do circuito literário e erudito da Europa encontramos também o acaso zen de John Cage, a
419
Há também movimentos políticos, esotéricos, teológicos e científicos que não nos interessam, a não ser na
medida em que tenham alguma relação com práticas artísticas e teóricas relevantes.
420
ROMMEL, Gabriele. Novalis, Geheimnisvolle Zeichen: Alchemie, Magie, Mystik und Natur bei Novalis.
Berlin: Ed. Leipzig, 1998. HERZOG, Werner. Mystik und Lyrik bei Novalis. Jena: Vopelius, 1926.
STOCKINGER, Ludwig. „Poetische Religion – Religiöse Poesie: Friedrich von Hardenberg (Novalis) und
Joseph von Eichendorff―. In: BRAUNGART, Wolfgang. Ästhetische und religiöse Erfahrungen der
Jahrhundertwenden. Paderborn: Schöningh, 1997, p. 167-86.
421
WILLIAMS, Tomás A.. Mallarmé and the language of mysticism. Athens: Univ. of Georgia Press, 1970.
422
THEIERL, Herbert. Nietzsche - Mystik als Selbstversuch. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2000,
Theierl trabalha a partir deste trecho de Nachlass que retiro da p. 5: ―Wenn Skepsis und Sehnsucht sich begatten,
entsteht die Mystik. Wessen Gedanke nur ein Mal die Brücke zur Mystik überschritten hat, kommt nicht davon
ohne ein Stigma auf allen seinen Gedanken‖. ―Se o ceticismo e a saudade copulam, nasce a mística. Daquele
pensamento que atravessou somente uma vez a ponte que leva à mística, não se sai sem um estigma para todo o
seu pensamento‖. SPÖRL, Uwe. Gottlose Mystik in der deutschen Literatur um die Jahrhundertwende.
Paderborn: Schöningh, 1997, p. 134.
423
MURRAY, Paul. T. S. Eliot and mysticism: the secret history of Four quartets. Basingstoke, Hampshire:
Macmillan, 1994. CHILDS, Donald J.. T. S. Eliot: mystic, son, and lover. London: Athlone Press, 1997.
WOLOSKY, Shira. Language mysticism: the negative way of language in Eliot, Beckett, and Celan. Stanford,
Calif.: Stanford Univ. Press, 1995.
424
JAURRETCHE, Colleen. The sensual philosophy: Joyce and the aesthetics of mysticism. Madison, Wis.:
University of Wisconsin Press, 1997.
425
NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1976, ver especialmente pp. 103-112. NUNES,
Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1989.
426
UTEZA, Francis. JGR: metafisica do Grande Sertão. São Paulo: EDUSP, 1994.
427
Nunes e Uteza contribuíram para avanços preciosos, mas falta muito em termos de diálogo com a discussão
internacional.
282
283
modernas. Há dificuldade de obter uma visão geral e ainda muito o que fazer no campo
Em todas essas manifestações, cabe ao teórico procurar pensar, afinal, o que é uma
ponto aspectos dessa mística já impregnam a arte moderna em geral428, o que faz certas obras
místicas, quais deles chegaram a assumir, refletir ou inventar explicitamente uma prática ou
poética mística (como Bataille), uma dívida de leituras da filosofia e literatura mística
religiões ou ordens místicas (como na relação de Kandinsky e Schönberg com a teosofia); isso
(Stefan George e surrealismo). Cabe ao crítico discernir até onde ocorre a existência da
mística moderna nos diferentes casos; que tipo de efeito provoca na obra; como se constrói a
relação recíproca entre prática ascética individual moderna, experiência mística, produção e
recepção da obra artística; quais são as conseqüências ontológicas e éticas desse tipo de
atividade estética.
Tudo o que estamos mostrando na relação entre mística e arte moderna também vale,
com o mesmo interesse para nós, na relação entre mística e filosofia-teoria moderna, se
Heidegger, Buber, Benjamin, Bloch e, como já analisamos, Adorno429, não deixando a teoria
428
Daí a aproximação muito freqüente entre poesia e mística. BREMOND, Henri. Priére et poésie. Paris:
Bernard Grasset, 1926. CRASTRE, Victor. Poésie et mystique. Neuchâtel: La Baconnière, 1966. PLOUVIER,
Paule. Poésie et mystique. Paris: L'Harmattan, 1995.
429
Diga-se o mesmo de nomes não tão conhecidos como Gustav Landauer e Fritz Mauthner na Alemanha, ou
Agostinho da Silva, em Portugal.
283
284
reflexão mística contida numa determinada obra ou autor e criticar, desmistificar possíveis
esclarecimento.
crescente desde meados dos anos 80. Gostaria de expor rapidamente alguns aspectos teóricos
conhecimento e torna-se um meio artístico. A metáfora da visão, com toda sua imagética
A mística moderna nos apresenta um sujeito que, devido à sua perda de horizonte de
valores metafísicos, remete cada vez mais para si mesmo. A falta de orientação metafísica
torna a própria subjetividade incerta e deixa aparecer a busca pela verdade e autenticidade,
430
Antes dela houve uma antologia com a valiosa introdução de Wolfgang Böhme, que preparou com êxito o
terreno da discussão. BÖHME, Wolfgang (org.). Mystik ohne Gott?: Tendenzen des 20. Jahrhunderts. Karlsruhe:
Tron, 1982.
284
285
da linguagem e de sua negação uma chance artística, idéia estética e mística que desenvolve
uma exigência de verdade ainda maior, fundamentada pela própria incerteza e reflexão
A reflexão do sujeito se faz no território do objeto exterior onde a linguagem é a visão negada
sujeito místico artista e produz a si mesmo enquanto sujeito e obra de arte. Percebendo-se no
espelho de sua própria obra de arte, torna-se o sujeito para a obra de arte de si mesmo. Ele se
mantém sempre atrás do ideal de obra de arte que produziu no instante de sua inspiração
Essa mimese que a vida faz da própria obra é constatada também por Uwe Spörl434.
Sua pesquisa se restringe a determinados autores alemães do final do século XIX e início do
431
WAGNER-EGELHAAF, Martina. Mystik der Moderne: die visionäre Ästhetik der deutschen Literatur im 20.
Jahrhundert. Stuttgart: Metzler, 1989, p. 58.
432
WAGNER-EGELHAAF, Martina. Ibidem, p. 60.
433
WAGNER-EGELHAAF, Martina. Ibidem, p. 61.
434
SPÖRL, Uwe. Gottlose Mystik in der deutschen Literatur um die Jahrhundertwende. Paderborn: Schöningh,
1997, p. 235. Analisei esse fenômeno de forma mais detalhada no artigo LOSSO, Eduardo Guerreiro Brito.
―Máquina mística da ascese poética. Sonho, delírio e liberdade infinita da inocência lúcida.‖ In: Terceira
Margem: revista do programa de pós-graduação em ciência da literatura. UFRJ, Centro de Letras e Artes,
285
286
século XX, e defende a tese de que há uma ―neomística‖ atéia, sem deus, dogma nem crença
da divindade transcendente seria buscada no plano imanente, tentando, de igual modo, fazer
acordo com alguns pensadores do final do século XIX, especialmente Gustav Landauer, há a
idéia de que somente os grandes céticos foram também místicos 436 . Spörl insiste que em
vários pensadores dessa época, dos quais Nietzsche é mais um dos exemplos que ele analisa
vigília (de acordo com a etimologia de mística, muo, olhos cerrados). O método de absoluta
negação (geralmente cético) faz um uso dialético da mesma enquanto passagem para um
modo mais elevado de afirmação 437, o que mostra claramente o deslocamento da teologia
entender a mística na modernidade. Mas há neles ainda muitos problemas. O principal deles
muito do que Wagner-Egelhaaf e Spörl apresentam como dados próprios da modernidade não
nos parece às vezes tão distante assim da mística barroca, por exemplo.
286
287
Defender que haja uma completa ausência de Deus, como quer Spörl, é extremamente
duvidoso, pois essa ausência pressupõe um outro modo de presença, como bem pensaram
Tillich, Adorno, Laurens tem Kate e Ilse Bulhof. Talvez alguns pensadores sejam mais
explícitos no seu ateísmo, outros menos. Às vezes aqueles que foram bem claros não parecem
servir de exemplo para a totalidade. Nietzsche, que é o mais conhecido, insiste na imanência e
afirmação da vida, sem dúvida, mas é suficientemente ambíguo e complexo para permitir
como algo mais que uma constatação resolvida, já entrevendo a dificuldade de pensar uma
ausência absoluta.
qualquer modo, Spörl foi coerente em seu recorte e reproduziu a leitura imanente de seu
tradicional que nem sempre é tão fácil quanto faz parecer. É duvidoso dizer que não há mais
dialética do senhor e do servo hegeliana, e dessa dialética, mesmo que com modificações, os
modernos estão impregnados. O ideal da obra de arte não está tão distante assim da
287
288
vanguardistas e dos happenings da arte informal), tão presente até o início dos anos 70, só
A aura mística, profética e visionária que se fez do artista moderno, do dandy, e que
ele fez de si mesmo, ocorreu de modo simultâneo à prática estética de aniquilamento do eu,
visionarismo, que Wagner-Egelhaaf com muita propriedade analisa, contém mais pretensões
megalomaníacas do que ela supõe 438 . Adorno já tinha percebido algo dessa configuração
diminuir o valor teórico de tais obras, Adorno ainda sabe reconhecer nessa pretensão um
Agora veremos como Adorno utiliza todos os seus pressupostos sobre teologia e
nosso ponto de chegada – a literatura - faremos uma incursão breve no assunto, não por
diminuir a importância de questões relativas ao texto literário, mas para mostrar como todo o
foi feito sempre visando estruturalmente o seu final, estando o final já contido em todo o
percurso.
438
AMEND-SÖCHTING, Anne. Ichkulte. Formen gebündelter Subjektivität im französischen Fin-de-siècle-
Roman. Heidelberg: Winter, 2001. Amend-Söchting mostra como o escritor do Fin de siècle procura resolver o
estranhamento do mundo e o conflito entre o Eu e o mundo construindo mundos imaginários e sistemas
narcísicos íntimos, tentando, através da fantasia, uma reconciliação do singular com o todo no sistema individual
da imaginação, p. 77-8. A ―glorificação‖ e ―megalômana elevação do Eu‖, p. 330, o ―Ichkulte‖ ou ―Culte du
moi‖ pretendendo salvar o mesmo, torna-se o substituto para uma relação simbólica nunca construída.
288
289
estética nos daria uma visão mais detalhada e precisa de como estas questões estão
impregnando a análise literária e a teoria estética adorniana, mas, de certo modo, iríamos
literárias em conjunto com Adorno, toda nossa argumentação se refere aos problemas que
brotam do exercício interpretativo, e propõe caminhos, saídas diversas das quais geralmente
Além disso, veremos que é a questão da experiência da leitura e da escrita que levanta
a dimensão estética do texto filosófico. Sem pretender confundir filosofia e literatura lá onde
não se deve, essa dimensão estético-literária da filosofia possui em Adorno o mais alto valor
filosófico, de modo que toda nossa análise teórica da experiência se localiza num ponto
como ensaísta único, merece ser tratado no interstício entre literatura e filosofia. Da mesma
forma, toda nossa análise da filosofia adorniana foi textual, a partir de um pensamento que
vive de densos gestos e apostas literárias, recuperando o valor da retórica para o movimento
de contradições dialéticas.
Tanto na relação com a leitura quanto com a escrita o que Adorno afirma de Benjamin
cabe a ele mesmo: Adorno trata o texto profano – o literário, o musical – com se fosse sagrado.
O ato de leitura e o da escrita são investidos de um desejo messiânico e utópico que dá a cada
negatividade.
289
290
da interpretação (11, 573). Adorno enfatiza esse lugar de contaminação recíproca do literário
avançada nem se subtrai à resignação do método. Sem admiração fácil, seja pela literatura ou
esperança de algo mais do que uma experiência solitária (11, 15). A mediação da história está
presente em toda experiência imediata e nega a sociedade individualista e sua ideologia (11,
18). Percebe-se que Adorno pretende com isso dizer que é a experiência da reflexão histórica
do ensaio que violenta e ultrapassa a imediação individualista e, assim como o faz a arte de
vanguarda mais subversiva e esotérica, contém em seu jogo formal todas as contradições
sociais.
místico, não é o lugar onde alguém pode encontrar-se como se estivesse em sua casa,
confortável, mas onde se evidencia de seu caráter oculto a estrangeiridade frente ao mundo, o
estranhamento de seu nome próprio, que recusa o que é e concebe o que deveria ser (11, 239).
(Die mystischen Meditationen) pressupõem uma doutrina dogmática na própria tradição dos
290
291
para trás como o ramo místico das grandes religiões na sua fase final esclarecida. Ele não
postula uma religião da filosofia da religião, (wie die mystischen Ausläufer der großen
Religionsphilosophie, 11, 243). Não há como não reconhecer nessa apreciação de seu amigo
muito das próprias características de seu escritor. Bloch é teólogo e socialista mas de nenhum
modo um socialista religioso, pensando a imanência no sentido mais disperso enquanto chispa
do fim messiânico da história (als »Funke« des messianischen Endes der Geschichte, 11, 242).
ao reconhecer no humanismo de Goethe, na peça Iphigenie, algo que se eleva a uma espécie
de mística blasfemadora (in der Humanismus zur blasphemischen Mystik sich steigert)
Christentum so fremd). Isso soa como a doutrina da apocatástase, a redenção do mal radical e
o término da culpabilidade (anklingt die Lehre von der Apokatastasis: der Erlösung selbst des
radikal Bösen, der vollendeten Sündhaftigkeit, 11, 510). Reencontramos nesse trecho a mesma
associação da igreja russa com a literatura russa moderna, vendo nisso um paradoxo, pois
Goethe não tomou conhecimento da primeira, embora aqui dela se irmane, mas influenciou a
segunda.
e levanta a ousada tese de que há nela, Goethe querendo ou não, fontes na mística judaica.
(Sagt die mit Bedacht gewählte Bezeichnung Chorus mysticus in der Schlußstrophe mehr als
das vage Cliché einer Sonntagsmetaphysik, dann zitieren die Sachgehalte, mochte Goethe es
291
292
wollen oder nicht, jüdische Mystik herbei, 11, 132). A cadência judaica do êxtase (Der
movimento das esferas. Adorno cita a exclamação de Pater ecstaticus, que exibe claramente,
Fogos, abrazem-me,
Clavas, arrazem-me,
Setas, lancinem-me,
Raios, fulminem-me,439
Fausto. Adorno quer, ainda que por meio de ousadias teóricas, sublinhar a ligação intrínseca
da produção literária mais fundamental do iluminismo alemão com a mística, mesmo que
Goethe tenha uma vez afirmado que a mística é uma espécie dupla de poesia e filosofia
imatura440 . Como há outras passagens menos claras e conhecidas que também abordam a
mística nas Máximas e reflexões441, talvez Adorno tivesse como fundamentar o que afirma,
seria contudo mais difícil pensar numa mística judaica em Goethe. Provavelmente Adorno
hierarquias do pleroma, assim como na passagem dessa tradição já para o Paraíso da Divina
comédia de Dante. Adorno não deixa de observar que essa mesma suposta influência
cabalística inflama a oitava sinfonia de Mahler, que musica esse texto. Aqui fica mais
439
GOETHE, Johann Wolfgang. Goethes Werke. Hamburger Ausgabe in 14 Bänden (Goethe-HA). Textkritisch
durchgesehen und mit Anmerkungen versehen von Erich Trunz. Hamburg: Christian Wegener, 1948 s., t. 3, p.
356. ―Pfeile, durchdringet mich, / Lanzen, bezwinget mich, / Keulen, zerschmettert mich, / Blitze, durchwettert
mich!‖ GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Ed. USP, 1981, p. 444.
440
GOETHE, Johann Wolfgang. Berliner Ausgabe. Herausgegeben vom Aufbau/Siegfried Seidel: Poetische
Werke [Bd. 1-16]; Kunsttheoretische Schriften und Übersetzungen [Bd. 17-22]. Berlin: Aufbau, 1960, t.18, pp.
624-5; ver também t. 18, p. 523.
441
GOETHE, Johann Wolfgang. Berliner Ausgabe, p. 18, 522.
292
293
concreta a ligação que Adorno, na carta a Scholem, supõe entre o Mahler judeu e uma mística
que aquele das almas. Essa fisionomia da expressão objetiva contém algo enigmático unindo a
mais extrema determinação com o seu contrário. Em Proust há uma fisionomia ainda
afirmativa vinda de uma tradição mística subterrânea (aus einer unterirdischen mystischen
Tradition) quando abre da memória involuntária a linguagem secreta das coisas; em Beckett
essa mesma fisionomia não é mais humana, tornada totalmente negativa como contra-imagens
do inesquecível: eis o reino no qual o drama de Beckett é potente (11, 296). A negatividade de
natureza, mas não deixa de ser uma negatividade menos mística, antes, alcança o ápice da
modernidade, seja pela via positiva do humanismo de Goethe ou da fisionomia de Proust, seja
pela negatividade radical de Beckett e Schönberg, cuja força subversiva não deixa de possuir
cita uma passagem onde Benjamin observa o quanto sua poesia possui da passividade de uma
formação 442 . Adorno completa que essa mística já aparece em arquipélagos de coloração
442
BENJAMIN, Walter. Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1955, t. 2, p. 398.
293
294
Naturalmente tanto Benjamin quanto Adorno estão assinalando essa tendência por ser a eles
especialmente dileta.
No ensaio sobre o poeta Rudolf Borchardt, Adorno começa chamando atenção para
um verso do poema ―Pause‖ que ele considera emblemático para entender toda uma dimensão
da poesia moderna: Ich habe nichts als Rauschen, ―Nada tenho senão murmúrio‖. Segue-se o
verso Kein Deutliches erwarte dir ,―nada de claro espero de ti‖. A linguagem murmura como
uma corrente (11, 536, 540, 550). Não há nada senão o murmúrio, que não se confunde com o
som (Klang em 11, 83, 88), pois ultrapassa a intenção e o significado para chegar a um modo
(Die Substanz kristallisiert sich in der Sprache an sich, als wäre es die wahre Sprache der
jüdisch-mystischen Lehre, 11, 536), o que inclusive aproxima a poesia da música não
Stefan George é caracterizado como possuidor de uma mística do esquisito (Mystik des
supostamente religiosos, deteriorando seus símbolos como meros embelezamentos (11, 649).
deriva da palavra „rusch‟, que significa e originou também Rauschen: murmúrio. A palavra
Rauschen, que como substantivo é murmúrio, burburinho, e como verbo é murmurar, está
294
295
materialidade verbal.
Ainda mais surpreendente é verificar que Adorno experimenta esse murmúrio não só
na poesia, mas também na filosofia, e na mais especulativa: nada mais nada menos do que em
rauscht‖). Como em seu crítico menor Kierkegaard, pode-se dizer de Hegel que se prova
confissão: num período de férias em Überlingen, Adorno observou o quanto o trabalho é para
melancolia e solidão‖. Ele receia que seja esse o ―segredo‖ ou ―mistério‖ (Geheimnis) de sua
chamada produtividade443.
pois Adorno diz ter se dado conta só nesse momento, em 1960, o que pode ser mais uma
surpresa retórica do que real) a uma experiência de embriaguez que procura suportar a
melancolia e a solidão, quer dizer, o sofrimento imediato do indivíduo burguês, fruto de uma
Também não deixa de ser notório que Adorno não use aqui a palavra ―enigma‖ (Rätsel)
por ser um conceito central da Teoria estética que teoriza justamente a secularização que a
obra de arte faz do mistério divino (lembro que em 1960 Adorno ainda não tinha escrito sua
443
Blätter VIII, p. 13; 31.3.1960, ―Während der 10 Tage in Überlingen fühle ich, wie sehr bei mir die Arbeit ein
Rauschmittel ist, das mich über eine sonst fast unerträgliche Schwermut und Einsamkeit hinweghilft. Ich fürchte,
das ist das Geheimnis meiner sogenannten Produktivität‖.
295
296
obra póstuma, logicamente). A palavra ―enigma‖ faria mais lógica na frase, mas o uso de
mistério, no contexto de uma experiência mística efetivamente moderna, seja por meio do
trabalho artístico ou filosófico, sem dúvida está justificada. Aqui fica mais clara a conexão
entre a filosofia enquanto obra e a práxis cotidiana, em outras palavras, a ascese secularizada
do filósofo.
Para terminar o rol de fragmentos retirados da obra, vale retomar todo o imenso valor
filosófico que Adorno dá a Proust. No final do artigo sobre a relação da arte com a religião na
noções religiosas feita ao longo da primeira metade do século XX (o texto é de 1945), Adorno
vê na obsessão de Proust pelo concreto e único - o gosto da Madeleine, a cor dos sapatos -
nada mais nada menos do que a materialização da verdadeira idéia teológica, da imortalidade
(11, 653). É nas minúcias mais frágeis e mortais, retirada da ―vida selvagem‖ que Proust
pequenas aldeias e lugarejos. Adorno se identifica explicitamente com essa experiência que
supõe ter observado em Proust. Nomes como Otterbach, Watterbach, Reuenthal, Monbrunn
(6, 366) representam uma promessa de felicidade que não pode ser decepcionada pela própria
ida ao lugar. O que interessa nesse fascínio não é a possibilidade de se estar concretamente
nesses locais, porém simplesmente a sugestão que eles carregam444. Adorno compara essa
444
BRECHT, Bertolt. ―Ascensão e queda da cidade de Mahagonny‖. In: Teatro completo, III. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1995, pp. 109-164. ―Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny" In: BRECHT, Bertolt. Gesammelte
Werke in acht Bänden. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1967, p. 499-524. Essa peça de Brecht comentada por
Adorno e Bloch na entrevista sobre utopia também narra a criação de uma cidade paradisíaca, mas que, no seu
decorrer, vai se corrompendo, e lembra muito, em seu início, o poema ―Vou-me embora pra Pasárgada‖ de
Manuel Bandeira.
296
297
sugestão que deve permanecer inatingível ao arco-iris. Tal experiência infantil é para Adorno
Vale ainda acrescentar, no âmbito musical - sem esgotar as referências nem mesmo
abordar o assunto -, os chamados ―belos trechos‖ (schöne Stellen) que Adorno identifica em
diversas composições (Mahler, Berg etc.) como sendo trechos de uma peça que não obedecem
que caracteriza uma tensão e ―tempero‖ especial na harmonia. Beethoven diz que isso não se
aprende com técnica, e no emprego certeiro dele se resume o que entendemos por genialidade.
Adorno é coerente com a tradição retórica da mística de se expressar por paradoxos. Claro
que retirar isso da música, em Beethoven, faz parte de seu portfólio interpretativo, quando
Adorno opõe a essa mística da técnica o romantismo diluído, que seria sua expressão
positiva (no mal sentido). Num outro trecho sobre o expressionismo (11, 611), porém, ele
associa mística e romantismo diluído, usando o termo mystisch no sentido depreciativo. O uso
depreciativo do termo existe tanto nesse sentido quanto no sentido mais conhecido de
445
Adorno, Theodor W.. Nachgelassene Schriften. Bd. Abt. 1, Bd. 1. Beethoven: Philosophie der Musik;
Fragmente und Texte- Suhrkamp, Frankfurt am Main: 1994, p. 188. (BPM)
297
298
Essa oscilação prova a consciência mesma de que ele não se reduz somente ao sentido
depreciativo, que é aquilo que estamos mais acostumados. Mais ainda: nesse trecho, há uma
conexão entre o demoníaco em Beethoven e o místico ou gnóstico (BPM, 254; ver também
em Mahler, 13, 201). Essa conexão do demoníaco da obra de arte moderna com a mística está
bem clara na participação que Adorno teve no Doktor Faustus de Thomas Mann446.
Com base nesses fragmentos, cabe-nos agora reconstituir a constelação que elas
integram.
defendem a hipótese de que haja nele uma mística judaica. Kai Pege analisa a reflexão de
Adorno e Horkheimer sobre a cópula, que leva a hipótese de que a linguagem filosófica
446
MANN, Thomas. Doutor Fausto: a vida do compositor alemão Adrian Leverkühn narrada por um amigo.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, encontro de Adrian Leverkühn com o diabo, capítulo XXV, p. 338. A
relação entre Adorno e o romance de Thomas Mann é extremamente rica de implicações teológicas e o que há
para se explorar é tão extenso que valeria um outro trabalho. O famoso artigo de Lyotard a respeito é um dos
primeiros a abordar o problema. LYOTARD, Jean-François. ―Adorno comme diavolo‖. In: Dispositivos
pulsionales. Madrid: Fundamentos, 1981, pp. 107-23. DE LA FUENTE, Eduardo. ―Music as Negative
Theology‖. Thesis Eleven, 56, 1999, p. 57-79.
298
299
sua carta a Scholem. A partir daí ele afirma que há em Adorno uma filosofia mística447.
Reinhard Matern também analisa a cópula e aponta em Adorno uma mística sem
imagem (―eine bilderlose Mystik‖)448. Ele sublinha uma ―voz feminina‖ cabalística por trás da
experiência estética. Penso que ele acerta quando vê uma identidade estrutural entre o
entusiasmo místico e o estético, mas se equivoca para o lado oposto de nossa suspensão,
Ambos possuem intenções semelhantes ao procurar encontrar uma ligação entre Zohar
e Adorno. Matern comete grandes equívocos em forçar uma visão mística e religiosa em
Adorno; Kai Pege também resvala nessa direção. Eles cometem um duplo erro: afirmar
simplesmente que a filosofia de Adorno é mística, o que é falso, e procurar o aspecto místico
Não se precisaria insistir que Adorno concordava com Scholem no diagnóstico de que
a cabala contém, ao lado de todas aquelas características emancipatórias, uma recaída no mito.
Portanto, toda a narrativa e terminologia cabalística possui para Adorno sugestões preciosas,
mas nenhum grande pensamento exposto de modo a que ele discutisse em seus textos e
caminhos mais promissores, como a já citada Kerstin Decker. Hent de Vries, em seu livro
447
PEGE, Kai. Über Horkheimers und Adornos Auffassungen philosophischer Sprachen: eine Analyse im
Kontext jüdischer Theologien. Gelsenkirchen: Autoren: Verl. Matern, 1996, p. 39 sobre a cópula, p. 71, pp. 79-
80 sobre entonação messiânica, p. 90 sobre mística, p. 92 sobre filosofia mística.
448
MATERN, Reinhard. Über Sprachgeschichte und die Kabbala bei Horkheimer und Adorno. Duisburg:
Autoren-Verl.: Matern, 1996, p. 59.
449
MATERN, Reinhard. Ibidem, p. 117, 118, pp. 120-123.
299
300
irracionalismo450, contra a idéia de uma união mística, uma paz e tranqüilidade da consciência
silenciosa que oculta desespero e niilismo 451 . Ao mesmo tempo ele acentua o papel da
mística, mas não analisam o problema. Falta aos teólogos e estudiosos da religião, por vezes
até aos filósofos, predisposição ou interesse para pensar a relação da estética moderna com a
mística. Contudo, é por causa disso que perdem o lugar onde Adorno mais investiu, onde a
questão realmente se coloca e rende, onde a obra de Adorno foi mais longe e oferece suas
melhores contribuições.
Matt E. Connell chega a nos oferecer uma interessante leitura do ensaio de Adorno
sobre Kafka num livro sobre misticismo na teoria e na literatura afirmando que a leitura de
Adorno enfatiza, por influência de Benjamin, a iluminação negra ou profana em Kafka. Sua
crítica à teologia dialética nesse ensaio conserva a promessa messiânica através da estrita
atenção à repressão social do corpo. A arte se torna uma secularização da revelação, o que
moderno também em Benjamin (10.1, 244). Haveria em Kafka, segundo Adorno, portanto,
450
VRIES, Hent de. Theologie im Pianissimo & zwischen Rationalität und Dekonstruktion. Kampen: Kok, 1989,
p. 83.
451
VRIES, Hent de. Ibidem, p. 116.
452
VRIES, Hent de. Ibidem, pp. 142-8.
453
CONNELL, Matt E.. ―Through the Eyes of an Artificial Angel: Secular Theology in Theodor W. Adorno's
Freudo-Marxist Reading of Franz Kafka and Walter Benjamin‖ In: LEONARD, Philip. Trajectories of mysticism
in theory and literature. Basingstoke: Macmillan, 2000, p. sobre a teologia negativa em Kafka, p. 202; sobre
iluminação negra ou profana, p. 203; anjo kafkiano artificial e messiânico e misticismo antinômico p. 208; arte
como secularização da relevação, p. 210.
300
301
Apesar do interesse que o ensaio desperta, ele não nos parece dizer muito mais do que
modo que decepciona o leitor que procura a relação entre a teoria adorniana e a mística num
livro que se mostra como sendo a primeira grande e louvável iniciativa de ser especialmente
entre mística e arte em Adorno, levando em conta o fato de que todos aqueles que analisaram
o aspecto místico em sua obra ou não a abordaram da maneira mais eficiente ou remeteram a
No caso das teses sobre teologia, a pouca entrada da estética, menor ainda quando
epistemológica simplesmente ignora que a maior parte da obra de Adorno é sobre arte, em
especial sobre música. Na maioria dessas teses pouco se explora a música, menos ainda a
literatura. Da mesma forma as teses sobre arte em geral e literatura em particular, ainda que
dos nomes mais importantes nesse sentido é sem dúvida Karl Albert, que possui um trabalho a
intrínseca da filosofia com a mística desde suas origens até hoje. Deste modo ele não é capaz
301
302
Heidegger e Lavelle. Não há pistas de Benjamin, que não deveria ser ignorado, muito menos
Adorno454.
Assim, para fazer justiça à real constelação temática de Adorno, procuramos mostrar a
relação efetiva entre teologia, mística e estética. Como a maioria das teses sobre Adorno são
feitas por teólogos, todas elas, por mais que nos melhores casos tenham se demonstrado
Para pensar adiante de Adorno com Adorno, ao introduzirem o gesto ―contra Adorno‖
recaem na já esperada defesa do dogma, parecendo uma enorme música atonal que termina
com um apoteótico acorde maior. A reflexão se mostra inevitavelmente mais pobre do que a
Além desses problemas, todas essas teses, mesmo quando chegam a conceber a
relação entre estética e mística e a questão de uma mística da arte moderna, ignoram por
completo a recente discussão sobre mística da modernidade. Esse me parece ser o maior erro
e o maior vazio, pois só a partir dele se pode avaliar com precisão o alcance das apostas
em torno de Adorno, mística, teologia e arte moderna - jogando um setor diante do outro para
454
Albert, Karl. Mystik und Philosophie. Sankt Augustin: Richarz, 1986, p. 11.
302
303
demonstrar melhor as respectivas falhas – de modo a finalmente poder apresentar com clareza
partir dos avanços deste novo campo teórico. Como ninguém, rigorosamente, fez isso até o
momento, visto a sua relevância e até urgência, escolho para nosso trabalho essa saída.
CONCLUSÃO
Egelhaaf afirma que na mística moderna o sujeito remete sempre a si mesmo e não
mais ao outro transcendente: o outro já se dá em si mesmo. Adorno, por outro lado, confirma
esse isolamento do indivíduo e o dado objetivo de toda experiência estética. Mas ela não foi
subversão e superação do individualismo imposto pelo sistema social. Pensou ainda menos o
303
304
potencial emancipatório dessa experiência. O fato é que a marca decisiva que essa experiência
através de uma imersão no universo da linguagem, contém muito mais do que efeito divertido
ou terapêutico. Seu choque existencial aumenta e desafia a razão (como disse Certeau, a
quer dizer, a fazer sua parte para mudar algo do ofuscamento e culpabilização universal.
Desejando algo mais que o existente, o sujeito transforma a si mesmo, transgride seus
próprios limites, produzindo atividade crítica. Assim tal indivíduo não se resigna ao status
quo existente e descobre no cerne de sua experiência a verdadeira objetividade de algo mais
que o existente. Ao mesmo tempo, em concordância com Spörl e Egelhaaf, não há remissão a
uma transcendência positiva ilusória, pois a ascese artística ou teórica busca a transcendência
moderna dá mais do que um ―sentido‖ à vida: ela extrai força da impotência à qual o sujeito
foi reduzido, em outras palavras, e num sentido bem ―alquímico‖, tira vinho da água e ouro de
pedra.
Ela pode retirar o sujeito de seu isolamento melancólico a partir do próprio isolamento,
mudo do presente todo um sentido histórico, que, por sua vez, torna-se muito mais do que
455
TÜRCKE, Christoph. Fundamentalismus - maskierter Nihilismus. Springe: zu Klampen, 2003, p. 14, 153.
Türcke termina pensando um ateísmo que, contra o niilismo e o fundamentalismo, despede-se do fundamento
último enquanto ficção, mas toma a sério o fundamento da própria ficção: um último desejo.
304
305
capta o poder transcendente da mortalidade mais frágil. Assim o niilismo é combatido não
com ilusão, que leva a mais niilismo, mas com a compreensão experimental do estado de
da aparência, e isso, segundo Adorno, Proust, Beckett, Kafka, Hölderlin e Goethe nos dão
conexão necessária com a metafísica criticada, Egelhaaf ainda não aprecia o caráter
desconstrução como sintoma agudo da crise, sintoma que é também impulso na direção do
ignorar o valor específico da metafísica nesse processo, muitos teóricos pós-modernos da arte
e da literatura se mostram cegos por seguirem as tendências gerais das teorias em voga, em
A mística na arte moderna nos obriga, portanto, a repensar a questão da metafísica por
meio de sua relação com a arte e a modernidade. Não é sem motivo que Adorno a renomeia
305
306
configurações da mística, movido pelo desejo de renovação teórica, exibe seus equívocos na
moderna.
Essa falha se irmana com a de teóricos da mística como Katz, no lado laico, e vários
teólogos cristãos que, ao estudarem a evidente origem ortodoxa dos místicos, tendem a apagar
os desvios contra os quais a própria ortodoxia da época se viu tantas vezes obrigada a reagir.
Por sua vez, os teóricos da mística moderna tendem a enquadrá-la nos paradigmas invariáveis
da modernidade estética, sem refletir o suficiente sobre o testemunho que oferecem das
transgressão estética.
sem objeto produzido para o objeto da produção artística. Diferente de São João da Cruz, por
exemplo, que em princípio coloca a devoção e a experiência acima de sua produção (isso já é
306
307
ascese artística, mesmo que não a ignore. Ela não reflete (e para isso o teórico da ascese na
modernidade, Harpham, nos ajuda) o fato de que também no artista moderno há uma intenção
também se torna, de certa forma, um meio, meio para ―um último desejo‖, mesmo que tal
meio não esteja abaixo de uma doutrina, basta ler as considerações de Bataille sobre poesia na
Experiência interior456.
Com Adorno podermos pensar com mais precisão que a obra artística se direciona à
experiência estética, a primazia do objeto no contexto da atividade artística comprova que não
produção não existe nem sem o momento subjetivo nem sem o momento objetivo; enfim, a
próprio também da mística da modernidade. Adorno não nos ajuda muito a pensar esse
problema, pois em sua experiência pessoal ele não tinha nenhum grande conflito em
atividade filosófica e artística era um antídoto contra a melancolia); ele simplesmente não
separava as duas coisas nem ao pensar a mística tradicional, e quando observava essa
Não há dúvida de que, neste ponto, Adorno é por demais iluminista e pouco simpático
a filosofias orientais. Por isso ele nem nos ajudaria a compreender tendências anti-ocidentais
456
BATAILLE, Georges. A experiência interior. Sao Paulo: Atica, 1992, pp. 46-7, 68.
307
308
na ascese artística ocidental como talvez até avalie mal seu potencial emancipatório, assim
sentido, seria necessário abrir a teoria crítica para diálogos com outras tradições e culturas até
para entender melhor manifestações artísticas ocidentais que já contêm ingredientes estranhos
que postulam a pretensão da iluminação, entre outras coisas, seria preciso examinar até que
ponto tais asceses se revelam grandes elaborações individuais e atingem novos estados que,
reduzir o valor da ascese especialmente mística ao apreciar a dimensão estética, muito menos
o contrário, isto é, reduzir a ascese artística para apreciar a mística, quando elas se separam.
Porém, como estamos privilegiando a região onde elas se unem, muito presente na arte
moderna em geral, seria preciso, acima de tudo, examinar o ganho, inegável, que há para a
qualidade estética sua aspiração mística e a partir daí entender como se estruturam as asceses
de produção e recepção estética. Pensar a atividade estética enquanto elaboração ascética com
vereda de pesquisa que considero hoje indispensável para realmente compreender algo do que
está por trás dessa unio mystica entre arte moderna e mística. A invenção de uma ascese
individual na atividade artística que alcança a uma experiência mística guarda uma dimensão
Além disso, que benefício esse verdadeiro germe da práxis individual possui para a
razão crítica, hoje, é uma nova questão que mereceria muita atenção. Esse direcionamento de
pesquisa serviria para desbravar novos territórios que focariam o efeito do trabalho de
mediação da forma estética na experiência imediata - qual o seu valor para uma práxis
308
309
somente para ordens religiosas e místicas, que geralmente aprisionam todo seu potencial
psicológicas e teológicas.
Adorno não é místico nem teólogo, sua filosofia não é mística nem teológica, assim
como em geral a arte moderna não é tradicionalmente mística nem teológica. Mas há um
aspecto místico e teológico em Adorno motivado pela sua própria interpretação da arte
moderna que consideramos essencial para a compreensão dessa filosofia, sem a qual
castraríamos boa parte daquilo que ela fornece de melhor para a teorização da experiência, da
309
310
8 BIBLIOGRAFIA
OBS: Quando faço um cometário ou dou uma explicação no meio da citação coloco
OBS: As citações da obra completa de Adorno, por serem constantes na tese, foram
(Band 2: Kierkegaard. Konstruktion des Ästhetischen, p. 23, 45, 36). Para diferenciar os
tomos usei ponto e vírgula: 4, 34, 45; 6, 46, 68. Os demais livros possuem abreviatura própria
com letras no final de cada citação abaixo. Todas as citações em português que não tiverem a
Tiedemann unter Mitwirkung von Gretel Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970-
1986.
Band 3: (Mit Max Horkheimer) Dialektik der Aufklärung. Philosophische Fragmente. 1981
310
311
Band 10, 2: Kulturkritik und Gesellschaft II: Eingriffe. Stichworte. Anhang. 1977
Band 15: (Mit Hanns Eisler) Komposition für den Film. Der getreue Korrepetitor. 1976
Band 16: Musikalische Schriften I: Klangfiguren. II: Quasi una fantasia. III: Musikalische
Schriften. 1978
________. Prismas – crítica cultural e sociedade. São Paulo, Ática, 1998. (Abreviatura:
Prismas)
311
312
________. TIEDEMANN, Rolf. Frankfurter Adorno Blätter II. ed. Theodor W. Adorno
________. TIEDEMANN, Rolf. Frankfurter Adorno Blätter III. ed. Theodor W. Adorno
________. TIEDEMANN, Rolf. Frankfurter Adorno Blätter IV. ed. Theodor W. Adorno
________. TIEDEMANN, Rolf. Frankfurter Adorno Blätter VI. ed. Theodor W. Adorno
________. TIEDEMANN, Rolf. Frankfurter Adorno Blätter VII. ed. Theodor W. Adorno
________. TIEDEMANN, Rolf. Frankfurter Adorno Blätter VIII. ed. Theodor W. Adorno
________. Philosophische Terminologie. Zur Einleitung. Band 1. Rudolf zur Lippe (org.).
312
313
Fragmente und Texte- Suhrkamp, Frankfurt am Main: 1994, p. 39, 59. (Abreviatura,
BPM)
________. Nachgelassene Schriften. Metaphysik: Begriff und Probleme (1965),Bd. 14. Rolf
BAUM, K.. Die Transzendierung des Mythos. Zur Philosophie und Ästhetik Schellings und
BENHABIB, S.. Critique, Norm, and Utopia: A Study of the Foundations of Critical Theory.
BENJAMIN, Andrew (ed.). The Problems of Modernity: Adorno and Benjamin. London and
313
314
Press, 2001.
BODEI, Remo. ―Adorno e la dialettica‖. Revista critica di storia della filosofia, 1975, XXX
(4).
1980.
BRUNKHORST, H.. Adorno and Critical Theory. Cardiff: University of Wales Press, 1999.
Beiträge zur Gotteslehre. Gütersloh: Gütersloher Verl.-Haus Mohn, 1989, pp. 73-97.
BUCK-MORSS, S.. The Origin of Negative Dialectics; Theodor W. Adorno, Walter Benjamin
COOK, D.. The Culture Industry Revisited: Theodor W. Adorno on Mass Culture, Lanham,
CONNELL, Matt E.. ―Through the Eyes of an Artificial Angel: Secular Theology in Theodor
Macmillan, 2000.
DALLMAYR, Fred R.. "Adorno and Heidegger" Diacritics 19,3-4, Fall-Winter 1989, p. 82-
100.
___________. Life-World, Modernity and Critique: Paths between Heidegger and the
314
315
DETLEV, Claussen. Theodor W. Adorno. Ein letztes Genie. Frankfurt/M: Fischer Verlag,
2003.
Kaiser-Grünewald, 1980.
2002.
________. ―A indústria cultural global e sua crítica‖. In: ________ et al. (org.). Kátharsis.
________. Adornos. Nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: UFMG,
1997.
EAGLETON, Terry. "Art After Auschwitz: Theodor Adorno". In: The Ideology of the
ESDERS, Michael. Begriffs-Gesten. Philosophie als kurze Prosa von Friedrich Schlegel bis
ETTE, Wolfram (org.). Adorno im Widerstreit. Zur Präsenz seines Denkens. Freiburg;
315
316
Suhrkamp,1983.
GENDRON, Bernard. "Theodor Adorno Meets the Cadillacs". In: MODLESKI, Tania (ed.).
GIBSON, N. C.. and RUBIN, A. (eds.). Adorno: A Critical Reader. Oxford: Blackwell, 2002.
GUR-ZE'EV, Ilan. ―Adorno and Horkheimer: diasporic philosophy, negative theology, and
HANSEN, Miram. "Of Mice and Ducks: Benjamin and Adorno on Disney". South Atlantic
________. "Mass Culture as 'Hieroglyphic Writing': The Alternative Adorno Revisited". New
HEWITT, Andrew. "A Feminine Dialectic of the Enlightenment: Horkheimer and Adorno
HOHENDAHL, Peter Uwe. Prismatic Thought: Theodor W. Adorno. Lincoln and London:
316
317
________. The Critique of Power: Reflective Stages in a Critical Social Theory, trans. K.
HUHN, T.. ZUIDERVAART, L.. (eds.). The Semblance of Subjectivity: Essays in Adorno's
JAEGER, Lorenz. Adorno. eine politische Biographie. München: Dt. Verl.-Anst., 2003.
JAMESON, Fredric. Late Marxism: Adorno, or the Persistence of the Dialectic. London and
New York: Verso, 1990. [Resenhas sobre o livro: HULLOT-KENTOR, R.. GUELEN,
Eva. Telos, 89, Fall 1991, p. 155-60. OSBORNE, P.. New German Critique 56, Spring-
____. The Dialectical Imagination. 2d ed., Berkeley: University of California Press, 1996.
____. "Adorno in America" In: Permanent Exiles: Essays on the Intellectual Migration from
317
318
JIMINEZ, Marc. Theodor W-Adorno: Art Idéologie et théorie de l'art. Paris: 10/18, 1973.
Tradução brasileira: JIMENEZ, Marc. Para ler Adorno. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1977.
1.http://www.webdelsol.com/FLASHPOINT/adorno.htm
____________. ―Beyond Use, Within Reason: Adorno, Benjamin and the Question of
____________. ―Can Adorno Survive Bourdieu? (Can We Survive Adorno?)," MLA Annual
KOLAKOWSKI, Leszek. "The Frankfurt School and 'Critical Theory'" In: Main Currents of
Marxism, vol 3, trans. P.S. Falla. London: Oxford University Press, 1978, p. 341-95.
KOTHE, Flavio Rene,. Benjamin & Adorno: confrontos. São Paulo: Atica, 1978.
LEVIN, Tomás V.. "For the Record: Adorno on Music in the Age of its Technological
LIEDKE, Ulf. ―Negative Dialektik und Theologie: Eine Zwischenbilanz der theologischen
318
319
der Philosophie Theodor W. Adornos. - Frankfurt a.M.: Peter Lang, 1997 (Kontexte; Bd.
21).
LINDNER, B.. LÜDKE, W.M.. (orgs.). Materialen zur ästhetische Theorie Theodor W.
2003.
LUNN, E.. Marxism and Modernism: An Historical Study of Lukács, Brecht, Benjamin, and
LYOTARD, Jean-François. "Adorno como diavolo". In: Des Dispositifs Pulsionnels. Paris:
1973, p. 115-33.
LYSAKER, John. SULLIVAN, Michael. ―Beetween Impotence and Ilusion: Adorno‘s Art of
Theory and Practice‖. New German Critique, n. 57, Fall 1992, p. 87-122.
MARTINSON, Mattias. Perseverance without Doctrine. Adorno, Self-Critique and the Ends
MATERN, Reinhard. Über Sprachgeschichte und die Kabbala bei Horkheimer und Adorno.
MENKE, C.. Die Souveränität der Kunst. Ästhetische Erfahrung nach Adorno und Derrida.
Frankfurt, 1988. Trad.: The Sovereignty of Art: Aesthetic Negativity in Adorno and
319
320
MORRIS, M.. Rethinking the Communicative Turn: Adorno, Habermas, and the Problem of
MÜLLER Ulrich. Erkenntniskritik und negative Metaphysik bei Adorno. Eine Philosophie der
NÄGELE, Rainer. "The Scene of the Other: Theodor W. Adorno's Negative Dialectic in the
Context of Poststructuralism". Boundary Two, 11, 1983. [rpt In: ARAC, Jonathan. (ed.).
111.
_______. A dialética negativa de Theodor W. Adorno. A ontologia do estado falso. São Paulo:
Iluminuras, 1998.
PADDISON, Max. Adorno's Aesthetics of Music, New York: Cambridge University Press,
1993.
___________. Adorno, Modernism and Mass Culture. London: Kahn & Averill, 1996.
PANGRITZ, Andreas. Vom Kleiner- und Unsichtbarwerden der Theologie. Ein Versuch über
das Projekt einer "impliziten Theologie" bei Barth, Tillich, Bonhoeffer, Benjamin,
320
321
Pensky, M., (ed.). The Actuality of Adorno: Critical Essays on Adorno and the Postmodern.
PEGE, Kai. Über Horkheimers und Adornos Auffassungen philosophischer Sprachen: eine
PETAZZI, Carlo. Th. Wiesengrund Adorno. Linee di origine e di sviluppo del pensiero. La
Présences d'Adorno. Paris: 10/18, 1975. [Revue d'Esthétique 1-2/1975; incluindo BELLASI,
P.. "Le bébé avec l'eau de bain" p. 48-96, de Minima Moralia, e LADMIRAL, J.-R..
RENTSCH, Tomás. ―Die Negativität der Sprache Bemerkungen zu Adorno und Wittgenstein‖.
‗Negativen Dialektik‘ auf der Folie von Adornos Hegelkritik‖, In: MENKE, Chr.. SEEL,
M. (Hg.). Zur Verteidigung der Vernunft gegen ihre Liebhaber und Verächter. Frankfurt
ROBERTS, David. Art and Enlightenment: Aesthetic Theory after Adorno. Lincoln and
ROSE, G.. The Melancholy Science: An Introduction to the Thought of Theodor W. Adorno,
321
322
SAID, Edward W.. Representations of the Intellectual. New York: Pantheon, 1994.
Verlag, 1989.
SCHMUDE, Marcus von. ―Mit dem Denken über das Denken hinaus Durchaus eine Folge
aktuell.de/ressorts/kultur_und_medien/feuilleton/?cnt=294374
SHERRATT, Y.. Adorno's Positive Dialectic. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
STAHL, Joachim. Kritische Philosophie und Theorie der Gesellschaft: zum Begriff negativer
TAR, Zoltan. The Frankfurt School: The Critical Theories of Max Horkheimer and Theodor
THYEN, Anke. Negative Dialektik und Erfahrung. Zur Rationalität des Nichtidentische bei
TRAUBEL, Michael. Die Religion in der kritischen Theorie bei Max Horkheimer und
Adorno and Horkheimer‖. New German Critique, n. 59, Sprig/summer, 1993, p. 155-92.
VOGEL, S.. Against Nature: The Concept of Nature in Critical Theory, Albany: State
322
323
VRIES, Hent de. Theologie im Pianissimo & zwischen Rationalität und Dekonstruktion: die
__________. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne: Vernunftkritik nach Adorno.
WHITEBOOK, Joll. ―From Schoenberg to Odisseus: Aesthetic, Psyquic, and Social Synthesis
in Adorno and Wellmer‖. New German Critique, n. 58, Winter 1993, p. 45-64.
________________. The Frankfurt School: Its History, Theories, and Political Significance.
Aesthetic Theory" In: The Terms of Cultural Criticism: The Frankfurt School,
323
324
79.
Vol. 1, p. 16-32, ed. M. Kelly, New York: Oxford University Press, 1998.
DE LA FUENTE, Eduardo. ―Music as Negative Theology‖. Thesis Eleven, 56, 1999, p. 57-79.
FINLAYSON, James Gordon. ―Adorno on the Ethical and the Ineffable‖. European Journal
Wilhelms-Universität, 1995.
NORDHOFEN, Eckhard. Der Engel der Bestreitung: über das Verhältnis von Kunst und
PRITCHARD, Elizabeth Ann. Renouncing knowledge for the sake of ethics: Negative
1999.
324
325
STEUNEBRINK, Gerrit. ―Is Adorno‘s philosophy a negative theology?‖. In: BULHOF, Ilse
N.. KATE, Laurens tem (ed.). Flight of the gods. Philosophical perspectives on
Lang, 1982.
AREOPAGITA, Pseudo-Dionysius. Über die mystische Theologie und Briefe. Adolf Martin
AREOPAGITE, Dionysius the. The Divine Names and The Mystical Theology. London:
SPCK, 1977.
BRADLEY, A.. ―Without negative theology. Deconstruction and the politics of negative
CARABINE, D. The Unknown God: Negative Theology in the Platonic Tradition: from Plato
DIETRICH, J.. ―Negative Theologie bei Pseudo-Dionysios Areopagita und Mose ben
EYJOLFSSON, S.A.. ―Der verborgene Gott in der Theologie Werner Elerts‖ In: Studia
325
326
FABER, E.M.. ―Zur Bedeutung negativer Theologie in der christlichen Rede von Gott‖. In:
"De docta ignorantia"‖ In: Theologie und Glaube, 91, 2001, p. 24-42.
FISHER, J.. ―The theology of dis/similarity. Negation in Pseudo-Dionysius‖. In: The journal
GREINER, U.. ―Fremde sind wir uns selbst. Apologetik des anderen Gottes‖. In:
HALBMAYR, A.. ―Zur Renaissance der negativen Theologie‖. In: Salzburger theologische
HUTH, W.. ―Dionysios der Areopagite und die Poesie der Gotteserfahrung‖. In: Geist und
KÜHN, U.. ―Deus absconditus - ecclesia abscondita‖. In: “Daß Gott eine große
LACOSTE, J.Y.. ―La connaissance silencieuse. Des évidences antéprédicatives à une critique
326
327
LOSSKY, V.. The Mystical Theology of the Eastern Church. Cambridge, U.K.: Cambridge
NIKOLAOU, Th.. ―"Du sollst dir kein Gottesbild machen". Die Undarstellbarkeit Gottes bzw.
OELMÜLLER, W.. ―Ein philosophischer Sprechversuch über Gottaus der Perspektive der
negativen Theologie heute‖ In: KROP, H.ª (hg.). Post-Theism. Reframing the Judeo-
ÖELMÜLLER, Willi. Negative Theologie heute. Dia Lage der Menschen vor Gott. Münschen:
Fink, 1999.
PETERS, T.R.. ―Der fremde Gott‖. In: Wort und Antwort, 42, 2001, p. 57-60.
Streitschrift "De servo arbitrio"‖. In: Welthandeln und Heilshandeln Gottes. Deus
STOLINA, Ralf. Niemand hat Gott je gesehen: Traktat über negative Theologie. Berlin: de
Gruyter, 2000.
Negation: der Parmenides-Kommentar des Proklos in Nikolaus von Kues' Schrift "Tu
327
328
Nikolaus von Kues und Meister Eckhart‖, p. 132-142: EULER, Walter A.. ―Cusanus'
THEUNISSEN, Michael. Negative Theologie der Zeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.
TURNER, D.. The Darkness of God: Negativity in Christian Mysticism. Cambridge, U.K:
WILLIAMS, M.A.. ―Negative theologies and demiurgical myths in late antiquity‖. In:
TURNER, J. D. u. MAJERCIK, R.. (hg. v.). Gnosticism and later platonism. Themes,
figures, and texts. (SBL symposium series 12) Atlanta: 2000, p. 277-302.
ZEDANIA, Giga. Nikolaus von Kues als Interpret der Schriften des Dionysius Pseudo-
ALMOND, Ian. ―Derrida and the Secret of the Non-Secret: On Respiritualising the Profane‖.
328
329
BALTHASAR, Hans Urs von. ―Kénose‖. In: Dictionnaire de spritualité et mystique. Paris:
Beauchesne, 1974.
Verlag, 1985.
____________. Fächer der Style. vol 2 Herrlichkeit. Einsiedeln: Johannes Verlag, 1962.
BRADLEY, A.. ―Without negative theology. Deconstruction and the politics of negative
BUDICK, S.. ISER, W. (eds.). Languages of the unsayable: the play of negativity in literary
BULHOF, Ilse N.. KATE, Laurens tem (ed.). Flight of the gods. Philosophical perspectives
CAPUTO, John D.. ―Mysticism and transgression: Derrida and Meister Eckhart‖. In: Derrida
CARLSON, Tomás A.. Indiscretion: finitude and the naming of God. Chicago, Ill.: University
CHRÉTIEN, Jean-Luis. ―La reserve de L‘être‖. In: Martin Heidegger. Paris: L‘Herne, 1985,
p. 233-60.
COWARD, H.. FOSHAY, T.. Derrida and negative theology. Albany: State University os
329
330
DERRIDA, Jacques. "Comment ne pas parler,". In: Psyché: Inventions de l'autre. Paris:
G..(Hrsg.). Religion als Gegenstand der Philosophie, Paderborn u.a., 1997, p. 103-121.
philosophische Theologie und die kunsttheoretischen Positionen des 19. und 20.
GUIBAL, F. ―L‘alterité de ―l‘autre-autrement sur les traces de Jacques Derrida‖. In: Alterités.
HOUTEPEN, A.W.J.. Gott - eine offene Frage. Gott denken in einer Zeit der
Jüngel, E.. Gott als Geheimnis der Welt. Tübigen: J.C.B. Mohr (P. Siebeck), 1997.
LAW, David R.. Kierkegaard as Negative Theologian. Oxford, U.K.: Clarendon, Press, 1994.
MASENYA, M.J.. ―Between unjust suffering and the "silent" God. Job and HIV/AIDS
MÜLLER, W.W.. ―Das Nichts als Ausgangspunkt der Rede von Gott in der Moderne‖. In:
NORDHOFEN, Eckhard. Der Fromme hat kein Bild. Ikonoklasmus und Negative Theologie.
Stuttgart, 1990.
the Meaning of the Past in Crisis Situations. Kampen, The Netherlands: Kok, 1995, p.
154-71.
330
331
of Virginia, 1992.
SELLS, Michael A.. Mystical Languages of Unsaying. Chicago: University of Chicago Press,
1994.
SNELLER, Rico. Het Woord is schrift geworden. Derrida en de negatieve theologie. Kampen:
Kok Agora, 1998. (trd. francês: La Parole faite écriture. Derrida et la théologie
négative).
1999.
WEINRICH, Harald. (ed.). Positionen der Negativität, vol 6, Poetik und Hermeneutik.
8.6 Mística
ALBERT, Karl. Einführung in die philosophische Mystik. Darmstadt: Wiss. Buchges., 1996.
ALTANER, Berthold. STUIBER, Alfred. Patrologia: vida, obras e doutrina dos padres da
BÖHME, Wolfgang (org.). Mystik ohne Gott?: Tendenzen des 20. Jahrhunderts. Karlsruhe:
Tron, 1982.
331
332
BREMOND, Henri. SOUZA, Robert de. La poésie pure. Un débat sur la poésie. Paris:
CERTEAU, Michel de. Le lieu de l'autre: histoire religieuse et mystique. Paris: Gallimard,
2005.
CHILDS, Donald J.. T. S. Eliot: mystic, son, and lover. London: Athlone Press, 1997.
CRUZ, San Juan de la. Obras de San Juan de la Cruz. Poblet: Buenos Aires, 1944.
ECKHART, <Meister>. Deutsche Predigten und Traktate. Josef Quint (trad. e org.).
ECKHART, Meister. Meister Eckharts mystische Schriften. Übertragen von Gustav Landauer.
ELLIOTT, Dyan. Proving woman: female spirituality and inquisitional culture in the later
FORMAN, Robert K.C.. The innate capacity: mysticism, psychology, and philosophy. New
HERZOG, Werner. Mystik und Lyrik bei Novalis. Jena: Vopelius, 1926.
HOLLYWOOD, Amy M. Sensible ecstasy: mysticism, sexual difference, and the demands of
HUXLEY, Aldous. The perennial Philosophy. London: Chatto & Windus, 1947.
JAURRETCHE, Colleen. The sensual philosophy: Joyce and the aesthetics of mysticism.
332
333
KAKAR, Sudhir. The analyst and the mystic: psychoanalytic reflections on religion and
KATZ, Steven T. (org.). Mysticism and philosophical analysis. New York: Oxford Univ.
Press, 1978.
KRISTEVA, Julia. «Savoir différer pour mieux désirer». In: Marie Solemne (dir.) Entre désir
LACAN, Jacques. Le Séminaire de Jacques Lacan, Livre XX: Encore. Paris: Seuil, 1975.
Macmillan, 2000.
LOSSO, Eduardo Guerreiro Brito. ―Máquina mística da ascese poética. Sonho, delírio e
MURRAY, Paul. T. S. Eliot and mysticism: the secret history of Four quartets. Basingstoke,
________. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1989.
ORIGEN. GREER, Rowan A.. Origen. New York: Paulist Press, 1979.
PARSONS, William Barclay. The enigma of the oceanic feeling: revisioning the
ROMMEL, Gabriele. Novalis, Geheimnisvolle Zeichen: Alchemie, Magie, Mystik und Natur
333
334
SCHOELLER REISCH, Donata. Enthöhter Gott - vertiefter Mensch: zur Bedeutung der
Demut ausgehend von Meister Eckhart und Jakob Böhme. Freiburg (Breisgau): Alber,
1999.
1994.
SILESIUS, Angelus. Angelus Silesius, Sämtliche poetische Werke in drei Bänden. hg. und
Fink, 2001.
TAUBES, Jacob (org.). Religionstheorie und politische Theologie 2; Gnosis und Politik.
Neumann, 2000.
http://www.theses.ulaval.ca/2004/22153/22153.html
334
335
UTEZA, Francis. JGR: metafisica do grande sertão. São Paulo: EDUSP, 1994.
WAGNER-EGELHAAF, Martina. Mystik der Moderne: die visionäre Ästhetik der deutschen
WALSH, D. (1994) ―The historical dialectic of spirit: Jacob Boehme‘s influence on Hegel‖.
In: PERKINS, Robert. History and system: Hegel's philosophy of history ; proceedings
of the 1982 sessions of the Hegel Society of America. Albany: State Univ. of New York
Pr., 1984.
WIEBKE, Amthor. (org.). Profane Mystik: Andacht und Ekstase in Literatur und Philosophie
WILLIAMS, Tomás A.. Mallarmé and the language of mysticism. Athens: Univ. of Georgia
Press, 1970.
WOLOSKY, Shira. Language mysticism: the negative way of language in Eliot, Beckett, and
ZAEHNER, Robert Charles. Mysticism, sacred and profane: an inquiry into some varieties of
8.7 Geral
OBS: As obras completas de grandes nomes, como de Nietzsche, Marx, Kant, Goethe e outros,
sendo alemães, cito o nome, Werke, eventualmente o nome do livro, o tomo e a página.
A obra de Hegel possui uma notação especial das diferentes partes das obras completas
335
336
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG,
2002.
ALBERT, Karl. JAIN, Elenor. Philosophie als Form des Lebens: zur ontologischen
AQUINO, Tomás, von. Summe der Theologie. Joseph Bernhart (org.). Stuttgart: Alfred
Kröner, 1954.
ARISTOTELES. Aristoteles: Erste Analytiken oder: Lehre vom Schluss. Übersetzt und
ASSMANN, Jan. Moses der Ägypter. Entzifferung einer Gedächtnisspur. München, Wien:
Hanser, 1998.
1979.
BEHLER, Ernst (org.). Die Aktualität der Frühromantik. Kolloquium ... vom 28. - 30. Aug.
BERRY, Philippa. WERNICK, Andrew. (ed.). Shadow of spirit: postmodernism and religion.
336
337
http://www.biblegateway.com/versions/index.php?action=getVersionInfo&vid=25&lan
g=8
Objetiva, 1996.
1990, p. 29-34.
BRECHT, Bertolt. ―Ascensão e queda da cidade de Mahagonny‖. In: Teatro completo, III.
_________. Gesammelte Werke in acht Bänden. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1967, p. 499-
524.
CAPUTO, John D. The prayers and tears of Jacques Derrida: religion without religion.
CARVALHO, Luiz Fernando Medeiros de. Cenas derridianas. Rio de Janeiro: Caetés, 2004.
Routledge, 2001.
COMTE, Auguste. Rede über den Geist des Positivismus. Hamburg: F. Meiner, 1956.
DAHMER, Helmut. Pseudonatur und Kritik. Freud, Marx und die Gegenwart. Frankfurt am
337
338
DERRIDA, Jacques. ―Fé e saber. As duas fontes da ―religião‖ nos limites da simples razão‖.
DINTER, P. E. ―Christ's body as male and female‖. Cross Currents, v. 44 (Fall 1994) pp.
390-9.
FOUCAULT, Michel. ―NIETZSCHE, FREUD, MARX‖. In: Dits et écrits: 1954 – 1988.
FREUD, Sigmund. Band IX. Fragen der Gesellschaft. Ursprünge der Religion. Frankfurt am
FRÓES, Leonardo. Vertigens: obra reunida (1968-1998). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
HA). Textkritisch durchgesehen und mit Anmerkungen versehen von Erich Trunz.
338
339
[Bd. 1-16]; Kunsttheoretische Schriften und Übersetzungen [Bd. 17-22]. Berlin: Aufbau,
1960.
GRÄB, Wilhelm. ―Kunst und Religion in der Moderne. Thesen zum Verhältnis von
Die Gegenwart der Kunst. Zum Verhältnis von ästhetischer und religiöser Erfahrung
______. ―Religion in der Alltagskultur‖ In: HELLER, Barbara (Hg.) Kulturtheologie heute?.
HARPHAM, Geoffrey Galt. The Ascetic Imperative in Culture and Criticism. Chicago:
HAYNES, Richard P. ―The Theory of Pleasure of the Old Stoa‖. The American Journal of
HEGEL, G.W.F.. Werke in zwanzig Bänden: auf der Grundlage der Werke von 1832-1845
neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel; Register
________. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie. In: Vorlesungen. Ausgewählte
________. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie.. In: Werke, von 1832-1835.
339
340
HÖHN, Hans-Joachim (org.). Krise der Immanenz. Religion an den Grenzen der Moderne.
HEIDEGGER, Martin. Vom Wesen der Wahrheit. Frankfurt am Main.: Klostermann, 1943.
HEYD, Michael. "Be sober and reasonable": the critique of enthusiasm in the seventeenth
Fischer, 1967.
340
341
______________. Gesammelte Schriften. Band 12. Nachgelassene Schriften 1931 - 1949 ; 1/5.
KANT, Immanuel. Die Rieligion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft. Vol 7. Werke
KUBO, Yoichi. Der Weg zur Metaphysik. Entstehung und Entwicklung der
KRISTEVA, Julia. Pouvoirs de l‟horreur. Essai sur l‟abjetion. Paris: Éditions du Seuil, 1980.
KUNNEMAN, Harry. DE VRIES, Hent. Die Aktualität der Dialektik der Aufklärung.
LABICA, Georges. (org.) 1883-1983. L‟Oeuvre de Marx, un siècle après. Paris, PIA, 1985, p.
202 e 206.
LOWY, Michael. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukacs e Benjamin. São Paulo:
MANN, Tomás. Doutor Fausto: a vida do compositor alemão Adrian Leverkühn narrada por
MARGOLIS, Joseph. ―The Threads of Literary Theory‖. Poetics Today, Vol. 7, No. 1. (1986),
pp. 95-110.
Schöningh, 1987.
New german critique, No. 33, Modernity and Postmodernity. (Autumn, 1984), pp. 219-
247.
341
342
ORTH, Ernst Wolfgang. "Zu Husserls Wahrnehmungsbegriff". Hursserl Studies 11, 1994-95,
pp.153-168.
OTTO, Rudolf. Das Heilige: über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein
PANOFKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes: 1994.
PRIES, Christine. Übergänge ohne Brücken. Kants Erhabenes zwischen Kritik und
PRIES, Christine. BARTELS, Klaus (org.). Das Erhabene: zwischen Grenzerfahrung und
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Karl Marx, Friedrich Engels: Werke (MEW). Vom Institut
Religion und negative Metaphysik‖. In: KNAPP, M. KOBUSCH, Th. (Hg.). Religion -
RIOS, André Rangel. Mediocridade e ironia: ensaios. Rio de Janeiro: Caetés, 2001.
SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph. Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling: Werke.
Auswahl in drei Bänden. Herausgegeben und eingeleitet von Otto Weiß, Leipzig: Fritz
Eckardt, 1907.
342
343
2003.
(org.) 6., erneut durchgesehene Auflage, Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1985.
WELSCH, Wolfgang (org.). Ästhetik im Widerstreit Interventionen zum Werk von Jean-
343