Leandro Rei Da Heliria Texto
Leandro Rei Da Heliria Texto
Leandro Rei Da Heliria Texto
Esta adaptação de uma história da tradição popular foi escrita propositadamente para o
Teatro Experimental de Cascais que a levou à cena neste princípio de 1991. Por isso aí fica
o nome de todos os que nesse trabalho participaram — e aos quais esta peça é dedicada.
Personagens e intérpretes
Personagens
Rei Leandro
Bobo
Hortênsia
Amarílis
Violeta
Felizardo
Reginaldo
Simplício
Pastor
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Alice Vieira
1.º ACTO
CENA I
(No jardim do palácio real de Helíria. Rei Leandro passeia com o bobo)
BOBO: Não é o que ele diz por aí, mas enfim... Então, se ainda por cima não deves
nada a ninguém, por que estás assim tão maldisposto? Terá sido coisa que comeste e te fez
mal? Aqui há dias comi um besugo estragado, deu-me volta às tripas, e olha...
REI (interrompendo-o): Cala-te que já não te posso ouvir! (Suspira) Ah, aquele sonho!
Coisa estranha aquele sonho...
BOBO: Ora, meu senhor! E o que é um sonho? Sonhaste, está sonhado. Não adianta
ficar a remoer.
REI: Abre bem esses ouvidos para aquilo que te vou dizer!
BOBO (com as mãos nas orelhas): Mais abertos não consigo!
REI: Os sonhos são recados dos deuses.
BOBO: E para que precisam os deuses de mandar recados? Estão lá tão longe...
REI: Por isso mesmo. Porque estão longe. Tão longe, que às vezes nos esquecemos
que eles existem. É então que nos mandam recados. Mas os recados são difíceis de
entender. Acordamos, queremos recordar tudo, e muitas vezes não conseguimos.
BOBO (aparte): É o que faz ser deus... Eu cá, quando quero mandar recado, é uma
limpeza: «ó Brites, guarda-me aí o melhor naco de toucinho para a ceia!» (Ri) Não preciso
de mandar os meus recados pelos sonhos de ninguém!
REI: Que estás tu para aí a resmonear?
BOBO: Nada, senhor! Reflectia apenas nas tuas palavras.
REI: E bom é que nelas reflictas. Apesar de bobo, quem sabe se um dia não irão os
deuses lembrar-se de mandar algum recado pelos teus sonhos... (Pára, de repente. Fica por
momentos a olhar para o bobo, e depois pergunta, com ar muito intrigado) Ouve lá, tu
também sonhas?
(Aqui a cena fica suspensa, e a luz centra-se apenas no bobo, que fala para os
espectadores na plateia)
BOBO: Será que eu sonho? Será que eu choro? Será que é sangue igual ao deles o
que me escorre das costas quando apanho chibatadas por alguma inconveniência que
disse? Que sabem eles de mim? Nem sequer o meu nome eles conhecem. Pensam que já
nasci assim, coberto de farrapos, e que «bobo» foi o nome que me deu minha mãe. (Pausa)
Se é que eles sabem que eu tenho mãe, e pai, e que nasci igualzinho ao rei, ao conselheiro,
a todos os nobres deste e doutros reinos. E quando um dia morrermos e formos para
debaixo da terra, tão morto estarei eu como qualquer deles.
BOBO (rindo): Não, meu senhor! Só os grandes fidalgos é que sonham! Nós somos
uns pobres servos... Sonhar seria um luxo, um desperdício! De resto, que podiam os deuses
querer deste pobre louco? Que recados teriam para lhe mandar?
REI: És capaz de ter razão... (Suspira) Nem sabes a sorte que tens!
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BOBO (irónico): Sei sim, meu senhor! Sou uma pessoa cheia de sorte! Todas as
manhãs, quando o frio me desperta e sinto o corpo quebrado de dormir na palha estendida
no chão, então é que eu percebo como sou feliz...
REI: Zombas de mim?
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BOBO: Zombar, eu, senhor? Zombar de quê, se as tuas palavras são o eco das
minhas?
REI: Pareceu-me...
BOBO: Deve ter sido de teres acordado maldisposto por causa desse tal sonho.
REI: Ah, meu bobo fiel, como eu às vezes gostava de estar no teu lugar, sem
preocupações, sem responsabilidades...
BOBO: É para já, senhor! Toma os meus farrapos e os meus guizos, e dá-me o teu
manto, a tua coroa, o teu ceptro...
REI (agitado): Cala-te!... Era isso mesmo que se passava no sonho... A coroa... o
manto... o ceptro... tudo no chão... eu a correr, mas sem poder sair do mesmo sítio... e a
coroa sempre mais longe, mais longe... e o manto... e o ceptro... e as gargalhadas...
BOBO: Gargalhadas? Não me digas que eu também entrava no teu sonho?
REI (como se não o tivesse ouvido):... as gargalhadas delas... e como elas se riam...
riam-se de mim... e a coroa tão longe... e o manto tão longe... e o frio... tanto frio que eu
tinha!...
BOBO: Perdoa-me, senhor, mas isso são tolices, dizes coisas sem nexo... Foi alguma
coisa que comeste ontem, tenho a certeza.
REI: Não são coisas sem nexo: são recados. Recados dos deuses. (Aproxima-se do
bobo e diz-lhe ao ouvido) Tenho medo!
BOBO: Shiuu! NUNCA DIGAS ISSO! Já viste o que podia acontecer se os deuses te
ouvissem? Se descobrissem que os reis também têm medo? Se descobrissem que os reis
podem mesmo ficar a-pa-vo-ra-dos?
REI (afasta o bobo e retoma a sua dignidade real): Tens razão! Quem foi que aqui
falou em medo? Eu sou o rei Leandro, senhor do reino de Helíria! Tenho um exército de
homens armados para me defenderem. Tenho um conselheiro que sabe sempre o que há-
de ser feito. Tenho espiões bem pagos, distribuídos por todos os reinos vizinhos, que me
informam do que pensam e fazem os meus inimigos...
BOBO: Tens inimigos, senhor?
REI: Claro que tenho inimigos. Para que serve um rei que não tem inimigos?
BOBO: Realmente não devia ter graça nenhuma. Eu cá, de cada vez que me armam
uma cilada e acabo espancado no pelourinho, também digo sempre: «Ainda bem que tenho
inimigos, ainda bem que tenho inimigos»... Se ninguém me batesse, se ninguém me
cobrisse o corpo de pontapés, acho mesmo que era capaz de morrer de pasmo...
REI: Zombas de mim?
BOBO: Que ideia, senhor! Como posso zombar de ti, se penso como tu pensas?
REI: Parecia...
BOBO: É o que eu digo: efeitos desse maldito sonho. Por que não o esqueces de vez?
REI: Tens razão. Farei por esquecê-lo. Não tenho motivos nenhuns para estar
inquieto. Ainda por cima... (com um sorriso enlevado) ainda por cima com estas flores que
são a luz dos meus olhos! (Aponta para Hortênsia e Amarílis, que entram nesse momento,
com as suas aias)
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Leandro, Rei da Helíria
Cena II
inventasse cantoria afinada a teu respeito, coisa caprichada, que a fizesse rir à gargalhada...
HORTÊNSIA: Não faltava mais nada senão ser motivo de chacota para a minha irmã!
E afinal que foi que tu cantaste, velho doido?
BOBO: Nada, senhora, que eu gosto muito da minha pele e não me estava a apetecer
ser logo chicoteado pela manhã, se por acaso tu me ouvisses.
REI: Não és tão doido como pareces...
BOBO: Mas ela é que não se calava... e lá ia mandando o mote...
AMARÍLIS: Não lhe dês ouvidos!
BOBO (imitando-a): «Tu que tão bem sabes cantar», dizia ela, «bem podias versejar
agora para me pores bem-disposta», dizia ela, «bastaria olhares para Hortênsia, para o seu
ar de galinha emproada», dizia ela...
HORTÊNSIA (esbraceja, agarrada por duas aias): Maldita!
BOBO: ...«para a sua voz de gata em noite de lua cheia», dizia ela, «para o seu andar
que mais parece a jumenta do moleiro quando sobe a encosta carregada de sacos de
farinha», dizia ela...
HORTÊNSIA: «A jumenta do moleiro»... Eu mato-a! Eu mato-a!
AMARÍLIS (agarrada por duas aias): Eu dou cabo de ti, miserável linguarudo!
BOBO:... «para os sorrisinhos de sonsa que ela manda para cima de toda a gente»,
dizia ela...
(As duas irmãs conseguem soltar-se dos braços das aias e andam à bulha uma com a
outra, insultando-se mutuamente, enquanto o rei tenta apartá-las)
REI: Então, minhas flores, que triste espectáculo estais a dar! Imaginai que vossos
noivos entravam agora aqui e vos viam. Que iriam eles dizer?
AMARÍLIS: Iriam decerto ordenar que este maldito bobo fosse metido a ferros na mais
escura masmorra deste castelo!
HORTÊNSIA: Iriam decerto exigir explicações de Amarílis!
AMARÍLIS: Ora, minha irmã! Tem juízo! Estás a dar ouvidos a balelas de um louco que
só mesmo a grande bondade de nosso pai mantém nesta casa... Quando me casar, bobo
assim não entra no meu palácio! Antes morrer de tédio a vida inteira!
REI: Ora vá, fazei as pazes, que eu não gosto de ver as minhas flores assim tão
alteradas.
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Leandro, Rei da Helíria
Cena III
VIOLETA: Estava eu a tocar o meu alaúde quando, de repente, o barulho foi tanto, que
parecia que tinha rebentado uma tempestade!
HORTÊNSIA: Vai, vai tocar o teu alaúde, que a conversa não é contigo...
AMARÍLIS: Foi apenas uma breve troca de palavras em tom mais elevado. Não te
importes, são coisas de gente crescida...
VIOLETA: Que mania a vossa de ainda me considerarem uma criança! (Virando-se
para o pai) Pois não é verdade, meu pai, que o Príncipe Reginaldo chegou ao nosso reino
há uma semana para pedir a minha mão?
REI (aborrecido): Falemos de outros assuntos...
VIOLETA: É ou não é verdade?
REI: É... é verdade... mas não quero pensar nisso... estou mais preocupado com
outras coisas...
BOBO (aparte): Mil ratazanas me mordam se não é ainda a porcaria do sonho a
atazanar-lhe o juízo!
VIOLETA: Ouvistes, minhas irmãs? O Príncipe Reginaldo está neste reino, e quer
casar comigo!
HORTÊNSIA e AMARÍLIS (em coro): O Príncipe Reginaldo?! Esse pelintra?
REI: Meninas! Então! Tende tento na língua, minhas flores!
BOBO (aparte): E depois eu é que digo inconveniências...
REI: Dizias alguma coisa, bobo?
BOBO: Dizia que o Príncipe Reginaldo é um belo moço, não desfazendo...
HORTÊNSIA e AMARÍLIS: Belo moço? Deixa-me rir! (Cantam)
HORTÊNSIA: Tem olhos tortos
AMARÍLIS: e ratos mortos
nas algibeiras!
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traz cobertor
meias de lã
AMARÍLIS: E se faz frio
nada no rio
pela manhã
HORTÊNSIA: Ri se está triste!
AMARÍLIS: Chora de um chiste!
HORTÊNSIA: É fraca rês...
AIAS (em coro): Dizem que é louco!
HORTÊNSIA e AMARÍLIS (ao ouvido de Violeta): Vai fazer pouco de nós as três!
VIOLETA: Não vos apoquenteis, irmãs! Se for tudo isso que dizeis, eu saberei como
viver com ele. É comigo que ele quer casar, e não com qualquer de vós. O problema é meu.
HORTÊNSIA: E irás deixar sozinho o nosso pai?
AMARÍLIS: Olha que ele já não é criança! Vê como está alquebrado, como as suas
forças lhe vão faltando, como se arrasta com dificuldade...
BOBO: Mau... Há bocado era um jovem na flor da idade, agora já se arrasta com
dificuldade... Muito depressa envelhecem os reis, palavra de honra...
REI: Que murmurais vós a meu respeito?
VIOLETA: Senhor, minhas irmãs parecem muito preocupadas com o meu
casamento...
REI: Não quero ouvir falar de casamentos. E era de mim que faláveis, que eu bem vos
ouvi!
HORTÊNSIA: Senhor, se era de vós que falávamos, decerto seria para gabarmos o
vosso andar escorreito, as vossas palavras sempre justas e acertadas...
BOBO (aparte): Fora as que eu lhe oiço quando está sozinho...
AMARÍLIS: Senhor, se era de vós que falávamos, decerto seria para louvar a vossa
bondade e o vosso desprendimento pelos bens materiais. Nunca me lembro de vos ver
agarrado aos cofres de ouro do reino, e sempre que a minha vaidade de mulher desejou
mais um vestido, um toucado, ou uma fita para os cabelos, sempre os meus desejos foram
realizados. Pai mais bondoso que vós não existe decerto neste mundo!
REI (sorrindo): Razão tive em escolher para vós nomes de flores: sois as flores da
minha vida, e melhores filhas não devem ter existido à face da terra!
BOBO: Então e a mim, ninguém me elogia?
têm jardim... Mas ao menos podiam dizer que eu era um bobo jeitosinho, bem-apessoado,
capaz de levar uma moça ao altar, o melhor bobo que vocês alguma vez conheceram. A
propósito, como vamos de bobos neste reino? Se aquilo ali der para o torto, acham que me
safo por cá? Que tais as condições de trabalho? Temos caixa, reforma, passe social,
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Alice Vieira
Cena IV
(Tocam as trombetas)
PRÍNCIPE FELIZARDO: Ora cá estamos, neste fim do mundo! (Olha em volta) Apesar
de tudo, não é feio, não senhor, não se está aqui mal. (Vira-se para o Rei) E agora, toca a
marcar o casório, que eu não sou homem de esperas.
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO: Tiraste-me as palavras da boca!
REI: Calma, senhores, haveis chegado neste momento! Ainda nem vos dei as boas-
vindas e já me estais a falar de negócios!
PRÍNCIPE FELIZARDO: Boas-vindas eu dispenso, meu caro sogro.
AMARÍLIS (para Hortênsia): Ouviste? Já lhe chamou sogro!
HORTÊNSIA (enfastiada): Que querias que lhe chamasse? Mamã?
AMARÍLIS: Estúpida...
PRÍNCIPE FELIZARDO (continuando): ... passo bem sem vénias, mesuras e essa
traulitada toda...
HORTÊNSIA (baixinho): Que modos, meu Deus...
PRÍNCIPE FELIZARDO (continuando): ... e parece--me que fiz tudo o que era preciso.
Ora deixa cá ver, Felizardo, deixa cá ver... (Começa a pensar, mas não consegue)... A
memória está fraca, deve ter sido da viagem... Com licença (Tira um longo rolo de papel da
algibeira e começa a ler) Ora então aí vai: «dragões mortos em acção: 32; dragões mortos
enquanto dormiam: 365; bruxas atiradas para o caldeirão: 28; bruxas convertidas em fadas
madrinhas: 2» (nisto não sou lá muito bom, tenho de confessar...); «príncipes
desencantados, 3» (a maior parte deles não quis, disseram que estavam muito bem assim,
que ao menos enquanto estavam encantados não tinham de andar por aí a beijar princesas
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adormecidas e traulitadas dessas, ah! ah!); «castelos limpos de vampiros e teias de aranha:
698». Isto é que ia sendo o nosso fim... Limpar aquela porcaria toda pôs-me derreadinho
que nem posso comigo!
Leandro, Rei da Helíria
Cena V
(No jardim do palácio Violeta está sozinha, passeia, colhe flores. Canta)
VIOLETA: Ora... Meu pai julga que eu ainda sou a menina pequena que ele um dia
embalou no berço... Neste momento pensa apenas no casamento de minhas irmãs, e nem
sequer se lembra que vós estais há tanto tempo à espera de uma palavra sua. Tenho muito
amor a meu pai, Príncipe Reginaldo, e não quero causar-lhe desgosto algum. Só por isso
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não insisti hoje com ele para que, ao menos, vos recebesse. Sinto que alguma coisa o
perturba neste momento. Por isso não quero perturbá-lo ainda mais. Teremos de ter
paciência, e de esperar mais uns dias.
PRÍNCIPE REGINALDO: Seria capaz de esperar por vós a vida inteira, se necessário
fosse!
VIOLETA (sorrindo): A vida inteira é muito tempo, Príncipe Reginaldo! Que graça tinha
casar velha, cheia de rugas, desdentada...
PRÍNCIPE REGINALDO (interrompendo-a): Nunca sereis velha, Princesa Violeta!
Tendes um coração de oiro, e quem tem um coração de oiro nunca envelhece, mesmo que
viva até aos 100 anos.
VIOLETA (rindo): Pode ser... Mas não gostava muito de me casar aos 100 anos!
PRÍNCIPE REGINALDO: Às vezes tenho medo que vosso pai pense que não sou
digno de receber o seu tesouro mais valioso. Que ele não ache o meu palácio
suficientemente majestoso para se tornar na vossa morada; que ele pense que o meu reino
não tem riqueza que baste ao vosso olhar... (Suspira) Vossas irmãs sei eu que não morrem
de amores por mim...
VIOLETA: Não faleis de minhas irmãs, que o meu coração não me diz nada de bom...
PRÍNCIPE REGINALDO: Como? Será verdade, Princesa Violeta, que acreditais em
presságios e agoiros?
VIOLETA (séria): Não foi presságio nem agoiro. Foi um sonho. Um sonho que tive esta
noite.
PRÍNCIPE REGINALDO: É a mesma coisa. Só uma criança acredita em sonhos.
VIOLETA (sorrindo): Então tem o meu pai razão... Se calhar não passo mesmo de
uma criança...
PRÍNCIPE REGINALDO: Mas dizei que estranho sonho foi esse que tanto vos
perturbou?
VIOLETA: Fareis troça...
PRÍNCIPE REGINALDO: Prometo que não.
VIOLETA: Não sei bem explicar, era tudo muito confuso, havia muito barulho...
PRÍNCIPE REGINALDO: Natural... São os preparativos da festa... Até eu os consigo
ouvir daqui...
VIOLETA: Eu não disse que iríeis zombar de mim?
PRÍNCIPE REGINALDO: Desculpai, senhora, juro que não torno! Mas a vossa
presença junto de mim faz-me tão feliz, que tenho grande dificuldade em acreditar em
sonhos de desgraça.
VIOLETA: Era um barulho de armas, de espadas contra espadas, de gritos, e a voz do
meu pai chamando por nós, e Hortênsia e Amarílis riam, riam muito alto, e os risos delas
confundiam-se com os gritos de meu pai e com o barulho das lanças e das espadas...
PRÍNCIPE REGINALDO: E vós? Que fazíeis vós no meio de tudo?
VIOLETA: Isso era ainda o mais estranho... Eu estendia a mão a meu pai e ele não me
via. Parecia que subitamente tinha ficado cego, que todas as maldições do mundo tinham
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caído sobre os seus ombros. Eu chamava-o e ele não me ouvia, era como se eu não
existisse, e eu via-o caminhar à toa, mesmo à beira de um precipício, e estendia-lhe a minha
mão, bastava ele segurar-se à minha mão para nada lhe acontecer, mas ele nem a minha
Alice Vieira
mão via, e por fim acabou por desaparecer.... (Pausa) Acordei a gritar, encharcada em suor.
Minha ama quis chamar o físico da corte mas eu não deixei. Ia rir-se de mim, pela certa...
Como vós...
PRÍNCIPE REGINALDO: Não me rio. Prometi, está prometido! Mas não vamos levar a
sério esses sonhos...
VIOLETA: São presságio de desgraça!
PRÍNCIPE REGINALDO: São apenas a consequência de alguma história que vossa
ama vos contou...
VIOLETA: Ao tempo que a minha ama não me conta histórias!
PRÍNCIPE REGINALDO: Seja o que for, não vamos deixar que um sonho sem
importância venha perturbar estes momentos em que estamos juntos!
VIOLETA: Claro, tendes razão, como eu sou tonta!
(Abraçam-se)
PRÍNCIPE REGINALDO: Vamos então esperar que vosso pai fique de melhor
disposição, e depois voltaremos a falar com ele sobre o nosso casamento.
VIOLETA: Deixemos passar os festejos do casamento de minhas irmãs.
PRÍNCIPE REGINALDO: De acordo. Quando tudo estiver mais calmo, ele entenderá
melhor as minhas palavras.
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CENA VI
Criados e Criados
(Preparativos para a festa, os criados passam com grandes travessas, cestos, barris,
etc. ... Cantam)
gritamos,
cortamos a mão,
suamos,
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sonhamos,
pedimos perdão
vivemos,
morremos,
por meio tostão
(Saem)
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Leandro, Rei da Helíria
Cena VII
(Os Príncipes Felizardo e Simplício entram de braço dado. Atrás deles vem o Príncipe
Reginaldo)
PRÍNCIPE FELIZARDO: A minha Amarílis vai ser a rainha mais rica destes reinos
vizinhos, olá se vai! Posso não parecer, mas aqui onde me vedes, não sou propriamente um
pelintra, ah! ah! ah! A minha fortuna é calculada em... (Pensa, pensa) ... ora deixa cá ver
Felizardo, deixa cá ver... (Desiste) A minha memória está fraca, deve ter sido da viagem...
Com licença... (Mete a mão ao bolso e tira um longo rolo de papel que lê)... Ora bem, então
lá vai: «256 bois, 256 vacas...», lá no meu reino cada boi tem sempre a sua vaca, que é
para não haver problemas... (Volta à leitura) «... 8965 galinhas poedeiras...» e se elas põem
ovos, caramba!... (Volta à leitura) «... 672 cavalos, mais 8967 bestas de carga». Para além
disso as minhas terras dão, por ano, «1345 alqueires de trigo, outros tantos de cevada, e
mais 4876 alqueires de aveia...» (Pára, satisfeito)... É obra, hã?... (Virando-se para
Simplício) E tu? Que tens para oferecer à tua Hortênsia?
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO: Tiraste-me as palavras da boca!
PRÍNCIPE REGINALDO: Grandes riquezas tendes para oferecer a vossas noivas,
estou certo disso, mas não falastes na maior de todas, e dessa sou eu o mais rico de todos!
PRÍNCIPE FELIZARDO: Quem sois vós, e como aparecestes assim de repente?
PRÍNCIPE REGINALDO: Sou Reginaldo, pretendente à mão da Princesa Violeta.
PRÍNCIPE FELIZARDO: Violeta? Aquela lingrinhas?
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO: Tiraste-me as palavras da boca!
PRÍNCIPE REGINALDO: De muitas riquezas ouvi falar, senhores, mas nenhum de vós
falou em amor!
PRÍNCIPE FELIZARDO: Amor? Mas o que é que tem o amor a ver com isto?
PRÍNCIPE REGINALDO: Um casamento só se faz quando há amor, muito amor!
PRÍNCIPE FELIZARDO: Um casamento só se faz quando há (tirando o rolo do bolso)
«256 bois, 256 vacas...»
PRÍNCIPE REGINALDO (interrompendo): Já sei, já sei, ouvi há pouco a lengalenga
toda. Pois sabei: a minha Violeta terá o meu coração inteiro, e isso é riqueza bem maior do
que os vossos bens todos juntos!
PRÍNCIPE FELIZARDO: Maior do que... (Volta a tirar o rolo) «... 256 bois, 256 vacas,
8000...»
PRÍNCIPE REGINALDO (interrompendo): Muito maior!
PRÍNCIPE FELIZARDO: E o que é que a gente faz com um coração?
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO: Tiraste-me as palavras da boca!
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Cena VIII
Os mesmos mais Hortênsia e Amarílis
HORTÊNSIA: Bonito! Nós duas à vossa espera no salão e vós aqui na conversa...
PRÍNCIPE FELIZARDO: Estávamos a tirar teimas para ver qual de vós ia ser a mais
rica...
PRÍNCIPE REGINALDO: Tirai-me do grupo. A mim só me interessa saber que, a meu
lado, Violeta vai ser a princesa mais amada e a mais feliz que o sol contempla.
PRÍNCIPE FELIZARDO (para Amarílis): Não ligueis ao que ele diz... Isto passa-lhe
com a idade. Ou então com uma colherzita de bicarbonato de sódio...
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO: Tiraste-me as palavras da boca!
HORTÊNSIA (para Simplício): O vosso vocabulário, meu amado noivo, é um pouco
reduzido, convenhamos, mas como é farta a vossa bolsa, e largos os horizontes do vosso
reino (ri), quem é que precisa de grandes discursos?
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO: Tiraste-me as palavras da boca!
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Alice Vieira
Cena IX
Os mesmos mais Violeta
VIOLETA: Nosso pai chama-nos, vinde já! (Olha para Reginaldo) Não vos sabia em
tão boa companhia...
PRÍNCIPE FELIZARDO: Pois é, encontrámo-nos todos no jardim a apanhar fresco,
que está cá uma caloraça que só visto...
HORTÊNSIA (para Amarílis): O meu noivo pode ser de poucas falas, mas o teu
exprime-se de maneira tão deselegante...
AMARÍLIS (sorrindo): Mas foi de uma elegância sem limites quando há pouco abriu um
cofre e de lá tirou este anel e este colar de oiro maciço que me deu... Diante disto, quem é
que pensa em deselegâncias de discurso? De resto, minha querida irmã, eu acho que os
maridos se fizeram para terem sempre as bolsas abertas e as bocas fechadas...
HORTÊNSIA (rindo): Como diria o meu amado noivo, «tiraste-me as palavras da
boca!».
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Leandro, Rei da Helíria
Cena X
(Sala do banquete. Todos sentados à mesa. No lugar de honra da mesa, o rei, que se
levanta para fazer um discurso)
(Nesta altura Violeta levanta-se da mesa, e fica de pé, muito séria, a olhar para o rei
durante todo o seu discurso)
REI:...vi o meu manto levado pelo vento, a minha coroa arrastada pela fúria das
águas...
PRÍNCIPE FELIZARDO: Que vendaval, caramba!
REI:... o meu ceptro arrancado por forças invisíveis...
PRÍNCIPE FELIZARDO: Fantasmas é que não! Com isso é que eu não brinco!
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO: Tiraste-me as palavras da boca!
REI:...durante o dia de hoje não consegui pensar noutra coisa... Eu sabia que este
sonho queria dizer-me qualquer coisa. Os sonhos são recados que os deuses nos mandam,
e os deuses estavam decerto a querer dizer-me alguma coisa muito importante.
PRÍNCIPE FELIZARDO: Esta agora! E eu a pensar que a gente tinha sonhos destes
quando comia de mais ao jantar, e se esquecia de tomar bicarbonato de sódio...
REI:... Foi então que percebi. Foi então que tudo se fez claro no meu espírito: os
deuses querem que eu deixe de reinar.
VIOLETA (dá um grito e cai de joelhos diante do pai): Não pode ser... esse sonho,
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REI: Não é história inventada, meu pobre tonto... É um aviso dos deuses, e os deuses
devem...
BOBO:... estar loucos!
REI: Cala-te, que não se pode ofender os deuses! Os deuses devem saber melhor do
que nós o que tem de ser feito.
HORTÊNSIA: Mas afinal que querem os deuses que façais, meu pai?
REI: Que entregue as rédeas do meu reino a quem melhor do que eu o puder agora
governar. Os deuses devem pensar que estou velho de mais. E têm razão... Há manhãs em
que já me custa levantar cedo — e um rei tem de estar a velar pelos seus súbditos desde o
nascer ao pôr-do-sol...
PRÍNCIPE FELIZARDO: Ena, que exagero!...
REI: Há momentos do dia em que me apetece deixar tudo, manto, coroa, ceptro,
conselheiro, e ir por aí como qualquer vulgar habitante do meu reino, e sentir o sabor a sal
da espuma das ondas, e o cheiro a maçãs e a folhas secas que traz o Outono, e pisar a
areia da praia, e adormecer ao sol como os lagartos... Sim, os deuses devem ter razão. Já
trabalhei tempo suficiente. Durante anos e anos lutei por este reino, aumentei-lhe a riqueza,
alarguei-lhe as fronteiras, sempre a pensar no futuro das minhas filhas. Por elas trabalhei
estes anos todos. Por elas suportei noites de insónias a resolver problemas. Elas foram
sempre a minha única razão de viver. Por isso acho que mereço descansar, e gozar em paz
os anos de vida que me restam.
AMARÍLIS: E que todos esperamos que ainda sejam muitos!
PRÍNCIPE FELIZARDO: Muitos e bons, e a gente a ver! Cá vai à vossa! (Bebe)
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO (fazendo o mesmo): Tiraste--me as palavras da boca!
REI: Foi então que, depois de pensar muito e de me aconselhar com quem mais sabe
(o conselheiro sorri e baixa a cabeça a fingir de envergonhado), decidi tomar uma decisão
histórica...
BOBO (aparte): Aconselhou-se com aquele cretino, vai sair asneira pela certa...
REI: Tivesse eu filho varão, e não haveria problema; segundo as nossas leis, dele
seria este reino, e do filho que ele um dia tivesse. Mas os deuses, em vez de um filho varão
deram-me três filhas (pausa), três filhas que são o meu maior tesouro, e a quem quero com
todas as forças do meu coração. Escolher uma delas para me suceder na chefia do reino é
coisa que não consigo fazer. Todas têm sido para mim filhas dedicadas e extremosas...
PRÍNCIPE FELIZARDO (para Simplício): Filhas quê?
REI:...todas têm mostrado serem dignas do meu amor, todas seriam dignas de me
suceder.
PRÍNCIPE FELIZARDO (dando uma cotovelada a Simplício): Ó sócio, não me digas
que ainda vamos ser reis disto?!
REI:...Decidi então, depois de ouvir o meu conselheiro...
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BOBO (aparte): Mas por que não me ouviu ele antes a mim?!
REI:...que o amor tem de ser recompensado: darei o meu reino à filha que demonstrar
ter maior amor por mim.
HORTÊNSIA e AMARÍLIS (levantam-se ao mesmo tempo e dizem em coro): Sou eu
Leandro, Rei da Helíria
quem mais vos ama, senhor! (Olham uma para a outra, e voltam a sentar-se)
REI: Com calma, vamos com calma e sem precipitações!
PRÍNCIPE FELIZARDO: A isto chamo eu organização, sim senhor!
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO: Tiraste-me as palavras da boca!
REI: Vinde até aqui, Amarílis, minha filha primogénita...
PRÍNCIPE FELIZARDO (para Simplício): Primo... quê?
(Simplício diz que não com a cabeça, o outro fica mais sossegado)
REI: Vinde até aqui, Hortênsia, minha filha do meio, e dizei-me de vosso amor.
HORTÊNSIA: Senhor, as palavras são poucas para vos falar de tão grande amor.
Seria necessário inventar palavras novas para com rigor eu poder definir o que o meu
coração sente por vós. Pedi-me que morra por vós, e eu alegremente o farei, pedi-me que
vos dê meus olhos, meus braços, fígado ou coração, e tudo vos darei. O meu amor por vós
não tem fim, é maior que a imensidão das águas e dos céus. Quero-vos mais do que a mim
própria, muito mais do que ao ar que respiro, mais do que ao sangue que corre nas minhas
veias.
PRÍNCIPE FELIZARDO (para Simplício): Não será exagero?
REI: Vinde até aqui, Violeta, minha filha mais nova, e dizei-me de vosso amor por mim!
VIOLETA: Meu senhor, não sei falar como minhas irmãs. Sei apenas que sou vossa
filha, e que todas as filhas devem amar seus pais. Sei como é difícil para mim pensar no dia
em que irei viver longe de vós. Quando eu era muito pequenina e tinha pesadelos, vós
estáveis sempre à beira do meu leito. Pelo Inverno, quando o vento soprava e as febres
atacavam o meu corpo frágil, éreis vós, senhor, que eu via a meu lado até conseguir
acalmar. De tudo me lembro, e tudo o meu coração guarda com a gratidão que todas as
filhas devem sentir pelos pais. Mais não consigo dizer.
REI: Mas Amarilis disse que me quer mais do que ao Sol, Hortênsia disse que me quer
mais do que ao ar... e vós? Qual é a medida do vosso amor por mim?
VIOLETA: Não sei, senhor. O que não tem fim não se pode medir. É difícil encontrar
medida para o amor.
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(Vozes de espanto)
Cena XI
(Príncipe Simplício abre os olhos muito espantado, e faz sinal de que não foi ele que
falou, ele nem sequer abriu a boca)
REI: Pois então levai-a! E bom proveito vos faça a comida! Estais bem um para o
outro! Fora da minha vista e do meu reino! Fora! Fora, filha maldita!
REI: E agora vós, minhas filhas, minhas duas únicas filhas, minhas flores deste jardim,
vós que tanto amor me tendes, vós que tudo seríeis capazes de sacrificar por mim, vinde cá!
REI: Ouvi bem o que decidi. A partir deste momento, o reino de Helíria é vosso.
HORTÊNSIA E AMARÍLIS: Nosso?!
REI: Vós, Amarílis, governareis o Norte, com a riqueza dos seus pomares, das suas
vinhas, das suas searas, das suas pastagens, do peixe dos seus lagos e mares; e vós,
Hortênsia, governareis o Sul, com o ferro, o cobre, o estanho das suas minas, e a água
milagrosa das suas nascentes. A partir deste momento, passo todo o meu poder para os
vossos ombros: sereis senhoras absolutas dos domínios que vos entrego. Nada mais quero
do que ver-vos felizes, reinando, ao lado dos nobres maridos que haveis escolhido.
HORTÊNSIA: Mas, senhor, e vós como ireis viver? De que modo encontrareis vosso
sustento?
BOBO (aparte): Eu bem disse que isto ia acabar mal...
REI: Fácil, minha querida filha, muito fácil. Poucas são as necessidades de um velho.
Viverei seis meses do ano no vosso reino, os outros seis no reino de vossa irmã. Assim não
estarei muito tempo longe de vós, a quem tanto amo. Em troca do reino que vos dá e do
poder que vos entrega, este vosso velho pai quer apenas uma cama para dormir no vosso
palácio, e um lugar para comer à vossa mesa.
AMARÍLIS: E o vosso séquito?
REI: Dispenso o meu séquito. Não preciso dele. Para me acompanhar quero apenas o
meu fiel bobo, e mais ninguém.
PRÍNCIPE FELIZARDO (para Simplício): Não me parece mau negócio, ó sócio!
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO: Tiraste-me as palavras da boca!
BOBO: Isto continua a não me cheirar bem... Se era este o recado dos deuses...
AMARÍLIS (curvando-se diante do rei): Faça-se a vossa vontade, senhor!
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(Vão saindo todos, menos Hortênsia e Amarílis. Quando Amarílis vai a sair Hortênsia
chama-a)
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Alice Vieira
2° ACTO
Cena I
Leandro, Bobo
(Muitos anos depois o rei Leandro e o Bobo caminham pela estrada. Vestem farrapos
e vão cansados da longa jornada)
fundo, gritando, dando ordens, senhor do mundo! Nessa altura — há tantos anos que isso
foi! —, nessa altura aquele homem era rei. Escorraçado pelas filhas, mendiga agora um
bocado de pão, pede por amor de Deus um telhado para se abrigar das chuvas e dos
ventos...
Leandro, Rei da Helíria
Cena II
Os mesmos mais Pastor
PASTOR: Quem vem lá?
REI (imponente): Nada temais! Sou Leandro, o rei da Helíria!
PASTOR (rindo): Pois eu sou o Rei de Copas! Ah! Ah! Entrai, entrai no meu palácio,
que estais entre iguais! Ah! Ah! Ah! E isto foi o que sobrou do meu último banquete!
(Estende-lhe um bocado de pão. Olha-o de frente e recua, muito surpreendido,
murmurando) A cor dos olhos... O tamanho das barbas... O porte altivo...
BOBO: Que foi?
PASTOR: Nada, nada...
BOBO: Não faças caso... Ele não regula com eles todos bem aparafusados... Mas é
inofensivo.
BOBO: Pena o rei não conhecer a tua Briolanja... Talvez tudo tivesse sido diferente, porque
foi depois disso que tudo se complicou…..
(A luz vai diminuindo e apaga-se sobre o bobo, o rei e o pastor, e ilumina as princesas
e os príncipes)
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Alice Vieira
Cena III
(Amarílis, Hortênsia, Felizardo, Simplício)
AMARÍLIS: Chamei-te aqui ao meu reino, querida irmã, porque é preciso resolver o
que iremos fazer com o nosso pai.
HORTÊNSIA: Desde já te digo, querida irmã, que nos meus domínios não há lugar
para ele. Aceitei sem um protesto a sorte que determinou ser eu a primeira a recebê-lo. Mas
só eu sei o que sofri durante os seis meses em que tive de o suportar!
AMARÍLIS: Então e eu? E estes malditos seis meses que hoje terminam? Um inferno!
Um inferno é o que isto tem sido!
HORTÊNSIA: Emagreci dez quilos só com as vergonhas que ele me fez passar!
AMARÍLIS: Estou cheia de olheiras, das noites todas em que não consegui dormir só
com medo do ele iria inventar no dia seguinte...
(Cantam)
Porque eu cá tenho
tudo contado
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Noite ou manhã
estou sempre à coca!
Quem me roubar
leva co'a moca
velhotes…
AMARÍLIS: De resto, a culpa desta situação é toda dele!...
TODOS (menos Simplício): Toda dele!
PRÍNCIPE SIMPLÍCIO: Tiraram-me as palavras da boca…
Alice Vieira
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Leandro, Rei da Helíria
Cena IV
Bobo, Pastor, Rei Leandro
BOBO: E foi assim que tudo aconteceu. Todos o abandonaram como se ele fosse um
cão raivoso...
PASTOR: E... e a outra?
BOBO: Qual outra?
PASTOR: A do sal... (Ri)... «Como a comida quer ao sal...» Não está má, não senhor...
BOBO: Ora... Sabemos lá onde se encontra, se é morta ou viva...
PASTOR: Cruzes, homem, a tempestade dá-te ideias negras.
BOBO: Foi nome que nunca mais pude pronunciar diante dele. (Aponta para o rei)
PASTOR: Não há dúvida de que o velhote é de ressentimentos... Eu cá, já me têm
feito muitas desfeitas, mas assim como vêm, assim vão, já nem me lembro delas!
BOBO: Mas tu não és rei.
PASTOR: Ser rei é assim tão diferente?
BOBO: Quando se tem a coroa na cabeça, é.
PASTOR: E nunca pensaste em ir por aí fora, à procura da outra?
BOBO: Qual outra?!
PASTOR: Ai!... A do sal!
BOBO: Para quê? Com muito mais razão nos fecharia as portas do seu reino. Pois
não a expulsou ele um dia de casa? Pois não disse ele que, a partir dessa altura, era como
se ela nunca tivesse nascido?
PASTOR: Ora... Coisas que se dizem... Eu cá, se fosse a ti, tentava.
BOBO: Ele matava-me! E eu posso ser bobo, mas não sou maluco! Quem fez este
corpinho já não faz outro!
PASTOR: Ele não saberia de nada... Está cego... És tu que o conduzes...
BOBO: Ele está cego e tu estás doido! Sei lá por onde anda Violeta! Já tantos anos se
passaram... Se a visse, de certeza que já nem a reconhecia. O que eu queria agora, mais
que tudo, era poder encontrar um lugar para assentarmos de vez. O velho tem os pés em
sangue, parece um farrapo, receio que não aguente nova caminhada.
PASTOR: Havias de gostar do meu reino...
REI (desperta): Em toda a parte há dor, ingratidão, miséria...
(Apagam-se as luzes)
Alice Vieira
Cena V
PASTOR: É ele, senhora! Podeis acreditar nas minhas palavras. Tão certo como eu
me chamar Godofredo Segismundo!
VIOLETA: Mas como podes estar assim tão certo se nem sequer o conheces?
PASTOR: Ora, senhora! Pois não estamos nós todos tão fartos... quero eu dizer, tão
habituados a ouvir-vos falar dele? Pois não é verdade que todos os domingos nos reunis na
praça do mercado para saber se algum de nós tem notícias? E não é verdade que todos os
domingos, desde o ano em que o nosso príncipe Reginaldo vos trouxe como sua esposa,
tornais a explicar-nos como ele era, a cor dos seus olhos, o tamanho das suas barbas, o
porte altivo... Quem não o conheceria se o tivesse topado pela frente como me aconteceu
esta noite a mim?
VIOLETA: Tens mesmo a certeza?
PASTOR: Já a tinha quando, ainda por cima, o bobo que o acompanha me contou a
história toda tintim por tintim. Foi aí que eu disse cá para o meu cajado, Godofredo
Segismundo és um homem de sorte: encontraste o pai da princesa!
PRÍNCIPE REGINALDO: E onde está ele agora? Por que não o trouxeste contigo?
PASTOR: Mau... Vamos lá a ver se a gente se entende... Então Vossa Alteza não
arremata sempre a conversa dos domingos dizendo (imita a voz da princesa) «se alguém o
encontrar, que o traga à minha presença mas sem lhe revelar a minha identidade»? (Pára)
Só trabalhão que eu tive a decorar esse palavreado fino... «Sem lhe revelar a minha
identidade...» Até tive de perguntar à minha Briolanja, que é mulher de tino. «Ó homem»,
disse ela, «isso quer dizer que não podes dar com a língua nos dentes, se fores tu a
encontrar o velhote.» Com perdão de Vossa Alteza... isto é a gente a falar...
PRÍNCIPE REGINALDO: Mas como saberei se ele se encaminha para o meu reino?
Não terá escolhido outra estrada? Não irá passar de lado, ou voltar para trás?
PASTOR: Tão certo como eu me chamar Godofredo Segismundo em como ele não
tarda a bater-vos à porta!...
VIOLETA: Por que dizes isso?
PASTOR: Porque durante a noite, quando a tempestade estava mais acesa, eu
disse...
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Leandro, Rei da Helíria
Cena VI
Cena VII
Pastor, Violeta, Reginaldo
PASTOR: É por isso que eu digo, senhora, que não tardam aí! Tão certo como eu me
chamar Godofredo Segismundo!
VIOLETA (olhando para Reginaldo): Chegou a nossa hora. Ah, o que eu esperei por
este dia!
PRÍNCIPE REGINALDO: Violeta, pensai melhor! Tudo se passou há tantos anos!
Éreis então uma jovenzinha, magoada pela ingratidão de vosso pai. Hoje sois a senhora
deste reino, sois mãe de filhos... Desisti da vossa ideia!
VIOLETA: Senhor, tenho sido sempre uma esposa leal e obediente. Mas agora não
irei aceder ao vosso pedido. Tudo se fará como estava previsto. Durante muitos anos
pensámos no que iríamos fazer se meu pai um dia nos batesse à porta. Tudo combinámos.
Esse dia chegou, e será feito o que então prometemos fazer.
REGINALDO: Faça-se a tua vontade.
VIOLETA: Vou imediatamente dar as minhas ordens na cozinha. E tu... (Vira-se para o
pastor)
PASTOR: Godofredo Segismundo, às vossas ordens.
VIOLETA: Tu, Godofredo Segismundo, vai avisar toda a gente que esta noite as portas
do palácio estão abertas, e haverá comida para todos. E depois fica de vigia à entrada do
reino, e assim que o rei aparecer traz-mo logo à minha presença. Mas atenção...
PASTOR: Já sei, já sei (imita-lhe a voz) ... «sem lhe revelar a vossa identidade».
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Alice Vieira
Cena VIII
BOBO (estafado): Dez passos para poente... última árvore do bosque... montanha... o
vale... Chegámos! Chegámos!
REI: Não entendo a tua alegria... Estamos sempre a chegar e sempre a partir. Desta
vez chegámos onde?
BOBO: Ao reino do pastor que encontrámos na gruta. Não te lembras, senhor, como
ele disse que a vida era boa, farta, tranquila?
REI: Em toda a parte há medo, miséria, tristeza...
BOBO: Ai, meu senhor, por amor de Deus não comeces outra vez com essa
lengalenga! Desde aquela noite na gruta que não te oiço outra coisa! Não me digas que
também foi algum segredo dos deuses... Desculparás que te diga, mas os segredos dos
deuses só te têm trazido aborrecimentos. Melhor seria que eles não se tivessem lembrado
de ti. De resto, sempre ouvi dizer que isso de ter segredinhos com uma pessoa era coisa
muito feia!
REI: Tanto falas e tão pouco dizes, meu pobre tonto...
BOBO (batendo às portas do reino): Posso ser tonto mas consegui trazer-te a bom
porto! Isto por aqui parece--me terra de jeito.
REI: Tivesse eu os meus olhos, e saberia o que me espera para lá destes muros. Os
meus olhos nunca me enganaram. Bastava pousá-los sobre uma pessoa, para logo saber
se ela era leal ou traiçoeira, se as suas palavras eram verdadeiras ou escondiam os ecos da
intriga.
BOBO: Bom... Alturas houve em que os teus olhos bem te enganaram, senhor, mas
não vamos falar de coisas tristes e já passadas. Agora só quero encontrar guarida e dormir
horas, horas e horas! Ah, que saudades eu tenho de uma cama verdadeira. Ainda te
lembras como era uma cama a sério?
REI (recordando): Era macia...
BOBO: O corpo afundava-se nela...
REI: ... tinha o cheiro do feno...
BOBO: ... do linho...
REI (cheirando o ar): Não sentes por aqui um cheiro familiar?
BOBO: Sei apenas que cheira bem. Ah, que bem que cheira!
REI: Conheço este cheiro... Dantes, quando a minha cabeça sustentava uma coroa,
era assim que no meu reino cheiravam as noites de lua cheia...
BOBO: É a primeira vez que oiço dizer que a Lua tem cheiro...
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REI: Idiota! Não percebes nada de nada!... Claro que a Lua tem cheiro... E as estrelas
têm cheiro... E música... Tanta música...
Cena IX
Os mesmos mais Pastor
PASTOR: Eu não disse? Eu não disse que não havia nada que enganar? Foi só seguir
as minhas instruções, e vieram cá dar num instante!
REI (para o Bobo): Quem é ele?
BOBO: Ora, senhor, já não te lembras desta voz? É o pastor!
REI: Qual pastor?
BOBO: O da gruta!
REI: Qual gruta?
BOBO: Onde passámos a noite!
REI: Que noite?
Cena X
expulsaram o pai das suas fronteiras, e passam agora o tempo a guerrearem-se uma à
outra.
BOBO (para o pastor): Ouve lá, quem te mandou dar com a língua nos dentes?
Leandro, Rei da Helíria
Contei-te a história do velho, mas não tinhas nada que vir logo metê-la nos ouvidos do teu
patrão!
PASTOR: Juro que não lhe contei nada!
BOBO: Então como sabe ele tudo o que se passou?
PASTOR: As notícias correm...
BOBO: Trazidas por quem? Será que o vento tem boca? Será que as aves falam?
PASTOR: Dessas coisas não entendo. Dessas coisas quem entende...
BOBO: É a tua Briolanja, já sei... Não terá sido ela, por acaso, a contar a minha
história ao teu rei? Quer dizer: tu chegaste e foste logo a correr enfiar-lhe tudo no bucho, e
vai ela depois contou tudo ao rei.
PASTOR: É... Mesmo a minha Briolanja não tem mais nada que fazer senão andar
aos segredinhos no palácio real... Vamos mas é embora que o banquete está a começar e,
se nos atrasamos, quando lá chegarmos só restam ossos nas travessas!...
BOBO: Banquete? Isto mete banquete?
PASTOR: Eu disse-te que aqui toda a gente era bem recebida!
Página49
Alice Vieira
Cena XI
VIOLETA (para o rei): Para vós, senhor, escolhemos as melhores iguarias deste reino.
PASTOR (para o Bobo): Verdade! Até a minha Briolanja veio dar uma ajuda na
cozinha! Que não é para me gabar, mas ela faz um javali assado com molho de
mandrágoras que é um mimo (beija as pontas dos dedos)
VIOLETA: Espero que esteja tudo a vosso contento.
(Criado põe nas mãos do rei o primeiro prato: o rei prova e delicadamente põe de lado)
VIOLETA: Talvez o javali não seja o vosso prato predilecto. Que tal um assado de
borrego? (Faz sinal a outro criado que avance. O criado entrega o segundo prato. O rei
prova e, enjoado, põe de lado)
VIOLETA: Experimentemos o peixe. Uma truta fresquinha, pescada há pouco nas
águas do nosso rio.
(Outro criado avança com o terceiro prato. O rei prova, faz uma careta e põe de lado.
A partir daqui sucedem-se, em ritmo muito rápido, as várias entregas dos pratos pelos
criados, e a rejeição do rei, num crescendo de desagrado até acabar por dar um safanão
nos criados, deitar ao chão as travessas, etc., etc. ...)
REI (explode): Basta! Não sei que reino é este, não sei que hospitalidade é esta que
me põe na boca comida intragável!
VIOLETA (espantada): Intragável, senhor?
REI: Intragável! (Cospe várias vezes) Podre!
VIOLETA: Impossível, senhor! A truta foi pescada há pouco e...
PASTOR:...e pelo javali da minha Briolanja ponho eu as mãos no fogo!
REI: Será alguma conspiração para me envenenar?
VIOLETA: Acalmai-vos, senhor, aqui ninguém vos quer matar!
REI: Mas então que comida é esta que me servistes nestes pratos todos que cada um
parecia pior que o anterior?
VIOLETA (pausadamente): É apenas comida sem sal, senhor.
REI (espantado): Comida sem... (Pára de repente, e ouvem-se muito ao longe vozes
antigas)
VOZ: «Quero-vos como a comida quer ao sal...»
VOZ: «Fora do meu reino, filha maldita!...»
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REI (cada vez mais espantado): Senhora... como é o vosso nome? E que reino é este
em que me encontro? Falai, por quem sois!
VIOLETA (sem lhe responder): Aqui tendes, senhor, o que valem os melhores
Leandro, Rei da Helíria
manjares do mundo quando lhes falta uma pedrinha, uma pedrinha pequenina que seja,
desse bem precioso chamado sal.
PASTOR: Grande vai o mal na casa onde não há sal — lá diz a minha Briolanja...
REI: Senhora...
BOBO (gritando, de repente, depois de olhar muito para Violeta): É ela! É ela! Eu bem
sabia que já tinha visto aquela cara! É ela! É Violeta.
REI: Cala-te, cala-te!
BOBO: Não me calo! Já me calei tempo de mais! Durante estes anos todos vi-te fazer
asneiras atrás de asneiras sem nada te dizer. Acompanhei-te sempre, sem nada te dizer.
Mas agora não me calo! Agora sou eu que te ordeno: reconhece o mal que um dia fizeste a
tua filha Violeta!
REI: Cala-te, cala-te!
BOBO: Isso é que era bom! Não me calo, não me calo, e não me calo!
REI: Olha a chibata!
BOBO (rindo): Aqui não há chibata!
PASTOR: Nem para os animais!
BOBO: Vá, pede perdão a tua filha Violeta, a única que verdadeiramente te amou, e
ficamos por aqui, que já não aguento mais!
REI: A minha cabeça... A minha cabeça estala...
PASTOR: Agora é que ele fica maluco de vez...
BOBO: Não ligues, que aquilo também é fita...
REI: Sou um pobre cego, senhora! Mas se os olhos não vêem, vê o coração.
BOBO (aparte): Por acaso houve alturas em que o coração esteve... um bocado
vesgo.
VIOLETA: E que vê o vosso coração?
REI: Vê o rosto claro de uma filha que tive um dia e perdi.
VIOLETA: Vê mal o vosso coração. Porque nunca perdestes uma filha, senhor.
REI: É verdade. Não a perdi. Expulsei-a. Fui eu que a expulsei...
VIOLETA: Apenas porque essa filha, senhor, foi a única sincera de todas as filhas que
tínheis. Apenas porque ela vos disse as palavras verdadeiras, e às vezes os reis só têm
ouvidos para as palavras da lisonja e da mentira.
REI: Dizei-me, senhora, dizei-me se sois quem o meu coração diz.
VIOLETA: O que diz o vosso coração, não sei. Mas o meu diz-me que sois Leandro,
rei do reino que um dia se chamou Helíria e que eu sou Violeta, vossa filha mais nova.
(Abraçam-se)
REGINALDO: Vistes agora, senhor, como às vezes aquilo que nos parece
insignificante é afinal o mais importante nas nossas vidas?
REI: Poderás perdoar-me, minha filha? Agora sou eu que te digo: quero-te mais que à
luz dos meus olhos. Aprendi a passar sem ela, mas nunca aprendi a passar sem a tua
lembrança. No mais fundo de mim, o teu rosto estava sempre gravado: a tua pele branca
como marfim, o teu sorriso com a doçura do mel. Não preciso de olhos para te ver.
BOBO: Mas precisas de juízo para não voltares a fazer asneiras! E olha que essa foi
da grossa! Não tivéssemos nós encontrado aqui o nosso amigo...
PASTOR (vaidoso): Godofredo Segismundo, para vos servir!
BOBO: ... o nosso amigo Godofredo Segismundo, naquela noite de tempestade, e
ainda agora andávamos por esses caminhos... (Suspende-se a acção e o bobo volta a falar
apenas para a plateia) E ainda bem que esta história foi inventada há muitos, muitos,
muitos, mas muitos anos, porque se tivesse sido agora, com as pessoas todas a dizerem na
televisão, na rádio, nos jornais, em tudo quanto é sítio, que o sal faz tão mal, tínhamos ainda
que inventar outro final, e nunca mais a gente saía daqui! Mas em tempos muito, muito, mas
mesmo muito antigos, o sal era tão importante, mas tão importante, que às vezes até servia
para pagar o ordenado das pessoas no fim do mês! Nunca ouviram falar em salário? Pois
é... Vem de sal... Bom, mas falem com os professores, que eles é que sabem explicar essas
coisas... (Ri) Eles — e, se calhar, ali a Briolanja do Godofredo que, pelos vistos, sabe tudo!
Adeuzinho, que sou preciso para o fim da peça!
VIOLETA: Vinde, meu pai, vou guiar-vos pelo meu reino que, a partir de agora,
também será o vosso. Esqueceremos tudo o que ficou para trás. Como se tivesse sido um
pesadelo.
REI: É isso... Foi um pesadelo.
REGINALDO: Mas agora acordámos. Agora vai tudo ser diferente.
REI: Como te poderei recompensar pelo mal que um dia te fiz, minha filha?
VIOLETA: Amo-vos, senhor. Não quero recompensas. Quero apenas poder contar
com a vossa experiência sempre que precisar dela, com os vossos conselhos, e com o
vosso amor.
REI: Tudo terás de mim, Violeta. (Hesitante) Poderei eu agora fazer-te um pedido?
VIOLETA: Os vossos pedidos são ordens, senhor!
REGINALDO: Que quereis?
REI (ainda um pouco hesitante): Eu queria... eu queria...
REGINALDO: Dizei, senhor!
REI: Queria uma costeletazita de javali... com uma pitadinha de sal, se possível!
PASTOR (corre para a cozinha): Agora é que a minha Briolanja se vai esmerar!
BOBO: Vitória, vitória, acabou-se a história!
Página48
Leandro, Rei da Helíria
Cena XI
Final