Cultura: Uma Visão Antropológica
Cultura: Uma Visão Antropológica
Cultura: Uma Visão Antropológica
Define-se cultura como uma propriedade humana ímpar, baseada em uma forma
simbólica, ‘relacionada ao tempo’, de comunicação, vida social, e a qualidade cumu-
lativa de interação humana, permitindo que as ideias, a tecnologia e a cultura material
se “empilhem” no interior dos grupos humanos.
Palavras-chave: Cultura – Sociedade – História – Superindividual – Superorgânico
– Compadrazgo
*
Tradução recebida e aprovada para publicação em julho de 2009.
**
Tradução do ensaio “Culture: An Anthropological View publicado originalmente em The
Yale Review, XVII (4), 1982, p. 499-512. Revisão de Leda Maia, Maria Regina Celestino de
Almeida e Cecília Azevedo.
***
Research Professor, Department of History, Johns Hopkins University.
****
Mestrando no PPGHIS – IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro em março de
2005.
223
Sidney W. Mintz Artigos
Desde 1877, quando Edward Burnett Tylor empregou pela primeira vez
o termo “cultura” para referir-se a todos os produtos comportamentais, espi-
rituais e materiais da vida social humana, os sentidos mais antigos e restritos
desse termo foram perdendo terreno.
Entre esses sentidos mais antigos de cultura, dois, em especial, so-
breviveram em formato modificado. Um deles é que em certas sociedades
algumas pessoas possuem cultura, e outras não. O outro se refere ao conceito,
próximo embora bastante diferente, de que certas sociedades possuem cultura,
enquanto outras não. Estas duas idéias diferem qualitativamente; a primeira
estabelece diferenças de grau, e a segunda, diferenças de espécie.
No primeiro caso – a sociedade na qual as pessoas que possuem cultura
distinguem-se das que não a têm – a linha divisória é estabelecida usualmente
entre discurso apropriado e inapropriado, comportamento apropriado e inapro-
priado, e contrastes similares. Cultura, nessa visão, seria um conjunto formado
por nascimento, posição social, educação e criação, que se traduziria em idéias
e comportamentos; seria portanto também uma questão de privilégios. No
segundo caso – sociedades com cultura, e sociedades sem cultura – a cultura
em si era vista como o produto de certas peculiaridades da história do grupo.
Sua gênese poderia ser atribuída ao gênio de seus portadores, a alguns he-
róis míticos, a uma divindade benigna, ou o que seja – mas apenas algumas
sociedades teriam a sorte de possuí-la. E, nestes dois significados antigos, a
diferença estava em estabelecer se essa cultura poderia ser transmitida tanto
para aquelas sociedades cujos membros não a possuíam, quanto para aquelas
onde apenas alguns de seus membros a possuíam.
Franz Boas com certeza fez mais do que qualquer outro antropólogo
pela promoção de um conceito de cultura que englobasse a espécie huma-
na – segundo o qual todos os grupos humanos, e não outras formas de vida,
manifestam esta propriedade ou capacidade. O interesse de Boas se situava
224
Cultura: uma visão antropológica
225
Sidney W. Mintz Artigos
226
Cultura: uma visão antropológica
227
Sidney W. Mintz Artigos
Esse trecho pode parecer enigmático, mas para mim significa que o
comportamento humano não pode ser plenamente entendido pelo (ou redu-
zido ao) exame de indivíduos isoladamente. Tudo o que eles são, bem como o
que eles pensam e fazem, seus atos e as consequências de seus atos, é sempre
social. E por ser este o caso, o comportamento social não pode ser reduzido a
uma análise do comportamento individual.
Confesso que nunca entendi plenamente por que essas asserções desper-
taram não apenas ceticismo, mas até certa animosidade. Kroeber, por insistir
em propriedades da cultura “extrassomáticas”, transmitidas socialmente,
portanto coletivas e cumulativas, foi acusado de postular alguma forma de
influência externa impalpável, mas poderosa, à qual os humanos estariam
sujeitos inconsciente e inapelavelmente. Entretanto, parece claro para mim
que Kroeber estava na verdade dizendo algo mais simples. Se os seres humanos
são por natureza sociais e também extremamente dependentes na infância e
na menoridade; se uma grande massa de aprendizado social é necessária para
torná-lo “cultivado” em sua própria sociedade (para o qual Melville Herskovits
criou o termo agora amplamente empregado “enculturação”); se, resumindo, ser
humano significa a necessidade de absorver um volume suficiente de formas
culturais da sua própria sociedade, para ser considerado humano em termos
específicos da cultura; então eu acredito que as asserções de Kroeber são tanto
“nãoexcepcionais” quanto “não excepcionáveis”. A analogia mais fácil e mais
convincente é provavelmente a linguagem, e Kroeber a utiliza:
Novamente, a língua inglesa é uma parte da cultura. A faculdade de falar e en-
tender alguma ou qualquer linguagem é orgânica: é uma faculdade da espécie
humana. Os sons das palavras são, é claro, produzidos pelos indivíduos, não
pela espécie. Mas a agregação total das palavras, formas, gramática e signifi-
cados que constituem a língua inglesa são o produto cumulativo e conjunto
228
Cultura: uma visão antropológica
Com este exemplo, Kroeber afirma que “um fato cultural é sempre um
fato histórico; e o entendimento mais imediato e, usualmente, mais completo
desse fato que poderemos obter é um conhecimento histórico”. Esta asserção
até certo ponto moderada, que aparece de uma forma ou de outra em seu
trabalho ao longo dos anos e nos trabalhos de muitos outros alunos de Boas,
longe esteve, no entanto, de ser considerada auto- explicativa, nos anos 1940,
quando a antropologia social britânica estava em ascensão. Nessa época, seus
líderes afirmavam que a história era irrelevante para nosso entendimento
de sociedades que desconheciam a escrita, ou então meramente um último
recurso para antropólogos sem imaginação.
Alexander Lesser, quando se viu envolvido em uma controvérsia, ainda
no início de sua carreira, com um dos maiores antropólogos “funcionalistas”
britânicos, A. R. Radcliffe-Brown, escreveu em 1934:
Nós observamos tais e tais eventos acontecendo. Entretanto, muitas coisas
estão sempre acontecendo simultaneamente. Como podemos determinar se
estas coisas acontecidas ao mesmo tempo estão ou não relacionadas entre si?
Por certo, podem ser eventos contemporâneos ou mesmo seriais, não porque
estivessem relacionados entre si, mas em função de seus condicionantes, não
determinados nem observados, terem causado a sua ocorrência em tempos
subsequentes. Em resumo, eventos contemporâneos ou associados podem ser
meramente ‘coexistências’. Cultura, em qualquer tempo, é antes de tudo uma
massa de eventos ‘coexistentes’. Se estamos tentando definir relações entre tais
eventos, é impossível, na visão da conhecida historicidade das coisas, presumir
que as relações estejam na superfície contemporânea dos eventos. Qualquer
acontecimento é determinado mais pelos eventos ocorridos antes da ocasião
em questão do que pelo que podemos observar contemporaneamente com ele.
Assim que nos voltamos para os eventos anteriores para termos a compreensão
229
Sidney W. Mintz Artigos
230
Cultura: uma visão antropológica
231
Sidney W. Mintz Artigos
232
Cultura: uma visão antropológica
233
Sidney W. Mintz Artigos
234
Cultura: uma visão antropológica
Mas o que está claro para mim é que as pessoas conduzem a maior parte
das suas ações com base em suas experiências e aprendizados passados. Tais
aprendizados e experiências podem ser amplamente compartilhados, mesmo
de uma maneira não uniforme. Os hacendados de Wolf e os meus obreros, por
exemplo, podem ter compartilhado algum entendimento convencional, como
nós antropólogos gostamos de dizer, sobre o apadrinhamento ritual. Mas esses
entendimentos são pelo menos tão notáveis pelo que se entende por diferente,
quanto pelo que é entendido como igual. Podemos dizer que um hacendado,
que utiliza um instrumento para obter mão-de-obra barata ocasional, e um
obrero, que utiliza o mesmo instrumento para obter um compromisso de apoio
em situações de emergência, estão compartilhando a mesma cultura neste
caso, por apelarem a um suposto repertório de idéias comuns. Mas imagino
que essas idéias comuns – mesmo assumindo que possamos descobri-las e
validar sua existência intersubjetiva – não terão tanta importância seja como
uma indicação, seja como uma explicação para o que está acontecendo.
Esses indivíduos agem diferentemente porque seus interesses são di-
ferentes, porque eles estão postados em cantos diferentes do sistema social,
porque suas influências entre si não são nem estáticas nem simétricas. Quando
tais indivíduos parecem compor grupos, grupos estes que agem diferentemente
em terrenos semelhantes, não é porque necessariamente as “culturas” desses
grupos são qualitativamente diferentes, mas porque as alternativas culturais,
percebidas por eles como mais apropriadas no momento, emergem em contex-
tos sociais específicos. Não se trata simplesmente de uma questão de diferenças
de classe em cultura, ou “subcultura” ou “cultura de classe” – “pacotinhos”
arrumados de material cultural anexados a “grupinhos” organizados. As classes
não podem ser meticulosamente dispostas de uma forma tão simples, cada
uma possuindo seus padrões normativos distintivos.
As classes, como a própria cultura, são processos. Elas tomam forma
ao longo do tempo, e são forjadas, assim como afirma E. P. Thompson, pela
sua própria experiência. Acredito que, inevitavelmente, os antropólogos
interessados em cultura no mundo moderno terão de encarar o fato de que
a maneira – e a maneira correta – com que as pessoas conduzem suas vidas
desempenhará papel imensamente importante na forma como a experiência
é objetivada e transformada em idéias de um modo progressivo e contínuo.
As pessoas adquirem experiência enquanto estão sendo acionadas e enquanto
agem. Na maior parte do tempo e na maioria das formas, elas agem de acordo
235
Sidney W. Mintz Artigos
236
Cultura: uma visão antropológica
protegidas das forças econômicas, sociais e políticas com as quais nós mesmos
estamos bastante familiarizados. As sociedades que estudamos não se situam
fora destas esferas – nem assim estiveram por longos séculos.
O fato de admitir esses princípios não nos torna instantaneamente
sociólogos, como sapos que viram príncipes; ainda existe muita antropologia
“real” a ser feita. E mais, podemos continuar a postular um mundo pleno de
culturas independentes e coerentes, para sejam lá quais forem as propostas
teóricas ou estéticas que imaginemos. Cultura é, em última análise e final-
mente, comportamento mediado através de símbolos, e podemos fazer todo
tipo de elucubração com, e sobre, esta questão. Mas chegou, sem dúvida, o
momento de liberar nossa obsessão com um “primitivismo” semi-imaginado,
ligado de algum modo a um igualmente dúbio “isolamento”, o que resulta
em uma visão de cultura perfeitamente coerente, monolítica, consistente
internamente, e harmoniosa. Sabemos que o assunto não é simples; existem
casos, na verdade, em que a “cultura” parece ser exatamente isso. Mas nós,
antropólogos, temos de lidar com o mundo como ele é, como ele se tornou.
Para tanto, creio que temos de renunciar à antiga visão de cultura, lembrar
que é a nossa identidade comum de criaturas que utilizam símbolos que faz o
mundo único – e começar tudo de novo.
Nota do Autor: Esta é a melhor ocasião para agradecer a Kai Erikson
e Hans Medick por criticarem tão bem este ensaio, e para pedir desculpas por
não ter conseguido transformá-lo em algo que agradasse a ambos.
237