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see s++ Os simbolos da auséncia------ ke longo de centenas de milhares de anos, os animais conseguiram sobreviver por meio da adaptagio fisica. Seus dentes e suas garras afiadas, os cascos duros e as carapacgas rijas, seus venenos e odores, os sentidos hipersensfveis, a capacidade de correr, saltar, cavar, a estranha habilidade de confundir-se com 0 terreno, com as cascas das Arvores, com as folhagens, todas essas sdo manifestagdes de corpos mara- vilhosamente adaptados 4 natureza ao seu redor. Mas a coisa nao se esgota na adaptago fisica do organismo ao ambien- te. O animal faz com que a natureza se adapte a seu corpo. E vemos as represas construfdas pelos castores, os buracos- esconderijo dos tatus, os formigueiros, as colméias de abe- lhas, as casas de jodo-de-barro... E 0 extraordindtio é que toda essa sabedoria para sobreviver e arte para fazer seja transmitida de geragdo a geragio, silenciosamente, sem palavras e sem mestres. Lembro-me daquela vespa cagadora que sai em busca de uma aranha, luta com ela, pica-a, paralisa-a, arrastando-a entdo para seu ninho. Ali deposita seus ovos e morte. Tempos depois, as larvas nascerao e se alimentarfo da carne fresca da aranha imdvel. Crescerao. E, sem haver tomado ligdes ou freqiientado escolas, um dia ouviréo a voz silenciosa da sabedoria que habita seus cor- pos, ha milhares de anos: “Chegou a hora. E necessério buscar uma aranha...” E 0 que € extraordindrio é o tempo em que se da a experiéncia dos animais. Moluscos parecem fazer suas con- chas hoje da mesma forma que as faziam hé milhares de anos. Quanto aos jodes-de-barro, nao sei de alteraco algu- llma, para melhor ou para pior, que tenham introduzido no plano de suas casas. Os pintassilgos cantam hoje como can- tavam no passado, e as represas dos castores, as colméias das abelhas e os formigueiros tém permanecido inalterados por séculos. Cada corpo produz sempre a mesma coisa. O animal é seu corpo. Sua programacio bioldgica é completa, fechada, perfeita. Nao ha problemas nao-respondidos. E, por isso mesmo, ele n&o possui qualquer brecha para que alguma coisa nova seja inventada. Os animais praticamente nao possuem uma histdria, tal como a entendemos. Sua vida se processa num mundo estruturalmente fechado. A aventura da liberdade nao lhes € oferecida, mas nao recebem, em contrapartida, a maldig&o da neurose e o terror da angtstia. Como sao diferentes as coisas com o homem! Se o corpo do animal me permite prever que coisas ele produ- zira —- a forma de sua concha, de sua toca, do seu ninho, o estilo de sua corte sexual, a misica de seus sons — e as coisas por ele produzidas me permitem saber de que corpo partiram, no existe nada semelhante que se possa dizer dos homens. Tomemos uma crianca recém-nascida. Do ponto de vista genético, ela j4 se encontra totalmente determinada: cor da pele, dos olhos, tipo de sangue, sexo, suscetibilidade a enfermidades. Mas como serd ela? Gosta- r4 de mtisica? De que mtisica? Que Ifngua falard? E qual serd seu estilo? Por que ideais e valores lutara? E que coisas sairao de suas maos? Aqui os geneticistas, por maiores que sejam seus conhecimentos, terfio de se calar. Porque o homem, diferentemente do animal que € seu corpo, tem 6 seu corpo. Nao é 0 corpo que o faz. E ele que faz seu corpo. E verdade que a programagao bioldgica nao nos abandonou de todo. As criancinhas continuam a ser ge- radas e a nascer, na maioria das vezes perfeitas, sem que os pais e as maes saibam o que est4 ocorrendo 14 dentro do ventre da mulher. E é igualmente a programacio bio- légica que controla os horménios, a press4o arterial, o bater do coracao... De fato, a programacao bioldgica con- tinua a operar. Mas ela diz muito pouco, se é que diz alguma coisa, acerca do que iremos fazer por este mundo afora.O mundo humano, que é€ feito com trabalho e amor, é uma pagina em branco na sabedoria que nossos corpos herdaram de nossos antepassados. O fato é que os homens se recusaram a ser aquilo que, a semelhanga dos animais, o passado Ihes propunha. Torna- ram-se inventores de mundos. E plantaram jardins, fizeram choupanas, casas e paldcios, construfram tambores, flautas e harpas, fizeram poemas, transformaram seus corpos, co- brindo-os de tintas, metais, marcas e tecidos, inventaram bandeiras, construfram altares, enterraram seus mortos € os prepararam para viajar e, na sua auséncia, entoaram lamen- tos pelos dias e pelas noites... Quando nos perguntamos sobre a inspiragao para esses mundos gue os homens imaginaram e construfram, vem- nos o espanto. E isso porque constatamos que aqui, em oposic&o ao mundo animal onde o imperativo da sobrevi- véncia reina supremo, 0 corpo j4 n&o tem a Ultima pala- vra. O homem é capaz de cometer suicidio. Ou de entre- 9gar seu corpo a morte, desde que dela outro mundo venha a nascer, como o fizeram muitos revoluciondrios. Ou de abandonar-se 4 vida mondstica, numa total rentincia da vontade, do sexo, do prazer da comida. E certo que pode- rio dizer-me que esses sdéo exemplos extremos, e que a maioria das pessoas nem comete suicidio, nem morre por um mundo melhor, nem se encerra num mosteiro. Tenho de concordar. Mas, por outro lado, € necessario reconhe- cer que toda a nossa vida cotidiana se baseia numa perma- nente negacdo dos imperativos imediatos do corpo. Os impulsos sexuais, os gostos alimentares, a sensibilidade olfativa, o ritmo bioldégico de acordar/adormecer deixaram ha muito de ser expressdes naturais do corpo porque o corpo, ele mesmo, foi transformado de entidade da natu- reza em criagao da cultura. A cultura, nome que se da a esses mundos que os homens imaginam e constroem, s6 se inicia no momento em que o corpo deixa de dar ordens. Esta é a raz4o por que, diferentemente das larvas, abando- nadas pela vespa-mie, as criancas tém de ser educadas. E necessdrio que os mais velhos lhes ensinem como é 0 mundo. Nao existe cultura sem educagdo. Cada pessoa que se aproxima de uma crianca e com ela fala, conta his- térias, canta cang6es, faz gestos, estimula, aplaude, ri, repre- ende, ameaca, € um professor que lhe descreve esse mundo inventado, substituindo, assim, a voz da sabedoria do corpo, pois nos umbrais do mundo humano ela cessa de falar. Se o corpo, como fato bioldgico bruto, nao € a fonte nem o modelo para a criagdo dos mundos da cultura, per- 20 Lees Os simbolos da auséncia------ manece a pergunta: por que razio os homens fazem a cul- tura? Por que motivos abandonam o mundo sélido e pronto da natureza para, 4 semelhanga das aranhas, construir teias sobre elas viver? Para que plantar jardins? E as esculturas, os quadros, as sinfonias, os poemas? Grandes e pequenos se d&o as m4os e brincam de roda, empinam papagaios, dancam... e choram seus mortos, e choram a si mesmos em seus mortos, e constroem altares, e falam sobre a suprema conquista do corpo, o triunfo final sobre a natureza, a imortalidade da alma, a ressurrei- cao da carne... Tenho de confessar que nfo sei dar resposta a essas per- guntas. Constato, simplesmente, que é assim. E tudo isso que o homem faz me revela um mistério antropoldgico: os animais sobrevivem pela adaptacio fisica ao mundo: os homens, ao contrario, parecem ser constitucionalmente desadaptados ao mundo, tal como ele thes é dado. Nossa tradigao filoséfica fez seus mais sérios esforgos para demons- trar que o homem é um ser racional, ser de pensamento. Mas as produgées culturais que saem de suas maos sugerem, ao contrario, que o homem € um ser de desejo. Desejo é sintoma de privagio, de auséncia. Nao se tem saudade da bem-amada presente. A saudade s6 aparecer4 na distancia, quando se estiver longe do carinho. Também nfo se tem fome — desejo supremo de sobrevivéncia fisica — com 0 estémago cheio. A fome sé surge quando o corpo € privado dldo pao. Ela é testemunho da auséncia do alimento. E assim é, sempre, com o desejo. Desejo pertence aos seres que se sentem privados, que no encontram prazer naquilo que o espaco e 0 tempo presente lhes oferece. E compreensivel, portanto, que a cultura nunca seja a reduplicagao da natu- reza. Porque o que a cultura deseja criar é exatamente o objeto desejado. A atividade humana, assim, nao pode ser compreendida como uma simples luta pela sobrevivéncia que, uma vez resolvida, se da ao luxo de produzir o supérfluo. A cultura nao surge no lugar onde o homem domina a natureza. Também os moribundos balbuciam cangées, e exilados e prisioneiros fabricam poemas. CangGes fiinebres exorcizarao a morte? Parece que no. Mas elas exorcizam o terror e langam pelos espagos afora o gemido de protesto e a reticéncia de esperanca. E os poemas do cativeiro nao quebram as correntes nem abrem as portas mas, por razGes que n&o entendemos bem, parece que os homens se ali- mentam deles e, no fio ténue da fala que os enuncia, surge de novo a voz do protesto e o brilho da esperanga. A sugest’io que nos vem da psicandlise é de que o homem faz cultura a fim de criar os objetos do seu desejo. O projeto inconsciente do ego, nao importa seu tempo nem seu lugar, € encontrar um mundo que possa ser amado. Hé situagdes em que ele pode plantar jardins e colher flores. Ha outras situagdes, entretanto, de impoténcia em que os objetos do seu amor 6 existem por meio da magia da ima- ginagao e do poder milagroso da palavra. Juntam-se assim © amor, © desejo, a imaginago, as maos e os simbolos, para i oe ese Os Simbolos da aus@ncia------ criar um mundo que faa sentido, que esteja em harmonia com os valores do homem que o constréi, que seja espelho, espago amigo, lar... Realizagao concreta dos objetos do de- sejo ou, para fazer uso de uma terminologia que nos vem de Hegel, objetivacao do Espirito. Terfamos ent&o de nos perguntar: que cultura € essa em que esse ideal se realizou? Nenhuma. E possfvel discernir a intengdo do ato cultural, mas parece que sua realizagdo efe- tiva escapa para sempre aquilo que nos € concretamente possivel. A volta do jardim esta sempre o deserto que even- tualmente o devora; a ordo amoris (Scheller) est4 cercada pelo caos; e 0 corpo que busca amor e prazer se defronta com a rejei¢ao, a crueldade, a soliddo, a injustiga, a prisdo, a tortura, a dor, a morte. A cultura parece sofrer da mesma fraqueza de que sofrem os rituais magicos: reconhecemos sua intenc4o, constatamos seu fracasso — e sobra apenas a esperanca de que, de alguma forma, algum dia, a realidade se harmonize com o desejo. E, enquanto o desejo nao se realiza, resta canta-lo, dizé-lo, celebrd-lo, escrever-lhe poe- mas, compor-lhe sinfonias, anunciar-lhe celebracdes e fes- tivais. A realizagdo da intengSo da cultura se transfere entéo para a esfera dos simbolos. Simbolos assemelham-se a horizontes. Horizontes: onde se encontram eles? Quanto mais deles nos aproximamos, mais fogem de nés. E, no entanto, cercam-nos atrds, pelos lados, a frente. Séo o referencial de nosso caminhar. Ha sempre os horizontes da noite e os horizontes da madruga- da... As esperangas do ato pelo qual os homens criaram a somcultura, presentes em seu proprio fracasso, sio horizontes que nos indicam diregdes. Essa é a raz4io por que nao pode- mos entender uma cultura quando nos detemos na contem- plagio de seus triunfos técnicos/praticos. Porque é justa- mente no ponto no qual ela fracassou que brota o simbolo, testemunha das coisas ainda ausentes, saudade de coisas que nao nasceram... Aqui surge a religido, teia de simbolos, rede de desejos, confissao da espera, horizonte dos horizontes, a mais fantds- tica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a natureza. Nao é composta de itens extraordindrios. Ha coisas a serem consideradas: altares, santudtios, co- midas, perfumes, lugares, capelas, templos, amuletos, cola- tes, livros... e também gestos, como os siléncios, os olhares, tezas, encantagdes, rentincias, cangSes, poemas, romarias, procissGes, peregrinagées, exorcismos, milagres, celebrages, festas, adoragées. Terfamos de nos perguntar agora acerca das proprieda- des especiais dessas coisas e gestos, que fazem deles habitantes do mundo sagrado, enquanto outras coisas ¢ outros gestos, sem aura ou poder, continuam a morar no mundo profano. Ha propriedades que, para se fazerem sentir e valer, dependem exclusivamente de si mesmas. Por exemplo, antes que os homens existissem ja brilhavam as estrelas, o sol aquecia, a chuva caia e as plantas e bichos enchiam o mundo. Tudo isso existiria e seria eficaz sem que o homem dh vee 0s simbolos da auséncia------ tivesse jamais existido, jamais pronunciado uma palavra, jamais feito um gesto. E é provavel que continuarao, mes- mo depois do nosso desaparecimento. Trata-se de realida- des naturais, independentes do desejo, da vontade, da ati- vidade pratica (praxis) dos homens. Ha também gestos que possuem uma eficdcia em si mesmos. O dedo que puxa o gatilho, a m&o que faz cair a bomba, os pés que fazem a bicicleta andar: ainda que o assassinado nada saiba e nao ouga palavra alguma, ainda que aqueles sobre quem a bom- ba explode nao tenham recebido antes explicagGes, e ainda que no haja conversagdo entre os pés e as rodas — nao importa, os gestos tém eficdcia propria e sio, praticamente, habitantes do mundo da natureza. Nenhum fato, coisa ou gesto, entretanto, é encontrado j4 com as marcas do sagrado. O sagrado nao é uma eficacia inerente as coisas. Ao contrario, coisas e gestos se tormam religiosos quando os homens os batizam como tais. A reli- gido nasce com o poder que os homens tém de dar nomes as coisas, fazendo uma discriminacdo entre coisas de impor- tancia secundaria e coisas nas quais seu destino, sua vida e sua morte se dependuram. Esta é a razo por que, fazendo uma abstragao dos sentimentos e experiéncias pessoais que acompanham 0 encontro com o sagrado, a religido se nos apresenta como um certo tipo de fala, um discurso, uma tede de simbolos. Com esses simbolos os homens discrimi- nam objetos, tempos e espacos, construindo, com seu auxi- lio, uma abdbada sagrada com que recobrem seu mundo. Por qué? Talvez porque, sem ela, o mundo seja por demais ifrio e escuro. Com seus simbolos sagrados 0 homem exor- ciza o medo e constréi diques contra 0 caos. E, assim, coisas inertes — pedras, plantas, fontes — e gestos, em si vulgares, passam a ser os sinais vistveis desta teia invisivel de significagdes, que vem a existir pelo poder huma- no de dar nomes 4s coisas, atribuindo-lhes um valor. Nao foi sem razo que nos referimos & religiao como “a mais fantdstica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a na- tureza”. De fato, objetos e gestos, em si insensfveis e indi- ferentes ao destino humano, séo magicamente a ele inte- grados. Camus observou que € curioso que ninguém esteja disposto a morrer por verdades cientificas. Que diferenga faz se o Sol gira em torno da Terra ou se a Terra gira em torno do Sol? E que as verdades cientificas se referem aos objetos em sua mais radical e deliberada indiferenga a vida ea morte, a felicidade e infelicidade das pessoas. Hd verda- des que sao frias e inertes. Nelas nao se dependura nosso destino. Quando, ao contrario, tocamos nos simbolos em que nos dependuramos, 0 corpo inteiro estremece. E esse estremecer é a marca emocional/existencial da experiéncia do sagrado. Sobre que fala a linguagem religiosa? Dentro dos limites do mundo profano tratamos de coisas concretas e visiveis. Assim, discutimos pessoas, contas, custo de vida, atos dos politicos, golpes de Estado e nossa Ultima crise de reumatismo. Quando entramos no mundo sagrado, entretanto, descobrimos que uma trans- formagdo se processou: agora a linguagem se refere a coi- 26 ...++- O05 simbolos da auséncia------ sas invistveis, coisas para além de nossos sentidos comuns, as quais, segundo a explicagdo, somente os olhos da fé podem contemplar. O zen-budismo chega mesmo a dizer que a experiéncia da iluminagio teligiosa, satori, € um terceiro olho que se abre para ver coisas que os outros dois nao podiam ver. O sagrado se instaura ao poder do invisivel. E é ao invisfvel que a linguagem religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as alturas dos céus, 0 desespero do inferno, os fluidos e influéncias que curam, © parafso, as bem-aventurangas eternas e 0 préprio Deus. Quem, algum dia, viu qualquer uma dessas entidades? Uma pedra nao é imagindria. E visivel, concreta. Como tal, nada tem de religioso. Mas, no momento em que al- guém The da o nome de altar, ela passa a ser circundada de uma aura misteriosa, e os olhos da fé podem vislumbrar conexées invisiveis que a ligam ao mundo da graga divina. E ali se fazem oracGes e se oferecem sacrificios. O pao, como qualquer pao, e o vinho, como qualquer vinho, poderiam ser usados numa refei¢&o ou orgia: mate- riais profanos, inteiramente. Deles n@o sobe nenhum odor sagrado. Mas quando as palavras séo pronunciadas — “Este é 0 meu corpo, este é o meu sangue...” — os objetos visi- veis adquirem uma dimensao nova, passam a ser sinais de tealidades invisiveis. Temo que minha explicagao possa ser convincente para os religiosos, mas muito fraca para os que nunca se defron- HT]taram com o sagrado. E dificil compreender 0 que significa esse poder do invisfvel, a que me refiro. Peco, entao, licen- ca para me valer de uma parabola, tirada da obra de Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Principe. O principe encon- trou-se com um bichinho que ele nunca havia visto antes, uma raposa. E a raposa lhe disse: — Vocé quer me cativar? — Que é isso? — perguntou o menino. — Cativar é assim: eu me assento aqui, vocé se assenta 14, bem longe. Amanha a gente se assenta mais perto. E assim, aos poucos, cada vez mais perto. O tempo passou, 0 principezinho cativou a raposa e chegou a hora da partida. — Eu vou chorar — disse a raposa. — Nao é minha culpa — desculpou-se a crianca. — Eu lhe disse, eu nao queria cativa-la... Nao valeu a pena. Vocé percebe? Agora, vocé vai chorar! — Valeu a pena sim — respondeu a raposa. — Quer saber por qué? Sou uma raposa. Nao como trigo. S6 como galinhas. O trigo nao significa absolutamente nada para mim. Mas vocé me cativou. Seu cabelo é louro. E agora, na sua auséncia, quando o vento fizer balangar o campo de trigo, eu ficarei feliz, pensando em vocé... E 0 trigo, antes sem sentido, passou a carregar em si uma auséncia, que fazia a raposa sorrir. Parece-me que essa i vee Os simbolos da auséncia------ parabola apresenta, de forma paradigmética, aquilo que o discurso religioso pretende fazer com as coisas: transformé- -las, de entidades brutas e vazias, em portadoras de sentido, de tal maneira que elas passem a fazer parte do mundo humano, como se fossem extensdes de ndés mesmos. Poderfamos ir multiplicando os exemplos, sem fim, re- latando a transformagio das coisas profanas em sagradas, a medida que sao envolvidas pelos nomes do invisivel. Mas € necessdrio prestar atengao as diferencas. O dis- curso religioso nao vive em si mesmo; falta-lhe a autono- mia das coisas da natureza, que continuam as mesmas, em qualquer tempo, qualquer lugar. A religi&o é construida pelos simbolos que os homens usam. E os homens sio diferentes; seus mundos sagrados também. “O mundo dos felizes é di- ferente do mundo dos infelizes” (Wittgenstein). Assim... ... hd aqueles que fizeram amizade com a natureza e reconhecem que dela recebem a vida. Eles envolvem en- tao, com o didfano véu do invisivel, os ventos e as nuvens, os rios e as estrelas, os animais e as plantas, lugares sacra- mentais. E, por isso mesmo, pedem perd&o aos animais que vao ser mortos, aos galhos que sero quebrados, 4 mae-terra que é escavada, e protegem as fontes de seus excrementos. .. hd também os companheiros da forca e da vitéria, que abengoam as espadas, as correntes, os exércitos e 0 seu préprio riso. .. hé os sofredores que transformam os gemidos dos oprimidos em salmos, as espadas em arados, as lancas em 29podadeiras e constroem, simbolicamente, as utopias da paz e da justiga eterna, em que o lobo vive com o cordeiro e a crianca brinca com a serpente. Que estranho discurso! Terfamos de nos perguntar acerca do poder m4gico que permite aos homens falar acerca daquilo que nunca viram... E a resposta € que, para a religido, ndo importam os fatos e as presengas que os sentidos podem agarrar. Importam os objetos que a fantasia e a imaginagéo podem consttuir. Fatos nao sao valores: presencas que ndo valem o amor. O amor se di- tige para coisas que ainda nao nasceram, ausentes. Vive do desejo e da espera. E é justamente af que surgem a imaginago e a fantasia, “encantacdes destinadas a pro- duzir... a coisa que se deseja...” (Sartre). Concluimos, assim, com honestidade, que as entidades religiosas sdo en- tidades imagindrias. Sei que tal afirmag&o parece sacrilega, especialmente para as pessoas que j4 se encontraram com o sagrado. De fato, aprendemos desde muito cedo a identificar a imagina- go com aquilo que é falso. Afirmar que o testemunho de alguém é produto da imaginacdo e da fantasia é acusd-la de perturbag&o mental ou suspeitar de sua integridade moral. Parece que a imaginagdo € um engano que tem de ser erradicado. De maneira especial Aqueles que devem sobre- viver nos labirintos institucionais, sutilezas lingiifsticas e ocasides rituais do mundo académico, é de importancia basica que seu discurso seja assepticamente desinfetado de 0 quaisquer resfduos da imaginagZo e do desejo. Que a ima- ginagdo seja subordinada a observagao! Que os fatos sejam valores! Que o objeto triunfe sobre o desejo! Todos sabem, neste mundo da ciéncia, que a imaginagao conspira contra a objetividade e a verdade. Como poderia alguém, compro- metido com o saber, entregar-se 4 embriaguez do desejo e suas produgGes? Nao, nao estou dizendo que a religido € apenas imagi- na¢fo, apenas fantasia. Estou sugerindo que ela tem o po- der, o amor e a dignidade do imaginario. Mas, para elucidar declarag4o tao estapaftirdia, terfamos de dar um passo atrds, até 14 onde a cultura nasceu e continua a nascer. Por que razdes os homens fizeram flautas, inventaram dangas, es- creveram poemas, puseram flores em seus cabelos e cola- res NOs pescogos, construiram casas, pintaram-nas de cores alegres e pregaram quadros nas paredes? Imaginemos que esses homens tivessem sido totalmente objetivos, total- mente dominados pelos fatos, totalmente verdadeiros — sim, verdadeiros! —, poderiam eles ter inventado coisas? Onde estava a flauta antes de ser inventada? E o jardim? E as dangas? E os quadros? Ausentes. Inexistentes. Ne- nhum conhecimento poderia jamais arranca-los da natu- reza. Foi necessdrio que a imaginag&o ficasse gravida para que o mundo da cultura nascesse. Portanto, ao afirmar que as entidades da religidio pertencem ao imagindrio, nao as estou colocando ao lado do engodo e da perturbacgao mental. Estou apenas estabelecendo sua filiag’o e reco- nhecendo a fraternidade que nos une. iIComegamos falando dos animais, de como eles sobrevi- vem, a adaptagdo de seus corpos ao ambiente, a adaptacaio do ambiente a seus corpos. Passamos entao ao homem, que nao sobrevive por meio de artificios de adaptacio fisica, pois ele cria a cultura e, com ela, as redes simbdlicas da religiao. O leitor teria agora todo o direito de nos perguntar: “Mas, e estas redes simbédlicas? Sabemos que sao belas e possuem uma fungo estética. Sabemos que delas se deri- vam festivais e celebragdes, o que estabelece seu parentesco com as atividades lidicas. Mas, além disso, para que ser- vem? Que uso lhes dao os homens? Serao apenas ornamen- tos supérfluos? A sobrevivéncia depende de coisas e ativi- dades prdticas, materiais, como ferramentas, armas, comida, trabalho. Poderdo os simbolos, entidades tao débeis e didfanas, nascidas da imaginacao, competir com a eficdcia daquilo que € material e concreto? Sobrevivéncia tem a ver com a ordem. Observe os animais. Nada fazem a esmo. Nao ha improvisacdes. Por séculos e milénios seu comportamento tem desenhado os mesmos padrdes. Quando, por uma razdo qualquer, essa ordem inscrita nos seus organismos entra em colapso, o comportamento perde a unidade e direg&o. E a vida se vai. Parece-nos dbvio é que o ambiente em que vivem os animais é uma realidade uniforme, a mesma para todos e quaisquer organismos, uma espécie de mar em que cada um se arranja como pode. Mas, na verdade, cada animal tem 2 -+-- 05 simbolos da auséncia------ uma ordem que lhe é especffica. Beija-flores nao sobrevi- vem da mesma forma que besouros. Foi pensando nisso que o bidlogo Johannes von Uexkiil se perguntou: “Sera que moscas, borboletas, lesmas, cavalos-marinhos viverio num mesmo mundo?” E poderfamos imaginar o ambiente como se fosse um grande 6rg&o, adormecido, e cada organismo um organista que faz brotar do instrumento a sua melodia especifica. Assim, nao existiria um ambiente, em si mesmo. O que existe, para o animal, é aquele mundo, criado & sua imagem e semelhanca, que resulta da atividade do corpo sobre aquilo que esté ao seu redor. Cada animal é uma melodia que, ao se fazer soar, faz com que tudo ao seu redor reverbere, com as mesmas notas harménicas e a mesma linha sonora. A analogia nao serve de todo, porque sabemos que os homens no séo governados por seus organismos. Suas misicas nao sao biolégicas, mas culturais. Porém, da mesma forma como o animal langa sobre o mundo, como se fosse uma rede, a ordem que lhe sai do organismo, em busca de um mundo & sua imagem e semelhanca; da mesma forma como ele faz soar sua melodia e, ao fazé-lo, desperta, no mundo ao seu redor, os sons que lhe séo harménicos, tam- bém o homem langa, projeta, exterioriza suas redes simbé- lico-religiosas — suas melodias — sobre 0 universo inteiro, os confins do tempo e os confins do espago, na esperanca de que céus e terra sejam portadores de seus valores. O que esté em jogo € a ordem. Mas ndo é qualquer ordem que atende as exigéncias humanas. O que se busca, como espe- 3-o +O que @ religifo?--------. ranga e utopia, como projeto inconsciente do ego, é um mundo que traga as marcas do desejo e corresponda as as- piragdes do amor. Mas o fato é que tal realidade nfo existe, como algo presente. E a religidio aparece como a grande hip6tese e aposta de que o universo inteiro possui uma face humana. Que ciéncia poderia construir tal horizonte? Sao necessarias as asas da imaginagao para articular os simbolos da auséncia. E o homem diz a religidio, este universo simbé- lico “que proclama que toda a realidade é portadora de um sentido humano e invoca o cosmos inteiro para significar a validade da existéncia humana” (Berger & Luckmann). Isso n&o capacitara os homens a arar o solo, gerar filhos ou mover méquinas. Os simbolos nao possuem tal tipo de eficdcia; eles respondem a outro tipo de necessidade, téo poderosa quanto 0 sexo e a fome: a necessidade de viver num mundo que faca sentido. Quando os esquemas de sen- tido entram em colapso, ingressamos no mundo da loucura. Bem dizia Camus que 0 tnico problema filoséfico realmen- te sério é o do suicfdio, pois ele tem a ver com a questdo de se a vida é digna ou nao de ser vivida. E 0 problema nao € material, mas simbdlico. Nao é a dor que desintegra a personalidade, mas a dissolugao dos esquemas de sentido. Esta tem sido uma trégica conclusao das salas de tortura. Os homens nao vivem s6 de pao. Vivem também de sfmbolos, porque sem eles nao haveria ordem, nem sentido para a vida, nem vontade de viver. Se pudermos concordar com a afirmagao de que aqueles que habitam um mundo ordenado e carregado de sentido gozam de um senso de ordem inter- 3 na, integrag%o, unidade, diregdo e se sentem efetivamente mais fortes para viver (Durkheim), teremos entdo descober- to a efetividade e o poder dos simbolos e vislumbrado a maneira pela qual a imaginagdo tem contribufdo para a sobrevivéncia dos homens. 3
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