Eliane Moreira Conhecimentos Tradiocionais
Eliane Moreira Conhecimentos Tradiocionais
Eliane Moreira Conhecimentos Tradiocionais
Eliane Moreira1
Resumo: Um dos maiores desafios atuais, no campo do Direito Ambiental, é proposto pelas
populações tradicionais que têm, legitimamente, demandado do Estado políticas públicas que
garantam a proteção de seus conhecimentos tradicionais. Com efeito, os desafios para a garantia
desses direitos são muitos e passam pela necessidade de políticas de ações afirmativas que
assegurem a esses sujeitos o papel de titulares de direitos, até a formulação e implementação de
um sistema que dê efetividade aos direitos postulados. A seguir, procuramos afirmar os direitos
referentes aos conhecimentos tradicionais, identificando o arcabouço jurídico vigente neste
campo.
1. Introdução.
Na história da humanidade, a produção de conhecimentos segundo padrões e processos
orientados por formas de organização sociais tradicionais sempre foi uma importante fonte de
energia para os sistemas de compreensão e aproximação com a natureza. O conhecimento
tradicional é a forma mais antiga de produção de teorias, experiências, regras e conceitos, isto é,
a mais ancestral forma de produzir ciência.
Como fonte de produção de sistemas de inovação, os conhecimentos tradicionais
destacam-se por seu vasto campo e variedade que comportam:
técnicas de manejo de recursos naturais, métodos de caça e pesca, conhecimentos sobre
os diversos ecossistemas e sobre propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas de
espécies e as próprias categorizações e classificações de espécies de flora e fauna
utilizadas pelas populações tradicionais (SANTILLI, 2005, p. 192)
1
Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará, Doutora em Desenvolvimento Sustentável pelo
NAEA-UFPA, Mestre em Direito pela PUC/SP, Professora de Direito Ambiental e Pesquisadora do Núcleo de
Propriedade Intelectual do CESUPA.
É claro que um saber tão sistematicamente desenvolvido não pode estar em função da
simples utilizada prática (...) as espécies animais e vegetais não são conhecidas na
medida em que sejam úteis; elas são classificadas úteis ou interessantes porque são
primeiro conhecidas.
Sua produção resulta de práticas e verdades culturais, por meio de uma observação
minuciosa e detalhada, “além do que seria necessário ou racional do ponto de vista econômico
(...) há um ‘excesso’ de conhecimentos somente justificado pelo mero prazer de saber, pelo gosto
do detalhe e pela tentativa de ordenar o mundo de forma intelectualmente satisfatória. Dentre os
apetites, o apetite de saber é dos mais poderosos” (CUNHA e ALMEIDA, 2002, p. 13).
Esses conhecimentos, que até então se destinavam à manutenção das formas de vida das
sociedades tradicionais, a partir do século XX passam a ser vistos sob uma ótica utilitarista
decorrente do novo cenário científico e tecnológico que se delineia e que ganha contornos claros
com a ascensão de novas tecnologias as quais passam a identificar nesses recursos um forte
potencial industrial.
Não apenas a biotecnologia contribui para isto, mas também as aspirações consumidoras
que identificam cada vez mais as culturas tradicionais como um bem a ser consumido. O
crescimento galopante do “mercado verde”, Impulsionado pela mercantilização da
sustentabilidade contribui em boa medida para isso com forte influência no avanço sobre essas
culturas.
2. Populações Tradicionais.
Falar sobre populações tradicionais é uma tarefa absolutamente desafiadora. Não
apenas pela complexidade, diversidade e especificidades das sociedades envolvidas nesse
conceito, mas também pela profusão de discordâncias semânticas que desperta.
A opção feita é a de não enfrentar os problemas semânticos, que giram em torno da
melhor denominação a ser dada a grupos como povos indígenas, quilombolas e comunidades
locais2 (caiçaras, açorianos, caipiras, babaçueiros, jangadeiros, pantaneiros, pastoreiros,
quilombolas, ribeirinhos/caboclo amazônico, ribeirinhos/caboclo não amazônico (varjeiro),
sertanejos/vaqueiro, pescadores artesanais3, extrativistas, seringueiros, camponeses, dentre
outros). Aceita-se a realidade de que, reunir coletividades tão diversas do ponto de vista sócio-
cultural é problemático e, em verdade, nem uma categoria pode pretender agregar todos esses
povos impunemente.
A Convenção da Diversidade Biológica (CDB) ao dispor sobre eles adotou a locução
“comunidades locais e povos indígenas”; a Medida Provisória (MP) n° 2.186-16/01 refere-se à
“comunidade indígena e comunidade local”, Diegues (1998, p. 75) assinala que se utilizam ainda
termos como “populações tradicionais”4 5, “sociedades tradicionais”, “comunidades
2
As comunidades locais, em geral, chamadas de “camponesas”, resultam de uma intensa miscigenação entre os
diversos povos que compõe a identidade do povo brasileiro, são os caiçaras, caipiras, comunidades pantaneiras,
ribeirinhas, pescadores artesanais, pequenos produtores litorâneos e assim por diante, mas que, em certa medida
guardam um isolamento geográfico relativo e um modo de vida particularizado pela dependência dos ciclos naturais
(DIEGUES apud Queiroz, 1998, p. 14).
3
Até aqui, relação dada por Diegues, 1999, p. 03.
4
Essa terminologia é utilizada de forma recorrente por Antonio Carlos Diegues em “O Mito Moderno da Natureza
Intocada” e também adotada por Raul Di Sergi Baylão e Nurit Bensusan no artigo “Conservação da Biodiversidade e
tradicionais”, o que revela a existência de diferentes escolas antropológicas sobre o tema. Certo é
que essa terminologia é ainda muito nova e está por definir seus contornos, pois se encontra no
início de sua vida (CUNHA e ALMEIDA, p. 184, 2001)6.
Por essa razão, de maneira arbitrária, optamos pela utilização do termo “populações
tradicionais” com o intuito de englobar, ainda que artificialmente, os povos indígenas,
quilombolas e as comunidades locais.
Reconhecemos o diferencial estabelecido pela Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) de que os povos indígenas e tribais devem ser identificados
como povos7 que possuem autodeterminação, e a adoção da presente terminologia não implica
seu afastamento. Ao mesmo tempo, temos a perspectiva já assinalada por Edna Castro (2000, p.
165) que ressalta o uso da denominação “povos tradicionais” como autonomeação, expressa
“elementos de identidade política e reafirmação de direitos”. Doravante, a adoção do termo
“populações tradicionais” será utilizada de modo a incluir nesta categoria:
não apenas as comunidades indígenas, como também outras populações que vivem em
estreita relação com o ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para a
sua reprodução sócio-cultural, por meio de atividades de baixo impacto ambiental
(SANTILLI, 2002, p. 90)8.
Populações Tradicionais: um falso conflito” In: Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios. Brasília: FESMPDFT, Ano I, n. 1, jul./set.1993.
5
Alfredo Wagner de Almeida chama atenção ao fato de que esta terminologia contrasta com o termo “populações
biológicas” (2004, p. 44).
6
Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. B. Almeida, fazem uma reflexão interessante sobre as raízes coloniais da
diferenciação destes grupos, por meio de expressões como “índio”, “indígena”, “tribal”, “nativo”, “aborígine” e
“negro” derivadas do relacionamento com as Metrópoles, e que aos poucos foram capitaneadas pelos grupos por ela
designados servindo-se à defesa de seus interesses, segundo os autores: “Neste caso, a deportação para um território
conceitual estrangeiro terminou resultando na ocupação e defesa deste território” (2001, p. 184).
7
O Instituto Sócio-ambiental (ISA) adotou este termo na publicação “Quem cala consente?: subsídios para a
proteção aos conhecimentos tradicionais” São Paulo: ISA, 2003, p. 05.
8
Juliana Santilli utiliza em diversas de suas publicações a categoria “comunidade tradicional”, mas como
anteriormente já asseverado, acredita-se que qualquer dessas categorias possuem falhas e ao mesmo tempo
resguardam profundas interseções em seus elementos conceituais, aplicando-se, portanto ao presente trabalho.
identificação de um povo como tradicional sejam válidas, entendemos que essas serão sempre,
de algum modo, falhas perante a dinâmica social que não nos permite fixá-las de modo absoluto.
Certamente o modo de vida (DIEGUES, 1998, p. 88) permite visualizar um caminho,
em certa medida, mais seguro para a identificação das populações tradicionais. O conceito de
tradição capta esse sentido de identificação de um distinto modo de vida e crenças, neste sentido,
pode se aproximar de concepções históricas ou identitárias de um grupo (MORTUREUX, 1999,
p. 14).
Vale ressaltar que o que faz um grupo social ser identificado como tradicional não é a
localidade onde se encontra, ele pode estar em uma unidade de conservação, terra indígena, terra
quilombola, à beira de um rio da Amazônia, num centro urbano, numa feira, nas casas afro-
religosas, nos assentamentos da reforma agrária, enfim, não é o local que define quem elas são,
mas sim seu modo de vida e as suas formas de estreitar relações com a diversidade biológica, em
função de uma dependência que não precisa ser apenas com fins de subsistência, pode ser
também material, econômica, cultural, religiosa, espiritual, etc.
Reconhecer essas sociedades como dotadas de distinções que demandam uma nova
visão de Estado e de sociedade demanda a modificação radical das percepções, discussões e
ações, demanda alteridade, na feliz expressão de Antônio Pinheiro (2005, p. 20):
Há que se ter alteridade para aceitar que são sociedades diferentes, constituídas por
sujeitos que pousam outro olhar, sobre o significado e relacionamento com o mundo,
dispare dos nossos por conta de uma lógica e interação diferenciada com o espaço e o
meio que o circunscreve assim devem ser aceitos e respeitados, sem que se use este
diferencial como diminuidor de sua qualidade, ou argumento para expropriação de
seus direitos.
Porém, essa agenda de lutas que trata, em última instância, de direitos dos povos
tradicionais tem sido persistentemente boicotada pelas percepções colonialistas acerca desses
sujeitos, sobre os quais recai por vezes o discurso da indolência, da inferioridade, do exotismo,
dentre outros9.
É nesse ponto que se situam as dificuldades em torno da proteção e defesa dos direitos
em debate. A afirmação de uma coletividade tão expressiva social e historicamente e ao mesmo
tempo tão vitimada por sucessivas práticas de exclusão conforma um ambiente de disputa, de
insurgência contra a reiteração de práticas espoliativas. Ainda hoje, os discursos colonialistas
têm tragado e invisibilizado as populações locais no contexto hegemônico.
Fato é que esse sistema está sendo questionado pela emergência de uma regulamentação
afirmativa de direitos, resultado de anos de lutas travadas pelas populações tradicionais, um dos
cenários dessa disputa é expressa pelas novas regras para acesso e uso dos conhecimentos
tradicionais.
Os povos tradicionais têm travado uma luta em busca de seu protagonismo no uso de
seus recursos, em um processo recentemente inaugurado de desobediência e não aceitação do
sistema criado pela sociedade hegemônica. Quando os povos indígenas, por exemplo, se
organizam e afirmam “nosso conhecimento não é mercadoria”10, estão traçando as trincheiras de
uma luta pela crítica ao sistema instituído, é de se dizer, trava-se uma luta pelo poder, em suas
diversas manifestações.
9
Fernanda Kaingang remete aos discursos colonialistas que inferiorizavam os povos indígenas, com a finalidade de
justificar seu massacre: “A literatura oficial da época esforçava-se para justificar semelhante massacre
estigmatizando as Sociedades Indígenas, por intermédio de preconceitos coloniais, reproduzidos ao longo dos
séculos tais como: preguiçosos, selvagens, bêbados e incapazes” (2004, p. 09).
10
Id. Ibidem
A CDB, ao absorver o reconhecimento de relações estreitas entre a biodiversidade e o
modo de vida de comunidades tradicionais, albergando a teoria da ecologia social, reconhece a
importância de zelar pelo relacionamento entre populações humanas e a biodiversidade e admite
que a “paisagem é fruto de uma história comum e interligada: a história humana e natural”, de tal
forma que a biodiversidade é “uma construção cultural e social” (DIEGUES, 1999, p. 08).
É certo, porém, que devemos estar atentos ao caráter “ambivalente” da CDB, nas
palavras de Aubertin e Boisvert (1998, p. 17). Essas autoras corretamente alertam para a
necessidade de analisar com certa objetividade o contexto da convenção, pois, ao tempo em que
se propõe a valorizar o trabalho de conservação desempenhado pelos povos tradicionais, ratifica
o sistema de propriedade intelectual, ao criar mecanismos para sua expansão. Por outro lado, a
CDB propiciou certa redução no que tange às discussões sobre o direito dos povos tradicionais
controlarem seus recursos naturais e seus saberes correlatos, com efeito, esse lócus deve ser visto
apenas como uma nova opção de expressão dessa luta, e de fato, não será nos debates sobre
biodiversidade que se encontrará o lugar mais propício para a defesa de tais direitos
(AUBERTIN e BOISVERT, 1999, p. 73).
No contexto da afirmação desses direitos, a Convenção da Diversidade Biológica teve o
importante papel de dar corpo jurídico a um determinado feixe de direitos concernentes, quais
sejam, os saberes, inovações e técnicas desenvolvidas pelo povos tradicionais em sua interação
com a natureza.
Sobre conhecimentos tradicionais, a Convenção estabelece em seu preâmbulo que
existe:
estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais
e populações indígenas com estilos de vida tradicionais, e que é desejável repartir
eqüitativamente os benefícios derivados da utilização do conhecimento tradicional, de
inovações e de práticas relevantes à conservação da diversidade biológica e à utilização
sustentável de seus componentes.
4. Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais” In:
ACSELRAD, Henri (org). Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Reúne Dumaró, 2004, p. 37 – 56.
ALBAGLI, Sarita. Interesse Global no Saber Local: a geopolítica da biodiversidade. In. MOREIRA, Eliane, et all,
Seminário Saber Local/Interesse Global: propriedade intelectual, biodiversidade e conhecimento tradicional na
Amazônia, 2005, p. 17 a 27.
AUBERTIN, Catherine e Valérie, BOISVERT. Os Direitos de Propriedade Intelectual a Serviço da Biodiversidade:
uma questão conflituosa. In Ciência e Ambiente. Santa Maria: UFSM, 1999.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BALÉE, William. Cultura na Vegetação da Amazônia Brasileira. In. NEVES, Walter (Org.). Biologia e Ecologia
Humana na Amazônia: avaliação e perspectiva. Belém: MPEG, 1989.
CASTRO, Edna. Território, Biodiversidade e Saberes de Populações Tradicionais. In: DIEGUES, Antonio Carlos
(org.). Etnoconservação: novos rumos para a conservação da natureza. São Paulo: Ed. HUCITEC, 2000, p 165-182.
CUNHA Manuela Carneiro da e ALMEIDA, Mauro. Enciclopédia da Floresta. Companhia das Letras, São Paulo,
2002.
DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. O Mito Moderno da Natureza Intocada. Editora HUCITEC: São Paulo,1998.
________. Biodiversidade e Comunidades Tradicionais no Brasil. NUPAUB-USP/PROBIO-MMA/CNPq: São
Paulo, 1999.
ENRIQUEZ, Gonçalo. A Lenta Marcha da Relação Universidade – Empresa em Produtos Naturais e
Biotecnológicos no Brasil. Capturado na internet em 12 de setembro de 2005. Online. Disponível na internet em
http://www.anppas.org.br/encontro/segundo/papers/GT/GT02/GTgonzalo_enriquez.pdf
LARRAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1993.
LEVY-STRAUSS, Claude. A Ciência do Concreto. In: O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1976.
MORTUREUX, Virginie . Droits de propriété intellectuelle et connaissances, innovations et pratiques des
communautés autochtones et locales. Paris: BRG, Bureau des ressources génétiques, 2000.
PINHEIRO, Antônio. O Acesso a Biodiversidade pelas Instituições de Pesquisa: Nova Forma de Relacionamento
entre Sociedades Tradicionais e o Mercado - Experiência Recente do Museu Paraense Emílio Goeldi. Monografia
de Conclusão do Curso de Especialização em Direito Ambiental e Política Pública. Belém: UFPA, 2005.
PINTON, Florence e AUBERTIN, Catherine. "Populations Traditionnelles: enquête de frontières", In L’Amazonie
brésilienne et le développement durable. Expériences et enjeux en milieu rural, Albaladejo, C. et Arnauld de Sartre,
X (Dir.), Paris, L'Harmattan, 2005, pp. 159-178
REPETTO, Rosana. Accesso a Recursos Genéticos y Distribución Justa y Eqüitativa de los Benefícios Derivados de
su Utilización. Ciudad de México: PNUMA, 2003.
SANTILLI, Juliana. A biodiversidade de as comunidades tradicionais. In: BESUNSAN, Nurit (org.) Seria Melhor
Ladrilhar? Biodiversidade como, para que, porquê. Brasília: Editora Universidade de Brasília: Instituto
Socioambiental, 2002.
________. Socioambientalismo e Novos Direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005.
________. Saberes Locais e Biodiversidade. In. MOREIRA, Eliane, et all, Seminário Saber Local/Interesse Global:
propriedade intelectual, biodiversidade e conhecimento tradicional na Amazônia, 2005.